Retrospectiva 2008 Economia

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Retrospectiva 2008 Economia

O ano em que o trem quase parou Bolhas financeiras resultam de uma combinação de euforia, falta de regras, desconhecimento de muitos e esperteza de poucos. Quando estouram, produzem crises doloridas. A atual interrompeu a fase mais veloz de criação de riqueza da humanidade, que já durava seis anos

Giuliano Guandalini

Joshua Lott/ Reuters

A CARA DA CRISE Mulher assina pintura de Richard Fuld, ex-presidente do Lehman Brothers: a maior falência da história

Foi como se um maquinista puxasse repentinamente o freio de uma locomotiva em velocidade máxima. Assim, abruptamente, foi interrompida em 2008 a fase mais veloz de criação de riqueza da humanidade. Foi o fim de um ciclo que alavancou mais de 400 milhões de pessoas da miséria. O maior terremoto financeiro desde o crash de 1929 começou em setembro passado com a quebra do centenário Lehman Brothers. Desde então, outros bancos de investimento de Wall Street foram varridos do mapa ou mudaram de ramo. Outras companhias financeiras que pareciam inabaláveis, como a seguradora AIG e o Citibank, só se salvaram após a intervenção do governo. Assim como as montadoras GM, Ford e Chrysler. A crise corroeu metade do valor de mercado das bolsas no mundo. A taxa de desemprego americana chegou a 6,7%, a maior desde outubro de 1993. Não é a primeira vez que a economia mundial salta diretamente da euforia para a depressão. Crises são freqüentes, resultado da combinação entre ganância, irracionalidade, desconhecimento de muitos, esperteza de poucos. Esta crise, como outras, resultou da falta de segurança nas regras do jogo. A confiança necessária entre emprestadores e tomadores de empréstimo descambou para o descontrole. Dívidas foram travestidas de crédito. Crédito foi dado a quem não podia pagar. Dessa anomalia se formou uma bolha especulativa sem precedentes, a partir do coração financeiro dos Estados Unidos, engrenagem fabulosamente produtiva, com 11 trilhões de dólares de PIB e – torçamos – uma inesgotável capacidade de auto-regeneração. A face desenhada de Richard Fuld (foto), ex-presidente do Lehman Brothers, que quebrou na maior falência da história, tornou-se simbólica. Entre salários, bônus e ações, ele embolsou 485 milhões de dólares até setembro passado. Foi-se a crença nos Fulds de Wall Street. Assim

como na teoria segundo a qual países emergentes como o Brasil, a China, a Índia e a Rússia sairiam imunes de um eventual abalo americano. Da China, onde as importações minguaram 18%, na maior retração desde 1993, à pequenina e fria Islândia, dragada pelos excessos financeiros, todos sofreram.

A arte de ver e não enxergar Até o papa anteviu a crise financeira mais prevista da história. O desafio nunca foi o de apontar a existência de uma bolha, mas o de desinflá-la sem que estourasse

Benedito Sverberi Fotos Piotr Snuss/ Reuters e J. Scott Applewhite/AP

TROVOADA NO HORIZONTE Jean-Claude Trichet, do banco central europeu, e Henry Paulson, secretário do Tesouro americano: o que vocês não estão enxergando agora?

O que parecia ser uma leve infecção transformou-se em um câncer em estágio de metástase. A crise de Wall Street virou crise global. Diante do terremoto financeiro, convencionou-se dizer que o barômetro dos gurus, dos magos e dos profetas não captou os sinais do vendaval iminente. Não é o que mostram os fatos. A atual crise financeira foi a mais prevista da história. Poucos não identificaram seus sinais. Do Fundo Monetário Internacional ao papa. O papa? Sim. Em 1985, o então cardeal Joseph Ratzinger, atual papa Bento XVI, afirmou, em artigo, que "uma economia desregulada entraria em colapso por seus próprios pecados". Há quatro anos o economista Nouriel Roubini vinha prevendo que o sistema financeiro sofreria um abalo. Errou durante três anos. Um dia tinha de estar certo. Era comum aos melhores economistas a constatação de que os sérios desequilíbrios do mundo financeiro em algum momento dariam dor de cabeça. Mas, como é clássico nesses momentos, ninguém tem ao mesmo tempo lucidez e poder suficientes para mandar parar a roda da fortuna – até porque, com o ciclo de prosperidade tirando da miséria 50 000 pessoas por dia em todo o mundo, seria uma temeridade correr o risco de estar errado ao estragar a festa. O período de prosperidade, enquanto existiu, alimentou-se principalmente de um formidável eixo de riqueza de dimensões planetárias, tendo de um lado os Estados Unidos e de outro a China. Como isso funcionava? A China acumulava superávits comerciais cada vez maiores e usava os dólares obtidos para comprar títulos do Tesouro americano. O resultado imediato disso era o aumento da liquidez, ou seja, da oferta de crédito farto e barato na economia americana. Era quase invencível a sensação de que esse dínamo duraria para sempre. Como também é clássico nesses momentos de oferta excessiva de crédito, os bens materiais passaram a atingir nos mercados valores bem acima daquilo que historicamente se pagou por eles. Foi justamente a valorização excessiva e crescente dos imóveis – uma curva ascendente que parecia não perder fôlego nunca – que alimentou toda a crise. Muitos americanos começaram a ver suas casas não como moradias, mas como um caminho para obter empréstimos bancários cada vez mais volumosos. Os bancos, por sua vez, viam nas

casas dos credores garantias mais do que suficientes para conceder mais e mais empréstimos – afinal, os preços dos imóveis só conheciam uma direção: o alto. Tudo funcionaria bem se ninguém duvidasse da premissa de que os imóveis continuariam sempre se valorizando. Mas alguém duvidou e a desconfiança começou a se alastrar. O que parecia um sistema sólido passou pouco a pouco a ter os contornos de uma bolha – e ela estourou sem que se tentasse a sério desinflá-la. Em 2009, o desafio será recolher os cacos e reinventar o sistema financeiro mundial de modo que ele produza mais riqueza com menos riscos.

O retorno dos velhos fantasmas Idéias e personagens da Grande Depressão voltam como carne enlatada

Renata Moraes Fotos Bettmann/ Corbis/ Latinstock e Lucy Oemoni/ AP

À SOMBRA DOS ANOS 30 O crash de 1929 em Wall Street (à esq.) e as latas de Spam: assombrações do passado

John Maynard Keynes. Spam. Intervencionismo. New Deal. Franklin Delano Roosevelt. Até setembro passado, essas palavras e personagens, associados à Grande Depressão americana, eram apenas objeto de curiosidade acadêmica. Não mais. A crise financeira colocou a economia dos anos 30 de volta à mesa de jantar. Literalmente. As vendas do Spam, carne de porco (bastante temperada) lançada em 1937 pelo empresário Jay Hormel, voltaram a crescer. O enlatado (cujo nome comercial é uma abreviação de spiced ham, ou presunto condimentado) foi o prato principal das famílias empobrecidas nos anos 30 e alimentou as tropas americanas na II Guerra Mundial porque era – e continua sendo – a maneira mais barata de ingerir proteína nos Estados Unidos (uma lata de 340 gramas custa 2,40 dólares). Com o longo período de prosperidade das últimas décadas, o Spam havia sumido do cotidiano da classe média (os mais jovens conhecem apenas outro tipo de spam, aquelas mensagens eletrônicas insolentes e indesejáveis). O nome do economista inglês John Maynard Keynes (1883-1946) também voltou, feito carne enlatada, às prateleiras das idéias econômicas. A moda agora é dizer que Keynes, autor da genial Teoria Geral, teria ressuscitado devido ao colapso do sistema financeiro neoliberal imperialista satânico ultragaláctico. Keynes foi o mentor do New Deal, o plano de recuperação da economia criado por Franklin Delano Roosevelt para enfrentar a Grande Depressão. Várias de suas experiências heterodoxas serviram de referência aos grandes pacotes de ajuda anunciados pelos governos no mundo. Mas a crise dos anos 1930 foi algo drástico e improvável, similar a um acidente aeronáutico que só se consegue explicar como resultado de uma série de equívocos e falhas concomitantes. Como sobejamente demonstrado pelos historiadores, as autoridades econômicas cometeram um erro seguido de outro. O resultado foi uma queda de 45% no PIB americano entre 1929 e 1933, e um em cada quatro trabalhadores ficou desempregado. A crise atual é séria, que não reste dúvida, mas o mundo não precisa enfrentar mais monstros do que aqueles que já tem à frente.

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