DISTRIBUIÇÃO GRATUITA
V
F ROL publicação da prefeitura municipal de fortaleza
#1 < outubro
MUCURIPE FEITODELUZ Regina Casé e a favela
Um dia no Passeio Público
o Campo do América
Nº1 EXPEDIENTE
V
Prefeitura Municipal de Fortaleza Fundação de Cultura, Esporte e Turismo da Prefeitura Municipal de Fortaleza Prefeita: Luizianne Lins Presidente: Beatriz Furtado Editora-geral: Ethel de Paula Editoras adjuntas: Ana Cláudia Peres e Silvia Bessa Editor de fotografia e capa: Drawlio Joca Edição de arte e editoração eletrônica: Andrea Araujo Projeto gráfico: Gil Dicelli Colaboraram nesta edição: Ana Mary C. Cavalcante, Cláudio Ribeiro, Clarisse Furlani, Firmino Holanda, Maurício Lima e Saul Ferreira. Fotos: Celso Oliveira, Drawlio Joca e Igor Câmara Revisão: Ana Cláudia Peres e Ethel de Paula Jornalista responsável: Ethel de Paula CE 01189-JP Tiragem: 25 mil exemplares Contatos: FUNCET (Rua Pereira Filgueiras, 04 - Centro) Telefone: (85) 3226.0838 E-mails:
[email protected] Distribuição gratuita na Funcet, Secretarias Executivas Regionais, equipamentos culturais, escolas públicas municipais, terminais de ônibus, associações de moradores, organizações não governamentais, universidades públicas e eventos da Prefeitura Municipal de Fortaleza.
F
ROL
V
outubro
editorial
Rostos e paisagens O farol que ilumina mar adentro também chama para si, estreita distâncias, promove o encontro entre diferentes origens e saberes. Não à toa, portanto, ele é metáfora e inspiração para a revista de mesmo nome que a Prefeitura Municipal de Fortaleza lança através da Fundação de Cultura, Esporte e Turismo - Funcet. Farol é fruto de uma decisão política afinada com a criação de instrumentos que possibilitem o encontro de diferentes grupos sociais e territoriais. Projeta-se sobre a cidade polifônica, lugar da humanidade plena, do cruzamento de distintos espaços e tempos, da troca de narrativas que dão sentido à vida e das inúmeras formas de reinventá-la. Em foco, alguns desafios: é preciso encarar a cidade como o pintor encara a paisagem, dar conta do aspecto sensível das coisas, enxergar o que há de eterno no transitório ou, como bem sintetiza o filósofo Nelson Brissac, “tornar a ver tudo o que foi soterrado pela civilização do clichê”. Exercício diário, intermitente, infindável, mas fundamental quando a idéia é rastrear as muitas cidades que existem numa só, para, enfim, redescobri-la. Impossível compreender a cidade sem entender a gênese e expansão dos espaços populares. E aí está o nosso ponto de partida:
Farol quer transitar entre as ruas e bairros da periferia de Fortaleza, propõe o exercício de um jornalismo humanizador, voltado às formas alternativas de sociabilidade e invenção. O recorte é também para preencher uma lacuna visível no jornalismo brasileiro, que, em geral, optou pela superficialidade da notícia, por ser refém de uma agenda cultural puramente mercadológica e pelo texto telegráfico, “direto” e “objetivo”. Farol faz o caminho contrário: quer contar histórias de vida atemporais, operar com um conceito de Cultura ligado à vida e não apenas às manifestações artísticas consagradas, apostar na volta da grande reportagem feita de narrativas. “A rua é a mais igualitária, a mais socialista, a mais niveladora das obras humanas. As ruas têm alma”, escreveu o cronista João do Rio. Por acreditar nele, fomos a elas, feito “caçadores de borboletas”. Ana Mary C. Cavalcante conversou com seu Raimundo, um homem de alma e vestes brancas que estende a mão no cruzamento das avenidas Rui Barbosa e Heráclito Graça. Cláudio Ribeiro jogou nas onze no Campo do América. Maurício Lima caiu no samba entre o Pagode da Mocinha e o Bar do Zé Bezerra. Clarisse Furlani, nossa “correspondente especial do Rio
de Janeiro”, levou até a atriz Regina Casé as perguntas que a moçada da Central Única das Favelas (Cufa-Ceará) fez sobre o programa Central da Periferia, da Rede Globo. Ana Cláudia Peres passou um dia inteiro no Passeio Público, a flanar. E eu fui ter com os moradores da Quadra - “a mosca na sopa da burguesia” - e os homens do mar que fazem a multiplicação dos peixes no Mucuripe, um bairro simbólico para nós. Simbólico não só porque habitamos essa grande embarcação que é Fortaleza. Mas porque foi ali, na enseada do Mucuripe, onde estão os nossos faróis (o velho e o novo), que o navegador espanhol Vicente Pinzón descobriu o Brasil antes de Pedro Álvares Cabral, entre janeiro e fevereiro de 1500. Coisas que a história oficial não conta, mas a gente descobre. De periodicidade bimestral e distribuição gratuita, a revista Farol é uma afirmação de nossas diferenças e também daquilo que nos une e nos iguala. Quem faz a revista acredita, assim como o escritor Ítalo Calvino, que as palavras têm que lutar sem descanso contra a dureza e impermeabilidade da paisagem urbana e que cabe a elas retirar peso do mundo, construindo imagens de leveza. Daí porque, na revista, imagem também é tratada como texto. Novamente, Brissac é quem nos aponta: “Um outro tipo de imagem é possível, que faça surgir a coisa em si mesma, no seu excesso de horror e beleza. Uma iluminação”. Os fotógrafos Drawlio Joca, Celso Oliveira e Igor Câmara perseguiram essa iluminação, tentaram trazer à tona imagens da cidade que não sejam lugar-comum. E também, ou principalmente, aquilo que não é visível, o que nos passa despercebido ou não tem contornos explícitos. Mas é preciso que se diga: nem a escrita nem a imagem dão conta da paisagem, seja ela urbana ou humana. Muito nos escapa e nos escapará. Porque as pessoas são mais < Ethel de Paula Editora geral N.R. – O primeiro número da revista Farol é dedicado à memória da jornalista Christiane Viana, que, onde quer que esteja, ilumina nossas aventuras.
F
ROL
V
outubro
ÍNDICE
4
> < editorial
8
> < no campo do américa
14
> < O HORÁRIO NOBRE DO BRASIL REAL
18
> < PASSEIO AO AVESSO
22
> < RAIMUNDO DA CARMELINA
24
> < A PELEJA DOS HOMENS NA CASA DOS PEIXES
>
36
JACARÉ DO MAR E DAS TELAS
>
38
<
por dentro da quadra
46
> < a favela pergunta, a regina responde
50
> < paisagem humana
<
Texto Cláudio Ribeiro Fotos Drawlio Joca
A vida no campo do América segue por onde a bola for. A arena é de areal. Onde a rede não proteger, a bola vai direto na cabeça ou porta adentro. Derruba um, assusta outro, bate num carro ou destelha a casa. O gradeado faz barreira para o bibelô da sala. De vez em quando, goooooool! Ao redor, quando o jogo vale alguma coisa, lotação. Sempre lota. Há muitos anos. Seu Jurandir Martins, 65, mora em frente desde 1958. Chegou rapaz, quando fez uma casinha de taipa. Casou, melhorou a morada – “é minha mansão”. A saída da casa parece um túnel de estádio em direção ao gramado. Criou filhos e netos ali. A mulher o viu jogar a vida toda. Seu genro apareceu por ali um dia pra jogar, namorou sua filha e entrou pra família. Os filhos, já casados, ainda botam meião e chuteira. Os netos já dão seus dribles. Com quase todos do América é assim. Jurandir teve seu time, o Sporting (“King”), fundado em 14 de fevereiro de 1979, depois de uma brincadeira com amigos como José Armando. Dizem que era muito bom meia-esquerda, assim como Zé Armando também tem fama de ter sido craque do meio-campo. A areia é fértil por lá. Já apareceram muitos bons de bola. Para os gramados mais ilustres já saíram dali as chuteiras de Marcos Durango, Moisés, Teté, Ribamar Buiú, Cacá, Vaguinho... Se não foram grandes ídolos, na força da palavra, mostraram muito valor por aí. Para os de casa, tiveram e têm reconhecimento até hoje. Jogavam antes pelo Horizonte do seu Chico do Padre, pelo Francana do Assis Pimbinha, o Vila Nova do Reginaldo, o King do seu Jurandir e do seu Zé Armando, o The Gregs, do Gregório. Depois seguiram para tentar carreira no Fortaleza, Tiradentes, Baraúnas/RN, River/ PI, Maranhão Atlético Clube, Souza/PB... Voltaram, ainda estão tentando ou são só boleiros de sábados e domingos. Segundo seu Jurandir, a comunidade do América tem hoje cerca de 600 famílias. Mais ou menos três mil pessoas. O quadrilátero considerado por eles como um bairro à parte – encurralado entre prédios na divisa da Aldeota e Meireles – fica entre as ruas Deputado Moreira da Rocha, José Vilar, Costa Barros e Nunes Valente. São casas com o traço diferente em relação à vizinhança nobre. A área total pertence ao INSS e tem o uso cedido – só
o campo mede 95x60m, quase medidas oficiais. Fala-se que um dos moradores teria o tal documento de cessão. O órgão brigou judicialmente por muitos anos. Um dos coronéis governadores do Estado, Virgílio Távora, entrou na história e intermediou a favor dos moradores, nos anos 70. Houve querelas posteriores, mais interferências políticas e a comunidade vai resistindo bravamente no seu lugar. Antes o campo se chamava Vargas Filho, segundo moradores mais antigos como seu Xudeca – que não sabe quem foi o homenageado. O nome América teria sido incorporado porque o América Futebol Clube, que disputava o Cearense, teve seu campo ali por perto até os anos 60. Era o estádio Américo Picanço, segundo o pesquisador Airton Fontenele, que coleciona registros antigos do futebol estadual. O estádio era próximo de onde hoje está a torre da igreja do Líbano (rua Tibúrcio Cavalcante), tinha arquibancadas de madeira e chegou a ser usado oficialmente para partidas do Campeonato Cearense de 1945. Do tempo em que o ludopédio (futebol) era disputado por “quipa” (keeper, goleiro), “centrefó” (center forward, centroavante), midfield (meio-campista) e o “referi” (referee, árbitro) dava o offside (impedimento). O time mais antigo era Os Bravos, fundado em 1958, que já não existe mais. Dos atuais, o Horizonte, de 1961, e o King, de 1979. Uma curiosidade: Zé Armando conta que o King herdou as primeiras camisas d´Os Bravos, de listras verdes e amarelas. No primeiro torneio que disputou, ganhou e, com o dinheiro da premiação, foi comprado o uniforme com listras amarelas e negras, cores que preserva até hoje. Do meio para a linha de fundo, num dos escanteios, começa um dos becos do América. Gente simples. Simpática, a mulher dá o banho de fim de semana no cachorro debaixo da escadinha caracol. Pergunta pra que é a entrevista e ri da possibilidade de sair na matéria - “assim mesmo?”. “É”. Uma figuraça ao lado, já depois de uns goles desde cedo da manhã, almoça num prato raso e faz pose. Nem aí, enquanto os que vêem a cena riem do “novo ilustre”. Duas casas antes, outra simpatia, de sorriso perfeito e invejável, estende a tira de meiões no varal e imagina-se na capa – por que não? Muro sem portão, janela aberta, vão dando boas vindas e deixando “a visita” entrar.
NO CAMPO DO AMÉRICA F
ROL
V
outubro
F
ROL
V
outubro
TINHA QUE TER BATE-BOCA
F
ROL
V
10
outubro
Naquele dia, o jogo valia alguma coisa. O ganhador levaria a taça do torneio “Aniversário do Gama Futebol Clube, sob nova diretoria” – como estava gravado – mais uma caixa de cerveja. Seis times. O vice, outra caixa, pelo menos gelada. Para a final, o Juventus da Varjota (que derrotara o anfitrião na semifinal) trouxe boleiros como Samir, Eddie Murphy, Zé da Silva, Muller, Onélio e o zagueiro Santos (ex-Ceará, Ferroviário, Quixadá). O adversário seria o Mandacaru, outro time do Assis Pimbinha, formado pelos “de casa” mesmo. Chegaram à finalíssima por sorteio, porque um time não apareceu. Quase no final do primeiro tempo, o zagueiro tenta um drible e entrega o ouro: 1 a 0. Ô mancada. Já não bastava o Juventus ser muito melhor? Pois no segundo tempo os “barrigas” e crias de casa do Mandacaru apertaram o jogo, bateram boca, xingaram, dedo na cara, tanto fizeram que, no finalzinho, falta duríssima na área e...pênalti? Nada. Confusão grande. O árbitro, José Araújo dos Santos, porteiro de profissão, não deu a penalidade máxima. “Como não tem área, mandaram que contasse 11 passos até o meio do gol. Deu 14 passos, então não foi pênalti. É o regulamento do torneio”, explicou-se depois. O bigode dele suou na discussão. Na batida da falta, a bola ainda bateu no travessão. Ficou mesmo no 1 a 0. Festa para o Juventus, cerveja de consolo para o Mandacaru.
mandaram que contasse 11 passos até o meio do gol. Deu 14 passos, então não foi pênalti >>>
F
ROL
V
outubro
11
ELES SEGUIRAM A FAMA
Seu Xudeca, o morador mais antigo: casaria com a mesma mulher de novo
VIDA BOA DE SE OUVIR O campo do América ainda nem era campo, a Aldeota e o Meireles nem eram a vizinhança mais r ica dependurada nos prédios, quando seu Xudeca chegou por ali, antes de 1945. É o morador mais antigo. O Brasil tinha ido à guerra mundial e ele ouvia falar do assunto por alto. Era jovem, não tinha estudo, nenhuma lembrança da mãe que perdeu quando tinha seis anos e o pai o expulsara de casa porque a madrasta não simpatizava. Viveu com a tia que lhe deu abrigo. Carregou peso trabalhando, puxando enxada. Depois foi parar lá. Diz ter cortado muita vara e arrancado tocos e mais tocos onde hoje é o campo. Aos 14, meninote, numa viagem a Pacajus, conheceu dona Maria Augusta. Namorou dois anos, casou ainda menino. Tiveram 20 filhos (seis morreram), “uns 50 netos”, bisnetos. Ela se foi há apenas um ano e dois meses. Ele hoje mora sozinho. “Se pudesse, me casaria com essa mulher de
F
ROL
V
12
outubro
novo”, fala apontando para a foto na estante. Declaração de amor. A vilinha de casas era terreno seu. Comprou por 300 mil réis. Os outros foram se chegando. Uma das filhas mora duas casas depois. Xudeca passa o dia ali do lado. Pisou muito na areia frouxa do campo do América pela lateral direita, quando o nome ainda era o campinho do Vargas Filho. Jogou pelo Os Bravos, famoso entre os mais antigos da rua José Vilar. Na Cidade dos Funcionários, onde estão vários de sua família, fundou em 1975 o Aurora, com um uniforme que lembra o Grêmio gaúcho. O time é só de filhos, netos, genros e agregados. A foto está na sala, um orgulho. Só o repórter o chamou pelo nome de batismo: Ildefonso Venâncio. O apelido é da infância, de casa mesmo. Aos 78 anos, seu Xudeca é um senhor forte, conversador, sabe suas histórias de cor. Tem várias. “Você tem tempo pra me ouvir?”, adverte.
O meio-campo prometia: era ele, mais Erandir, Jônatas e Clodoaldo. Era um miolo de time pra ninguém botar defeito. Ganharam tudo pelas categorias Sub-17 e Sub-18 do Fortaleza Esporte Clube dez anos atrás. Era um quarteto tão bom que quase todos seguiram carreira no futebol. Erandir hoje está na série A do Brasileirão, no Atlético Paranaense; Jônatas deixou o Flamengo e agora joga no time do Espanyol, enfrenta Barcelona e Real Madrid no campeonato mais caro do mundo; e Clodoaldo, o incorrigível, mesmo na descendente, ainda inflama a torcida alvinegra. Os três deslancharam, viraram ídolos, ganharam fama e reverência no gramado... menos Netinho, que voltou a ser peladeiro do campo do América. Ildefonso Venâncio Neto hoje tem 25 anos, é casado, tem um filho de um ano e dois meses e trabalhava até pouco atrás no setor de frios de um supermercado. Hoje está desempregado. “Deixei o futebol por causa de um problema de ligamento no meu joelho. Também por causa de oportunidade. Nesses times, muitas vezes só jogam os protegidos”, conta.
Netinho lembra o próprio Jônatas, que nunca jogou na 1ª Divisão do Cearense. Porque preferiu pegar seu passe com o clube, à época, e ir jogar no União, um modesto time de suburbão da Vila Manoel Sátiro - onde um olheiro o notou e o levou para o Flamengo. Do quarteto, Netinho lembra que Clodoaldo sempre chamou atenção por seu futebol de adulto entre os juvenis. Alguns anos atrás, descobriu-se que a impressão era talento e fraude: o Capetinha era “gato” por três anos. Gato é a gíria para o jogador que, por má-fé, diminui a idade verdadeira para permanecer entre os mais novos. Netinho não viu o próprio sucesso, mas já torce, ao lado da mãe, dona Irismar, pela glória do irmão Diego, de 13 anos. O menino já é reconhecido no futsal da cidade. Joga pelo Círculo Militar, que fica ali pertinho de casa. Na sala de dona Irismar, aliás, as várias medalhas, fotos e troféus confirmam. Para ela, o futebol de seus meninos, aprendido no campinho de terra frouxa, é antes de tudo um orgulho. <
O meio-campista Netinho, um quase ídolo
a p i u q ó f e r t n ce d l e i f eri d i m ref e d i s f f o
F
ROL
V
outubro
13
O HORÁRIO NOBRE DO BRASIL REAL Sexta-feira, pouco depois das oito da noite. Enquanto o casal nacional William Bonner e Fátima Bernardes “reina” nas TVs Brasil afora, entediando o país com as últimas notícias de sempre, na fronteira da Praia de Iracema com a Aldeota, um botequim com pouco mais de 30 metros quadrados, mesas espalhadas ao ar livre, atrai praticantes e simpatizantes do samba. Vai começar o lendário pagode da Mocinha. A história se repete há 28 anos. “Começamos em 4 de agosto de 1978”, conta Dona Mocinha, com o RG e o DNA do bar na cabeça. “Um engradado de cerveja e três garrafas de cachaça”, era todo o estoque. A freguesia se resumia aos “meninos aqui de perto: Dílson, Gegê, Rogério, Raulino, Marcos Negrão, Haroldo, Joel... Quem estudava pela manhã vinha pra cá à tarde; quem estudava à tarde passava aqui antes de ir para a escola. Quando era de noite, juntava todo mundo”, conta Mocinha, orgulhosa de ser uma versão cearense de Tia Ciata. (N.R.- A casa de Tia Ciata, baiana radicada no Rio de Janeiro, ganhou fama no início do século passado graças a festas que varavam dias e noites, atraindo músicos e compositores, a maioria negros. Foi numa dessas farras regada à música e dança que surgiu “Pelo Telefone”, o primeiro samba gravado).
F
ROL
V
14
outubro
Texto Maurício Lima
Fotos Igor Câmara
Dona Irinéia, uma pagodeira inveterada.
Embaixo do pé de benjamim, que acolhe e delimita o “palco” para a reunião de bambas, a mesa principal nem precisa de placa indicativa de “reservado”. Ali vão tomando assento os tocadores, cada qual com seu instrumento. Banjo, bandolim, tantan, tamborim, repique-de-mão e pandeiros pulsam nas mãos de Gegê, Felipão, Chico, Fernando, Chaveirinho, Dona Irinéia... - Espera aí, o que faz aquela senhora no meio da roda de samba? Aquela senhora é Dona Irinéia, que “bate ponto” três vezes por semana no pagode da Mocinha. O gosto pela música veio do berço. De família abastada, com três pianos em casa, tocados em recitais, Irinéia se apegou ao pandeiro aos sete anos e, desde aquele tempo, já são mais de 70 tocando instrumentos de percussão. Desde 1990 é titular do pandeiro no palcobenjamim. Aposentada depois de trabalhar 38 anos em São Paulo, a maranguapense – “bote aí que não sou parente do Chico Anísio”- chegou na área por meio do sobrinho médico que trabalhava com Mocinha no Posto de Saúde do Mucuripe. De lá para cá, Dona Irinéia tem cumprido religiosamente sua missão. Meia-hora antes do início do samba – 21h, na sexta, e 19h, aos sábados e domingos – ela desce do táxi já de pandeiro em punho. E haja samba...
Iraci “espilicute” Entre um acorde e outro, Mocinha – que, apesar de louca por samba, não canta nem toca nada – explica que muitos dos seus meninos viraram músicos profissionais e hoje ganham a vida animando rodas de samba pela cidade afora. Aqui, acolá voltam para debaixo do benjamim para dar uma canja, que ali ninguém ganha dinheiro para tocar. Amante do samba, apaixonada por carnaval, conta a história dos desfiles dos quais participou, sempre na ala das baianas. Em Fortaleza, foi uma das fundadoras da Escola de Samba Girassol, desfilando nos carnavais do final dos anos setenta, fazendo rifas e bingos para ajudar a escola a sair. Desiludida com o carnaval de Fortaleza – “aqui é tudo muito fraco” –, já contabiliza mais de 20 participações no carnaval carioca: União da Ilha, Caprichosos, Portela, Império Serrano, Grande Rio... Os contatos surgiram ali mesmo. Turistas vips – “gente da Globo” – que vieram ver o samba da Mocinha e a levaram para desfilar no sambódromo. “O Neguinho da Beija-Flor veio aqui um domingo desses e ficou horrorizado quando viu uma roda com três violões de sete cordas”, conta orgulhosa. Surpreso com a qualidade dos músicos, o puxador campeão de inúmeros carnavais do Rio, comentou: “pensei que aqui só tocavam forró”. - Dona Mocinha, anote mais duas aí na mesa quatro, daqueles turistas, recomenda o garçom. Sem descuidar do ofício de dona de bar, dona Iraci Batista de Sousa, que na próxima véspera de Natal completa 71 anos, conta que ganhou o apelido do pai aos dois anos, por ser a mais “espilicute” de uma récua de 16 filhos. Aposentada como atendente de posto de saúde do Estado, viúva há 45 anos, garante que o pagode da Mocinha ainda vai ser ouvido por muitos anos. “O samba aqui nunca parou. E não vai parar nunca”. serviço
> Pagode da Mocinha - Rua Padre Climério, 170 - Praia de Iracema.
Dona Mocinha, a rainha do pagode
outubro
F
ROL
V
a h o n i oci r á d en m l o a d r a ç e e d m o o c g i pa va
15
De batucada em batucada. Saindo da Praia de Iracema, outro samba, no outro lado da cidade. Este também não tem patricinhas de piercing no umbigo tomando cerveja long neck de canudinho. Também não tem coca-cola light. É o Bar do Zé Bezerra, no Parque Araxá, outro dos templos desta cidade que se descobre sambista. No Zé Bezerra, o samba vem rolando há quase trinta anos. No princípio era uma mercearia que vendia cereais e bebidas, com uma mesa de sinuca. Quem conta a história é Régio Guimarães, um dos “fundadores” do local, juntamente com Carlão, Miguel, Klebão, Marquinhos, Jânio, Baú, Cheirinho, como faz questão de deixar claro, para não cometer injustiça com os amigos. “Na verdade, seu Zé somente aceitou a gente porque a maioria dos sambistas era filho dos amigos e vizinhos. Só com o tempo ele passou a gostar do movimento”, explica Carlos Alberto Vieira, radiologista do hospital da PM e um dos primeiros a tocar violão naquelas plagas. Hoje, é um dos organizadores do samba – toca cavaquinho e é o dono das caixas amplificadoras. Nesse tempo todo, gaba-se de nunca haver inteirado um mês sem dar as caras. Aliás, a informalidade da curriola é a característica mais marcante do espaço. Não há quantidade de músicos definida. Quem vai chegando, se tiver seu próprio instrumento, puxa uma cadeira e se junta à mesa principal. Se não tem, fica aperreando - “deixa eu tocar um pedacinho”- ou espera que alguém vá ao banheiro para dar o bote. O resultado disso é que chegam a tocar até 30 pessoas em cada tarde. No repertório, pérolas de Cartola, Paulinho da Viola ou Bezerra da Silva, mas o campo permanece aberto para experimentações. Como fica, por exemplo, “Amada Amante”, de Roberto Carlos, em ritmo de samba? Só indo no Zé Bezerra para saber. No entra-e-sai de músicos, vez por outra aparece um saxofone, um baixo ou uma flauta transversa. Sem problemas, é só encostar. De repente, ao cair da noite, chega Seu Mazinho da Sanfona. Desembainha o acordeon e saca uma
A FAMÍLIA BEZ F
ROL
V
16
outubro
enfiada de chorinhos, com direito às magistrais “Escadaria e Espinho de Bacalhau”. Tudo muito bem acompanhado, registre-se. Seu Zé Bezerra, que até hoje dá nome ao bar, morreu em abril de 1994. A partir de então, quem assumiu o lugar foi a filha Regina, de temperamento forte e sem papas na língua. Tanto que foi apelidada de Dona Lunga, pela semelhança em amabilidades com o famoso comerciante de Juazeiro do Norte. É Totonho Montenegro quem revela esta parte, que não falta gente para contar mais detalhes a respeito da história do local. O aspecto “família” é ressaltado por todos os freqüentadores, a maioria com raízes no próprio bairro. E aí foram chegando os amigos, depois os amigos dos amigos, e os conhecidos dos amigos... Tanto que até hoje as festas tradicionais são comemoradas no bar. Nas paredes que não nos deixam mentir, fotografias – umas já amareladas, outras não – registram passagens de festas juninas, Dia das Mães, malhação de Judas, Natal e Dia dos Pais. Com direito até a lembrancinhas. E haja cerveja... E haja samba... Zulene Coelho é mais uma das figuras adotadas pelo bar. Chegou ainda criança, acompanhando o pai, que morava quase vizinho e não tinha filhos homens. “Ficava ouvindo o samba, ia buscar tira-gosto em casa pros amigos do pai, até que seu Zé dizia: ‘isso não é lugar de menina’. E convencia meu pai a me mandar pra casa”. Só passou a freqüentar por vontade no final da adolescência, época que coincidiu com a posse da amiga Regina no bar. Umas das primeiras providências da nova gestão foi fazer um banheiro feminino, algo impensável nos tempos do conservador Zé Bezerra, para quem “bar não é lugar para andar mulher direita”. Com o tempo, Zulene e Regina ficaram grandes amigas. É ela, com os olhos marejados, quem dá a notícia: quatro dias antes da visita da reportagem, Regina havia falecido, depois de lutar bravamente contra um câncer. Quem vai puxar o bar – que não fechou nem no dia do velório – agora são Fátima e Célia, irmãs de Regina, filhas de Zé Bezerra. Elas assumiram o lado de dentro do balcão. No lado de fora, o sobrinho Marcos Paulo faz as vezes de garçom. O samba chega literalmente à terceira geração. Dos de sangue e dos agregados, que a família Bezerra ali é grande. “A gente segura o samba por aqui. Não vamos deixar parar”, garantem Cristina, Vanda, Jarbas, Washington, Eduardo 7 cordas, Miguel, César... Ao saberem da intenção da matéria, pedem para dar o adeus pelas páginas da Farol. “Valeu, amiga”. No samba do Zé Bezerra, garantem todos, ninguém vai tocar a saideira.
ERRA
HISTÓRIAS DE MESA DE BAR Anexo ao bar/mercearia, Zé Bezerra mantinha uma venda de frangos. Certa vez, um freguês chegou e perguntou, desdenhando da mercadoria para reduzir o preço. - Zé, esse frango parece que está meio velho. De quando é? - Sei lá. Eu vendo frango é pelo peso, não é pela idade, não! A um freguês que perguntou se a galinha era caipira, Seu Zé Bezerra tascou: - Caipira? É sim, mas com seis meses na capital, já tá cheia de frescura.
Mazinho da Sanfona: chorinhos
NA SOLA E NO TAMBORIM Do Francisco Pereira da Silva da certidão de nascimento faz tempo que não se ouve nem falar. Para todos do samba do Zé Bezerra, ele é somente o Chico Sapateiro. Aos 62 anos de idade e há décadas morando e trabalhando nas redondezas, garante que bate tão bem na sola quanto no tamborim ou na frigideira. Sócio-fundador e voluntário com alma de militante, que além de não ganhar para tocar, ainda faz questão de pagar a cerveja que consome, Chico garante que a presença de “invasores” de outras áreas não preocupa nem um pouco. “Nem quando eles tomam seu lugar na mesa?”, pergunto. “Não, que aqui tem lugar pra todo mundo”, responde sorrindo antes de voltar correndo para não deixar o samba atravessar.
serviço
> Bar do Zé Bezerra - Rua Dom Manoel Medeiros, 171 - Parque Araxá.
Um amigo da casa chamado Cicinho deu um xêxo, deixando umas cervejas sem pagar. No outro sábado, ia passando em frente ao bar com pressa, cumprimentou os amigos e já ia saindo quando foi abordado por Zé Bezerra. - Olhe, moço, tem cinco cervejas suas aqui... - É? Beleza. Pois bote pra gelar que mais tarde eu volto pra beber com os meninos. Um papudinho do bairro chega no balcão e pede uma dose de cana. Zé Bezerra serve meio a contragosto. Em seguida, faz o pedido. - Seu Zé, arranje aí um tira-gosto de galinha. - Pois não, atendeu de pronto Zé Bezerra, colocando um punhado de caroços de milho em cima do balcão. Na porta de casa, Regina dá R$ 0,50 de esmola a um mendigo que passa. Minutos depois, ao chegar na mercearia da esquina, dá de cara com o mesmo mendigo tomando cachaça. Enfurecida, ela reclama: - Tenha vergonha. Você me pediu dinheiro e está tomando cachaça... - Queria o quê? Que eu bebesse uísque com os R$ 0,50 que a senhora me deu? Zulene, uma das muitas amigas de Regina, certa feita ganhou na loteria. Correu para avisar à amiga e prepararam uma festa no bar. Regina abriu uma exceção e fez o samba na segunda-feira, por conta da ganhadora. A conta, obviamente, ficou pendurada para quando recebesse o prêmio. No dia seguinte, ao conferir novamente o cartão, ressaca em dobro. Ela não havia ganho nada. O resultado é que teve que ralar um bom tempo até conseguir quitar o débito. Na porta de um freezer carregado de cervejas até a tampa, que ali a sede é muita, o providencial aviso: Cerveja faz mal... Quando falta. Alguém discorda? <
F
ROL
V
outubro
17
O dia tem 25 horas ali, no retângulo verde de quase 11 mil metros quadrados, esquina das ruas Dr. João Moreira com Barão do Rio Branco. Vista para o mar. Onde Vera Peixeirão, 27, conheceu Fulano – o atual companheiro cujo nome ela não quer dizer – durante um programa que lhe rendeu prováveis 15 contos há exatos quatro anos. É assim no Passeio Público. A história acontece quando você menos espera. Devagar e sempre. O tempo todo. Dona Conceição, a “Tia”, que vende merenda no local desde o começo da década de 80, acha aquela “a praça mais bonita de Fortaleza”. Sabe que o lugar tem passado, mas não dá muito ouvidos para o guia turístico que, terça-feira sim, terça não, aparece por lá com o grupo da Terceira Idade contando sobre a Confederação do Equador, o Padre Mororó e o fuzilamento dos mártires. Prefere o converseiro das moças ao seu redor que pagam “a partir de R$ 2,00” por um pratinho de galinha cozida ou frita, com arroz, farofa de cuscuz e ovo. “Vendo fiado também. Às vezes, é tudo fiado. A maioria é gente conhecida mesmo”, ela diz. Parece boa a comida da “Tia”. Naquela tarde, ela alimentou os engenheiros da companhia de luz que trocavam as luminárias do lugar, o funcionário da loja do Centro, o moço que encostou a bicicleta no banco e nunca mais foi embora, o do carrinho de frutas, o vendedor de escovão, três ou quatro passantes que tomavam um atalho, as garotas de programa quase todas. “Trabalho aqui. Adivinha fazendo o quê?”, puxa conversa Rejane, que há cinco anos pega dois ônibus para ir do Conjunto Ceará até o Passeio Público, onde faz programa. “Todo dia tem um pinga-pinga. Dá pra fazer até três por dia”, contabiliza, raspando o prato antes de se preparar para o primeiro. Outra, Cláudia, 34, acaba de chegar do interior onde mora com o marido, depois de duas semanas de folga, para cinco dias de trabalho. Pretende ficar no Motel Atlântico ou no 24 Horas, a alguns passos do Passeio. De terça até sábado, vai fazer tudo sempre igual. Levantar cedo, já com cliente; atravessar a rua; merendar na “Tia”; seduzir o segundo, o terceiro; merendar na “Tia”; seduzir o quarto. Cobra R$ 20,00 por cada. Mas não é porque gosta, confessa. “Se fosse por gostar, eu tava era em casa, amando só o maridão”. Diz que o ponto já teve dias melhores: “É mulher demais! Em todo canto tem mulher!” Pelas suas contas, ali são cerca de 50. É que o Passeio é público e democrático. Do mesmo modo que a Cláudia disputa F
ROL
V
18
outubro
PASSEIO AO AVESSO Texto Ana Cláudia Peres Fotos Celso Oliveira
os fregueses com as outras 49, a “Tia” vê seu lanche enfrentar a concorrência da dona Valda Fernandes, no extremo oposto da Praça, e da Verinha Gomes, outra que oferece café e dengo pras meninas. Também seu Eliseu Aguiar, 72, que naquela tarde integrava o Grupo da Terceira Idade, vai precisar deixar de ser reclamão e aceitar dividir o espaço. Mesmo que ache, como ele acha, que no tempo dele era mais tranqüilo. “Agora tem muito vagabundo e essas mulheres levianas. Faz até medo a gente freqüentar”, resmunga. Antes, muito antes até do que a época do seu Eliseu, o Passeio Público já foi Campo da Pólvora, Largo da Fortaleza, Largo do Paiol, Largo do Hospital da Caridade, Praça da Misericórdia e Praça dos Mártires. Diz o guia que no meio da Praça estava localizada a prisão subterrânea. Era lá que ficavam os heróis da Confederação do Equador – João Andrade Pessoa Anta e Padre Mororó, entre eles – antes de serem fuzilados em 1824 também ali onde hoje as meninas trocam dinheiro por amor. Naquela tarde, enquanto dona Ana Diana, 80, se divertia com a coincidência de seu nome batizar também a deusa grega em forma de estátua, o guia continuava explicando que a construção do Passeio Público foi iniciada em 1864; que ele era dividido em três níveis destinados às classes rica, média e pobre; que o local foi tombado como Patrimônio Histórico Nacional; que a caixa d´água imponente é da mesma época da reinauguração do local, em 1992; que nessa data foram colocadas grades e colunas, um coreto e um quiosque onde já funcionou café e restaurante, trazendo de volta as antigas características do Passeio Público; que os vasos franceses que já nem existem mais são da Belle Époque; que o estilo do lugar é neoclássico; que o Baobá é uma árvore africana e que aquele ali já tem 150 anos... Ao redor da Verinha do lanche, M. C., de apenas 16 anos, perdeu a oportunidade de assistir a aula de história que ela provavelmente abandonou no colégio para descolar algum. Conta que estuda e que aquela é a primeira vez que vai ao Passeio Público. “Mas eu não quero falar mais nada não”, encerra a conversa. OK. “Aqui, ninguém se mistura. Elas ficam do lado delas e eu do meu”, diz Verinha, viúva, moradora da Barra do Ceará, que faz questão de frisar que está ali só pra vender merenda e que não tem nada em comum com as meninas. Talvez só mesmo a jóia de mentira que ela resolveu pôr em quase todos os dentes da boca, vários falsos-piercings, como fizeram as outras. Com cola comum mesmo. Comprou um pacotinho por R$ 10,00 - para desespero de Lidiane Ramos, 21, essa de sorriso lindo e corpo escultural, que acha absurdo o preço que a Verinha gastou no “piercing dentário”. Jura que não pagaria um centavo do seu ganha-pão por tal vaidade. Lidiane chega a sair com R$ 120,00 no bolso em dia bom. “Ontem, fui embora foi cedo porque não tava prestando pra nada, mas hoje vamos ver se dá”, torce. Mora com o pai, mas agora vai se juntar com o namorado. Ambos sabem de sua profissão. “E eu já disse que se quiserem é do jeito que sou”.
Manhãzinha e fim de tarde, o Passeio é verde-oliva. O cooper. É lá que os soldados da 10ª Região Militar - vizinho mais imponente da praça - costumam fazer suas corridas. Chovia fino em Fortaleza aquele dia de setembro. Mesmo assim, a rotina do Passeio Público seguia. Entre os soldados, metida num saco de lixo, feito um parangolé, dona Ana Lúcia, catadora, pedia R$ 1,00 para dar entrevista. Queria tomar café, mas andava desconfiada porque, na véspera, lhe passaram a perna. Dona Ana Lúcia ainda guarda o santinho da candidata que lhe prometeu uma dentadura. Mas estava injuriada: “Fui lá no endereço que ela me mandou. Perguntaram do meu título. Como eu não tenho, eles não me deram a chapa”. E se tivesse título, em quem votaria? “Não sei. Só não ia votar no “Morongo”, que ele não gosta de muié igual essas não”. A cabine da Polícia Militar já não existe mais. Policiais de moto fazem batida e a ronda da Guarda Municipal de Fortaleza também inspeciona o local algumas vezes noite-e-dia. É da Guarda que vem a informação de que o Passeio Público tem “uma gerente” – assim eles se referem à mulher que, segundo contam, é uma espécie de cafetina da área. Se o cargo existe mesmo, o código de ética das meninas do Passeio não permite entregar. Todas negam. “Mãe que é mãe a gente deixa em casa. Aqui é a Lei do Murici. Ganha quem é mais forte. É na peia, é na chibata. Não tem isso aí não”, diz Vera Peixeirão. O Passeio Público é como o mundo todo. Na mesma tarde cabem ainda o grupo de turistas estudantes do Colégio Batista, o da Universidade de Passao, na Alemanha, os dois mochileiros de guia na mão; o casal de adolescentes que chegou cedo demais para a sessão de Zuzu Angel, no Cine São Luiz, a três quarteirões dali, e aproveitou para namorar no banco que talvez um dia tenha sido de Dona Zezé e Moreira Campos - o escritor cearense de Dizem que os Cães Vêem Coisas uma vez revelou em entrevista que tinha um banco só dele no Passeio Público; o português leitor da Caros Amigos que escolheu o Passeio Público apenas “por querer ficar em paz”... Mas aí já começa o terceiro turno. Mudam as regras. Poucas meninas ainda permanecem de botuca. Na calçada, Priscilla faz ponto. “Nessa hora é perigoso, mas é melhor. É quando passam os clientes de carro”, diz ela. Ou ele. À noite, todos os gatos são pardos. F
ROL
V
outubro
19
queria era arrumar um emprego e não
O BÊ-A-BÁ DA SEDUÇÃO - Vem pra cá macho, tá com medo, é? Pode começar assim a conquista. Mas pode ser mais sutil. Vestida numa camiseta de lycra onde se lia: “Girlie woman: peace to the world”, Cláudia conversava há horas com um bombeiro hidráulico que resolvera se dar folga por conta própria. “Já liguei pra empresa e disse que tava doente. Hoje, tirei pra curtir e quando tiro pra curtir é assim mesmo”, conta o rapaz que não quer ser identificado, informando que aquela é “a primeira das mil vezes” que ele pisou no Passeio Público. “Mas é muito difícil eu ficar com as meninas daqui. Só se eu me
F
ROL
V
20
outubro
engraçar mesmo”, diz o moço, a essa altura já se engraçando pela Cláudia. Só perde a graça mesmo quando ela revela que não tem perigo de se apaixonar por nenhum cliente. “Sou profissional. Enquanto o homem tiver dinheiro do bolso, a gente ama, a gente adora. Depois, acabou”. Acabou para ele que, justo naquele dia, contava as moedas para pagar o café da “Tia”. - “Vambora, Cláudia!”, passa a colega. Cláudia explica que, no jargão das meninas, isso é uma superstição. “É pra dar sor te. Quando uma vai, chama a outra”, diz. - E dá sorte? - Eu já nasci com sorte!
ver minha Jurunão ser explorada >>> UMA TARDE COM AS MENINAS Vera Peixeirão tem um companheiro do lado de fora do Passeio Público. Lá dentro, ela protege Juruna, a quem chama de namorada. E tem aquela que namora aquela outra. Todos respeitam e que ninguém se meta a esperto. Nem a repórter queira saber sobre a intimidade dos casais. “Se bater foto da minha mulher, vai ter que pagar 15 contos”, avisa Vera para o fotógrafo. “Queria era arrumar um emprego que não agüento mais ver minha Jurunão ser explorada. Aqui, nós somos tudo uma família”. A outra queria mesmo era fazer as pazes com a namorada, na base da moeda. “Cara ou coroa?”, tentou brincar. Sem chance pelo menos por enquanto. Juntas, elas cuidam da Princesa e do Paulista, um casal de vira-latas que virou xodó das meninas. De amigo homem, tem o Welinton Freitas, guardador de carros, espécie de hóspede número 1 do Passeio Público. “Morei 9 anos aqui. Tomando sol e chuva, alegria e tristeza. Agora, me deram uma oportunidade e tá dando pra pagar um motel. Mas quando não dá, eu volto pra dormir aqui de novo”, conta. São mais dois os moradores do Passeio Público. Todos riram quando souberam que, antigamente, no local havia grandes quermesses para ajudar a Santa Casa de Misericórdia e que o ponto alto das festas eram os concursos “de beleza feminina e de fealdade masculina”. No dia da reportagem, pode ser que os clientes tenham ficado envergonhados. Diz Vera que não ganharam dinheiro nenhum. “Mas nós achamos graça que só”, completa.
TRONCO CASAMENTEIRO
O Baobá gigante, na entrada do Passeio Público, pode ser uma árvore originária da África. Pode ser raríssimo. Pode ter sido plantada ali pelo Senador Pompeu. Pode ter 150 anos e durar entre 3 e 6 mil, como informava o guia. Mas quando foi tocado pelas senhoras da Terceira Idade em visita ao local, o significado era outro. “Dizem que quem pega no tronco do Baobá, casa de novo”, brincou o guia. Por via das dúvidas, dona Nazira Severiano, 84, dona Dolores de Moura, 75, e dona Diana, 80, partiram para o abraço. Às outras mulheres que dia-e-noite tiram uma casquinha do Baobá restava o riso de ironia e desprezo. Feliz da vida, Dona Diana relembrava o tempo em que freqüentava o Passeio Público. “As mães não queriam que a gente namorasse com os rapazes. Aí, a gente vinha escondido. Ligava pros rapazes, marcava com eles e deixava que eles esperassem aqui. Só que às vezes a gente dizia que vinha com uma roupa e vinha com outra. Pra enganar eles que ficavam pra lá e pra cá”, diverte-se. Talvez seja dessa época a origem de tanto nome e coração rabiscado no tronco do Baobá.
NA VIZINHANÇA
Junto com o Forte de Nossa Senhora da Assunção, o Passeio Público deve ser o habitante mais ilustre do quarteirão. Nos arredores, tem o Motel 24 Horas e o Atlântico, uma agência de turismo, uma sorveteria, dois restaurantes, um estacionamento e uma clínica – isso sem contar a Santa Casa de Misericórdia, a Associação Comercial do Ceará e o prédio do Antigo Hotel do Norte, que está sendo restaurado para abrigar a Orquestra Filarmônica, o Memorial da Indústria e o Instituto dos Arquitetos do Brasil-Ce. No Hotel Passeio, com banho a R$ 1,50, a gerente Ana Paula informa que agora o hotel é familiar. “Antes elas usavam para programa. Mas há seis meses mudou de dono e elas agora entenderam que não podem”, diz, na sua. <
F
ROL
V
outubro
21
raimundo da carmelina
Texto Ana Mary C. Cavalcante Foto Igor Câmara F
ROL
V
22
outubro
Porque nos acostumamos a encontrá-los já velhos e feito ladrilhos da paisagem urbana, é bom que se saiba: ele tem um nome, Raimundo. (E um nome carrega uma vida inteira). “Nasci dentro do ter: meu pai, minha mãe possuindo as coisa. Tinha sítio na Aratuba (parte do Maciço de Baturité, a 122 quilômetros de Fortaleza) e no município de Canindé (casa sertaneja do Santo de Assis, a 113 quilômetros da capital cearense). Filho de papaizim e mamãezinha vai brincar... Era o meu caso. Brincava. Fiz a minha infância, graças a Deus”, apresenta-se, enquanto tira a identidade do bolso, o 3X4 que lhe remoça e o cura, a carteirinha da Clínica do Rim, o receituário. “Tenho 22 irmão. Meu pai casou três vezes. Eu fui da primeira família. A minha mãe morreu, eu com nove meses. Aí a minha tia, exatamente essa que possuía as coisas, tomou conta de mim. Eu, na mão desses dois velhos, pintei o molequinho! Brincadeira de menino, naquele tempo, era pegar calango, rebolar pedra, puxar carrim... Fui cruzada da religião católica, ia à missa, ao catecismo. Estudei no melhor professor de Canindé, Evaldo Neto. Aprendi a ler e a escrever. Minha mãe queria me formar, mas eu era um capetinha! Eu levava lagartixa dentro do bolso, aí, ficava no birô da professora: ‘Tia?’. ‘O que é que tu quer,
A véia chegou e disse, ‘Raimundo, amanhã não tem nada’. Eu abaixei a cabeça, doente. Aí, recebi a mensagem: ‘Quem não tem...’. Fui e compretei: ‘Vai pedir a quem tem’. Aí, de manhã, eu tinha uma cesta em casa, ‘Mulher, vou vender cajá’. Peguei a cestinha, num tomei café porque não tinha, saí. Agora, pra essa mão pedir, que nunca tinha feito isso, era pesada... ‘Ah, Senhor, tira o peso dessa mão’. Vim pelo Zé Walter. Quando cheguei na Serrinha, magro, disseram: ‘Olha o véim, tá fazendo o quê?’. ‘Pedindo uma coisinha, pra levar pra minha veinha’. Quando foi dez hora do dia, eu já tava pedindo a Deus pra me dar força pra carregar a cesta! A cesta tava cheia: arroz, feijão, farinha, açúcar, um pedacim de carne, um ovim, uma moedinha no bolso”. Nem sempre foi assim, severina. Antes da doença e dos (des)ajustes econômicos, a vida “era beber cerveja e dar uma voltinha de noite”. Seu Raimundo, “nascido dentro do ter”, era dono de restaurante. Também foi garçom nos bailes do Náutico, do Massapeense, do Cirandinha, do Comercial, do Roda Gira, do Círculo Militar. “Possuí dois carros. Possuía 12 funcionários registrados. Aconteceu a doença e o prano governista. Com essa mudança de governo, me deu uma queda. O prano do meu amigo Zé Sarney congelou (os preços). Vei o nosso amigo Collor de Melo.
o homem de branco
Raimundim?’. ‘Eu trouxe um presente pra senhora. Tira aqui!’”, recreia-se. O homem de branco, barba e espírito daquele Profeta Gentileza, chapéu de palha, destoa da noite sem estrelas da metrópole. É o incomum, a surpresa visual no cinza das esquinas da Rui Barbosa com a Heráclito Graça. É a pausa, na ligeireza do asfalto, na vastidão do dia. Nós, que passamos apressados pelas ruas da cidade*, merecemos ler suas palavras. “Se tenho fé em Deus? Você, linda desse jeito, simpática, é um dom que você nasceu com ele. Esse dom quem dá é Deus. Essa é a fé que a pessoa tem em Deus”. E o seu dom, qual é? “O dom que Deus me deu foi esse d´eu tá conversando com você. Uma moça formada, pára um carro novo aí de frente, vai falar com um véi num poste desse aqui, né dom de Deus?! Quem foi que trouxe a senhora aqui? Foi o Esprito Santo, que tá entre nós. Querendo fazer do nosso coração uma moradia. E a pessoa – é obrigado eu dizer – por causa da ignorança, falta de conhecimento, não dá o mínimo de atenção. Aquela coisa positiva dentro de si, o que é? A humildade, a simplicidade da senhora chegar se sentar num fi de pedra, conversar com um véi desse aqui... Já vei doutor Mauro, doutor Cornelito, e outros”. Na espera do “a qualquer momento pode chegar um”, seu Raimundo (sobre)vive dos dez centavos, da sopa com pão, dos “comprimido de pressão”, dos “remédio pros osso”. Está doente há 15 anos, desde os 36 de idade, os rins sem força, o olho direito vencido pelo glaucoma. Em casa, no Conjunto José Walter (zona sul da cidade), dona Rita também padece; tem eczema na perna e diabetes. “É gorda, num pode ver um pedaço de doce”, o marido apieda-se. Tiveram quatro filhos, “já são casados, cada qual com sua responsabilidade. Ganham pouco, chegam lá em casa com um arrozinho”. Tarde sim, tarde não, quando está livre da hemodiálise, seu Raimundo busca o resto na Aldeota (zona leste). “Encontrei aqueles pauzim, pra levar (aponta para o amontoado no poste), pra fazer um sistema de um banquim, pra Rita botar a perna. Um banquim, quem faz sou eu. Um violãozim... Faço (música) só batendo as corda, não escuto nada. (ensaia o pout-pourrit dileto das noites) ‘O Senhor é meu pastor/ e nada me faltará/ Jesus está chegando...’”. O mundo é uma escola. A vida é o circo. O Raimundo da Carmelina reinventou-se e virou personagem da cidade grande. A roupa alva e a barba de sábio deviam ser a sua sina. “O branco... Será que a minha jovem vai acreditar? A pessoa, através de obediência, do sofrimento, ou do conhecimento, fica recebendo um aviso positivo. Vem sobre a pessoa, ‘Faça isso!’. Você olha prum lado, pro outro, num vê ninguém. Mas se a pessoa tiver obediência e conhecer alguma coisa da história de Jesus... Eu recebi: ‘Troca essas roupas, vista branco! Não tira a barba!’. Tentei cortar essa barba três veiz. As três veiz me dei mal”, recria-se. Na precisão, fez-se o milagre. “Minha filha, acabou-se o que tinha em casa.
Chico Altemar Franco. Aí, lá vem o tal do FC, levou o resto. Quando o Romcy tava fechando as portas, eu também tava fechando as minhas”. Desse passado farto, resta-lhe dona Rita, companheira de quatro décadas. Na alegria e na tristeza. “Casamo com 18 anos. Até hoje, quebro a cabeça mais ela, brigo!”. “Mas não deixa ela...”. “Não, não! Minha véia? Que conversa é essa? Quando chego em casa, ‘Cadê a véia? Vem cá!’”. Na saúde e na doença. “Eu levava de brincadeira. Não acreditava naquele negócio de namoro. Era uma brincadeira conversar com a pessoa, dizer uma prosa. Até que chegou uma e me agarrou! Até hoje. Eu doente de um lado, ela doente do outro”. É dona Rita quem lhe requenta o viço, quem lubrifica o olho são. “Naquele tempo, eu, rapazim solteiro, em cima de uma bicicreta nova, estalano, relógio novo, sapato novo, roupa nova, um perfume danado...”. Amor, palavra que liberta. Um homem e suas sentimentalidades. “Casei católico e civil. Ainda lembro duma passagem: o padre lá, com aquelas perguntas... E eu, ‘Umbora, seu vigário. O senhor tá demorando demais e eu aqui tô avexado. Tô em tempo de não agüentar mais!’. Eu tava apressado pra dar um beijo na nega! A nega era bonita demais. Era não, é! O que acho de mais bonito nela é ela ser simpática. A simpatia é uma beleza, é uma presença, é uma coisa muito importante... Pra mim, o que é o amor? (pausa) É uma benevolência, uma bondade que você tem dentro de si. Essa bondade é um negócio doce”. A noite avança com seus olhos de coruja. Não vem mais ninguém, além da doutora do carro vermelho, que abaixa o vidro, e do homem da ambulância com o caneco de sopa e o carioquinha. A avenida, silenciosa, parece ainda maior. Seu Raimundo a toma como cenário pra explicar o que os olhos não vêem: “Abraão era um homem riquíssimo... E Deus disse: ‘Abraão, deixa tudo o que tu tem pra trás e me segue’. Abraão ouviu a voz: ‘Levanta a vista. É o que a tua vista alcançar, os quatro cantos do mundo faz parte da tua herança e dos teus descendentes’. Eu vim pra cá doente. Aqui, sinto a saúde chegando. Olha que coisa linda: receber uma jovem dessa aqui, pela primeira vez, conversando comigo. Existe uma riqueza maior do que essa? Existe? E eu digo à senhora: aquele que estirar a mão, olhar pra mim e dê ao meno um sorriso... E aquele que fazer que não tá me vendo, tenho certeza que Deus vai abrandar o coração”. O chuvisco avia a conversa. Um aperto de mão, um sorriso, até qualquer dia. E o homem de branco fica ali, na imensidão do breu, com sua herança. “Feliz? Minha filha, eu levo uma topada, acho é graça! Uma quedinha dessa pra espertar mais um pouquinho, né?! A felicidade, já falei. Eu tá aqui, conversando com a senhora, quer coisa mais feliz que essa? O que é isso? É herança do Senhor-Deus-Todo-Poderoso-criador-do-céu-e-da-terra”. Por isso eu pergunto/ a você no mundo/ se é mais inteligente/ o livro ou a sabedoria. < * Os trechos em itálico são da música “Gentileza” (Marisa Monte). F
ROL
V
outubro
23
F
ROL
V
24
outubro
A PELEJA DOS HOMENS NA CASA DOS PEIXES Texto Ethel de Paula Fotos drawlio joca
F
ROL
V
outubro
25
Irmão Francisco, pescador, filho de pescador e evangélico recém-convertido
F
ROL
V
26
outubro
Vestidos de sol, os pescadores vão surgindo, um a um. O dia ainda espreguiça quando descem os morros do Mucuripe em direção ao asfalto, cruzam o calçadão da avenida Beira-Mar e, embaixo do sombreado de castanholeiras, algodoeiros e juremas que margeiam a praia, dão início ao ritual de entrada na “casa dos peixes”. Para entrar no mar, é preciso entrar em detalhes. “Vamos dizer: chega-se cinco e meia. Se a jangada está no seco, ela fica em riba dos rolo de tronco. Aí vem rolando à força bruta, são sete a dez homens empurrando pra baixo, até botar na água rasa. Depois amarra e vai abastecer a embarcação: compra as isca, as piaba, as sardinha; reforça o aviamento, a chumbada, os anzol e vai fazer o rancho lá na mercearia. O que é? Comprar comida pra ficar quatro, cinco noites no mar. Igual como numa casa: farinha, óleo, sal, coloral, galinha, feijão, arroz, rapadura, gás pro lampião, carvão, tudo vendido aqui na beira da praia. Vem o catraeiro e, de bote, embarca tudo isso na jangada, junto com o pescador”, esmiuça Franscisco José da Silva, o Irmão Francisco, 33 anos, pescador, filho de pescador e evangélico recém-convertido. As velas do Mucuripe saem para pescar às custas de, em média, cinco homens, número necessário para empunhar o mastro, tora de 12 metros de comprimento, e “afundear” o tauaçu ou toaçu, pedra “com mais de 100 quilos”, lançada ao fundo do mar como uma âncora, no exato local escolhido para a pescaria de anzol. Peso descomunal, responsável pela marra, mas também pelo aleijo de muitos pescadores. “A primeira coisa que adoece é a coluna; depois a vista, por causa do espelho d’água, a claridade; e o pulmão, por causa da frieza. A gente passa cinco dias molhado, isso aí vai afetando, e de tarde é de costa pro sol quente. Se você falar com pescador véi, é todo tempo a tosse - tufo, tufo. Com 50 ano, o pescador já não tá pescando nas água de um homem de 40. Criança, a gente começa com bote de remo, aí vai sumindo as terra e aprofundando. Com 40, vem voltando pras água seca. Comecei a pescar com 8 ano. Hoje não posso mais puxar 10 quilo de chumbo como puxava. Quero uma água mais maneira, mais parada. Até voltar pro barco de remo de novo”, sintetiza Edson Ferreira de Sousa, 40, um Darwin às avessas, descrevendo a “involução” da espécie. Viagem longa, muito para lá da “risca”. “Tem jangada aí que afundeia em 34, 35 braça de fundura, depois de correr não sei quantos quilômetros pra dentro. Quem tem GPS, a maquininha, sabe medir, marca a distância que dá. Quem não tem, marca pelo costume, pela serra, pela cor da água, pela fundura. Bota a
serra no correr do moinho, aí você já sabe qual o mar que você vai, aonde pode afundear, se é na Beirada das Pedras, no Fundo... Daqui pra risca dá três hora de viagem, pra dentro é cinco, seis hora mais, depende da embarcação, porque umas corre mais do que as outras”, acrescenta Francisco Carlos, o Carlinhos, 42, hoje dono de jangada. O dia e hora da volta são determinadas pelo mestre. E também cabe a ele, em terra, dividir o pescado. Metade é do dono da embarcação, quer ele esteja ou não embarcado. E o restante rateado entre os cinco tripulantes que dividiram funções complementares em cima da jangada de tábua, toda ela feita de louro e pitiá. “O mestre é o comandante; o proeiro, segundo comandante; o bico-de-proa fica no meio e tem a responsabilidade de fazer a comida; o ribique amarra tudo na frente da embarcação e cuida do leme; o pescador de cinco fica à esquerda, é o quinto homem, e ajuda a matar e a controlar o peixe. Mas todos sabem governar, caso um adoeça”, ressalta Francisco. Trabalho coletivo com resultados individuais. Cada pescador tem sua própria marca, espécie de assinatura para identificar a produtividade. “Se são cinco pescador, são cinco marca. O mestre deixa o rabo do peixe inteiro, não corta; o proeiro corta o rabo da direita; o ribique corta o rabo de baixo; o bico-de-proa corta
vento forte e perigoso. “A gente vai pro mar porque é o jeito, é a sobrevivência, mas tem medo. Com esse tipo de embarcação, é difícil não ter acidente fatal. A navegação desaparece, morre pai de família. As ondas sobem até 4 metros de altura. É mesmo que tá pegando uma pipoca e jogando pro alto”, descreve Sebastião da Silva Ramos, 61, secretário da Colônia de Pescadores Z-8, no Mucuripe e pescador recém-aposentado, na lida desde os 12 anos. Pescando há 46 anos, José César Santos, 53, se vale de Nossa Senhora da Saúde para enfrentar ventania. “Três vezes o barco já virou, a derradeira ia morrendo. Passei dois dias virado, comendo farinha d’água. Uma lancha salvou nós. Cheguei todo desmantelado, a garganta arranhando por muito tempo. Com dois dias fui de novo. Viver de quê? De esmola, depois de velho? Nem o rabo da arraia me tirou do mar. Cortou e ainda hoje não sinto o dedo, foram seis mês com a mão parada. Sorte não ter ficado aleijado. Passei necessidade nesse tempo. A mulher fez uma promessa de que enquanto vida nós tivesse não entrava arraia em casa”, assegura. A dor mais insuspeitada do homem do mar, porém, é de fundo emocional, denuncia uma fina sensibilidade por trás do trabalho árduo e dos modos rudes. “Pescador tem sangue quente, não sei se é por
criança, a gente começa com bote de remo, aí vai sumindo as terra e aprofundando >>>
as duas pontas do rabo e o pescador de cinco faz um corte na cabeça do peixe”, arremata Edson. Embarcação também tem nome. E não se trata de firula. “A Capitania dos Portos exige o título de inscrição, é mesmo que tivesse nascido uma pessoa. E se a primeira que eu possuir botar o nome de Ana, a segunda tem que ser Ana II”. Oitocentos quilos de peixe, fisgados no anzol de linha, em cima de uma jangada de tábua. Edson garante que não é história de pescador. Foi sua melhor pescaria, numa época remota em que o mar garantia fartura. Hoje, a peleja, desigual, já não compensa, não há motivos para comemorar a chegada em terra. “O mar é como uma firma que quebrou, faliu. Tem vez que a gente volta depois de quatro dia embarcado sem nada, com a barriga cheia d’água salgada”, queixa-se Francisco. Daí porque tem sido morno o leilão de peixes promovido entre pescadores e marchantes - os “atravessadores” - ali mesmo nas areias, tão logo a jangada encoste. De dentro do samburá saem, predominantemente, peixes miúdos, desvalorizados, como a mariquita, a piraúna, a biquara, a guaiúba. “O peixe de água comum é o
que o pescador predatório não mata. A dificuldade agora é pegar o badejo, que é o sirigado, ou a cioba, a carapitanga, o pargo, porque esses o mergulhador de barco a motor mata de tiro e de ruma. Se uma jangada pegar hoje dez sirigado aqui na praia do Mucuripe é arriscado até sair no Jornal Nacional”, avisa Edson, rindo-se. Para o veterano José Pereira da Silva, 59, pai de Francisco, enfrentar os “piratas do mar” significa, literalmente, não dormir no ponto. “Fico dia e noite acordado numa pescaria. Não durmo, é pescando direto. Por isso que chego na praia com mais peixe do que os novo, que não aguentam e entram pra dentro da jangada pra dormir”, ensina, vendendo disposição à véspera da aposentadoria, aos 60. Já Edson prefere qualidade à quantidade. “Só ando nas água profunda é atrás de pargo dos ói vridrado, o ôi dele tem três cor e a carne é melhor e mais cara do que a do pargo comum. O sirigado é outro, um peixe que sai a 11 reais o quilo pro marchante e o único que cobre nossas despesas. E pode chegar a 40 quilo. Então é mesmo que você ir atrás de um pedaço de ouro na Serra Pelada”. A partir de julho, há outro complicador: “o leste”,
causa do sol. Não anda matando os outros, mas é um bicho brabo. Porque veja: o cara tá lá no mar, com o destino de pegar um peixe, mas pra isso você tem que matar, isso é o pior... Vamos supor que eu pegue um Dourado. Dourado é um peixe grande, muito valente, muito pulador. Aí você já tá com raiva dele, porque ele já deu muito trabalho pra chegar na sua linha. Larga um bicheiro nele, que é aquela vara comprida, um pedaço de pau com um gancho na ponta. Aquele peixe sente uma grande dor, não sente? Ele tem que pular, aí você pega um pau e pega mais uma faca, pra furar debaixo das aba dele, pra sangrar e ele morrer ligeiro. É mesmo que ser um açougueiro, matar um boi em pé, não é fácil. Vira rotina, porque é a sobrevivência, mas que dói, dói. Me lembro que meu pai, quando eu era menino, criava porco, e um porco nós gostava, tirava pra estimação. Eu e meu irmão, meninozim, botava num cabresto, aí nosso porco tomava banho de mar, andava acompanhando nós que nem um cachorro. Quando o papai ia matar, nós chorava demais, não queria comer a carne... Então, lhe digo de coração, hoje, que não gosto de matar peixe. Gosto de pegar o peixe e deixar ele morrer lá no samburá, vivo”, poetiza Edson.
F
ROL
V
outubro
27
Trabalho e aventura F
ROL
V
28
outubro
O mar é o limite para o pescador do Mucuripe. A saga da jangada São Pedro, que em 1941 deixou Fortaleza em direção ao Rio de Janeiro, levando a bordo quatro jangadeiros decididos a cobrar direitos trabalhistas junto ao então presidente da República, Getúlio Vargas, causou frisson no Brasil e encantou, particularmente, o cineasta norte-americano Orson Welles. Tanto assim que, no ano seguinte, ele já estaria com os pés atolados nas areias da vila de pescadores. Robusto e vermelho, veio ver com os próprios olhos os protagonistas da aventura de caráter político e apelo comunitário: Jacaré, Jerônimo, Tatá e Mané Preto. A intenção era fazer um filme com os quatro bravos jangadeiros que iriam reviver, na frente das câmeras, passagens daquela viagem. Mas um acidente fatal no decorrer das filmagens vitimou Jacaré e, por este e outros motivos, a obra sequer pôde ser finalizada. No Mucuripe, a ousadia se espalhou com o vento. Assim, em 1951, mais cinco aventureiros enfrentaram mares e tempestades, dessa vez até Porto Alegre. Também por melhores condições de vida - e o simples pedido de um barco a motor passou a significar isso. De novo aconteceu em 1954, destino ainda mais longo: Buenos Aires. Jerônimo governou essas duas raids e, juram os colegas pescadores, chegou a figurar alguns dias como presidente da Argentina, tamanha simpatia conquistada junto à opinião pública. Em 1967, Luís Garôpa também mestrou uma embarcação que chegou a Santos, chamando mais uma vez atenção para uma classe historicamente desassistida, mas obstinada. Especial destaque para a derradeira. Em julho de 1972, um professor nas jangadas e coisas da pescaria, duro no ofício e sabedor de tudo, fez a raid mais bem-sucedida da história do Mucuripe. Destino: Ilha Bela, São Paulo. José Eremilson Severino Silva é o único dos jangadeiros vivos que se fez aventureiro em nome do coletivo. Era um domingo quando desceu o Morro do Teixeira em direção à praia com outros dois pescadores e três escoteiros do mar. Tinha 36 anos e a coragem de pedir ao mais endurecido dos presidentes da ditadura militar brasileira, Emílio Garrastazzu Médici, o benefício da aposentadoria para todos os pescadores do país. Hoje, beirando os 80, sorrindo um sorriso sem dentes, mostra o certificado de viagem devidamente emoldurado e abre as portas da casa modesta, no mesmo morro, para relatar um épico inesquecível. “Com muito custo e depois de muito aperreio, o Governo do Ceará, na pessoa do César Cals, me deu dez contos de réis para eu comprar uma jangada e ir falar com o presidente da República. Partimo da Praia do Náutico. Uma multidão veio ver. Teve solenidade com as autoridade local e a
Marinha deu os mantimento. Mas nós só precisava da farinha, peixe a gente tinha no aquário, né?”, desdenha, sem esforço para lembrar. Fumo no cachimbo até contabilizar: 101 dias de navegação, 12 tempestades de vento e chuva. “Só ia em terra quando faltava água doce”, garante. Em Pernambuco, um primeiro obstáculo. “A obrigação de qualquer navegador, seje ele pescador ou de longo curso, é chegar no porto e ir à Capitania. Me apresentei. E o capitão disse pra mim: “cadê a carta náutica, a bússola?” Eu olhei assim pra ele... E respondi: “mal empregado a cadeira que o senhor se senta. Eu não preciso de aparelho pra navegar, me confio nos planeta, nas estrela”. Aí ele disse: “pois está preso, você e a embarcação”. E eu: “importante não é quem prende, é quem solta. Acima de você tem um almirante. E ele vai me soltar”. Dito e feito. Intrépida, a jangada Limaverde seguiu viagem. A chegada à Ilha Bela não foi menos festiva. Um mês de comemoração na praia de Santos, avião fretado para levar os quatro heróis nordestinos até Brasília. Lá, o mestre foi direto ao assunto. “Sua excelência, vim aqui lhe pedir um benefício. O senhor se esqueceu de uma banda do Brasil. Pescador pobre e velho não tem mais condição de trabalhar, precisa de um amparo, tem direito a comer um pão”, cita a si próprio. “E penso que foi Deus quem abriu o coração daquele Dragão. Ele disse: “se tá errado, vamos consertar. Quando vocês chegarem de volta em Fortaleza o benefício já está garantido”. O Médici era um homem assim da minha estatura, ele podia ser ruim na política, mas com a gente foi ótima pessoa, bem educado, deu um carro pra conhecer Brasília, um hotel e até provou do “uísque do Ceará”, uma cachaça da boa. Com pouco, embriagou-se. Ficou tonto e disse que tava passando mal. Eu respondi que lá no Ceará quando a gente sente isso diz que tá é bêbo!”, diverte-se. A aposentadoria, de fato, chegou na frente. Quando mestre Eremilson retornou ao seu Mucuripe, teve dupla recmpensa: seu pai, àquela altura com 100 anos, foi o primeiro a se aposentar. O que viveu está fresco na memória, roteiro na ponta da língua. E faria tudo outra vez, não fosse a dificuldade de locomoção por conta de problemas na coluna. Saberia inclusive o que pedir. “Pediria para o presidente fazer um colégio pra pescador dentro do Mucuripe. O meu colégio foi o mar, somente. E também pedia um cemitério, porque o primeiro e único foi feito em 1916, por Miguel Arcanjo, um leproso, pescador de tarrafa, que fez a Campanha do Vintém, pediu esmola até poder construir com a ajuda dos morador. Pescador já tem aposento, é pouco mas pelo menos a gente pode comprar fiado na bodega. Mas pescador ainda não tem onde cair morto”, reclama.
F
ROL
V
outubro
29
Nas paredes da memória Vera Lúcia Miranda, a Verinha, “enxerga antigamentes”. Ela é a memória viva do Mucuripe. E cultua, em especial, o passado da vila de pescadores, o tempo em que a avenida Beira Mar era Rua da Frente e a Via Expressa não havia chegado para tirá-la do sopé do Morro Santa Teresinha, um dos que compõem o bairro. A nova casa, na rua Jereré, próxima ao Mirante, abraça recordações. Nas paredes, um roteiro sentimental, fotografias e pinturas para dar conta do eterno e do transitório - ou do que há de eterno no transitório. Eternos e nobres, para ela, são os homens do mar. Por isso, eles têm lugar de honra no acervo iconográfico. Mestre Bráulio é um dos. “Chega me arrepio quando falo dele. Morreu em 1994 e não tinha nem onde se enterrar, criatura! Veja bem: um homem que trabalhou no filme do Orson Welles, o coveiro não queria sequer enterrar no cemitério daqui, dizia que tava lotado. Um pescador que carregou pedra na cabeça pra
construir esse cemitério, que ia buscar pedra no Farol pra construir a igreja, tudo em mutirão, como é que pode? Não contei pipoca: fui às rádios e botei a boca no trombone. Até que veio a permissão e o bichinho tá lá, descansando”, conta, esfuziante. Aos pescadores, Verinha também dedicou conhecimento. Ensinou muitos a ler e escrever e quando ganhou o prêmio em dinheiro na Loteria Estadual, por duas vezes, foi para eles que comprou roupas novas. Ao lado da foto dos jangadeiros que viram de perto o papa João Paulo II, um retrato pintado de Zé da Júlia, pescador de bico doce, que, em vida, colecionava mulheres e lorotas. “Contava que o Turco Cabeça de Vento foi pescar lá no Recife, aí deu um espirro que a jangada se partiu no meio. Veio um pedaço pra Fortaleza e o outro ficou lá. Pode?”, reproduz, às gargalhadas. Também está com ela um dos mais belos registros da festa de São Pedro, a imagem do santo no andor, marinheiros e jangadeiros enfileirados, escoltando. O 29 de junho na beira da praia já foi a principal festa do Mucuripe. “Hoje não dão mais valor, mas era lindo colocar aquela jangada toda enfeitada na praia, fazer o altar e seguir em procissão pelo mar com a imagem do santo, aquela ruma de jangada acompanhando... Coisas que o tempo levou, mas fica impregnado na gente, né?”, suspira. Verinha também amou quem cobria de afagos os pescadores e embarcadiços. “Amava as meretrizes. Minha mãe não me dava carinho, não me queria, ela só queria os filhos homem. Então, criatura, eu ia lá pra Rua da Frente, onde
elas moravam e onde tinha a mercearia do papai. Via ele namorando com elas, mas não tava nem aí. Ganhava colo, cafuné, bombom e até roupa delas. De noite, morria de vontade de entrar com elas no Canção do Mar, uma boate muito bonita, mas eu era criança. Mesmo assim, notava: quando elas gostavam de um cara era pra valer, amavam de verdade. É tanto que quando eram traídas, se suicidavam. Ateavam fogo às próprias vestes. Cheguei a ir pro velório de uma, chorei muito”, conta, emocionada. Também esteve junto, já adulta, nas horas difíceis. “Quando tiraram elas da Rua da Frente e trouxeram na marra pro Farol a gente distribuía cesta de alimentos, o padre Zé Nilson ia até lá celebrar missa e na hora do ofertório elas não tinham que colocar nada no altar, nós era que dava vestido, bujão de gás, sombrinha... E tome presente bom!”, regozija-se. Aos 56 anos, perdeu o poder mobilizador no Grande Mucuripe que abraça morros e arranha-céus. “É muito ruim morar no alto do morro quando não se tem carro. Tá certo que conseguimos as escadarias, mas são quase 300 degraus, não tenho mais a resistência de antes. Era tão bom aquele apertadim lá embaixo, na rua Boa Vista, pelo menos tava me movimentando, ajudando o povo do Mucuripe, que eu amo. Fui professora de uma reca de menino no Morro do Teixeira, alfabetizava nos alpendres das casas. Brincava no meio do areial com eles na hora do recreio, lá em casa era um entra e sai danado. Hoje ninguém pode nem ficar de porta aberta que o pessoal daqui rouba a gente. É diferente o Mucuripe, perdeu a calma, a união, mas continua lindo...”, derrama-se.
Verinha e as pinturas do Mucuripe antigo
F
ROL
V
30
outubro
Faroleiro partido ao meio
Luciano ensina com quantos paus se faz uma jangada e se equilibra sobre duas rodas
Estaleiro a céu aberto
Ao invés das águas, o enxuto. Há seis anos, Luciano Pereira de Lima, 66, trocou a pescaria em alto-mar pelo conserto e construção de jangadas à beira da praia. Trabalho meticuloso, custoso, tarefa de atravessar o dia. “Desde criança faço. Aprendi rápido. Poucas pessoas entendem disso. É pra quem conhece o mar. Porque o vento transforma o mar, ele fica valente, é que nem o cara quando bebe. Então, toda embarcação que chega tem um conserto pra fazer. É que nem um médico, você diz o que aconteceu e eu já digo qual é o problema”, vaticina. Em média, o carpinteiro naval que em 1970 fez curso na Capitania dos Portos leva 45 dias para erguer uma embarcação. O segredo: “Tem que ser bem pregada”. No início, eram as de piúba. “Ainda tem três das que eu fiz, uma tá dentro da Emcetur e apareceu até numa novela e numa reportagem do Fantástico. Em 67, veio a jangada de tábua, feita de louro e pitiá, que a gente chama de caixão de defunto, porque essas afunda, a de piúba não. Aí comecei a fazer pra mim mesmo. Mas você sabe: o que é bom todo mundo quer. E hoje não passo um dia parado”, gaba-se. Passo a passo: “primeiro faz a armação, depois vai colocando as cavernas, que é um oco, onde o pescador dorme na jangada, aí cobre com tábua em cima e embaixo. No fim, é pintar”. Na hora de batizar, não nega a superstição: “Gosto mais de botar nome de planeta, Vênus... Já tive uma por nome de O Astro, foi uma novela muito falada por aqui. Mas se botar nome de pessoa, amaldiçoa a embarcação”. O homem do mar também se equilibra em duas rodas. Luciano é adepto, até hoje, do ciclismo. “Fui daqui pra São Paulo de bicicleta em 1967. Tá com 61 anos que pedalo, o meu transporte é bicicleta. Na inauguração da emissora Dragão do Mar ganhei a corrida Fortaleza-Maranguape. Aí fui sendo convidado: Recife, São Paulo, Natal... Tenho muita medalha, faixa, taça em casa”, conta. Como atleta, nunca fumou, bebeu ou virou noites em farras. “Não sei o que é brincar em minha vida. Nem criança brinquei. Comecei a pescar com oito anos. Sempre vivi no mar. Até quando casei, fiz a mulher me acompanhar, costurando vela, remendando rede, tratando os peixes. E ela ainda pesca siri no mangue”, conta, compenetrado, sem interromper o trabalho.
A 22 metros de altura, no alto da torre do Farol do Mucuripe, Raimundo Juvenil Cardoso, 52, lança luz sobre o mar. Cabe a ele, como um dos últimos faroleiros em atividade no Brasil, ligar e desligar o equipamento náutico que orienta os navegantes. Há seis anos, faz isso duas vezes por dia: às cinco e meia da manhã e às seis da noite. Mas até hoje desconfia da própria escolha. “Antes de vir pra terra fui marinheiro, por mais de dez anos. Então, muitas vezes, vi o farol lá do mar. Agora, faço o inverso. Gosto muito de viajar, chegar numa terra desconhecida e fazer amizades. Na Marinha, conheci muito lugares, muitas mulheres... (risos) O bom de estar no mar, navegando, é que você tem sempre uma história diferente pra contar. É uma vida de liberdade e ainda hoje sinto aquele impulso de sair. Na terra, a gente repete as histórias, fica sem ter muito o que contar”, acredita. O motivo da procura por um porto-seguro tem nome: Maria da Conceição. “Ela que me fez ser um homem da terra, me fez parar. Estamos casados há 24 anos. Lá em cima, diante daquela vista privilegiada da cidade, já comemoramos Natal, reveillon e aniversário. É um lugar ótimo para namorar. E sonhar. Viajo muito em pensamento, mesmo parado, lá em cima do farol”, confessa. Daqui a três anos, o faroleiro se aposenta. Quer morar perto do mar. E viajar.
F
ROL
V
outubro
31
Segredos e mistérios
Quando começou a pescar, “brochotim”, aos 7 anos de idade, João Cardoso da Silva, hoje com 80, navegava dentro do samburá, cesto de boca estreita onde o pescado é recolhido. Na época, diz, jangadeiro pescava o peixe que queria. Não havia bússola nem GPS, aparelho marcador de distância. “A marcação dos pontos, o caminho e o assento se guardava era na memória. E era como um segredo de família, passado de pai para filho. Quem sabia as boa posição de pescar tinha fartura”, rememora o mestre que pescou tanto em jangada de piúba quanto de madeira, seja em “pescaria de dormida” ou “de ir e vir”. Experiente, ensina mais: os peixes não são os únicos moradores do mar. “Todo pescador sabe que a sereia existe. Eu mesmo já ouvi cantiga dentro do mar, grito, gemido. Na escuridão do oceano, a gente vê muita coisa que não tem explicação: embarcação iluminada, que de repente apaga nas vistas da gente, jangada correndo na nossa frente, e quando dá fé, desaparece. Falo porque vi”, sustenta. Octogenário e aposentado, ganhando um salário-mínimo, João anda por todo o calçadão da avenida Beira-Mar vendendo jangadas em miniatura, réplicas fiéis esculpidas por quem F
ROL
V
32
outubro
aos 18 anos já construía jangada de piúba. “Tá com um ano que vendo esses paquetim. Veja: a de piúba não tem leme, é remo, a de tábua é que é leme. Uso a mesma madeira da embarcação”, aponta, as mãos tremendo. “Tem hora que a mão treme, mas seguro com a outra e saio aguentando. Eu mesmo pinto no final”, emenda. A tremedeira, acredita, é fraqueza, falta do pirão do peixe fresco, só com água e sal. “Pescador é tudo forte por causa do caldo do peixe cozinhado, que a gente bebia de lata. Ali estão todas as forças do peixe”, garante. Nascido e criado no Mucuripe, João, que morava de aluguel com um neto, teve que deixar o bairro. “Era 80 real que tavam pedindo, não deu pra mim”, lamenta, recordando a época em que a Beira Mar era chamada de Rua da Frente e ele foi dono de três casas de palha e seis jangadas de piúba. A saudade do lugar é a mesma do ofício. “Governava jangada, fui mestre de lancha, barco. Pesquei em banco lagosteiro. Às vez era 65 dias no mar, sem tocar em terra. Trazia de dez tonelada. Agora, só se passar 4 ou 5 anos pra trazer sete. Nessa época, a produção do peixe era nossa e ainda ganhava salário. Nunca aprendi a fazer um “o”, mas sustentei nove filho do mar. Tá com quatro ano que não aguentei mais”, diz.
Dramas de além-mar
As brincadeiras tradicionais do Mucuripe, sobretudo aquelas que envolvem embarcações e embarcadiços, desaguam no número 65 da rua Terra e Mar, no Morro Santa Teresinha. Aos 79 anos, Gertrudes Ferreira dos Santos, mãe de 15 filhos, organiza, dança e canta a caninha verde, além de trazer na memória trechos do fandango, drama de origem espanhola que se perdeu no tempo desde que seu guardião no bairro, João do Ouro, faleceu. “Cheguei a dançar com João do Ouro. O fandango é em um navio. Tem a turma de marinheiros, que costura a vela, tem luta de espada, espada vai, espada vem. E general, capitão, gajeiro... Porque dentro da nau tem um rapaz, rico, um mouro, que não é batizado. E ele não quer se batizar. Só no fim que ele se entrega para virar cristão. O padrinho dele é São Francisco. Então acontece uma guerra em alto-mar. E a gente canta: “o mouro morreu/ lancemos ao mar/ o dinheiro dele/ é pra nós gastar”. E é briga aí. Porque um quer dinheiro, o outro também. Tem uma hora que o navio se afunda. E só é salvo por um milagre de Nossa Senhora da Conceição...”, conta, sem outros detalhes. Da caninha verde, a mestre sabe mais. Isso porque viu o marido organizar e brincar por toda a vida o drama. José dos Santos, vulgo Zé Boto, morto em 1981, aos 40 anos, organizava e dançava a brincadeira de origem lusitana desde 1943. “Zé aprendeu com o padrinho, Zeca Três Vez, que aprendeu com Chico Manchico, um amigo dele da Praia de Iracema. Brincava sempre na época do carnaval. E no começo era só home. Este Mucuripe era só areia, dançava nas casa, numa sala mais ou menos ou debaixo da sombra. E ganhava uns trocado. Ele vendia o peixe lá embaixo pra compar os pano. Tinha gosto. Aí, quando morreu, fiquei eu. Na minha mão tá com 63 anos”, destaca Gertrudes. A narração da caninha verde faz referência à Primeira Guerra. É nesse período que um navio encalha em um trecho de praia que hoje Gertrudes diz ser o Cumbuco. “Encaiou lá com seis pescador, uns mortos outros vivos. Quando encostaram na praia vieram vários pescadores, que não entendiam o que os portugueses falavam. Mas foram tarrafear pra trazer o de comer. Esses portugueses que sobreviveram ficaram na mata, no canavial. E lá pegaram a palha da cana para fazer uma calça, da flor da cana fizeram uma blusa amarela e na cabeça um chapéu. Quando a cana tá se aproximando pra fazer aguardente ela fica encarnada, e é a cor do laço que a gente traz. Peço licença pra cantar: “e a minha caninha verde/ e a minha verde caninha/ salpicada de amor/ de amor salpicadinha...”. A brincadeira que também envolve reis e vassalos finda em casamento. Maria Claudina é o nome da noiva. Gertrudes canta, um fiapo de voz à capela, sem o acompanhamento original do violão, cavaquinho, pandeiro e surdo: “entre os belos portugueses/ é tão belo festejar/ nosso rei já vai ao trono, vamos todos festejar”. No quarto da brincante, uma parede inteira é para pendurar os chapéus de palha recobertos de cetim verde e penas. Duas máquinas de costura denunciam: toda a vestimenta dos 30 integrantes da caninha verde sai dali. E muito do acabamento final é feito manualmente, ora pelas mãos da mestre, ora pelas mãos da filha, também brincante, Maria José. Sob orientação de ambas, netos, sobrinhos e até uma bisneta com dois anos de idade dão os primeiros passos no drama. São o verde da cana.
F
ROL
V
outubro
33
F
ROL
V
34
outubro
O fantasma de Morgan
“O jangadeiro é filho de jangadeiro”, escreveu o pesquisador Luís da Câmara Cascudo, no século passado, em seu “Jangada - uma pesquisa etnográfica”, reeditado em 2002 pela Global Editora. Quem tem mais idade confirma a máxima. “Lá em casa todo mundo sabe o que é o mar, até um que era padre pescou. Minha mãe foi pro mar. Meu pai pescou 60 anos, mesmo sem nunca ter aprendido a nadar. A primeira vez que fui pro mar foi dentro de um samburá, amarrado na jangada. Tenho cinco filho homem, tudo ligado à pesca”, orgulha-se Luciano Pereira, 66, hoje carpinteiro naval autônomo, diariamente às voltas com o conserto e manutenção de embarcações à vela no porto de jangadas do Mucuripe. Mas para Sebastião da Silva Ramos, 61, secretário da Colônia de Pescadores Z-8, no Mucuripe, “a classe não está se renovando e isso é uma preocupação”. Aos 33 anos, Francisco José da Silva confirma. E justifica: “Há 20 anos, a pesca era só a gaiola, o manzuá e o anzol, era raro a rede. Hoje é a rede caçoeira que vai até o fundo e arranca todo o alimento do peixe, as plantas. E quando rasga a rede no coral, fica aquele pedaço lá, o peixe preso, apodrecendo. Acaba com tudo lá em baixo. Também é predatória e proibida por lei a pesca com compressor, feita por mergulhador, que se tiver cem peixe alocado ele mata tudim. Passa quatro horas debaixo d’água, pegando todo tipo de peixe, lagosta, tudo. Só são três meses que a natureza pede pra parar, porque o peixe precisa de tempo pra engordar e se reproduzir. Mas ele não respeita isso. Então, ou pesca como nós ou o mar vai deixar de dar à gente. Já acabaram com a lagosta, agora tão acabando com o peixe. Não dá mais gosto. Meu filho botei pra estudar. Não vejo futuro pra ele no mar”. Fundada em 1920, a Z-8 é pioneira no Ceará. Seus quatro mil associados representam a tímida resistência de uma classe que tem um sindicato sob intervenção justamente por faltar quem pague a mensalidade. “O Sindicato trabalha com o pescador formal, aquele que tem carteira assinada por empresa. Mas como o setor pesqueiro faliu, nossos pescadores estão vivendo mais da pesca informal e aí o sindicato se esvazia. A Colônia trabalha com os dois, o pescador formal e o artesanal e é uma entidade sem fins lucrativos, que só recebe recursos do Governo Federal: um seguro-desemprego para o pescador na época do defeso da lagosta, INSS, no caso de doença e a aposentadoria, isso a partir dos 60 anos e se não tiver tido vínculo empregatício. É pouco”, diz Sebastião. Luta também por um direito básico: educação. “Precisamos de uma escola de formação, porque a maioria dos pescadores só sabe escrever o nome, não pôde ir pra escola quando criança devido à pesca”. A licença oficial para pescar lagosta - e não só peixe - também ainda não chegou. Para Sebastião, é o fantasma do americano Morgan que ainda paira pela praia do Mucuripe. “A pesca da lagosta aqui começou em 56, 57. Era só o jangadeiro. A partir dos anos 60 foi quando um americano, por nome de Morgan, se instalou aqui. Era um senhor alto, vermelho, que trouxe uma embarcação de lá com a bandeira americana. A Capitania até prendeu, porque dentro das águas brasileiras tinha que chegar com a bandeira nacional por cima. Mas ele ficou e descobriu a lagosta no Ceará. Enquanto foi vivo, toda exportação passava por ele, que era quem fazia a carta de exportação. Depois chegaram outras empresas lagosteiras. O Ceará já foi o maior exportador de lagosta. Hoje, são quatro ou cinco empresas exportadoras de lagosta, mas a maioria faz porto fora de Fortaleza, em Belém, na Bahia. Então, pouca coisa mudou”, lamenta, irônico. <
F
ROL
V
outubro
35
V
sin l de luz O cineasta Orson Welles,na primeira metade de 1942, viveu no Brasil uma aventura singular. Para os nascidos em um país tão “auto-suficiente” quanto os Estados Unidos, algo fora de suas fronteiras capaz de despertar maior interesse talvez fosse somente a Europa Ocidental. E com Welles, em princípio, isto não foi diferente. Mas, era tempo de guerra e os EUA, estrategicamente, queriam aprofundar suas relações com países do nosso continente. O cinema seria uma porta para estreitar relações geopolíticas e de mercado junto às nações. Atendendo a tal esforço, Welles faria um filme de episódios no México e no Brasil: It´s all true (É tudo verdade), um exemplo de arte pela “política da boa vizinhança” emanada de Washington. O cineasta, que despontara em Hollywood com o filme Cidadão Kane (1941), chegou ao Rio de Janeiro, então capital brasileira, em pleno carnaval. Mas, numa entrevista, décadas depois, diria: “Gostava de samba, mas não me passava pela cabeça visitar ou viver na América do Sul - que é a parte do mundo que menos me interessa.” Tal confissão bem expressa o que nós representamos para aquela “outra” parte do mundo. E isto é frase proferida por um artista progressista. Mas, o fato é que, no Brasil, Welles se envolveu com colaboradores expressivos e suas câmeras focaram a realidade popular, a ponto de trazer incômodos a seus produtores e aos órgãos de censura do ditador Getúlio Vargas. No Rio de Janeiro, Welles rodou uma história sobre carnaval e samba - temas que as elites conservadoras preferiam ignorar ou omitir: favelas, candomblé e negros. No Nordeste e no Ceará, particularmente, o cineasta filmou outro episódio de It´s all True. Com foco nos jangadeiros, ele retratava a miséria dessa gente, ainda que sob a aura da “harmonia selvagem”. Em conversas com amigos brasileiros, Welles imaginava: as favelas eram “monstros” em potencial, que um dia se voltariam contra o estado das coisas. Sem querermos generalizar, uma vez que a criminalidade ultrapassa fronteiras de guetos e de classes sociais, ele estava certo. E não era profecia, mas somente um olhar estrangeiro demonstrando a um incrédulo Vinícius de Morais o óbvio que este parecia não querer enxergar. Mas aquela miséria crônica era cantada em verso e prosa como algo belo e digno (“pois quem vive lá no morro já vive pertinho do céu...”). Entretanto, conhecendo de perto os jangadeiros cearenses,
F
ROL
V
36
outubro
Texto Firmino Holanda
foto drawlio joca
JACARÉ DO MAR E DAS TELAS
o cineasta espantava-se com sua extrema miséria, seus casebres de palha e seu esforço descomunal ao sol, enfrentando diariamente o mar traiçoeiro. Era essa uma realidade também pitoresca e idealizada por poetas brasileiros (“é doce morrer no mar...”, dizia outra canção). Em 1941, quatro pescadores do Ceará Jacaré, Tatá, Manuel Preto e Jerônimo - saíram de Fortaleza, numa jangada, para reivindicar direitos trabalhistas no Rio de Janeiro. Para eles, a poesia da classe média faria mais sentido se rimasse com “pão” e “aposentadoria”. Aquela extraordinária aventura foi noticiada em todo Brasil e chegou às páginas da revista norte-americana “Time”. Lida por Welles, a reportagem o estimulou a criar um roteiro cinematográfico descrevendo o feito. O filme teria os quatro jangadeiros como intérpretes de si mesmos. Quando filmava cenas no Rio de Janeiro, entretanto, o diretor viu Jacaré morrer em acidente no mar. Isto é, desaparecer para sempre. Correram lendárias versões a respeito da tragédia. Uma delas negava o acidente e culpava a polícia política de Vargas, pois Jacaré seria alguém incômodo frente ao sistema ditatorial. A outra interpretação, por sua vez, negava a própria morte do herói. Sustentada por George Fanto, fotógrafo de Welles nesse filme (quando de sua gravação no Mucuripe), dizia que o líder jangadeiro teria sido levado secretamente pelo cineasta para os EUA, após a simulação do acidente. O motivo seria o desejo de fugir de sua pobre vida sem perspectivas. Pelas condições em que ocorreu o acidente, tal versão mostra-se insustentável. Mas, se buscássemos uma fundamentação para o suposto plano de fuga, ela se acharia involuntariamente no artigo de Austregésilo de Athayde, escrito após a tragédia. Vale citarmos tal exortação antipovo (por ser idealista, paternalista e arrogante) assinada por esse intelectual, ao tratar sobre os jangadeiros: “Ficaram embriagados com a fama. Atordoaram-nos os ricos presentes. Voltando ao Ceará, nenhuma graça acharam nos seus trabalhos obscuros. [...] Ficassem todos nas suas casas de palha de carnaúba sem nunca ver as seduções da Babilônia, sem encontrar-se com os cineastas americanos. Ficassem lá longe, como jangadeiros na terra de Iracema. Sem conhecer Orson Welles”. Pouco antes de morrer, Jacaré fizera denúncias graves contra a associação representante dos pescadores do Ceará. Isto foi suficiente para que, em setores locais, ele caísse em desgraça, acusado de ingratidão. Esse momento de ruptura em relação às regras do jogo social lhe custaria caro. Na sua morte, a Federação de Pescadores negou-lhe até um voto de pesar. Mas, com o tempo, o que resistiu foi a imagem do herói do mar. E Jacaré virou nome de rua da orla marítima de Fortaleza, no metro quadrado mais caro da cidade. Enquanto isso, um de seus filhos, vivendo no bairro da praia de Iracema, se via ameaçado de despejo de sua pobre casa pertencente ao INSS. Em suma: o que motivou a luta e aventura daqueles jangadeiros de 1941, bem como de posteriores reides, continua atual: melhores
Uma das últimas fotos de Jacaré, preservada pelo arquivo Nirez
condições de vida, aposentadoria digna etc. Hoje, poucos são os pescadores que, ao menos, vivem à beira-mar. Alguns moram em bairros bem distantes dali. Antes, habitavam seus “pitorescos” casebres de palha, à sombra do coqueiral e, em suas jangadas de piúba, pescavam o peixe que os mais afortunados comprariam na sua volta. Mas esses não se preocupavam em saber quem era o dono (que não ia ao mar) daquela jangada, ou quem era que ficava com a maior parte do pescado. Questões econômicas maculariam tanta poesia praiana. It´s all true, o filme cuja parte dos jangadeiros montou-se postumamente, idealizou essas vidas. Descontextualizadas, ou seja, retirado o foco de Fortaleza, cenário original, as personagens empreenderam sozinhas e espontaneamente sua aventura. Mas a reide de 1941 teve apoio material e logístico da sociedade local, da Marinha, de políticos, padres e comerciantes. No filme, para dar maior impacto à viagem, sem dúvida heróica, foram os pescadores como que retirados de uma redoma, onde viviam em sua nobre condição
primitiva. Depois, iriam eles se deparar com a modernidade carioca. Dramaticamente faz sentido, como se vê nas etapas progressivas da epopéia exposta na tela (onde também não se vê o apoio em cada porto). Mas a deliberada omissão da cidade, espaço de trocas e confrontos, não ajuda a entendermos a vida concreta. Os jangadeiros, assim, não são postos em seu próprio meio, como se dava naturalmente na semi-urbanizada praia de Iracema (de onde, de fato, partiram). O filme inacabado de Orson Welles é de beleza inegável. Contudo, a caminho de tornar-se “cult”, arrisca ser também uma segunda onda a tragar, dessa vez, aspectos históricos da realidade dos que, desde então, pelejam não só no mar, mas também na terra. São os riscos das idealizações, mesmo que bem intencionadas. < >> Firmino Holanda Autor do livro Orson Welles no Ceará (Edições Demócrito Rocha, Fortaleza-CE, 2001) e do documentário O Cidadão Jacaré, vencedor do DOC TV em 2005.
F
ROL
V
outubro
37
F
ROL
V
38
POR DENTRO outubro
Texto Ethel de Paula
DA QU DRA
A
Fotos Celso Oliveira
F
ROL
V
outubro
39
somos a mosca na sopa da burguesia
A Quadra de quem passa sem entrar é uma. À primeira e apressada vista, os olhos não enxergam mais do que o inusitado de um conjunto habitacional popular espremido entre o muro do colégio Santa Cecília, a poluente avenida senador Virgílio Távora, as lombadas da Beni de Carvalho e a asfaltada rua Vicente Leite. Um “descompasso” no coração da Aldeota. Batida outra, imperfeita, que só é dado escutar a quem vem olhar de perto, por dentro. E diga-se de saída: a Quadra tem a coragem da cor, como bem atestaria o escritor Ariano Suassuna. Lá, em total desalinho, muros e varais de roupas imprimem texturas multicoloridas às superfícies de concreto, produzindo um contraste absoluto - e feliz - em relação à vizinhança cinza e opaca dos arranha-céus. São 444 casas de porta e janela invariavelmente entreabertas. Construções que não param de crescer para cima, coladas umas às outras, no estreito de ruas de calçamento e becos sem saída. No início era o chão de terra batida, casas de taipa e papelão. Nada de água encanada, saneamento ou fiação de luz. Os mais antigos calculam: a “invasão” teve início há 50 anos. E só na década de 1980 é que Governo e Igreja uniram forças para assentar os moradores em construções de alvenaria. Desde então, a posse que já lhes era de direito foi oficialmente repassada e o conjunto ganhou nome oficial: São Vicente de Paula. “Na época das obras, ficou todo mundo num alojamento, esperando terminar. Não demorou muito não, mas recebemos só no tijolo, nós que rebocamos e pintamos. O bom é que ficou sendo nosso”, destaca dona Rita de Melo, 68, ex-lavadeira de roupas, hoje pensionista aposentada. Cores e nomes. A Quadra também pode ser tratada no plural: Quadras. “Tanto faz. Quadra é porque aqui, antes, as ruas não tinham nome.
F
ROL
V
40
outubro
Aí, pra facilitar as correspondências, botaram: quadra A, numero tal. E pegou”, justifica, a seu modo, a veterana. E como hoje são inúmeras as escadas em caracol que levam de um nível a outro, ninguém haveria de estranhar se no futuro os moradores cunhassem os termos “Quadra de cima” e “Quadra de baixo”. “Já temos construções com três andares, onde moram, às vezes, dez pessoas dentro, sabe Deus como. É que as famílias vão crescendo e ninguém quer e nem pode pagar aluguel em outro bairro, até porque morar aqui é um privilégio, né? Somos a mosca na sopa da burguesia. A Quadra é o Brooklin de Fortaleza. Aqui temos a sede local da Central Única das Favelas, Cufa; um anexo da Oboé Cultural, onde são ministradas oficinas de arte gratuitas e permanentes para os moradores e a melhor quadrilha junina da cidade, promovida, modéstia à parte, pela associação”, divertese o presidente da associação de moradores, Normando Rodrigues, 35, nascido e criado na Quadra, oito anos consecutivos de gestão. A “melhor quadrilha junina da cidade”, gabase, é o Arraiá das Divas, todo ele concebido e encenado por gays da comunidade e adjacências. Puxador oficial, Normando é um dos criadores da brincadeira, em voga há 14 anos. “Já fui noiva, padre, tudo. No começo era só homem e metade se vestia de mulher. Chamava-se Quadrilha do Avesso. Mas aos poucos os gays foram tomando conta. O que a gente faz é um casamento teatral. Tudo dublado e gravado em estúdio profissional, na sede da Cufa. Fechamos a rua e é um sucesso, 20 dias de apresentação na Quadra e em outras comunidades”, detalha o também proprietário do bar Parada 868, único “point” da juventude da Quadra nos demais dias do ano. Autor do roteiro da quadrilha, Sandiney de Melo Barros, 26, o Sandy, cobriu a festa de mais glamour
e o Brooklin de Fortaleza >>> este ano. A começar pelo tema: As Divas em Hollywood. Em cena, As Panteras, Barbie, Richard Gere, Sandra Bulock, Angelina Jolie. Além de sua diva dileta. “Interpretei a Júlia Roberts, no filme Uma Linda Mulher. Eu mesmo fiz o figurino: peruca, sobretudo, vestido vermelho colado, salto. E bolei uma surpresa para o final: na hora do casamento, a Juliana Roberts, sósia da Júlia, puxa alguém da platéia para se casar com a filha dela. É uma forma de envolver mais a comunidade”, justifica o cabeleireiro que usa piercing e tatuou o signo no braço. Envolver a comunidade é uma preocupação antiga dos homossexuais da Quadra. “Por muitos anos, organizamos a Festa do Ancião. O que era? Shows e desfiles para arrecadar alimentos. Nisso, fomos ganhando respeito e confiança”, garante o profissional que já conquistou clientela “até nos prédios chiques da Aldeota”. O respeito mútuo é tanto que Fernando Amorim, 24, a Sandra Bulock do Arraiá das Divas, também assume a direção do Arraiá dos Matutinhos, a quadrilha infantil das Quadras. “Coloco essa quadrilha sozinho, sem ajuda de ninguém, a não ser das mães que alugam os figurinos. Elas deixam os filhos nas minhas mãos, eu alugo um ônibus e nós percorremos vários bairros. Faço isso porque adoro São João, é o dia do meu aniversário e me realizo duplamente”, bate no peito. Figurinista e coreógrafo oficial das festas comunitárias, entre amigos da Quadra atende pelo apelido de infância: Fusca. “Foi meu pai quem botou. Porque eu era bem gordinho. Mas da Quadra para fora, quando dá sexta-feira à noite, é Fernando”, avisa o também transformista e cozinheiro de forno e fogão que um dia sonha em ser o primeiro estilista saído do conjunto. Consenso: o melhor ator do Arraiá das Divas é Ednilberto da Silva, 21, o Dinil, que esse ano transformou-se em Angelina Jolie. “Só eu tenho os
lábios carnudos dela”, exibe-se, esticando a língua para mostrar o piercing que, acredita, o distingue da maioria. “Pelo menos aqui na Quadra, ninguém beija como eu”, faz piada. Vaidoso confesso, o rapaz de cabelo moicano - outra moda do pedaço - trabalha hoje como auxiliar de escritório na Oboé Financeira. Emprego que praticamente lhe bateu à porta. “Além de oferecer cursos de dança, teatro, artes plásticas, kung-fu e outras modalidades, a Oboé Cultural já empregou muita gente da Quadra. Acho importante ela ter vindo se instalar aqui, porque de outra forma a gente não iria procurar. É que apesar de morar na Aldeota, a maioria aqui não costuma sair da Quadra atrás de diversão ou conhecimento. Não dá pro nosso orçamento”, observa. E porque o orçamento é curto, há ainda quem una o útil ao agradável. Na rua da Felicidade, lado da sombra, a partir de três da tarde, é hora de tentar a sorte. As mulheres “boleiras” chegam aos montes, estirando-se lado-a-lado ou frente-a-frente nas calçadas. Quase não há tempo para conversa. Teresa Alves da Costa, 57, traz as cartelas consigo, distribuindo-as individualmente. As pedras numeradas que saem de um saco plástico são “cantadas” em alto e bom som, até que a primeira jogadora faça o terno, a quadra ou a quina. Assim acontece diariamente, quer chova ou faça sol. O jogo-do-bicho informal e peculiar, que atrai tanto pacatas donas-de-casa em idade avançada quanto moçoilas desempregadas, tornou-se ganha-pão ou complemento orçamentário para muitas das famílias da Quadra. Nove cartões por um real. “O jogo é meu. Sempre gostei de brincar, minha diversão aqui é essa. Boto também Loteria do Sonho, Corujão e dia de domingo é a Cumbuca. Você bota de 1 a 25 pedras na cumbuca, a última que fica é o bicho que dá. Faz tempo que vivo disso. Antes, ao invés da pedra, nós usava os
cereal”, explica dona Teresa, um olho na cartela, outro na caixinha onde o dinheiro vai sendo recolhido. Dinheiro que, assim mesmo, às vezes falta. “Tem vez d´eu sair daqui devendo, mas tem que esperar até a sorte mudar de lado”, aconselha, experiente. Olhos e orelhas em pé não bastam. Para meter o bedelho no jogo das mulheres é preciso ter familiaridade com o linguajar utilizado, fruto de inusitadas associações. “Trinta e um”, ali, é Telemar. Se alguém grita “Cheio de Bala”, entendase 38. “Artigo”, só pode ser 57 e “Orelha de Rato” é o mesmo que 3, enquanto “Pá de Meia” significa marcar 66. Maria Zélia Pereira, 38, confessa: já viciou. “Ficamos até às seis da noite, mas só porque aí fica muito escuro e não dá pra ver as pedras. Também porque é a hora de fazer a janta do marido que volta do trabalho e dos filhos. Venho porque preciso e gosto, melhor do que ficar em casa vendo televisão, gastando energia”, vaticina, econômica, a dona-de-casa profissional. Aos 64 anos, a ex-doméstica Maria da Conceição espia de longe o desfazer da roda de mulheres. Não joga porque não tem dinheiro. Para ela, um real é muito. São 11 bocas dentro de casa e uma só aposentadoria. “É do meu véim. Ele é doente dos nervo”, anuncia. Moradora da Quadra desde 1968, conta que ali “era tudo pregado, ninguém sabia onde começava o quintal de um e terminava o do outro”. Banheiro quase ninguém tinha. “Cavava um buraco, botava uma lata, aí fazia aquele serviço que a gente tem precisão”, lembra. Em sua casa, ainda no tijolo, sem rebocar, muito pouco mudou de lá para cá. “Todo dia saio oito horas da manhã e vou lá no mercantil catar fruta e legume. Nunca gostei de pedir, sempre gostei de batalhar. Sou batalhadora até hoje”, gaba-se, convidando para um café coado na hora. “Vamos entrando, a casa é pobre, mas é nobre”.
F
ROL
V
outubro
41
O SAL DA VIDA
Há seis anos, porque o dinheiro ficou curto, Maria Lúcia Barbosa, 45, foi forçada a interromper a reforma de casa. A Quadra, como um todo, também é um pouco assim, conformação nunca acabada. Mas cada um, a seu modo, reinventa o lar. Lúcia fez do andar térreo, ainda precário, local de trabalho. Todo o vão sem reboco ou divisórias está tomado de sacos e sacos de retalhos que ela vai trançando até que virem almofadas, colchas, cortinas e pesos para porta. Em forma de coração ou com a bandeira do Brasil estampada. “Comecei com cortinado, fui para rede, mas sempre tem uma hora que enfraquece a venda. Aí experimentei o amarradinho e o fuxico, que até agora tão saindo
F
ROL
V
42
outubro
bem por causa da novela da Globo, Malhação. Minha filha me ajuda, mas só à noite, que ela estuda. Eu vou até duas da manhã. Só assim dá pra sonhar em terminar a casa daqui a uns anos. Por enquanto, eu e ela dormimos em cima. Tem que ser devagar. É que só tem eu por nós duas, pelo menos enquanto meu mais velho estiver no quartel”, imagina. Trabalho sem intervalo, televisão no conserto, um gato como única companhia. Lúcia não reclama. Seu lenitivo vem aos domingos, dia de jogo de futebol nas proximidades da Quadra. “Se eu pudesse só vivia dentro dos campos. Adoro!”, surpreende. Ela é torcedora e colaboradora do time São Vicente de Paula, reforçando a equipe responsável pelo atendimento médico. “Minha irmã é enfermeira e meu sobrinho é bombeiro. Eles me ensinaram os primeiros socorros”, credencia. Paixão sem limites. Tanto assim que quase teve a filha no meio de uma pelada de bairro. “Da Quadra são quatro times. E temos craques, viu? Por isso a gente é tão convidado pra jogar em outros bairros”, garante. Mas para pegar os ônibus que levam os tais craques para bairros distantes todos os domingos há de se pagar por isso. E Lúcia dá seu jeito. “Ah, pego uma almofada e um tapete dos meus e boto na rifa. Só não posso é ficar sem essa”, diverte-se. A sobrevivência também vem das mãos de Cristina Ferreira, 30, e seu ajudante, Leo. Cena curiosa numa manhã de trabalho na sala de casa, portas abertas para quem quiser ver: ambos estão vestidos com roupas femininas, ela enrolando e recheando os salgadinhos que há um ano bota na rua para vender, ele botando força sobre o rolo de madeira para preparar a massa. “Precisava de um homem para esse trabalho braçal, mas tinha medo de perder a privacidade. Dei sorte, porque o Leo é um homem que se sente mulher, então nos damos muito bem”, comemora a confeiteira. Leonardo Moraes da Silva é conhecido na Quadra como Gaivota. Nasceu e cresceu assim. “Uso saia desde os 12 anos. E nunca tive problema em arranjar emprego. Ao contrário. Já trabalhei em casa de família, de garçonete e em buffet. Na época da campanha para a prefeitura, me vesti de Luizianne e ganhei muito voto pra ela, viu? Tiramos até foto juntas”, gargalha.
NANICO, TEIMOSO E BEM-QUISTO Do grupo de jovens para a equipe de redação do jornal comunitário. Catarina Érica Morais Lima, 18, atendeu ao chamado da estudante de jornalismo da Universidade Federal do Ceará (UFC), Milena de Castro. Trabalho voluntário na Quadra, extensão da disciplina de Jornalismo Comunitário. “Me interessei de cara porque sempre fui comunicativa. No começo tivemos só oficinas para entender como se faz um jornal. Depois, fomos pensando juntas as pautas e aí começamos a fazer as primeiras matérias. Ainda lembro: foi a coroação de Nossa Senhora, o Racha do Lobisomem, que é um futebol que tem à noite, próximo ao Hospital Militar, e as eleições para a associação de moradores, que tivemos que cobrir, inclusive fazendo o perfil de todos os candidatos. Tudo sugestão nossa”, regozija-se a estudante que se prepara para o vestibular. Opção número um? Jornalismo. Como Érica, Rachel de Sousa, 16; Alexandrina Fernandes, 18, e Meire Araújo, 18, também reforçaram o time de aprendizes de repórter do jornal mensal A Voz da Quadra - nome escolhido pelo grupo, que reúne cinco garotas e três rapazes. Para Rachel, a pauta mais instigante e reveladora em um ano de jornal é também o maior desafio que o grupo enfrenta. “Estamos fazendo o censo da Quadra, isso vai virar uma matéria de fim de ano. Batemos em todas as portas para saber quantas famílias moram em cada uma, em que as pessoas trabalham, quantas são solteiras ou casadas, quem tem filho ou não... É uma pesquisa qualitativa, então perguntamos também sobre religião, grau de instrução e até sexualidade. Tem sido maravilhoso, porque a gente pensava que conhecia a Quadra, mas não conhecia. Quer dizer, não conhecia a fundo. Acho que a gente era muito besta! Não queria se misturar”, ri-se. Os encontros trouxeram boas e más notícias. Alexandrina se chocou com a
quantidade de analfabetos. Meire gostou de saber que a juventude em geral está envolvida em projetos de caráter cultural, na Cufa ou na Oboé Cultural. Rachel surpreendeu-se com a diversidade de mão de obra da Quadra. “Aqui temos pedreiros, pintores, marceneiros, cozinheiras, músicos, costureiras, borracheiros, eletricistas, é muita profissão concentrada num só lugar”, informa. Já Érica passou a se preocupar com o problema da densidade populacional da Quadra. “São 14 pessoas dentro de uma casa dessas, às vezes. É todo mundo amontoado. A gente tem que começar a pensar em como garantir moradias melhores nos pequenos espaços”, opina. Nanico, o Voz da Quadra sai de teimoso. O computador para escrever as matérias é emprestado, a Cufa quebrando o galho sempre que possível. Para xerocar, valem os apoios da Assembléia Legislativa e de quem mais quiser e puder financiar. Distribuição se faz de porta em porta. E, por fim, esforço compensado. “As pessoas gostam muito do jornal, mesmo quem não sabe ler. Porque pede para que um outro da família leia para ele. Nessas andanças, os moradores também sugeriram muitas pautas. Se fazem isso é porque acham que o jornal serve para alguma coisa, né?”, acredita Érica. Jornalismo para quê? “Continuo acreditando que o jornalista tem papel fundamental na transformação da sociedade. A informação é um bem precioso e perigoso. Todos têm direito a ela, está na Constituição. Então, é preciso ter ética e responsabilidade na hora de escrever e senso crítico para ler as notícias. Tentamos desenvolver essas duas faculdades com a galera do jornal”, arremata Milena, anunciando em primeira mão um novo projeto de comunicação para a Quadra, prestes a se viabilizar - a reativação da rádio comunitária.
F
ROL
V
outubro
43
FAVELA POR CONTA PRÓPRIA
A rua da Alegria é também a da juventude organizada. Que tomou para si o desafio de descobrir, legitimar e incentivar o potencial criativo e as demandas sócio-culturais das comunidades periféricas. O tempo não pára na sede da Central Única das Favelas (Cufa-Ceará), entidade sem fins lucrativos que vem atuando na Quadra e fora dela, articulada em âmbito nacional. E se um dia o movimento hip hop foi primeira e única porta-de-entrada para envolver as camadas mais pobres numa rede coletiva cidadã, hoje os representantes da sigla dominam mais e mais códigos. “O hip hop fez a gente se descobrir negro, se indignar com a violência da polícia e com preconceitos de classe e de cor. Ajudou a nos articular, unir forças. Só que ele não precisa mais ser o centro, digo o tripé rap-grafite-break. Passamos a discutir cultura, qualidade de vida, economia, política, gênero, a questão da água... o movimento virou uma coisa viva. Hoje, cantamos rap, que é uma forma de fazer crítica social, mas também queremos montar computador, produzir vídeo, escrever livro, fazer programa de rádio, ser militante social... tudo sem sair da comunidade”, enfatiza Preto Zezé, o líder da Cufa local. Nascido e criado na Quadra, Francisco José Pereira de Lima, 30, passou de lavador de carros e marceneiro a articulador nacional da Cufa, mano de confiança de MV Bill e Celso Athayde, os criadores da entidade que nasceu no Rio de Janeiro, há seis anos, e hoje se espalha por 18 estados, em parte graças à força da base local. Não à toa, Zezé e companhia foram escolhidos por Bill, que já havia feito dois shows na Quadra, para produzir o videoclipe de uma de suas músicas, “O Bagulho é Doido”, rodado na própria comunidade. Paralelamente, a Cufa-Ceará também somou esforços para a difusão do documentário Falcão, os meninos do Tráfico, dirigido por Bill e Celso, e veiculado pela Rede Globo de Televisão há quatro meses.
F
ROL
V
44
outubro
Zezé, nascido e criado na Quadra: “o crime de Estado pra nós tem sido pior do que o crime organizado” Tanto quanto as cenas, a parceria deu o que falar entre militantes sociais. “A relação da Cufa com a mídia é de interesse. A mídia tem os dela, nós temos os nossos. Negociamos durante um ano com a Globo até chegar a um formato. Eles tinham interesse em pegar 36 pontos de audiência e nós em veicular na emissora, porque só lá teria o impacto desejado. Procuramos ter cuidado para não virar caso de polícia ou sensacionalismo. Foram 58 minutos no ar e ainda hoje o Brasil debate o assunto. Depois disso, o presidente Lula teve que ouvir a Cufa em Brasília. E mandou seus ministros apoiarem os projetos e ações que há muito queríamos implantar nas comunidades. Ou seja, significou política, poder, visibilidade e, claro, dinheiro. Mas o importante foi ter falado por nossa conta, não ser coadjuvante da nossa própria história. Não é mais aquele papo de “faz aí um rap falando do meu candidato!”. Há respeito
e falamos de igual para igual”, dispara Zezé, com a moral de quem hoje cursa jornalismo numa universidade particular. Autônoma em si, a Cufa-Ceará faz barulho para além da matriz. Em parceria com o Movimento Cultura de Rua, também liderado por Zezé, deu asas à MCR Fonográfica, gravadora independente em formato de cooperativa, que viabiliza a produção musical alternativa e aposta na formação de novos valores. Pelo selo, já saíram as coletâneas Favela por Conta Própria e A Poesia Negra dos Intelectuais do Povo, além do CD Raízes, do grupo de rap Comunidade da Rima. São crias geradas em um pequeno estúdio de som montado na Quadra com o apoio da Fundação Cepema. Estúdio do qual a comunidade se vale para os mais diversos e prosaicos usos. “Aqui vem da freira que quer mixar músicas religiosas com a batida do rap ao cara que faz voz e violão
em barzinho e precisa ter um mostruário”, resume Cristiano Silva, 29, o Dj Doido. No estúdio de som, Doido é o cara. Nas picapes, idem. Mas foi duro o aprendizado. “Pivete, conheci droga, cheirei esmalte, tomei comprimido e fui de gangue de pichador, os Abandonados do Bairro. Passava o tempo na rua, caía na gandaia mermo. Até que minha mãe, que era cozinheira do Internato São Miguel, a Febemce, começou a me levar pra lá, fiquei interno sem ser, sabe? Aí os caras presos começaram a me aconselhar: “Rapá, por enquanto tu não tá preso, mas se continuar assim vai acabar fudido que nem nós e tal”. Me toquei e fui fazer um curso de eletrônica para trabalhar. Minha mãe tanto fez que acabei no pelotão da polícia. Já pensou? Saí da rua e da droga pra polícia, passei bem três ano de farda azul. Mas aí também fiquei montando som pra banda, fazendo festa e vi que dava pra ganhar mais ali. Larguei a polícia e nessas fui bater no Conjunto Ceará, o point do hip hop em Fortaleza. Lá que eu conheci o Zezé e o MCR. Eles me chamaram para montar o som deles e com um mês tava aprendendo na marra a ser Dj. Não sabia nem mexer num toca-disco. Mas sou sangue no olho e depois de quatro ano de sofrimento aprendi a fazer uns efeito maluco de vinil”, relata, esfuziante. De caminhoneiro e motorista de ônibus a professor-educador de basquete de rua da CufaCeará. Luís Henrique, o Preto Lu, 35, conheceu o rap e a moçada do MCR através do rádio. “Eu dirigia o Grande Circular e sintonizava na Universitária FM, que é onde o Zezé até hoje comanda o programa Se Liga: o Som do Hip Hop, domingo, a partir das seis da noite. O cobrador, que era meu amigo, conhecia ele e foi quem me trouxe até a Quadra”, lembra. Há um ano, o MC topou o desafio de ensinar basquete a crianças e adolescentes na comunidade da Quadra,
Conjunto Ceará e Bom Jardim. “A idéia não é exatamente formar jogadores profissionais, mas desenvolver a capacidade de agir, reagir e interagir dessa galera. E tô vendo a mudança nos pivetes. Antes era todo mundo em cima do muro, jogando pedra um no outro. Ora, eles não tinham ninguém pra conversar, muitos não têm em casa a figura do pai. Então, eles mesmos vêm me chamar, carregam os cones, pegam a bola e, depois que botamos as tabelas novas na quadra, ficam por lá até duas e meia da manhã. Nessa, a Cufa classificou três times para a Liga Brasileira de Basquete de Rua, um campeonato nacional que rola no Rio. Ficamos entre os seis melhores. E isso me anima mais do que qualquer som”, afirma. Em parceria com a Fundação Cepema e MCR, a Cufa-Ceará ainda desenvolve o Fala Favela, programa de comunicação popular que leva oficinas de break, capoeira, Dj, audiovisual, música, grafite e gênero para jovens da periferia. “É mais do que um instrumento de capacitação. A gente discute ética, autogestão, mercado globalizado, meio-ambiente e propõe espaços alternativos de expressão para os movimentos sociais. Mas não foi fácil chegar a isso. Quando a polícia avistava aquela Blazer chegando cheia de negão, equipamento de som e câmera de vídeo parava logo o carro e queria ver a documentação. É uma luta nossa também essa: transformar o estigma da favela em carisma. O rap fez isso em relação à cor. Transformou o negro em uma coisa carismática, mas o preconceito ainda existe”, acredita José Weverton, o W-Man, 30, também do MCR. A Quadra é exceção à regra. Para José Adriano Oliveira, o MC Ligado, 29, o lugar onde mora foi aos poucos migrando da página policial para os cadernos de cultura, cotidiano e política. “Mesmo estando no coração da Aldeota,
antigamente, em matérias de jornais e programas policiais, era a favela da Quadra. A visão externa ainda é um pouco essa, mas melhorou e a mudança tem a ver com a gente, que tenta afirmar outro pensamento aqui dentro e lá fora. O cara precisa assumir as condições em que mora e os valores que tem, não é só calça larga e boné pra trás. A favela tem problema, mas tem uma porrada de coisa boa também. São vários mundos num mundo só, tá ligado?”, defende o eletrotécnico que “pegou o beco” das empresas e montou negócio próprio, depois que o rap lhe abriu a cabeça. De cabeça e peito abertos, eles também vêem por outro ângulo a questão do crime organizado, creditado à favela. “De onde vem a cocaína que é feita em laboratório? Não tem laboratório na favela. Por onde passa, quem vende o éter? E esse volume de dinheiro que o crime organizado movimenta, aonde tá? Em um banco. Aqui não tem quem compre mil conto de pó. E as armas que chegam, americanas, suíças? Aqui não tem fábrica de armas. Se isso chega por um lado oficial, então não se trata de poder paralelo, é uma extensão do poder. Se apertar o Marcola e o Beira Mar vai terminar em Brasília. Tá um campo de guerra? Tá. Mas o crime de Estado pra nós tem sido pior do que o crime organizado. O crime causado pela impunidade da Justiça, pela ausência do posto de saúde, da escola, do espaço de lazer. Isso matou e comprometeu mais o futuro da nossa geração do que qualquer outra coisa”, avisa Zezé. Armada de pensamento crítico e atitude, a Cufa-Ceará fez-se Ponto de Cultura via Ministério da Cultura e já comprou sede nova, na própria Quadra, é claro. A grana para isso veio da bilheteria do último show do Racionais MCs em Fortaleza, produzido pela entidade. Porque mano ajuda mano. Na moral. <
F
ROL
V
outubro
45
Texto Clarisse Furlani
Divulgação/tv globo
A favela é uma planta sertaneja. Na descrição de Euclides da Cunha: “as favelas, anônimas ainda na ciência – ignoradas dos sábios, conhecidas demais dos tabaréus – talvez um futuro gênero cauterium das leguminosas, têm, nas folhas de células alongadas em vilosidades, notáveis aprestos de condensação, absorção e defesa”. A planta batizou o Morro da Favela, em Canudos, Bahia; de lá, o nome veio e se popularizou. Uma vez, Regina Casé - atriz, apresentadora, roteirista - subiu o Morro da Providência, no Rio de Janeiro, para contar esta história. Foi ainda na década de 1990, para o Programa Legal. Mas poderia ter sido na semana passada, no Um Pé de Quê?, programa educativo sobre botânica exibido no Canal Futura. Ou nos globais Minha Periferia e Central da Periferia, exibidos em horário nobre. É que, no trabalho de Regina, “é tudo junto e misturado”: botânica e periferia; educação e comunicação de massa; Vidigal e Leblon; Brasil e África; responsabilidade social e televisão; humor e papo sério. Como a favela, a planta, as favelas brasileiras talvez sejam ignoradas pelos “sábios” - que enterram o pé no acelerador ao passar
Farol - Vamos começar com as perguntas do Preto Zezé, o líder da Cufa em Fortaleza. Ele quer saber como surgiu a idéia do programa e questiona: O programa Central da Periferia representa uma abertura da Rede Globo à produção cultural mais popular ou uma estratégia de ampliar mercados? Regina Casé - Com certeza não, porque esse programa foi todo idealizado por nós e a gente apresentou a eles, como, aliás, todos os projetos que eu já fiz até hoje - a não ser novela, que eu só fiz duas na vida inteira (Cambalacho e As Filhas da Mãe). Qualquer outra coisa que eu fiz foi proposta nossa. Não há um convite ou uma conversa anterior em que a Globo fale: “olha, nós estamos precisando ampliar mercados e tarará...”. Não tem uma conversa assim. A gente é quase compelido a fazer o programa, pelo cotidiano da gente, o que a gente já estava fazendo antes. O programa quase que registra ou formaliza uma coisa que já estava acontecendo informalmente. Por exemplo: os quadros de cidadania que a gente já vinha fazendo no Fantástico. Eram adolescentes, crianças, velhos. Eu não ia só para a periferia, mas sempre ia também para a periferia, porque eu achava que eu não ia falar de adolescente e ficar em Ipanema, no Leblon, porque aquele não é o adolescente absoluto, ao contrário, ali é a minoria absoluta de adolescentes. E sempre percebi, apesar de estar dentro da mídia, e da mídia mais oficial como é a TV
A favela pergunta, F
ROL
V
46
nas rodovias que margeiam as comunidades da periferia. E como se teme aquilo que se desconhece, periferia passa a ser sinônimo de banditismo, violência. Pelo menos nas páginas de jornal, na tela da TV. Com uma experiência de quase três décadas na maior - e mais questionada - das mídias brasileiras, a Rede Globo, Regina Casé mudou o foco da câmera, para mostrar como vive, se emociona e se diverte a maior parte do Brasil, o povo da periferia. Numa parceria duradoura com o antropólogo Hermano Vianna e com o diretor de televisão Guel Arraes, a atriz levou ao ar o Programa Legal, a partir do qual nasceram o Brasil Legal, Brasil Total e outros que acabaram por resultar nos atuais Minha Periferia e Central da Periferia. Se a favela agora está na tela, está também do outro lado: o da audiência. A periferia se reconhece no que vê? De Fortaleza, integrantes da Central Única das Favelas (Cufa-Ceará) põem na berlinda o trabalho da atriz e do antropólogo Hermano Vianna, questionando os interesses comerciais da emissora, a espetacularização da pobreza, o papel da televisão no Brasil. A atriz, que sempre prefere o olho-no-olho, topou responder às perguntas ao vivo e em cores, a repórter fazendo a interface entre ela e os entrevistadores da Cufa-Ceará. O bate-papo exclusivo com a Revista Farol foi em sua produtora, Pindorama, no bairro da Gávea, Zona Sul carioca.
outubro
Globo, que o que era considerado pelos jornais, pelas revistas, pela televisão, como o absoluto, como o todo, não era a realidade. Você abre o caderno de cultura e lá diz: “a última moda agora é levar crianças pra tomar café na livraria; todo mundo agora toma café na livraria”. Todo mundo quem? Primeiro quantas pessoas compram aquele jornal? Depois, daquelas que compram, quantos vão numa livraria, já foram uma vez na vida? E aquilo é sempre colocado como um dado cultural absoluto. Isso sempre me incomodou, sempre achei isso uma patologia social. Não que você não devesse cobrir as artes plásticas, o teatro ou o cinema, mas parece que aquilo dali está acessível e aberto para toda a população. Só que a gente sabe que a maioria avassaladora nunca foi ao teatro, nunca foi ao cinema e vê televisão o dia inteiro. Então, se a televisão é boa ou não, se ver televisão tanto assim é bom ou não, é uma outra discussão. Eu nasci e vivi até hoje num país em que o tamanho que a televisão ocupa na vida das pessoas é gigantesco, mas você vai na livraria e tem estantes e estantes sobre teatro, sobre cinema, filosofia e uns quatro livrinhos sobre televisão, três são a biografia do Daniel Filho... Aquilo ocupa a vida de todas as crianças, jovens, ocupa um espaço enorme, e ninguém pensa sobre isso. E também tem o outro lado... Eu acho que tem duas relações com a televisão, e as duas equivocadas, e eu acho que o nascimento deste programa é para isso. A relação com a televisão é: ou adesão absoluta, que é quem ama, quer trabalhar, o sonho é estar no Big Brother, vai a qualquer programa, vê televisão o dia inteiro, recorta a fotografia do Cauã e cola na parede e tarararará, e o outro lado, que a televisão é o mal do mundo, que é o diabo em pessoa, que as coisas estão como estão por causa da televisão... O problema é que a televisão existe, ocupa papéis que nem eram pra ser dela, é babá, professora, é o cinema, o teatro, a literatura, ela é tudo isso na vida de milhões de brasileiros. E eu acho que melhor do que eu ficar criticando num debate com 50 pessoas, ou num jornal que pouquíssima gente vai ler, falar mal daquilo e não tentar mudar essa realidade, melhor é fazer outra coisa. Então, é melhor o cara nunca ir ao cinema e não ver aquele filme genial que eu fizer ou é melhor
eu tentar trazer pra esse veículo, que todo mundo no Brasil tem acesso e vê, alguma coisa de legal? Eu acho que o programa é quase como que “o rei está nu”, a gente tá há muito tempo circulando entre os dois mundos e vendo como não dá para ignorar a televisão, assim como não dá para ignorar a periferia, a periferia é maioria. E esses lugares “não existem” porque todo mundo tem medo do que não conhece, e se você não conhece nada daquilo, aquilo te mete tanto medo que a coisa que você mais quer é sumir com aquilo, você quer que aquilo de fato não exista. E se você coloca isso dentro da televisão - e daí o Central da Periferia -, se você botar isso na mídia, mesmo que você não botasse da melhor maneira, só em você iluminar aquilo de alguma maneira, por si só já é um grande passo. Depois o telespectador faz o julgamento dele. Farol - Você tem hoje duas linhas de trabalho dentro da televisão, na TV Globo (que exibe os programas Minha Periferia, no Fantástico, e Central da Periferia) e no canal educativo Futura (que exibe o programa Um Pé de Quê). São públicos diferentes, objetivos diferentes. Qual é o papel de cada um? Regina - Acho que está tudo junto e misturado. Acho que o fato de o Pé de Quê? estar na Futura, é só porque a Futura pediu pra gente um programa que eu não tinha interesse de fazer na época, um debate com jovens, tipo Serginho Groisman, eu falei: “ah, esse programa eu não tô com vontade, mas eu tenho há um tempão vontade de fazer um programa assim, acho que ninguém conhece
nenhuma árvore”... E galinha que a gente não sabe o nome vai pra panela! Quando você sabe o nome, e conhece, e sabe o que aquilo representa na tua vida, é a mesma coisa da periferia... Tem um monte de árvore aqui, você olha pra lá e não sabe o que é nada daquilo, é um borrão, você fica míope, você tá olhando pra lá sem óculos. A partir do momento que você reconhece, sabe o nome, você passa a ter outra relação com aquilo. Na favela, o que as pessoas acham que têm? Bandido, que vai me dar medo. Se você sabe que tem a Dona Quininha, Seu Agenor, que tem o José, que tem a Maria, e você vê no meu programa a vida daquelas pessoas, as casas daquelas pessoas, você vê que tá reclamando que enfrenta a violência para ir para o seu trabalho, mas aquela pessoa enfrenta isso toda hora... E o que é mais bonito: sabe por que eu tenho um programa no Futura? Porque eles fizeram uma pesquisa pra ver qual era o programa educativo que as pessoas mais gostavam. E a geral falou que era o Brasil Legal! Era um programa da TV Globo, no horário nobre, e foi considerado em todas as pesquisas como um programa educativo ... E aí a gente foi pro Futura e o que aconteceu? O programa da Futura, o Pé de Quê, passa na Globo, de manhãzinha mas passa, porque a Globo teve interesse, e todos os programas que eu fiz na Globo passaram no Futura. O que mostra que o conteúdo e o formato que eu trabalho na TV aberta poderia estar na TV educativa e o que eu trabalho na TV educativa poderia estar na TV aberta. Foi legal você ter feito essa pergunta pra eu poder falar isso, porque eu acho que o mal no Brasil é a pessoa achar que a educação é o fel, é o gosto ruim, é o difícil, você tem que dar uma colher de mel para tomar o remédio ruim, então você vai enrolar o jovem, a criança, como se ele fosse trouxa, com alguma coisa doce, para ele engolir o que é educação. E eu acho que a educação é o mel. Você ter uma informação nova, você aprender alguma coisa que você não sabe, tem que ser bom, tem que ser prazeroso. Farol - Eu vou retomar as perguntas da Cufa. Preto Lu pergunta: O programa se propõe a dar visibilidade à produção cultural da periferia em sua forma mais autêntica. Mas o programa tem pretensões de forjar mercado para novos produtos derivados dessa produção que é incorporada pela Central da Periferia?
a Regina responde F
ROL
V
outubro
47
não dá para ignorar a perife Regina - A relação com a Globo sempre foi totalmente tranquila. O que eu acho que acontece é o seguinte: se a gente tivesse chegado do nada, um grupo qualquer - a gente não pode mais nem dizer isso da Cufa, porque a Cufa, depois do Bill e do Celso, da relação deles com TV Globo também mudou muito - mas mesmo a Cufa, há um tempo, se chegasse e falasse que quer fazer um programa que é todo gravado na favela, que todos os artistas são de lá da periferia... Não é que a Globo ia ficar com o pé atrás, mas talvez ela falasse: “será que isso é viável?”. Primeiro, dá pra fazer isso? Como é? Você vai entrar na favela? Outra parte seria: “mas alguém quer ver isso?”. A TV Globo é uma concessão, então tem responsabilidade social, e a gente cobra isso. Agora, não é tranquilo chegar lá e dizer “vamos fazer o Central da Periferia. “Ah, vamos!”. Mas também não tem uma coisa maquiavélica, uma estratégia: “estamos precisando desta fatia do mercado”. Isso é uma coisa que vai sendo construída há muitos anos, tanto de um lado como do outro. Eu acho que, se eu chegasse hoje, eu sou de uma ONG X, vou lá e mostro um projeto, não sei se esse projeto ia ser aceito. Agora, a gente faz isso há mais de 30 anos. O primeiro programa que eu fiz do Programa Legal, em 91, foi todo sobre baile funk. Me lembro que eu mostrava para qualquer pessoa que não era da Globo e falavam: “você acha que isso vai passar na Globo? Só tem preto, favelado!”, Isso em 91! E realmente o programa não passou logo de cara, mas a gente fez um outro, eles entenderam o formato... Entenderam, acharam legal, mas talvez tenham achado muito radical, falava de arma, de droga, de tudo, e com humor. Aí a gente gravou um segundo, no mesmo formato. Depois que esses dois passaram e que foi tudo bem é que o terceiro programa, o do funk, que já tava gravado, foi levado ao ar. Quer dizer, demorou dois programas pra Globo ter segurança... E não é só a Globo, o telespectador também rejeita pra caramba. Mesmo o telespectador negro, e da favela, se ele liga a televisão e tá passando uma coisa estranha, que ele não tá acostumado a ver, automaticamente o cara muda. Farol - E como foi a aceitação do público quando você chegou a primeira vez para fazer um programa com uma veia mais bem humorada num baile funk? Teve algum tipo de resistência? Regina - Eu vinha da TV Pirata. A recepção sempre foi muito boa. Você vai construindo um
F
ROL
V
48
outubro
patrimônio, é igual você construir um castelo. Hoje em dia eu tenho um castelo de que eu me orgulho muito, porque não é de um dia para o outro que a pessoa vai abrir a porta para você entrar na casa dela e ter confiança em você, que você não vai sacanear ela, que você vai tratá-la com respeito. Isso demora muito tempo, são 30 anos, tanto dum lado como do outro. Hoje em dia eu até peço ajuda, consulto a Globo, porque eu não tenho interesse em fazer um programa chocante, em que todo mundo da periferia - que já conhece todos aqueles assuntos e que sabe daquilo tudo - vá me achar muito legal, e o pessoal que não conhece rejeite simplesmente e não veja. Tenho que achar um lugar que ao mesmo tempo eu não esteja fazendo uma coisa que não tenha nada a ver, só para agradar o público. Mas isso não é concessão, isso é intencionalidade. Eu podia relaxar e botar só as pessoas daquela comunidade tocando, se eu fizer isso ninguém vai ver o programa, tem que ter algo mais. Mas eu não vou botar como atrativo uma coisa que eu acho caída, só para agradar os outros. Isso é um trabalho constante. Farol - Mais uma do Zezé: “Durante muito tempo as manifestações do povo ficaram silenciadas, pelo mercado e pelo preconceito da classe média. A ponto de a própria classe média, agora, estar reproduzindo em seus espaços as manifestações das comunidades como sendo suas. Quem realmente é centro e periferia?”
do jeito que aparece na mídia, as pessoas têm uma impressão equivocada de quem mora na periferia. Vira um monstro
Regina - Primeiro, não é um critério geográfico. É um critério ideológico. Por exemplo: se você pensa o Brasil todo, dentro do Brasil tem vários centros e várias periferias. Agora, se você pensa o Brasil em relação aos Estados Unidos e à Europa, o Brasil todo é uma periferia. Se você pensa Recife, tem um bairro chiquérrimo, com prédios altos, todo mundo com carro importado e um monte de favela. Agora se você pensa Recife inteira, mesmo com esses prédios altos, caros e esses carros importados, em relação ao Rio de Janeiro e São Paulo, Recife inteira é uma periferia. Então, é um critério político, ideológico, não geográfico. Basta ver que no Rio de Janeiro o Vidigal é do lado do Leblon, que é o metro quadrado mais caro do Brasil, e o Vidigal é periferia. Esse nome também foi difícil pra eu usar, porque sempre falei favela, nunca periferia. Mas tinha que ser uma coisa que todas as pessoas entendessem, porque aqui no Rio a gente fala favela, em Minas fala aglomerado, no Sul fala vila. Lá em Moçambique, tudo eles chamam de subúrbio, só. Eles até já começam a chamar de favela porque vêem na televisão, as cenas aqui do Rio, e morrem de medo! Para você ver: eles são africanos, pretos, favelados, moram numa favela muito mais favela do que qualquer uma daqui, e quando você fala de uma favela do Rio, eles morrem de medo. E perguntam: “como que você teve coragem de ir?” Qualquer espaço da periferia é criminalizado, só que tem aquilo que em inglês se chama “gun culture”, a cultura das armas, da droga, da favela, uma glamourização... Não tô falando que não é perigoso. É, mas o jeito que aparece na mídia faz com que essas pessoas tenham uma impressão equivocada do que é a vida das pessoas que moram na periferia. Vira um monstro. Farol - Dentro deste tema, vou puxar um questionamento do Déo, também da Cufa-Ceará: “Por um lado, o Programa “Central da Periferia” mostra os aspectos positivos de nossas periferias e do nosso povo, mostra um outro ponto de vista. Por outro, acaba celebrando a condição de sermos favelados. Você acha que só existem mesmo dois caminhos para o povo dos subúrbios: o crime ou o estrelato passageiro, ao invés de sermos vistos como agentes de transformação social?” Regina - Claro que não existem só esses dois caminhos. O programa não mostra isso. Eu acho que existem outros caminhos. Aliás, se você escrevesse um “release” do programa, seria bem esse: “quantas soluções criativas ou diferentes a periferia está apontando” ou “quantos
ria. A periferia é maioria >>> fenômenos estão acontecendo na periferia que nunca aconteceram antes, que são novos”. Por exemplo, a popularização do celular, da Internet, agora está lá a lan house atrás da oficina, da farmácia... Isso faz com que um determinado tipo de tecnologia tenha chegado às mãos da periferia, e a gente vê a resposta que a periferia deu a isso: como um estúdio que tem em qualquer favela, como qualquer pessoa poder gravar o seu CD... Isso deu um resultado, uma resposta, uma expressão totalmente nova. Porque antes você podia ter milhões de coisas que queria fazer, músicas que você queria cantar, coisas que você queria dizer, mas tinha que ter alguém que saísse do centro, que fosse lá, que apadrinhasse aquilo, que pescasse aquilo e trouxesse pra uma gravadora, para aquilo acontecer. Eu gostaria que a periferia tivesse mais acesso à tecnologia e mais possibilidades de tudo. Vou fazer um puta parêntese, mas eu faço questão de dizer: tem ONG pra tudo, audiovisual, circo... Mas pra mim, sabe qual seria a primeira coisa que qualquer ONG que fosse pra qualquer periferia devia fazer? Aula de português. Porque se o cara não sabe falar português, não sabe escrever português, ele não sabe apresentar um projeto, ele não consegue narrar o audiovisual, ele não consegue escrever o livro que ele tava querendo escrever sobre aquele lugar. A não ser um expoente, vai ter um Paulo Lins, um Ferrez, mas uma coisa aqui outra lá. Não adianta você fazer inclusão digital, aula de audiovisual, nada disso, se as pessoas não sabem se expressar na sua língua.
Farol - Deixa eu colocar a segunda pergunta do Déo, que está no mesmo tema: “A boa aceitação do programa se deve ao fato de que ele nos joga na eterna condição de “exóticos”, só somos interessantes enquanto somos “exóticos” para a classe dominante? Regina - Não é exótico. Por exemplo, a gente foi agora pra Porto Alegre. Eu fiquei oito dias na Restinga antes de ter o show, para não cair de pára-quedas. Se não, é igual você sair na escola de samba, vai no barracão, pega a fantasia e sai. Mas no programa não é exótico, eu acho que a periferia me conhece há muito tempo, eu conheço a periferia há muito tempo. Acho que nem ela me vê como a Xuxa, nem eu a vejo como exótica. Isso aí tá tranquilo, tá limpo há muito tempo, não é agora fazendo esse programa que a gente vai criar uma encrenca onde não tem; não tem mesmo. Agora que a TV possa ver, ou que as mídias possam ver como exótica, é um perigo. Farol - E existe uma linha de conduta tua e da tua equipe para evitar um formato que favoreça essa visão? Regina - Sim, há um cuidado, e também é o seguinte: eu posso incorrer em milhões de erros,
porque milhões de vezes eu tô numa situação totalmente nova. Por mais que eu já tenha ido a baile, tenha ido na favela, não sei o quê, tem vezes que eu tô fazendo uma matéria sobre a coisa mais legal, mais animada, com um monte de crianças... Isso aconteceu comigo agora em Porto Alegre. Eles estavam contando um negócio engraçado do nome daquela favela, “Maria Degolada”, e eles disseram que era por causa de uma árvore que caiu por cima da mulher. Aí eu perguntei: na época do seu pai, da sua mãe, ainda tinha esse nome? O menino falou “não sei”. E eu falei: “por que você não pergunta, então, pra sua mãe ou pro seu pai? Ele falou: “a minha mãe já morreu”. “E por que não pergunta pro seu pai?”. “Meu pai tá na cadeia”. Aí eu falei: “Mas então você pergunta pro pai dele?”. O outro falou: “meu pai tá na cadeia”. Eu estava conversando, acho que com umas oito crianças, alegríssimas, rindo, elas tinham passado o dia cantando, rindo, me mostrando coisas incríveis... Dos oito, acho que seis dos pais estavam no sistema! E mais adiante, a gente conversando, ele pegou uma cápsula de uma bala, e daqui a pouco pegou outra, e por mais que você não queira... Eu cuido de não entrar nesses assuntos, porque claro, isso é molinho, você entrar na favela para falar que ali tem bandido, que tem traficante, que tem bala perdida... Eu tomo cuidado pra não ir pro lado de criminalizar, porque eu acho que o programa tem uma intenção clara, que é descriminalizar o espaço da periferia. Então, se só aparece um lado, eu tenho que contrabalançar pro outro, eu tenho que procurar o que é que tem ali de afirmativo. Mas mesmo assim, eu não tô procurando, forçando a barra, todo mundo morrendo do meu lado e eu pulando os cadáveres e falando de pagode, não é assim. As próprias pessoas que estão ali querem
outra coisa; eu ia lá no Vidigal, eles falavam: “mas vem cá, por que você não vem aqui pra ver a gente dançando de “Rebelde”, meu irmão tem um grupo de pagode e quer te mostrar, por que não tem um show aqui?”... Então é uma cobrança, as pessoas querem me mostrar o que tem de bom na favela. Mas às vezes eu fico no fio da navalha, porque conversar com oito crianças em que seis dos seus pais estão no sistema, e eu não tocar no assunto, passar batido, ou vai parecer que eu sou uma insensível, ou que eu sou uma alienada, ou que eu estou querendo só o carnaval... Ao mesmo tempo, se eu entrar ali, é um poço sem fundo, e aí a coisa envereda totalmente pro outro lado. Então é muito difícil pra eu entrar um pouco e ficar um determinado tempo naquele assunto, pra mostrar que aquilo existe mas que apesar disso aquelas crianças são alegres, animadas, e que tem o resto da vida delas. Essa medida é muito difícil, eu sofro pra caramba com isso. Às vezes eu fico tão chapada vendo como é que uma pessoa que tem tão pouco, que sofreu tanta injustiça, que é vítima de tanto ódio, tanta discriminação, de tanta falta de oportunidade, ainda assim ela tá conseguindo me mostrar tantas coisas incríveis, coisas que eu nunca vi, ou uma música que é tão legal, a casa dela que é arrumada de um jeito tão legal... Eu sei que às vezes eu devo parecer uma idiota, mas realmente eu não posso fingir que aquilo não tá me impactando, porque é muito impactante. Pode até parecer que eu estou glamourizando, ou que eu tô alienada, mas é meu jeito, eu sou essa pessoa, eu tô fazendo o melhor que posso, não tento esconder isso, entendeu? <
F
ROL
V
outubro
49
V
paisagem human drawlio joca
F
ROL
V
50
outubro