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História da Filosofia

História da Filosofia Profº. Márcio Rodrigues Alves/ Prof°. Emeron Ferreira da Rocha 7

História da Filosofia

Introdução 3 A dialética do Eros Filósofo

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O problema do conhecimento no Banquete de Platão 4

SUMÁRIO

A teoria do conhecimento na alegoria da caverna

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Aristóteles X Platão 14 Aristóteles e a sistematização do conhecimento

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O cristianismo 19 Santo Agostinho 20 Teoria do conhecimento em Santo Agostinho

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Santo Tomás de Aquino

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Teoria do conhecimento em Santo Tomás de Aquino

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As provas da existência de Deus

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BIBLIOGRAFIA 28

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1 Não é nosso objetivo refletirmos sobre a produção desses pensadores o que fugiria da proposta inicial desse trabalho, mas apontarmos para a grande quantidade de leituras da obra do Mestre o que revela a complexidade de sua obra.

teólogos cristãos que tentavam fundamentar a fé sobre alicerces racionais. Neste caso, segundo Chauí: “O Platão dos primeiros cristãos é o Platão da imortalidade da alma, da crítica ao corpo como prisão da alma, da purificação espiritual como forma de salvação”.4 Uma das principais apropriações do pensamento platônico estará na obra de Santo Agostinho. Com o Renascimento e, consequentemente, com a volta às tradições gregárias, Platão reaparecerá da seguinte forma, de acordo com Chauí: “O Platão da Renascença, redescoberto no século XV por Marcílio Ficino, é o Platão neoplatônico das emanações do Bem e, não por acaso, a obra mais importante de Ficino chama-se Teologia Platônica. Além do neoplatonismo, a filosofia platônica é vista como parte de um todo mais amplo e mais antigo do que ela, a sabedoria egípcia de Hermes Trismegisto, de sorte que o platonismo é interpretado como parte do hermetismo ou da filosofia hermética, da magia natural, dos vínculos secretos entre as coisas, animadas pelo sopro da Alma do Mundo e do Eros”.5 Se o Platão dos cristãos é o da imortalidade da alma e o de Ficino seria o Platão da emanação do Bem, o Platão de Goldschimidt terá no centro das suas preocupações filosóficas a teoria do conhecimento. Ou seja, é o Platão que está preocupado com um método para chegar ao conhecimento verdadeiro. 6 Ler qualquer obra do Filósofo implica apontarmos para dois contextos distintos: o da época da elaboração de seus pensamentos norteados pelos problemas vivenciados pelo pensador e o nosso. Hoje temos a nosso favor uma grande quantidade de obras sistematizadas nos mais variados registros – teoria do conhecimento, política, metafísica, estética – que possibilitam a atualização do pensamento platônico.

2 Cf. Chauí, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. p. 171. Ed. Brasiliense. São Paulo, 1994. 3 Cf. idem. 169.

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Introdução A dialética do Eros Filósofo

Eros, o amor Podemos observar através da história da filosofia que Platão nos é apresentado de diferentes maneiras, cada filósofo, comentador, teórico produziram e produzem1 interpretações da obra de Platão. Entre outros podemos citar: Friedrich Nietzsche, Werner Jaeger, Victor Goldschmidt, Gilles Deleuze, entre outros. De outra forma podemos ver na história o Platão dos seus discípulos, dos cristãos primitivos, da Idade Média, da Renascença, dos românticos e dos dias atuais. Quem é o verdadeiro Platão? Será que existe um Platão? Ou devemos e podemos falar de Platões?2 A filósofa Marilena Chauí chama essa questão de O “problema Platão” e a história da filosofia.3 Em outras palavras, a quantidade de interpretações do pensamento platônico é tamanha que, por isso, o próprio Platão, ou melhor, quem seria Platão tornou-se uma questão filosófica. Vejamos algumas dessas interpretações. Entre tantos grupos, um dos primeiros a apropriar-se de Platão foi os primeiros cristãos, ou seja, Platão será cristianizado por

Idem. p. 170. Idem. p. 170. Cf. Idem. p. 171

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O problema do conhecimento no Banquete de Platão Como todo exercício de reflexão fazemos escolhas, num primeiro momento a nossa é O Banquete. Posteriormente, analisaremos a questão do conhecimento na alegoria da Caverna que aparece no livro sétimo da República. O Banquete é apresentada por alguns como diálogo, outros afirmam que não pode ser considerado um diálogo, mas de qualquer forma é uma das obras mais importantes de Platão no qual nossa proposta é refletir sobre a questão do conhecimento no discurso sobre o amor, proferido por Sócrates. Nele podemos observar a articulação entre o mundo sensível e o inteligível cuja ascensão ao mundo das ideias se faz sob a direção do Eros, ao contrário do Fédon no qual a trajetória é feita sob a regência do Logos. Para essa reflexão o mito de Eros nos aponta para várias questões que nos possibilita entender o Eros de Platão revelado por Sócrates que é o próprio filósofo. O mito no contexto atual tem o seu lugar e se faz presente. Segundo Barthes é sempre um roubo7 de linguagem, operando através de uma fala despolitizada. Conforme o semiólogo o mito não nega as coisas; a sua função é, pelo contrário, falar delas; simplesmente, purifica-as, inocenta-as, fundamenta-as em natureza e em eternidade, dá-lhes uma clareza, não de explicação, mas de constatação. [...]. Passando da história à natureza, o mito faz uma economia: abole a complexidade dos atos humanos, confere-lhes a simplicidade das essências, suprime toda e qualquer dialética, qualquer elevação para lá do visível imediato, organiza um mundo sem contradições, porque sem Barthes ao conceber a sociedade como um campo privilegiado das significações míticas, faz uma releitura de textos e imagens, produtos da cultura contemporânea. Para o semiólogo, esses signos são portadores de mensagens ideológicas que vão roubar os signos de outras linguagens para impor significados novos. 7

profundeza, um mundo plano que se ostenta em sua evidência, cria uma clareza feliz: as coisas parecem significar sozinhas, por elas próprias. (BARTHES, 2001, pp. 163-164) Segundo Nichola Abbagnano (1998) em seu dicionário de filosofia mostra que na Antiguidade clássica o mito é considerado um produto inferior ou deformado da atividade intelectual. A ele era atribuída, no máximo, “verossimilhança”, enquanto a “verdade” pertencia aos produtos genuínos do intelecto. Esse foi o ponto de vista de Platão e Aristóteles. Gilda Naécia Maciel de Barros (2008) nos revela que a própria atitude de Platão é ambígua. Ora recorre à tradição religiosa e poética para justificar seu pensamento ora se refere (Mênon 81 –a-b; Fedro 274 c), ora se refere à oposição entre conto e relato verdadeiro (Gógias 523a); ora recorre ao pensamento hipotético, como no mito da caverna (República) e na investigação sobre a alma (Fédon); ora pondera que vale a pena correr o risco de crer (Fédon) ora procura justificar a fé no mito elegando que, acerca de tal questão, nada melhor foi demostrado ou encontrado ( Gógias 527 a-e; Fédon); ora problematiza a legitimidade de recurso a relatos dessa natureza. Nesta última alternativa, dixa-nos perplexos, uma vez que, de olho nas adivinhações e profecias, chega a perguntar: acreditariam as pessoas inteligentes no rumor das folhas do carvalho? (Fedro 275 b-c). Diante do exposto, e considerando que, afinal, o recurso ao mito, em Platão, pode ser visto, também, como um esforço para nos salvar de um estado de aporia terminal, aniquilador, tão afastado daquele outro estado de aporia metódico, construtivo e fértil, que faz a originalidade e brilho dos primeiros diálogos... Em que pese as dificuldades no emprego do mito, fiquemos com o emprego na concepção de narrativa com sentido de fábula ou lenda. Sobre o conteúdo da obra, Platão descreve uma festa de comemoração pelo prêmio que Agatão recebeu pela sua 10

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tragédia. Após os festejos, Erixímaco propôs uma reflexão filosófica no qual os amigos comporiam um discurso apologético ao deus Eros. Platão estrategicamente coloca os oradores na seguinte ordem de apresentação: Fedro, Pausânias, Erixímaco, Aristófanes, Agaton, Sócrates e Alcibíades. Acredito, caro aluno, que o melhor seja apresentar o diálogo de Platão praticamente na íntegra, pois acreditamos que o melhor caminho para conhecer filosofia é a análise dos textos filosóficos, vejamos: É um tanto longo de explicar, disse ela; todavia, eu te direi. Quando nasceu Afrodite, banqueteavam-se os deuses, e entre os demais se encontrava também o filho de Prudência, Recurso. Depois que acabaram de jantar, veio para esmolar do festim a Pobreza, e ficou pela porta. Ora, Recurso, embriagado com o néctar - pois vinho ainda não havia - penetrou o jardim de Zeus e, pesado, adormeceu. Pobreza então, tramando em sua falta de recurso engendrar um filho de Recurso, deita-se ao seu lado e pronto concebe o Amor. Eis por que ficou companheiro e servo de Afrodite o Amor, gerado em seu natalício, ao mesmo tempo que por natureza amante do belo, porque também Afrodite é bela. E por ser filho o Amor de Recurso e de Pobreza foi esta a condição em que ele ficou. Primeiramente ele é sempre pobre, e longe está de ser delicado e belo, como a maioria imagina, mas é duro, seco, descalço e sem lar, sempre por terra e sem forro, deitando-se ao desabrigo, às portas e nos caminhos, porque tem a natureza da mãe, sempre convivendo com a precisão. Segundo o pai, porém, ele é insidioso com o que é belo e bom, e corajoso, decidido e enérgico, caçador terrível, sempre a tecer maquinações, ávido de sabedoria e cheio de recursos, a filosofar por toda a vida, terrível mago, feiticeiro, sofista: e nem imortal é a sua natureza nem mortal, e no mesmo dia ora ele germina e vive, quando enriquece; ora morre e de novo ressuscita, graças à natureza do pai; e o que consegue sempre lhe escapa, de modo que nem

empobrece o Amor nem enriquece, assim como também está no meio da sabedoria e da ignorância. Eis com efeito o que se dá. Nenhum deus filosofa ou deseja ser sábio - pois já é -, assim como se alguém mais é sábio, não filosofa. Nem também os ignorantes filosofam ou desejam ser sábios; pois é nisso mesmo que está o difícil da ignorância, no pensar, quem não é um homem distinto e gentil, nem inteligente, que lhe basta assim. Não deseja portanto quem não imagina ser deficiente naquilo que não pensa lhe ser preciso. - Quais então, Diotima - perguntei-lhe - os que filosofam, se não são nem os sábios nem os ignorantes? É o que é evidente desde já - respondeume - até a uma criança: são os que estão entre esses dois extremos, e um deles seria o Amor. Com efeito, uma das coisas mais belas é a sabedoria, e o Amor é amor pelo belo, de modo que é forçoso o Amor ser filósofo e, sendo filósofo, estar entre o sábio e o ignorante. E a causa dessa sua condição é a sua origem: pois é filho de um pai sábio e rico e de uma mãe que não é sábia, e pobre. É essa então, ó Sócrates, a natureza desse gênio; quanto ao que pensaste ser o Amor, não é nada de espantar o que tiveste. Pois pensaste, ao que me parece a tirar pelo que dizes, que Amor era o amado e não o amante; eis por que, segundo penso, parecia-te todo belo o Amor. E de fato o que é amável é que é realmente belo, delicado, perfeito e bem-aventurado; o amante, porém é outro o seu caráter, tal qual eu expliquei. E eu lhe disse: - Muito bem, estrangeira! É belo o que dizes! Sendo porém tal a natureza do Amor, que proveito ele tem para os homens? Eis o que depois disso - respondeu-me - tentarei ensinar-te. Tal é de fato a sua natureza e tal a sua origem; e é do que é belo, como dizes. Ora, se alguém nos perguntasse: Em que é que é amor do que é belo o Amor, ó Sócrates e Diotima? ou mais

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claramente: Ama o amante o que é belo; que é que ele ama? [ ...] São esses então os casos de amor em que talvez, ó Sócrates, também tu pudesses ser iniciado; mas, quanto à sua perfeita contemplação, em vista da qual é que esses graus existem, quando se procede corretamente, não sei se serias capaz; em todo caso, eu te direi, continuou, e nenhum esforço pouparei; tenta então seguir-me se fores capaz: deve com efeito, começou ela, o que corretamente se encaminha a esse fim, começar quando jovem por dirigir-se aos belos corpos, e em primeiro lugar, se corretamente o dirige o seu dirigente, deve ele amar um só corpo e então gerar belos discursos; depois deve ele compreender que a beleza em qualquer corpo é irmã da que está em qualquer outro, e que, se se deve procurar o belo na forma, muita tolice seria não considerar uma só e a mesma a beleza em todos os corpos; e depois de entender isso, deve ele fazer-se amante de todos os belos corpos e largar esse amor violento de um só, após desprezá-lo e considerá-lo mesquinho; depois disso a beleza que está nas almas deve ele considerar mais preciosa que a do corpo, de modo que, mesmo se alguém de uma alma gentil tenha todavia um escasso encanto, contente-se ele, ame e se interesse, e produza e procure discursos tais que tornem melhores os jovens; para que então seja obrigado a contemplar o belo nos ofícios e nas leis, e a ver assim que todo ele tem um parentesco comum, e julgue enfim de pouca monta o belo no corpo; depois dos ofícios é para as ciências que é preciso transportá-lo, a fim de que veja também a beleza das ciências, e olhando para o belo já muito, sem mais amar como um doméstico a beleza individual de um criançola, de um homem ou de um só costume, não seja ele, nessa escravidão, miserável e um mesquinho discursador, mas voltado ao vasto oceano do belo e, contemplando-o, muitos discursos belos e magníficos ele produza, e reflexões, em inesgotável amor à sabedoria, até que aí robustecido e crescido contemple ele uma

certa ciência, única, tal que o seu objeto é o belo seguinte. Tenta agora, disse-me ela, prestar-me a máxima atenção possível. Aquele, pois, que até esse ponto tiver sido orientado para as coisas do amor, contemplando seguida e corretamente o que é belo, já chegando ao ápice dos graus do amor, súbito perceberá algo de maravilhosamente belo em sua natureza, aquilo mesmo, ó Sócrates, a que tendiam todas as penas anteriores, primeiramente sempre sendo, sem nascer nem perecer, sem crescer nem decrescer, e depois, não de um jeito belo e de outro feio, nem ora sim ora não, nem quanto a isso belo e quanto àquilo feio, nem aqui belo ali feio, como se a uns fosse belo e a outros feio; nem por outro lado aparecer-lhe-á o belo como um rosto ou mãos, nem como nada que o corpo tem consigo, nem como algum discurso ou alguma ciência, nem certamente como a existir em algo mais, como, por exemplo, em animal da terra ou do céu, ou em qualquer outra coisa; ao contrário, aparecer-lhe-á ele mesmo, por si mesmo, consigo mesmo, sendo sempre uniforme, enquanto tudo mais que é belo dele participa, de um modo tal que, enquanto nasce e perece tudo mais que é belo, em nada ele fica maior ou menor, nem nada sofre. Quando então alguém, subindo a partir do que aqui é belo, através do correto amor aos jovens, começa a contemplar aquele belo, quase que estaria a atingir o ponto final. Eis, com efeito, em que consiste o proceder corretamente nos caminhos do amor ou por outro se deixar conduzir: em começar do que aqui é belo e, em vista daquele belo, subir sempre, como que servindo-se de degraus, de um só para dois e de dois para todos os belos corpos, e dos belos corpos para os belos ofícios, e dos ofícios para as belas ciências até que das ciências acabe naquela ciência, que de nada mais é senão daquele próprio belo, e conheça enfim o que em si é belo. Nesse ponto da vida, meu caro Sócrates, continuou a estrangeira de Mantinéia, se é que em outro mais, poderia o homem viver, 12

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a contemplar o próprio belo. Se algum dia o vires, não é como ouro ou como roupa que ele te parecerá ser, ou como os belos jovens adolescentes, a cuja vista ficas agora aturdido e disposto, tu como outros muitos, contanto que vejam seus amados e sempre estejam com eles, a nem comer nem beber, se de algum modo fosse possível, mas a só contemplar e estar ao seu lado. Que pensamos então que aconteceria, disse ela, se a alguém ocorresse contemplar o próprio belo, nítido, puro, simples, e não repleto de carnes, humanas, de cores e outras muitas ninharias mortais, mas o próprio divino belo pudesse ele em sua forma única contemplar? Porventura pensas, disse, que é vida vã a de um homem a olhar naquela direção e aquele objeto, com aquilo com que deve, quando o contempla e com ele convive? Ou não consideras, disse ela, que somente então, quando vir o belo com aquilo com que este pode ser visto, ocorrer-lhe-á produzir não sombras de virtude, porque não é em sombra que estará tocando, mas reais virtudes, porque é no real que estará tocando? Eis o que me dizia Diotima, ó Fedro e demais presentes, e do que estou convencido; e porque estou convencido, tento convencer também os outros de que para essa aquisição, um colaborador da natureza humana melhor que o Amor não se encontraria facilmente. Eis por que eu afirmo que deve todo homem honrar o Amor, e que eu próprio prezo o que lhe concerne e particularmente o cultivo, e aos outros exorto, e agora e sempre elogio o poder e a virilidade do Amor na medida em que sou capaz. Este discurso, ó Fedro, se queres, considera-o proferido como um elogio ao Amor; se não, o que quer que e como quer que te apraza chamá-lo, assim deves fazê-lo.8 Sócrates se posiciona perante os oradores mudando o registro do discurso, ou seja, não louva Eros, mas afirma que Ele não é deus em função do desejo que sente e pela 8 PLATÃO. O Banquete. Tradução de José Carlos Cavalcante de Souza. In: São Paulo: Abril Cultural, 1972, Coleção Os Pensadores, Vol III.

insegurança da perda. Para justificar seu discurso, relata o que Diotima de Mantinéia revelou num diálogo. Apresentada na cultura grega como a mulher sábia nos mistérios do amor, afirma que: Quando nasceu Afrodite, banqueteavam-se os deuses, e entre os demais encontrava também o filho de Prudência, recurso. Depois que acabaram de jantar, veio para esmolar do festim a Pobreza, e ficou pela porta. Ora, Recurso, embriagado com o néctar – pois vinho ainda não havia – penetrou o jardim de Zeus e, pesado, adormeceu. Pobreza então, tramando em sua falta de recurso engendrar um filho de Recurso, deitou-se ao lado e pronto concebe o Amor. Eis por que ficou companheiro e servo de Afrodite o Amor, gerado em seu natalício, ao mesmo tempo que por natureza amante do belo, porque também Afrodite é bela. E por ser filho o Amor de Recurso e de Pobreza foi esta a condição em que ele ficou. Primeiramente ele é sempre pobre, e longe está de ser delicado e belo, como a maioria imagina, mas é duro, seco, descalço e sem lar, sempre por terra e sem forro, deitandose ao desabrigo, às portas e nos caminhos, porque tem a natureza da mãe, sempre convivendo com a precisão. Segundo o pai, porém, ele é insidioso com o que é belo e bom, e corajoso, decidido e enérgico, caçador terrível, sempre a tecer maquinações, ávido de sabedoria e cheio de recursos, a filosofar por toda a vida, terrível mago, feiticeiro, sofista: e nem imortal é a sua natureza nem mortal, e no mesmo dia ora ele germina e vive, quando enriquece; ora morre e de novo ressuscita, graças à natureza do pai; e o que consegue sempre lhe escapa, de modo que nem empobrece o Amor nem enriquece, assim como também está no meio da sabedoria e da ignorância. (203 b – e) Percebe-se nesse mito que a dialética gira em torno da dualidade. No mito do ser andrógino Platão afirma que já há tanto tempo o amor de uns aos outros está implantado nos homens, a fim de restabelecer a natureza original, tentando de

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dois fazer um só, e curar a natureza humana. 191 d. No mito contado por Diotima aparece a dualidade. Eros é o intermediário entre os deuses e os homens, com a missão de fazer conhecer e transmitir aos deuses o que vem dos homens e aos homens o que vêm dos deuses. Para efeito da teoria do conhecimento o texto define Eros como um ser duplo, que ocupa uma posição intermediária, entre a ignorância e o saber. Está no mesmo registro de pensamento sobre o mundo inteligível e sensível, ou no velho embate entre o mundo de Heráclito e de Parmênides. Estando na condição de intermediário, Eros tem na sua constituição a filosofia, isto é, o desejo incessante de sabedoria. Assim, é necessário que em função daquilo que não se possui, seja filósofo. Ser Eros Filósofo é ter a missão de espalhar nos homens a semente do desejo, que é buscar o que não se tem, o belo. Isso se concretiza através de uma ação amorosa, comparável a ação física de procriação. O que se busca nesse exercício filosófico e parir, não os sonhos dos deuses, mas a imortalidade. Defini-se então a missão de Eros: procriar na beleza como no espírito. Nesse caminhar, concebe-se o desejo de imortalidade que se alcança através da ascensão da alma rumo à intuição da Beleza Suprema. Essa subida se faz através da dialética, um movimento dirigido pelo Logos, e que passa pelos seguintes degraus: corpo, alma, ciência e intuição. Nesse movimento a alma atinge uma visão de conjunto das ciências, caminhando para além das hipóteses que cada uma carrega, de outra forma, ao conhecimento do princípio não-hipotético do Belo. No contexto da obra de Platão a dialética se apresenta num duplo registro: ontológico e metodológico. No primeiro é a busca da contemplação do Belo em si. Nesta questão não há a preocupação de superar a dicotomia reinante no pensamento de Platão – mundo sensível/mundo inteligível. Para ascender

ao Belo, segundo entra nesse processo. Se voltarmos a questão do Eros como um ser duplo, que ocupa uma posição intermediária, entre a ignorância e o saber entenderemos a figura que Sócrates desempenha na sua filosofia.

A teoria do conhecimento na alegoria da caverna

Quando analisamos o pensamento platônico, percebemos um constante dualismo: corpo e alma; mundo sensível e mundo inteligível. Essa dualidade aparece mais fortemente na alegoria da caverna, pois, nela Platão irá dividir a realidade em duas partes: dentro e fora da caverna. Mas, não é apenas o aspecto dualista da realidade que podemos observar em Platão, a história da caverna nos apresenta também outros aspectos do pensamento platônico, como por exemplo, a rejeição à experiência sensorial para chegar ao conhecimento; a verdade e o bem como valores absolutos e eternos; e a função do filósofo. Podemos representar o esquema do pensamento platônico com o seguinte esquema:

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Acredito, caro leitor, que esse esquema apresenta uma noção, mesmo que resumida, da percepção de Platão a respeito da realidade. Em outras palavras, é possível perceber o quanto a razão é importante para conduzir os seres humanos aos valores que são imutáveis e eternos. Vejamos com essa teoria se articula na “Alegoria da caverna” de Platão. Em outras palavras, vamos nos aproximar da leitura do texto e, na medida do possível, vamos fazendo as devidas observações:

SÓCRATES: Agora imagine a nossa natureza, segundo o grau de educação que ela recebeu ou não, de acordo com o quadro que vou fazer. Imagine, pois, homens que vivem em uma espécie de morada subterrânea em forma de caverna. A entrada se abre para a luz em toda a largura da fachada. Os homens estão no interior desde a infância, acorrentados pelas pernas e pelo pescoço, de modo que não podem mudar de lugar nem voltar a cabeça para ver algo que não esteja diante deles. A luz lhes vem de um fogo que queima por trás deles, ao longe, no alto. Entre os prisioneiros e o fogo, há um caminho que sobe. Imagine que esse caminho é cortado por um pequeno muro, semelhante ao tapume que os exibi­dores de marionetes dispõem entre eles e o público, acima do qual manobram as marionetes e apresentam o espetáculo. GLAUCO: Entendo.

Platão chama a atenção do interlocutor para uma “imagem”, ou seja, ele recorre a um elemento que nos dias atuais é

muito presente na vida das pessoas. Neste caso, a imagem que ele nos fornece é de homens que estão dentro de uma caverna acorrentados pelos pés e pescoços desde a infância. A caverna representa o mundo sensível e as suas limitações, ou seja, para Platão, os dados fornecidos pelos sentidos para chegar ao conhecimento estão limitados pelo mundo sensível. Dito de outro modo, a caverna representa tudo o que pode impedir os homens de chegar ao conhecimento verdadeiro, pois, os homens que nela estão aprisionados têm no mundo sensível, ou seja, neste mundo que é captado pelos sentidos uma barreira ao conhecimento da verdade. Continuemos com o texto. SÓCRATES: Então, ao longo desse pequeno muro, imagine homens que carregam todo tipo de objetos fabricados, ultrapassando a altura do muro; estátuas de homens, figuras de animais, de pedra, madeira ou qualquer outro material. Provavelmente, entre os carregadores que desfilam ao longo do muro, alguns falam, outros se calam. GLAUCO: Estranha descrição e estranhos prisioneiros! SÓCRATES: Eles são semelhantes a nós. Primeiro, você pensa que, na situação deles, eles tenham visto algo mais do que as sombras de si mesmos e dos vizinhos que o fogo projeta na parede da caverna à sua frente? GLAUCO: Como isso seria possível, se durante toda a vida eles estão condenados a ficar com a cabeça imóvel? SÓCRATES: Não acontece o mesmo com os objetos que desfilam? GLAUCO: É claro. SÓCRATES: Então, se eles pudessem conversar, não acha que, nomeando as sombras que vêem, pensariam nomear seres reais? GLAUCO: Evidentemente. Neste ponto, Platão salienta de que modo os homens percebem a realidade no mundo sensível, ou seja, ela é uma ilusão provocada pelo comprometimento 15

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dos sentidos no referido mundo, que está simbolizado na caverna. Em outras palavras, o conhecimento que as pessoas costumam chamar de “real”, parece não ser tão “real” assim para Platão. Neste caso, se no mundo sensível o conhecimento o conhecimento da verdade está comprometido, onde estaria o verdadeiro conhecimento? Certamente, no mundo inteligível, o qual trataremos mais adiante. Interessante é perceber que Platão simboliza o conhecimento falso com a figura das “sombras”. Ou seja, a sombra, que é a claridade atenuada por algum objeto que se interpõe entre ele e a luz, é o sinal mais e evidente do conhecimento falso que os homens têm da realidade no mundo sensível. Sendo assim, podemos notar dois problemas para que os homens atinjam o conhecimento no mundo dos sentidos. Primeiro, o próprio mundo que é limitador e, está representando pela caverna. Segundo, pela própria natureza humana que está vivendo neste mundo de limites. Voltemos ao texto: SÓCRATES: E se, além disso, houvesse um eco vindo da parede diante deles, quando um dos que passam ao longo do pequeno muro falasse, não acha que ele tomariam essa voz pela da sombra que desfila à sua frente? GLAUCO: Sim, por Zeus. Algumas “atualizações” vêem nesta imagem a figura do cinema e, posteriormente, da televisão. Pois, sombras que são projetas numa parede com som podem perfeitamente ser associadas ao cinema. Nesta perspectiva de “atualização” do pensamento platônico, podemos nos questionar: até que ponto o cinema no início do século XX e a televisão na segunda metade do século XX foram responsáveis pela formação da “realidade”? Em outras palavras, podemos comparar a caverna de Platão com as noções de realidade que são introduzidas pelos meios de comunicação nas diversas residências do Brasil? Acredito que sim, pois, quem nunca ouviu a seguinte frase: “Tal ‘coisa’ é verdade, pois apareceu na televisão”! Muitas vezes vi

pessoas analisarem a veracidade de algum acontecimento tendo como suporte os meios de comunicação. Deixemos de lado as “atualizações” e voltemos para o texto: SÓCRATES: Assim sendo, os homens que estão nessas condições não poderiam considerar nada como verdadeiro, a não ser as sombras dos objetos fabricados. GLAUCO: Não poderia ser de outra forma. SÓCRATES: Veja agora o que aconteceria se eles fossem libertados de suas corrente e curados de sua desrazão. Tudo não aconteceria naturalmente como vou dizer? Se um desses homens fosse solto, forçado subitamente a levantar-se, a virar a cabeça, a andar, a olhar para o lado da luz, todos esses movimentos o fariam sofrer; ele ficaria ofuscado e não poderia distinguir os objetos, dos quais via apenas as sombras, anteriormente. Na sua opinião. o que ele poderia responder se lhe dissessem que, antes, ele só via coisas sem consistência, que agora ele está mais perto da realidade, voltado para objetos mais reais, e que está vendo melhor? O que ele responderia se lhe designassem cada um dos objetos que desfilam, obrigando-o, com perguntas, a dizer o que são? Não acha que ele ficaria embaraçado e que as sombras que ele via antes lhe pareceriam mais verdadeira” do que os objetos que lhe mostram agora? GLAUCO: Certamente, elas lhe pareceriam mais verdadeiras. SÓCRATES: E se o forçassem a olhar para a própria luz, não achas que os olhos lhe doeriam, que ele viraria as costas e voltaria para as coisas que pode olhar e que as consideraria verdadeiramente mais nítidas do que as coisas que lhe mostram? GLAUCO: Sem dúvida alguma. SÓCRATES: E se o tirassem de lá à força. se o fizessem subir o íngreme caminho montanhoso, se não o largassem até arrastálo para a luz do sol, ele não sofreria e se irritaria ao ser assim empurrado para fora? E. chegando à luz, com os olhos ofuscados pelo seu brilho, não seria capaz de ver nenhum

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desses objetos, que nós afirmamos agora serem verdadeiros. GLAUCO: Ele não poderá vê-los, pejo menos nos primeiros momentos. SÓCRATES: É preciso que ele se habitue, para que possa ver as coisas do alto. Primeiro, ele distinguirá mais facilmente as sombras, depois, as imagens dos homens e dos outros objetos refletidas na água, depois os próprios objetos. Em segundo lugar, durante a noite, ele poderá contemplar as constelações e o próprio céu, e voltar o olhar para a luz dos astros e da lua mais facilmente que durante o dia para o sol e para a luz do sol. GLAUCO: Sem dúvida SÓCRATES: Finalmente, ele poderá contemplar o sol, não o seu reflexo nas águas ou em outra superfície lisa, mas o próprio sol, no lugar do sol, o sol tal como é. GLAUCO: Certamente. SÓCRATES: Depois disso, poderá raciocinar a respeito do sol, concluir que é ele que produz as estações e os anos, que governa tudo no mundo visível, e que é, de algum modo, a causa de tudo o que ele e seus companheiros viam na caverna. GLAUCO: É indubitável que ele chegará a essa conclusão. No trecho apresentado acima, Platão narra a saída de um desses homens para fora da caverna. Entre outras coisas, narra a dificuldade que esse homem teria para olhar a luz. A luz do sol, neste caso, simboliza a verdade e o sol, a ideia de Bem. O que podemos observar aqui é o método platônico de busca do conhecimento, que denominamos dialética ascendente, vejamos nas palavras da professora Chauí: “O mito da caverna apresenta a dialética como movimento ascendente de libertação do nosso olhar que nos liberta da cegueira para vermos a luz das ideias. Mas descreve também o retorno do prisioneiro para ensinar os que permaneceram na caverna como sair dela. Há, assim, dois movimentos: o de ascensão (dialética

ascendente). (...) e do descenso (dialética descendente).9” A temática da busca da verdade também aparece no filme Matrix, assista a cena: (http://www.youtube.com/ watch?v=Bb86zhbBTAU) SÓCRATES: Nesse momento. se ele se lembrar de sua primeira morada, da ciência que ali se possuía e de seus antigos companheiros, não acha que ficaria feliz com a mudança e teria pena deles? GLAUCO: Claro que sim. SÓCRATES: Quanto às honras e louvores que eles se atribuíam mutuamente outrora, quanto às recompensas concedidas àquele que fosse dotado de uma visão mais aguda para discernir a passagem das sombras na parede e de uma memória mais fiel para se lembrar com exatidão daquelas que precedem certas outras ou que lhes sucedem. as que vêm juntas. e que, por isso mesmo, era o mais hábil para conjeturar a que viria depois, acha que nosso homem teria inveja dele, que as honras e a confiança assim adquiridas entre os companheiros lhe dariam inveja? Ele não pensaria antes, como o herói de Homero, que mais vale “viver como escravo de um lavrador” e suportar qualquer provação do que voltar à visão ilusória da caverna e viver como se vive lá? GLAUCO: Concordo com você. Ele aceitaria qualquer provação para não viver como se vive lá. SÓCRATES: Reflita ainda nisto: suponha que esse homem volte à caverna e retome o seu antigo lugar. Desta vez, não seria pelas trevas que ele teria os olhos ofuscados, ao vir diretamente do sol?

GLAUCO: Naturalmente. SÓCRATES: E se ele tivesse que emitir de novo um juízo sobre as sombras e entrar em competição com os prisioneiros que continuaram acorrentados, enquanto sua vista ainda está confusa, seus olhos ainda

9 Chauí, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles. p. 196.

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não se recompuseram, enquanto lhe deram um tempo curto demais para acostumar-se com a escuridão, ele não ficaria ridículo? Os prisioneiros não diriam que, depois de ter ido até o alto, voltou com a vista perdida, que não vale mesmo a pena subir até lá? E se alguém tentasse retirar os seus laços, fazêlos subir, você acredita que, se pudessem agarrá-lo e executá-la, não o matariam? GLAUCO: Sem dúvida alguma, eles o matariam. SÓCRATES: E agora, meu caro Glauco, é preciso aplicar exatamente essa alegoria ao que dissemos anteriormente. Devemos assimilar o mundo que apreendemos pela vista à estada na prisão. A luz do fogo que ilumina a caverna à ação do sol. Quanto à subida e à contemplação do que há no alto, considera que se trata da ascensão da alma até o lugar inteligível, e não te enganarás sobre minha espe­rança, já que desejas conhecê-la. Deus sabe se há alguma possibilidade de que ela seja fundada sobre a verdade. Em todo o caso eis o que me aparece tal como me aparece; nos últimos limites do mundo inteligível apareceme a idéia do Bem, que se percebe com dificuldade, mas que não se pode ver sem concluir que ela é a causa de tudo o que há de reto e de belo. No mundo visível, ela gera a luz e o senhor da luz. no mundo inteligível ela própria é a soberana que dispensa a verdade e a inteligência. Acrescento que é preciso vê-Ia se quer comportar-se com sabedoria, seja na vida privada. seja na vida pública. GLAUCO: Tanto quanto sou capaz de compreender-te, concordo contigo Acredito que a “Alegoria da caverna” é o momento onde Platão expõe com mais precisão a sua teoria do conhecimento. Obviamente, para chegar ao conhecimento da verdade, é necessário todo um processo, ou seja, os homens precisam vencer algumas etapas antes de chegar ao conhecimento verdadeiro. Esse processo recebe o nome de dialética. Vejamos melhor:



Podemos classificar a dialética platônica em pelo menos quatro passos, dois no mundo sensível e dois no mundo inteligível: os simulacros; a crença e a opinião; o raciocínio ou pensamento discursivo; e a intuição intelectual ou ciência. Os dois primeiros no mundo sensível e os dois subseqüentes no mundo inteligível. Na realidade, é possível notar que os homens saem de uma apreensão sensível do mundo para uma apreensão cada vez mais intelectual e abstrata. Em outras palavras, em Platão a realidade é aos poucos racionalizada no mundo das ideias.

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A ideia para Platão é o ponto mais alto do conhecimento, ou seja, atingir a ideia de um objeto é atingir a sua essência. Na realidade, desde os primeiros momentos da filosofia grega há uma questão que pergunta inicial que deve ser respondida: o que é? Ou seja, os primeiros filósofos acreditavam que para conhecer algo era preciso defini-lo primeiramente. Por isso, dizer o que algo é, corresponde a dizer o que é a sua essência. Em outras palavras, conhecer o ser das coisas é conhecer a sua essência. Sendo assim, Platão define o conhecimento das coisas pelo conhecimento da ideia que as “sustenta”: “Platão acreditava ser possível, em cada caso, encontrar uma definição apropriada porque ele supunha que deveria existir, para cada um dos conceitos que desejássemos definir, algo chamado de aspecto (em grego eídos, de onde vem o termo ideia, que aqui é transcrito como ideia, embora o termo seja derivado de eido, que significa ver)”.10 Em resumo, podemos expor alguns dos principais pontos da doutrina platônica a respeito do conhecimento da seguinte maneira11:



a) O mundo sensível está em constante transformação

d) Somente as ideias são eternas e imutáveis

b) Não é possível conhecer aquilo que está em constante transformação, por isso, o conhecimento no mundo sensível está comprometido.

e) O conhecimento das ideias somente é possível por meio da inteligência, ou seja, por meio da abstração

c) O conhecimento de algo só é possível se ele for eterno, imutável e imóvel

f) O conhecimento verdadeiro é o conhecimento das ideias.

Outro aspecto que podemos destacar na “Alegoria da caverna” de Platão é a ênfase que ele dá na missão do filósofo. Na realidade, o homem que sai da caverna e volta para alertar os seus ex-companheiros a respeito da ilusão é símbolo do filósofo e mestre de Platão, Sócrates. Dito de outro modo, Platão também usa a história da caverna para afrontar os atenienses que condenaram Sócrates à morte. Qual seria a missão do filósofo e, consequentemente, da filosofia? Para Platão, a missão do filósofo é a de conduzir as pessoas à verdade por meio da filosofia. Outras palavras, somente a filosofia pode levar os homens ao conhecimento do Bem, da Verdade e do Belo. Em suma, Platão imprimiu um marca no pensamento ocidental: o racionalismo. Dito de outro modo, o nosso modo de pensar e de ler o mundo passa, necessariamente, pelo pensamento platônico. Finalmente, poderíamos abordar os diversos aspectos da riqueza de pensamento em Platão, mas, no nosso caso, resolvemos nos debruçar sobre a teoria do conhecimento, uma vez que, na disciplina “Fundamentos do pensamento político I” do nosso curso, tivemos acesso ao pensamento ético e político do filósofo. A partir deste momento, vamos expor o pensamento do principal discípulo de Platão: Aristóteles. Por isso, voltaremos sempre que possível ao pensamento de Platão, que dificilmente é abandonado na história da filosofia.

10 Ribeiro, André A. Sardi, Sérgio Augusto. In. Os filósofos: clássicos da filosofia. Org. Pecoraro, Rossano. p. 46. Ed. Vozes. Petrópolis, 2009. 11 Idem. p. 47.

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Aristóteles X Platão

Figura A escola de Atenas

A Teoria do Conhecimento em Aristóteles tem sua sistematização na Lógica e de modo especial na doutrina do silogismo12. Este constitui o mecanismo da dedução, pois no contexto aristotélico o conhecimento deve ser dedutivo. Nesse caminhar a proposta desse trabalho é analisar as condições em que o conhecimento se realiza no pensamento de Aristóteles por oposição a Platão. Para tanto partamos de duas citações da Metafísica. Aristóteles afirma no começo da Metafísica que, vejamos o texto: Por natureza, todos os homens desejam o conhecimento. Uma indicação disso é o valor que damos aos sentidos; pois além de sua utilidade, são valorizados por si mesmos e, acima de tudo, o da visão. Não apenas com vistas a ação, mas mesmo quando não se pretende ação alguma, preferimos a visão, em geral, a todos os outros sentidos. A razão disso é que a visão é, de todos eles, o que mais nos ajuda a conhecer coisas, revelando muitas diferenças. Ora, os animais nascem por natureza com o poder da sensação, daí adquirindo alguns a faculdade da memória, enquanto outros não. Por conseguinte, os primeiros são mais inteli12 Como sabemos, o ponto inicial da dedução depende de um processo que o filósofo não considera científico, mas que se apóia diferentemente de Platão, na aceitação da experiência sensível. Nesse trabalho não é nosso objetivo refletir sobre a doutrina do silogismo, mas sobre a noção de ciência em Aristóteles.

gentes e capazes de aprender d que aqueles que não podem se lembrar. Aqueles que não ouvem sons (como a abelha ou qualquer criatura semelhante) são inteligentes, mas não conseguem aprender; só são capazes de aprender os que possuem esse sentido, além da faculdade da memória. Assim, os outros animais vivem de impressões e memórias e só têm pequena parcela de experiências; mas a raça humana vive também de arte (techne) e raciocínio. É pela memória que os homens adquirem experiência, porque as inúmeras lembranças da mesma coisa produzem finalmente o efeito de uma experiência única. A experiência parece muito semelhante à ciência e à arte, mas na verdade é pela experiência que os homens adquirem ciência e arte; pois como diz Pólo com razão: “a experiência produz arte, mas a inexperiência produz o acaso”. A arte se produz quando, a partir de muitas noções da experiência, se forma m único juízo universal a respeito de objetos semelhantes. Julgar que quando Cálias estava sofrendo dessa ou daquela doença isso ou aquilo lhe fez bem, o mesmo acontecendo com Sócrates e vários outros indivíduos, é questão de experiência; mas julgar que a mesma coisa fez bem a todas as pessoas de certo tipo, consideradas como classe, que sofrem dessa ou daquela doença (por exemplo, os encatarrados ou bilioso que ardem em febre) é questão de arte. Pareceria que para efeitos práticos a experiência não é de modo algum inferior à arte; com efeito, vemos homens de experiência tendo mais sucesso do que aqueles que possuem a teoria sem a experiência. A razão disso é que a experiência é conhecimento de coisas articulares, ao passo que arte trata de universais; e as ações e os efeitos que produzem se referem ao particular. Porque não é o homem que o médico cura, senão casualmente, e sim Cálias, Sócrates ou alguma outra pessoa que tem igualmente um nome e é por acaso também um homem. Assim, se um homem tem teoria sem experiência e conhece o universal, mas não 20

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o particular nele contido, com freqüência falha no seu tratamento, pois é o particular que deve ser tratado. No entanto, achamos que o conhecimento e a eficiência são antes questões de arte que de experiência e supomos que os artistas são mais sábios que os homens apenas experientes (o que implica que em todos os casos a sabedoria depende, sobretudo, do conhecimento), e isso porque aqueles conhecem a causa e estes não. Pois o homem de experiência conhece o fato, mas não o porquê, enquanto os artistas conhecem o porquê e a causa. Pela mesma razão estimamos mais os mestres de toda profissão e achamos que sabem mais e são mais sagazes que os artesãos, pois conhecem as razões das coisas produzidas; mas achamos que os artesãos, como certos tipos de objetos inanimados, fazem coisas sem saber o que estão fazendo (assim como o fogo queima, por exemplo); só que, enquanto os objetos inanimados desempenham todas as suas funções em virtude de certa qualidade natural, os artesãos realizam as suas por hábitos. Assim, os mestres são superiores em sabedoria não porque podem fazer coisas, mas porque possuem uma teoria e conhecem as causas. Em geral, o sinal de conhecimento ou ignorância é a capacidade de ensinar e por essa razão achamos que a arte, e não a experiência, constitui conhecimento cientifico; porque os artistas podem ensinar e os outros, não. Além disso, não consideramos nenhum dos sentidos como sendo a Sabedoria. Eles são de fato nossas principais fontes de conhecimento sobre as coisas particulares, mas não nos dizem a razão de nada, como por exemplo, por que o fogo é quente, mas apenas que ele é quente. É, portanto, provável que de início o inventor de qualquer arte que foi além das sensações ordinárias tenha sido admirado pelos companheiros, não apenas, porque algumas das suas invenções fossem úteis, mas como uma pessoa sábia e superior. E à medida que mais artes iam sendo descobertas, algumas ligadas às necessidades

da vida e outras à recreação, os inventores destas últimas eram sempre considerados mais sábios que os daquelas, porque seus ramos de conhecimento não visavam a utilidade. Daí, quando todas as descobertas desse tipo haviam sido plenamente desenvolvidas, inventou-se as ciências que não se relacionam nem ao prazer nem às necessidades da vida, e primeiro naqueles lugares onde os homens gozavam de tempo livre. As ciências matemáticas surgiram na região do Egito, porque ali a classe sacerdotal tinha tempo disponível. A diferença entre a arte e a ciência, de um lado, e as outras atividades mentais análogas, de outro, foi exposta na Ética; a razão da presente discussão é que geralmente se supõe que o que chamamos Sabedoria diz respeito às causas e princípios primeiros de modo que, como já vimos, o homem de experiência é considerado mais sábio do que os meros possuidores de uma faculdade sensível qualquer, o artista mais do que o homem de experiência, o mestre mais do que o artesão e as ciências especulativas mais doutas do que as práticas. Assim, está claro que a Sabedoria é o conhecimento de certas causas e princípios. (Metafísica I, 1, p. 211) O texto revela a visão intelectual como a forma mais alta do conhecimento, de outra forma, a filosofia primeira, como a mais alta das ciências teoréticas e superior às ciências práticas. Sobre a filosofia, Aristóteles relata: Nós admitimos, antes de mais, que o filósofo conhece, na medida do possível, todas as coisas, embora não possua a ciência de cada uma delas por si. Em seguida, quem consiga conhecer as coisas difíceis e que o homem não pode facilmente atingir, esse também consideramos filósofo (porque o conhecimento sensível é comum a todos, e por isso fácil e não-científico). Além disto, quem conhece as causas com mais exatidão, e é mais capaz d as ensinar, é considerado em qualquer espécie de ciência como mais filósofo. E, das ciências, a que escolhemos 21

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por ela própria, e tendo em vista o saber, é mais filosofia do que a escolhemos em virtude dos resultados; e uma [ciência] mais elevada é mais filosofia do que uma subordinada, pois não convém que o filósofo receba leis, mas as que as dê, e que não obedeça ele a outro, mas a ele quem é menos sábio”. (Metafísica I, 2, p. 213) Os dois trechos como em quase todas as obras de Aristóteles, encontramos restrições ao pensamento de Platão. Recuperemos inicialmente a teoria das ideias, aquelas questões que julgamos importantes para entendemos o rompimento de Aristóteles com o seu mestre e a questões da causa e necessidade que se constituem suporte para a realização do conhecimento. Platão contribuiu para o nascimento da Metafísica, descrevendo a realidade para além dos limites materiais. No Fédon escreve: Receei que minha alma viesse a ficar completamente cega se eu continuasse a olhar com os olhos para os objetos e tentasse compreendê-los através de cada um de meus sentidos. Refleti que devia buscar refúgio nas ideias e procurar nelas a verdade das coisas. (Fédon, p. 112) Para Platão as ideias são percebidas pela inteligência no qual os sentidos não participam como elemento indispensável na formulação do conhecimento, como mostramos anteriormente. As opiniões, próprias do mundo sensível, devem a sua imprecisão aos sentidos que nos enganam acerca da verdadeira realidade e, além disso, constituem obstáculos para que alma possa ascender ao conhecimento. Nesse contexto, o sensível explica-se por meio de imagens e o incorpório pela inteligência, pois, preciso distinguir o que é o que sempre é, e não tem geração do que se gera e nunca é. Para Bernard Piettre (1989) a distinção entre o mundo sensível e o mundo inteligível assume uma dimensão cosmológica: como explicar a gênese das coisas e do mundo? Para Platão, “as Ideias são as causas” de tudo o que existe no mundo visível. Em outras palavras,

todas as coisas da natureza, da matéria aos astros, passando pelas plantas, pelos animais, pelos homens, só existem enquanto participam de realidades mais perfeitas, ou seja, de realidades ideais. Chegamos ao ponto nodal de nossa reflexão: para Platão as Ideias são as causas de tudo o que existe, como os seres reais são causas de suas sombras e de seus reflexos. Para entendemos como o conhecimento se efetua em Aristóteles e, portanto se diferencia de Platão, primeiramente precisamos analisar alguns pontos de rompimento entre os dois filósofos. Segundo Émile Bréhier: Conhecem-se os três argumentos invocados pelos platônicos para demonstrar a existência das idéias: o uno acima do múltiplo (uma multiplicidade de objetos possuindo a mesma propriedade, a beleza, por exemplo, exige que essa propriedade se sobreponha a todos); os argumentos extraídos do conhecimento (uma definição geométrica, por exemplo, implica a existência de seu objeto, pois mostra sua gênese); e, finalmente, o argumento da permanência da representação da coisa depois que esta desaparece, o que implica afirmar que o objeto do conhecimento, isto é, a ideia, não pode estar submetida ao devir das coisas sensíveis, tendo por isso uma existência à parte. (BRÉHIER, 1977, p. 155) Aristóteles argumenta em seu favor que o uno na concepção de Platão não tem estatuto de ser, ou seja, não é um ser, mas uma qualidade. No que diz respeito a permanência da representação, não significa nada mais do que um exercício do pensamento no sentido de retê-la. Ela não tem realidade fora do intelecto. Nesse contexto de crítica, Platão ao apresentar o mundo sensível – aparente e instável como o devir de Heráclito, e o mundo inteligível – verdadeiro e conhecido pelo intelecto e estável, como o Ser de Parmênides fecha qualquer possibilidade de conhecimento do mundo sensível. Assim, a grande diferença entre os dois filósofos está em que Platão 22

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explica o mundo sensível através de atributos fora dele enquanto Aristóteles encontra sentido no mundo, a partir do que o sensível revela ao filósofo. Vejamos como essa crítica aparece no sexto capítulo livro I da Metafísica: As doutrinas filosóficas descritas acima foram bem sucedidas pela doutrina de Platão, que em muitos aspectos concordava com elas, mas continham também certas características peculiares, distintas da filosofia da escola italiana. Na mocidade, Platão conheceu Crátilo e as doutrinas Heraclítianas – segundo as quais todo o mundo sensível está sempre fluido e não existe dele um conhecimento científico. – e mais tarde ainda conservava essas opiniões. Na verdade, um dos primeiros problemas filosóficos relacionados com a física foi a questão do movimento. Ou seja, como é possível chegar ao conhecimento das coisas uma vez que elas mudam constantemente? Em outras palavras, como é possível o conhecimento numa realidade que está em constante mudança? Voltemos para o texto de Aristóteles. E quando Sócrates, desprezando o universo físico e limitando o seu estudo a questões morais, procurou o universal nesse campo e foi o primeiro a se concentrar nas definições. Platão seguiu-o e supôs que o problema da definição não se refere a coisa alguma sensível mas a entidades de outro tipo, pela razão de que não pode haver definição geral de coisas sensíveis, que estão sempre mudando. Chamou essas entidades de “Ideias” e afirmou que todas as coisas sensíveis são nomeadas segundo elas e em virtude de sua relação com elas; pois a pluralidade de coisas que têm o mesmo nome das Ideias correspondentes existe por participarem delas. (Quanto à participação, foi apenas o termo que ele mudou; pois enquanto os pitagóricos dizem que as coisas existem por imitação dos números, Platão diz que elas existem por participação – meramente uma mudança de termo. Quanto ao que venha a ser tal “participação” ou

“imitação”, eles deixaram a questão em aberto.) Neste trecho, Aristóteles nos apresenta a doutrina platônica das ideias. O filósofo discorra a respeito da impossibilidade, de acordo com Platão, de definir as coisas que existem no mundo sensível, uma vez que, essas coisas são marcadas pelo transitório e pelo mutável. Em outras palavras, como é possível definir o que está em constante mudança, ou seja, no mundo sensível as coisas não permanecem nem por um segundo. O pensador também compara Platão aos pitagóricos, neste caso, fazendo referência da influência que Platão teria sofrido desta escola. Voltemos à Aristóteles. Além disso, ele afirma que, além das coisas sensíveis e das Ideias, existe uma classe intermediária, os objetos da matemática, que diferem das coisas sensíveis por serem eternos e imutáveis e das Ideias pelo fato de existirem muitos objetos da matemática similares, ao passo que cada Ideia é única. Ora, uma vez que as Ideias são as causas de tudo o mais, ele supôs que seus elementos são os elementos de todas as coisas. Consequentemente, o princípio material é o “o Grande e o Pequeno” e o princípio formal e essencial é o Um, pois os números derivam do “Grande e do (do) Pequeno” por participação no Um. Ao tratar o Um como substância em vez de predicado de alguma outra entidade, sua doutrina assemelha-se à dos pitagóricos e também concorda com ela ao afirmar que os números são as causas do Ser em tudo o mais; mas é específico dele postular uma dualidade em vez do único Imitado e fazer o Ilimitado consistir do “Grande e (do) Pequeno”. Também é específico dele considerar os números distintos das coisas sensíveis, enquanto os pitagóricos sustentam que as próprias coisas são números e não postulam uma classe intermediária de objetos matemáticos. A distinção que faz entre, de um lado, o Um e os números e, de outro, as coisas comuns (no que diferia dos pitagóricos) e a introdução 23

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das Ideias deve-se à sua investigação da lógica (os pensadores anteriores eram estranhos à dialética); sua concepção do outro princípio como uma dualidade decorreu da crença de que os números não primos podem ser prontamente gerados por ele como de uma matriz. O fato, porém, é exatamente o contrário e a teoria não tem lógica, pois enquanto os platônicos derivam a multiplicidade da matéria, embora sua Forma gere somente uma vez, é óbvio que apenas uma mesa pode ser feita de uma peça de madeira e, no entanto, aquele que dá forma, apesar de ser um só, pode fazer muitas mesas. Tal é também a relação entre macho e fêmea: a fêmea é engravidada numa cópula, mas um macho pode engravidar muitas fêmeas. Essas relações são análogas aos princípios referidos. Esse, pois, é o veredito de Platão para questão que investigamos. Desse relato fica claro que ele considerava apenas duas causas: a essencial e a material; porque as Ideias são a causa da essência em tudo o mais e o Um é a causa da essência nas Ideias. Ele também nos diz qual o substrato material de que as Ideias são dotadas no caso das coisas sensíveis e o substrato material de que as Ideias são dotadas no caso das coisas sensíveis e o que é o Um no caso das Ideias – o que vem a ser a dualidade, “o Grande o Pequeno”. Além disso, ele atribuía a esses dois elementos a origem, respectivamente do bem e do mal, problema que, como dissemos, tinha sido também examinado por alguns filósofos anteriores, como Empédocles e Anaxágoras.13 Em seu Segundos Analíticos14 Aristóteles expõe o conhecimento científico da seguinte maneira: Julgamos conhecer cientificamente cada coisa, de modo absoluto e não, à maneira sofística, por acidente, quando julgamos conhecer a causa pela qual cada coisa é, que ela é a sua causa e que não pode 13 Aristóteles. Metafísica. Livro VI. In. Marcondes, Danilo. Textos básicos de filosofia: dos pré-socráticos a Wittegenstein. p. 46. 14 Nos apropriamos aqui da citação realizado por Oswaldo Pereira Porchat em sua obra Ciência e Dialética em Aristóteles. 2001. (vide bibliografia)

essa coisa ser de outra maneira. A noção de conhecimento nessa perspectiva aristotélica nos aponta para dois elementos constitutivos do conhecimento: causa e necessidade. O próprio Aristóteles explica na Metafísica acerca do conhecimento pelas causas: É pois manifesto que a ciência a adquirir é a das causas primeiras (pois dizemos que conhecemos cada coisa somente quando julgamos conhecer a sua primeira causa); ora, causa diz-se em quatro sentidos: no primeiro, entendemos por causa a substância e a quididade (o “porque” reconduz-se pois à noção última, e o primeiro “porque” é causa e princípio); segunda [causa] e a matéria e o sujeito; a terceira é a de onde [vem] o início do movimento; a quarta [causa], que se opõe à precedente, é o “fim para que” e o bem (porque este é, com efeito, o fim de toda a geração e movimento). (Metafísica I, 3, p. 216) Segundo Nichola Abbagnano (1998: 125), a doutrina de Aristóteles demonstra a estreita conexão entre a noção de causa e a de substância. A causa é o princípio de inteligibilidade porque compreender a causa significa compreender a organização interna de uma substância, isto é, a razão pela qual uma substância qualquer é o que é e não pode ser ou agir diferentemente. Sobre o necessário, Aristóteles afirma que não pode ser diferente do que é. O necessário diz respeito ao que é e não pode ser de outra maneira. Desse modo, não há demonstração nem ciência das coisas perecíveis e destas também não há definições. Nesse caminhar afirma Oswaldo Pereira Porchat: Dizer que o objeto da ciência é o necessário, o que não pode ser outra maneira, assim determinado-o negativamente, em vez de dizer simplesmente que é o eterno, o que sempre é, em inalterável identidade consigo mesmo, é opô-lo a uma outra esfera do real, que exclui [...]da ciência àquelas coisas todas que, verdadeira embora e reais [..] são 24

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contingentes, isto é, podem, precisamente, ser de outra maneira [...].(PORCHAT, 2001, pp. 39 – 40) Não se conhece o contingente, o caráter imutável do objeto ou a sua corrupção. Não se tem conhecimento daquilo que não pode ser demonstrado. Nesse quadro Aristóteles e Platão estão de lados opostos, pois, para aquele, os objetos corruptíveis, quando fora das sensações, não se dão ao conhecimento para aqueles que são detentores do conhecimento. Dessa forma, o objeto imutável, o necessário é fonte de conhecimento, pois para Aristóteles quem procura o conhecer pelo conhecer escolherá, de preferência, a ciência que é mais ciência, e esta é a do sumamente conhecível; e sumamente conhecível são os princípios e as causas: é pois por eles e a partir deles que conhecemos as outras coisas, e não eles por meio destas, que são subordinados. (Metafísica I, 2, p. 214)

Quando estudamos Platão e Aristóteles, compreendemos e percebemos o quanto o conhecimento ocidental foi e continua sendo influenciado por esses dois filósofos. Em outras palavras, o modo de pensar no ocidente tem os seus fundamentos em Platão e Aristóteles. Esses dois pensadores nos deram uma contribuição que mudou o nosso modo de articular a nossa visão de mundo que a seguinte: o pensamento segue regras, ou seja, pensar é uma ação que existe uma série de parâmetros. Vamos estudar no próximo num terceiro o quarto momento de nossa aula dos pensadores cristãos que sofreram forte influência destes de Platão e Aristóteles: Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino.

O cristianismo

Aristóteles e a sistematização do conhecimento

Podemos atribuir a Aristóteles a primeira sistematização do conhecimento. O pensador dividiu-o em três grandes grupos com subdivisões: teóricas, práticas e produtivas.

O cristianismo é uma das três grandes religiões monoteístas, ao lado do Islã e do Judaísmo. Ele surgiu na região da palestina por volta do século I (alguns afirmam que houve um erro na elaboração do calendário cristã, neste caso, seria século VI a.C). Os cristãos acreditavam que Deus teria se encarnado como homem na pessoa de Jesus Cristo para livrar os homens do pecado original cometido por Adão e Eva. Neste caso, para os cristãos, Jesus cristo teria as duas naturezas na sua plenitude, ou seja, totalmente homem e totalmente Deus. Por isso, Ele é invocado com a segunda pessoa da Trindade: Pai, Filho e Espírito Santo. De acordo com os evangelhos, Jesus teria sido condenando à morte e morto, 25

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mas, três dias depois teria ressuscitado. E, posteriormente, teria aparecido aos seus discípulos e a algumas testemunhas. Finalmente, depois de algum tempo com eles, Ele teria subido aos céus, ato que recebe o nome de ascensão. Após a ascensão de Cristo aos céus, os seus apóstolos e discípulos saíram por toda a região anunciando o evangelho. Num primeiro momento, não havia uma instituição, mas, é sabido que havia entre eles alguns lideres, como por exemplo, Pedro e Paulo. Somente no século II, após a morte de João que era o último apostolo que o cristianismo começa a se estruturar como instituição religiosa. Neste momento, as perseguições por parte do Império Romano impediram essa institucionalização. Posteriormente, o cristianismo torna-se a religião oficial do Império. Após a institucionalização do cristianismo, aos poucos os cristãos sentiram a necessidade de fundamentar a fé com princípios racionais. Em outras palavras, se Deus criou todas as coisas, a fé não poderia ter “medo” da razão, pois todo o conhecimento vem de Deus. Essa busca de conciliação entre fé e razão passou pelos por dois grandes pensadores cristãos: santo Agostinho e santo Tomás.

Santo Agostinho

Teoria do conhecimento em Santo Agostinho Santo Agostinho nasceu em Tagaste em 354. Agostinho é fruto de uma família dividida entre uma mãe cristã e piedosa e um pai pagão de caráter duro e difícil. A história da filosofia nos revela que a teoria do conhecimento em Santo Agostinho constitui-se numa aproximação entre legado da cultura clássica em especial Sócrates, Platão e Aristóteles com o cristianismo e procura orientar o homem em direção a Deus. Nesse caminhar o pensamento platônico tornaram um dos pilares de sustentação da doutrina cristã. O próprio Santo Agostinho reconhece sua dívida com o pensamento de Platão ao afirmar que: [...] No momento, dizer que Platão estabeleceu que o fim do bem é viver de acordo com a virtude, o que pode conseguir apenas quem conhece e imita Deus, e que tal é a única fonte de sua felicidade. Eis por que não teme dizer que filosofar é amar a Deus, cuja natureza é incorpórea. Donde se depreende que o estudioso da sabedoria (o filósofo) será feliz precisamente quando começar a gozar de Deus, embora no momento não seja feliz o que goza do que ama. Muitos, amando o que não se deve amar, são miseráveis; e mais miseráveis ainda, quando dele gozam. Contudo, ninguém será feliz, se não goza do que ama. Isso, porque os mesmos que amam as coisas que se não devem amar, não se julgam felizes, amando-as, mas gozando-as. Não é feliz, por conseguinte, quem goza do que ama e ama o verdadeiro e soberano bem? Não é o cúmulo da miséria negá-lo? Ora, o verdadeiro e soberano bem é Deus mesmo, di-lo Platão. Por isso quer que o filósofo tenha amor a Deus, pois se a felicidade é o fim da filosofia, gozar de Deus, amar a Deus é ser feliz. AGOSTINHO p. 311 Fica explícito na obra de Santo Agostinho a estreita relação entre o pensamento cristão com o legado de Platão. 26

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Avançando nessa leitura, observa-se que muitos filósofos usaram a inteligência para entender as causas das coisas, já os filósofos que trilham no caminho de Platão, conheceram a Deus e nele encontraram a causa do universo, a luz da verdade, a fonte da felicidade. Embora os platônicos tenham encontrada a causa do universo e conhecido a fonte de felicidade falta a figura de Cristo nesse pensamento. Nesse contexto afirma Santo Agostinho: Querendo Vós mostrar-me primeiramente como “resistis aos soberbos e dais graça aos humildes” e quão grande seja a misericórdia com que ensinaste aos homens o caminho da humanidade, por “se ter feito carne o Vosso Verbo e ter habitado entre os homens, me deparastes, por intermédio de um certo homem, intumescido por monstruoso orgulho, alguns livros platônicos, traduzidos do grego em latim. Neles li, não com estas mesmas palavras, mas provado com muitos e numerosos argumentos, que ao princípio era o Verbo e o Verbo existia em Deus e Deus era o Verbo: e este, no princípio existia em Deus. Todas as coisas foram feitas por Ele, e sem Ele nada foi criado. O que foi feito, n’Ele é vida e a vida era a luz dos homens; a luz brilhou nas trevas e as trevas não a compreenderam. A alma do homem, ainda que dê testemunho da luz, não é, porém, a luz; mas o Verbo – Deus – é a Luz verdadeira que ilumina todo o homem que vem a este mundo. Estava neste mundo que foi feito por Ele, e o mundo não o Conheceu. – Porém que veio par o que era seu e os seus não o receberam; que a todos os que o receberam lhes deu poder de fazerem filhos de Deus ao que crescessem em seu nome – isto não li naqueles livros. Do mesmo modo, li nesse lugar que o Verbo Deus não nasceu da carne, nem do sangue, nem da vontade do homem mas de Deus. Porém que o Verbo se fez homem e habitou entre nós, isso não li eu aí. Descobri naqueles escritos, expresso de muitos e variados modos, que o

Filho, “existindo com a forma do Pai, não considerou como usurpação ser igual a Deus”, porque o é por natureza. Porém aqueles livros não trazem que “se aniquilou a si mesmo tomando a forma de escravo, feito à imagem dos homens e sendo julgado, no exterior, como um homem”. Não dizem que “se humilhou fazendo-se obediente até à morte e morte de cruz, pelo que Deus o exaltou dos mortos, para que ao nome de Jesus todo o joelho se dobre nos céus, na terra e nos infernos e toda a língua confesse que o Senhor Jesus está na glória de Deus Pai”. AGOSTINHO, p. 151-152. Seguindo a dicotomia platônica – o mundo das Ideias/mundo sensível – o trecho citado nos aponta para a ideia de mediador. Para Platão o acesso ao mundo das Ideias limita-se a um exercício ascensional exclusivo da alma humana. Nesta dicotomia, fica claro que os dois mundo devem permanecer separados para que a alma possa ascender e abandonar o mundo das sombras. Essa comparação serve de base para situar a teoria do conhecimento de Santo Agostinho. Para refletirmos sobre a teoria do conhecimento proposto no pensamento de Agostinho precisamos ver como o filósofo define a natureza humana. Para ele o homem constitui-se numa unidade substancial de corpo e alma, no qual esta se utiliza daquela. Conforme Etienne Gilson (1998: p. 146) a definição do homem dialeticamente justificada por Platão no Alcibíades e retomada em seguida por Plotino exerceu sobre o pensamento de Agostinho uma influência decisiva: o homem é uma alma que se serve de um corpo. Quando fala como cristão, toma o cuidado de lembrar que o homem é a unidade da alma e do corpo; quando filosofa, volta a Platão. Bem mais, retém essa definição com as consequências lógicas que ela comporta, a principal das quais é a transcendência hierárquica da alma sobre o corpo. Presente inteira no corpo inteiro, a alma, porém, só lhe é única pela ação que exerce incessantemente sobre ele para vivificá-lo. 27

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Nesse caminhar temos que a alma por si só é uma substância completa e a união com o corpo tem por objetivo formar uma nova substância para se unir com a natureza suprema de Deus. Portanto, no pensamento agostiniano não separa teoria do conhecimento da participação direta da iluminação divina. Porém para entendermos a participação do homem na construção do conhecimento precisamos a atuação das faculdades da alma humana. São os três aspectos do homem que se revelam nas três faculdades da alma, a memória, a inteligência e a vontade, as quais conjuntamente, e cada uma por si, constituem a vida, a mente e a substância da alma. Sobre essa questão assim se expressa Santo Agostinho: Eu recordo por ter memória, inteligência e vontade; entendo por compreender, querer e recordar; e quero querer, recordar e compreender. E recordo toda a minha memória, toda a inteligência e toda a vontade e do mesmo modo compreendo e quero todas estas três coisas; as quais coincidem plenamente e, não obstante a sua distinção, constituem uma unidade, uma só mente e uma só essência. Nesta unidade da alma que se diferencia nas suas faculdades, cada uma das quais compreende as outras, está a imagem da trindade divina; imagem desigual ma imagem. (Cf. ABBAGNANO: 1992, P. 186) Desse modo podemos refletir sobre a questão do conhecimento em Santo Agostinho afirmando que dentro da tradição platônica existem duas formas para a obtenção de conhecimento. Aquele que se originam das funções dos sentidos apreendendo os objetos exteriores que estão sujeitos à mutabilidade e a temporalidade. Nesse registro, os elementos percebidos pelos sentidos são levados á memória e organizados pelo homem. Se os objetos exteriores estimulam nossos sentidos, nossos órgãos sensoriais sofrem suas ações, mas, como a alma é superior ao corpo e como o inferior não pode agir sobre o superior, ela mesma não sofre a influência alguma

deles. Acontece então o seguinte: graças à vigilância severa que exerce, a alma não deixa passar despercebida essa modificação de seu corpo. Sem nada sofrer da parte do corpo, mas, ao contrário, por sua atividade própria, ela extrai com uma maravilhosa prontidão de sua própria substância imagem semelhante ao objeto. É o que se chama de sensação. As sensações são, pois, ações que alma exerce, não paixões que ela sofre. (Cf. Etienne Gilson 1998: p. 146) Santo Agostinho não coloca a questão da impossibilidade do conhecimento cuja origem encontra-se nas sensações. Seguindo a lógica hierárquica, coloca esse conhecimento num registro inferior ao inteligível. Esse pensamento remete ao platonismo no que diz respeito a luz física enquanto elemento indispensável para o conhecimento dos objetos sensíveis. Quando apresentadas estas duas formas de conhecimento, Santo Agostinho elabora uma distinção entre o objeto que se dá a conhecer e o conhecimento que temos do objeto. Em seu pensamento, sensação é uma forma de conhecimento espiritual; por outro lado, o objeto sensível é algo corporal. O objeto sensível é atingido pela sensação, da qual ele é a causa. O conhecimento inteligível é aquele que só pode ser percebido pela mente humana e somente por meio da reflexão. Nesse modelo de conhecimento, o filósofo explicita que o conhecimento da verdade imutável é possível pela iluminação divina. Agostinho pensa na existência de uma luz interior como verdadeira fonte de verdade, e os objetos sensíveis como as palavra como momentos no qual manifesta a Iluminação. Em sua obra O Mestre (2008) afirma que sobre as muitas coisas que entendemos consultamos não aquelas cujas palavras soam no exterior, mas a verdade que interiormente preside à própria mente, movidos talvez pelas palavras para que consultemos. E quem é consultado ensina, o qual é Cristo que, como se diz, habita no homem interior, isto é, virtude incomutável de Deus e a eterna sabedoria, 28

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que toda alma racional consulta, mas que se revela a cada alma o quanto esta possa abranger em função da sua própria boa ou má vontade. E se às vezes há enganos, isto ao decorre por erro da verdade consultada, como tampouco da luz exterior, pela qual os olhos com frequência e enganam; confessamos que consultamos esta luz a respeito das coisas visíveis para que no-las mostre à medida que as possamos ver. Se, no que diz respeito às cores, consultamos a luz e, no que diz respeito às outras coisas que sentimos através do corpo, consultamos os elementos deste mundo e os mesmos corpos que sentimos e os próprios sentidos, dos quais a mente usa como intérpretes para conhecer tais coisas; porém, a respeito das coisas que se conhecem pela inteligência, consultamos a verdade interior por meio da razão; como se pode dizer com clareza que com as palavras aprendemos algo além do próprio som que repercute nos ouvidos? Pois todas as coisas que percebemos, percebemos-las pelos sentidos do corpo ou pela mente. Aquelas denominamos sensíveis e estas inteligíveis ou, para falar conforme o costumes de nossos autores, aquelas denominamos carnais e estas espirituais. Quando se coloca a questão do conhecimento superior, Platão se faz presente sempre. Se para o filósofo grego o conhecimento é produto de uma ação dialética, de uma ascese espiritual, limitado a alma, para Santo Agostinho é pura graça de Deus, o que não exclui o caráter filosófico que é a reflexão. Assim, podemos conhecer as verdades eternas por um contato com Deus. A alma neste contexto faz um movimento de fora para dentro de si mesmo e se abre para Deus, a verdade transcendente. O caminho que se percorre aponta para o intermediário Cristo. A filosofia de Santo Agostinho por si só constitui um conteúdo vastíssimo e rico que demanda muitos estudos. Porém o diálogo com outros filósofos nos ajuda a situarmos a questão do conhecimento num contexto mais amplo que atravessa os períodos da

história da filosofia. Maurice Merleau-Ponty (1971) sobre a questão do corpo afirma em sua obra Fenomenologia da percepção que afirma: “(...) É pelo meu corpo que compreendo o outro, como é pelo meu corpo que compreendo as coisas (...) Podese dizer que o corpo é a forma escondida do ser próprio. Se dizemos que o corpo a cada momento exprime a existência, é no sentido de que a fala exprime o pensamento. (...) O homem pode falar assim como a lâmpada pode tornar-se incandescente. (...) A predominância de vogais numa língua, das consoantes numa outra, os sistemas de construção e sintaxe não representariam tanto convenções arbitrárias para exprimir o mesmo pensamento, mas várias maneiras de o corpo humano celebrar o mundo e finalmente vivê-lo. (...) a palavra é um verdadeiro gesto e contém sentido, como o gesto também contém o seu. É o que torna possível a comunicação. Para que eu compreenda as palavras do outro, é necessário que eu compreenda seu vocabulário, sua sintaxe. (...) Toda linguagem, em suma, ensina-se por si mesma e introduz sentido no espírito do ouvinte. Uma música ou uma pintura que não é inicialmente compreendida acaba por criar ela mesma seu público, caso diga alguma coisa. (...) A comunicação ou a compreensão dos gestos se obtém pela reciprocidade de minhas interações e gestos do outro, de meus atos e das intenções legíveis na conduta do outro. (...) Tudo ocorre como se a intenção do outro habitasse meu corpo ou como se minhas intenções habitassem o seu. (...) O gesto está diante de mim como uma pergunta, ele me indica alguns pontos sensíveis do mundo, ele me convida a encontrá-lo lá. A comunicação se completa quando minha conduta encontra neste caminho seu próprio caminho. Há confirmação do outro por mim e de mim pelo outro, um poder pensar segundo o outro que enriquece nossos próprios pensamentos. (...) Nossa vista sobre o homem restará superficial enquanto não (...) encontrarmos, 29

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sob o barulho das palavras, o silêncio primordial, enquanto não descrevermos o gesto que rompe este silêncio. A palavra é um gesto e sua significação, um mundo”. No pensamento de Agostinho é possível encontrar questões como a origem do mal, o pecado original e o tema da predestinação.

Santo Tomás de Aquino

Teoria do conhecimento em Santo Tomás de Aquino Tomás de Aquino nasceu em 1225 no reino da Sicília e morreu em 1274. Santo Tomás de Aquino marcou sua posição na história da filosofia ao conciliar o pensamento de Aristóteles com a doutrina Cristã. No contexto em que vivia15, um dos problemas que se colocava era o problema da relação entre filosofia e teologia, entre o conhecimento filosófico, obtido pela razão, e as verdades da teologia, fundamentadas na revelação. O pensamento de Tomás de Aquino caminha no sentido de mostrar que a filosofia como forma de conhecimento não poderia mais ser concebida como uma simples serva, pois, tinha o seu objeto de estudo, ou seja, o mundo natural cujo instrumento para se chegar ao conhecimento era a razão. A teologia também possuía o seu objeto de estudo que era a realidade sobrenatural alcançada com a fé, instrumento de sua fundamentação. Nessa relação entre filosofia e teologia distinguem-se duas formas de conhecimento, o sobrenatural que tem a sua 15 Durante a Idade Média, o período de hegemonia da Igreja Católica no Ocidente, o pensamento filosófico só era utilizado na medida em que reafirmavam as doutrinas da Instituição.

origem na revelação divina e o conhecimento sensível que tem a sua origem na razão humana. Esse trabalho tem por objetivo refletir sobre a segunda forma de conhecimento. Para isso, a concepção de homem no pensamento de Santo Tomás de Aquino se faz necessário. O homem é o ponto de convergência de toda a criação. Nele se encerram, de algum modo, todas as coisas. A razão lhe permite penetrar no mundo dos espíritos, as energias sensitivas lhe são comuns com os animais, as forças vitais com as plantas, e o corpo fá-lo aproximar-se dos seres inanimados. Como ser composto de todos os seres, o homem defronta a filosofia com um problema peculiar: o de usa unidade. (Cf. BOEHNER, 1991, p. 467) A natureza do homem é formada por alma e corpo. O corpo faz parte também de sua essência, pois, além de entender, sente, e o sentir não é uma ação da alma isolada da matéria, que é o corpo. No homem subsiste a forma intelectiva da alma, a qual desempenha as funções sensitivas e vegetativas. A união entre corpo e alma deve expressar as ações humanas. O conhecimento sensível tem um lugar de destaque no pensamento de Santo Tomás de Aquino, constitui-se a base no qual se eleva o conhecimento intelectivo. Na base dessa construção o filósofo estabelece os componentes do conhecimento sensível: sentidos próprios e sentido comum, imaginação, memória e razão particular ou intelecto passivo. Estes constituem uma hierarquia nessa construção sob a qual eleva o conhecimento intelectivo. Santo Tomás de Aquino define sentidos próprios àqueles particulares possuidores de um objeto próprio. Cada sentido em particular é marcado pelo objeto sensível. A cada sentido particular corresponde a uma forma, por exemplo, cor, som, que são percebidas como forma imaterial. Quanto mais imaterial foi a ação do objeto sobre um sentido particular, mais elevada é sua posição na hierarquia dos sentidos. Nesta 30

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hierarquia a sensação mais baixa é o do tato, que atua por meio do contato imediato com o objeto. Mais acima esta o gosto, cuja sensação não tem efeito de tornar a língua doce ou amarga; mas este sentido é alterado imediatamente pelo objeto, pois, a sensação gustativa só é possível pelo umedecimento da língua. Mais longe da matéria encontramse as sensações auditívas e alfativas, pois o órgão sensorial não sofre nenhuma alteração material, somente o objeto sensível está sujeito à mudança. O Sentido mais elevado é o da visão, que não sofre influência por nenhuma alteração no objeto sensível, e que percebe tanto as substâncias perecíveis como certas substâncias imperecíveis. O sentido comum tem a função de perceber todas as impressões e, além disso, o próprio ato da sensação. O sentido particular não consegue distinguir entre a cor e o gosto. A imaginação é a faculdade capaz de reter com sua força representativa, as imagens das coisas sensíveis. A memória tem cumpre a sua função ao tornar o homem capaz de reapresentar ou evocar o que foi apreendido e conservado. Razão particular ou intelecto passivo visa as intenções individuais, faz as vezes do instinto no ser humano. O homem dispõe de uma faculdade primitiva de julgamento, que lhe permite constatar o que lhe é vantajoso ou nocivo. Seus juízos sempre dizem respeito a situações e objetos concretos. (Cf. BOEHNER, 1991, p. 471-472) O conhecimento então, começa com a sensação, isso quer dizer que sem os dados do sentido, o intelecto não pode entrar em ação. Conforme Émile Bréhier: A teoria tomista do conhecimento pode visar a um duplo ponto de vista. Sob um aspecto, é universal e, por estender-se a todos os modos de conhecimento, quaisquer que sejam, indica as condições especiais do conhecimento humano. Sob o primeiro aspecto, inspira-se em uma fórmula de Aristóteles, que Plotino e Proclo (...) haviam desenvolvido amplamente: “A alma é, de algum modo, todas as coisas.” É, de certo modo, as coisas sensíveis, que percebe pelos

sentidos, pois que a sensação, ato comum do que sente e do sentido, deixa na alma a forma das coisas, sem a matéria, mas com todos os acidentes que as individualizam. Doutra parte, a inteligência em ato é idêntica à própria coisa que compreende. Quer se trate do conhecimento sensível ou da visão beatífica, o conhecimento é uma certa presença, impossível de analisar, do objeto conhecido no sujeito cognoscente. Não é, porém, como se diz frequentemente, por erro, uma assimilação. É preciso dizer apenas (esse é o segundo aspecto) que, em virtude do princípio seguinte: “O conhecido está no cognoscente, segundo o modo do cognoscente”, pode haver ocaso em que a assimilação, isto é, a operação pela qual o conhecido se assemelha ao cognoscente, seja condição prévia do conhecimento. Quando, por exemplo, o sujeito e o objeto são tão diferentes como a alma e coisa sensível, o conhecimento inelectual não pode ter lugar senão por certa “espécie”, que é, ao mesmo tempo, forma própria do intelecto, e imagem ou semelhança da coisa compreendida. Trata-se da “espécie impressa”, pela qual o intelecto, compreendendo a coisa, começa sua operação, que terminará na definição ou “espécie expressa”. Mas nenhuma operação desse gênero é útil na visão beatífica ou no conhecimento que Deus tem de sua própria essência. Não define, por conseguinte, todo conhecimento, pois este, tomado em geral, é realmente a presença direta do ser. (BRÉHIER, 1978, p. 136-7) O homem como qualquer objeto sensível é provido de forma, elemento universal da matéria. O conhecimento consiste precisamente em desprender da matéria o aspecto universal. O universal é o objeto próprio e direto do intelecto. Pelo seu próprio funcionamento, o intelecto não pode conhecer diretamente as coisas individuais. Dessa forma ele procede abstraindo da matéria individual a espécie inteligível; e a espécie, que é o produto da tal abstração, é o próprio universal. A coisa individual não pode ser conhecida pelo intelecto 31

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senão indiretamente, pela reflexão. (Cf. ABBAGNANO, 1988, p. 30) Para entender a ação do intelecto, Santo Agostinho diferencia na alma humana duas formas de intelecto, um que se constitui enquanto agente que abstrai e outra possível. Diz-se possível em função do intelecto humano ser finito e não conhece em ato todos os inteligíveis, mas somente a possibilidade de conhecer. É nesse contexto o conhecimento se efetiva pela ação do intelecto agente. Conforme Santo Agostinho: existem vários graus de potencialidade. Há uma potência que nunca está em ato, como acontece com a matéria dos corpos celestes. Há outra potência que pode estar privada do seu ato, e que precisa passar para o ato, a fim de adquiri-lo, como acontece com a meteria dos corpos terrestres susceptíveis de corrupção. À primeira ordem de potencialidade corresponde o conhecimento do anjo, e à segunda, o do homem. O conhecer angélico se aproxima de Deus, visto não ser adquirido, e sim comunicado por Deus; o conhecimento humano, ao contrário, precisa atualizar-se a si mesmo. Maximamente remoto da perfeição do intelecto divino, o nosso intelecto é potencial em relação aos inteligíveis, não só no sentido de manter-se passivo em face deles, mas porque os inteligíveis não lhe pertencem por natureza. Segundo Aristóteles, a alma é uma como a lousa em que nada está escrito, uma “tabula rasa”. De sorte que a passividade de nosso intelecto, bem como a necessidade de se admitir um intelecto possível, fundam-se na extrema imperfeição de nosso conhecimento. Pois em razão da passividade do intelecto possível em relação aos inteligíveis, é necessário que aquele seja movido por estes, para que o conhecimento se torne possível. Para ser movido, é preciso que ele exista, ou, em outras palavras, que este esteja em ato. Além disso, ele deve ser ativo, visto que as formas das coisas naturais, que movem o intelecto, não existem à maneira de inteligíveis puros, mas estão imersas na matéria. É fácil ver

que tais formas, existentes na matéria, não são imediatamente acessíveis ao espírito, por não serem inteligíveis senão em seu aspecto material; pelo que precisam ser elevadas à materialidade e à inteligibilidade. O que não pode ser feito senão por um ser que já esteja, ele mesmo, em ato. Logo, é necessário atribuir ao intelecto humano também um princípio ativo, que atualize, numa apreensão espiritual atual, os elementos inteligíveis potencialmente contidos nas coisas sensíveis; tal é a função do intelecto agente. (SANTO AGOSTINHO, apud, BOEHNER, 1991, p. 472 – 473) Contrapondo a posição de Platão e Santo Agostinho, Santo Tomás de Aquino concebe o campo do conhecimento humano o mundo sensível onde o homem pode encontrar o inteligível. Portanto, a alma estaria incompleta sem o corpo e o conhecimento que tem seu ponto de partida nos sentidos não seria possível. De outra forma, a verdade buscada pelo ser humano, consiste na relação de identidade do objeto com o intelecto. O conhecimento consiste na adequação entre o entendimento e o objeto.

As provas da existência de Deus

Na tentativa de conciliar fé e razão, Tomás de Aquino elabora as provas da existência de Deus. Em outras palavras, é uma tentativa de provar a existência de Deus pelas vias da racionalidade e não pela Revelação bíblica. Vamos expor aqui em nosso texto parte desta argumentação e, nas vídeos-aulas e nos momentos de interatividade da disciplina iremos explicitálas melhor. Três questões podem ser formuladas sobre a existência de Deus: 1 – A existência de Deus é uma verdade evidente? 2 – A existência de Deus pode ser demonstrada? 3 – Deus existe?

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No tocante a primeira questão proposta, podemos considerar que: 1 – Parece-nos que a existência de Deus é evidente. Pois são assim conhecidas de nós as coisas cujo conhecimento temos delas naturalmente, como é claro quantos aos primeiros princípios. Ora, como diz Damasceno: O conhecimento da existência de Deus é inato em todos os homens. Portanto, a existência de Deus é evidente. 2 – Por outro lado, denominamos evidentes as proposições que, conhecidos os termos, imediatamente se conhecem. Foi como Aristóteles atribuiu, nos Segundos Analíticos, aos primeiros princípios da demonstração; pois sabido o que são o todo e o significado da parte, imediatamente sabemos que qualquer todo é maior que qualquer parte. Ora, compreendido o significado do nome de Deus, imediatamente se tem que Ele existe. Pois tal nome significa aquilo do que se não pode exprimir nada maior; ora, maior é o existente real e intelectualmente, do que o existente apenas intelectualmente. Donde, como o nome de Deus, uma vez compreendido, imediatamente existe no intelecto, segue-se que também existe realmente. Logo, a existência de Deus é evidente. 3 – Ademais, a existência da verdade é evidente, pois quem nega a verdade concorda que ela não existe. Mas, se a verdade não existe, a não existência da verdade é verdadeira. Portanto, se alguma coisa é verdadeira, é necessária a existência da verdade. Ora, Deus é a própria verdade, como diz a Escritura (Jo, 14:6) “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”. Logo, a existência de Deus é evidente. OBJETANDO, ninguém pode pensar o contrário do que é evidente, como se vê em Aristóteles, sobre os primeiros princípios da demonstração (Metafísica IV e Primeiros analíticos I, 10). Ora, podemos pensar o contrário da existência de Deus, segundo a Escritura (Salmo 52:1): “Os insensatos dizem a si mesmos:– Deus não existe”. Logo, a existência de Deus não é evidente.

RESPONDO: Temos duas maneiras de dizer que uma coisa é evidente. Esta poder ser evidente por si mesma, e não relativamente a nós; e pode ser evidente por si mesma e relativamente a nós. Pois qualquer proposição é evidente quando o predicado se inclui na noção do sujeito, por exemplo: O homem é um animal. Animal pertence à noção de homem. Se, portanto, for conhecido de todos o que é o predicado e o sujeito, tal proposição será para todos evidente; como se dá com os primeiros princípios da demonstração, cujos termos – o ser e o não ser, o todo e a parte e semelhantes – são tão comuns que ninguém os ignora. Mas, para quem não souber o que são o predicado e o sujeito, a proposição não será evidente, embora o seja, considerada em si mesma. Neste sentido Boécio afirma que “certas concepções de espírito são comuns e conhecidas por si, mas só para os sapientes, como por exemplo, os seres incorpóreos não ocupam lugar”. Digo, portanto, que a proposição Deus existe, quanto à sua natureza, é evidente, pois o predicado se identifica com o sujeito, sendo Deus o seu ser. Mas, como não sabemos o que é Deus, ela não nos é por si evidente, mas necessita ser demonstrado, pelos efeitos mais conhecidos de nós e menos conhecidos por natureza. QUANTO A PRIMEIRA OBJEÇÃO, portanto, conhecer a existência de Deus de modo geral, e com certa confusão, é naturalmente inato, por ser Deus a felicidade do homem. De fato o homem deseja naturalmente a felicidade e o que naturalmente deseja, naturalmente conhece. Mas isto não é pura e simplesmente conhecer a existência de Deus, assim como conhecer quem vem não é conhecer Pedro, embora Pedro venha vindo. Pois, uns pensam que o bem perfeito do homem, a felicidade, consiste nas riquezas; outros, noutras coisas. QUANTO A SEGUNDA OBJEÇÃO, devese dizer que, talvez quem ouve o nome de Deus não o entenda como significando o ser maior que o qual nada possa ser pensado. De fato, alguns acreditam que Deus tenha 33

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um corpo. Porém, mesmo concedido que todos entendam o nome de Deus neste sentido, a saber, maior do que o qual nada pode ser pensado, nem por isso se conclui que entendam a existência real do que significa tal nome, senão só na apreensão do intelecto. E não se pode concluir que existe realmente, a menos que não se admita existir realmente algum ser tal que não se possa conceber outro maior, o que não é aceito pelos que negam a existência de Deus. QUANTO A TERCEIRA OBJEÇÃO, deve-se afirmar que é evidente por si a existência da verdade, intermediária, mas a existência da verdade primeira não é evidente para nós. No período em que viveu Santo Tomás, a filosofia era considerada “escrava da teologia”, ou seja, a filosofia deixou se ser um instrumento de investigação da realidade para tornar-se instrumento ferramenta para legitimar o pensamento cristão. Mesmo assim, não podemos desconsiderar o vastíssimo campo explorado pelos pensadores cristão, pois, as suas questões foram e são pertinentes para o debate entre a fé e a razão, entre a ciência a religião.

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