Digitalização 21 De Mar De 2019.pdf

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Criação de bodes, carnavalização e cumplicidade Considerações sobre o fracasso da LE na escola pública Vilson]. LEFFA Universidade Católica de Pelotas .

Introdução Este texto é uma reflexão sobre o 'depoimento de um aluno·que não conseguiu aprender inglês na escola pública (narrativa 14). Na minha já longa experiência de vida, tenho ouvido mais queixas de professores que tentam ensinar para alunos que não querem aprender do que protestos de alunos que querem aprender sobre professores que não querem ensinar./Este texto vai refletir sobre os dois lados da história./ Parto de minha experiência de vida para comentar o depoimento do aluno, mas também Aevo em conta o contexto maior da escola, destacando alguns elementos que afetam a aprendizagem/ Às vezes, na tentativa de dizer mais com menos palavras, tomo a liberdade de usar algumas metáforas, mas estou sempre voltado para a narrativa do aluno. Procuro lançar dois olhares sobre o fracasso do ensino de LE na escola: lo primeiro, voltado para trás, procurando localizar a origem do fracasso; /o segundo, olhando para a frente, tentando vislumbrar possíveis soluções. f Entendo que há várias maneiras de ver esse fracasso, desde a criação de bodes expiatórios até a apoteose da carnavalização. A tentativa de criar bodes expiatórios é a mais primitiy~: põe-se a culpa em alguém, que pode ser o governo, o professor, ou mesmo o aluno:i_

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o mund~ ~a ~~~ge_n
Amáscara da aprendizagem O domínio de uma língua estrangeira não é uma competência que possa ser disfarçada. Podemos fingir sentimentos que não temos e até

fazer de conta que compreendemos o que nos dizem, mas ninguén1 pode fingir que fala inglês ou espanhol. A expressão natural do enunciado na língua estrangeira pressupõe anos de estudo e dedicação, resultado de um conhecimento autêntico que não se adquire de um dia para outro. A língua nos reflete exatamente como somos, não permitindo que nos

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Inglês em escolas públicas não funci ona?

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arvoremos de uma competência que não temo , s para parecer melhores aos outros. A hngua nos potencializa se a conh . . ecemos, mas nos trai se tentamos disfarçar um conhecimento dela que não temos. Tanto o fracasso quanto o sucesso na aprendizagem de uma língua estrangeira é imediatamente percebido. Quando as forças armadas americanas reuniram os militares durante a Segunda Guerra Mundial para lhes dar o domínio das línguas estrangeiras e os soldados saíam dos cursos, depois de alguns meses, falando a língua que lhes tinha sido ensinada, o resultado do projeto transpareceu de modo incisivo; era evidente que o curso tinha sido um sucesso. Por outro lado, quando alunos estudam a língua estrangeira durante anos na escola e saem de lá sem conhecer a língua, o resultado é também evidente; o fracasso contundente da escola fica estampado na mudez irretorquível do aluno. Na aprendizagem de uma língua, não só o sucesso, mas também o silêncio fala alto. Talvez seja possível que em outras disciplinas a ausência de determinado conhecimento possa demorar um pouco mais para se manifestar, dependendo de um acaso, de uma afirmação inverossímil ou de um ato falho que possa surgir em determinado momento. Com um pouco de sorte, o vestígio da ignorância ainda pode passar por um equívoco momentâneo e permitir a recuperação do sujeito sem ameaçar o disfarce. No caso da língua estrangeira, no entanto, a mudez é irrecuperável; o sujeito não fala porque não sabe, deixando sempre bem claro para o interlocutor que bastaria falar para provar o contrário. Uma consequência imediata, portanto, dessa impossibilidade de disfarçar o que não se sabe, no caso da aprendizagem da língua estran geira, é a imediata visibilidade do fracasso. O insucesso também permeia outras disciplinas, mas lá talvez seja mais fácil para o professor fingir que ensina e para o aluno fingir que aprende. Ao se mascarar o que não se sabe, corre-se inconscientemente o risco de transformar o faz de conta em objetivo de aprendizagem. Esse risco é, pelo menos, menor no caso da língua estrangeira. A visibilidade maior do fracasso da LE na escola pode ser vista, portanto, como uma vantagem para o professor de línguas, na medida em que não mascara o objetivo a ser atingido. Não se justifica o fracasso próprio pelo fracasso dos outros, mas antes se

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a(cita o desafio de atingir o objetivo que é claro para todos, profe , · ssore alun~ pais e a comunidade em gera l: con hecer a Imgua estrangeira s, alrun1 nível de proficiência viável no contexto da escola. en, b

Criação de bodes Apontar um culpado é sempre uma tarefa que exige muito poder de argumentação para que possamos persuadir o interlocutor de que não estamos encobrindo nossa própria incompetência. Às vezes é mais fácil obter diretamente o sucesso do que desenvolver um intrincado raciocínio para justificar de modo convincente o próprio fracasso. Além do mais, corremos o risco de ficar apenas na ilusão de que convencemos nosso interlocutor que, por respeito à face, faz de conta que acredita em nossa argumentação. A tentativa de justificar o fracasso pode levar, portanto, a um duplo insucesso; perdemos quando, por exemplo, deixamos de aprender uma LE e perdemos quando não conseguimos convencer nosso interlocutor de que a culpa não foi nossa. Em algumas circunstâncias, o interlocutor pode até se regozijar com nosso fracasso, já que a inveja é parte da natureza humana, mas acredito que, no fundo, preferimos histórias de sucesso com final feliz, talvez para descobrir o que os outros fizeram para resolver os mesmos problemas que nos afligem. Uma pessoa que vence os próprios desafios, às vezes até maiores do que os nossos, usando empenho e criatividade, e que nos surpreende com sua história autêntica, contada com sinceridade e sem culpar ninguém, há de ser muito mais agradável de ouvir do que escutar uma pessoa lamurienta com sua lenga-lenga de desgraças e insucessos.

Obode é ogoverno O primeiro grande culpado pelo fracasso

no ensino da LE na escola pública é o governo em suas diferentes instâncias e níveis de abrangência municipal, estadual e federal. Vou me ater aqui à instância federal,

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Inglês em escolas públicas nao lunciona'?

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por ser o nível m~is abrangente. É de onde emanam as leis maiores que direcionam o ensino da LE para as instâncias estaduais e municipais. Um governo se mantém pelo discurso, que precisa ser includente: qualquer país é sempre apresentado como «um país de todos». Um governo é diferente de um automóvel, por exemplo, cujo valor está em ser de poucos, altamente excludente, para poder dar status a seus proprietários. Um carro que todos possuem é apenas um carro popular. Já 0 governo, ao contrário do carro, tem que ser popular. Essa popularidade é obtida por meio de um discurso que precisa ser includente na sua aparência, independentemente da prática. Um governo com prática includente e discurso excludente desmorona. O discurso tem que ser hábil, a ponto de saber criar crises internacionais e até inimigos da pátria, se necessário, para garantir o apoio de todos, às vezes com o sacrifício de bens, joias e até da própria liberdade, como a história já tem demonstrado inúmeras vezes, tanto no Brasil como no exterior. O discurso includente é muito hábil em deixar transparecer mais do que dizer explicitamente, principalmente no caso da língua estrangeira, altamente suscetível em despertar rivalidades entre os habitantes dos diferentes países. O caso da brasileira agredida por três skinheads na Suíça no início de 2009 é emblemático: despertou a ira nacional e gerou um protesto da diplomacia brasileira contra a xenofobia, o descaso da polícia e a atitude da imprensa daquele país; até ser descoberto que o ataque tinha sido simulado pela vítima, que se flagelou. É claro que não se pode ser ingênuo e ignorar a humilhação, dificuldades e barreiras muitas vezes impostas não só aos imigrantes, mas mesmo aos turistas, vindos dos países mais pobres para os países mais ricos. Não faltam, nos meios de comunicação de massa, histórias de brasileiros maltratados no exterior, passando uma mensagem subliminar de que temos inais a fazer do que estudar a língua e a cultura dessa gente tão estrangeira a nós. Entre duas histórias de solidariedade internacional e duas de rancor e ódio, escolhemos as duas de rancor e ódio. Usam-se as tragédias pessoais não só para fomentar o ódio entre as nações, mas também para desqualificar, de modo sutil, o ensino da LE, a ponto, às

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vezes, de proibir o uso de palavras estrangeiras, como tem aconteci ' . pa1ses, ' . 1u1n . d o a F rança e o Bras1·1 . E m b ora não se af· do em vanos 1nc irrne explicitamente, a n1ensagem é bem clara: para que estudar inglês se estão n1atando os brasileiros na Inglaterra? Para que estudar a língua dos outros se não sabemos nem a nossa? No caso da LE, o discurso includente é aquele que exclui n1· · ante da ideia, já insustentável no mundo globalizado, de que O produto estrangeiro é melhor do que o nacional, tenta-se passar a imagem oposta e igualmente insustentável de que só o que é nosso tem valor, incluindo nossa língua e nossa cultura. Inclui-se, discursivamente, criando barreiras geográficas, alfandegárias e psicológicas entre os países, tipo "o Brasil é dos brasileiros,,, "a América para os americanos,, etc. Cria-se também uma barreira linguística; ao se afirmar que o brasileiro, principalmente o pobre, não conhece nem a própria língua, tenta-se tirar dele a oportunidade de aprender a língua estrangeira. Insiste-se em lhe dar um conhecimento que ele já tem (a língua nacional), negando -lhe o acesso a um conhecimento que ele não tem (a língua estrangeira). É uma tentativa de inclusão por exclusão. Quem precisa da língua estrangeira são os ricos, e eles vão estudá-la, dentro ou fora da sala de aula. O mundo globalizado das redes sociais internetianas, altamente democratizadas em seu acesso, é esquecido, a ponto de se recuperar, implicitamente o preconceito de décadas passadas: "Para que o pobre precisa estudar inglês se nunca vai viajar para o exterior?,, O resultado desse discurso explícito de inclusão é a prática implícita da exclusão. Para ser cidadão no mundo globalizado de hoje, ao qual todos pertencemos, precisamos conhecer pelo menos duas línguas estrangeiras, a do vizinho e uma internacional. Com as leis que reSt ringem o acesso à língua estrangeira na escola pública, não dando as condições mínimas para sua aprendizagem, seja pela carga horária es~assa, . .d d d curriculo, pela falta de materiais para o aluno, pela descont1nu1 a e O . . d única LE· deixa-se de dar ao aluno nem mesmo o conhecimento e uma Isso é responsabilidade do governo.

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o bode é o professor O grande paradoxo da educação pública brasileira no ensino fun damental e médio é que o professor ensina ao aluno algo que ele mesmo não conhece. Isso 3:parece três vezes na narrativa do aluno:"... meus professores não me ensinavam não era porque não queriam, mas porque não sabiam ...': Mesmo isentando os casos de professores que vêm de outras disciplinas e os que apenas complementam a carga horária, ainda assim sobram muitos professores que são da disciplina e que têm um diploma que lhes outorga um conhecimento que não possuem. Essa é a responsabilidade do professor pelo fracasso na aprendizagem da língua estrangeira. O problema é histórico (Oliveira, 2007) e vem desde a universalização do ensino fundamental na década de 1970: o grande desafio não é oferecer escola para todos, construindo prédios, mas ter professores qualificados para a sala de aula. O problema da qualificação tem atrapalhado todas as iniciativas de expansão do ensino, incluindo, atualmente o ensino superior, em que inúmeros concursos para preenchimento de vagas resultam sem aproveitamento por falta de candidatos qualificados. Há um déficit muito grande de professores, provavelmente em todas as disciplinas, mas é no caso da LE que o fracasso fica mais visível. Antigamente criticava-se um professor porque ele tinha conhecimento, mas não tinha didática. Hoje, conforme o depoimento do aluno, nem se fala em didática: critica-se porque não tem conhecimento mesmo. É óbvio que não basta saber a língua estrangeira para ser um bom professor; mas nem mesmo a língua muitos professores sabem, principalmente fora dos grandes centros. O depoimento do aluno não é um fato isolado. Em dezembro de 2008, numa prova aplicada pela Secretaria Estadual da Educação de São Paulo, 3.000 professores tiraram zero. Esse resultado foi um prato cheio para a imprensa, gerando manchetes como "Professor nota zero" (Dimenstein, 2009), "Professores que alfabetizam em SP seriam reprovados" (Folha on-line, 2009), "Bem-vindos às aulas, professores

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nota zero,, (Landeira, 2009) , entre outras . É um paradoxo que al guén1 que se proponhil a ensinar não saiba o qu e ensina . É corno un1 pintor que não pinta ou um cantor que não canta. É cl aro que un1 cantor pode, por opção, ficar calado, n1as para se definir corn o cantor deve saber cantar; como um professor pode optar por não exercer a profissão, mas, se a exercer, deve saber o que ensina. É aí que se n1anifesta o paradoxo: dos 3.000 professores que tiraram zero, 1.500 já lecionavam (Weinberg, 2009) . O caso relatado pelo aluno na sua narrativa repete -se em escala nacional: «Eles [os professores reprovados] ensinam sem saber o mínimo. Em suma: não deveriam estar numa sala de aula,, (Weinberg, 2009). O que pode parecer uma campanha contra os professores é na verdade uma preocupação legítima para quem se preocupa com a educação. Conforme Içami Tiba, «os professores devem se capacitar - não há como fazer testes com alunos. É como um cirurgião, que não pode fazer testes com pacientes" (Resende, 2009) O fato de ter acontecido no estado mais rico do Brasil mostra que o professor nota zero não é exceção no país; se não há dados semelhantes em outros estados é porque normalmente nem existe a preocupação de avaliar o conhecimento do professor. Mesmo concursos para o preenchimento de cargos são muitas vezes feitos sem incluir conhecimento específico da disciplina que o professor leciona, como se todos os professores devessem saber as mesmas coisas, como se o saber genérico não precisasse se abastecer do saber específico para produzir uma aula sem enrolação. O saber tem mais o formato de uma agulha do que de uma esponja. O saber não pode apenas espalhar-se pela superfície como um perfume sobre a pele; precisa penetrar no organismo para provocar mudanças. Cada professor precisa ter o seu saber, diferenciado dos saberes dos outros. Uma sociedade em que todos soubessem a mesma coisa produziria tal fastio em seus membros que não teria condições de sobreviver. Meu conhecimento só soma com o conhecimento do outro se for diferente; se for igual, anula-se.

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Obode é o aluno

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No mundo que todos almejamos, o cantor canta, 0 pintor pinta, 0 professor é aquele que ensina e o aluno é aquele que estuda. Existem na língua portuguesa, como em muitas outras, duas palavras sinônimas para definir a pessoa que estuda: aluno e estudante. Embora sinônimas, essas duas palavras nem sempre são intercambiáveis. Para começar, já há uma discriminação de gênero: aluno exclui aluna, mas estudante é mais inclusivo, na medida em que contém tanto o sexo masculino como o feminino. Há também uma questão de co-ocorrência ("collocation'' em inglês): dizemos, por exemplo, "Pedro é aluno do professor Euclides", mas normalmente ninguém diria "Pedro é estudante do professor Euclides", a não ser que o professor Euclides fosse o objeto de estudo de Pedro. Do mesmo modo, se Pedro vai preencher um formulário que pede sua profissão vai escrever "estudante" e não "aluno". Há uma diferença sutil entre aluno e estudante, que aparece nessas collocations: a palavra aluno enfatiza a ideia de receber instrução de alguém, sugerindo certa passividade (aluno é aquele que é ensinado), ao passo que estudante enfatiza a atividade que a pessoa exerce (estudante é aquele estuda). Ser aluno de biologia, por exemplo, implica assistir a aulas e ouvir professores, mas ser estudante de biologia implica pesquisar, inquirir sobre a disciplina. Essas diferenças entre aluno e estudante impõem ao aluno a opção de ser estudante, com a obrigação de estudar, de se desvencilhar do professor, de ir além dele. Se o aluno não souber mais que o professor, não será capaz de se independentizar, não haverá evolução e a história não caminhará. Nas palavras de Perissé, falando do estudante do futuro, mas na realidade referindo-se ao estudante do presente: "O estudante do futuro larga as mãos do mestre que o ensinou a andar, pois descobriu que pode andar sozinho, correr veloz, voar mais alto" (Perissé, 2003, s.p.). Há muitas explicações para o aluno que não estuda, mas a principal é falta de objetivo quando está na escola. Há alunos que parecem não perceber que a escola tem como função precípua o desenvolvimento

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do saber. Alguns até conseguen1 ver nela uma instituição que outorga 0 conhecimento, dando um diplon1a de conclusão, e estudam apenas para passar de ano e conseguir esse dip101na, 1nas não conseguem ir além. Outros nem isso: fkan1 apenas no nível da interação mais rasteira, num mundo que começa e termina dentro das quatro paredes da sala de aula: implicar com o professor, conversar com os colegas, riscar nas classes. Há também os que parecem ficar em estado de letargia e passam pela escola como zumbis, sem nada ver nem ouvir, no máximo como espectadores de um show a que são obrigados a assistir, talvez por obediência aos pais, assistindo a uma aula como se estivessem prestando um favor. Ainda nas palavras de Perissé, "o estudante do futuro afasta de si o tédio, esta sensação imobilizadora. Porque o entediado não entende, e não consegue estender um dedo em direção ao conhecimento" (Perissé, 2003, s.p.). Os entediados são incapazes de descobrir o prazer de aprender, de se identificar com um autor, de se apaixonar por um livro. Ficam na escola como prisioneiros em uma cela, sem perceber que a escola é um meio para se chegar a uma aventura maior, a do conhecimento. Pode-se argumentar que o aluno é muito jovem, que não tem experiência de vida, e, muitas vezes, nem um ambiente propício à aprendizagem em casa, para que possa perceber o objetivo precípuo da escola. Infelizmente, isso não vai resolver o problema do aluno: culpado ou não, é ele que vai sofrer, ao longo de sua vida, as consequências de muitas de suas ações ou omissões em sua passagem pela escola. A metáfora é surrada, mas cabe aqui: o aluno não cresce; permanece na vida como eterna lagarta, negando-se a comer as folhas que o transformariam numa borboleta capaz de voar além do casulo. E nem adianta pôr a culpa nos outros também, porque a lamúria a nada leva. Já alertava Sartre: "Não importa o que fizeram de nós e sim o que fizemos com aquilo que fizeram de nós': Governo, professor e aluno formam o triângulo do fracasso escolar. Na perspectiva de culpados e inocentes, um vértice do triângulo é ocupado por um inocente e os outros dois vértices pelos outros dois culpados. Dos três, quem tem o melhor discurso é o governo: não acusa

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e nem reclama, apenas prega a inclusão. Pode excluir na prática, mas no discurso inclui. O professor é o mais acuado dos três, por isso quando atacado, o mais crítico: desanca o governo porque ele não dá condições de aprendizagem e desanca o aluno porque ele não entende O que é estudar. O aluno, por sua_vez, critica o governo, nesse ponto fazendo coro com o professor, mas critica principalmente o professor, que está mais próximo: como pode ele ensinar o que nem conseguiu aprender? Como pode ele se fazer de desnecessário ensinando ao aluno tudo o que sabe se nada sabe?

Carnavalização do ensino

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De acordo com o National Center for Education Statistics (Digest of Education Statistics, 2008), no ano de 2008, 89,2% dos alunos de ensino fundamental e médio nos Estados Unidos estudavam em escolas públicas, ou seja, no país que é símbolo da iniciativa privada, a grande maioria dos alunos, incluindo ricos e pobres, vai para a escola pública. A empresa é particular, mas a escola, não. Na aparência, a situação no Brasil não é muito diferente: de acordo com o IBGE (Brasil, 2009), em 2004, 84% dos alunos de ensino fundamental e médio estudavam na rede pública. A grande diferença está em quem vai para a escola pública; no Brasil, com as raríssimas exceções que confirmam a regra, escola pública de ensino fundamental e médio é escola de pobre, os ricos vão para a escola particular. A educação é o fator que mais discrimina no Brasil. Segundo a narrativa do aluno, até os professores contribuem para essa discriminação: deixam de colaborar para a aprendizagem do aluno, não só por não saberem a disciplina, mas também, quando sabem, por discriminar diretamente o aluno da escola pública, dando uma aula di ferenciada, como aquele professor que veio da escola de línguas. Na escola de pobre, o aluno não estuda e nada acontece; o professor não ensina e nada acontece; o governo não faz cumprir as leis que ele próprio cria e nada acontece. As vezes pode surgir algum conflito

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inesperado, como no caso da narrativa analisada aqui em , que o al n o reso1ve querer aprender, ou, do outro lado, quando um U. profess reso 1ve querer ensinar; como o conflito não se resolve nad or . ' a acont ce e tudo fica por isso mesmo. O aluno pode apelar para O d b ee e 0 che 1orn1ando grupos que se formam de baixo para cima às vez ' , es sob a preten são de contestar o sistema, mas geralmente têm como ún · . . . _ , 1co obJetlvo a d1versao. As unicas lembranças que muitos alunos guard amda escola é a bagunça que fizeram na aula de um professor, as peças que pregaram com os colegas, ou como conseguiram colar numa prova. Há alunos que chegam a preparar listas com dicas do que aprontar na sala de aula. Toda escola tem seu regimento oficial, que normalmente não é obedecido, às vezes até por desconhecimento de alguns; conheci uma escola que adotou o sistema de não reprovação do aluno, mas que, a pedido dos professores, não chegou a ser revelado aos alunos. Como nenhuma comunidade pode existir sem um conjunto de normas que precisa ser, de algum modo, seguido à risca por seus membros, criam-se regras não oficiais, seguidas por grupos maiores e menores que se formam dentro da comunidade escolar. No fundo, chega a ser difícil aprontar na escola pública, na medida em que tudo é permitido; como burlar as restrições e regras do sistema se elas não existem? O mundo sem culpa da dialética da malandragem de Antônio Cândido mistura-se, na escola pública, com a música de Chico Buarque, pregando que não existe pecado ao sul do equador. Aqueles filmes de besteiro! americanos em que os alunos se divertem transgredindo as regras da escola não devem fazer muito sentido para os alunos da escola pública brasileira; aqui não há mais regras para transgredir. Chega a ser mais uma discriminação contra ª escola dos pobres. / A escola pública brasileira vive num estado permanente de carnavalização, em que tudo está invertido, num verdadeiro mundo às avessas ~ iferente do carn aval brasileiro, por exemplo, totalmente descar,, ..... " · a' or d em e a' sene · d a d e, a P onto de contar navalizado pela obe d'1enc1a com o apoio oficial dos órgãos do governo para que a festa se realize. O

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verdadeiro carnaval, no sentido de Bakhtin (1999), está na escola, não necessariamente por opção própria, n1as co1no única possibilidade de expressão. Começa pela gozação coletiva com as paródias feitas pelos alunos sobre a própria escola, às vezes semelhantes à "Escolinha do Professor Raimundo" (programa criado por Chico Anysio e transmitido pela Rede Globo de 1990 a 2002). É nesse contexto que realmente impera O espírito carnavalesco, num ritual contínuo de riso e farra, em que as pessoas criativamente se fantasiam de burro e se vestem de palhaço para comandar a alegria geral, exatamente como acontecia nas festividades da idade média. Fica a impressão de que na escola dos pobres, como na idade média, o esculacho é a única via permitida de expressão. O pobre tem que saber que seu lugar é a Escolinha do Professor Raimundo; se tentar voar mais alto, alguém tem que lhe cortar as asas. Um pobre sério é um sonhador ridículo . Como professor do ensino fundamental e médio, participei de muitas apresentações de alunos em dias de festa na escola, em que invariavelmente se parodiava a liturgia da sala de aula. Nada escapava aos alunos, incluindo todos os professores da escola, muitas vezes com bastante criatividade, rebaixando e debochando até o último detalhe tudo o que o professor achava sério e importante em sua aula. Era até nossa obrigação, como professores espectadores da apresentação, identificar quem estava sendo debochado, já que obviamente os nomes eram trocados. Todos ficávamos nivelados pelo uso da linguagem informal, beirando o insulto, mas ainda tentando manter certo respeito pelo professor, pelo menos naquela época. No fim, tudo era farra, e os professores acabavam se confraternizando com os alunos. Atualmente, com o uso da internet e das redes sociais (Orkut, Facebook etc.), a carnavalização parece ter ido além da sala de aula. Irala (2009), por exemplo, m ostra como os alunos carnavalizam o corpo do professor, na perspectiva do realismo grotesco, descrito por Bakhtin (I 999 ). Os atributos físicos são ridicularizados com apelidos grotescos (dentes tortos, espiga de milho) e as atitudes do professor, bestializadas com alcunhas ofensivas (anta, vaca, cavalo) .

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Cumplicidade Existem na literatura e na história vários exemplos do que pode , e da volta,, ; dep01s . de uma transformação rnos eh an1ar de "meta1ora . . O . , . , , SUJe1to deseJa voltar a um ponto especifico de sua historia para tentar com P1etar algo que ficou inacabado, cumprir uma missão de salvamento ou . s1rn. plesmente recuperar um tempo em que era feliz e não sabia. Entre os vários exemplos, temos a volta do filho pródigo na parábola bíblica, as viagens ao passado, que já renderam vários filmes e seriados de televisão (Efeito borboleta, A máquina do tempo, Em algum lugar do passado, Túnel do tempo etc.), e algumas versões do Patinho Feio, em que o herói, depois de se ter transformado em cisne, volta para visitar os antigos desafetos. Meu exemplo preferido é o Mito da Caverna, de Platão, em que O sujeito sai da caverna e vê que há outro mundo lá fora; gosto de imaginar esse mesmo sujeito voltando para seus colegas de escuridão e tentando convencê-los, desesperadamente, de que aquilo que eles veem na parede do fundo é apenas uma projeção do mundo real. Na narrativa do aluno, o desejo da volta está explicitamente expresso no último parágrafo:

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E agora estou num curso de pós-graduação em nlvel de especialização , em llngua inglesa, à espera de uma oportunidade de ingressar como pro·

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fessor de inglês em escolas públicas e de fazer o passivei para realmente proporcionar, ao menos, uma aprendizagem básica àqueles que vierem a ser meus alunos de inglês (NARRATIVA 14).

O desafio do viajante que volta às origens, seja o patinho feio transformado em cisne, o homem da caverna que conheceu o mundo ou 0 aluno que se transformou em professor, é conseguir misturar-se novamente com a comunidade da qual se separou. Essa separação pode ter sido provocada por decisão coletiva da comunidade, que rejeitou O viajante, ou por escolha individual do próprio viajante, que um dia resolveu · - e' extremadesertar a comunidade. Num caso ou outro, a remtegraçao mente difícil pela desconfiança de quem ficou. Por que razão os homens

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caverna vão acreditar em conJ·unto , . h da escuridão da . . no un1eo ornem da luz que um dia partiu e agora volta para dizer que o mundo projetado está • ?. por que razao _ no fundo da _ caverna . . virado de cabeça para baixo os patos vao aceitar o cisne que partiu outrora como um patinho feio e despenado? E, finalmente, por que razão os alunos vão acreditar no professor que vem de um mundo que não é o deles, para ensinar uma língua que não é a deles? E a pergunta que não vai faltar: professor, por que a gente tem que aprender inglês se lá nos Estados Unidos eles não têm que aprender português?

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Seguem três possíveis sugestões que talvez possam ajudar a contornar esses problemas: (1) criar uma turma coesa; (2) estabelecer um objetivo comum; (3) conseguir os meios para chegar ao objetivo. Embaso-me na teoria da atividade, por sua vez, calcada na filoso fia marxista de que não basta descrever o mundo, mas que é preciso modificá-lo. A primeira sugestão é de que o professor deve, de alguma maneira, tentar enturmar-se e, uma vez enturmado, enturmar a todos. Noto em alguns trabalhos que estudam a sala de aula (Irala, 2009) que o bom professor é aquele que é cúmplice dos alunos, jogando giz em quem conversa, misturando linguagem informal com o vocabulário técnico de sua disciplina e chegando a tal ponto de conivência com os alunos que se estabelece tacitamente um pacto de silêncio, em que tudo o que acontece na sala de aula fica ali mesmo; professor e aluno não se acusam; são cúmplices. Trata-se de uma cumplicidade saudável, com base no princípio de que ninguém é perfeito, e de que é preciso não medir esforço para buscar nos outros as virtudes e qualidades que pairam além dos defeitos. Uma turma conivente forma uma comunidade que pode, e deve, possuir membros com ideias diferentes, competências diferentes e níveis diferentes de conhecimento. É esse princípio de diversidade que possibilita a entrada do professor na comunidade; não precisa e nem deve ser igual aos alunos. Numa comunidade concreta, como na área

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Criação de bodes. camavalização e cumplicidade

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abstrata do conhecitnento, é preciso ser diferente para somar. Para isso existe a divisão de trabalho e as nonnas, que serão estabelecidas em eon. junto entre professor e alunos, para que a turma caminhe. A história tem mostrado incansavelmente que só a diversidade, a mestiçagem e O hib ri-. dismo de raças e ideias conseguem sobreviver. Isso também vale para a sala de aula; uma turma em que todos fossem iguais seria muito chata. Toda atividade humana é orientada para determinado objetivo, em busca de um resultado. A cumplicidade do professor com os alunos envolve compartilhar com eles um objetivo, que não é nem o objetivo do professor e nem o do aluno; é o objetivo da turma. É esse objetivo comum que vai resolver os conflitos e fazer com que as diferenças individuais funcionem em distribuição complementar, vencendo uma a uma as dificuldades que aparecem pelo caminho. É claro que isso pode parecer excesso de otimismo ou papo de autoajuda, como se a vida não tivesse obstáculos. É claro que tem, mas tudo fica mais fácil quando se adere incondicionalmente ao objetivo traçado, indo até o limite máximo da persistência, lá na fronteira com a teimosia, sem se deixar levar por qualquer desvio. Henry Ford, que não era marxista, já dizia: "Obstáculos são aquelas coisas medonhas que você vê quando tira os olhos de seu objetivo". Unida a turma em torno de um objetivo comum, resta o último passo: angariar os meios disponíveis numa determinada comunidade para alcançar o objetivo. No caso da língua estrangeira, os meios são os artefatos culturais (livros, recursos de áudio, vídeos etc.) e as pessoas (professor, colegas, amigos etc.) que se podem acionar para aprender a língua. Talvez o professor possa pensar que só tenha a lousa e ele mesmo como ferramentas de mediação para a aprendizagem, mas é sempre po'ssível descobrir outros recursos na comunidade: jornais, revistas, ovos etc. Esses recursos tornaram-se extremamente baratos e podem até ser conseguidos por doação. Recursos de natureza psicológica, como estratégias adequadas de aprendizagem, sessões de aquecimento para motivar o aluno ou explicitação de um método alternativo de aprendizagem também cabem aqui. Um objetivo precisa de meios para que seja alcançado.

30 1Jnglês em escolas públicas não funciona? 1D1óorn Es CÁNDJDO oEL1MA

Conclusão Há.várias maneiras de explicar o fracasso na aprendizagem da língua. A mais comum é pôr a culpa nos outros, que pode ser o governo, o professor ou mesmo o aluno: a culpa é do governo porque não cumpre as leis que cria, do professor porque não ensina ou do aluno porque não estuda./Condenar tem sido a estratégia menos eficaz, na medida em que, pelo menos na escola pública, cria o conflito sem resolvê-lo e tudo acaba ficando por isso mesmo. f Outra possibilidade de explicação é de que, como todos somos parte de uma rede, ninguém é culpado sozinho e acabamos todos inocen tados. Com isso, introduz-se na escola pública brasileira a bem-aventurança de viver num mundo sem culpa, professores e alunos circulando livremente entre a ordem e a desordem, sem sofrer qualquer tipo de sanção por seus atos ou omissões: ensinar ou não ensinar, estudar ou não estudar, deixa de produzir qualquer consequência, positiva ou negativa. A educação vira carnavalização. Este capítulo está embasado na teoria de que o ser humano é orientado para objetivos. Enquanto algumas pessoas alcançam esses objetivos, como o autor da narrativa analisada neste trabalho, outras ficam a meio caminho, sem concluir o que iniciaram. Na tentativa de resolver esse problema, propõe-se uma linha de ação que contemple dialogicamente três etapas: ( 1) criar uma parceria entre professor e alunos, formando uma comunidade na sala de aula;

(2) estabelecer, em conjunto, os objetivos que se almejam; (3) buscar os meios necessários para alcançar esses objetivos. Defende-se a ideia de uma cumplicidade positiva, baseada no pressuposto de que ninguém é perfeito. Muitas pessoas mantêm suas virtudes blindadas, ocultas atrás de uma couraça de animosidade, às vezes mais aparente do que real; a cumplicidade ajuda a atravessar essa couraça.

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Criacão de bodes. camavalização e cumplicidade

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