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CULTURA
PERFIL
Trabalhos e paixões de Miguel O jornalista frontal cedeu lugar ao contador de histórias pressentido, e o resultado é um best-seller. Depois do deserto, do Algarve, do futebol, o que faz correr M.S.T.? tador de histórias, tal como a minha avó [a poetisa Sophia de Mello Breyner]», recorda Pedro Sousa Tavares, 28 anos, screvi como um exercício de lijornalista do 24 Horas. «Eu e a minha berdade. Não escrevi por dinheiirmã Rita ficávamos fascinados com os ro, nem para ser um best-seller relatos dele, histórias verdadeiras mas ou para acrescentar 'romancista' com um toque pessoal. Em viagem, ele é ao meu cartão-de-visita. Escrevi porque nitidamente feliz», acredita o filho mais me apeteceu contar uma história», diz velho de Miguel. A aura de homem teMiguel Sousa Tavares sobre o seu primerário, coberto de pó, assenta-lhe bem. meiro romance. Mas Equador, 527 págiDepois, a caneta cumpre a missão de nas editadas pela Oficina do Livro, geresgatar a aventura. A introdução do seu rou todos esses efeitos secundários. A livro de viagens, Sul (Relógio d'Água), é história passada em São Tomé e Príncio testemunho de «alguém que, como pe de há cem anos, tendo como pano de nos sonhos de infância, teve a sorte de fundo a escravatura, a economia das ropartir tantas vezes com ças e o poderio colonial, pouco mais que um saco ocupa os tops de vendas de viagem e uma máquide livros há dois meses, na de filmar ou fotogratendo vendido já cerca de far». O Mediterrâneo, os 40 mil exemplares. Uma lugares intocados, o dequarta edição de mais dez serto que descobre, pela mil sairá em Setembro. O primeira vez, ao fazer a autor nem se surpreende reportagem Sahara, a Remuito com estes números, pública da Areia (publiseguro da fidelidade de 40 cada em livro), sobre a ou 50 mil leitores, contas Frente Polisário durante suas, cativados ao longo um Agosto implacável, de anos de escrita nas reilustram bem a estrofe fivistas Grande Reportagem nal do poema Deriva, ese Máxima ou no jornal crito por sua mãe, SopPúblico. hia: «As ordens que levaMas tanto as crónicas va não cumpri/E assim em que expunha um senti- ■ O ROMANCE ESPERADO contando tudo quanto mentalismo surpreendente Equador foi a grande como as outras em que sensação da Feira do Livro vi/Não sei se tudo errei ou descobri.» zurzia o País foram interNa casa de Lisboa, aberta à proximirompidas para deixar a musa literária dade do rio, não se vislumbram os livros operar, finalmente, o seu charme. O croque já escreveu. A lembrar: as compilanista só manteve a página Nortada que ções de artigos políticos Um Nómada assina, agora às terças-feiras, no jornal no Oásis e Anos Perdidos, o conto indesportivo A Bola. «Estive um ano e fantil O Segredo do Rio (ambos da Remeio a ler o que os outros escreviam e a lógio d'Água) escrito para o filho mais engolir as minhas opiniões, eu que estanovo, Martim, hoje com 11 anos, e tamva habituado a vomitá-las para o jornal. bém a recente reunião de crónicas em E acho que isso me fez muitíssimo Não Te Deixarei Morrer, David Crockett bem», afirma Miguel. (ambos editados pela Oficina do Livro). «Sempre soube que o meu pai iria esPedro Patrocínio, administrador da crever. Ele foi sempre um excelente conSÍLVIA SOUTO CUNHA*
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LUÍS VASCONCELOS
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Lisgráfica, amigo de anos, descreve-o: «Gosta do regresso aos basics, o ficar a beber chá de menta e a conversar, o olhar para as estrelas e tocar viola. É uma pessoa simples. Gosta de falar de futebol e de amores, de andar de jeep e descobrir um restaurante perdido, de ir a uma cervejaria com dois ou três amigos.» Mas os amigos são bastantes mais e conhecem o caminho para esse deserto mais doméstico que é o monte alentejano de M.S.T., a 3 km de Pavia. Um espaço onde nada foi deixado ao acaso, descrevem visitantes regulares, impressionados pelos tectos abobadados em tijolinho, os pátios andaluzes e mesas de Marráquexe, as cubas de Borba – de cujos antiquários Miguel é visita regular – e os barros ou xistos de Barrancos. As grandes mesas, sejam de jantar ou de jogos, estão sempre abertas e os campeoVISÃO 31 de Julho de 2003
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NATACHA MELO
■ MOMENTOS DECISIVOS Miguel em pose de director no seu gabinete da Grande Reportagem; com a actual mulher, Cristina Avides Moreira; ao lado do filho mais novo, Martim; e com José Barata Feyo, companheiro de informação da RTP, em 1984
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Tertúlias e jantaradas Aquilo que todos sabem sobre Miguel Sousa Tavares é o desfiar de uma carreira jornalística marcada pela vontade de dizer sempre o que pensa. Formado em Direito, fez o estágio ao mesmo tempo que escrevia as primeiras peças jornalísticas na secção internacional do jornal A Luta, onde protagoniza um acidente feliz: a queda de um ponto de interroga-
ção no título de um texto revela-se premonitória: Timor, Véspera da Invasão. Um ano depois, M.S.T. viu-se como assessor jurídico do Ministério da Educação. Mas o jornalismo vence e segue-se uma década de trabalho na RTP, vários prémios e uma despedida amarga. A SIC será o seu novo palco, onde faz programas de grande informação comoTerça à Noite, Crossfire, Viva a Liberdade, A Hora da Verdade. Segue-se novo intervalo até o jornalista chegar à TVI com o programa Em Legítima Defesa, ao lado de Paula Teixeira da Cruz. Na imprensa, foi director da Grande Reportagem, de 1989 até 2000, as crónicas na revista Máxima estenderam-se por oito anos e a sua opinião no Público tornouse numa presença familiar. E, então, fez silêncio para escrever. Quem conhecia as intenções de Miguel eram os amigos, muitos incluídos na dúzia de participantes das famosas tertúlias, jantares organizados com temas para debate, ferozmente interditos a estranhos. «Eram pessoas em alturas parecidas da vida, em processo de divórcio, que se encontravam e conversavam sobre os mesmos temas», descreve Pedro Patrocínio. Miguel estava então a separar-se da segunda mulher, Laurinda Alves, jornalista e actual directora da revista Xis. «Acabava sempre por haver
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natos de bilhar acontecem, apesar do proprietário ser, contam várias vozes, «hipercompetitivo e detestar perder». Os amigos elogiam-lhe o espírito de descoberta, a timidez disfarçada. «Adora um sítio onde se coma um bom peixe e ficar na praia a pastar», diz um. «Ele tem um prazer de viver, algo que não passa na televisão, onde tem uma imagem arrogante, fechada», acrescenta outro. «Tem imenso sentido de humor. É capaz de contar a anedota mais básica com o prazer de um miúdo de cinco anos.» E conta bem? «Não é um dos contadores de anedotas mais dotados, mas diverte-se.» Os dotes culinários compensam. «Faz uma magnífica sopa de peixe…», conta Pedro Patrocínio. Mas Miguel já perdeu as ilusões: «Eu era um bom cozinheiro até me ter casado agora [pela terceira vez] e descobrir que
a minha mulher é uma cozinheira 40 vezes melhor do que eu. Pessoas do Norte são outra coisa!» As mesmas vozes falam de dois Miguéis, noção partilhada pelo próprio Sousa Tavares. «As pessoas pensam que tenho muitas contradições: 'se o tipo pensa isto, não devia pensar aquilo'. Tenho a infelicidade de ser figura pública, o que significa que 99% das pessoas têm à partida um juízo sobre mim que não se funda em coisa nenhuma. Mas habituei-me a conviver com isso, já que existem dois Miguéis Sousa Tavares – um que eu e os meus próximos conhecem, e o outro que é uma espécie de coisa pública.» As diferenças? «São imensas. Até homossexual já disseram que eu era. Não é que eu seja homofóbico, de maneira nenhuma, mas quem me conhece sabe que é uma coisa tão impossível de acontecer que chega a ser patético.»
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■ OS VÁRIOS MIGUÉIS Presente na cerimónia de homenagem feita à sua mãe, Sophia de Mello Breyner, em Abril de 2002; numa festa da Central Models; recebendo um Sete de Ouro 1989 das mãos de Herman José; nos estúdios do programa Face a Face, em 1987, entrevistando Belmiro de Azevedo
temas sobre sexo e relacionamento entre homens e mulheres. Tudo muito indisciplinado, mas divertido. O Miguel tinha opiniões que dificilmente poderia explanar em público. É conhecido por ser frontal. É uma das pessoas mais independentes que conheço. Muitos perguntam-me a posição política dele, eu não sei. Ele não é seguidista de nenhum grupo», acrescenta. O cantor Rui Veloso, também presente nas tertúlias, não está com rodeios. «Tem mau feitio como eu!» Livre-se alguém de o acompanhar a ver um jogo de futebol! Portista ferrenho, «não concebe que alguém veja um jogo do Futebol Clube do Porto sem estar calado e quieto». Veloso aponta-lhe igualmente uma necessidade «quase física» das suas horas solitárias e uma «ponta de arrogância que só lhe fica bem», remédio certo para afastar incautos. «Desperta muita curiosidade feminina. É a história da vida dele, não há mulher nenhuma que não tenha curiosidade em conhecer o animal. É um sedutor nato, só não canta», acrescenta. A inveja que provoca em muitos homens começa logo por aí, é a mensagem implícita. Rui Veloso, que está de férias no Brasil acompanhado por um exemplar de Equador, acredita que a personagem principal acaba por ser um pouco autobiográfica, «pela independência, frontalidade, linhagem, irreverência, modernidade, fogosidade e atracção que causa nas mulheres». O poder das audiências «O Miguel é sensível à presença de um auditório, é diferente ter-se uma conversa com ele a dois», refere o jornalista José Barata Feyo. Juntos, assinaram uma célebre comunicação crítica sobre a profissão no 1.º Congresso de Jornalistas, realizado em 1982. Na altura, o jornal O Diabo, de Vera Lagoa, apelidou-os de «meninos pidescos». E nas reviravoltas do processo que impediria Barata Feyo de entrar durante 19 meses nas instalações da 5 de Outubro, este não esqueceu a solidariedade do amigo. Caçador, filho e neto de caçadores, Barata Feyo diz-se um dos
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TRABALHOS E PAIXÕES DE MIGUEL
responsáveis por essa nova paixão de Miguel Sousa Tavares. Há 20 anos, compraram uma pressão de ar a meias. Hoje, são parceiros regulares de caçadas. Miguel Sousa Tavares defende a caça com a mesma convicção com que sempre defendeu as suas causas públicas de estimação, nomeadamente o ordenamento do território e ambiente, a reabilitação da noção de justiça e de mérito. «As pessoas da cidade e as pessoas do campo nunca estiveram tão afastadas como estão hoje. Temos basicamente uma cultura urbana, em que, inclusive, as pessoas do campo só tem o desejo de vir para Lisboa. Preferem o centro aos grandes espaços e aos grandes silêncios, que a mim me fascinam e a eles os satura. A caça ajudou-me a descobrir muito em relação à natureza: ensinou-me não só a reconhecer os animais como a compreender o próprio ciclo da natureza.» E acrescenta: «Os verdadeiramente apaixonados pela natureza e que sabem tudo, são caçadores. São capazes de dizer os nomes de todas as plantas e árvores, o estado das culturas, se amanhã há chuva ou sol, identificar os pássaros pelo canto», maravilha-se. «E, depois, há o prazer do tiro em si, e de acertar. O prazer de matar um bicho, esse, não existe nunca», declara.
A natureza. Este é agora o seu credo. São gostos de um urbano mal assumido, que recorda os tempos felizes em que, com 6 anos, viveu no campo. Numa quinta perto de Amarante, pertencente a uma das sobrinhas do Teixeira de Pascoaes, sua madrinha. «O meu lanche era um bocado de broa e cebola com sal. Ainda hoje sou a única pessoa que come cebola crua com sal! É completamente indigesto, mas nunca mais me passou esse gosto», conta. Uma vida útil O orgulho nos pais, Sophia e o militante Francisco Sousa Tavares, a recordação dos almoços de domingo, em família, na Graça, acompanhados de acesos debates, ou os Agostos passados em Lagos, quando o Algarve era o mar inteiro, um paraíso perdido que não se cansa de defender, são-lhe essenciais. Os filhos prestam-lhe igual admiração. Rita foi recentemente conduzida ao altar, pelo braço do pai, e prepara-se para o tornar avô. Uma nova experiência que o encontra ao lado da terceira mulher, a empresária nortenha Cristina Avides Moreira, com quem casou recentemente numa quinta pertencente à família da noiva, na zona de Cete. José Megre, que se orgulha de ter VISÃO 31 de Julho de 2003
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GONÇALO ROSA DA SILVA
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CULTURA
■ NO DESERTO Em 1997, com o amigo Pedro Villas-Boas
countdown. A vida são ciclos.» «Considero-me um contador de histórias. Pode ser um conto infantil, uma reportagem escrita ou de televisão, uma crónica, um romance de 500 páginas, no limite. Mas romancista é, para mim, uma palavra muito forte. Significa alguém capaz de criar algo do nada. Eu não sou capaz, passo o testemunho, conto uma história», afirma. Em cima da mesa da sala, em sua casa, repousa uma edição especial da Geo sobre Corto Maltese, o seu eterno herói. E se Miguel Sousa Tavares não cumpriu ajudado Miguel a conhecer melhor o deserto, depois de 16 anos a participar em várias expedições do Clube Aventura e edições do Transportugal, diz que M.S.T. se tornou «num condutor bastante aceitável do todo-o-terreno, credenciado e desenrascado». Extremamente exigente com os seus navegadores, Megre conta que a actual mulher de Miguel já o acompanhou nessas funções em algumas destas competições e «aguentou muito bem o stress de ele estar a apertar com ela». As paixões, ainda e sempre. Equador é um romance histórico, mas é também uma grande história de amor. «Acho, desde há muito, que o motor da história é o amor, não é a luta de classes. O Marx enganou-se, esqueceu-se desse pormenor da natureza humana. O que move as pessoas, finalmente, são as relações amorosas», diz Miguel. Da escrita como vida Paula Teixeira da Cruz define-o como «um existencialista, alguém que não se conforma com as limitações da existência». Pelo seu lado, Miguel Sousa Tavares diz, serenamente: «Fiz 52 anos há umas semanas. Acho que a última vez em que as coisas querem dizer algo de especial é aos 45 anos, talvez. Estou no VISÃO 31 de Julho de 2003
completamente um destino de herói solitário e irónico, conseguiu um ponto em comum com a personagem de Hugo Pratt: «Acho que sou um homem livre. Uma coisa pela qual lutei toda a minha vida para ser. Uma herança que devo, em linha recta, aos meus pais. Tento ser intransigentemente coerente nisso: ser um homem que faz aquilo que entende estar certo, o que lhe apetece e de que gosta, e o que acha que é útil. Pode ser bom ou mau, pode estar certo ou errado, mas é aquilo em que acredito.» ■ *COM JOANA LOUREIRO