DEDICATÓRIA1: À Camila Fernandes Giulia Moon Marcelo Amado Marcelo Marchi Strix Van Allen e todos os adoráveis sonhadores que tornaram a literatura e a Internet um dos lugares mais interessantes possíveis.
DEDICATÓRIA2: À Alynne Ansje Adrienne Van Dahl Dani Van Dahl Kathleen Marienne McHill Sasskja van Hoojissel e todas as pessoas de bom coração que conseguem dar sentido a este mundo
ÍNDICE
FIM DE ENCANTAMENTO PARTE 1...........................................................02 FIM DE ENCANTAMENTO PARTE 2...........................................................05 SAN JUAN ROMERO...................................................................................11 O MENINO NO LAGO..................................................................................14
2 FIM DE ENCANTAMENTO Por Rita Maria Felix da Silva PARTE 1
Prólogo: Das palavras de Ya-Yllah-Yti, líder, sacerdotisa e contadora de histórias da última tribo de humanos, du-rante o derradeiro êxodo, nos dias finais que antecederam a extinção... "E agora nós sentamos diante desta fogueira, feita com a pouca lenha que pudemos juntar, na tênue esperança de resistir ao frio, enquanto padecemos sob a mão dos Deuses, que nos abandonaram e ignoram nossas preces, e que enviaram para substituí-los as duas irmãs cruéis, que chamamos de 'Doença' e 'Fome', enquanto a mãe delas, a 'Morte', nos segue e nos cerca, apenas esperando, como um lobo tão faminto como nós. Mas somos humanos ainda, e tudo o que restou dos humanos, e, por isso devemos continuar vivos, pelo sonho de que um dia serão os homens e mulheres, novamente, os senhores deste mundo. Então eu lhes conto uma história, para que dela obtenham sabedoria e novas forças, ou para que, pelos menos, entretenham-se por alguns instantes desta noite interminável, desde que o bondoso Sol nos deixou. Contam que isto aconteceu no início destes últimos dias do mundo e alguns insistem que foi verdade. Mas talvez não importe, pois restou tão pouco de nosso mundo, tão poucos para ouvirem as histórias e menos ainda para contá-las. Dizem que foi exatamente assim..." Eram tempos sombrios na história do mundo, quando ela chegou a um pequeno vilarejo próximo ao Mar do Norte. Os primeiros ventos do inverno já avançavam sobre aquela parte remota do reino, trazendo consigo notícias más e uma sensação de desesperança, que ameaçava apoderar-se de uma multidão crescente de corações, os quais sentiam um futuro terrível se aproximando - mas eles não podiam definir qual era e, por isso, olhavam para o Céu, em busca de respostas e consolo. Porém não era só o tempo que estava mudando, pois os Deuses também haviam se tornado mais estranhos, pois já estavam cansados dos mortais e suas bajulações. De qualquer forma, ela não se importava com tais coisas. Chegou sozinha, montada a cavalo, sabem os Deuses de onde. Veio silenciosa, em trajes simples de uma camponesa, a espada dependurada na cintura, a cabeça escondida num capuz, uma capa acinzentada cobrindo-lhe as costas... Havia algo de poderoso em sua figura, de altivo, nobre e sofrido, e perigoso, porque parecia não pertencer a esse mundo e ao, mesmo tempo, era como se tentasse, no final de suas forças, agarrasse a ele. Não sei, com certeza, e creio que ninguém sabe. Dizem que seu nome era Glória, mas, até aquele momento, ninguém podia imaginar o que buscava. Ela desmontou no meio do vilarejo, em frente a uma velha taberna, em cuja placa alguém havia gravado um nome rude - algo que, remotamente, lembraria um dialeto atlante - e um desenho de difícil definição.Ela entrou com passos firmes e o lugar estava praticamente cheio. As pessoas olharam para ela com surpresa, pois era a única mulher naquele local. Ela ignorou os olhares e procurou uma mesa num canto mais afastado e escuro e sentou-se próxima a uma parede, onde ainda podia ser vista uma bela pintura já bastante desgastada. Talvez uma lembrança perdida de dias melhores. O taberneiro, um tipo corpulento com uma grande e antiga cicatriz no rosto, aproximou-se da mesa. Glória entregou-lhe uma moeda e pediu uma caneca de vinho. Ele a atendeu logo e voltou para trás do balcão, avaliando com curiosidade aquele dinheiro (era de ouro, com certeza - mas a escrita e aqueles símbolos, de onde poderiam ser?) O ambiente estava quase na penumbra exceto, por algumas tochas penduradas a ganchos nas paredes. Aqui e ali havia escuridão e tudo parecia muito sombrio, porém não mais do que o coração de Glória. Ela havia esperado tanto tempo por aquela noite e - se a informação fosse verdadeira - valeria a pena esperar um pouco mais. Dentro do capuz, seus olhos demonstravam desolação, fúria e lembranças... Sim, muitas lembranças. E breve seu olhar se fixou num pequeno palco em um canto da taberna. Sim. Ela iria esperar. Glória tomou um gole do vinho e tentou lembrar como era o gosto daquela bebida, mas algumas memórias já estavam desbotadas demais e ela ficou triste e desejou chorar...Mas, já se passara muito tempo desde que ela conseguira derramar uma lágrima... Embora algo em seu coração insistisse que isso ainda era possível... Porém, suas reflexões foram logo interrompidas por uma voz desagradável que lhe feria os ouvidos:
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— ... Gostosa! Faz tempo que não vejo uma coisa gostosa assim feito você! Tá procurando companhia, não é? Uma mulher assim, sozinha num lugar desses, tá atrás de homem. Tem de tá!
Glória ergueu os olhos. Diante dela, estava um homem grande, gordo, calvo e barbudo. A expressão no rosto dele era de uma malícia indisfaçada. Em uma das mãos, ele trazia uma caneca de vinho e na face um riso animalesco que contribuía ainda mais para dar aquela criatura a aparência de algo deformado e obsceno. Não havia motivo para chamar atenção esta noite. Não seria bom provocar problemas justamente agora que ela estava tão perto... Por isso, ela resistiu a tentação de decepar aquela coisa atrevida, pretensiosa e faladora e apenas disse: — Vá embora. Uma gargalhada explodiu da boca do homem gordo e ele riu por alguns segundos, para depois esfregar os lábios com as costas da mão e voltar a falar: — É brincadeira, não é? Além de gostosa, é engraçada! Olha, eu tenho dinheiro — e puxou da cintura um pequeno saco de couro, amarrado na extremidade, e ficou balançando-o diante dos olhos dela enquanto falava - e vou me sentar aqui e depois a gente vai para o quarto lá em cima - e apontou para o teto - e você vai passar a noite comigo e vai me fazer o viajante mais feliz nessa vila. E quando eu estiver em cima de você, vai ser a mulher mais feliz do mundo! Que tal? E o homem gordo riu novamente e levou a caneca até os lábios e voltou a beber, fazendo um barulho que lembrava algum animal selvagem. Glória tocou no cabo de sua espada e decidiu que precisava agir. O instante seguinte aconteceu rápido demais, como se a realidade houvesse explodido. A espada de Glória arrancou a caneca de vinho da mão do homem gordo, cortou aquele recipiente em duas metades - o líquido espalhou-se pelo bar, molhando todos que estavam por perto - e passou, veloz o bastante para não ser percebida por um olho humano, pelo rosto daquela criatura. Um corte bem fino cruzou o lado direito da face do homem e, quando as metades da caneca alcançaram o chão, Glória estava de pé, diante do homem gordo e a ponta da lâmina de sua espada já pressionava a garganta daquele infeliz. O homem gordo e barbudo estava sem reação, estático, urrando de dor, medo e surpresa, enquanto vinho e um filete de sangue lhe escorriam pelo rosto. — Sua... Sua cadela! Eu vou te matar por isso! - ele grunhiu. —Não. - ela retrucou - Vai aceitar um conselho: você é tão feio quanto um demônio e deve feder como algo que já morreu há dias. Vá embora e leve só essa cicatriz no rosto, como lembrança do que poderia acontecer essa noite. O homem arfava como um animal agonizante e algo mais teimoso em sua natureza queria ainda insistir: _Não! Eu vou te matar! Eu vou! Ninguém faz isso comigo! Glória analisou aquele ser tão patético diante de seus olhos, meneou a cabeça vagarosamente e desejou que, se realmente existisse um Paraíso, houvesse lugar para idiotas como aquele. Sim, ela poderia matá-lo e, por certo, o mundo não sentiria falta de algo desprezível como aquilo. Porém, uma mão firme segurou o ombro do homem gordo e uma voz orgulhosa e forte, ergueu-se: — Klaus, pelos Deuses! Juízo homem! Recua! Vamos sair daqui ou essa feiticeira vai te fazer em pedaços! Ela olhou por sobre os ombros do homem gordo e lá estava um velho soldado, cujo rosto ainda deixava escapar a gloria, a nobreza e o poder de dias passados, quando fora um general que comandava exércitos conquistadores e trouxera triunfos e tesouros para seu rei e morte rápida para os inimigos. — Hans, - insistiu Klaus - não te mete, não! Não existem mais feiticeiras! Todo mundo sabe disso!E eu vou matar essa dona! — Você vai é morrer! - replicou Hans - Talvez ainda haja feiticeiras e ela seja uma delas. Sai daqui ou eu mesmo te mato... E depois acrescentou num tom quase paternal: — Por favor. Klaus pareceu atender ao desejo de Hans, pois Glória podia ver nos olhos dele que aquela teimosia se abrandava e ele desejava fugir, mas o medo, o orgulho e a lâmina em sua garganta seguravam-no. Hans soltou o ombro de Klaus, deu um passo para o lado e se aproximou dela. — Moça, - começou - esse imbecil pode ser só um imbecil, mas talvez seja o único amigo que tenho. Eu peço desculpas por ele. Mas deixa-o ir embora. Você iria insultar sua lâmina se matasse um tolo como esse. Algo na figura decadente de Hans ainda transmitia um certo ar de respeito e nobreza, como um eco, uma memória já gasta, de um guerreiro outrora valoroso. Fosse o que fosse, tocou a simpatia de Glória, ela
4 baixou a espada, devolveu-a a bainha e disse: — Certo. Tire-o daqui. — Obrigado - disse Hans, sorriu de forma suave e curvou a cabeça para ela e, logo, arrastou Klaus, que protestava, para fora. Glória observou ao redor e viu que as pessoas continuavam olhando para ela, mas a expressão havia mudado para medo. Ela voltou a sua mesa. O taberneiro aproximou-se novamente: — Eu vi o que aconteceu. - ele procurava dissimular o terror em sua voz e apontava nervosamente para ela enquanto falava - Vou cobrar de Hans a caneca e o vinho, mas não quero problemas na minha taberna, entendeu? Ela não deu maior atenção ao taberneiro e, breve, ele voltou a seu lugar atrás do balcão. Glória segurou a caneca de vinho com as duas mãos e olhou novamente para o palco. Sim, agora era só esperar.
(Continua)
5 FIM DE ENCANTAMENTO Por Rita Maria Felix da Silva
PARTE 2 Prólogo: Das palavras de Ya-Yllah-Yti, líder, sacerdotisa e contadora de histórias da última tribo de humanos, durante o derradeiro êxodo, nos dias finais que antecederam a extinção... “Escutem lá fora o barulho do vento e do frio, enquanto a neve se acumula sobre a face do mundo”... É a voz da terrível noite sem lua ou estrelas (nós ansiamos pelo Sol, mas, nestes tempos, só podemos vê-lo em nossos sonhos)... Ela está ávida por derrubar nossos corpos e entregar nossos cadáveres à 'Morte', a única deusa que restou. Mas não cedam à dor em nossos estômagos ou ao desespero em nossas almas... Lembrem-se que - e isso é ainda maior que qualquer medo ou tormento - nós estamos vivos e cada uma de nossas respirações é um desafio a um universo cruel que nos rejeita... 'Continua a história, Vó!' - disse, impaciente, um dos pequenos, que, como os outros, sempre me chamava de avó. 'Sim. ' - eu disse e sorri com os dentes que ainda me restavam e senti satisfação porque ainda podia contar histórias. Então, continuei... E assim nos foi contado. Glória aguardou naquela taberna... Seu coração e sua espada em tensa espera, enquanto seu espírito era atormentado por dolorosas lembranças e sua mente ansiava por cumprir uma promessa a muito adiada... Uma missão de sangue e ódio que definiria o futuro do mundo... E - que os Deuses, onde quer que estejam, ainda possam se apiedar de nós - nos tornou o que somos hoje..." Glória estranhou que as dores ainda não tivessem voltado e que o vinho continuasse acomodado em seu estômago. Isso era temporário, por certo, mas realmente não importava: nada mais a interessava, excerto o que viera fazer ali. Após alguns minutos, um artista subiu ao palco da taberna. Era um velho, de feições magras e esticadas; a barba, grande e malfeita; os cabelos, que ultrapassavam os ombros, estavam soltos e não eram bemcuidados; vestia um tipo de túnica longa e acinzentada, coberta por símbolos que poucos ainda conseguiriam ler. Mas o rosto era mais interessante: os olhos e a expressão daquela face carregavam algum vestígio de malignidade, de um passado perverso, de atrocidades indizíveis e de um grande poder, mas tudo parecia perdido agora, submerso e sufocado por camadas e mais camadas de tristeza, cansaço e de tempo. Era alguém que inspirava pena e, ao mesmo tempo, assombro, pois, ao olhar para ele, percebia-se sua fraqueza e questionava-se como ainda poderia estar vivo. O velho trouxe consigo uma pequena mesa e um saco, feito de couro, do qual tirou vários objetos de aparência incomum - que bem poderiam ter sido considerados místicos ou sagrados em épocas anteriores, colocou-os sobre a mesa e bateu palmas, para chamar a atenção do público: — Saudações! - Ele disse e curvou-se, cumprimentando a platéia - Eu sou Arius, Senhor da Magia e Mestre das Artes dos Mundos Ocultos, e hoje eu permitirei a vocês um vislumbre de meu poder! Glória tremeu e seu coração quase parou... Mesmo após tantos anos... Era ele! As lembranças, acompanhadas pelo pânico, tomaram conta da alma de Glória e ela precisou se controlar para que não percebessem o que estava acontecendo. Por todos os Deuses - que a abandonaram naquele dia fatídico - era ele! Ela segurou o cabo de sua espada e, por um instante, viu a si mesma saltando sobre o palco, como a mais ensandecida das feras, e partindo aquela criatura em duas, com um corte que se iniciasse na cabeça e terminasse na virilha. (Era ele! Sua mente gritava e as lembranças explodiam diante de seus olhos. O ódio crescia a partir de seu coração e percorria seu corpo como veneno e ardia como fogo e doía e era tão intenso que ela pensou que poderia matá-la). "Não!" - ela murmurou para si mesma. Não deveria ser daquela forma. Era necessário que ele soubesse quem era ela e porque estava ali. Assim, Glória decidiu esperar um pouco mais, até que o espetáculo terminasse. Só mais um pouco. O velho continuou sua exibição. Cruzou os braços por um instante, curvou a cabeça, com os olhos fechados - como se estivesse se concentrando - para logo em seguida pronunciar algo em linguagem incompreensível e começar a gesticular. De suas mãos, faiscavam luzes que oscilavam entre o verde e o azul e delas se formavam pequenas imagens pouco desdém... Dragões, duendes, gigantes e guerreiros lutando entre si.
6 — Vejam! - o velho dizia, enquanto olhava para o público - Isso é poder! Magia! Contemplem e lembrem do que já foi o mundo! Vocês devem se admirar e temer e lembrar! Glória analisou o discurso do mago e percebeu que algo estava escondido naquela fala: era uma súplica desesperada sobre algo essencial. Porém, logo se iniciou uma gritaria na taberna e os outros fregueses começaram a atirar sobre o palco garrafas e canecas. Alguns objetos atingiram Arius, outros derrubaram símbolos que estavam sobre a mesa. As formas luminosas sumiram e o próprio mago usava as mãos tentando proteger-se dos projeteis, mas tombou e caiu sobre a mesa e levou ao chão os símbolos que ainda restavam. Nesse instante a multidão parou e um riso ergueu-se de sua garganta. E eles riram enquanto Arius se levantava, dolo-rido e com um corte na testa. — Quem quer ver essa porcaria, Arius?! - gritou um dos fregueses, um homem de armadura e que levava às costas um arco. - Vai dormir, senão a gente te mata! Arius ergueu a cabeça e olhou para eles. Num instante de fúria, apanhou do chão um dos símbolos - a estátua de alguma divindade que Glória desconhecia - e apontou-a para o público e ficou tenso, tremendo, como se tentasse dizer ou fazer algo grandioso e terrível. E, por fim, apenas baixou o braço, disse "Não" e foi recolher seus símbolos e sua mesa para deixar o palco. O público riu ainda mais dele e voltou a atirar garrafas e canecas, mas o taberneiro intercedeu e pediu que parassem. Os fregueses riram um pouco mais, porém atenderam e voltaram para sua bebida e suas conversas, enquanto a noite avançava e um humilhado Arius retirava-se para seus aposentos. Glória, todavia, não riu em momento algum e seguiu Arius, que havia saído por uma pequena porta num dos cantos da taberna. Em sua breve caminhada, o mago atravessou um pátio, que servia como depósito de lixo, nos fundos da taberna, e entrou numa pequena casa de um só cômodo. Glória empurrou a porta vagarosamente e entrou logo atrás dele. O ambiente lá dentro era muito simples. Uma cama, algumas roupas, livros e pergaminhos empilhados no chão, ao lado da mesa e do saco, que continha os símbolos usados no espetáculo. Arius ainda estava com a mesma túnica e colocava um tipo de pomada - feita de ervas que ele mesmo triturara - no ferimento na testa. Um gato de cor branca - muito magro, velho e feio - se enroscava em seus pés. Sem se virar para Glória, Arius comentou: — Vigil me disse que eu devia parar com esses espetáculos, que eles não gostam e que vão acabar me matando. Aqueles animais! Muitas vezes me questiono porque ainda me esforço por eles. Afinal, de que vale ainda existir um mundo se é para ser habitado por criaturas como aquelas?! — Vigil? - ela indagou. — O taberneiro - Ele respondeu. Já foi o meu melhor servo... Um guerreiro notável... Em memória aos velhos dias, ele me deixa morar aqui e comer os restos da cozinha. Em seguida, Arius parou por um instante, como se esperasse que ela dissesse algo, e então falou: — Você é diferente dos outros. Vi como estava prestando atenção. Não está aqui para rir de mim, não é? Veio me matar. — Sim. - ela respondeu secamente. Ele riu de forma suave e virou-se para ela: — Então, pelo menos, me deixe saber por que e também me dê a chance de falar. — É o que pretendo fazer. - ela concordou. Arius sentou-se na cama e apontou para a mesinha que havia usado no espetáculo: — Você pode se sentar ali. Vai servir como cadeira. Ela fez como ele dissera. Arius pegou o gato, que ainda se enroscava em seus pés, colocou-o sobre as pernas e começou a acariciá-lo. — Ele gosta de carinho. É um bichinho adorável. Acredita que já foi um demônio terrível? Sério, era do tamanho desta casa. Usei-o em minhas guerras contra outros magos. Lembro que ele dilacerava um homem com uma facilidade aterra do... Mas, estou sendo indelicado: qual é o seu nome? Ela percebeu que hesitava... Antevira aquele momento por tantas vezes em seu coração... Lembrava do que Arius havia sido e o que fizera... Mas não era dessa forma que esperava encontrá-lo.
7 — Há muito tempo - ela começou a falar - chamavam-me de Glória, mas não uso esse nome... Há décadas... Nasci e cresci numa pequena vila camponesa, na fronteira Norte deste reino com o vizinho... Eu tinha vinte e três anos quando conheci você... Naquela época te chamavam de Ungmar Yon Varius... — Sim - ele a interrompeu - na verdade é um título. Vem de uma língua já bem esquecida. Era muito pomposo e, por isso, fico com vergonha de traduzi-lo. Faz tempo que voltei a usar "Arius", meu nome original. — Estávamos próximos da época das colheitas - ela continuou. Eu tinha um marido e dois filhos e eles me amavam. A vida era simples, podia não ser perfeita ou maravilhosa, mas era boa. "Você veio no começo de uma manhã - e nos paramos nosso trabalho para olhar - liderando o maior exército que já tínhamos vistos, uma multidão de homens armados e monstros - alguns eram feras comuns e outros, criaturas mágicas. Nós tivemos medo, mas éramos um povo tolo e hospitaleiro, por isso seu ataque nos pegou inteiramente de surpresa. Não tivemos como resistir. Meu marido era corajoso. Se tivesse nascido em outro local, talvez tivesse se tornado um guerreiro de renome, mas isso de nada adiantou diante do machado de um gigante de pele azulada, orelhas pontudas e presas salientes. Eu o assisti cair, gritar, agonizar e morrer. Implorei por ajuda aos Deuses. Eles me ignoraram e fui atirada ao solo pelo fogo de um pequeno dragão. Quando acordei estava acorrentada, junto com as outras mulheres e crianças da vila. Uma criatura magra, com odor de enxofre e uma aparência que, remotamente, lembrava um ser humano, me acariciava com obscenidade. Eu gritei e protestei. Ele se afastou rindo e me disse que você havia ordenado a morte de todos os homens e velhos da vila. Apenas as mulheres e crianças haviam restado para alguma coisa que você chamava de "experiências". Não sei quanto tempo durou - pois tudo parecia um sonho delirante, mas suas "experiências" eram apenas torturas, muitas delas envolvendo Magia, e algumas foram quase inimagináveis. As crianças sucumbiram logo. Lembro dos gritos de meus filhos, de como imploravam que eu os salvasse e de como amaldiçoei você e aquelas correntes. E, uma manhã, de todo o meu povo, apenas eu restava viva. Então, você partiu com seu exército para o Leste. Estava satisfeito, triunfante com nossa morte e ruína, mas deixou para trás um grupo de dez soldados. Cinco ou sete deles eram humanos, os outros, porém, eram coisas que prefiro não descrever. Eu estava ferida e sangrando, cheia de queimaduras e cortes e ossos partidos, minha mente ameaçava se despedaçar e, por certo, eu não duraria viva mais do que alguns minutos. Mas você disse que eu era deles agora e que fizessem o que desejassem e depois me matassem. Eles removeram as correntes e me arrastaram para o meio do campo. Enquanto minha visão já começava a desaparecer, olhei para os rostos daquele grupo: Me pareceram loucos, pervertidos, malignos, pois embora meu corpo estivesse naquele estado, eles o desejavam. E eu chorei e me desesperei, mas de nada adiantava, pois não tinha forças para me defender. Foi, quando o primeiro deles me tocou com uma pata peluda e úmida, que então aconteceu. Chamas cobriram meu corpo - e elas vinham de dentro de mim. Os ferimentos, as queimaduras, os ossos... Tudo se curou miraculosamente. Seus soldados recuaram e deviam ter fugido de mim... Mas estavam por demais assustados e curiosos e fascinados para fazerem isso. As chamas desapareceram e eu me ergui tomada por uma fúria como nunca se viu neste mundo. Eu avancei sobre eles, as mãos nuas, enlouquecida, gritando como uma fera... Eu parti ossos, rasguei gargantas e arranquei corações e espinhas... O medo deles não me compadecia; sua fúria e suas armas eram nada diante de mim... E, logo, tudo que restou eram cadáveres, horrivelmente dilacerados, e eu de pé, no meio daquela cena, coberta com o sangue deles, e ansiosa para ir para o Leste... Para conceder a você um destino semelhante... Porém, uma dor como nunca havia sentido antes me dominou e eu não resisti e tombei inconsciente. Quando despertei, os corpos ao meu redor já haviam apodrecido e abutres se banqueteavam deles. Aquelas aves, todavia, não me tocaram e pareciam assustadas comigo. Então eu vaguei, sempre tentando te alcançar e me vingar do que fizera comigo, mas nunca te alcançava, por mais que tentasse, e os anos passavam por mim e eu me desesperava..." — Era um tipo de encanto de proteção, - Arius a interrompeu - eu o fiz para me afastar dos inimigos. Funcionava bem em alguns casos. No seu, talvez por sua natureza única, foi excepcional... Deve ter durado até recentemente. Desculpe: te interrompi de novo. Glória o ignorou e retomou sua narrativa: "Meu ódio por você se tornava mais forte, à medida que os anos me sufocavam e eu aprendia mais sobre o que eu havia me tornado...
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Eu não envelheci um minuto sequer desde aquele dia, em que me ergui ao lado dos cadáveres, e cem anos já se passaram desde então. Também nunca mais consegui dormir. Sou mais forte e mais rápida do que qualquer pessoa deste mundo, nenhuma doença me toca e meus ferimentos cicatrizam-se quase instantaneamente. Porém, eu não sinto qualquer cheiro ou gosto e meus olhos não enxergam cores - exceto o preto, o branco e o cinza - e minha pele não tem sensações. Não sinto fome ou sede, nem meu estômago é mais capaz de reter alimentos. Qualquer coisa que eu tente ingerir, é vomitada em pouco tempo. Meus sentimentos se resumem a apreensão, medo ou ódio, nada mais do que isso... Alegria, compaixão ou qualquer coisa semelhante... Eu nunca mais pude sentir... Contudo, embora não possa dormir, eu tenho pesadelos... As memórias do que você me fez, de meus sofrimentos e da vida que perdi, me atacam sem qualquer piedade e, periodicamente, os ataques são mais fortes e eu sou torturada por dores físicas ainda maiores do que você poderia imaginar. Tentei sobrepuja-las, me habituar a elas, porém descobri que é impossível. Cem anos se passaram desde que me tornei isto... Não mais humana... Uma aberração que deveria habitar o Inferno. Sim. Eu escutarei você e depois vou matá-lo." Arius soltou o gato e ordenou que saísse. O animal obedeceu rapidamente. — Não vou pedir perdão a você, - retomou a palavra Arius - porque penso que não mereço isso... Nem vou pedir que poupe a minha vida, mas acredito que após o que tenho de te contar, você estará inclinada a fazer isso: "Talvez você se pergunte por que fiz todas essas coisas... Eu me tornei um mago ainda muito jovem. Eu vivia para aumentar meu poder e, quanto mais fazia isso, mais poder eu desejava. Talvez você não saiba, mas a Magia é um tipo de vício. Eu cometia atrocidades porque desejava e porque podia e porque ansiava que o mundo soubesse o quanto eu era poderoso e tremessem ao escutar meu nome... Sim, hoje sei que é um tipo de loucura... E não consigo confessar isso sem me envergonhar... Mas eu planejava conquistar o mundo. Porém, em certo instante do caminho, a Magia, a busca interminável por mais poder, começou a perder o significado para mim e minha consciência passou a me atormentar... Como um torturador. Até hoje, eu durmo muito pouco, pois quando consigo, sou afligido por terríveis pesadelos... As memórias de meus atos... Os feitos odiosos que realizei em nome de meu orgulho e loucura... O que fiz a você e a todos os outros... Eu acordo em pânico, pedindo perdão... Décadas atrás, essa situação tornou-se insuportável demais para mim. Abandonei minhas antigas pretensões e passei a me isolar das pessoas. Eu desejava cometer suicídio. Mas algo aconteceu antes que eu pudesse colocar esse novo plano em prática. Eu já havia percebido falhas em meu poder, contudo, como a Magia já não me interessava mais, não dei atenção ao assunto. Porém, havia relatos de problemas com outros magos e sobre a morte inexplicável de criaturas mágicas. Foi então que em um de meus pesadelos... Eu tive uma revelação: Os Deuses falaram comigo. Eles estavam cansados da humanidade e haviam abandonado-a e, ao fazer isso, levaram a maior parte da Magia com eles. De fato, com o passar dos anos, o número de magos e feiticeiras foi diminuindo consideravelmente. Atualmente, eu sou o único mago que ainda está vivo. Todas as criaturas mágicas já morreram ou fugiram para outros planos de existência. Objetos místicos, como estes que estão aqui - e apontou para o saco onde guardava os símbolos usados em seus espetáculos - são apenas enfeites agora. Mas, antes do ponto mais importante do que eu estou dizendo, quero falar um pouco sobre você: Eu te analisei, enquanto você falava. Sei que é algo notável, como jamais existiu neste mundo, mas não é uma criatura mágica, porque não há mais Magia suficiente no mundo para sustentar alguém como você. Você, mulher, Glória, é o resultado do que fiz, seja lá o que eu tenha feito, mas não há mais Magia em você. Talvez sobreviva a todos nós. Agora o que eu realmente tenho a dizer é isso: Os Deuses criaram este mundo usando a Magia e é através dela que ele se sustenta. Não escutou sobre as coisas terríveis que já estão acontecendo? Eu sou o único mago que restou, a única porção de Magia que ainda persiste. É por isso que prolongo esta vida torturante e me submeto à humilhação desses espetáculos... Porque as pessoas precisam ser lembradas da Magia, para que suas mentes me ajudem a sustentá-la. Entende isto? Sou o último poder. Se eu morrer, não haverá mais Magia e então não haverá mais mundo também, porque sou eu, com estas mãos desesperadas, que o mantém e quando eu me for tudo mais
9 estará condenado. Entende porque não deve me matar? Diga-me: será que se tornou tão monstruosa a ponto de poder carregar em sua consciência o sangue de toda a humanidade?" Então Arius parou de falar e olhou fixamente para ela: — Você sabe que não estou louco e que não menti. É isto que seu espírito está te dizendo agora. Eu e a sobrevivência do mundo estamos em suas mãos. Glória olhou para ele, com mais atenção do que jamais havia feito em sua vida. E as memórias explodiam, da forma mais dolorosa, diante de seus olhos. Ela se sentia em dúvida e sua mente parecia queimar diante da indecisão. Em desespero, Glória procurou seu próprio coração, mas ele era um lugar por demais frio, habitado apenas pelas memórias que a assombraram durante todos aqueles anos... E lhe perguntou sobre o que ela havia se tornado... E, pela primeira vez, em cem anos, lágrimas escorriam de seus olhos. Então com um grito - que seria mais apropriado na garganta de alguma fera que houvesse fugido do Inferno, Glória sacou de sua espada e investiu contra Arius. E ele também gritava e chorava e implorava por piedade... Pelo mundo, pelo futuro e por todos os seres humanos... Mas aquilo não a deteve, nem qualquer coisa poderia... Ela continuou por mais algum tempo, até que nada mais restava do mago Arius, além de sangue espalhado pelo quarto e pedaços de carne e de ossos. Atrás dela, a porta foi aberta e Vigil entrou sobressaltado: — Pelos Deuses! Eu ouvi gritos... O que você...? Porém, ao observar os restos de Arius, o sangue que cobria Glória, a espada ainda segura em sua mão, as lágrimas caindo pelo rosto e a expressão demoníaca em sua face, o taberneiro nada mais disse e apenas ajoelhou-se e começou a chorar. Glória saiu do quarto vagarosamente e quando atravessou a taberna, a espada ainda em punho, todos se afastavam dela com gritos horrorizados. Do lado de fora, ainda era noite, como agora seria para sempre. Ela encostou-se em uma parede. As dores haviam recomeçado, tão fortes quanto antes e o vinho em seu estômago se revoltara. Glória começou a vomitar. Foi quando uma voz terrível voltou a feri-lhe os ouvidos: — Tá doente? Ah, te preocupa, não! Quando eu acabar contigo, tu nunca mais sofrer! Era Klaus, o homem gordo, calvo e barbudo que já havia lhe incomodado naquela mesma noite. Ele segurava uma grande espada, de fabricação rústica, e estava acompanhado por Hans, seu amigo, que disse: — Pelos Deuses, Klaus, não seja louco! Olha para essa mulher! Ela vai te matar! — Não! - grunhiu Klaus em resposta - Eu vou acabar com essa dona! Ninguém me humilha daquele jeito! Glória olhou para aquela fera que se imaginava um homem e quase implorou para que a deixasse em paz. Mas sabia que isso é era inútil. Por isso ela moveu a espada, mais rápido do que poderia ser descrito, a lâmina de Klaus foi partida em duas e sua cabeça foi separada do pescoço e rodopiou no ar e atingiu o chão, sendo seguida, logo depois, pelo corpo. Glória contemplou Hans com piedade - e rezou para que algum poder no Universo pudesse convencê-lo a não tentar vingar a morte do amigo. Talvez ela tenha sido ouvida ou não, pois Hans apenas ficou estático, olhando para a cabeça do amigo e murmurando palavras de lamento. Glória saiu dali. Montou em seu cavalo e, ainda segurando a espada em uma das mãos cavalgou pela noite adentro na maior velocidade que o desespero poderia conceder. Ela pensou em se matar, mas, como descobrira tantas vezes no passado, isso não era possível. E então ela continuou cavalgando até que a noite a engoliu e Glória nunca mais foi vista. No mundo, por toda a parte onde houvesse dia, se fez noite e o sol nunca mais nasceu em canto algum e em todos os lugares a neve começou a cair sobre as cabeças de todos, bons ou maus, sábios ou tolos... E o fim de tudo começou."
10 Epílogo: Das palavras de Ya-Yllah-Yti, líder, sacerdotisa e contadora de histórias da última tribo de humanos, durante o derradeiro êxodo, nos dias finais que antecederam a extinção... "'É assim que termina, Vó?' - perguntou um outro dos pequenos, que se encolhia abraçado a sua mãe tentando resistir ao frio. 'Sim' - respondi - 'Não é a primeira vez que conto essa história.. ' 'Mas e Glória... O que aconteceu com ela?'- ele indagou. 'Ninguém sabe... Talvez ainda esteja por aí... Atormentada.'- respondi. 'Mas termina deste jeito?' - ele insistiu novamente e eu ri e abençoei a teimosia das crianças e então falei: 'Não, não terminou de verdade... Porque nós ainda estamos aqui e quem sabe um dia você compreenda que nós, seres humanos, somos feitos de esperança, muito mais do que de carne, sangue, ossos ou qualquer outra coisa... Mas agora vocês, pequenos devem dormir, e sonhar com o Sol e como as coisas eram e como poderão voltar a ser. Eu vou com os adultos recolher mais lenha para nossa fogueira.' - ordenei e os pequenos obedeceram. Então, chamei dois adultos e, enrolada na pele de uma fera que eu matara há pouco tempo, saí para enfrentar o frio fora da caverna. Pelo caminho, eu contemplava o céu e tentava aquecer meu coração: sim, a história não terminou. “Nós ainda estamos aqui.”
FIM
11 SAN JUAN ROMERO Uma aventura de Sir James Winterwood Por Rita Maria Felix da Silva
-I05 de julho de 1892... Era uma tarde numa terra de calor, poeira e desolação - um vilarejo, esquecido pelo mundo, na fronteira do México. E oi naquele dia que o viajante chegou. Ele parou na entrada do lugar, desceu do cavalo e leu uma inscrição numa tábua caída: "San Juan Romero". Em seguida, pegou, de um compartimento na sela do cavalo, um cantil e provou um gole de água (que acabou bem antes do que esperava). Guardou o cantil. "San Juan Romero". Jamais ouvira falar daquele lugar, porém teria de servir. Retirou o chapéu e, com um lenço, começou a limpar a poeira e o suor que lhe cobriam o rosto. A pele estava ressecada pelo sol, os cabelos desgrenhados e a barba não era feita há dias. Seu estômago reclamava e seu coração estava partido... Porém, ele virou o rosto para o lado e repeliu as memórias, evitando que o dominassem... Pois, como já havia aprendido tanto tempo atrás, elas podem ser bem mais cruéis que o deserto... Recolocou o chapéu, montou novamente e começou a entrar em San Juan Romero. Já havia cruzado metade da rua principal - e lhe pareceu que estava numa cidade fantasma - quando um grupo de cinco homens bloqueou seu caminho. Um deles segurava um velho rifle, os outros estavam armados com picaretas. O viajante saudou-os em espanhol, uma língua que aprendera com seu pai, em tempos melhores: — Boa tarde. Estou viajando há muitos dias. Por favor, preciso de comida, água e de abrigo por uma noite. Eu posso pagar bem. Os homens olharam para o viajante, com expressões severas e hostis, e um deles, o que carregava o rifle, um tipo muito magro, de olhos apertados, falou desta forma: — Vá embora. Não queremos estranhos por aqui. O viajante considerou a possibilidade de passar a noite no deserto e depois resolveu insistir: — Eu não vou incomodar. E, pela manhã, irei embora. — Não! Vai dar meia-volta agora e sumir - retrucou um deles - ou não vamos nos responsabilizar pelo que acontecer a você. Em seguida, o homem do rifle mirou na direção do viajante, que contemplou atentamente os olhos daquela figura... Lá estava uma expressão que ele já vira antes, no rosto de loucos e assassinos (como naquela aldeia na Índia ou em um dos safáris na África Central... E em outras vezes que foi esfaqueado ou baleado ou, de alguma forma, em todas as ocasiões em que a morte se aproximou o bastante para colocar a mão em seu ombro e sorrir). O viajante tinha um revólver pendurado do lado direito de sua cintura e acreditava que poderia atingir aquele homem antes que o rifle fosse disparado, mas preferia resolver este assunto de um modo que não custasse o sangue de ninguém. Todavia não desejava morrer, com um tiro no peito, caído naquela terra empoeirada... O viajante e aqueles homens permaneceram em silêncio por alguns instantes, num tenso impasse, cada um aguardando o que o outro faria. Foi então que uma voz inesperada intercedeu: — Perez! Você está louco? Abaixe essa arma! Ele é só um estranho e você não vai querer mais sangue em nossas mãos, não é? O viajante olhou para a esquerda e viu que se aproximava um velho de longas barbas, fumando cachimbo. Perez baixou o rifle a contragosto — tentando conter sua própria fúria, que era como a de um cão raivoso. Quando o velho já havia se aproximado o suficiente, o viajante decidiu falar: — Eu agradeço muitíssimo, senhor. Eu sou... — Não me interessa! — vociferou o velho — Tem um depósito abandonado a puseram aquele
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corpo despedaçado num saco, que juntou todo o seu bando e partiu sem mais demora. San Juan Romero fora poupada, mas o preço dessa salvação e a gargalhada do demônio que chamavam de Ramirez permaneceu queimando na alma dos habitantes do vilarejo... Para sempre... - III O sonho terminou e Sir James Winterwood despertou num sobressalto, pedindo a Deus que tudo aquilo tivesse sido apenas um pesadelo... Mas seu coração lhe avisava que era verdade... Ele cuidou de arrumar suas coisas o mais rapidamente possível, pois, mais do que nunca, era essencial deixar aquele lugar amaldiçoado. Quando chegou a rua, o sol já havia nascido. Todos os habitantes de San Juan Romero estavam reunidos lá fora. James sacou do revólver, porém logo percebeu a inutilidade de sua reação, pois eles não estavam interessados no viajante: todos permaneciam estáticos contemplando uma figura mais terrível e sombria do que qualquer coisa que o viajante já vira ou pudera imaginar: Sua magreza era inumana; a coloração da pele parecia mais pálida que a de um cadáver; vestia um hábito de sacerdote, que estava em frangalhos; e os olhos, ah, os olhos eram o pior de tudo: a cor era indefinível; tentar contemplá-los fazia a mente rodopiar e enchia o estômago com horror e ânsia de vômito e inundava o coração com uma mistura obscena de emoções: medo, capaz de despedaçar uma alma, pena — que fez James curvar-se no solo e chorar — e repulsa, pois se tinha a certeza de estar diante de algo maligno e blasfemo, que não devia existir, mas que, mesmo assim, ofendendo a toda a criação, caminhava sobre a Terra. Aliado a isto, duas constatações quase arrancaram o espírito de James de seu corpo: a primeira foi perceber que, apesar de estarem diante daquele horror, o povo de San Juan Romero não tentava fugir ou resistir, como se estivessem resignados; em seguida, ele entendeu o óbvio, aquilo, fosse o que realmente fosse, era o Padre Garcia. — Por favor, tenha piedade! - implorou Perez. — Pelo amor de Nosso Senhor! Perdoe-nos! — disse o velho que antes intercedera por James — Nós estávamos assustados, temíamos por nossas vidas... Nunca quisemos fazer aquilo! — Sim — falou um terceiro homem — e nossa consciência jamais nos deixou em paz. Nós vivemos num inferno, atolados até o pescoço na culpa. Para James, tudo aquilo já era um pouco demais e ele atirou contra a figura fantasmagórica do Padre Garcia... Até que o revólver estivesse descarregado e o espectro olhasse para ele... — Você não pertence a isso. Vá embora. — ressoou na mente do viajante uma voz que lembrava túmulos, areia, assassinato e horrores. — Por favor... Saia daqui. Você não precisar também pagar por nossos pecados... — aconselhou o velho e, antes que James reagisse, o ancião voltou-se para os outros habitantes de San Juan Romero e assim falou: — Amigos, nosso crime é indizível e não devemos mais continuar neste mundo, impunes, sem castigo, pelo mal que fizemos... Chegou a hora de terminarmos com tudo isso. No momento seguinte, o velho segurou a mão de Perez e começou a rezar o "Pai Nosso" e, logo, todos, excerto James, também seguravam as mãos uns dos outros e rezavam. Sir James pensava em fugir dali, mas estava abalado demais e, mesmo, curioso, para tomar qualquer atitude. Foi quando o fantasma ergueu a mão direita e um vento selvagem, que açoitava areia contra a pele, com a força de um chicote e um uivo infernal, tomou conta do lugar. O viajante tentava proteger os olhos e caminhou desnorteado pela tempestade de areia, até que, sem poder calcular que distância havia percorrido, tombou naquele chão de vingança e horrores sobrenaturais. Algum tempo depois, ele despertou. O sol queimava seu rosto. Estava dolorido e horrorizado. O revólver e o chapéu se perderam para sempre. Seu cavalo, inexplicavelmente estava ali perto... E James não questionou isso, pois havia aprendido, uma década atrás, que certas dádivas devem ser aceitas sem maiores perguntas... Ele montou. O mais lógico seria afastar-se daquele lugar para sempre... Porém, James se parecia mais com seu pai do que costumava admitir, e ele estava curioso em ver, com seus próprios olhos, como o destino da desafortunada San Juan Romero havia sido concluído. Facilmente ele reencontrou o caminho de volta para o vilarejo e, novamente, cavalgou pela rua principal. Era um cenário de horrores e James recriminou-se por sua curiosidade: por toda a parte cadáveres estavam espalhados, mas eram quase esqueletos, como se algo maligno e selvagem houvesse, violentamente, arrancado a
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carne dos ossos.... Os rostos daqueles infelizes estavam maculados por uma expressão de desespero que fugia a qualquer descrição... E sobre todos eles havia areia... Ele não encontrou qualquer sinal do Padre Garcia e agradeceu aos céus por isso. James pensou em chorar, mas logo entendeu que não haveria nele lágrimas suficientes para algo assim... Ele apenas ficou em silêncio e pediu a Deus que se apiedasse da alma daqueles desafortunados... Depois foi embora. Passou pela placa caída, onde se lia "San Juan Romero", hesitou um pouco, mas então pegou aquele objeto e amarrou-o com suas coisas no cavalo: por mais horrível que fosse, era uma recordação do que aconteceu e serviria, mais adiante, para provar a ele mesmo que não enlouquecera, nem sonhara tudo aquilo... Sim. Aquele trágico episódio seria transformado numa história e tanto, embora ele duvidasse que alguém pudesse acreditar nele. De qualquer forma, James planejava voltar à Europa e repousar, pelo menos por um tempo, na propriedade de sua família, pois estava cansado deste sombrio, selvagem e terrível Novo Mundo...
Ele se voltou por um instante e disse: "San Juan Romero...", como se tentasse entender tudo aquilo, todo o horror e crueldade, e desejando que alguém pudesse lhe explicar que capricho, ou mecanismo secreto da criação, permite que homens bons, ou simplesmente comuns, transformem-se em assassinos e demônios... Porém, seu coração advertiu-lhe que esse era um assunto grande demais, para ele ou qualquer outro homem, e Sir James Winterwood curvou a cabeça e partiu, com a alma ainda mais infeliz do que quando chegara... FIM
14 O MENINO NO LAGO Por Rita Maria Felix da Silva I – O Lago Sombrio
Algumas histórias sobreviveram à memória dos dias antigos - carregadas de um lado para o outro pela brisa que, vez por outra, toca o espírito de mulheres e homens, relembrando uma época de feitos assombrosos, eventos estranhos, magia, maravilhas e horrores. Esta é uma delas: Dizem que havia um menino de quem os pais foram levados muito cedo, por uma das mais estúpidas guerras que os adultos já fizeram. De algum modo, ele sobreviveu e vagou por uma vida solitária até que encontrou um homem chamado Orlando. Os outros adultos desprezavam Orlando, que tinha uma índole ruim e não merecia confiança, porém - embora aquele homem alega-se detestar crianças e maltrate-se o menino sempre que estava irritado ou entediado – eles se tornaram companheiros de viagem nesse mundo, afinal nada tinham, exceto a companhia um do outro, e a solidão costuma permitir as alianças mais improváveis. E o tempo foi vagarosamente passando, enquanto tudo era exatamente assim. Todavia, no começo de uma manhã, coberta de neblina – enquanto o dia avançava junto com as reclamações e grosserias de Orlando – eles chegaram a um lago sombrio, um lugar assombrado pelas memórias de horrores antigos. Sentada em uma das margens, havia uma mulher perto de uma fogueira quase apagada, na qual as poucas brasas que ainda persistiam lançavam mais fumaça do que calor na carne assada de algum pássaro. Ela vestia trapos, seus cabelos eram de um amarelo muito suave, a brancura da pele imitava a palidez, o corpo era magro e, embora parecesse jovem, ninguém poderia, com certeza, determinar sua idade. Com a mão, ela remexia nas águas escuras do lago enquanto cantarolava uma música estranha. Ao vê-los chegar, a mulher parou sua canção, afastou-se da água e os convidou para que se sentassem e comessem. Orlando, em seu orgulho de adulto, não admitiu, mas havia algo de assustador nela, o bastante para que alguns ossos daquele homem começassem a doer. O menino – pois as crianças são mais sinceras – ficou assustado e quis recusar o convite. O homem recriminou seu companheiro de viagem, afinal estavam ambos com fome, e arrastou-o para compartilharem o café da manhã com aquela estranha. A mulher – após os três comerem - se apresentou como Safira e perguntou-lhes seus nomes. Orlando indagou como ela havia conseguido capturar a refeição – afinal os deuses daquela terra pareciam não ter piedade dos famintos, pois os animais dali eram difíceis demais de ser pegos. Ela riu – o som era seco e estranho – e apenas disse: — Magia. — Magia? – ele questionou, pois nunca havia encontrado qualquer coisa mágica em sua vida. — Sim, – ela respondeu – eu sou uma bruxa. O menino, tomado por aquela sabedoria que é própria das crianças, quis fugir e implorou que eles fossem embora. Orlando gritou com ele, criticou-lhe por ser tão covarde e explicou: — Ora, ela pode ser uma bruxa, mas tem comida para nos dar. A bruxa sorriu da tolice do homem e os três ficaram juntos. Os dias se passaram. Orlando e Safira apreciavam a companhia um do outro - afinal ela fora solitária por toda uma longa vida e ele recebia dela todo o alimento de que precisava. O homem, porém, não gostava que o menino ficasse por perto, por isso exigia que este se afastasse o tempo todo ("Vá brincar em algum canto, mas
15 nos deixe em paz!" – gritava ele) e a criança, meio por tristeza por não receber qualquer atenção, meio por temer a fúria do adulto, ia para longe e ficava caminhando e inventando brincadeiras até a hora da próxima refeição. Para Orlando também era agradável está com Safira, pois nunca uma mulher tão bonita havia lhe dado atenção. Em certo momento, ele questionou sobre a beleza dela e a feiticeira respondeu: — Você ouviu sobre as bruxas serem más e feias, mas os contadores de histórias não sabem tanto quanto imaginam e somente uma bruxa muito tola seria feia. Ele meditou por um instante, tentando forçar sua mente a abrigar aquele novo conceito, e depois perguntou: — Mas e sobre vocês serem más? Ela sorriu novamente – um sorriso de profunda malícia e que pareceu belo para aquele homem: — Ora, meu querido, as histórias não estão inteiramente erradas, embora fiquem muito longe da verdade... E, seja sincero, quem é você para falar de maldade? Pelo resto daquele dia e também por toda a noite que se seguiu, Orlando evitou falar com os outros, ponderando sobre as estranhas palavras de Safira, porém, quando o sol nasceu novamente, ele despertou e esqueceuse desta questão. Naquela manhã, Safira fez a proposta. Explicou-lhe que já era uma bruxa por mais tempo do que ele poderia imaginar e disse que desejava se tornar apenas uma mulher humana, como todas as outras. Orlando pensou em como a magia facilitava a vida e questionou por que Safira pensava em abrir mão de algo assim. Ela gargalhou, – com um tom de zombaria que quase fez o homem atirasse furioso sobre ela – recriminou-o por ser tolo o bastante para julgar coisas que não seria capaz de entender e acrescentou: — Antes de abandonar a magia, providenciarei uma grande fortuna, o bastante para uma vida confortável até o meu último fôlego... Mas não só para mim: gostei de você, Orlando. Há uns cinco dias de viagem fica uma vila, por trás daquelas montanhas, uma terra de gente simples, tola e interesseira, que existe à sombra das ruínas de um grande e antigo castelo – onde, quando teu tataravô ainda não tinha nascido, transformei em pedra a princesa daquele lugar e me diverti observando o príncipe vagar pelo mundo, inutilmente procurando uma forma de curá-la, até que o frio, a fome, a loucura e a velhice tomaram-lhe a vida... Quero que venha comigo e que fiquemos juntos até que a morte escolha levar um de nós – e ela contemplou-o com o sorriso mais encantador que aquele homem já vira. Orlando ficou exultante, pois Safira era bela e a perspectiva de uma vida próspera, longe da miséria e da fome, ia além do que seus sonhos lhe permitiam ver. A bruxa estava satisfeita com a resposta dele, porém o riso sumiu da face da mulher quando ela disse: — Há, porém, uma última coisa que preciso realizar, um feito de extrema malignidade, antes de deixar de ser uma bruxa: um ato que devo induzir alguém a fazer. E será você, Orlando. Ela tirou de suas coisas uma bolsa feita do couro de algum animal já extinto, dentro da qual estavam uma corda não maior que o braço de um adulto, tecida nas fibras de um arbusto que não mais existe neste mundo, e uma adaga de fabricação rude, na qual estavam gravados símbolos esquecidos pela humanidade. Safira pôs os objetos no chão e falou – num tom que parecia tão sombrio quanto o lago... Não, mais ainda sombrio – o que Orlando teria de fazer... O homem teve vontade de gritar, mas não conseguiu. Tremia e colocou as mãos sobre a face, escondendo seu choro. Safira continuava falando – sobre a riqueza que teriam, sobre a vida ao lado dela – ele desejou que ela se calasse, mas a ambição e o desejo fizeram-no continuar escutando... Antes de aquela manhã chegar ao fim, Orlando enxugou as lágrimas e disse que faria como a bruxa lhe tinha dito. — Ótimo - disse Safira, e seu rosto pareceu-lhe demoníaco – Então, chame o menino. A bruxa guardou aqueles objetos terríveis e Orlando obedeceu-a. O menino voltou para perto do homem, tão inocente quanto qualquer criança, e estranhou a mudança em Orlando: nunca antes aquele adulto havia sido tão gentil, nunca tinha lhe dado tanta atenção quanto naquele momento. Como é próprio dos pequenos, o menino ignorou suas estranhezas e aproveitou aqueles instantes, os mais felizes que já tivera. Contudo, por mais que se
16 esforçasse, não podia deixar de prestar atenção no fato de Orlando tremer em meio aos sorrisos e na forma severa com a qual Safira olhava para o homem, como se estivesse cobrando algo... E isso fazia Orlando tremer ainda mais, até que havia lágrimas escorrendo-lhe pelo rosto. O menino perguntou o que estava acontecendo, mas o homem escolheu mentir e disse que não havia nada. A tarde se aproximava do final, quando Safira disse algo para Orlando, que pareceu a coisa mais estranha que o menino já escutara: — Meu querido, logo a noite chegará, você terá falhado... E eu precisarei procurar um outro homem que possa me ajudar e que mereça minhas dádivas. Ao escutar isto, Orlando estremeceu mais uma vez, parou de fingir e começou a chorar de uma forma que o menino nunca vira. O garoto abraçou-o tentando consolá-lo. Com a visão quase encoberta pelas lágrimas, Orlando olhou para a bruxa, que estava segurando aqueles dois objetos sangrentos, oferecendo-os a ele. Como havia prometido a Safira, ele usou a corda para estrangular o menino e, quando não havia mais vida no corpo da criança, Orlando cortou-o em vários pedaços e atirou todos no lago. Então, suas roupas cobertas por uma mistura de lágrimas e sangue, o homem murmurou uma maldição para si mesmo e olhou para Safira. Ela havia mudado. Ainda era bonita, porém aquela beleza mágica, que tanto o havia encantado, fora embora para sempre, deixando no lugar uma mulher como qualquer outra. Ela apontou para um saco, feito de um tecido velho e sujo, que parecia ter acabado de surgir naquele lugar. Cheio de cobiça, Orlando abriu-o e enfiou as mãos, apenas para puxá-las de volta com moedas se derramando entre os dedos... Ouro, mais ouro do que ele poderia sonhar. Ele esqueceu-se do menino e olhou satisfeito para a mulher. Com selvageria, rasgou as roupas dela e depois as suas próprias. Eles fizeram amor na margem daquele lago, por todo aquele tenebroso crepúsculo e pela maligna noite que se seguiu. Pela manhã, felizes com sua cumplicidade, eles partiram para a vila próxima, deixando o lago sozinho, meditando sobre mais um de seus segredos sombrios. II – Fadas e Deuses Empoeirados
Todavia, as bruxas nunca estiveram sozinhas neste mundo. Conta-se que quando a primeira delas emergiu violentamente do ventre da Mãe-Terra, em outro ponto, assim também ocorreu com a primeira fada. E quando a primeira bruxa e a primeira fada inevitavelmente se encontraram, um ódio indelével formou-se entre elas e ambas entenderam que suas espécies seriam inimigas para sempre, destinadas a guerrear uma contra a outra até aquele futuro distante em que não houvesse mais mundo. Um dia, porém, as fadas perceberam que algo havia perturbado a ordem das coisas. Elas descobriram o que Safira fizera e isso as deixou muito inquietas – afinal, nunca uma bruxa havia se tornado apenas humana, o que sempre foi impossível e deveria ter continuado sendo. Um bom tempo se passou desde essa descoberta e as fadas discutiram, resmungaram e blasfemaram, mas não conseguiram chegar a qualquer conclusão sobre o que deveriam fazer, até que uma delas observou o fundo daquele lago sombrio e também os restos do menino e perguntou as águas escuras o que havia acontecido e elas lhe contaram. Na verdade, para as fadas não importava o que Safira e Orlando fizeram aquela criança – pois não se importavam com os humanos (exceto quando escolhiam trapacear com eles e iludi-los, apenas para vê-los depois sofrer com a desilusão – e elas não conheciam prazer maior do que esse), nem com qualquer outra coisa exceto elas mesmas e sua guerra contra as bruxas. As fadas entreolharam-se, com sorrisos maliciosos, pois viram ali uma oportunidade de punir sua antiga inimiga por tentar tornar as coisas diferentes do que sempre deveriam ser.
Primeiro, elas dialogaram com o espírito do lago, a entidade que era senhor daquele domínio aquático – foi uma conversa longa e desagradável, pois as fadas precisaram escutar as histórias sombrias que ele guardava... E elas eram muitas – porque necessitavam de seu
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consentimento para poderem ir adiante.
Depois foi a vez de negociar com os deuses mais velhos – uma casta de seres empoeirados, cerimoniosos, irônicos, grosseiros e ranzinzas, que não tinham muita paciência com as entidades mais jovens e seguiam uma arraigada obsessão por aquelas regras mais antigas, justamente do tipo que a idéia delas iria contrariar. Foi um diálogo longo e desgastante para as fadas e que só foi concluído com o sacrifício de uma delas. Obviamente, esta não concordou em participar daquele acerto, mas, como era mais desafortunada e lenta do que as outras, suas companheiras jogaram-na no fogo e cobriram os ouvidos para não escutar os gritos daquela infeliz enquanto as chamas transformavam-na em cinzas. Com todos os detalhes acertados, as fadas puseram-se ao trabalho de colocar seu plano em prática: Uma delas foi enviada, como emissária, aos reinos que se situam além da morte. Com a aprovação dos deuses mais velhos assegurada, as divindades mais jovens que governam aquele lugar desolado não opuseram resistência a que a mensageira de lá trouxesse um espírito de volta para o mundo dos humanos. Ofegante e um pouco louca – afinal, a morada dos mortos sempre foi um lugar muito inóspito para uma fada – ela se reuniu a suas irmãs na beira do lago. Lá elas pediram as águas e os pedaços do menino foram devolvidos. Depois juntaram todos eles e colocaram o espírito de volta em seu lugar. Quando aquele corpo começava a respirar novamente, elas usaram a magia e ele cresceu até que ficasse adulto. Ao terminarem toda aquela bizarra tarefa, as fadas conversaram com o homem que agora estava diante delas, propuseram-lhe um acordo e disseram o que ele deveria fazer. III – Um Príncipe Amistoso Muitos anos se passaram na vila desde que Safira e Orlando haviam chegado. Usando o ouro que obtiveram com seu ato hediondo, os dois lá se instalaram e tentaram viver em paz como ricos e respeitáveis mercadores. Porém, ambos envelheceram logo. Safira deixou de ser desejável e os defeitos de Orlando tornaram-se evidentes demais. Como a índole dos dois nunca foi boa, a convivência ensinou-os a se odiarem. Todavia, de algum modo estavam tão acostumados à companhia um do outro que jamais se afastaram. Por tudo isso, eram infelizes e, em resposta, escolheram tornar a vida um do outro tão infeliz quanto era possível. Às vezes, Orlando pensava no menino, mas depois se voltava para a prosperidade que ele e sua mulher haviam conseguido e aquela lembrança era novamente sufocada em algum recanto sem importância da memória daquele homem. Um dia – na verdade, era uma tarde que ameaçava chover – o Príncipe apareceu na vila. Vinha de alguma daquelas terras distantes de que raramente se escuta notícias, suas roupas e gestos ostentavam uma riqueza como Orlando e Safira jamais sonharam ver e seu modo de falar... No coração terrível de Safira, houve um tremor quando escutou as primeiras palavras do Príncipe – pois havia uma incômoda e perigosa sensação de reconhecimento naquele sotaque – mas, ela era apenas humana agora e, por isso, já esquecera certos assuntos. Tomados pela cobiça na riqueza daquele estranho, eles não questionaram quando o Príncipe passou a dar-lhes tanta atenção, a querer apenas a companhia do casal e a gastar tanto dinheiro com eles. Por algum tempo, foi a melhor época da vida daqueles dois. O desprezo que reinava entre ambos foi esquecido e, de repente, pareciam ter se tornado os amantes mais felizes do mundo. E quando conversavam com o Príncipe, ele falava das maravilhas de seu reino, uma terra de encantos, abençoada por grandes prodígios e prosperidade, a favorita dos deuses nesse mundo. Safira e Orlando escutavam com tanta atenção, como uma criança ouvindo histórias, e sonhavam um dia poder conhecer aquele lugar. O Príncipe sempre ressaltava que breve voltaria para seus domínios e levaria os dois consigo, para torná-los seus conselheiros e lhes daria castelos onde poderiam viver melhor do que a maioria dos reis deste lado do mundo. E eles riam,e festejavam e agradeciam aos deuses e ao Príncipe – que sempre parecia tão sincero, gentil e convincente. Claro que Safira devia ter percebido – e, antes de Orlando e daquele dia no lago, ela certamente o faria – mas já era tarde demais e eles não entenderam isso... Os meses seguiram seu curso, até o início de uma manhã em que as ruas da vila haviam sido
18 tomadas pelo frio e pela neblina. O Príncipe voltou a casa deles logo cedo, parecia aflito, como alguém que houvesse passado toda uma noite debatendo-se em busca da solução de algum difícil problema. — É chegada a hora de voltar a minha terra – disse quando entrou – e devo cumprir a promessa que fiz a vocês... Diante destas palavras, o coração perverso dos dois foi iluminado por grande alegria, pois já se imaginavam naquele distante e maravilhoso país, cobertos de importância e riqueza. Todavia – e assim foi ensinado ao primeiro homem e a primeira mulher na primeira das histórias – sempre há um “porém” para tudo, por isso o Príncipe explicou: — Sinto-me despedaçado por um terrível dilema... – e fez uma pausa, como se desejasse instigar a curiosidade deles, que ficaram nervosos indagando o que poderia ser... – Estou diante das duas pessoas que mais amo neste mundo, mais ainda do que amo meu honrado pai, os ancestrais ou o povo que estou destinado a governar... Novamente, ele interrompeu seu discurso e observou que os rostos de Safira e Orlando estavam cheios de orgulho, enquanto respondiam com falsa modéstia. Satisfeito, o Príncipe retomou a palavra: — ...Porém, um amor tão grande - e assim aconselha as tradições de meu povo - não pode ser dado a duas pessoas: apenas a uma. Portanto, só posso levar um de vocês comigo, mas quem dos dois? Nesse instante, dominados pela cobiça, Safira e Orlando entreolharam-se e se odiaram mais do que julgavam possível. — Felizmente, - explicou o Príncipe – essas mesmas tradições apontam uma solução... E, embora os olhos ambiciosos e furiosos do casal não pudessem notar, havia um sorriso malicioso no rosto do Príncipe. Ele lhes pediu para irem a um lugar reservado, onde não pudessem ser interrompidos. Safira e Orlando acenderam um candelabro e levaram o Príncipe até o porão da casa, onde guardavam a riqueza que tinham acumulado, e disseram-lhe que ali teriam privacidade para conversar, pois até mesmo gritos – e Orlando riu enquanto explicava isto - não poderiam ser escutados pelos vizinhos, dado a profundidade em que estavam e a madeira que envolvia o cubículo. Foi só então que o casal notou a pequena caixa que seu amigo trouxera. Naquela semi-escuridão, o Príncipe abriu o recipiente e de lá tirou dois objetos que fizeram os olhos de Safira e Orlando se arregalarem: duas adagas, feitas de um metal negro e reluzente, que faiscavam, enquanto pequenos relâmpagos percorriam as lâminas e os cabos. Inscritos naquelas armas, havia caracteres da alguma escrita não-humana, símbolos que Orlando nunca vira e dos quais Safira já havia se esquecido. Mostrando as adagas para eles, o Príncipe explicou: — Minha família descende de uma linhagem muito antiga de magos, eu mesmo ainda retenho algum poder no meu sangue. Estas adagas foram feitas pelo meu primeiro ancestral, no começo da história de meu povo. Desde então têm sido usadas apenas pelos reis e príncipes de minha terra, para resolver questões como a que temos aqui... Orlando sentiu um frio repentino afligir-lhe os ossos. Safira olhou para aqueles objetos com atenção e murmurou: — Esse metal... O Príncipe se voltou para ela, tão surpreso quanto alguém cujo segredo mais íntimo estivesse prestes a ser revelado: — O que tem ele, Safira? Você não conhece o material de que essas adagas são feitas, não é
mesmo? – questionou ele e havia temor em sua voz.
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Por um segundo, Safira pareceu tomar fôlego, como se esforçasse para lembrar de algo muito importante, mas - fosse, o que fosse - aquele instante passou e ela apenas disse: — Nada. Tolice minha. Estou ficando velha. Juro, pelos deuses, que nunca vi nada assim. Um sorriso de perversidade moveu os lábios do Príncipe: — Claro que não! Não haveria como você conhecer isto! Escutem, é bastante simples: estas armas são mágicas. Vocês deverão lutar com elas, um contra o outro, tão selvagemente quanto puderem. É necessário não apenas que se firam, mas que se retalhem. No final, um dos dois morre, mas o outro, o que for mais digno de ir comigo – para viver em abundância e riqueza em minha terra – esse sobreviverá e a magia curará seus ferimentos. Vocês farão isso por mim, não é, amigos? Vocês confiam em mim, não é? Safira e Orlando olharam assustados e confusos um para o outro e depois para o Príncipe, sem conseguirem responder, até que ele interveio: — Vejam isto! – exclamou o Príncipe, pegou uma das adagas e com ela fez um profundo corte, que, transversalmente, cruzava a palma de sua mão esquerda de um ponto a outro. Diante dos olhos deles, o sangramento parou e, um instante depois, não havia nem mesmo uma cicatriz. — Acreditam agora? – indagou ele. Em seguida, ele depositou as duas armas no chão, bem no meio deles, e sentou-se, para aguardar, sobre um baú próximo. Safira e Orlando pegaram as duas adagas e começaram a lutar. Foi um confronto tão selvagem e terrível que dificilmente alguém poderia dizer que eram dois seres humanos se enfrentando ali. Eles se feriam, rasgando pele e carne; espalhando sangue pelo porão; arrancando pedaços um do outro; tão impiedosamente, sem hesitação e de um modo tão cruel, como poucas vezes foi visto neste mundo. O Príncipe tudo isso assistia, sem nada dizer, porém sua face demonstrava uma satisfação, um tal prazer, uma felicidade até mesmo maligna, capaz de assombrar e provocar pesadelos por toda uma vida no mais tranqüilo dos corações. Logo, Safira estava prestes a cair e Orlando mal se sustentava de pé. Talvez tudo aquilo tivesse reanimado algo que fora perdido, por ela tentava, com o rosto retalhado e desfigurado, pronunciar alguma última verdade: — Orlando... Magia de fada...O metal das adagas...É ouro das fadas...O Príncipe fala...Com sotaque das fadas... — O que? – perguntou um confuso Orlando. Ele retirou a adaga do ventre de Safira e ela caiu para trás, encerrando seu último instante de vida na poça de sangue que agora adornava o solo do porão.
Tão ferido, desfigurado e retalhado quanto ela – e gemendo de dor – Orlando tentou caminhar até o Príncipe, mas tropeçou, caiu e, com muito esforço, ergueu-se e suplicou ao amigo: — Príncipe... Não pára de sangrar... Dói muito... Salve-me... Por favor... — Oh, e por que eu faria isso? – disse o Príncipe e começou a gargalhar de uma forma que parecia demoníaca. Tudo começou a escurecer diante de Orlando, mas antes de cair para juntar-se a Safira na morte, com o único olho que lhe restava, ele pôde ver que a face do Príncipe parecia mudar até tornar-se o rosto daquele menino que anos antes ele havia assassinado.
20 III – Epílogo O Príncipe deixou a vila e encaminhou-se de volta para o lago. Lá um grupo de fadas o aguardava. Ao vê-las, ele prontamente disse: — Tudo está concluído conforme combinamos: vocês humilharam suas inimigas e eu obtive a vingança pela qual implorei durante anos. Cumpri a minha parte, façam o mesmo, pois desejo voltar ao mundo dos mortos e descansar para sempre. — Por que tanta pressa, menino-príncipe? – questionou uma das fadas – Não pára nem mesmo para ponderar sobre seu triunfo? A arte da mentira, a disciplina da ilusão e da trapaça, sempre foram uma maestria das fadas. Mas você provou que os humanos também têm facilidade de lidar com tais pequenas maravilhas. Talvez, ao contrário do que pensávamos, haja realmente um futuro, talvez até um grande futuro, para sua espécie... — Os assuntos dos vivos não me interessam mais. Permitam-me apenas descansar novamente – respondeu ele. As fadas olharam uma para as outras, como se decepcionadas, até que uma delas falou: — Muito bem. Volte para o lago. O Príncipe obedeceu e, mal havia entrado na água, foi envolvido por um estranho brilho. As roupas da realeza desapareceram e ele voltou a ser aquele mesmo menino de anos atrás, dentro das mesmas vestes daquele tempo. O menino olhou agradecido para as fadas, para logo em seguida desfazer-se em pedaços, que afundaram no lago. — Vê, como eu disse: aos humanos falta imaginação – ironizou uma das fadas. — Não, irmã: a imaginação é a essência deles – respondeu outra delas - Esse menino demonstrou que o povo humano poderia se equiparar a nós... Agora, conceba, se a imaginação deles atinar para isso, eles poderão erguer para si um futuro que não precise de fadas ou bruxas. — Não seja tola! Seria um mundo tedioso demais!– repreendeu uma das fadas mais velhas – E nós mataríamos todos eles antes disso. — Vocês querem parar?! – interveio uma delas, que estivera, até aquele instante a parte daquela discussão – Eu sou uma fada e prefiro não me preocupar com certos assuntos. Vamos, suas preguiçosas: temos uma guerra para vencer! Logo as fadas foram embora e o lago ficou sozinho com suas histórias. Breve, porém, passou por ali certa brisa ainda muito jovem, cheia de curiosidade e ansiosa por ouvir histórias. Como sempre fazia, o lago atendeu ao desejo dela e narrou-lhe o infeliz conto do menino, de Safira e Orlando. Quando ele terminou, a brisa estava horrorizada, disse uma frase muito feia e partiu dali, jurando nunca mais voltar. O lago riu e não se preocupou: gostava daquela brisa e sabia que ela, cedo ou tarde, retornaria para ouvir suas histórias. Sempre acontecia exatamente dessa forma. Em seguida, ele voltou novamente sua atenção para si mesmo e começou a cantarolar para o espírito do menino que dormia no fundo daquelas águas.
FIM