Jose_carvalho. A Primeira Insurreição Acreana

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José Car valho 

A Pr imeir a Insur r eição Acr eana  (Documentada) 

Mereça esta narração absoluto despreso dos meus  concidadãos,  si  ella  não  for  a  expressão  da  mais  restricta verdade. 

PARÁ – BELÉM  TYP. DE GILLET & COMP.  ­ 1904 ­

Á  MEMORIA  DE 

Atto Pessoa  José Martins  Henrique de Pontes barroso  José Nunes de Mello e  Olyntho Meira 

heroicos  e mallogrados companheiros na primeira insureição do Acre 

OFFERECE 

José Carvalho

Devido  a  um  pequeno  empastellamento  na  impressão,  apparece,  no  fim  do  primeiro período deste trabalho venatura de Galvez, em logar de aventura de Galvez.  Há pequenos outros descuidos de revisão.  ______________________________ 

O  autor  pede  á  imprensa  e  a  quem  quer  que,  por  ventura,  se  occupe  de  seu  trabalho, o obsequio de  lhe  dirigir  um  numero do  jornal  respectivo  á Livraria  Loyola,  rua Santo Antonio n. S., nesta capital.

Em toda a velha e larga discussão sobre o Acre, e, recentemente, sobre o definitivo  tratado chamado de Petrópolis, ninguém aludiu á primeira insurreição acreana, e todos,  inclusive  os  congressistas  que  della  trataram,  deram­n’a  partindo  da  infeliz  e  vergonhosa venatura de Galvez.  Não admira isto; é uma cousa naturalíssima, neste paiz, a ignorância absoluta das  nossas cousas. Ninguém, por exemplo, saberia da existência do Acre, das suas riquezas  naturaes, dos seus habitantes e da monstruosa violação ao nosso direito, si o Acre não se  tivesse  levantado,  fazendo­se  conhecer  e  reagindo  com  uma  coragem  e  com  uma  constancia tal, apezar de infinitos dissabores, que o seu exemplo deve ficar perpetuado  como  um  padrão  de  gloria  nacional  e  como  uma  consoladora  esperança,  sinão  como  robusta prova dos grandes destinos futuros de nossa raça.  Será  também  uma  cousa  natural,  e  desde  já  prevista,  que  este  opúsculo  caia  no  marasmo  da  indefferencia  pública;  não  importa!  cumpro,  escrevendo­o,  um  dever  de  consciência,  não  deixando  em  olvido  eterno  o  primeiro  grito,  o  primeiro  protesto,  a  primeira  repulsa  contra  a  invasão  indébita,  extemporanea,  criminosa,  do  estrangeiro  sequioso nos sagrados domínios de nossa pátria.  E que, também, seja a primeira página desta narrativa desvaidosa, mas verdadeira,  a  humilde  lápide  onde  para  sempre,  perdurem  os  nomes  dos  pobres  companheiros  extinctos,  tão  cheios,  que  foram,  de  enthusiasmo  e  de  fé,  e  que,  entre  milhares  de  patrícios, dormem nos barrancos do Purus e do Acre, o eterno sono da Morte. Não quis  a fortuna que vissem elles o fim da obra começada e nem que tivessem a dita de saber  que  os  seus  patrióticos  sentimentos  foram,  depois,  os  mesmos  que  abalaram  a  alma  nacional no curso e no trato da desventurosa questão.  I  No  Amazonas  o  chefe  do  Município  –  o  Superintendente  –  não  é,  como  nos  demais Estados, eleito – é nomeado; e, portanto, dimittido a bél prazer do governador. É  esta  uma  das  muitas  bellezas  deste  paiz,  onde  cumprem  as  disposições  acertadas  da  mesma.  No  fim  do  anno  de  1898  para  começo  de  99  foi  nomeado  Superintendente  de  Floriano  Peixoto,  (antigo  Antimary)  Francisco  Monteiro  de  Souza  Junior,  hoje,  infelizmente,  fallecido,  moço de  nobres qualidades  de  coração  e de caracter  e que  em  todo o rio Acre dispunha de largas sympathias.  A comarca de Floriano Peixoto que se constituia de todo o rio, desde a foz até as  últimas  explorações,  foi  creada  já  depois  da  República  e  tinha  como  sede  a  villa  de  Antimary, a qual no alludido anno, foi transferida para um planalto á margem esquerda  do Purus, em frente a embocadura do Acre.  Sendo o Município o mais rico do Amazonas, era, no entanto, o mais pobre. Não  possuía  uma  casa  para  a  Intendência,  não  tinha  cadeia  e  era  tal  a  desordem  que  nem  mesmo  havia  um  foro  mais  ou  menos  organisado;  não  havia  cartório  ou  archivo  de  livros  e  documentos  pertencentes  as  duas  administrações  judiciária  e  municipal,  reinando em tudo um absoluto chão. Nunca se reunira o Jury e os criminosos, ou eram  despronunciados  (os  que  tinham  dinheiro)  ou  ficavam  na  rua  augmentando  o  número  dos vagabundos.  A  grande  receita  do  Município,  orçada  sempre  em  600  contos  de  réis  annuaes,  desapparecia  como  por  encanto,  sem  que  no  logar  ficasse  realisad  omenor  melhoramento.  A  nomeação  do  coronel  Francisco  Monteiro,  feita  muito  contragosto  do  celebre  secretario  da  fazenda,  no  governo  Ramalho,  e  devida  exclusivamente  á  passageíra

influencia de um seu amígo na capital (as influências políticas no Amazonas são cousa  mais  bizarra  e  constante  do  mundo)  foi  muito  bem  acceita  no  Acre  e  em  todos  os  espíritos despertou a esperança de uma nova era de moralidade na gerência do público  serviço.  Esta explicação é necessária, por se ver, no fim desta narração, o resultado dessas  esperanças,  ou  antes,  dos  acontecimentos,  aliaz  coherentes  com  todos  os  actos  dos  governos daquelle infeliz Estado.  Não havia  ainda decorrido tres dias, depois da chegada do povo Superintendente  (o  qual,  no  mesmo  vapor  em  que  fora,  subira  o  alto  Acre  a  tratar  de  negócios  commerciaes) quando pelas 7 horas da noite, na nova séde do Município, á margem do  Purus,  ouvimos  apitar  um  vapor.  A  chegada  de  um  vapor,  em  qualquer  dos  rios  do  interior da Amazonia, é sempre um grande acontecimento, pondo em alvoroto a alma de  toda  a  população  ribeirinha.  São,  para  os  commerciantes,  as  novas  mercadorias  que  chegam; são, para todos, as noticias do resto do mundo: os jornaes, as correspondencias  comerciaes  e  particulares,  ­  cartas,  a  mais  das  vezes,  da  familia  ausente  em  remotos  pontos do paiz, e que vão cheias de saudosas lembranças e de amargos sobressaltos pela  saude e pela saude e pela vida dos que para lá se foram. Todo esse mundo de sensações  desencontradas e intensas desperta n’alma dos emigrados o apitar de um vapor.  A’quella  hora,  todos  nós  –  que  habitávamos  um  departamento  do  barracão  que  servia  de  prédio  á  Intendencia  –  estávamos  resguardados  nos  mosquiteiros,  fugindo  á  onda bravia dos carapanans que a ninguem permitte, á noite, ficar em liberdade.  A  chegada  daquelle  vapor  era,  em  verdade,  para  causar  surpreza,  porque  pelas  ultimas  noticias,  nenhum  vapor havia para subir, e tão cedo chegar áquellas paragens.  Era,  pois,  aquella    viagem  extemporanea  e  portadora,  talvez,  de  alguma  nova  não  commum. Essa curiosidade fez­nos levantar a todos, e, arrostando a guerra sem treguas  dos carapanans, corremos para o porto que ficava perto,  Era  em  Janeiro,  e  o  Purus  enchia  aos  pulos,  numa  carreira  vertiginosa  de  águas  barrentas,  galgando  os  barrancos,  ameaçando  alagar  as  mattas  e  fazer  transbordar  os  lagos e  igapós. O vapor, mais de uma vez tentou se  approximar do porto, assignalado  pela  luz  de  um  lampeão  suspenso  no  barranco,  e  mais  de  uma  vez  teve  de  recuar  desgovernando e ganhando a margem opposta, impellido pela força da correnteza.  Essa tentativa improficua repetiu­se algumas vezes até que, vendo o commandante  ser impossivel  fazer ali a atracação, aprumou no meio do rio o vapor e seguiu avante,  indo lançar ferro mais acima, numa curva mansa da torrente.  A  bordo  havia  um  grande  alarido  como  de  pessoas  em  festa  e  feito  numa  linguagem  que  a  todos  pareceu  estranha,  incomprehensivel,  mysteriosa.  Quando,  nas  tentativas de atracação mais se aproximava o vapor mais intensa se tornava a algazarra  de  bordo,  a  ponto  de  ouvirmos  vivas  a  ....  e  seguia­se  um  nome  que  não  podíamos  apanhar distinctamente em todas as suas syllabas. Um dos nossos disse com espirito:  ­ Que diabo! aquillo é um vapor carregado de papagaios!  Eram os bolivianos que davam vivas à Bolivia e que iam tomar conta do Acre!  Era,  tambem,  a  primeira  vez  que  na  margem  daquelles  rios  se  ouvia  falar  por  tantas  pessoas  juntas  uma  lingua  que  não  era  a  nossa.  Soubemol­o  poucos  minutos  depois,  quando  de  bordo  voltou  um  nosso  emissário  affirmando  ter  falado  com  um  ministro boliviano – o Sr. José Paravicini, que lhe dissera ir estabelecer uma alfandega  ou  aduana   em  Caquetá,  e  tomar  conta,  em  nome  da  Bolivia,  do  resto  do  territorio  acreano.  A  nossa  surpreza  foi  indiscreptivel  porque,  conhecendo,  como  conhecíamos,  todo  o  Acre,  sabíamos  que  um  pequeno  trecho  de  rio  restava  ao  Brazil,  tão  insignificante território que não podia constituir nem municipio, nem comarca.  ­ Trouxe, communicação, o ministro? Perguntamos.

­ Limitou­se, respondeu o que viera de bordo, a perguntar pelo Superintendente e  como lhe dissesse que havia subido o Acre, resolveu, de accôrdo com o commandante –  o Falcão – que me disse  vir do Pará commandando o vapor alli  fretado pela comissão  boliviana, suspender ferro e seguir viagem.  De facto, no mesmo momento, o vapor apitava o signal de partida, levantava ferro,  e seguia, dobrando adeante á esquerda, internando­se no Acre e desapparecendo.  A  noite  toda,  passamos,  numa  inquietação  indisivel  de  espirito,  perdidos  num  labyrintho de cogitaçoes. Para mim, ­ confesso francamente – aquela tomada imprevista  do  Acre  era um  assalto  arroiado de  aventureiros  que poderiam,  em poucos dias, fazer  uma fortuna numa grossa expoliação da borracha.  A essa conjectura, oppunha­se outra de um companheiro: era que aquelles homens  não  vinham  disfarçados,  haviam,  no  Pará,  fretado  um  vapor  a  uma  Companhia,  que,  embora estrangeira, tinha responsabilidades perante o paiz; o commandante do mesmo  vapor era um brazileiro e haviam passado pelos dois Estados sem embargo nenhum.  ­ Sim! replicava (porque nunca me passou pela idéia que o governo de meu paiz  fosse capaz de semalhante attentado) podia muito bem o troço de bolivianos, no Pará,  disfarçar­se em commerciantes, fretar um vapor, e nada ter o governo que ver com isso!  Era  uma  aventura  arrojadissima,  bem  o  sabia,  mas  que  estava  dentro  de  esphera  do  possível.  Poucos  dias,  depois,  espalhou­se  por  todo  o  rio  a  nova  do  estabeleccimento  do  governo boliviano em Caquetá, num planalto á margem esquerda do Acre, a que deram  o nome de Puerto Alonso.  A indignação de todos os brazileiros foi espantosa e profunda.  O Superintendente Monteiro, achava­se incidentemente em Caquetá e ao receber a  noticia  do  apossamento  boliviano,  immediatamente  officiou  ao  ministro  Paravicini  perguntando­lhe, cortezmente, em virtude de ordem se apossava daquelle territorio. Não  tenho  infelizmente  a  copia  desse  officio,  mas  em  testemunho  do  meu  asserto  posso  invocar  o  do  poeta  Themistocles  Machado  que  nessa  occasião  se  achava  no  mesmo  logar,  com o  coronel  Monteiro  e  que  tambem,  como  brazileiro,  presenciou  indignado  semelhantemente attentado, adoecendo logo depois de terrível moléstia que lhe roubou  metade da vida.  Ninguem poderá, de certo, prever que resposta teve o Superintendente. Foi esta a  resposta verbal e arrogante que ao portador do officio deu o ministro da Bolivia. NÃO  TENHO  QUE  DAR  SATISFAÇÃO  A  NINGUEM!  SOU  UM  MINISTRO  PLENIPOTENCIARIO E SÓ ME ENTENDO DE POTENCIA A POTENCIA!  Esse ministro – foi voz corrente em todo o rio – affirmava que trazia instrucções  especiaes do  ministro  brazileiro  –  Dyonisio  de  Cerqueira  – para  não  se  entender  com  autoridade nenhuma do Estado!  O que é certo, é que as autoridades de Floriano Peixoto nenhuma communicação  receberam  do  governo  do  Amazonas.  Pairava,  por  esse  facto,  uma  duvida  intensa  no  espirito de todos sobre a veracidade de tal empreza.  Mas  o  commandante  do  vapor  e  os  proprios  bolivianos  não  se  cançavam  de  propalar as descripções das festas officiaes com que foram recebidos em manaós, tendo  o governo lhes offerecido até espectaculos publicos.  Jamais vi entre o povo – o povo rude, de pé no chão, os pobres seringueiros, e os  proprietarios do Acre, homens tambem sem instrucção – os quaes, uns e outros, foram  sempre os maiores heroes nessa questão, ­ tão funda e intensa indignação e tão alto, tão  nobre, tão vibrante o sentimento da Patria!  Agora mesmo, quando  escrevo  estas  linhas,  resalta­me  nitidamente  á  memoria  o  typo de um seringueiro, que não conhecia e nem lhe sei o nome. Era um homemsinho

magro,  atarracado,  amarello  como  açafrôa,  batendo  o  papo,  como  se  diz  nos  sertões,  que,  vibrando,  numa  excitação  que  não  era  fementida,  nem  artificial,  nem  hypocrita,  chegou­se a mim e gritou­me:  ­ Seu dotô! vamo bota p’ra fora estes bandido!  O  exemplo  desta  indignação  foi  posteriormente, em  todos  as  phases  da questão,  posto á prova com uma evidencia irrecusavel.  Alarmado  o  espirito  publico,  faltava,  apenas,  quem  se  pozesse  á  frente  do  movimento.  Amigo  e  admirador  do  coronel  Francisco  Monteiro  e  attendendo  ás  considerações  de  prudencia  do  mesmo,  não  me  puz  logo  á  frente  dos  meus  patricios  para  expulsar  do  Acre  os  bolivianos.  Elle  que  ha  tão  pouco  tempo  tomára  conta  da  gestão  dos  negocios  do  municipio,  depois  de  um  longo  ostracismo  politico,  não  desejava, de certo, vêr­se comprometido num acto de tamanha responsabilidade; apesar  de tal movimento poder tomar o caracter meramente popular, como, depois, aconteceu.  Não  havendo  a  menor  communicação  official  e  sendo  um  facto  consummado  o  dominio boliviano no Acre, achou acertado e prudente o Superintendente mandar a toda  pressa  um  emissario  a  Manaós,  entender­se  com  o  governo.  Fui  distinguido para essa  commissão e tomei o primeiro vapor que baixava.  Chegando a Manáos, já a imprensa já occupava do facto, mas limitando­se apenas,  a  descompor  o  ministro  boliviano  e  a  censurar­lhe  os  decretos  que  no  novo  dominio  baixára. Para  dar  cumprimento  a  minha  missão  procurei  primeiramente  o  secretario  da  Fazenda, um Sr. Pedro Freire, que era então o  secretario richelieu de José Ramalho e  que tudo dirigia naquelle tempo.  Por sua historia muito mal contada (ter o Paravacini illudido a bôa fé do governo  do Amazonas, dizendo vir estabelecer em Manaós uma alfandega mixta para a cobrança  de  impostos devidos  aos  dois  paizes)  vi  que  o  governo  do  Estado  nada  faria  no  caso,  muito principalmente porque tendo a celebre renuncia Fileto dependente da vontade do  Governo federal não ia contrariar ordens emanadas do mesmo Governo.  A imprensa manauense, como acima disse, não protestava contra o facto principal,  que  era  o  apossamento  do  terreno  litigioso,  por  parte  da  Bolivia,  e  limitava­se  a  descompor o ministro boliviano. Procurei diversos jornalistas (entre quaes o Sr. Silvério  Nery,  já  indigitado para  Senador  e  Governador do  Estado  e  que  neste  dia,  por  signal,  vinha de vêr as obras, em começo, de seu palacête á estrada 7 de Dezembro e que me  disse  que  nada  se  podia  fazer  nessa  questão)  e  lhes  fiz  vêr  a  grande  indignação  que  reinava no Acre e que o caso não estava sendo tratado como devia. Foram improficuas  as  minhas  observações;  por  ninguem  fui  atendido  (coisa  que  muito  natural  devido  a  attitude  do  governo)  e  resolvi  ir  para  o  jornal.  Escrevi  na  “Patria”,  sob  minha  assignatura  dois  artigos  e  em  nome  do  povo  protestei  contra  o  acto  do  ministro  brazileiro,  a  quem  chamei  de  inepto  ou  de  vendido,  entregando  o  Acre  e  os  seus  habitantes ao dominio estrangeiro. Sinto immensa pena de haver perdido esses artigos,  porque desejava transcreve­los aqui. Tive a satisfação de ver que um moço, no Pará, o  Sr.  João  Lucio  de  Azevedo,  pela  “Folha  do  Norte”  encarou  a  questão  sob  o  mesmo  aspecto,  a  ponto  dos  nossos  artigos  tornarem­se  parecidissimos,  contendo  as  mesmas  idéas.  Que me conste, foram esses dois únicos protestos que por esse tempo appareceram  no paiz.  Vendo que o governo do Amazonas nada fazia, voltei para o Acre e lá colloquei­  me á frente do movimento.  O  ministro  Paravicini,  depois  de  praticar  muitos  actos  de  violência,  querendo  assim, implantar o seu governo sob o regime do terror; baixára, deixando encarregados

dos negócios da Bolivia o Sr. Moysés Santivanez, que aliás, se portara com moderação  e prudência. 

II 

A casa de Joaquim Victor da Silva, em Caquetá, foi o ponto de nossas reuniões.  Estávamos  em  fins  de  Abril  e  o  rio,  como  sempre,  começava  a  vasar  com  uma  rapidez espantosa. É, então, o tempo das grandes febres em que, por todo o Acre, passa  avassalador e tremendo, um grande sopro de morte.  A  anciedade popular não  se  podia  mais  conter;  a  revoltar  em  todos  espíritos  era  digna  da  observação  de  um  grande  psychologo.  Por  mim,  o  digo:  jamais  senti  tão  profundas sensações e nem sei si os destinos me proporcionarão occasião de, outra vez,  experimentar  o que  seja  e  sentimento  do dever  de  cidadão  reclamando pelos  sagrados  interesses da Patria.  Dir­se­ia  que,  alli,  nós  sentíamos  pelo  resto  de  todos  os  brasileiros  que  sentem,  que  ama,  que  se  enteressam  pela  felicidade  e  pela  gloria  deste  Paiz  e  que  depois,  constituindo  a  opinião  nacional,  una  voce,  não  consentiram  que  os  governos  consummassem  um  crime  que  importaria  numa  eterna  vergonha  para  nossa  raça.  Felizmente o Acre  não ficou boliviano, e  nós  já temos de que nos orgulhar – Quando  errou o  governo,  num  acto  em que estava  empenhada  a  honra  nacional,  levantou­se o  povo para lhe ensinar o cumprimento do dever!  Que seja fecundo, para o futuro, semelhante exemplo!  A  repulsa  geral  dos  acreanos  contra  o  dominio  boliviano  não  se  manifestou,  sempre, sómente por palavras. Todas as nomeações de questor  (delegado), excepção de  uma só, que recaíam em brazileiros, á falata exclusiva de bolivianos, foram altivamente  devolvidas  ao  ministro  e  algumas  acompanhadas  de  officios  desrespeitosos.  Só  um  brazileiro – o Capitão Leite, de Humaytá – em todo o Acre acceitou o cargo do governo  boliviano e com elle fez causa commum. Consta que o que levou esse brazileiro a ficar  numero 1, no meio de seus patrícios, foi uma questão de interesse pecuniario advindo  por uma transação. Dizia­se que a Bolivia, precisando transferir para Humaytá a sede de  seu governo, offerecia por este seringal a  somma de tres mil contos de réis, quando o  seu valor intrínseco podia ascender a duzentos contos.  Os  commandantes  Antonio  Bandeira  e  Mello  Cardoso,  por  esse  tempo,  com  applausos  geraes  do povo,  haviam passado por puerto  Alonso,  sem  visar  manifestos  e  sem dar a menor satisfação ás autoridades bolivianas. Eram os bolivianos, em verdade.  Eram os bolivianos, em verdade, poucos, não chegando, talvez, a 50 pessoas, inclusive  as  autoridades  superiores,  mas  estavam  bem  entrincheirados  e  municiados  no  optimo  ponto estratégico que era Puerto Alonso, como depois foi posto á prova no ultimo cerco  de Plácido de Castro. Dizia­se que o Capitão Leite puzera a disposição dos bolivianos  300 homens de seu pessoal extractor de borracha.  Era­nos preciso, pois,  tomar  todas  as providencias  para que  fossem despostos os  bolivianos, sem derramamento de sangue e sem deslocamento do pessoal occupado no  fabrico da borracha.  Por conhecermos das disposições do cônsul, Moysés Santivanez, encarregado dos  negócios  da  Bolivia  e  por  livrarmos  as  responsabilidades  do  Juiz  de  Direito,  interino,  José  Martins,  que  alli  se  achava  a  serviço  publico,  não  tomando  por  forma  alguma  caracter  official  (*)  o  movimento,  cousa  que  queríamos  evitar,  fizemos  com  que  o

mesmo  juiz  officiasse  ao  cônsul,  avisando­lhe  de  que  estava  no  meio  de  um  levante  popular com o fim de depor o governo boliviano, e que, não tendo forças para suffocar o  mesmo  movimento,  pedia­lhe  que  procedesse  de  forma  a  evitar  derramamento  de  sangue e funestas consequencias.  O  cônsul  respondeu, dizendo­lhe  que  não  entendia  bem o  conteúdo do officio,  e  pedia­lhe  (verbalmente)  que  chegasse  até  lá  para  conferenciarem.  Temendo que desse  conferencia  com  o  cônsul,  devido  á  exaltação  patriótica  de  que,  como  brazileiro,  se  achava tambem, possuído, pudesse  resultar  um  rompimento  entre  o  Juiz de  Direito da  Comarca  de  Floriano  Peixoto  e  o  Consul  Boliviano,  e  assim  tomar  o  movimento  caracter official, que a todo transe procurávamos evitar, não acquiesceu  José Martins ao  convite do cônsul.  Eis aqui fielmente reproduzido o seu officio:  “Caquetá, 29 de Abril de 1899. – A S. Exc.ª o Sr. Delegado do Governo Boliviano  em Puerto Alonso. – Tendo chegado ao meu conhecimento que se preparava um grande  movimento  popular  contra  a  autoridade  que  V.  Exc.ª  está  exercendo  no  territorio  da  comarca  de  Antimary,  para  aqui  me  dirigi­me  Aafim  de  no  caracter  de  autoridade  estadual obstar que esse movimento se effextuasse. Entrando, porem em communicação  com os principaes promotores de levante cheguei á evidencia de que todos os esforços  que empregue, serão inuteis em vista da forla de que estes dispoem; accrescendo ainda  que não tenho instrucção do governo brazileiro para manter V. Exc.ª no posto em que se  acha,  a  meu  ver  irregularmente,  nem  de  V.  Exc.ª  communicação  quanto  ao  accôrdo  celebrado com o nosso governo.  “Violento  ou  arbitrario  o  povo  dispõe  de  elementos  materiaes  que  a  autoridade  publica  não  póde  sobrelevar,  tanto  mais  faltando­lhe  o  apoio  official  dos  poderes  superiores da nação.  “Em taes condições, observando o estado de exaltação patriotica em que se acham  os  espiritos,  cumpre­me  apenas,  como  intermediario prudente  entre  V.  Exc.ª e  o povo  brazileiro  á  cuja  causa  me prendem,  como  cidadão,  tantos  vínculos  de  solidariedade  e  sympathias, ceder de modo a poupar sacrificios inuteis e talvez desastres irreparaveis.  “É o que espero da experimentada prudencia de V. Exc. ª a quem tenho a distincta  honra  de  apresentar  vivos  protestos  de  alta  consideração.  Saude  e  Fraternidade.  José  Martins de Souza Brasil, Juiz de Direito, interino da Comarca.”  Não  possuo,  infelizmente,  a  resposta  a  esse  officio,  para  dal­a  aqui,  foi  ella,  porem, no sentido já explicado.  Decidido não ir José Martins á conferencia pedida, resolvemos subir o Acre, em  canoa,  com  o  fim  de  descermos  no  vapor  “Botelho”,  commandado  pelo  piloto  Mello  Cardoso,  e  acompanhados  de  maior  numero  possível  de  proprietarios,  de  chofre,  fazermos a deposição dos bolivianos.  Joaquim  Victor  e  muitos  outros  companheiros  ficavam  em  Caquetá  esperando  que,  acima  de  Puerto  Alonso,  na descida,  déssemos  signaes  convencionados  com  apitos de  vapor, os quaes se ouviam alli perfeitamente bem. A canoa que obtivemos comportavam  mal oito pessoas e nella, pelas 5 horas da manhã embarcamos, no intuito do passarmos  pela  margem  opposta  á  cidadella  de  Puerto  Alonso  sem  darmos  satisfação  ás  autoridades bolivianas, que não deixavam passar  a menor embarcação sem chama­la á  fala,  tomando­lhe  as  armas,  que  por  accaso  levasse.  Desse  modo  já  havia  tomado  os  rifles a muitos seringueiros e até os do carregamento de um vapor. Poucos dias, antes,  haviam multado, por nossa irregularidades, os commandantes de dois vapores. Em  (*) Julgavamos, até então, apesar de tudo, outra a gente que governava o Amazonas.

nossa companhia ia um preso – o José – que na véspera havíamos tomado á escolta de  um espia boliviano, que viera a Caquetá sondar o terreno.  O  José  havia  commetido  um  crime  qualquer  e  estava  sujeito  ao  julgamento  summarissimo do consul – como todos os mais julgamentos o eram – e, allegando estar  passando  miseria  e  fome,  pois  que  só  lhe  davam  bolacha  para  comer,  apesar  de  lhe  fazerem trabalhar diariamente, trabalho braçal e pesado, ­ não quis voltar e declarou­nos  que aos pedaços poderia voltar á prisão de Puerto Alonso.  Revelou­nos então, o preso, que os bolivianos estavam bem entrincheirados, que  haviam transportado toda a munição de guerra para a primeira barraca junto ao barraco  e que esperavam o auxilio de trezentos homens que haviam pedido ao capitão Leite.  Nestas  condições  –  verdadeira  ou  não  a  ultima  informação  do  preso  –  urgia  accelerar o movimento.  Assim,  no  intuito  já  exposto,  embarcámos,  em  canôa,  de  Caquetá,  no  dia  30  de  Abril, pelas 5 horas da manhã. Duas horas depois, avistamos a cidadella. Uma lancha a  vapor, pertencente á Bolivia e que servia ao governo, alli, estava ao porto. As sanefas da  lancha  estavam  levantadas  e  cahidas  sobre  o  toldo;  immediatamente  vimo­las  baixar.  Aquelle  movimento,  percebido  por  todos,  transmittiu­nos,  não  sei  porque  effeito,  um  fundo enthusiasmo.  Disse,  então,  para  os  companheiros  –  Acabemos  com  isso!  vamos  fazer  a  deposição, si quizerem!  ­ Perfeitamente! exclamaram todos enthusiasmados.  Rapidamente, resolvemos o modo por que se devia proceder: eu saltaria sosinho e  faria  a  intimação  ao  consul;  os  outros  aguardariam  na  canôa  os  acontecimentos.  Não  haviam elles de entregar as armas e caso eu não podesse voltar, tentassem  subir o rio,  revolucionar o povo e descer no “Botelho”; não sendo isso possivel descessem, então, e  com o pessoal do Joaquim Victor composto de mais de trezentos  homens  voltassem  a  Puerto  Alonso.  Assim  resolvido,  apróamos  e  eu  saltei  subindo  o  alto  barranco  a  cuja  borda encontrei o commandante do porto e alguns soldados, todos armados.  Ao commandante – um homem agigantado – perguntei pelo consul e disse que lhe  queria  falar;  apontou­me  elle  para  uma  casa  no  fundo  de  uma  cidadella,  encostada  á  matta, e deu ordem á primeira sentinella para me deixar passar. Segui passando por uma  longa fila de sentinellas avançadas que iam uma á outra transmittindo a senha. Cheguei  á barraca do consul que me recebeu á porta com ar solene e grave. Eu ia cançadissimo  pela  subida  do  barranco  e  pela  caminhada  até  alli;  pedi­lhe,  então,  permissão  para  descançar um pouco e entrando, a seu convite, para a saleta, sentei­me.  Alguns  minutos,  depois,  rompendo  o  silencio  que  entre  nós  havia,  disse­lhe  por  estes termos:  ­  Sr.  Consul,  venho  aqui encarregado  de uma grave  missão!  venho  em  nome do  povo  deste  rio  e  em  nome  do  povo  brazileiro,  intimar  V.  Exc.ª  para  abandonar  este  logar, porque não toleramos mais o governo boliviano que V. Exc.ª representa!  O  Consul,  como  impellido  por  uma  mola,  levantou­se,  e,  arrebatado  perguntou­  me:  ­ Quem está a frente deste movimento?!  Levantei­me, tambem, e lhe respondi calmamente:  ­ Ninguem!... todos estão a frente!  ­ Mas, retrucou o boliviano, quem é que pode apparecer, está falando com um!  ­  O  nome  do  senhor!  disse­  me  o  Consul,  seccamente,  como  se  estivesse  a  proceder a um interrogatorio para a qualificação de um réo.  Dei­lhe o meu nome.  O rosto do boliviano transformou­se rapidamente abrindo­se num amável sorriso.

­ Ah! Sr. Carvalho, disse­me, já li os seus artigos na “Patria”!  ­ Folgo em sabe­lo! respondi, e neste caso, estou dispensado de repetir a V. Exc.ª o  que penso sobre esta questão.  ­  Mas,  sr.  Carvalho,  respondeu  o  Consul,  nós  não  viemos  para  aqui  em  tom  de  guerra; viemos em vista de um accordo celebrado entre o governo brazileiro e o...  ­  Perdão  Sr.  Consul!  –  disse­lhe,  sem  me  poder  conter,  ­  entre  o  governo  brazileiro,  não!  entre  um  ministro  do  governo  brazileiro  –  ministro  este,  que  não  tem  competencia para resolver questões desta natureza!  Travou­se, então, entre mim e o encarregado da Bolivia um largo debate que me  despenso de reproduzir aqui. Rematei os meus argumentos fazendo ver que, não estando  as  demarcações  approvadas  pelos  poderes  competentes  de  ambos  os  paizes,  e  sendo  nosso o ut possidetes não reconheceriamos, não podiamos reconhecer legal o poder de  Bolivia no Acre.  Vendo  os  companheiros  da  canôa  (os  quaes  não  se  renderam  ás  intimações  do  Commandante do porto, allegando haverem mandado um emissario ao Consul) a minha  demora, destacaram o rapasinho Amaro Nogueira para ver o que havia commigo; elle  encontrou­me no meio dessa discussão, assistindo­a até o fim.  ­ Bem, Sr. Consul! Conclui – a nossa discussão vae longa e sem nenhum resultado  pratico. Desejo cumprir a missão de que sou encarregado e quero saber a resposta de V.  Exc.  a  qual  deve  ser: si embarca  ou  não  com  seus  patricios  no  vapor  “Botelho”,  aqui  esperando a qualquer hora!  ­ O Sr. já reflectiu e pensou bem nas responsabilidades deste acto? – perguntou­  me o Consul.  ­  Quaesquer  que  ellas  sejam,  ­  respondi  –  nem  eu,  nem  os  meus  companheiros,  fugimos ás suas consequencias.  ­  Mas  eu,  por  mim  só,  não  posso  resolver,  é­me  preciso  ouvir,  em  conselho,  as  auctoridades superiores desta legação, para poder tomar uma resolução decisiva.  ­  Si  elles  estão  todos  presentes  (achavam­se  todos  presentes  assistindo  a  discussão)  não  será  custoso  V.  Exc.  consulta­los  logo;  esperarei  pelo  resultado.  O  Consul, alli mesmo, em voz baixa, cujas palavras não percebi, falou ligeiramente com  todos, que, me parece, lhe deram franca liberdade de agir.  Voltou­se, depois, para mim e disse­me:  ­  Vou  lhe  fazer  uma  proposta:  ­  Estamos,  aqui,  com  poucas  mercadorias  e  esperamos  uma  lancha  do  Pará,  a  qual  deve  chegar  por  esses  dias;  si  a  lancha  não  chegar, nós embarcaremos, então!  Eu  olhei  para  o  homem,  a  ver  si  elle  estava  falando  seriamente,  e  não  podendo  deixar de rir, respondi­lhe:  ­  Ora,  Sr.  Consul,  parece  que  V.  Exc.ª  está  gracejando!    Pouco  nos  importamos  nós que os senhores tenham ou não mercadorias, que esperam ou não lancha do Pará; o  que  queremos  é  que  o  governo  boliviano,  representando  na  pessoa  de  V.  Exc.ª,  seja  deposto d’aqui, e há de sê­lo, custe o que custar!  Entremos  noutro  accordo:  atalhou,  sorrindo,  gentilmente,  o  boliviano:  ­  Embarcarei  minha  familia  no  vapor  “Botelho”e  descerei,  depois,  em  canôa  até  a  Cachoeira do Purus!  Eu ri­me, outra vez, e disse­lhe:  ­  É  muito  incommodo  para  V.  Exc.ª!  V.  Exc.ª  embarca  no  “Botelho”,  com  sua  Exm.ª Familia, e pode dizer a Manaós, no Pará, no Rio, no seu paiz, em toda a parte,  enfim, que foi deposto pelo povo do Acre. Isto é o que queremos que V. Exc.ª faça!  O consul fez­me, ainda, outra proposta, de cujos termos completos não me recordo  bem, mas pela qual queria elle subir até Xapury.

Peremptoriamente  cortei o assumpto das propostas, affirmando­lhe, com energia,  que, si elle não embarcasse no vapor “Botelho” era o único responsavel   e culpado pelo  que podesse acontecer. Fiz­lhe sentir que era tão intensa a indignação do povo, que eu  mesmo, dado o primeiro grito, não teria forças para conte­la.  Pediu­me, então, uma intimação por escripto.  Respondi­lhe  que  não  a  dava;  que  aquelle  acto  partia  directamente  de  um  movimento do povo em geral, cuja responsabilidade era collectiva, apesar de não temer  a individual que me podesse caber.  O encarregado da Bolivia, então, oppoz­me considerações de ordem pessoal: que,  havia  pouco  tempo,  o  ministro  Paravicini  deixará  o  Acre  em  bôas  condições  para  a  administração do governo boliviano e que, surgindo tal movimento, no curto periodo de  sua  gerencia,  que  toda  havia  sido  de  tolerancia  e  urbanidade  (o  que  era  verdade)  o  sacrificado  seria  elle  que  era  um  moço  pobre  e  que    havia  feito  sua  carreira  nos  consulados  de  seu  paiz;  que  precisava,  pois,  de  um  documento  com  que  podesse  defender e justificar!  ­  Bem,  Sr.  Consul!  –  lhe  respondi,  por  dois  motivos,  vou  lhe  entregar  uma  intimação  escripta,  o  primeiro  é  que  não  desejo  o  sacrificio  de  sua  carreira  e  de  seu  futuro;  para  mim  V.  Exc.ª  e  os  seus  patricios,  trabalhando,  como  trabalham,  pelos  interesses de seu paiz, são patriotas, dignos de admiração e de estima; o segundo é que  nem  eu  e  nem  um  dos  meus  patricios  do  Acre  fugiremos,  em  tempo  algum,  ás  responsabilidades deste acto. Mas esta intimação, que deverá ser assignada pelo maior  numero possivel  de  brazileiros,  só  a  entregarei  a  bordo  do  vapor  em  que  V.  Exc.ª  se  retirar.  Ficou assim combinado e certo que os delegados do Governo da Bolivia no Acre  retiravam­se no vapor “Botelho”.  Despediamo­nos,  trocando  cumprimentos  amáveis,  quando  chegava  o  Commandante do porto avisando que o vapor “Cidade do Pará” acabava de entrar.  Ao  chegar  no  barranco,  próximo  ao  vapor,  disse  para  bordo  que  não  era  mais  preciso visar  guias e nem effectuar formalidade alguma, porque os bolivianos estavam  depostos; e, corri para a canôa a levar aos companheiros anciosos a desejada nova. Os  bolivianos,  por  sua  vez,  não  exigiram  desse  vapor  o  cumprimento  de  nenhuma  formalidade. Vi que era preciso subir o Acre, em canôa, não só para obter maior numero  de  assignaturas,  como  tambem  para  evitar  a  descida  do  capitão  Leite,  suspeita  que  tomava,  ao  meu  espirito,  visos  de  procedente,  depois  das  descabidas  propostas  do  Consul,  e  facto  que,  a  se  effectuar,  importaria  na  resistencia  dos  bolivianos,  e  num  grande conflicto, pois.  Assim, seguimos  viagem em direcção á casa de João passos, que sendo visinhos  de Puerto Alonso, era um dos mais enthusiastas patriotas.  Poucos momentos, depois, passava o “Cidade do Pará” por nossa canôa, levando  ainda  hasteada  a  bandeira  boliviana.  Protestamos  em  altas  vozes  e  o  commandante  Trovão  (a  quem  nunca  mais  tive  o  agradavel  ensejo  de  ver)  mandou  immediamente  arrear  a  bandeira  boliviana,  substituindo­a  pela    brazileira  e  nos  saudando  com  uma  prolongada salva de apitos.  Nesse dia fomos pernoitar em “Bom Destino” onde se achava Joaquim Carneiro,  um dos que, altivamente, devolveram ao ministro a nomeação de questor  e que prestou  sempre  á  causa  acreana,  em todos os  tempos, os mais  assignalados  serviços.  Por  suas  repetidas instancias, foi que, nessa mesma noite, apesar de enfadadissimo por tão longa  jornada e tanto esforço, escrevi a intimação promettida e que se vae ler adeante. Queria  elle, disse­me, leva­la rio acima, obtendo assignaturas até encontrar o “Botelho” em que  desceria  acompanhado  de  amigos.  Não  a  poude,  infelizmente,  levar  porque  antes  de

conclui­la  foi mandado chamar ás carreiras pelo commandante do vapor em que tinha  de subir e com o qual tinha  negocios urgentes. Os vapores, por esse tempo, andam no  Acre  á  toda  pressa,  não  tendo  tempo  a  perder,  devido  á  vasante  rapida  do  rio,  sendo  muito commum ficarem por lá encalhados, no secco, durante todo o anno, só podendo  sair na cheia do anno seguinte.  Á  noite  lembrei­me  de  que  devia  ter  exigido  do  Consul  um  arrolamento  do  material  existente  na  Aduana   e  pertencente á  Bolivia,  e  a entrega  official  de  todos  os  documentos de particulares que naquelle foro estavam para ser ajuisados. Assim, resolvi  voltar  no  dia  seguinte  e  exigir  a  effectividade  dessa  formalidade  de  altíssima  importância  nesta  questão,  evitando  assim  futuras  reclamações e  indemnisações.  Mais  uma  vez  testemunhei  o  grande  enthusiasmo  patriotico  do  povo.  Sem  que  convidasse  pessôa  alguma,  quando  no barracão  se divulgou a  noticia  de  que  eu  voltava  a  Puerto  Alonso  todos  quiseram  me  acompanhar.  Foi  preciso,  a  pedido  do  encarregado  do  seringal, empregar esforços para conter os seringueiros Compraram logo caixas de balas  ­  e uma bala custava mil réis – mas era forçoso ficarem, pois que as mercadorias, em  montão,  atiradas  ao  barranco,  precisavam  ser  transportadas  para  o  estabelecimento.  Muitos  delles,  inclusive  um  velho,  veterano  do  Paraguay,  não  attendendo  a  consideração alguma, quando embarquei pela manhã, tomaram tambem as suas canôas e  me acompanharam. Mais de uma vez, ao passarmos em frente ás barracas da margem,  gritavam elles pelo morador, que se estava em casa, respondia ao chamado e, ao saber  que  iamos  depor  os  bolivianos,  corria,  rifles  na  mão,  ao  porto,  tomava  a  canôa  e  enthusiasmado se encorporava ao pequeno grupo.  Cheguei a Puerto Alonso acompanhado de umas trinta pessôas e tendo mandado,  por carta expedida ás pressas, chamar Joaquim Victor e os demais companheiros, estes  não se fizeram esperar.  O Consul annuiu a todas as nossas exigencias, combinando­se fazer o deposito de  todo  material  alli  existente  e  pertencente  á  Bolivia  e  o  inventario  dos  documentos  pertencentes aos brazileiros. Como estava para findar o dia e, não havendo mais tempo  para dar começo ao trabalho, resolvemos voltar no dia seguinte.  Quando chegamos ao barranco, o povo que alli ficára sentia­se indignado, porque  no alto de uma arvore tremulava ainda a bandeira boliviana. Pediram­me para mandar  arrea­la; um quiz derruba­la com uma bala, affirmando, com chiste, que mandava a bala  de seu rifle cortar o cordão no ponto que fosse indicado. Um dos nossos foi designado  para ir se entender com o Consul, afim de mandar elle arrear  a bandeira, ao que annuiu,  não  sem  pedir  que  não  houvesse  vivas,  nem  manifestações  hostis,  cousa  que  era  desnecessária pedir.  Ao se approximar o soldado que vinha arrear a bandeira, eu disse para todos:  ­ Camaradas! a bandeira boliviana vae ser retirada, mas peço que haja deante deste  acto absoluto silencio.  Não podemos conter o riso, quando um seringueiro, num tom muito peculiar aos  cearenses sertanejos, observou:  ­ Não, patrão! sempre se dá um vivasinha ao Brazil!  ­ Não se dá vivas a ninguem! – disse contendo com esforço o riso –  está nisso a  nossa dignidade, desde que os bolivianos, vencidos, a nada se oppoem!  E foi uma seena commovedora e bella que jamais me fugiu da memoria, vêr­se, ao  crepusculo d’aquela primeira tarde de Maio, á margem do rio silencioso e sombrio, no  alto, uma nesga do Ceo sempre ennevoado e triste e em redor a floresta de esmeralda  mysteriosa  e  muda,  o  boliviano  approximar­se    da  alta  arvore  desgalhada  que  lhe  sustentava  a  bandeira,  arrea­la  pausadamente,  sahir  cabisbaixo,  enrollando­a  no braço,  no  meio  de  absoluto  silencio,  e  todos  nós  –  os  brazileiros  –  respeitosos  e  reverentes

como  se  estivessemos  deante  de  um  grande  acto  religioso  e  solenne.  Seena  commovedora e bella! repito, que naquelle momento deixou­nos n’alma, com a tristeza  da tarde, um fundo sentimento de pesar pela sorte do vencido que era d’alli  forçado a  retirar a bandeira aventurosa de sua Patria!  Em seguida descemos o barranco, embarcámos nas canôas que quase tomavam  toda a largura do rio, e volvemos a Caquetá, onde chegamos quasi ás 7 horas da noite.  Ao  avistarmos  o  barracão,  convidei  a  todos  para  salvarmos  a  casa de Joaquim  Victor  com uma salva de  tiros.  Uma  voz  gritou do meio do  grupo que  era  melhor  faze­lo  ao  saltarmos em terra.  ­  Não!  respondi,  enthusiasmado,  a  nossa  salva  deve  ser  dada dentro do  rio, para  que o Acre leve ao Amazonas e o Amazonas ao Mar e o Mar diga ao Brazil e ao mundo  que nós aqui defendemos a honra da patria, arrancando do dominio estrangeiro o Acre  que  é  nosso,  que  nos  pertence,  custe,  embora,  o  sacrificio  de  nossa  vida!  As  ultimas  palavras não foram mais ouvidas porque foram arrebatadas por uma salva de bravos, de  vivas e de tiros ensurdecedores.  E  uma  grande  nuvem  branca  de  fumaça  desceu  a  rolar  acompanhando  o  fio  da  correnteza e perdeu­se na noite.  Nessa mesma noite, já eu e alguns companheiros ardíamos em febre. Encarreguei,  então, o DR. Pedro Gomes da Rocha (occupa hoje um cargo da justiça federal no Ceará)  de redigir um officio ao juiz, José Martins, officio que foi nestes termos:  “Illm.° Sr. Juiz de Direito desta Comarca.  Levamos ao vosso conhecimento que no dia de hontem, 1° de Maio, pelas 5 horas  da  tarde,  o  povo,  representado  por  grande  numero  de  cidadãos,  depoz  as  autoridades  bolivianas,  estacionadas  em  Puerto  Alonso,  sem  que  tivesse  a  lamentar  acto  algum  lesivo  aos direitos,  como  se  devia  esperar  de  cidadãos  que  sabiam  e  queriam  cumprir  seus deveres por meios regulares e pacificos. Só em ultimo caso o povo appellaria para  as  armas  porque  na  defeza  de  seus  direitos  seria  sobranceiro  e  desassombrado.  Succedendo, porem, que a propriedade particular da comissão boliviana deve merecer,  de  accordo  com  a  nossa  Constituição,  respeito  e  garantia,  vimos  concitar­vos  afim  de  que  compareçais  hoje  ás  4  horas  da  tarde,  no  logar  Puerto  Alonso  e  mandeis  arrolar  documentos  de  brazileiros  e  tudo  mais  que  existir  nomeando­se  pessôa  chan  e  abandonada  como  depositário  legal.  Esta  medida  tem  efeitos  salutares  porque ,  si  por  um lado, garante direito de terceiros, offerecendo­lhes  o escudo da lei, por outro lado  evita  que  exigencias  desarrazoadas  appareçam  dando  vulto  a  factos  mínimos  e  de  pequena    monta.  Mesmo  nós,  como  cidadãos  de  uma  patria  livre  e  altiva  devemos  abrigo  ao  estrangeiro  que  pede  as  garantias  constitucionaes,  porque  na  hypothese  contraria transformariamos uma revolta  de intuitos nobres e elevados em  vehiculo de  odio e pequenas paixões.  O  vosso  patriotismo  e  ilustração  deve  impulsionar­vos  no  cumprimento  deste  dever  conservando  a  vossa  toga  de  magistrado  impolluta,  já  como  proteção  aos  estrangeiros  nossos  visinhos  da  Republica  da  Bolivia,  como  tambem  precaução  aos  direitos da Patria que devem ser acautelados.  “Confiados em vossos sentimentos de patriota e de delegado da nação para exercer  justiça, subscrevemo­nos como membros da Commissão que representa o povo reunido  neste logar.  “Caquetá, 2 de  Maio de 1899 –  Pedro Gomes da  Rocha  José  Carvalho,  Antonio  Loyola, (*)  Francisco  Gomes  Malveira,  Amaro Góes  Nogueira,  José  Nunes  de  Mello,  Atto  Pessôa,  Henrique  de  Pontes  Barroso,  Antonio  Mendes  d’Almeida,  (**)  Joaquim  Victor  da Silva, Jesuíno Nunes  Verçosa, Miguel Ribeiro da Costa, manoel Theophilo  de Serpa, Pedro Martins Chaves.”

“   –  Despacho  –  A.  Designo  o dia  tres  do  corrente,  para  ter  lugar  o  inventario  e  arrecadação requerida. Nomeio depositario o commerciante Joaquim Victor da Silva e  escrivão  ad­hoc,  por  se  achar  impedido  o  que  serve  perante  este  juiso,  o  cidadão  Henrique de Pontes Barroso, que prestará o compromisso da Lei.  Caquetá 2 de Maio  de 1899.  José Martins.  No dia seguinte, effectou­se o arrolamento por esta forma:  AUTO de inventario de moveis e utencilios, documentos e mais haveres entregues pela comissão  boliviana, ao Juiz, para se fazer o deposito legal, conforme o requerimento retro.  Aos  tres  dias  do  mez  de  Maio  do  anno  de  mil  oitocentos  noventa  e  nove,  pelas  nove  horas  da  manhã, n’este lugar “Caquetá” Rio Acre. Estado do Amasonas, onde se achava estabelecida a Delegação  e Aduana da Republica da Bolivia, onde eu escrivão ad hoc fui vindo, compareceram o Sr. José Martins  de  Ousa  Brasil,  Juiz  de  Direito  interino  da  Comarca  do  Antimary,  D.  Moyzés  de  Santivanez,  Consul  e  Delegado interino da Bolivia, Romualdo de la Pena, administrador interino da Aduana, Capm Benigno C,  Gamarra,  Commandante da  Fronteira  e Manoel Véa­Murguia. Secretario  da Delegação, Joaquim Victor  da Silva, depositario nomeado para zelar como bom e fiel guarda os haveres abaixo arrolados, Dr. Pedro  Gomes da Rocha, e diversos mais que assignarão este auto procedeu­se a inventario e encontrou­se:  Archivo  Pelo secretario foram entregues os autos seguintes;  Inquerito, por  crime  de homicidio  praticado  por individuos  que não  poderam  ser  conhecidos,  em  Feliz Pereira de Freitas, contendo vinte fl, digo vinte­laudas escriptas; Inquerito policial, pelo assassinato  perpetrado  em  João  de  tal,  por  João  Pereira  da  Costa,  contendo  onze  laudas  escriptas;  Demanda  por  cobrança,  procurador  Joaquim Victor da  Silva, contra  João  F.  da Silva;  contendo duas laudas escriptas;  Demanda de Joaquim Camillo, contra Ludgero do Nascimento contendo duas laudas escriptas, demanda  de Angelo Uchôa Cavalcante, contra Agostinho Freires Guabiraba, contendo uma lauda escripta; Acção­  de Antonio Passos de Sant’anna, contra José Raymundo da Silva, e Olympio João de farias, contendo oito  laudas  escriptas;  Petição    de  Lourenço  Freire  pedindo  a  nomeação  de  curador  para  seus  sobrinhos,  contendo  oito  laudas  escriptas;  Acção  de  Antonio  Joaquim  do  Nascimento  e  Joaquim  Carneiro  de  Queroiz, contra Silvestre Monteiro, contendo cinco laudas escriptas; Acção de Guilherme Miranda contra  José Felippe da Silva, contendo tres laudas escriptas; Acção de Antonio Passos de Sant’Anna contra José  Felippe  da  Silva  e  Raymundo  Barbosa  Leite,  contendo  tres  laudas  escriptas,  Acção  de  D.  Maria  Rodrigues d’Oliveira, contra  José Felippe da Silva contendo seis laudas escriptas; Acção de Raymundo  Soarea contra José Felippe da Silva, contendo sete laudas escriptas; Acção de João Baptista de Alcantara  contra  José­Felippe  da  Silva,  contendo  cinco  laudas  escriptas,  uma  procuração  e  titulo  de  Seringal;  Petição  de  Agostinho  Freires  Guabiraba  contra  o  espolio  de  Casemiro  Alves  Pinheiro,  contendo  quatro  laudas; Acção de Alvez Braga & Companhia contra Joaquim de Sant’Anna, tutor dos  filhos menores de  Mileno Benevenuto de Santiago, contendo cinco laudas escriptas; petição de Joaquim José de Sant’Anna,  pedindo embragos de borracha, contendo tres laudas escriptas; Acção de João Evangelista do Nascimento,  contra  Joaquim  Camello,  contendo  cinco  laudas  escriptas;  Acção  de  Antonio  Frederico  de  Queiroz  e  petição  de  Octavio  Guarany  de  Moraes  Rego,  contra  Joaquim  Alves  Maia  &  Companhia,  contendo  dezoito  laudas  escriptas;  Acção  de  Ferreira  &  Avila  contra  Honório  &  Belmiro  contendo  seis  laudas  escriptas;  Acção  de  Joaquim  Vieira  &  Irmão  contra  Antonio  Ignácio  Pinheiro  e  Manoel  Ipyranga,  contendo  duas  laudas  escriptas;  Acção  de  Francisco  Miguel  de  Carvalho  contra  José  Francisco  do  Nascimento,  contendo  tres  laudas  escriptas;  Denuncia  de  Arthur  Posmanhy  contra  Alexandrino  Silva  e  Pedro Barreto, contendo uma lauda escripta; Acção de Maria Sousa, Viúva de Pinheiro Pinto contra João  Xavier  contendo  dez  laudas  escriptas;  Acção  de  Joaquim  Vieira  &  Irmão  contra  Antonio  &  Ferreira,  contendo cinco laudas  escriptas; Acção de Joaquim Victoriano Correia contra Antonio Guimarães Filho,  Pedro  Jacome  de  Araújo  e  Manoel  Pereira,  contendo  tres  laudas  escriptas;  Acção  de  Silvestre  Strim  contra José Anselmo Melgaço contendo tres laudas escriptas; Acção de Engenio Quitierrez Solono contra  Raymundo Vieira  Lima,  contendo quatro laudas  escriptas;  Denuncia de Antonio  Leite Barbosa  pedindo  desembargo,  contendo  nove  laudas  escriptas;  Liquidação  testementaria  de  Jonas  Mendonça,  contendo  lista de devedores, credores, contas correntes e final liquidação, com quinze laudas escriptas; Petição de  inventario  de  Casemiro  Álvares  Pinheiro  contendo  contas  correntes,  petição,  inventario  da  borracha

existente,  um  extracto  de  conta,  descripção  de  bens,  termo  de  entrega,  contendo  trinta  laudas  escriptas;  Uma escritura particular, vendedor Dias dos Santos & Companhia, comprador Francisco Carlos Mourão,  do  lugar  denominado  “Porto  Franco”;  Protesto  de  Angelo  Uchôa  Cavalcante,  contra  a  petição  de  Agostinho Freires Guabiraba, pedindo demarcação de Seringal, contendo quatro laudas escriptas; Petição  de D. Jovita Alves, contendo duas laudas escriptas; Petição de Antonio Joaquim do nascimento, contendo  duas  laudas  escriptas.  Estes  documentos  foram  entregues  ao  Juiz,  que  os  recebeu  para  dar­lhes  o  conveniente destino.  Aduana  Pelo  administrador da Aduana,  foi apresentado,  em inventario, um  caixão  fechado e lacrado, que  foi  entregue  ao  depositario  Joaquim  Victor  da  Silva,  contendo,  segundo  diz  o  mesmo,  utencilios  de  escriptorio.  Bar r acas  Pelo  Delegado  interino  do  Governo  da  Bolivia,  foram  apresentadas  em  inventario  quatorze  barracas sitas n’este lugar, sendo tres construidas com zinco e onze de zinco e palhas, com travejamento  de madeiras ordinarias: foram entregues ao depositario Joaquim Victor da Silva.  Foram  exihibidas  cento  e  sessenta  e  sete  taboas  de  pinho,  distribuidas  em  differentes  barracas,  umas e outras soltas.  Apresentou  ainda  para  inventario  doze  peças  de  cabo  de  arame  sendo  onze  intactas  e  uma  encetada; sendo tudo entregue ao depositario.  E  por  nada  mais  haver  a  inventariar,  conforme  asseveraram  os  declarantes,  o  Juiz  deu  por  findo  este auto que vai assignado pelo Juiz Commisão Boliviana, Depositario e pessôas presentes. Eu Henrique  de Pontes Barroso, Escrivão ad hoc que o escrevi, assigno e dou fé. José Martins de Sousa Brasil. Moyzes  Santivanez. Romualdo de la Pena, Benigno C. Gamarra.  Manoel Vea Murguia, Joaquim Victor da Silva,  Henrique de Pontes Barroso, Bacharel em direito Pedro Gomes da Rocha, Atto Pessôa e Antonio Tavares  de Britto (*). 

Poucos dias, depois, descia o “Botelho” e nelle embarcavam os bolivianos levando  a seguinte intimação:  “Ilustre Sr. Consul da Bolivia, em Caquetá, no rio Acre.  “O  povo  brazileiro  representado  nos  abaixos  assignados,  solidariamente  responsaveis,  no  uso  de  sua  alta  vontade  revoltada,  vem  intimar­vos  para  que  abandoneis  o  governo  illegal  que  vos  achais  exercendo  actualmente  neste  territorio,  desbravado,  habitado    e  hoje  defendido,  por  milhares  de  brazileiros,  que  até  a  vossa  invasão aparentemente legal, viviam á sombra das Leis de seu paiz, e nellas confiavam.  “O povo e os poderes públicos deste Estado têm sido por demais tolerantes, nessa  vergonhosa questão, sanccionada, é verdade, por um nosso desastrado ministro, sobre o  qual não queremos nos pronunciar neste momento.  “A  violencia  de  nossa  vontade,  tão  patriotica  e  tão  justa,  não  nos  permitte  um  longo argumento probatório dos nossos direitos; em toda a parte a imprensa e o povo o  tem  largamente  descutido  e  elle  está  solidamente  plantado  na  consciencia  nacional.  “Essa  Posse  é  um  insulto  á  nossa  soberania,  e  nós  bem  sabemos  que  não  sois  o  responsavel  directo;  sois  no  entanto,  em  rasão  de  vosso  governo,  o  elemento  desse  insulto que nós soberanamente repellimos, hoje e amanhã, seja preciso, muito embora, o  sacrificio  de  sangue  e de  vida.  Esperamos  convictos que  haveis  de  abandonar   o mais  breve  e  o  mais  conveniente  possivel  este  logar  que  o  vosso  ministro,  o  Sr.  José  Paravacini, baptisou com um nome de Puerto Alonso e onde se acha estabelecida uma  Aduana  limitando as duas Republicas visinhas.  “Em  desaggravo  á  nossa  consciencia  e  par  vossa  honra  de  Cidadão  patriota,  confessanmo­vos que a nossa extrema prudencia, appellando sempre para o patriotismo  do governo brazileiro, nos deixa um pesar, que é o de não termos feito essa imposição  ao vosso antecessor o Sr. José Paravacini.  (*) Residente hoje em Obidos, neste Estado.

“Sabeis,  porem,  que  não  fazemos  questão  de  pessôas  ou  de  actos,  violentos  ou  justos, dos  Delegados de  vosso  Paiz,  e  sim  exclusivamente  da  Posse  boliviana  desses  grandes pedaços de rios e de florestas violados por um governo estranho.  “Não  tememos  as  responsabilidades  que  nos  possam  advir  por  essa  intimação  escripta que os pedis – a nós que estamos á vossa frente – para vosso documento, sem  duvida, porque a fazemos na fé de patriotas, á plena luz do dia, debaixo do nosso Céo e  com todo o ardor do nosso patriotismo.  “Estaes  intimado  a  retirardes  o  vosso  governo  deste  territorio  o  mais  breve  possivel,  porque  é  esta  a  vontade  soberana  e  geral  do  povo  deste  Municipio  e  todo  o  Povo brazileiro.”  “Caquetá, 1° de Maio de 1899 – José de Carvalho, Atto Pessôa, Amaro de Góes  Nogueira, Antonio Mendes de Almeida, José Nunes de Mello, João Passos de Oliveira,  Henrique de Pontes Barroso, Pedro Martins Chaves, Antonio Paulo Cavalcante, Antonio  Tavares de Britto, Manoel Mathias Cabral, Silvino José Baptista, Antonio José de Góes,  Francisco  Correia,  Luiz  Gonçalves  de  Magalhães,  Manoel  Martins  Chaves,  Tertuliano  Nazareth  de  Lima,  Antonio  Lourenço  do  Nascimento,  Lourenço  Francisco  do  Nascimento, Francisco Januario de Araujo, Lino Vieira de Queiroz, Manoel Fortunato  da Silva, José Justino de Araujo, Francisco de Almeida Caterno, a rogo de João Tavares  da  Silva,  Francisco  d’Almeida  Caterno,  Antonio  Rodrigues  de  Salles,  Manoel  Raymundo  Brenha,  Joaquim  Victor  da  Silva,  Francisco  Gomes  Malveira,  Antonio  Loyola,  Abílio  dos  Santos  Freire  da  Rocha,  Jesuino  Nunes  Verçosa,  pedro  Gomes  da  Rocha, bacharel em direito, Miguel Ribeiro da Costa, engenheiro civil, José de Prado,  (*)  a  rogo  de  Manoel  Evangelista,  José  do  Prado,  João  Francisco  Corrêa,  Pedro  Olympio Godim, a rogo de José Rodrigues Vieira, Abílio dos Santos Freire da Rocha, a  rogo  de  Manoel  Sacramento  Guimarães,  Francisco  Gomes  Malveira,  a  rogo  de  Porphirio LAsaro da Silva, Antonio Mendes d’Almeida, Manoel Mathias Pereira, a rogo  de Ludgerio José bandeira, Francisco Gomes Malveira, João Roberto Lopes, Francisco  Luiz  Oliveira,  Joaquim  C.  dos  Santos,  Antonio  Barbosa  Conde,  a  rogo  de  Antonio  Victorino  da  Silva,  de  Antonio  Chrispim  de  Almeida,  de  Balthasar  de  Cravalho,  de  Carlos  Moreira  Torres,  de  Domingos  Alves  da  Silva,  de  Eufrosino  Alves  Guerra,  de  francisco  Cassiano  Monteiro,  José  Carvalho,  João  Nogueira  de  Miranda,  Olyntho  Meira, manoel Theophilo de Serpa.  ******  Ao chegarem os bolivianos em Manaós, a imprensa annunciou a sua deposição e o  levante do povo, e um periodico no Para – o Cearense – dirigido por José de Carvalho  Lima  e  Raymundo  Silveira,  deu  noticia  dos  acontecimentos  publicando  todos  os  documentos. 

(*) Residente actualmente nesta Capital

III  Não estavamos longe de pagar o tributo inevitavel de saude e de vida, que, ha tão  longos annos, é um jus do monstruoso minotauro do Acre.  Alguns  dias  depois  da  retirada  dos  bolivianos,  cinco  dos  companheiros  caíram,  para sempre,  na  voragem  da  morte.  Henrique de Pontes  Barroso  foi o primeiro que o  beribéri galopante quase fulminou. No dia seguinte, depois de uma longa agonia, morria  José Martins; José Nunes de Mello, algumas  horas depois, e logo em seguida Olyntho  Meira. Eram todos cearenses, menos o ultimo que era pernambucano.  As infinitas modalidades do impaludismo no Acre, são um vastíssimo campo para  especulações  scientificas.  Todo  os  dias,  pode­se  affirmar,  parece  um  caso  surprehendente da terrível endemia, muitas vezes completamente desconhecido. A vida  no  Acre  é  apreciada  como  elemento  nunca,  até  hoje,classificado  pelos  economistas  e  chrematisticos; é apreciada como capital; capital esse, que, sendo necessariamente o de  primeira ordem, é o mais fungível e o que é arriscado primeiro na ordem das transações.  D’ahi  a  ganância...  não!  não  digo  bem:  ­  d’ahi  essa  pressa,  esse  anceio  desesperado de ganhar depressa, para mais cedo sair do perigo.  Essa  feição  que  foi  generalisada  e  duramente  tratada,  ha  pouco  tempo,  pelo  pessimismo  de  um  talentoso  e  distincto  official  do  exercito,  o  Sr.  Alípio  Bandeira,  torna­se, porem, mais accentuada na grande ordem dos flibusteiros, dos negociantes de  todos os annos, aos milhares, corre para o Acre. São negociantes de todos os jaezes, são  especuladores  de  toda  a  sorte,  que  no  tempo  da  cheia,  de  Novembro  a  Maio,  correm  para o  Eldorado,  em bsuca da  fabulosa  fortuna  sonhada.  Nesses,  sim,  a  pressa  é  mais  desesperada, o desejo do ganho está na razão directa do medo de morrer e do desejo de  gosar fora do perigo. Porque, em verdade, com os proprietarios, os que estão vinculados  ao  solo  e  mais  do  que  isso  –  presos  ás  infinitas  e  ternas  malhas  dos  compromissos  commerciaes  com  a  Praça ,  não  é  tão  accentuada  e  intensa  essa  pressa  do  ganho.  Resistindo ao clima e ás molestias, grande numero de proprietarios vive há longos anos  no Acre. Só alli – como em todo o interior do Amazonia – quem não tem pressa porque  não  tem  dinheiro  é  o  pobre  seringueiro,  escravisado  eterno,  eternamente  sonhando  o  SALDO,  que  todos  os  annos  lhe  foge  mysteriosamente,  sem  que  elle  possa  explicar,  porque  não  sabe  ler  a  factura  pelo  patrão  fornecida  (ha,  como  em  todas  as  cousas,  nobres excepções) e nem  ler  na balança romana  o numero indicador dos kilos que lhe  custaram  o  suor.  E  elle  fica!  Fica  para  o  anno  seguinte,  a  sonhar  o  SALDO,    a  fazer  economias, comprando pouco, caçando mais a caça que lhe fornece melhor alimentação,  mais  nutrictiva e  saborosa e lhe evita comprar o jabá! (carne de xarque). E no fim do  anno o SALDO lhe foge outra vêz, porque os compromissos do patrão cresceram com o  outro patrão da Praça, do qual, por sua vez, o primeiro não é sinão mais que um outro  seringueiro.  *******  Deixando atraz de meus  passos uma esteira de mortos e deixando integralisado o  direito do Brazil no Acre, voltando todo elle ao antigo curso normal, ficando a Comarca  e o Municipio restituidos a si mesmos e os nossos patricios sob a mesma bandeira auri­  verde  de  nossa  Patria, desci  no dia  24 de Maio, em  lancha,    e  em  companhia  de  Atto  Pessôa,  secretario  da  Intendencia  e  distincto  moço  cearense,  cheio  de  nobre  coragem  leonina  e  de  preclaras  qualidades  de  carater.  Ambos,  eu  e  elle,  vinhamos  bastante  doentes,  em  busca  de  vapores,  na  Cachoeira  do  Purus,  para  descermos.  Ainda  em  viagem, na lanha, começou o pobre rapaz a perder o equilibrio de espirito e a devaneiar.

Era a confundir o nome das pessôas e a narrar uma serie interminavel de historias que se  truncavam  e  se  repetiam  indefinidamente,  e  assim  falava  até  ficar  exhausto,  sem  attender a pedidos de ninguem.  Depois de cinco dias de viagem chegámos a “Cachoeira”, onde não encontrámos  vapor.  Descemos,  então,  para  um  seringal  que  fica  pouco  abaixo,  chamado  de  Ihutanaan, pertencente a um cearense que nos deu hospedagem mediante pagamento de  uma diaria. Já ahi eramos uma porção de passageiros que demandavam Manáos, Pará,  Ceará, etc. Atto Pessôa caira em estado de completa prostação e demencia. Poucos dias,  depois,  chegou  a  esse  porto um  vapor,  cujo  commandante  não quis  receber  a bordo o  pobre  rapaz, que  embora  estivesse  mal,  poderia,  com  a  viagem  ter  escapado  á  morte.  Não houve pedidos e solicitações de minha parte que demovesse o commandante de sua  obstinada  recusa.  Todos  os outros passageiros,  alguns  dos  quaes  moram nesta  capital,  embarcaram. Fiquei ao lado do pobre enfermo. Poucos dias depois chegou a Ihutanaan o  bom  e  benemerito  Padre  Leite,  vigário  da  Lábrea,  há  mais  de  20  annos,  que  lhe  deu  todos os sacramentos da hora da morte.  No dia  seguinte  agonisava elle,  depois de me  estender  a  mãoe dar­me um  longo  adeus  de  despedida,  um  longo  e  eloquente  aperto  de  mão,  onde  punha  toda  a  sua  grandeza de sua alma de moço agradecido e generoso.  Com outro, carreguei­o para a sepultura, numa rêde, porque alli  não havia quem  houvesse fazer um caixão.  E lá se ficou o pobre e heroico rapaz, cuja sepultura rasa e humilde, á margem do  Purus, ficou sempre significando, para mim, a primeira sentinella avançada, na defeza  dos nossos sagrados direitos.  Sem  aportar  em  Ihutanaan  passou  alguns  dias  depois  um  vapor  em  direcção  á  Cachoeira.  Voltou  com  pequena  demora,  ainda  sem  aportar,  apesar  de  insistentes  chamados a tiros, como é de costume nos rios. Mais uma vez perdi a oppotunidade de  descer.  Só  quando  chegou  o  vapor  “Cearense”  de  uma  firma  commercial  do Pará,  da  qual  era  eu  advogado  no  Acre,  foi  que  pude  embarcar  e  ainda  assim  para  voltar  á  Cachoeira e ahi esperar lanchas que vinham de cima com carregamento de borracha.  Ahi, em Cachoeira, fiquei extraordinariamente surprehendido com a noticia de que  no ultimo vapor que alli  chegára, viera  e já  havia subido, em lancha, para o Acre, um  novo Superintendente, Manoel de Oliveira Bastos, acompanhado de novas autoridades  municipaes e judiciarias para Floriano Peixoto e acompanhado mais de uma commisão  de  hespanhoes,  tendo  á  frente  um  de  nome  Galvez  que  ia  proclamar  no  Acre  –  Uma  Republica Independente!  Eu estava acostumado a ver as monstruosas cousas que se faziam  no governo do  Amazonas, mas não podia acreditar  naquella que, alem de me parecer ultra­fantastica,  julgava  um  attentado  e  um  crime  com  o  qual  o  governo  do  Estado  não  podia  se  comprometter  e  nem  brincar.  E  só  me  certifiquei  da  veracidade  desse  facto,  quando,  poucos  dias  depois,  chegou  de  volta  a  lancha  “S  Miguel”  que  havia  sido  fretada  por  Galvez para leva­lo e aos seus hespanhoes, e mais as autoridades de Floriano Peixoto. O  pobre  homem  proprietario  da  lancha,  volvia  do  Acre  desesperado,  arrancando  os  cabellos,  queixando­se  amargamente  de  Galvez,  que  não  lhe  pagára  o  frete  da  embarcação e, pelo contrario – lhe fornecera uma conta pela qual ficava, elle lancheiro,  devedor de uma avultada quantia  e ainda, por cima, ameaçado de sofrer violencias  no  Acre.  Elle me offereceu essa conta fornecida pelo aventureiro e ainda a possuo junto aos  originaes  de  que  tenho  lançado  mão  para  escrever  este  trabalho.  Em  toda  a  narração  afflicta  do  pobre  homem,  a  contar  a  historia  do  seu  grande  prejuizo,  queixava­se  do

Superintendente que, enquanto elle recaleitrava em fretar a lancha, chegou­se ao seu pé  e disse­lhe baixinho: ­ Você quer tirar o pé da lama? frete a lancha ao homem!  Soube, tambem, que as novas autoridades de Floriano Peixoto levavam ordem do  governo  do  Amazonas  para  me  processar  pelo  crime  de  haver  deposto  os bolivianos!  Esse processo foi iniciado.  Desci, pois, desilludido e doente, e em Manáos soube da escandalosa farça: era um  syndicato  que,  depois  da  chegada  dos  bolivianos,  se  organisára  entre  o  governador  Ramalho, seu ministro Pedro Freire – talvez a alma credora dessa empreza – e Galvez,  que  a  esse  tempo  geria  uma  casa  de  jogo  e  de  prostituição  á  estrada  Epaminondas.  Galvez era um simples caixeiro do syndicato em cujas mãos deviam cair todas as rendas  do Acre.  O coronel Monteiro, José Martins e mais autoridades, foram pois, accintosamente  demittidos,  sob  o  fundamento  altamente  moralisador   de  haverem  tomada  parte  na  revolução,  quando,  em  verdade,  o  Superintendente,  nella  não  interviera  de  forma  alguma. E foi assim creada a Republica  de Galvez, aventura infeliz e criminosa que tanto  comprometteu  os  destinos  da  questão  do  Acre  e  que  depois  pela  pacificação  –  uma  outra farça – custou ao Estado do Amazonas mil e dusentos contos, e que ainda hoje,  por cumulo! é tida como ponto de partida da insureição acreana.  Os habitantes do Acre – faço­lhes justiça – acceitaram a farça de Galvez, que lhes  mandou  o  Governo  do  Amazonas,  não  só  de  boa  fé,  sinão  porque  acceitariam  tudo,  menos o dominio boliviano.  Em Manáos vi­me sosinho, condemnado por quase todos, que enthusiastas, batiam  palmas  a  Galvez  e  sua  Republica,  simplesmente  porque  sabiam  que  aquillo  partira do  governo,  ao  qual  precisavam  agradar  e  curva­se  com  as  mais  baixas  provas  do  servilismo.  Ao  voltar  do  Ceará,  alguns  mezes  depois,  doente  ainda,  e  sem  recursos  pecuniarios,  foi  o  infeliz  Pensador   –  o  pobre  Rei  Lear,  prêto,  que  tendo  dividido  o  Reino  entre  os  amigos,  viu­se,  depois, louco,  correndo  sosinho  pelas  ruas  de  Manáos,  morrendo abandonado, mysteriosamente, e deixando alli perpetuada uma outra tragedia  Schackspeareana –  foi, disia o PENSADOR, ao qual no Amazonas só devo, com uma  carta de recommendação, esse favor, que indo se interessar por mim junto ao governo  para  que  não  fosse  eu  hostilisado  no  Acre  e  podesse  desembaraçadamente  tratar  dos  negocios  de  casas  commerciaes  de  que  era  encarregado,  trouxe­me  a  certeza  de  que  estava  interdicta  a  minha  ida  para  alli,  sob  o  fundamento  de  que  havia  sido  eu  que  tocára fogo no Acre!  Dissera­lhe  isso,  em  palacio,  o  Sr.  Silverio  Nery,  já  indigitado  senador  e  governador,  e  já  influindo  nos  destinos  politicos  do  seu  Estado,  tão  digno  de  melhor  sorte.  Em no entanto, a farça de Galvez continuava ainda.  Hypocritamente,  depois,  quando  o  governador,  mandou  elle  mais  de  uma  vez  tocar fogo no Acre, em expedições mal organisadas, que tanto chafurdaram a questão e  que  custaram  grandes  sacrificios  de  vida  e  mais  uma  vergonha  ao  Amazonas  e  ao  Brazil.  Não estavam, ainda, terminadas as provações do meu grande crime. Não podendo  voltar  para  o  Acre,  fui  exercer  a  minha  profissão  no  rio  Madeira,  em  Humaytá.  Ahi,  pelo simples facto de ser advogado na comarca, fui, por outro advogado, envolvido na  trama  de  uma  tenebrosa  intriga  de  aldeia.  E,  num  pasquim  indignissimo,  onde  a  humildade do meu nome foi coberta das mais injuriosas calumnias, falou­se nas minhas  correrias do Acre! E essa  infâmia, com outras maiores, foi escripta por uma bacharel,

um  Bernardino  Paiva,  que,  sendo  no  Pará,  um  jacobino  exaltado,  onde  muito  gritou  contra a situação então dominante, falando muito em Republica, inimigo dos gallegos,  cobrindo  tôrpes  injurias  o  nome  do  dr.  Paes  de  Carvalho,  tem    servido  o  papel  de  simples  alugado  de  um  commendador  barato  de  Portugal,  um  sr.  Monteiro,  homem  ignorante  e  mau,  que  attribue  sua  influencia  politica  no  Madeira  ao  facto  de  (como  affirma)  nunca ter acceitado patente da Guarda Nacional do Brazil,  cousa de que fala  com arrogante despreso.  As  minhas  correrias  no  Acre  têm­me  custado  carissimo!  Não  me  quiexo;  sei  avaliar  das  cousas  humanas  e  do  atraso  de  nossa  educação  civica  e  moral.  E  muitas  vezes, commigo só, tenho me encontrado surprehendido a perdoar as muitas miserias de  que fui victima por parte de meus pobres, pequeninos e gratuitos inimigos. 

**** 

Que  este  opusculo  caia  ou  não  no  marasmo  da  indifferença  publica,  pouco  importa!  Conheço bem os deffeitos de nossa educação.  Há  pouco  tempo,  vindo  de  uma  comarca  afastada,  no  interior  do  Pará,  estava  ancioso  por  saber  noticias  do  Tratado  do  Acre.  Ao  aportar  a  uma  cidade  próxima  á  Capital, embarcou um conhecido, ao qual pressuroso me dirigi, perguntando­lhe si tinha  lido  os  últimos  jornaes,  e  o  que  havia  sobre  o  mesmo  tratado.  Com  uma  indifferença  admiravel respondeu­me o interpellado: ­ Jornaes eu li, em terra, mas sobre o tratado do  Acre  nada  sei  porque  agora  só  presto  attenção  aos  telegrammas  que  dão  noticias  da  guerra da Russia com o Japão!  É isto, actualmente, muito caracteristico, muito brazileiro!  Com outra educação, porem, para o futuro, essa indifferença se ha de acabar, e o  Brazil será pelas industrias, pelas lettras, pela politica, por todas as fontes de progresso,  uma das maiores, mais bellas e mais poderosas Pátrias do mundo! 

IV  Vou terminar pedindo a Deus que o tratado de Petropolis tenha posto fim decisivo  á  malfadada  pendência;  que  a  ova  linha  a  traçar  não  traga  mais  tão  funestas  consequencias quanto a primeira, aliás de tão facil comprehenção.  Há no paiz uma opinião manifestamente contraria á obra do Barão de Rio Branco  é uma questão, parece­me de melindre e de zelo nacional achando que cedemos muito  a  Bolivia. Mas a Bolivia tinha direitos a respeitar – é força reconhecer – e assim o Direito  e a Justiça, palavras de que nós brasileiros fazemos tanto gasto, ficam tendo no Brazil  uma significação objetiva e real.  Si é permittido ter hoje uma opinião quem a teve no começo dessa pendencia, eu  direi  que,  si  o  Acre  é  realmente  todo  brazileiro,  si  os  nossos  patricios  alli  não  vão  recomprar os seus seringaes á Bolivia, como estavam condemnados a fazer, si a nossa  posse, feita á custa  de milhares de vida, foi pelo mesmo tratado respeitada e garantida,  e si não resta ao dominio estrangeiro uma só parcella de vida nacional, passando a linha  redemptora acima da ultima barraca dos nossos seringueiros, então o trabalho de nosso  grande  patrício  é,  de  facto,  como  elle  o  quer,  a  maior  de  todas  as  suas  obras.  Ve­lo

tirado  á  limpo  e  completo  não  deverá  custar  muito.  Cumpro,  até  hoje,  o  dever  de  acreditar que o nosso immortal advogado nas Missões em Amapá soube o que fez, não  compromettendo, em caso de tanta monta, o seu nome e o seu passado; e mais do que  isto Concidadãos! – que elle não deixe de amar a sua Patria tanto quanto ella é digna de  ser amada.  Há um outro heroe que jamais deve ser esquecido – é o povo do Acre.  Belem – Pará – Março – 1904. 

NOTAS  Estava  escripto  este  humilde trabalho  e  nelle não  havia outra intenção sinão a  de  deixar  perpetuada a verdade de um acontecimento que pode ter o seu valôr na história de nossa patria.  Á  ultima  hora,  porem,  vejo  em  noticias  diarias  da  imprensa  do  norte  que  ha  –  como  textualmente li – um enttente condiale, entre o governo federal e o estadual do Amazonas sobre  a administração daquelle territorio. Causou­me essa noticia profunda tristeza. Pois que! não foi,  sempre, esse mesmo governo do Amazonas o maior compromettedor de toda a questão do Acre,  ora mandando proclamar, alli, a Republica de Galvez, ora mandando expedições de força, mal  organisadas, que foram vergonhosamente rechassadas por um troço de bolivianos?  O governo federal, transacto, teve de certa forma sua rasão mandando repor os bolivianos,  porque, não comprehendendo que no Acre houvesse realmente patriotismo, só conhecia d’alli as  immoralissimas farças do governo estadual.  Diz­se que  o Barão  do Rio Branco  não intervem  nas  cousas  da politica interna  do paiz:  estranho,  porem,  que  elle  não  intervenha  neste  caso,  olhando  para  o  resto  de  sua  obra  e  não  consentindo, a bem do pudor de um governo moralisado, nesse enttente cordiale com o governo  do Amazonas.  O  desmembramento  do  Acre  e  sua  administração  feita  pelo  governo  federal  é  uma  das  mais dignas e honrosas feições do Tratado de Petropolis.  ******  Os  documentos  originaes  transcriptos  neste  trabalho  e  outros  mais  aos  quaes  se  não  alludiu,  como  uma  acta  lavrada  pelas  autoridades  bolivianas,  em  que  confessavam  litigioso  o  terreno  e  declarando  “ Que  cualquier  violencia  em  los  críticos  actuales  momentos  importaria 

uma  grave  complicacion  em  el  litijio  de  nuestro  derecho,  exarcevando  los  ânimos  de  mas de  quince  mil  brasileros  pobladores  de  este  rio,  de  perfecto  y  comum  acuerdo  resolvieram  someter­se  a  la  imposion...  etc.” ;  e  mais  a  Lei  e  Regulamento,  sobre  a  compra  de  seringaes  (Adjudicacion  de  Estradas  Gomeras)  onde  havia  disposições  que  provocaram  entre  os  proprietarios funda indignação e revolta, como a necessidade de comprarem, outra vez,  os seus  seringaes  á  Bolivia,  e  ainda  muitas  outras  disposições  contrarias  ao  uso  geral  dos  brasileiros,  etc., serão offerecidos, pelo autor, ao Barão de Studart, no Ceará, com a seguinte dedicatoria: 

Ao Exm.° Sr. Barão de Studart  ­  ao  emerito  trabalhador  da  historia  da  terra  cearense,  são  offerecidos  os  documentos  originaes  referentes  á  primeira  insurreição  do  Acre,  cuja  historia  não  é  sinão uma continuação do historia do Ceará.

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