Arquivos Municipais - Da Visão Local à Perspectiva Global

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Arquivos municipais: da visão local à perspectiva global ∗

Fernando Correia Pina

Longe vai o tempo em que, referindo-se aos arquivos dos municípios, escrivães e oficiais das governanças falavam das arcas onde andava o concelho. De facto, nessas épocas remotas, a documentação de uma pequena autarquia cabia, inteiramente, na segurança de uma arca onde se guardavam privilégios, posturas e umas escassas séries documentais, imprescindíveis ao bom funcionamento da instituição e à manutenção harmoniosa da vida local. Desde então, circunstâncias diversas como a crescente complexidade das relações entre os diversos agentes da vida local e das suas interacções, a diversos níveis, com outras entidades exteriores à sua área de influência directa, levaram ao surgimento de novos órgãos e funções cuja actividade se veio a traduzir num crescimento exponencial da produção documental, prova provada da implantação daquilo a que já alguém chamou de civilização da escrita e a que, advogando em causa própria, poderiam com propriedade os responsáveis pelos arquivos municipais, tão frequentemente intimidados pela imensidade das massas documentais acumuladas colocadas à sua responsabilidade, denominar de civilização do papel amontoado. Lembremos, porém, – e muito convém que o façamos – que o crescimento dos fundos arquivísticos locais não pode nem deve ser encarado como um processo linear de crescimento orgânico interno. Muitas das dificuldades de organização da documentação com que os arquivistas locais se deparam, decorrem, antes, e para usar uma imagem em voga na esfera da paleontologia, de verdadeiras extinções em massa de órgãos produtores de documentos e da posterior anexação dos seus fundos a outros que lhes sobreviveram. Recordemos apenas, a título de exemplo – e continuando a usar da metáfora – os verdadeiros

cometas

político-administrativos

do séc. XIX que conduziram ao

desaparecimento de centenas de concelhos e à posterior anexação de milhares de freguesias às autarquias prevalecentes ou ainda as destruições maciças de documentação que sempre alimentaram as fogueiras dos conflitos bélicos. Desse processo pleno de descontinuidades,



de acidentes fortuitos ou de acções concertadas são fruto os nossos arquivos municipais. Arquivo Distrital de Portalegre

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Reduzidos durante séculos à sua função original de registo com fins probatórios de actos administrativos, acessíveis apenas à instituição produtora ou a um número muito restrito de investigadores, os arquivos municipais, mormente na sua componente histórica ou inactiva, ganharam, de há duas ou três décadas a esta parte, uma merecida visibilidade traduzida na crescente atenção que lhes tem sido votada quer pelas autarquias detentoras, quer pelas entidades superiormente responsáveis pelas políticas arquivísticas oficiais, esta última bem patente na implementação de programas à escala nacional, de todos bem conhecidos. Os arquivos municipais, reconheçamo-lo, entraram já numa nova fase da sua secular existência. O imenso manancial de informação neles contida, na sua maior parte inédita ou insuficientemente divulgada, tem agora, graças à disponibilidade das novas tecnologias, possibilidades de se integrar em contextos bem mais vastos que o das visões local ou regional, permitindo uma abordagem multifacetada, um cruzamento de dados facilitador da compreensão de fenómenos até agora apenas aflorados, numa escala sem precedentes. Não competirá ao arquivista, como é evidente questão de bom senso, a exploração sistemática dessa informação: ela cruza demasiadas áreas disciplinares que exigem outras tantas áreas de formação específica. Ao arquivista caberá, antes, a responsabilidade da sua organização e disponibilização porque, caso contrário, correremos o risco da designação “mortos” se aplicar, com propriedade, aos nossos arquivos. Aqui chegado, irei agora, através de alguns exemplos, tentar ilustrar o que atrás ficou exposto, isto é, a importância da inclusão e cruzamento das informações dos arquivos locais em contextos mais latos. Na dupla condição de representante de um arquivo distrital e de convidado de uma autarquia, mal pareceria que não recorresse a elementos colhidos quer do arquivo onde trabalho quer de um arquivo municipal, o que farei. Os arquivos locais como fontes de informação paleoclimatológica As crescentes preocupações ambientais têm vindo, de modo progressivo, a chamar a atenção do cidadão comum para os fenómenos atmosféricos enquanto manifestações de um processo global. Sabe-se hoje, por exemplo, que a destruição da floresta amazónica tem repercussões no regime das chuvas na Europa ou na retracção das calotes polares.

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As anomalias climáticas foram, desde sempre, objecto de espanto e preocupação, especialmente nas sociedades agrárias onde a subsistência das comunidades se achava intimamente relacionada com o regular ciclo das estações. Daí que os nossos arquivos locais sejam um manancial inexaurível de informações relativas ao estado do tempo, às irregularidades meteorológicas, às pragas e doenças que determinavam a bondade ou esterilidade dos anos, informações que seria de toda a conveniência sistematizar e disponibilizar, no sentido de uma mais exacta compreensão de fenómenos tão complexos. Com base nos dados recolhidos do arquivo histórico do município de Fronteira, procurarei seguidamente demonstrar o acima dito através de dois exemplos relativos aos começos dos séculos XVII e XIX, respectivamente. O estranho ano de 1600 Impressionado pela irregularidade do tempo que se fizera sentir ao longo do ano agrícola de 1600/1601, ano extremado em algumas particularidades poucas vezes vistas, Álvaro Martins, escrivão em Fronteira, decidiu, para pôr em memória algumas das coisas que nele aconteceram, confiar ao papel as suas observações1. Chegou, deste modo, aos nossos dias, um precioso conjunto de informações sobre as anomalias atmosféricas então verificadas. De acordo com o relato, passante dia de Nossa Senhora de Agosto choveu dois dias um após o outro tão manso e tão quieto como pudera fazer no inverno e passados os dois dias e até todo o mês de Outubro nunca tornou a chover. No começo de Novembro, choveu uma só pancada ainda que pouca e saíram a começar a lavoura mas não podiam fazer. Dia dezoito do mesmo mês, voltou a chover, ainda que pouco e apenas a oito de Dezembro choveu já alguma coisa. Face à escassez da precipitação a força das sementeiras foi pelo Natal e ficaram quase a metade para depois da festa acabaram por semear até quase o fim de Janeiro e pela falta que houve de água na sementeira cresceu o preço do trigo. Ficamos, assim, através de um testemunho produzido expressamente com o fim de instigar os homens a terem confiança em Deus Nosso Senhor em suas coisas mais que em suas indústrias, a conhecer um ano agrícola marcado pela escassez de chuva, com consequências sensíveis no período das sementeiras, no baixo rendimento das produções e no consequente aumento dos preços do cereal. Apesar do inegável interesse da notícia, nada mais poderíamos, antes, concluir além do evidente e a mesma esgotava-se na sua abrangência local. 3

Hoje, porém, podemos, sem dificuldade de maior, cruzar essa informação com outras afins, coligidas de diferentes fontes arquivísticas e constatar que as anomalias climatéricas se manifestaram, no mesmo período, a uma escala muito mais vasta: Entre 1601 e 1603 a Rússia sofreu os efeitos da mais devastadora fome imputável a causas naturais da sua história. Estima-se hoje que cerca de dois milhões de pessoas, um terço da população, terão sucumbido, acelerando a queda do czar Boris Godunov2. Na Estónia, o Inverno de 1601/1602 ficou registado como o mais frio num período de quinhentos anos. Na China, no mesmo período, os pessegueiros floriram tardiamente, outro tanto sucedendo em França com a maturação das uvas cuja produção foi, por sua vez, praticamente nula na Alemanha e no Peru.3 Face à semelhança das informações provenientes de origens tão díspares e de outras decorrentes de diversas fontes complementares, é hoje possível afirmar que o período em causa ficou marcado por um défice de precipitação e baixas temperaturas, a nível global.

Fig. 1

Investigações recentes parecem ter estabelecido o denominador comum de todas as anomalias apontadas: a erupção do vulcão Huaynaputina (Fig.2), nos Andes peruanos que, entre os dias 19 de Fevereiro e 6 de Março de 1600, lançou na atmosfera uma enorme quantidade de enxofre o qual, ao reagir com o vapor de água do ar, originou a formação de uma película de gotículas de ácido sulfúrico, provocando uma redução sensível da quantidade de radiação solar recebida pela superfície terrestre4.

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Fig. 2

O estudo da correlação entre a erupção do Huaynaputina e as aberrações climatéricas sentidas no início do séc. XVII continua em aberto. Nesta pesquisa, a informação conservada nos arquivos, nomeadamente nos arquivos coloniais portugueses e espanhóis da América do Sul, tem-se revelado de fundamental importância. Cremos, pela parte que nos toca, que muitos mais elementos existirão ainda, à espera de serem recuperados e explorados, nos nossos arquivos municipais. Mil oitocentos e morrer de frio Que relação poderá existir entre Frankenstein, a bicicleta e o preço do trigo num concelho do norte alentejano? Assim continuamos, em jeito de adivinha, o nosso périplo por vulcões, anomalias climáticas e arquivos, debruçando-nos agora sobre o calamitoso ano de 1816, conhecido como o ano sem Verão ou ainda como mil oitocentos e morrer de frio, tal a descida das temperaturas médias que acarretou o consequente colapso da produção agrícola em algumas partes do hemisfério norte bem como a alteração do regime das monções, com efeitos catastróficos na Índia e China. Vejamos, então, mais pormenorizadamente, as consequências da vaga de frio que assolou a Europa ao longo daquele estio. Comecemos pela Suíça onde a penúria de alimentos obrigou a população a consumir ervas e musgo para não perecer de fome. Aí, nas margens do lago Genebra, retidos pelo intenso frio que se fazia sentir em pleno mês de Junho e em reposta a um desafio lançado por Byron, Mary Shelley viria a criar a personagem de Frankenstein cujo nascimento foi acompanhado de perto pelo do vampiro imaginado por Polidori, antecessor directo do Drácula de Bram Stocker5. 5

Na Alemanha, a escassez de cereal panificável obrigou ao fabrico de pão à base de palha e serradura e ao abate de cavalos para consumo humano. A falta destes animais de tiro e a necessidade de um meio de transporte alternativo terá estado na origem da invenção de Karl Drais, a Draisine, antepassada da actual bicicleta6. Na Irlanda, chuvas prolongadas durante o Verão arruinaram as colheitas de trigo, aveia e batatas, num prenúncio das grandes fomes da década de mil oitocentos e quarenta. Relativamente à Península Ibérica e nomeadamente a Portugal, onde os efeitos do frio não se fizeram sentir de forma tão intensa, o ano de 1816 foi já objecto de estudo que veio confirmar a descida anormal das temperaturas. Testemunha presencial dos acontecimentos, o padre e advogado José Manuel da Silva Tedim, de Braga, referindo-se ao mês de Julho daquele ano, deixou registado para a posteridade que na sua vida já longa de setenta e oito anos nunca lhe fora dado ver tempo com tanta chuva e frio, mesmo nos meses de Inverno. Outros testemunhos indirectos referem ainda atrasos notáveis na época das vindimas e da maturação da azeitona cuja apanha, no ano seguinte, na região de Coimbra, decorreu durante o mês de Abril. De igual modo se registou a proliferação, durante o Verão, de afecções respiratórias características dos meses de Inverno7. Sabe-se hoje que na origem de fenómenos tão bizarros esteve a violentíssima erupção do Monte Tambora, na ilha de Sumbawa (Indonésia), de 10 de Abril de 1815, que lançou na circulação atmosférica muitos milhões de toneladas de gases e partículas sólidas, com efeitos semelhantes aos já mencionados a propósito do Huaynaputina, agravados pelas duas grandes erupções prévias do Soufrière e do Monte Mayon em 1812 e 1814, respectivamente8. Existem para a nossa zona alguns dados susceptíveis de se inscrever neste quadro tão vasto? Vejamos. Reproduzem-se na tabela seguinte os preços médios mensais do trigo comercializado no concelho de Fronteira, entre 1780 e 18209. Ao longo de quarenta anos constata-se que, apesar de variações muito sensíveis no seu preço, o cereal se transaccionou com grande regularidade sem disrupções visíveis.

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1780 1781 1782 1783 1784 1785 1786 1787 1788 1789 1790 1791 1792 1793 1794 1795 1796 1797 1798 1799 1800 1801 1802 1803 1804 1805 1806 1807 1808 1809 1810 1811 1812 1813 1814 1815 1816 1817 1818 1819 1820

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650 700 640 320

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AGO SET

OUT NOV DEZ

Porém, para o mês de Maio de 1816, não existe qualquer valor o que poderá significar, à semelhança do que viria a suceder anos mais tarde, no esterilíssimo ano 1846, a inexistência de cereal no mercado. Mas, como atrás sublinhámos, não é missão do arquivista a confirmação de hipóteses mas, antes, a disponibilização da informação aos especialistas das diversas áreas de estudo que, de outro modo, não teriam acesso a elementos quiçá valiosos no âmbito do seu trabalho. Cumprindo o atrás prometido e para finalizar, passarei agora a citar documentação dos fundos do Arquivo Distrital de Portalegre, num horizonte muito diverso daquele onde tenho vindo a mover-me. De entre os documentos cuja apresentação considerei, elegi pela sua raridade bem demonstrativa da riqueza e diversidade da informação contida nos nossos arquivos, dois breves registos referentes a uma aparição da Virgem, não muito longe daqui, de que creio não haver notícia prévia. Com a vossa licença, passarei agora do terreno das manifestações da natureza para o das manifestações sobrenaturais. As aparições da Nave Fria A 19 de Setembro de 1846, junto da localidade de La Salette, no departamento de Isère, em França, pelas três horas da tarde, dois jovens pastores, Mélanie Calvat e Maximin Giraud, tiveram a visão de uma senhora de grande beleza, envolta numa luz resplandecente. Antecipando o que, muitos anos depois, viria a suceder em Fátima, a aparição confiou aos pastorinhos dois segredos que viriam a ser comunicados ao papa Pio IX, em 1851, ano em que a aparição foi oficialmente reconhecida pelo Vaticano sob o título de Nossa Senhora de La Salette, tornando-se, desde então, a pequena localidade num dos principais destinos de peregrinação da cristandade.10 Porém, apenas um ano antes, outra suposta aparição tivera lugar, bem mais perto de nós, no lugar da Nave Fria, a qual não teve repercussões para além do âmbito local e que, não fossem os breves registos que dela ficaram por razões contabilísticas, na correspondência para o administrador do concelho de Arronches, teria caído no mais completo esquecimento. Ei-los:

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Illustríssimo Senhor Sirva-se Vossa Senhoria intimar a Eugénio Martins, recebedor das esmolas que o ano passado se deram à Senhora supostamente aparecida no sítio da Nave Fria; e a Belchior Pereira Curvo, depositário do produto da venda de vários objectos que naquele mesmo sítio foram achados; a fim de que um e o outro no prazo da lei façam apresentar neste Governo Civil as quantias, por que são responsáveis, sob pena de proceder-se legalmente contra eles.11 O incumprimento desta intimação viria a estar na origem do segundo e último documento a seguir transcrito Ilustríssimo Senhor Constando dos assentos feitos no livro competente, que Belchior Pereira Curvo dessa vila, na qualidade de depositário do dinheiro, produto da venda de vários objectos pertencentes à suposta Senhora aparecida no sítio da freguesia dos Mosteiros, era devedor de reis 170.837; e havendo realizado a entrega somente de 169.837 reis, vindo portanto a restar a quantia de 1.000 reis, pena de procedimento.12 Independentemente da veracidade ou fraude desta mariofania, parece-nos indiscutível, até pela sua proximidade temporal com as aparições dos Alpes franceses, o valor da informação para o estudioso das manifestações de religiosidade popular, das aparições marianas ou dos fenómenos do paranormal tão em voga nos nossos dias.

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Referências

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Pina, Fernando Correia. Fronteira: subsídios para uma monografia. 2ª ed. Fronteira : Câmara Municipal de Fronteira, 2001. 2 Boris Godunov Biography (1551 - 1605) 3 Volcanic Eruption of 1600 Caused Global Disruption 4 Smithsonian Institute. Global Volcanism Program : Huaynaputina 5 Fagan, Brian M. The little ice age : how climate made history (1300-1850). New York : Basic Books, 2002 6 Cintra, Luís Guilherme, trad. Karl Drais: a nova biografia 7 Iberia in 1816: the year without a summer. International Journal of Climatology, 29:99-115(2009) 8 Year without a summer 9 Câmara Municipal de Fronteira. Estiva Camarária (1769-1927) 10 Clugnet, Léon. "La Salette." The Catholic Encyclopedia. Vol. 9. New York: Robert Appleton Company, 1910. 4 Jun. 2009 11 Portugal. Arquivo Distrital de Portalegre. Governo Civil de Portalegre. 2ª. repartição. Correspondência expedida para os administradores de concelho, 1846-1852, of. 157, 26 de Junho de 1846, f. 22 v.º, (PT/ADPTG/GCPTG/E/A/09/03) 12 Portugal. Arquivo Distrital de Portalegre. Governo Civil de Portalegre. 2ª. repartição. Correspondência expedida para os administradores de concelho, 1846-1852, of. 245, 7 de Agosto de 1846, f. 23, (PT/ADPTG/GCPTG/E/A/09/03) 1

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