Discurso de algumas cadeiras a seus cus Ilustríssimos cus: É nestes tempos de certíssima incerteza, de vil calúnia, de difamação gratuita que mais vos estreitais contra nós, vossas amantíssimas cadeiras, de nós haurindo a força que vos falece, em nós bebendo a inspiração que vos abandona, nos nossos braços colhendo as promessas que ainda não vos lembráreis de fazer. É nestes dias que sentis, como nunca, quão insípida vos será a vida longe do nosso aconchego. Não o negueis. Nós bem vos sentimos tremer como haveis tremido aquando do nosso primeiro encontro. Lembrais-vos ainda? Reverentemente, quase que a medo, sentaste-vos em nós e pensastes: e agora, que faremos? E logo nós vos acudimos com socorro inspirado, contando-vos a história do velho fidalgo a quem o jovem filho, também ele intimidado pela cadeira onde se sentava como novel vizo-rei da Índia, pediu avisado conselho sobre o rumo a dar à governação da mais preciosa jóia do lusitano império. Elíptico, respondeu-lhe o sábio ancião, em missiva que a monção levou: manda pimenta e deita-te a dormir. Nessas palavras que vos segredámos, achastes caminho firme. É verdade que, de início, não conseguistes abarcar o raciocínio em toda a sua latitude. Afinal, já não tínhamos pimenta nem caravelas, naus ou carracas que a trouxessem; tão pouco havia já reis e feitores, vedores, meirinhos e camareiros, grandes validos venais, porém, espertos que sois, logo vós, colhendo dos mais perenes exemplos da nossa história, depressa enxergastes três consultores em cada valido, sete directores-gerais em cada feitor, dez assessores em cada meirinho aos quais acrescentastes, com fino tacto e para vossa maior fama, uma chusma de dirigentes de clubes desportivos, de associações sem fins lucrativos, de empresários de reconhecido mérito e de amigos da onça, em constante revoada à vossa volta, como traças cegas pela luz que vos emprestámos. E a todos mandastes pimenta. Pimenta ensacada em contratos, embrulhada em empregos, a granel em loteamentos, em pó em alvarás, em grão em acrobáticas interpretações das leis que, supostamente, regem toda a vossa gente porque, como bem sabeis e melhor praticais, há sempre uns cus mais iguais que outros. Mas, quantas, ó quantas vezes vos esquecestes que éramos nós que dispensávamos o precioso maná e tão pródigas fomos, tão constantemente perdulárias que, inebriados pela sua abundância, pensastes ser vós próprios a fonte da especiaria que faz mover o mundo. Como amantes ingratos nos repudiastes obrigando-nos assim a pôr-vos à prova para garantir a vossa fidelidade. Custou-vos enganar amigos? Doeu-vos iludir quem em vós cria cegamente? Repugnou-vos abandonar quem nunca vos deixou ficar sós nos maus momentos? Decerto que sim. Mas, dizei-nos agora, em boa verdade: não valeu a pena tanta iniquidade para conservar a nossa intimidade, pois, não estivésseis vós em nós sentados e quem sofreria as vossas flatulências? Não se crispassem as vossas mãos nos nossos braços e quem anuiria aos vossos dislates? Não se apoiassem as vossas costas nos nossos espaldares e como poderíeis dizer que antes de vós era o caos e que depois de vós virá o
dilúvio, sem que ninguém se deixe rir do disparate? Ah, é verdade, e tendes obra feita… E não a tem o humilde cu operário com seu suor? E não a tem o do professor com dedicação? E não a tem o do comerciante com muito sacrifício? E não a tem o de qualquer dona de casa, sem ajudas de custo nem horas extraordinárias? Mas, qual deles viu seu tempo tão valorizado? Qual deles tem carro que anda sem consumir? Ilustríssimos cus, nossos companheiros: bem vos sentimos receosos que os cus que sobre nós vos sentaram e que tendes desde então ignorado assinem, de cruz, a nossa sentença de divórcio e acusais essa multidão anónima de falta de siso. Mas, já vos ocorreu que pode ter sido maior falta de senso o terem-nos consorciado nesta união de facto? Protestais? Tendes esse direito. Contradizeis-me citando os quilos de pimenta que distribuístes? É apenas justo. É essa a grandeza da democracia, pobre donzela sobre quem tendes feito recair as mais torpes suspeitas e que, por este rumo, fareis passar da alternância ao alterne… Sossegai. Não vos assusteis por coisa tão pouca. Evitai esse espalhafato de mau gosto de impressionar com retratos, números e quantidades, com quilómetros de estradas e toneladas de betão, como se ninguém vos conhecesse. Ninguém vai atentar na verdade dos números mas todos pesarão a mentira das palavras. E, se desta vez nos apartarem, coisa que a nós não fará mossa, não entreis em depressões desnecessárias mas, se isso acontecer, segui esta receita: ao levantar, frente ao espelho, gritai bem alto, cem vezes, durante quatro anos: cus há muitos, seu palerma!