A FILHÓ DOURADA António Torrado escreveu e Cristina Malaquias ilustrou
A história que vou contar chama-se "A Filhó Dourada". Douradas, muito douradinhas são elas todas, empilhadas na travessa, como um castelo por conquistar. As últimas são as melhores. Têm mais açúcar, desfazem-se mal lhes tocamos… A gente pega delicadamente numa das que sobraram, dá-lhe um impulso que a ponha a deslizar na travessa, para ensopar bem, e num gesto rápido, sem pingar a toalha, mete-a na boca. O estalar dela, de encontro aos nossos dentes, é música com açúcar. Naquela ceia de Natal, todos tinham comido filhós. – Estão uma delícia – comentavam. E, porque estavam uma delícia, não tinha sobrado senão uma, no fundo da travessa. Era uma ilha minúscula e redondinha, rodeada por um mar de açúcar. Todos os olhos fitavam a filhó, que estalava em reflexos de oiro. Uma tentação. 1 © APENA - APDD – Cofinanciado pelo POSI e pela Presidência do Conselho de Ministros
À roda da mesa, diziam para o avô: – Só ficou uma filhó. Porque é que a não come? O avô, então, virava-se para a avó e segredava-lhe: – Come tu, anda lá. A avó não queria. – Comam vocês – dizia ela, apontando para a filhó e para os filhos. – Eu já comi muitas – desculpava-se um. – Também tenho a minha conta – dizia outro. – Nem mais um bocadinho – declarava um terceiro. Parecia que nenhum queria tomar a responsabilidade de comer a filhó. No entanto, ela lá estava muito dourada, a recortar-se no meio da calda de açúcar. Apetecia mesmo ver e… comer. Mas, à volta da mesa, não se decidiam. E a filhó, a última filhó, andava de boca em boca, sem se fixar na boca de ninguém. De oferta em oferta, chegou a vez da tia Luísa propor: – Os pequenos que comam. Sempre quero ver qual dos meus sobrinhos chega primeiro à filhó. Os meninos não se precipitaram sobre a filhó apetitosa, como seria de esperar. Cada um ficou à espera do primo ao lado, e o primo ao lado do outro primo ao lado… Fosse por acanhamento ou fosse por que fosse… – Afinal ninguém a come – observaram do outro extremo da mesa. – Esta filhó deve ser mágica. Olharam uns para os outros e sorriram. A ceia estava no fim. Os meninos tinham sono. O avô cabeceava. Começou a ouvir-se o arrastar das cadeiras. Era a debandada. – Amanhã se arruma a casa – disse a tia Luísa, e apagou a luz da sala de jantar. 2 © APENA - APDD – Cofinanciado pelo POSI e pela Presidência do Conselho de Ministros
Quando todos já se tinham ido embora, a filhó, no lusco-fusco, ao meio da mesa, começou a brilhar. Intensamente. Acreditem ou não, como se tivesse luz dentro. Como um pequeno sol ou um bocadinho de oiro, a desfazer-se em açúcar. FIM
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