Para Uma Teoria Do Amor.docx

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Para uma teoria do amor

A intenção de união, intuída na transformação fisiológica do próprio corpo, não é simplesmente a intenção de fazer sexo, é ao mesmo tempo contato pessoal e íntimo com o outro, e consiste em querer conhecer o outro como a si mesmo – o conheço enquanto me dou a conhecer para ele; isso gera uma inclinação à fidelidade nas pessoas que amam. Não pode haver verdadeira união sem mútua fidelidade. A intenção de união gera, portanto, uma relação interpessoal permanente, pois compartilhar a minha intimidade significa compartilhar o meu segredo, e isso não pode ser traído de modo algum. Querer se unir a uma pessoa, com essa intenção relacionada ao ato sexual, significa ao mesmo tempo não querer deixa-la. Ora, quanto tempo se leva para conhecer alguém como eu me conheço? É evidente que isso não tem fim, quer dizer, até o final da vida estaremos nos conhecendo. A estrutura dessa relação pessoal que se forma a partir do desejo sexual só pode ser desse tipo. Amar alguém antes do casamento significa também desejar ser fiel a essa pessoa. O ser fiel, com relação à intenção de união, significa não desejar uma pessoa diferente daquela que você ama ou que você escolheu tomar para si, pois, no momento em que se faz isso, negligencia-se a união com aquela pessoa, tendo-se agora a intenção de se unir à outra. Note que o ato sexual começa e acaba, mas a intenção de união não era só carnal, era pessoal, de modo que a união simbolizada pelo ato sexual deve se prolongar na relação interpessoal. O ato sexual leva a um tipo de relação que é permanente justamente por causa da intenção de união subjacente a todo desejo sexual. E isso é assim pela própria estrutura do desejo sexual. Desejar sexualmente uma pessoa significa ao mesmo tempo querer realizar com ela uma relação pessoal análoga ao ato sexual. Quer dizer, se você sente desejo sexual por alguém, você concebe na alma uma intenção para com essa pessoa, e se você aceita ativamente essa intenção de “união”, como que por anuência da alma ao corpo, é porque você também deseja uma relação pessoal com ela que tem uma estrutura trinitária análoga a do ato sexual. Então, você também terá que aceitar todas as consequências do que se segue. O que se segue é a consumação do ato sexual, que realiza a intenção de união, agora irrevogável; e, depois, a possibilidade de gerar filhos, que preenche e dá gravidade à estrutura da relação interpessoal que foi estabelecida (concretizada) simultaneamente ao ato sexual. Ou seja, se você é casado, e olhar para uma outra mulher desejando-a, você efetivamente traiu a relação que você tem com a sua mulher. O fato é que não se pode estar unido em nenhum sentido à duas pessoas ao mesmo tempo. O importante é perceber que a intenção de “união” define toda uma relação interpessoal que tem uma estrutura análoga à do ato sexual – é a tradução em termos de relação interpessoal daquilo que o sexo simboliza. Essa estrutura sutil não é tornada consciente de modo automático, é preciso ter imagens de casamento para que ela seja conscientizada de modo mais ou menos adequado. Então, se o sujeito

quer realizar o ato sexual com aquela mulher, ele simultaneamente aceita a intenção de amá-la de modo pessoal e íntimo, de modo a lhe dever também fidelidade, sob pena de ter a alma fragmentada e estilhaçada. Rejeitar a própria intenção de união intrínseca ao desejo sexual é apenas mentir para si mesmo, usando o corpo como se fosse um mero instrumento de prazer – pecar contra o próprio corpo. Se o sujeito faz sexo sem o voto de fidelidade, o que ele está fazendo é mentindo com o próprio corpo, ele está dizendo que aceitou pessoalmente a intencionalidade do ato para o qual tende o seu corpo sem que a tenha realmente aceitado e sem ter considerado toda a extensão das suas consequências. Ou seja, o sujeito está fazendo sexo apenas com o corpo, ele está criando uma dualidade alma-corpo para evitar o compromisso com uma pessoa e assim poder ter prazer com o corpo dela; ele esconde sua verdadeira intenção e usa seu próprio corpo como instrumento de prazer. O ato sexual é a consumação do casamento. Ao realizar o ato sexual, aceitando-o como um todo, a união pessoal é estabelecida definitivamente por meio dos votos de fidelidade e amor mútuos. O ato sexual exige o compromisso, e o compromisso se firma nele. Sem o ato sexual não pode haver verdadeiro compromisso conjugal, que consiste na aceitação de um único parceiro sexual para a vida toda, pois é o ato sexual que torna o compromisso irrevogável. Um sinal disto é a “perda” da virgindade da mulher, que também é irrevogável. A realização do ato sexual significa que tudo o que ele implica já foi pessoalmente admitido e aceito. O casamento só se efetiva na noite de núpcias. Se o ato sexual não for realizado, o compromisso fica sem sustento na realidade material, ele perde seu fundamento de ser na realidade como um todo. Platão fala do sexo como um apetite de gerar filhos. A finalidade do sexo é realmente essa, o que é evidente para qualquer pessoa desinteressada. E, que o corpo reage estupidamente, também é algo evidente. Por exemplo, o corpo, principalmente o masculino, pode ficar sexualmente excitado sem que ele imagine ou sequer pense numa mulher ou em nada sexual, e tampouco esteja olhando para nada desse tipo; o corpo simplesmente adquire o hábito de ficar excitado. Isso acontece mais frequentemente com pessoas que têm o hábito de olhar para uma mulher desejandoa; olha-se para as mulheres com a intenção de fazer algo com o seu corpo, de virá-lo, imaginativamente, tocá-lo, penetrá-lo. Para pessoas não castas, mesmo palavras que soem obscenas, ou expressões que tenham conotação sexual já são suficientes para atiçar a sua imaginação, mesmo em situações normais cotidianas onde os assuntos íntimos deveriam estar ausentes. Olhar para uma mulher desejando-a não é algo tão natural assim, é um hábito adquirido. Há, de fato, uma espécie de atração magnética entre um homem e uma mulher, um convite à intimidade na relação, justamente por causa da ordem corpórea da sexualidade. Os indivíduos são sexuados, mas a relação entre eles não precisa ser necessariamente sexual; a relação sexual envolve a escolha pessoal de se relacionar com o outro a partir da ordem sexuada do próprio corpo. O problema é que, na relação com o sexo oposto, o desejo sexual está latente, e é

intensificado sempre que se nota a beleza do corpo do outro, pois há também o amor pelo prazer, que faz com que desejemos ser subjugados pelo próprio corpo na relação com o outro. A complicação começa na definição de “amor”. Platão dizia que amor é amor pela virtude ou amor próprio; o amor pela virtude é o que leva as pessoas a se associarem por causa da virtude, e o amor próprio é o que faz as pessoas se associarem por causa de seus interesses pessoais. O amor é, para ele, uma intensificação de magnitude da amizade. Então, o amor por uma mulher envolveria os dois amores: o amor pela virtude e o amor do interesse próprio. O homem quer casar com a mulher que mais lhe agrada (e não por consideração aos interesses do Estado, por exemplo). Para Platão, só não há casamento entre pais e filhos, e entre irmãos e irmãs, por causa da lei que é inculcada na mente do povo desde a infância. Isso pode ser em parte verdade, mas também existe aí uma diferença biológica e biográfica real, que, no caso de uma paixão incestuosa, deveria sempre ser levada em consideração, objetivamente. Por exemplo, há um espaço de no mínimo uma geração entre pai e filha; ora, não é de modo algum natural que uma pessoa de uma geração se apaixone real e sinceramente por uma de outra geração, pelo simples fato de que elas estão em fases diferentes da vida, principalmente se as duas ou uma delas ainda é jovem. O amor entre irmãos, por outro lado, é de ordem um pouco menos grave, e, se forem de mães diferentes, ainda menos grave; de certo modo, o amor entre irmãos é mais perigoso por causa da desordem social do que por causa da relação que pode haver entre eles. Mas, se os irmãos levarem em consideração a semelhança que existe na sua carne, a herança comum dos dois, poderão entender que as suas carnes não foram feitas para se unir uma à outra. Pois bem, o que é o amor entre um homem e uma mulher? Como ele acontece? No que consiste e como pode ser plenamente realizado? Como eu havia dito, o desejo sexual leva uma pessoa a se abrir para a outra e ensina os indivíduos nessa relação a ficarem mais amigos, mais próximos. Ora, mas também não podemos observar o contrário acontecer? Ou seja, pessoas que são amigas podem vir a conceber um desejo irresistível uma pela outra. Se a atração sexual ensina duas pessoas do sexo oposto a se conhecerem, por outro lado o próprio ato sexual é como que um ritual natural que representa a minha amizade por aquela mulher, é um ato de amor verdadeiramente falando, na ordem do corpo, daquele mesmo amor que existe na alma. A relação que existe entre o homem e a mulher é imagem da relação que existe entre Cristo e a Igreja, ou Deus e Israel, quer dizer, é uma relação de devoção: o homem é devoto da mulher, ele a cultua, de certo modo, ao mesmo tempo em que adora a Beleza; e, a mulher, por outro lado, não se coloca na posição de Deus, mas na de humilde serva, pois ela nada pode fazer senão permitir que aquele que ela ama seja realmente dela. Por isso, quando um homem ama uma mulher como um todo, é muito

difícil para ele não desejar servi-la como um todo, não desejar ser agradável a ela como ela o é para ele. Os amantes necessitarão unir-se um ao outro, carnalmente, do mesmo modo que o amante de Deus precisa servi-lo, meio que ritualmente, em cada ato concreto. As atitudes interessadas, de dar carinho, dar atenção e de servir o outro de livre vontade, sendo sempre agradável pensar nele e imaginá-lo, e projetar suas vidas juntos, essas atitudes de interesse sexual pelo outro formam o ritual do amor, o culto do amor. Assim, aprende-se também a amar, desde que se tenha coragem e não se permita que a paixão se torne uma força tirânica. Porém, o que é “amar o outro como um todo”? Como podemos saber se isso que eu estou falando neste parágrafo é um fenômeno realmente existente? Aqui, eu já não posso mais senão criar uma hipótese. Suponhamos que eu veja uma mulher uma vez, ou mais, e tenha um vislumbre da sua virtude total, quer dizer, daquela qualidade divina que ela encarna; ora, tal como se olha para uma ninfa se banhando na fonte e se fica encantado com a sua beleza, e se quer possuí-la imediatamente, assim também deve ser quando o que é visto no outro é a harmonia geral da sua personalidade, como que um vislumbre do mistério da sua pessoa, do seu “eu” substancial. Há a marca dela em tudo o que ela faz e fala: agora, tudo o que ela faz é causa de sofrimento ou alegria para o meu coração. Meu coração se alegra quando ela se move para mim, e se entristece quando o movimento que ela faz a afasta de mim; eu me alegro quando ela me aceita na vida dela, me entristeço quando ela não demonstra interesse no que eu faço – tudo o que eu faço é para ela, em potencial. É a pessoa dela que agora me diz respeito, e eu me importo com tudo o que ela faz. Em tudo o que ela faz eu quero descobrir quem é ela. O desejo de conhece-la é simultaneamente sexual e espiritual. O sexo não é suficiente, não é o principal nessa relação, ele é só a coroação dela, a sua realização total. Eu quero que os atos de amor dela sejam para mim, e em nada disso posso discernir um desejo de prazer, o simples amor pelo prazer. Prazer eu posso ter com qualquer outra mulher bonita, mas é só esta que eu quero e nenhuma outra me agrada. Ou seja, o que quero dizer é que, aqui, nesse caso, parece que o amor inclui tanto o amor pela virtude como o amor pelo prazer e os transcende: deseja-se apropriar-se pessoalmente da realidade pessoal do outro, conhece-lo, transforma-lo, de modo que ele seja para você e você seja para ele uma mesma coisa. Assim, meus atos de amor por ela são simultaneamente de ordem sexual e espiritual: a melhor maneira de eu expressar completamente o meu amor pela virtude do seu coração é através do ato sexual, das carícias, das atitudes de servi-la como um homem. Porque é ASSIM que eu a amo de fato, espiritualmente. A realização do meu amor espiritual por esta mulher quer ser corporalmente atualizado, como que querendo realizar ritualmente o que ele mesmo significa, e isso é que leva às atitudes de caráter sexual. O sexo é a expressão desse puro amor na ordem do corpo. A castidade, nesse caso, não é só privação do prazer, é privação da efetivação desse amor, que fica sem um canal por onde fluir. Se não posso demonstrar minha sincera afetividade para a mulher que amo, então não posso lhe

falar de todo; emudeço. A mais perfeita expressão do meu amor por ela são as atitudes de caráter sexual, incluindo o serviço que lhe posso oferecer como homem, como varão. Como eu disse, não é simplesmente amor pelo prazer, só uma relação interessada, mas cada atitude sexual é a expressão perfeita do sentimento de amor que tenho pela pessoa dela. É difícil discernir da onde vem sua afeição por uma pessoa. Umas pessoas nos são mais agradáveis que outras, mas não é assim sempre pelos mesmos motivos. Digamos que uma pessoa é bela aos meus olhos, se eu for uma pessoa casta então isso não será motivo para deseja-la, pois não iria me subjugar ao meu próprio corpo só por amor ao prazer. Mas digamos que ela seja também virtuosa e me inspire confiança, também não é por isso que eu iria deseja-la, a não ser que eu esteja caçando uma boa mulher para me casar com ela, e que eu não tenha outras opções igualmente boas. No entanto, podem haver mulheres rivais, e isso já provaria que a simples qualidade de beleza e virtude não é suficiente para se desejar alguém em específico. Há, ainda, a diferença de projetos pessoais: as diferentes mulheres em que eu possa estar interessado têm diferentes projetos de vida, diferentes gostos e personalidades, e eu projeto minha vida com cada uma delas de modo diferenciado, e pode ser que meu projeto acabe “casando” com o de alguma delas espontaneamente. Essa simples maneira de ser de uma pessoa que transparece na sua personalidade influenciando o modo como a percebemos e a imaginamos é um motivo mais forte para a amizade estritamente pessoal do que as outras qualidades. Não é só uma bela personalidade, é todo o modo de ser. É só isso que pode diferenciar uma pessoa de todas as outras. Porém, o modo de ser de uma pessoa não é uma qualidade dela, como a beleza ou a virtude, mas é ela mesma atuando no mundo. Quando digo que amo essa pessoa, não digo que desejo o modo de ser dela, mas que quero que essa pessoa, que é desse jeito, olhe para mim e me corresponda desde seu próprio “eu” substancial. Quando se ama uma pessoa assim nós desejamos mais a sua atenção, que esteja passivamente amorosa, do que qualquer outra coisa que ela possa dar. Nesse tipo de amor existem vários graus. Pode-se amar mais a umas pessoas do que a outras; também pode-se vir a amar uma pessoa mais do que outra que antes era a mais amada; e pode-se vir a amar assim somente depois de se casar com uma pessoa, adquirindo por ela uma afeição de caráter mais pessoal. Por fim, pode-se vir a amar alguém de um modo tão radical que esse amor causa a morte para o mundo, para todas as outras possibilidades de amar alguém da mesma forma. Nas primeiras experiências o casamento é uma escolha, como quem escolhe algo que acredita ser muito bom; mas, nessa última, casar com esta pessoa não é bem uma escolha, é como uma consequência lógica do encanto que sinto por ela, e, independentemente do que acontecer, sinto que meu coração já lhe pertence definitivamente. A amizade que consiste apenas na semelhança de virtude não é verdadeiramente uma amizade pessoal. Não podemos dizer que “amigo” seja um conceito unívoco. Posso

chamar muitas pessoas de “amigo”, por diversas razões, mas só há verdadeira amizade entre pessoas que estabeleceram uma amizade estritamente pessoal entre si. Essa amizade pessoal é única e intransferível, comprometedora, e por isso exige também lealdade. O que se deseja do outro é sua intimidade; mas, em se tratando de pessoas do mesmo sexo, essa intimidade tem uma forma diferente da do amor entre um homem e uma mulher. É difícil descrever essa forma. Um amigo se abre para o outro em busca de conselho e de reflexo; deseja-se ver-se refletido no outro. Pelo modo de como o outro reage a mim eu me reconheço nele. A presença do meu amigo me deixa de coração alegre, porque ele me é caro. Como se faz um amigo desse tipo? bom, essa é uma das realidades mais espantosas que conheço: amigo não se escolhe, se encontra. É espantoso como eu nunca realmente escolhi meus amigos mais próximos, simplesmente os encontrei; quer dizer, no momento mesmo em que os vi e comecei a falar com eles já os tinha na conta de pessoas que eu queria estabelecer uma amizade verdadeira. Isto é, o amigo é sempre “encontrado”, em modo potencial, cuja amizade pode vir a se realizar ou não, mas que, no fundo, raramente (ou nunca) se erra com relação a esse tipo de “premonição”. Isso é diferente tanto de uma amizade baseada na virtude quanto de uma baseada no interesse. Posso chamar muitas pessoas virtuosas de “amigo” e não me interessar sinceramente pela vida pessoal delas, pelo que elas fazem ou padecem de mais pessoal no mundo. Mas eu me preocupo com as questões do meu amigo como se fossem minhas próprias. Assim, a verdadeira amizade também brota do coração, como o amor. Podemos, então, também designar esse tipo de amizade por “amor”, como quando a Bíblia diz: “e Jônatas amou Davi”, indicando assim que Jônatas morreria por Davi, não por interesse ou virtude, mas simplesmente porque Davi é Davi; a mesma coisa ocorre, por exemplo, entre os três mosqueteiros. Do mesmo modo que a amizade entre pessoas do mesmo sexo ocorre, quando pessoal, como um encontro mais ou menos inesperado no mundo (e é incrível como geralmente todo mundo encontra alguém para ser seu amigo), assim também acontece no caso do amor entre um homem e uma mulher, do amor que brota do coração. A diferença dos sexos, aqui, faz toda a diferença. O amor propriamente dito é isto mesmo que duas pessoas que se amam desejam consumar no ato sexual: para elas, o sexo é ocasião de realizar algo muito maior, que transcende os meros corpos, é uma expressão autêntica, em outro plano, daquilo que elas desejam na eternidade. Já entre duas pessoas do mesmo sexo, estando cada um deles consciente da sua situação sexuada, e tendo-a aceitado como tal, a intuição de que o sexo do outro é o mesmo do seu encaminha a alma do sujeito direto para a amizade com ele e não para o amor; intui-se que o outro é “o mesmo” que eu. Não pode haver, aí, interpenetramento de intenções, a não ser no âmbito puramente imaginário do sujeito sem plena consciência ou aceitação da sua própria condição sexuada. Por isso o ato sexual pode devidamente ser chamado “ato de amor”: esse amor pessoal e completo entre o homem e a mulher tem a forma conjugal, que é representada simbolicamente pelo próprio ato sexual. No amor entre o homem e a mulher, a intimidade do relacionamento tem a forma

conjugal, diferentemente da intimidade da amizade, que assume uma forma não de união propriamente dita (“conjugal”) mas de reflexo. O amor tem forma ternária; a amizade tem forma dual. Características do verdadeiro amor:

“For you, O bridegroom, there was never another girl like this one.” - Sappho de Lesbos (LP 113) Quando Tristão e Isolda bebem do cálice eles começam a passar mal, e Isolda pergunta: ‘nós estamos doentes ou isso é o que chamamos amor?’; esse é o sofrimento do amor. A menos que tenhamos essa experiência de sofrimento que comove as nossas entranhas o amor ainda não aconteceu. O Buda diz que toda vida é sofrimento; essa é a experiência do sofrimento de estar vivo. O que o seu sofrimento é, isso é o que é sua vida, então aí você pode acha-la. Quando a mãe de Isolda diz para Tristão: ‘você bebeu a sua morte’, numa versão (Gotfried) ele responde: ‘eu não sei do que você está falando, se por morte você quer dizer o sofrimento do meu amor por Isolda, isso é minha vida, se por morte você quer dizer o sofrimento que eu devo sofrer, por parte da sociedade, eu o aceito, se por morte você quer dizer danação eterna no inferno, eu a aceito.’. Giraut de Bornelh é um trovador que analisa o que o amor é, e ele diz: “o olho da sentinela do coração”. “Assim, pelos olhos, o amor atinge o coração: Pois os olhos são os espiões do coração. E vão investigando o que agradaria a este possuir. E, quando entram em pleno acordo, e, firmes, os três em um só se harmonizam, nesse instante nasce o amor perfeito, nasce daquilo que os olhos tornaram bem vindo ao coração. O amor não pode nascer nem ter início senão Por esse movimento originado do pendor natural. Pela graça e o comando dos três, e do prazer deles, nasce o amor, cuja clara esperança segue dando conforto aos seus amigos. Pois, como sabem todos os amantes verdadeiros, o amor é bondade perfeita, oriunda — ninguém duvida — do coração e dos olhos. Os olhos o fazem florescer; o coração o amadurece.” — Amor, fruto da semente pelos três plantada. Giraut de Bornelh (Circa 1138-1200?) - Extraído do livro: O Poder do Mito, de Joseph Campbell.

Sobre o amor “especial” “De acordo com o que mencionamos antes, desejamos colocar ênfase especial sobre o seguinte fato: tipicamente, o amor envolve susceptibilidade à beleza de um indivíduo muito singular, tomado como um todo, e não por valores tomados individualmente. Uma vez que não existe isso de amar alguém de certo modo (secundum quid), não

podemos amar uma pessoa à proporção que possua certas qualidades. Embora seja possível apreciá-la por sua erudição, não decorre disso que preciso estima-la como pessoa. Igualmente, pode-se admirar alguém pela sua voz e não pelo seu talento intelectual. Mas, visto que o amor constitui resposta à beleza do outro no seu conjunto, porque, de modo único, envolve o indivíduo como um todo e, ao mesmo tempo, nele se concentra como um indivíduo, não pode existir amor secundum quid. Apesar da missão importante que os valores desempenham, um indivíduo nunca é meramente um portador dos mesmos. Ele é uma pessoa real, completa, que jamais pode ser substituída por qualquer outra. Se fosse possível conceber alguém que perfeitamente repetisse o potencial e o valor de outra pessoa em todos os aspectos – algo que é completamente impossível –, ainda assim uma das duas seria a pessoa amada e nunca hveria o desejo de trocá-la pela outra. Quando há amor, está aí intimamente envolvida a incomparável plenitude do significado de um indivíduo, como pessoa humana.” – Dietrich Von Hildebrand, A Filosofia do Relacionamento Entre Homem e Mulher, p. 52-53. Acredito que todo homem deseje ser amado por uma mulher, mas isso reflete um tipo de amor que não é amor de uma pessoa, de um indivíduo, é, no seu melhor, amor da própria natureza, desejo de realizar plenamente as possiblidades da própria natureza. Isso é, talvez, o que podemos chamar de amor “natural”. Mas há um outro tipo de amor, mais sutil, que é o amor de um homem por uma mulher só, e para a vida toda, com a sensação de que é também para toda a eternidade; quando amamos assim um pessoa, nosso maior desejo é ser amado de volta por ela, com o mesmo tipo de amor. Se somos subjugados pelo amor, desejamos que nosso amado também o seja, e só assim poderemos viver o mesmo amor. Uma característica essencial desse amor é que a mulher amada tem que ser toda bela aos olhos do seu amante. Uma outra característica fundamental é a docilidade com que o amante se coloca ao serviço da pessoa amada e deseja se submeter a ela, quer dizer, que ela tenha confiança no amor dele, que possa se entregar a ele com confiança. Deseja ser tocado por ela no mais íntimo do seu ser, sem medo de ser alterado. Ela parece dizer especial respeito à minha pessoa, como se fossemos irmãos e estivéssemos referidos o tempo todo um ao outro; quero cuidar dela como de uma irmã; tudo nela me interessa; estou atento a tudo o que ela faz. Quero estar ao lado dela, unido a ela, e por isso ela é a pessoa mais importante na minha vida. Isso é o que eu chamo de amor conjugal, para diferenciar do amor fraterno. O próprio ato conjugal significa esse amor, que é irredutível a outro tipo de amor, como o amor de irmãos. Mais ainda, porque um homem pode desejar sexualmente uma amiga, por quem tenha uma verdadeira amizade, sem que ele a ame de verdade com amor conjugal: ou seja, o amor conjugal não se refere diretamente ao desejo sexual, mas o desejo sexual é uma expressão simbólica desse amor, que pode ou não estar presente numa relação sexual. O fato do ato sexual expressar perfeitamente o amor conjugal não faz com que o amor conjugal esteja presente em toda relação conjugal entre um homem e uma mulher. O que quero dizer é que,

espiritualmente, o amor conjugal difere do amor fraterno, da amizade, e de qualquer outro tipo de amor humano. Porém, apesar de ter uma forma inteligível própria, de ser amor espiritual, não pode acontecer sem a participação do corpo, e é isso que o torna tão difícil de ser percebido e distinguido da simples amizade por uma pessoa bonita do sexo oposto. Diferentemente da amizade, do amor fraterno, o amor conjugal envolve a alma e o corpo, e não acontece sem que se veja a beleza do corpo. Por isso é que existe a tendência de identificar o amor conjugal com o amor fraterno (ou a amizade) somado do amor pelo corpo ou amor sensual. A minha tese é de que o amor conjugal não é o amor fraterno somado ao ( ou sobreposto pelo) amor sensual, ele tem uma forma inteligível própria e distinta do amor fraterno, envolvendo o corpo sim mas sem que seja determinado pelo amor sensual, ao contrário: ele se refere ao amor sensual a partir do seu sentido espiritual mais elevado. Quer dizer, o amor conjugal seria possível ainda que não tivéssemos corpos, só não poderia ser plenamente realizado. De fato, o amor conjugal envolve a susceptibilidade à beleza do corpo, e o próprio ato conjugal parece dizer respeito apenas ao corpo do outro; mas essa necessidade do corpo, esse amor pelo corpo do outro nasce do tipo de união espiritual que se deseja ter com ele e não da mera sensualidade. Mas é verdade que o contrário também acontece: é possível desejar uma relação conjugal com qualquer pessoa antes mesmo de vir a amála. Existem essas duas coisas: o amor verdadeiro e o desejo de amar verdadeiramente. Ou seja, pode-se imitar o verdadeiro amor, como que ritualmente, simplesmente porque se deseja amar verdadeiramente; e, por outro lado, o verdadeiro amor pode acontecer, como que por arrebatamento, de modo inesperado e independentemente da sua relação material com a pessoa amada. Eu posso prometer amar alguém, mas não posso prometer que o amor vá acontecer espontaneamente por essa pessoa, e o problema é que às vezes ele acontece espontaneamente; posso imitar o amor, mas não posso invoca-lo e efetivá-lo. Posso escolher amar uma pessoa só por toda a vida, mas não posso escolher amá-la espontaneamente sempre. Ora, o amor espontâneo existe, e, mais ainda, só deve poder acontecer uma vez na vida, se for verdadeiro e total. Estou tentando resumir aqui a grande dificuldade de se determinar a natureza do verdadeiro amor conjugal: é que ele existe como fato e como imitação. Eu posso desejar amar uma pessoa só, ou posso amá-la de fato, irrevogavelmente – por isso é tão difícil uma fenomenologia do amor. Qual é a diferença entre o amor de uma pessoa que ama o seu esposo porque ele é o seu esposo e porque ela é uma pessoa que ama amar o esposo, do amor de uma pessoa que ama alguém por uma espécie de fatalidade do destino? Quer dizer, posso desejar uma pessoa não porque aconteceu de eu ama-la, mas porque desejo amar e porque posso ama-la; ou então eu posso simplesmente me pegar amando uma pessoa que eu não deveria sequer desejar. Mas para distinguir esses dois fenômenos, para sabermos do que se trata realmente, devemos antes conhecer a natureza do amor, o que lhe é próprio, a sua origem, causa e finalidade.

1º argumento: todo homem deseja imitar a estrutura do amor conjugal. Se todo homem deseja imitar a estrutura do amor conjugal, este amor existe. O amor existe como algo que efetiva certo tipo de união. Se o amor conjugal existe como um amor real que efetiva certo tipo de união, então essa forma de união existe, e, assim, é necessário que haja uma só pessoa que se possa amar verdadeiramente com todo o coração e que essa pessoa o corresponda perfeitamente, pois só então a natureza humana pode ser plenamente realizada. Esse seria o amor perfeito, pois cumpre perfeitamente sua finalidade: unir dois indivíduos ou dois corações como um todo.

2º argumento: O sentimento de amor que une o homem e a mulher no matrimônio é imagem do amor que une Deus Filho e a Igreja, ou Jesus Cristo e a alma humana. O homem foi criado à imagem e semelhança de Deus, de modo que imitar a Deus é ser perfeitamente imagem dele. O Paraíso é perfeitamente imagem de Deus. Ora, não é possível que não exista no Paraíso o sentimento de amor que une um homem e uma mulher tal como Cristo deseja se unir à Igreja, pois assim estaria faltando algo para a plenitude da vida humana. Contra-argumento: o sentimento de amor que une um homem e uma mulher na terra é passageiro e depende da função de reprodução do organismo biológico humano, portanto ele não ocorrerá no Paraíso, pois não terá finalidade alguma, ainda mais porque todos estarão unidos em Deus de outro modo (que modo?). O fato do matrimônio terrestre ser imagem da Aliança entre Deus e a Igreja não significa que o sentimento de amor entre um homem e uma mulher faça parte da estrutura espiritual da pessoa humana, de modo a encontrar sua transfiguração em um amor celeste do mesmo tipo. Contra-contra-argumento: A possibilidade do homem sentir esse amor por um outro é uma perfeição intrínseca à natureza humana de ser varão ou mulher. Sendo este amor sempre sentido de modo pessoal e íntimo – apesar do amor levar ao casamento, ninguém ama nem deseja amar só para ter filhos ou porque seja socialmente conveniente –, se não for passageiro (as pessoas podem se enganar), podemos admitir que ele seja realmente uma realidade estrutural da pessoa humana. Se for assim, o homem também deverá sentir essa inclinação no Paraíso, isto é, de se unir à pessoa amada. 3º argumento: Se a o matrimônio é imagem da relação entre Deus e a Igreja, ou entre Cristo e a alma humana, então o amor que corresponde ao amor conjugal é uma possibilidade da natureza humana. A perfeição da natureza humana consiste em imitar a Deus – como disse o Filho: eu faço o que vi o Pai fazer; assim, o amor conjugal também é imitação de Deus, e, portanto, deve existir também no Paraíso Celeste.

Contra-argumento: o amor conjugal só existe no Paraíso Celeste como o tipo do amor de Deus pela alma, e não como amor de um ser humano por outro, pois não haverá casamentos no céu. Contra-contra-argumento: não é possível que no Paraíso Celeste o amor conjugal só exista como amor de deus pela alma, porque se o sentimento do ser humano por outro ser humano corresponde a uma estrutura real da pessoa humana, ele continuará acontecendo no Paraíso de algum modo. O tipo do amor entre Deus e a alma é o amor conjugal, mas é assim analogicamente, pois a relação entre o homem e Deus não exclui a relação entre um homem e outro homem. 4º argumento: no Paraíso Celeste a sexualidade humana perderá a sua função biológica, mas manterá a sua finalidade de representar o Amor de Deus na relação recíproca do amor entre o homem e a mulher. Ora, o amor entre o homem e a mulher tem a sua forma própria, sendo o amor entre UM homem e UMA mulher, portanto no céu cada homem deverá estar unido à sua mulher, não por meio do sexo, mas tendo seus corações unidos de um modo especial e misterioso, estreitando-se um ao outro de modo preferencial e exclusivo; não se poderá desejar amar mais ninguém dessa forma, tendo já repousado cada um no seu jardim. Assim, a natural atração entre pessoas do sexo oposto se transfigura numa profunda comunhão de corações que se encontram dentro um do outro. 5º argumento: A finalidade mais elevada do amor conjugal não pode ser senão a união íntima entre duas pessoas, entre dois corações que desejam estreitar-se um ao outro. “Não é bom que o homem esteja só”, foi por isso que Deus criou a mulher para o homem. O amor esponsal se refere à dualidade intrínseca da natureza humana de ser homem ou mulher. A natureza de ser homem ou mulher é definida pela forma do corpo, portanto o sexo é simbolicamente a estrutura que permite unir duas pessoas numa só, quebrando assim a solidão causada pelo isolamento corporal. (Essa união não é física, mas espiritual, ainda que necessite do corpo para ser realizada). Essa união deve ser realizada de modo pessoal. Uma pessoa só pode se unir como um todo a uma única pessoa do sexo oposto, sob pena de estar dividida em si mesma. Se uma pessoa deseja estar unida à outra como um todo, esse amor não é senão eterno, pois parte do coração. Contra-argumento: O amor humano, o amor conjugal, que cria um vínculo afetivo entre dois indivíduos humanos, é um símbolo da união entre a alma humana e Deus, servindo como uma espécie de memorial natural do amor de Deus pelo homem, sendo imagem do amor de Deus pela Igreja. Na verdade, o amor conjugal é apenas uma espécie natural de afeto entre pessoas do sexo oposto cuja forma total simboliza o amor de Deus pela alma humana; o amor conjugal entre o homem e a mulher não acontece no paraíso (que tipo de relação há entre seres humanos no Paraíso?). Ou seja, a intencionalidade de união no amor conjugal se resume a intuição de um tipo de

relação específica que se deseja formar com vistas à procriação e educação dos filhos, que é a finalidade da relação. O sentimento de amor, assim, fica submetido à ordem biológica e social, e significa uma anuência da pessoa como um todo a certo projeto de vida que ela concebeu de modo personalizado junto com outra pessoa. O amor conjugal é, assim, uma escolha, um projeto de vida, e nenhum amor espontâneo que seja pela pessoa do sexo oposto encontra seu fundamento no próprio modo de ser dela na eternidade. O casamento não foi feito para pessoas que se amam de modo especial, mas, ao contrário, o casamento é algo desejável por si e é o âmbito em que duas pessoas do sexo oposto podem se amar de modo especial para assim poderem concluir um projeto de vida em comum. Problema do contra-argumento: isso não explica o sentimento de amor que um homem pode ter por uma mulher. Como explicar um tipo de amor que é amor por uma pessoa só a vida toda? Ou seja, se o amor conjugal é da natureza humana, ele deve simbolizar realidades espirituais e ser também imagem do Paraíso. Se esse sentimento por uma pessoa for somente terreno ele é uma ilusão – (uma ilusão que é fomentada para se poder servir melhor a Deus?). Porém, parece-me que esse sentimento só pode estar fundamentado na realidade da essência individual da pessoa. Além do mais, esse sentimento de amor por uma outra pessoa não pode ser símbolo do amor de Deus pela alma, porque é um sentimento real que se tem por outra pessoa; esse sentimento é, talvez, símbolo do amor de Deus para com Deus. *O amor entre um homem e uma mulher é um mistério, não sabemos daonde ele vem. Fenomenologia do amor O amor em si é uma resposta afetiva, um sentimento. Esse sentimento tem uma forma, e a sua estrutura determina um tipo de relação interpessoal, entremeada de intensões e significados. Este sentimento é o que nos dá ideia do Paraíso: queremos repousar nele. Por isso o amor é para nós a finalidade da existência. Não há nada melhor ou mais forte que o amor. A mulher que é bela geralmente proporciona uma excitação mais intensa, uma prazer mais intenso. Na verdade, não me espanta que o corpo, unido à alma, também saiba reconhecer as formas mais belas e adequadas à sua natureza. O ato sexual acontece entre dois corpos, logo, um corpo que seja mais viril ou mais feminino atrai mais a alma feminina ou masculina do que um que seja menos viril ou feminino. No entanto, eu tenho a experiência de me apaixonar por uma pessoa e não por corpos bonitos, de modo que posso encontrar muitos corpos bonitos que não me dizem respeito, e muitas pessoas não tão bonitas que me dão mais prazer (cujos defeitos são desprezíveis aos meus olhos, graças às suas outras virtudes que me chamam mais a atenção). Mas uma pessoa que fosse feia, apenas de corpo, fosse a pessoa que fosse,

não poderia causar em mim desejo sexual algum; e, assim, eu não poderia desejar me unir a ela com amor conjugal. Nunca tive o desejo de me unir a uma mulher que não fosse bela. É isso o que me espanta: que só na atração dos sexos e no desejo sexual haja a intuição de uma intimidade pessoal mais elevada com a outra pessoa. Mas sem beleza estética, não há atração sexual. Ora, é na experiência da atração sexual que intuímos a nossa intimidade. O sexo é também símbolo da intimidade do “eu” por quanto no ato sexual a pessoa se identifica com a sua “vergonha” – o pênis atuando como personificação do eu em um outro plano. As partes vergonhosas são aquelas que nós escondemos do público – desde o início da Criação. Por isso, aquilo que se refere ao meu órgão sexual é tido como aquilo que se refere à minha própria intimidade. A intimidade é um órgão tão vascularizado e sensível quanto as partes sexuais do homem; qualquer aproximação é sentida como que por força de campo, tipo atração magnética. Essa analogia com as linhas de campo é interessante porque sugere um tipo de relação espacial entre as duas pessoas: elas entraram num mesmo âmbito; esse é o âmbito da relação amorosa, em analogia com a atração sexual. Trata-se um assunto íntimo como se trata o órgão sexual; e, de modo semelhante, a obscenidade é a negação da intimidade, e, portanto, do amor. É também simbólico o fato de que só vivenciamos nossa intimidade intensamente quando estamos buscando uma outra intimidade no “tu”. O sexo é símbolo da união íntima, é aí que intuímos mais ou menos o que realmente significa duas pessoas estarem intimamente/espiritualmente ligadas. O sexo é símbolo do “conhecimento” do outro. A beleza estética, portanto, proporciona ao homem o desejo de amar uma outra pessoa mais intimamente. E esse amor conjugal é o que leva o homem ao êxtase da intimidade. E essa “união íntima” é o que proporciona o extremo prazer na alma do amante; e ela é intuída justamente no orgasmo, que fica ali no limite entre a máxima atividade do corpo e a total lassidão que se segue, sendo assim um ponto em que há uma espécie de “salto”, onde o verdadeiro amante não duvida que viu a intimidade de sua mulher – e dessa visão vem o verdadeiro prazer. Esse amor é extremamente desejável quando os amantes são belos. A verdadeira união entre belos amantes que buscam a intimidade um do outro proporciona o maior dos prazeres que o homem pode ter sob a terra. O extremo prazer significa que aquilo ali é muito bom; é um fruto da Bondade do Amor na manifestação do organismo psicofísico como um todo. A beleza do corpo é importante, mas também o é a da pessoa mesma de quem se ama. Não basta que o corpo da pessoa amada seja belo para que haja amor, é preciso ainda que ela seja única no mundo, e, para que o prazer seja máximo, que me ame pelo que eu tenho de diferente de todos os outros (desde a eternidade), por aquilo que me faz único. Porém, isso ainda não é suficiente para caracterizar esse amor. Todas as pessoas, se boas e belas e verdadeiras, são amáveis pelo que têm de único, pelo que se diferenciam de todos os outros. No amor conjugal é aquilo que ela tem de mais pessoal que me ama, que ama o que eu tenho de mais pessoal; ela busca a minha

intimidade a partir da dela própria. Podemos, com Platão, afirmar que o amor é amor de gerar o bem na bela personalidade (ou na alma) do outro. Ora, não é exatamente disso que se trata quando eu digo que amo uma pessoa única, de modo especial. O amor aqui não é só isso, ele tem algo a mais, ou algo a menos, dependendo do ponto de vista. Ele é um amor mais limitado porque é só uma manifestação do amor numa “área” da vida; mas é mais profundo porque não anula o amor como um todo, mas o prolonga até essa área da vida que ele preenche. Então, aqui, precisaremos precisar mais alguns conceitos a fim de esclarecer o que quero dizer. Acredito que o amor se manifeste de várias formas, todas imortais, nenhuma delas sendo redutíveis à outra; algumas delas são: o amor filial, o amor paterno, o amor materno, o amor fraterno, o amor conjugal, o amor do discípulo pelo mestre (e vice-versa), o amor do rei pelo súdito (e vice-versa), o amor do homem pelo anjo (e vice-versa), e o amor a Deus. Acontece que todas essas formas do amor fazem parte da estrutura da vida humana, e nenhuma dessas áreas é redutível à outra em seu significado fundamental para a vida humana. Numa vida humana concreta, no tempo, pode haver uma manifestação do amor numa área e na outra não, mas é preciso acreditar que no Paraíso toda a vida será repleta de amor, e isso é o que eu chamo de plenitude. Acontece também que cada forma de amar tem um significado para nossa vida, por exemplo: o amor pelo pai é assumir o seu legado e sentir gratidão por isso, desejando alegrá-lo e honra-lo com seus próprios feitos (é como aceitar ser, de certo modo, uma encarnação do pai, no caso do filho varão); o amor pela mãe é sentir-se devedor dela pelo que se é, é ter gratidão infinita, é se alegrar por poder fazer a vontade dela porque foi ela quem te gerou, ela que te desejou primeiro; o amor pelo filho é desejar que ele cresça se alimentando da sua carne, ó mãe, e do seu sangue, ó pai,... é se alegrar em poder vê-lo crescer forte com esse alimento que lhe é dado; o amor pelo irmão é se alegrar em dar a vida por ele; o amor conjugal é quando todo seu prazer é servir ao seu amado e lhe dar prazer e contentamento... Mas, na terra, as condições circunstanciais determinam muito o tipo de amor com que se pode amar uma pessoa específica. Ora, essas várias formas de amor, irredutíveis umas às outras, podem aparecer também combinadas ou meio que fundidas no amor por uma única pessoa, ou podem aparecer de todo separadas, de modo que se pode amar uma mesma pessoa como irmão mas não como pai, e outra como esposa mas não como filha; mas também pode-se amar uma esposa como irmã e amiga, e um amigo como pai. Mas cada uma dessas formas de amor tem suas particularidades, e não são a mesma coisa, e nenhuma delas são realmente dispensáveis para uma vida plena, porque cada uma delas significa uma coisa diferente, e são formas que preenchem a vida humana de sentido, de cor, de gosto, de tato. Então, como estava dizendo, o jeito que eu quero ser amado por uma mulher, que eu quero amá-la, não é simplesmente amar o que ela tem de diferente das outras belas mulheres que encontro, mas é sobre a forma de amá-la que eu estou falando, com amor conjugal na sua plena manifestação.

O significado do amor conjugal é a união de duas pessoas, porque “não é bom que o homem esteja só”. Digo que a minha felicidade é encontrar uma mulher que me ama do mesmo jeito que eu a amo. A intensidade do prazer gerado pela união nesse amor torna essa relação pessoal em especial mais importante que todas as outras. No amor conjugal, ama-se mais quem mais lhe agrada, ou: ama-se apenas a única pessoa que lhe realmente agrada. O amante deseja duas coisas: que a sua amada lhe seja fiel, e que ela necessite do seu corpo para lhe dar o maior prazer, pois é só nela que ele encontra o seu verdadeiro prazer. Assim, a minha amada é como uma fonte num jardim secreto: eu encontrei o jardim, tal como se encontra um oásis fecundo num deserto, e ali encontrei a fonte do meu prazer, e não quero mais deixa-lo. Vê-lo me traz alegria; adentrá-lo é o meu desejo; na sua fonte eu me revigoro; bebo o suco do seu fruto vermelho e isso me dá prazer. Mas eu ainda não entrei no jardim, apenas o vi; não comi do fruto da árvore proibida, que está no meio do jardim. Quero fazer o meu coração repousar à sombra dessa árvore. Estou, assim, dependente da reciprocidade do amor para ser feliz. Preciso que ela deseje o meu corpo, que me ame com todo seu ser. Essa relação de dependência mútua faz parte da estrutura do amor conjugal. Não é possível depender de mais de uma pessoa para ter o maior prazer, e isso pela própria estrutura do sexo. Essa dependência afetiva é um reflexo em outro plano da mútua dependência dos sexos para a realização do ato sexual (que é sempre exclusivo). Só se ama uma mulher, e só se quer poder amar uma mulher, porque só se pode ter uma mulher por vez. É por isso que esse amor é “especial”. Por conta dessa dependência mútua, desejada de ambos os lados, é que esse amor adquire uma bela significação. Essa é uma relação desejável em si mesma. *Adendo: inúmeros poetas escreveram sobre o amor. Todos eles trabalham com a relação entre as sensações corporais e os sentimentos. É muito difícil saber até onde vai a experiência que o poeta tem do verdadeiro amor só pelos seus versos, pois é muito fácil confundir a expressão de uma simples sensualidade e a expressão do verdadeiro amor, que são expressas do mesmo modo. Mas eles também falam do Amor de modos muito diferentes, não creio que por causa da sua experiência do amor mesmo, que deve ser igual para todos, mas pela “visão” do Amor, isto é, pelas ideias, crenças e desconfianças que cada um pode ter acerca da Vida e do Amor. Podemos ler poemas que tratam desse amor como se fosse uma ilusão em face a realidade da morte. Outros o tratam como se fosse apenas luxúria (Ovídio). Outros o tratam como se fosse um mero fruto do acaso, uma realidade meio banal da vida humana que acontece sempre que haja as circunstâncias adequadas. Eu acredito que esses autores não apreenderam a verdade do amor, e por isso não tiveram uma correta impressão do sentimento que o amor lhes causou. Não se pode amar duas mulheres

Se eu amasse mais de uma mulher numa vida, não teria amado nenhuma. Esse amor é eterno, tem, ao menos, pretensão de eternidade. Ele deseja se eternizar, porque é perfeito. Parece perfeito. Depois que amei uma mulher, seria uma espécie de traição amar outra, pois como pode uma mesma pessoa amar com todo seu ser duas coisas diferentes que competem entre si nos mesmos elementos? Ou seja, podem existir dois paraísos diferentes para uma mesma pessoa? Como a minha felicidade pode consistir em coisas diferentes que competem entre si? Ora, se só é possível ter uma delas, e ambas forem igualmente boas, então o paraíso é o inferno, porque essa escolha é uma escolha triste, que sempre causará a dor da perda. Mas se se ama uma só pessoa, e se nunca se teve a experiência de amar uma outra do mesmo modo (o que não pode mesmo acontecer), então aí nunca se desejará mais nada, pois nisso consiste todo o prazer do homem, e tudo isso lhe foi dado de graça. Mas é impossível amar outra pessoa do mesmo modo, porque o modo do amor conjugal é uma relação entre duas pessoas que se amam com todo o seu ser; quer dizer: é o núcleo do ser dela que busca aquela outra pessoa no seu íntimo. Como posso amar do mesmo modo uma pessoa que é necessariamente diferente da outra como um todo? Como pode existir uma mesma relação unindo cada um dos diferentes pares? Se eu amasse outra pessoa desse mesmo jeito, ao mesmo tempo, então eu sentiria saudades de uma enquanto estivesse com a outra, e nunca poderia ficar saciado, pois quando estivesse com uma pensaria na outra, e assim sempre me sentiria culpado de infidelidade. O amor conjugal só pode ser por uma única pessoa por vez (na memória). Eu a amo porque ela é bela e é minha, porque me foi dada, porque só nela encontro o meu prazer. Porém, não é que o amor conjugal possa acontecer mais de uma vez sucessivamente, ele, em sua plena manifestação, só acontece uma vez na vida e uma na morte. Por isso, só é possível acontecer o máximo prazer com a “minha” amada, e não há outra. Símbolo da relação amorosa A mulher que eu amo possui o meu coração em suas mãos, porque a minha felicidade é ver e sentir aquilo que ela deseja fazer comigo. Só ela realmente me agrada. Nenhuma outra pode me saciar de prazer, nem vale a pena procura-las. Eu a amo porque é bela e porque é minha, e não desejo outra mulher. Ela também quer ser só minha e de mais ninguém. O seu jardim é selado, e só eu conheço a entrada secreta. O nosso prazer é grande porque é secreto, porque é íntimo. Não busco conhecer outras mulheres com amor conjugal, porque não me foi dado ama-las do mesmo modo. Afinal, não é possível que a mesma coisa pertença a mais de uma pessoa ao mesmo tempo – (e a eternidade é toda um só tempo). Todo o meu prazer é me unir a minha amada, é ser para ela o que ela é para mim; esse é o prazer da intimidade. É necessária também alguma violência. A minha amada quer ser abusada – para que o amor não seja limitado; ela mesma se diz minha prostituta – para mim sagrada; essa é uma bela maneira de espantar o medo na relação – é no desprezo de todas as leis, no desprezo de toda a sociedade que ela me quer; quer ser possuída sem que se leve em

consideração a situação social, a situação moral e seus preconceitos. Ela sabe que a amo, que a desejo; me atrai, me enlaça, tece a sua teia; sabe que me tem preso, que preciso do corpo dela para me saciar; que está ali para mim. Preciso dela; ela precisa de mim também. Amor livre, íntimo, intenso, voluptuoso. Tudo isso torna esse amor “especial”. Distinção do amor verdadeiro pela literatura comparada Sempre que se fala de amor é necessário distingui-lo de todos os outros fenômenos que atualmente recebem o mesmo nome. É o que terei de fazer mais adiante. Começando pela minha própria experiência, e como podemos encontrar em obras de literatura, a pessoa amada parece ser sempre a mulher mais bonita do mundo, isto é, no caso do amante, e a única que o realmente agrada (“como o lírio entre os espinhos, assim é minha amiga entre as jovens”, “como a macieira entre as árvores da floresta, assim é o meu amado entre os jovens; gosto de sentar-se à sua sombra, e seu fruto é doce à minha boca” Ct 2, 2-3). Há algo de misterioso nesse arquétipo de “a mulher mais bonita do mundo”, devo retornar a este ponto mais adiante. Para a mulher, o seu amado também é o único no mundo, independentemente da sua riqueza material, é ele o único que ela deseja. Santa Isabel de Hungria, ao saber da morte de seu marido, dizia em prantos: “Ah, meu Deus! Senhor meu Deus! Morreu para mim o mundo todo! o mundo inteiro com todas as suas delícias!” (História de Santa Isabel da Hungria, Duquesa de Turíngia (1207 – 1231), Tomo II, pag. 19; por El Conde de Montalembert, par de Francia. Barcelona: Libreria Religiosa, Imprenta de Pablo Riera, 1858.). *Diz-se que quando Santa Isabel, já depois de ter tido visões e contemplações místicas, depois de ter visto o céu, depois de Jesus ter elencado todos seus pecados, depois de ter consagrado seu vestido de noiva a Deus, recebeu os ossos de seu falecido esposo Luis, diz-se que ela “lançando-se sobre aqueles ossos os beijou mil vezes cheia de arrebatamento, chorando com tal desconsolo, devorada por tão cruel agitação, que o Bispo e os senhores, testemunhas daquela cena dolorosa, se aproximaram a acalmá-la e trataram de aparta-la daquele lugar. mas, ela, recordando-se de Deus, se sentiu revestida de todo seu valor: “Graças vos dou, Senhor, de que vos haja dignado ouvir a vossa serva e conceder-lhe o que tanto desejava; o favor de contemplar os restos de meu amado esposo, a quem Vós amastes também. Graças, Senhor, que assim quisesteis derramar misericordiosamente vossos consolos sobre minha alma afligida e desolada. Ele se ofereceu a si mesmo para a defesa da vossa Terra Santa, e eu também o ofereci a Vós, com o mesmo objetivo, e ainda que o amava com toda minha alma, não estou arrependida do sacrifício que lhe custou a vida. Vós sabeis, Deus meu, como o hei amado! Vós sabeis quanto amava eu aquele esposo que Vos amava tanto, e como preferira eu a todas as alegrias do mundo juntas o descansar-me com a vista daquele esposo, tão delicioso para mim se fosse do Vosso agrado conservar-ma: Vós sabeis que por viver com ele fora eu feliz em passar a vida juntos na miséria, pobres

ambos e correndo o mundo para mendigar nosso pão de porta em porta, só para ter a alegria de estar ao seu lado, se assim o houvesses querido; oh Deus meu! Agora já o deixo, e a mim mesma também me deixo e entrego a vossa vontade santa; e não quisera, ainda que estivesse em meu poder faze-lo, resgatar sua vida às custas de um só de meus cabelos, à menos que assim o quisésseis Vós, Deus meu!””. **Considero essa passagem da vida de Santa Isabel de Hungria muito relevante para o estudo sobre o amor, porque ela era uma noiva de Cristo, e, tendo dessa forma prometido amar a Jesus Cristo de todo o coração, para entender melhor o que isso significa, temos que procurar saber como ela – e as outras santas que fizeram o mesmo – lidavam com as coisas geralmente consideradas “do mundo” a partir daí. A minha ideia é que ser “esposa de Cristo” não pode estar no mesmo plano que ser esposa ou amada de algum outro homem, de modo que consagrar de forma especial todo seu coração a Jesus Cristo não deve significar que agora todos os desejos da pessoa, seus afetos e sentimentos mais profundos passaram a ser simplesmente desprezados como nada; mas, pelo contrário, é preciso crer que o amor a Deus se refere a algo diferente do amor ao homem, não competindo com ele e não podendo por isso excluí-lo, mas incorporá-lo numa dimensão amis elevada. Assim é que entendemos o que Jesus disse em Lc 14,26: “Se alguém vier a mim e não odiar a seu pai, a sua mãe, a sua mulher, os seus filhos, o seu irmão, a sua irmã, e também a própria vida, não pode ser meu discípulo”; ou seja, aqui, nesta passagem em especial, o amor de Deus aparece como oposição ao amor humano: sim, se colocados num mesmo plano, o amor de Deus será visto como oposição ao amor humano; no entanto, o amor de Deus está num plano mais elevado, e, portanto, ele abrange, ordena e orienta o amor humano desde cima, e só assim é que o amor humano é verdadeiramente amor. O que Deus está dizendo é justamente isso: se colocado o amor humano ao lado do amor divino, não é possível mais falar em amor, temos aí dois amores em conflito. Por outro lado, voltando à Santa Isabel, ela não me parece demonstrar, como o biografo nos dá a entender, qualquer desejo de reencontrar o seu amado no céu, não digo reencontra-lo como amigo, como santo, mas como o que ele foi para ela na terra, e confesso que gostaria de ter uma pista sobre seus sentimentos a esse respeito, quer dizer: se ela considerava sua relação amorosa com Luis uma relação eterna ou apenas uma relação meramente circunstancial, como se as nossas relações terrestres (ou ao menos algumas delas) fossem apenas como um sonho que passou, não fazendo parte realmente da nossa vida no céu. No entanto, há uma passagem que considero curiosa: conta-se que Isabel fazia frequentes visitas ao monastério onde jazia seu esposo morto para orar sobre sua sepultura (Tomo II, p. 254). Ora, isso me parece ser mais do que uma simples obrigação piedosa; é comum que as pessoas visitem a sepultura de seus familiares para rezar por eles, mas também podemos imaginar que só uma esposa ou esposo que realmente amava seu conjuge tenha uma ligação especial com o seu túmulo, significando assim a ligação mais espiritual que os unia. Por outro lado, sobre a amizade santa, lembro-me, por

exemplo, de quando Santa Teresinha do Menino Jesus estava enferma e perto da morte, e disse para a sua irmã: depois que eu morrer aí é que nós estaremos ainda mais unidas. Lembro que a morte para ela significava uma união bem mais íntima com suas amadas irmãs. Se Jó, depois de perder tudo, e depois de ver Deus, teve toda sua casa restaurada, porque seria diferente depois da morte? Não deveria ser esta vida que nós perdemos na terra restaurada no céu, conforme a Palavra que diz: “quem perder a sua vida por minha causa encontrará a verdadeira vida”? ***(“Quem ama a sua vida, perde-la-á; mas quem odeia a sua vida neste mundo, conserva-la-á para a vida eterna.” Jo 12,25. “Porque aquele que quiser salvar a sua vida, perde-la-á; mas aquele que tiver sacrificado a sua vida por minha causa, recobrala-á.” Mt 16,25. – Essas passagens parecem se referir à tensão entre a nossa vida no mundo e a exigência que Deus faz de nós no nosso coração, isto é, a tensão entre a imagem da vida que desejamos e nosso dever de vocação; é a tensão entre o que a sociedade pode nos oferecer e o que a nossa vocação pessoal exige. Só se pode abrir mão de tudo no mundo para podermos fazer aquilo que devemos fazer se tomar-mos nossa cruz para seguir a Cristo, porque Ele nos prometeu que fazer isto é ganhar a vida verdadeira. A vida que se perde não é verdadeira justamente porque acaba com a morte; mas a vida verdadeira consegue-se seguindo o caminho do coração, ao invés de, desprezando-o como coisa secundária, tentar adaptar a sua vida nesse mundo como sendo a coisa mais importante.). **** Porém, conta-se que, antes de tomar o hábito franciscano, Isabel “pedia três coisas sem cessar ao Senhor, segundo dizia sua amiga Isentrudis: primeiramente o desprezo completo de todas as coisas temporais; depois, o valor de sobrepujar-se com indiferença às injúrias e calúnias dos homens; e por último, e sobretudo, a diminuição do excessivo amor que tinha à seus filhos. Depois de muito tempo orando nessa intenção, viram-na suas companheiras um dia que ela estava plena de alegria sobrehumana, e dizia cheia de alvoroço: ouviu minha oração o Senhor: já não são a meus olhos senão barro todas essas riquezas e bens mundanos, que em outro tempo eu amava. Quanto às calúnias dos homens, as mentiras dos malvados, e o desprezo com que me olham, já não sinto nada, antes me felicito e até me orgulho disso. Quanto à meus filhos tão queridos, esses pedaços do meu coração, que eu tanto amava e com tal ternura os estreitava contra meu peito, estes filhos tão queridos, digo, já não existem para mim; Deus me é testemunha de que os vejo como se não fossem meus. à Ele os hei oferecido e confiado; faça deles o Senhor aquilo que O agradar. Já nada amo, nada; nenhuma criatura tem já lugar em meu coração: não amo mais que a meu Criador.”. (Tomo II pag. 117-118). ***** A vocação da absoluta pobreza por amor de Deus nos traz de modo maximamente evidente a tensão do amor pelo Criador e do amor pela Criatura. Quando Isabel diz que quer se livrar do “excessivo amor” que tem pelos filhos,

pressupõe-se aqui uma distinção do simples e puro “amor”, de modo que devemos nos perguntar o que é exatamente esse “excessivo amor”, no que ele consiste? Por outro lado, Isabel diz que já não ama mais nada senão o Criador, que seus filhos são como se não fossem seus. São Paulo também disse para usufruirmos dos bens desse mundo como se não fossem nossos; mas não é exatamente disso que se trata, pois Isabel já não se sente como possuindo filhos: a complicação aqui, então, é o que significa para Isabel a posse dos filhos, o ter filhos, o chama-los de “meus”. Se olharmos nos santos Evangelhos, eles raramente mostram a afeção de Jesus por alguém como na passagem onde Jesus chorou por causa da morte de Lázaro. Nesta passagem, a primeira coisa a se notar, é que as irmãs de Lázaro sabem muito bem que ele vai ressuscitar para a vida eterna, não é esse o problema, o problema é que se Jesus estivesse ali ele não teria partido desse mundo, e poderia continuar ali com eles, presente em carne e osso. Maria, a contemplativa, irmã de Marta e Lázaro, estava aos pés de Jesus chorando por causa disso. “Jesus chorou. Disseram pois, os judeus: vede como o amava” Jo 11,35. Mas essa passagem não é clara; de fato, o Evangelista coloca esta declaração do amor de Jesus na boca dos judeus, e isso geralmente significa que essa é uma interpretação mundana dos verdadeiros sentimentos de Deus. Jesus se comoveu depois de ver Maria e os judeus chorarem, e as Escrituras deixam claro que Ele havia esperado que Lázaro morresse para que os judeus pudessem crer nEle; no entanto, Maria e Marta declararam que já acreditavam nEle, e ainda assim pediram pelo irmão. Ora, seriam Marta e Maria tão apegadas assim ao irmão para que não pudessem deixa-lo ir em paz? Maria é a imagem Evangélica das monjas, como Santa Teresa D’Ávila, sua devota. Ela desprezava o irmão? como se não fosse seu? É difícil acreditar nisso. Mas o Evangelho diz que Jesus também o amava, e que chorou. Aí nós vemos a complicação dos sentimentos humanos e divinos: Jesus é Deus e homem, e, por isso, tudo o que Ele ama Ele ama como Deus e como Homem; ora, se Deus ama Lázaro, quem só ama a Deus também ama Lázaro tal como Jesus o ama em carne e osso. As irmãs de Lázaro não o amavam porque era IRMÃO, mas porque era LÁZARO, a quem Jesus também amava; mas elas o amavam como IRMÃO, com afetos de irmão mesmo. Ora, de que modo seria possível um amor verdadeiro por um irmão se o próprio Deus não o amasse também como um irmão? E de que modo se poderia amar verdadeiramente uma esposa se o próprio Jesus não a amasse como tal? Se uma mulher não é digna de ser esposa de Jesus, não é digna de ser esposa em absoluto, portanto, não pode ser esposa de ninguém porque não é nada. Do mesmo modo, Isabel de Hungria não podia estar desprezando os filhos como nada, mas os estava desprezando como “filhos por parte da carne”, isto é, o fato biológico e biográfico deles terem sido paridos e amamentados por ela. De fato, amá-los por isso significa não amá-los em absoluto, mas amar somente a própria carne, amar apenas a convenção social de que aquilo que saiu dela lhe pertence como propriedade. A mãe deseja amar os filhos simplesmente porque ama a própria carne, e vê neles uma continuação de si própria, e isso é o que Isabel chama de “amor excessivo”. Amar os

filhos por quem eles são é diferente de amá-los porque são “filhos carnais”. Se se tem um afeto por alguém simplesmente pelo fato de ter criado este alguém quando era criança, então esse afeto não diz respeito à pessoa do outro, mas aos próprios trabalhos que a pessoa teve cuidando daquela criança. Quem tem o trabalho de cuidar de uma criança deseja que ela seja sua, porque ama seu trabalho e valoriza seus próprios cuidados, porque ama a si mesma, mas não ama a criança. Não é isso o que verdadeiramente significa ter filhos; por isso Jesus disse: “Também todos aqueles que tiverem deixado casas, irmãos, irmãs, esposa, pai, mãe, filhos ou terras, por causa do meu Nome, receberão cem vezes mais e herdarão a vida eterna.” Mt 19, 29. E, em outro Evangelho: “Então Pedro começou a declarar para Jesus: “Eis que nós tudo abandonamos para te seguir”. Garantiu-lhes Jesus: “Com toda a certeza vos asseguro que ninguém há que tenha deixado casa, irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos ou bens, por causa de mim e do Evangelho, que não receba, já no presente, cem vezes mais, em casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e propriedades, e com eles perseguições; mas no mundo futuro, a vida eterna.” Mc 10, 28-30. E em Lucas: “Ao que Pedro se manifestou: “Eis que nós deixamos nossa família e bens para te seguirmos!” Então Jesus lhes afirmou: “Com toda a certeza Eu vos asseguro: Ninguém há que tenha deixado casa, esposa, irmãos, esposa, pai ou filhos por causa do Reino de Deus, que não receba, no tempo presente, muitas vezes mais, e, na era futura, a vida eterna!” Lc 18, 28-30. É curioso que Jesus prometa uma recompensa de ter “cem vezes mais” irmãos, esposa, pai e mãe (e já aqui na terra). O que significa deixar irmão para ter cem vezes mais “irmão”? Ou deixar esposa para ter cem vezes mais “esposa”? O que isso significa? Isso significa que o sujeito trocou de família: ele deixou de se consagrar aos laços da carne para se consagrar aos laços do Espírito. Deve haver, então, um análogo espiritual para essas relações genéticas: irmão, pai e filho. Porém, a relação “esposa” (Cristo não disse “esposo”, o que sugere que ele estava se dirigindo aos homens) não é uma relação genética mas social-familiar, e aqui o título “esposa” provavelmente se refere aos compromissos sociais de modo geral. Existem dois tipos de compromissos que ligam o homem carnal com as outras pessoas: os compromissos com os parentes (honrar pai e mãe...) e os compromissos com a sociedade (com outras famílias). Então, Jesus deve estar dizendo que esse sujeito deve desprezar todas as suas ligações animais e sociais, e fundamentar todas as suas relações no Espírito. Existem, então, diversos tipos de relações espirituais: filho, irmão, pai, mãe, esposa... e também com o “terreno”... Podemos também supor que Cristo tem afetos pelas pessoas segundo essas relações espirituais, não segundo a carne. Também podemos comparar essa passagem naquela em que vão dizer a Jesus que sua mãe queria vê-lo, e Ele diz: “minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a palavra de Deus e a praticam”; temos aí uma outra categoria de parentesco, um parentesco que não é fundamentado na relação meramente biológica, mas que envolve a pertença a uma mesma comunidade espiritual, a uma união de corações em Deus, desde que cada pessoa entenda a palavra de Deus como única e pessoal, quer dizer, como dirigida a si mesmo. No

entanto, cabe-nos ainda caçar a ideia que pode nos revelar a realidade substancial de uma relação interpessoal; isto é, precisamos explicar como os nossos sentimentos por alguém podem ser os mesmos de Cristo por essa pessoa sem que afirmemos ao mesmo tempo que haja apenas uma maneira fixada e mais ou menos genérica de amar cada pessoa, segundo ela cumpra mais ou menos bem o seu papel de ser humano e de amar a Deus. Por outro lado, a minha hipótese não é a de que Maria tinha os mesmos sentimentos de Cristo por Lázaro, mas sim que Maria tinha os mesmos sentimentos que Cristo tem por Lázaro enquanto sendo Ele mesmo o fundo do coração de Maria. Não é razoável crer que no céu todo mundo ame igual a mesma pessoa; mas o amor de Deus como que transpassa os vários indivíduos, e, formando o coração de cada um deles, dirige-se para os outros como simultaneamente amor divino e humano. Só assim estabelece-se uma relação realmente divina e eterna. Ora, o amor que eu tenho por uma pessoa, se é verdadeiro, e se é correspondido, forma uma parte da vida dela, bem como uma parte da minha própria vida. Essa modificação que o amor faz nas nossas vidas, se corresponde às formas de amor da vida terrestre, sendo a vida terrestre tão humana quanto a celeste, deve ser semelhante às modificações do amor na nossa vida terrestre, cujas formas correspondem àquelas celestes. Nós devemos, portanto, buscar essas formas, se elas existem, e, por outro lado, mostrar e provar como a vida “mundana” é vazia e enganosa. *****É importante notar que quando Isabel disse que já não estava mais apegada a nada nesse mundo, ela estava radiante de alegria; mas, para a maioria das pessoas, não amar ninguém significa estar profundamente triste e deprimida. No Evangelho, encontramos a passagem de quando Jesus diz a um moço: “se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tem e dá aos pobres, depois vem e segue-me”; e daí o moço fica triste e vai embora. Há aí uma tremenda ambiguidade que devemos resolver: por um lado, há o desapego que causa tristeza, que é quando o coração do sujeito está voltado para as coisas do mundo: deixar as coisas do mundo não significa que o coração dele será preenchido por nada, ao menos imediatamente; por outro lado, há o “desapego” que é simplesmente falta de amor, quando não se encontra mais ninguém a quem amar nessa vida, e, creio eu, ninguém duvida que esse amor sincero e verdadeiro exista. Uma pessoa que busca a total pobreza não pode ter nada de “seu”, mas isso não significa que não tenha mais sentimentos; a diferença é que esses sentimentos são transfigurados em sentimentos divinos, porque a pessoa já não ama nada que não seja eterno. Ora, o que eu estou tentando descobrir é justamente se as formas de amor que encontramos neste mundo terreno são também formas eternas ou são apenas fenômenos materiais sem correspondência com as relações entre os santos. Se essas formas de amor aqui na terra tiverem alguma correspondência celestial, há várias formas de amor no céu: o amor esponsal, fraterno, filial, paternal, maternal, etc... segundo as várias formas de afeto e relacionamento humano que encontramos na terra.

******Podemos comparar essa exigência de Jesus, do coração da pessoa como um todo, como sendo a própria vocação da pessoa. A vocação é o que a pessoa tem de única e não compartilha com ninguém, sendo só ela mesma ali. É por isso que Miyamoto Musashi, numa passagem do filme de Hiroshi Inagaki, falava assim a sua amada, antes de partir para sua jornada, como que se despedindo: “eu te amo, mas eu amo mais a minha espada”; e partiu para sua jornada, sozinho, deixando-a lá na cidade, chorando – se partiu de coração partido, permaneceu todo inteiro em cada uma das metades. A mais alta criação de Deus é você se tornar a imagem terrestre de quem você é. A espada do samurai reflete a tempera da sua própria alma. “Dize-me, ó tu, que meu coração (“coração”, que é o sentido mais literal, é também usado como sinônimo de “vida” e “alma”) ama, onde apascentas o teu rebanho, onde o levas a repousar ao meio dia, para que eu não ande vagueando junto aos rebanhos dos teus companheiros” Ct 1,7. “Ele introduziu-me num celeiro de vinho, e o estandarte que levanta sobre mim é o amor.” Ct 2,4 (ver Ex 17,15: na luta contra Amalek, onde Moisés ficou no alto do monte com os braços levantados, de modo que quando Moisés abaixava as mãos Israel começava a perder o combate, e quando as levantava Israel vencia, eis o que diz o versículo após a vitória de Israel: “E Moisés edificou um altar, ao qual chamou: o Senhor é meu estandarte”). “Restaurou-me com tortas de uvas, fortaleceu-me com maçãs, porque estou enferma de amor.” Ct 2,5. “Meu bem-amado é para mim e eu para ele; ele alimenta (apascenta) entre os lírios” Ct 2,14. “Vou levantar-me e percorrer a cidade, as ruas e as praças, em busca daquele que meu coração ama; procurei-o, sem o encontrar.” Ct 3,2. “Mal passara por eles, encontrei aquele que meu coração ama. Segurei-o, e não o soltarei antes que o tenha introduzido na casa de minha mãe, no quarto daquela que me concebeu.” Ct 3,4. “Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém, pelas gazelas e corças dos campos, não perturbeis o meu amor antes que o deseje” Ct 3,5 “És toda bela, ó minha amiga (não é “amiga”, a palavra significa “companheira” no seu radical, e só é usada no Cântico dos Cânticos), e não há mancha em ti” Ct 4,7. “Tu me fazes delirar (não é “delirar”, mas a palavra usada aqui só tem no Ct, e significar algo como “mexer o coração”, no sentido de “bater mais forte”), minha irmã, minha esposa, tu me fazes delirar com um só dos teus olhares, com um só colar do teu pescoço.” Ct 4,9.

“És um jardim fechado, minha irmã, minha esposa, uma nascente fechada, uma fonte selada” Ct 4,12. “És a fonte de meu jardim, uma fonte de água viva (“água vivente”), um riacho que corre no Líbano./ Levanta-te vento do norte, vem tu, vento do sul. Sopra no meu jardim para que se espalhem os meus perfumes. Entre meu amado no seu jardim, prove-lhe os frutos deliciosos.” Ct 4,15-16. “Conjuro-vos, filhas de Jerusalém, se encontrardes o meu amado, dizei-lhe que estou enferma de amor.” Ct 5,8. “Que tem o teu amado a mais que os outros, ó mais bela das mulheres? Que tem o tem amado a mais que os outros, para que assim nos conjures?” Ct 5,9. “... ele é todo amável (tudo nele é desejável)...” Ct 5,16. “És formosa, amiga minha, como Tirsa, graciosa como Jerusalém, temível como um exército em ordem de batalha” Ct 6,4. “desvia de mim os teus olhos, porque eles me facinam...” Ct 5,5. “Há sessenta rainhas, oitenta concubinas, e inumeráveis jovens mulheres; uma, porém, é a minha pomba, uma só a minha perfeita; ela é a única de sua mãe, a predileta daquela que a deu à luz. Ao vê-la, as donzelas proclamam-na bemaventurada, rainhas e concubinas a louvam.” Ct 6, 8-9. “Põe-me como um selo sobre teu coração, como um selo sobre teus braços; porque o amor é forte como a morte, a paixão é violenta como o sheol. Suas centelhas são centelhas de fogo, uma chama divina” Ct. 8,6 “... Se alguém desse todas suas coisas por amor as desprezaria” “Ora, eu sou um muro, e meus seios são como torres; por isso sou aos seus olhos uma fonte de alegria” Ct 8,10. “Salomão tinha uma videira em Baal-Hamon. Confiou-a aos guardas, cada um dos quais devia dar mil soclos de prata pelos frutos colhidos. eu disponho de minha videira: mil siclos de prata para ti, Salomão! Duzentos para aqueles que guardam o fruto. Ó tu que habitas nos jardins, os amigos (os “companheiros”, aqueles que estão unidos”) estão atentos à tua voz, faze-me ouvir a tua voz. Foge, meu amado, como a gazela ou como o cervozinho sobre os montes perfumados!” Ct 8, 11-14. Esta última passagem dos Cantares de Salomão é de difícil interpretação; parece que ninguém sabe ao certo como entender essa passagem. A narrativa parece dizer que os “guardas de Salomão” tinham que pagar mil siclos de prata por cada fruta roubada da “videira”; parece que a que habita “nos jardins” (no plural!) é metaforicamente um dos frutos da árvore de Salomão, que acaba de ser roubado pelo narrador, e por isso ele

diz “mil siclos para ti, Salomão”. Mas não posso entender o por quê da passagem “duzentos para aqueles que guardam o fruto”. E por que ele diz “eu disponho de MINHA VIDEIRA”? A videira era dele ou de Salomão? O que os amigos estão fazendo ali? Por que eles querem ouvir a voz do ser que habita os jardins? Por que a esposa diz para ele fugir? Ainda não sei como esclarecer esses nenhum desses pontos. No caso da mulher amada, é interessante fazermos uma comparação. Baseando-se na minha experiência pessoal – e creio que seja assim também para os outros – eu percebo que nós homens sempre temos opinião acerca da mulher mais bonita, e de certa classificação sobre se as mulheres que nós opinamos como bonitas, normais ou feias. Qual a garota mais bonita da turma? A mulher mais bonita da vizinhança? Da cidade? A Miss Brasil? A Miss Japão?... Nós homens temos opinião acerca da mulher mais bonita, mas isso não significa que nós nos apaixonamos automaticamente por qualquer uma dessas; claro que a desejamos, de certo modo, mas necessariamente porque nos apaixonamos, mas porque sua beleza nos excita a imaginação. É diferente quando amamos alguma mulher. Quando amamos uma mulher, ela se torna automaticamente a mais bela do mundo, hoje e sempre – não que essa seja nossa opinião “objetiva”, mas é assim que a sentimos. Ela nos excita mais que todas as outras; é a única que posso dizer que “é a minha amada”. Esse amor também nasce da visão: quando eu vejo a mulher que amo, eu sigo observando-a, me descubro tomado de amor por ela. *Se o “apaixonar-se” tem algo a ver com uma harmonia de beleza e virtude, eu não acho que isso faça muita diferença para o que fica dito. Também a personalidade da mulher como um todo influencia na paixão, mas a nossa personalidade deve ao menos indicar algo da nossa essência individual. Desse modo, podemos nos apaixonar por duas ou mais pessoas ao mesmo tempo, desde que exista certa ambiguidade numa personalidade, isto é, é raro o sujeito parecer totalmente aquilo que é, e às vezes ele se parece mais com outras pessoas ao redor. E nós podemos nos enganar. **O mais complicado aqui é a combinação de todos os elementos biográficos, psicológicos, culturais, etc., que teriam contribuído para que aquela alma individual pudesse “ver” justamente naquela outra alma individual a sua “companheira”, e naquele momento, naquela circunstância, para daí a pessoa como um todo se apaixonar perdidamente pela outra. Podemos simplificar as coisas se a gente admitir que todas essas circunstâncias fazem parte, de algum modo, da Providência, e assumir que o mais importante aqui, no momento, é a experiência de uma pessoa “ver” a outra como sendo a mais bela do mundo, a “certa” para mim. Essa experiência ou é sobrenatural ou acidental; se é sobrenatural tem a ver com a essência individual (com a alma imortal) e com a Providência (o amor como dom divino); se é acidental tem a ver unicamente com a Providência divina (a confluência de fatores acidentais é em última análise prevista e “aceita” por Deus).

O interessante de se notar aqui, como estava dizendo, é que a opinião dos homens acerca da mulher mais bonita da sala não faz com que todos eles a desejem do mesmo modo, não faz com que um homem se apaixone por ela só porque é a mais bonita “objetivamente”, por assim dizer, ou, “de corpo”. Pode ser, por exemplo, que eu olhe para a garota e diga: “é, sim, ela é a mais bonita da sala”, e, no entanto, eu vejo que um colega está muito interessado nela e dou a ele o maior suporte para que ele consiga namora-la. – E o que significa dizer “a mais bonita” se isso não quer dizer que é a “mais desejável para mim”? Esse fato sugere uma importante distinção. Quando dizemos que uma mulher é a mais bela, isso não significa que ela é a única que nos agrada, mas quando dizemos que amamos uma mulher, ela automaticamente se torna a mais bela. É claro que invejamos um pouco os homens que tem mulheres muito bonitas, mas só os invejamos na medida em que na nossa imaginação nós podemos fingir amá-la intimamente, com amor verdadeiro, e assim sentir prazer nas nossas fantasias sexuais. (Temos que marcar aqui um fato muito importante: o amor não é necessário para se ter prazer no ato sexual; o amor pode ser totalmente pervertido, e, nesse caso, temos também uma espécie de prazer demoníaco. Deverei falar mais sobre isso em outro lugar). Mas, se nos voltarmos agora para a realidade da nossa vida concreta, podemos perceber que não estamos perdendo muita coisa em não ter uma mulher que realmente não amamos. Ter simplesmente desejo sexual não é a mesma coisa de quando encontramos aquela mulher que desperta em nós um desejo ardente de união íntima e eterna. Esse desejo de união perfeita e total é o que acontece quando vemos a nossa mulher amada. Uma vez encontrada, ela não pode mais ser esquecida – ou não queremos esquecê-la. A beleza dela está em outro “plano”, é muito mais profunda. Não estamos tão interessados em ficar acariciando o seu corpo, mas desejamos muito mais estar na presença da sua pessoa, diante da sua intimidade, e termos a nossa própria intimidade sendo reconhecida por ela como referindo-se a ela mesma, como sendo “dela”; do mesmo modo, eu quero que ela, e só ela, seja “minha”, “minha querida”; quero que ela seja “para mim” tal como eu sou “para ela”. E a essa espécie de autodoação mútua nós chamamos amor. Então, quando David “viu” Bat-Sheba se banhando, não é possível que ele tenha visto apenas mais uma mulher bonita para colocar no seu Harém... (É importante esclarecer mais essa passagem, tão mal interpretada nos nossos dias. David não planejava tomala como esposa até o momento em que já não podia mais enganar seu marido. A primeira coisa que David tentou fazer foi mandar o marido dela para casa, para dormir com ela, e assim pensar que o filho do rei era o seu próprio filho. Mas acaba que marido dela se mostra teimoso e não quer cumprir as suas ordens do rei, (e por justa causa), e, por consequência disso, se tornar uma ameaça à própria mulher e ao filho que ela teve de David, pois que agora ela poderia ser condenada à morte por causa do adultério quando fosse descoberta pelo marido. Só aí David resolve matar o marido dela e a tomar por esposa.). Por outro lado, também não é verossímil que as mulheres do Rei David fossem menos bonitas, esteticamente falando, do que essa mulher que

ele viu se banhando, “que era muito bela”; ao menos aos olhos de qualquer outro palaciano não podemos dizer que Bet-Sheba fosse tão mais bela do que qualquer outra bela mulher do rei foi ou o fora na sua juventude. Mas a atitude que David toma com relação a ela pode ser considerada, de certo modo, desproporcional com a sua maneira habitual de ser: pela primeira vez ele comete um ato infringindo todas as leis divinas e humanas simplesmente porque não conseguiu resistir à beleza da mulher. Ora, David não era nenhum homenzinho incontinente ou sem virtude; como pode ele cometer tal injustiça infamante, ele que era considerado justo diante de Deus? Mas ele a viu: não pôde resistir à sua beleza nem por um segundo; o prazer da união encantou seu coração; era preciso possuí-la, o corpo dela, e tudo o mais. E ela talvez tenha correspondido, não sei, mas, pelo jeito como a Bíblia omite qualquer referência a ela, é como se ela fosse simplesmente dócil ao rei, omitindo ela mesma em seu coração qualquer contradição que pessoalmente tivesse com a vontade do rei. Talvez ela tenha sido dócil do mesmo modo que o Espírito Santo o é: não podemos esquecer que a mulher tem um papel semelhante ao do Espírito Santo, simbolicamente, e tal como o Espírito Santo Bet-Sheba também não negou seus dons ao rei David. Além disso, ela parece ter sido a mulher mais amada do rei, pois David prometera que seu filho com ela se tornaria rei em seu lugar (isso em algum momento não declarado nas Escrituras). É como se ele tivesse prometido isso na sua intimidade com ela, de modo que a Escritura não nos diz quando ou como isso aconteceu. Assim, só o profeta poderia dizer o momento certo para ela reivindicar aquela promessa feita pelo rei. Agora, é interessante comparar essa passagem com a passagem em que Sansão diz que quer casar com uma mulher pagã, e os pais dele reclamam dizendo: “poxa, você não pode escolher uma da nossa tribo? não é possível que não haja uma mulher bela entre os judeus!”, mas a Bíblia responde que os pais de Sansão não sabiam que Deus havia feito isso para que seu Juiz levasse confusão até o povo pagão ao redor. Ou seja, foi Deus mesmo quem fez com que Sansão olhasse aquela mulher e dissesse: “não há outra escolha para mim, é essa com quem eu devo casar”. Logo depois, no entanto, o pai dela a dá a um jovem, que também havia participado da festa de casamento de Sansão, e este fica indignado, e queima a safra dos filisteus por causa disso; daí, os filisteus ficam irados e queimam a casa da esposa de Sansão, com o pai e a filha dentro dela. Assim termina o primeiro caso de Sansão. O curioso é que nesse primeiro caso a Bíblia não diz o nome da esposa de Sansão, e nem mesmo diz que Sansão “amou” essa mulher; a justificativa dele é que “ela é a que me agrada”. A Bíblia certamente não parece dar muita atenção a esse primeiro caso de amor, que é como que o protótipo do segundo, mais maduro, e mais terrível: aquele que leva Sansão ao pecado e à morte. Assim diz a Escritura que “Sansão amou Dalila” – e aqui a palavra é “amor” mesmo. Parece ficar implícito que Deus fez isso pelo mesmo motivo que antes, pois a estória termina do mesmo modo, mas dessa vez não diz que foi Deus quem fez isso acontecer. Sansão acaba destruindo todo um templo pagão, com a força e o poder de Deus. A traição de Dalila é arquetípica: ela trai seu amante revelando o seu segredo;

assim também Sansão traiu a Deus revelando o seu segredo: “Se é bom conservar escondido o segredo do rei, é coisa louvável revelar e publicar as obras de Deus” Tb 12,7. Sansão está para Deus como Israel está para Deus, e tal como Dalila está para Sansão. E depois disso nós nunca mais ouvimos falar da misteriosa figura de Dalila. Nessa narrativa nós também podemos encontrar o arquétipo de amor não correspondido. Não adianta nada Sansão amar Dalila porque eles não podem ter nenhuma união verdadeira cultuando deuses opostos; por outro lado, Sansão era fraco na carne – temos aí a passagem onde ele visita uma meretriz para justificar essa opinião. Sansão se uniu carnalmente a uma pessoa com quem não podia se unir espiritualmente, por isso ele pôde ser traído. A punição dele foi perder a visão e girar um moinho, o que lembra muito o pecado do sexo: mais do mesmo, isto é, ficar eternamente perseguindo um prazer vazio, como um cego, repetindo o mesmo movimento, sem nunca poder atingir o alvo. Sobre o amor não correspondido, é notável a comparação dessa imagem com o início da Paixão de Cristo, quando Jesus vai orar sozinho no monte das oliveiras. A imagem que nós temos é Jesus, num jardim, sozinho, orando, ao Pai, ajoelhado, suando sangue. Jesus está no jardim; sua esposa está ausente; ele já foi traído. Seu segredo será revelado na forma de escárnio: é assim que a prostituta trai o segredo de seu marido, zombando dele, o diminuindo diante dos seus amantes na medida em que revela o segredo do esposo. Jesus sofre porque ama, mas não ama uma mulher má, Ele sofre em primeiro lugar pela traição das almas boas, que serão salvas pelo arrependimento e perdão dos pecados. Na verdade, é o inimigo de Jesus Cristo que monta a cena para Ele, que faz parecer que sua esposa é totalmente ruim. O modelo do escárnio demoníaco é a missa negra. Deus permite isto para mostrar à esposa o que é o verdadeiro adultério, para que ela não queira imitar a perversão do demônio, para que ela saiba discernir o lado certo, para que se volte para Deus por “conversão”, por rejeição do mal. Este é o pior sofrimento que um homem pode ter: deixar de ser amado e ser traído pela esposa que ele ama. Só há dor; “minha alma está triste a ponto de morrer”, diz Jesus. Mas a esposa é livre para deixar de amar, ela é livre para não querer viver o amor, para experimentar novos prazeres se ela quiser; ela é livre para se libertar do amor ao seu esposo. Por que ficar presa a um só homem enquanto há muitos que a desejam? Não, engano seu. Não se ama nenhum outro, é impossível. Deixar de amar este Homem é deixar de amar de todo, é rejeitar o Amor como um todo. A imitação do Amor fora do Amor é a definição de pecado. O arquétipo da esposa arrependida que volta para o marido se chama “Maria Madalena”, aquela “que muito amou”; a prostituta que chora aos pés de Jesus. Jesus fica quieto; comovido no seu íntimo, Ele permite que sua esposa se humilhe diante dele, que demonstre seu amor por Ele, porque o havia traído e agora o amor oprime o seu coração, que pertence ao esposo. Tudo o que ela mais deseja, como amante, é que seu amado reconheça sua humilhação, reconheça seu arrependimento, e que possa aceita-la e ama-la como antes – ela quer mostrar o quanto o ama. Jesus sabe disso, ele a aceita;

perdoa muito a quem muito amou. Maria Madalena curou a ferida do coração de seu amado com suas lágrimas e seu arrependimento e sua humilhação; e talvez tenham sido mensagens deste tipo que trazia aquele anjo, quando, descendo sobre Jesus, o fortalecia no monte das oliveiras. O termo “amor” na Bíblia é usado de forma genérica, sem fazer distinção da totalidade do fenômeno em jogo. Fala-se, por exemplo, do filho de David, que “amou” Tamar, e que, depois que a violentou, desprezou-a; fala-se de Jônatas que “amou” David; fala-se de amar a Deus, ou que Deus amou Salomão, por exemplo. Também no mundo a palavra “amor” é utilizada não para designar uma realidade com uma estrutura bem definida mas sim um sentimento que todo mundo tem, e que se refere genericamente a um tipo de relação afetiva com outra pessoa. O problema é que esse sentimento que chamamos genericamente de “amor” admite uma larga gama de interpretações, que podem ser inclusive contraditórias, dependendo de se se está amando como um todo ou se se ama em partes. Por exemplo, se um homem ama uma mulher, ele terá o mesmo sentimento genericamente chamado “amor” tanto se ele estiver amando apenas o corpo da mulher, como se ele estiver amando a pessoa dela como um todo; e, além disso, quando uma pessoa, por exemplo, mais velha, já não sente mais a paixão sexual pela sua esposa, ainda pode dizer que a ama do mesmo modo que antes. Outro exemplo pode ser o da amizade; se um amigo ama o outro, esse amor pode incluir desejo sexual ou não, por exemplo, se se ama o amigo porque ele é belo e nobre, ou porque simplesmente aconteceu de se gostar dele por motivos mais pessoais, e, desse modo, aqui também o termo “amor” não seria suficiente para distinguir os dois tipos de relação. Uma bela imagem que podemos fazer é a de David sendo subjugado pela beleza de Bet-Sheba sob a luz branca da Lua cheia, que semi-nua, molhada, se banhava na fonte... Ele se deitou com ela. O filho que tiveram morreu, por punição do crime que cometera o rei David. O crime de David é geralmente tido como se fosse o adultério, mas essa interpretação não é de modo algum evidente, talvez nem mesmo legítima. Para começar, temos a parábola contada pelo profeta Natã; ora, essa palavra não fala de adultério em momento algum, ela fala sim é de injustiça suprema, o tipo de injustiça que só um senhor iníquo poderia praticar (e parece que David nem se deu conta do seu pecado até aquele momento, enquanto que, se o pecado fosse o adultério, é claro que ele já devia estar esperando a repreensão de algum modo). Mas o pecado de adultério não seria nada para um rei ungido por Deus comparado ao pecado de tomar a esposa do seu servo para ser sua esposa, e ainda fazer isso escondido; foi por isso que Natã disse “porque desprezastes a Deus...”. A matéria do pecado de David foi tomar a mulher do próximo e depois matar o esposo dela para legalizar seu adultério, mas a intensão do pecado foi o desprezo a Deus: um rei ungido como ele não tinha o direito de desprezar uma lei divina, fazendo o que bem entendesse, por conta própria. Podemos notar aí a clara tensão do amor que se revela:

o amor está em constante tensão com a lei social; enquanto o amor diz respeito ao mais íntimo do indivíduo, o casamento é só um contrato social que se deve cumprir segundo uma lei genérica. A relação verdadeiramente amorosa entre um homem e uma mulher é tão íntima e pessoal que chega a parecer uma afronta permitir que leis e convenções sociais perturbem essa intimidade. É como se se dissesse: se eu a amo e ela me ama, o que poderá nos separar? O amor desafia todas as imposições exteriores a ele. O problema é que para esse mesmo amor se realizar de forma plena no mundo, levando em consideração a possibilidade de se ter filhos e a estabilidade da união, a sociedade, as leis e convenções se tornam necessárias. Mas nem sempre elas admitem a existência desse amor, servindo mais ao propósito da manutenção da convivência social do que da intimidade, (evidentemente), e é justamente a convivência social que a relação íntima entre dois sexos exclui. Um detalhe realmente interessante na narrativa de David e Bet-Sheba é justamente que, após os dois dormirem juntos, ela “se limpa da impureza da sua menstruação”; ora, nós bem sabemos que não é possível engravidar durante a menstruação, então, o que aconteceu? Como foi possível que ela engravidasse? A Bíblia deixa muito claro que o filho era de David. Mas parece que essa ironia trágica, do adultério que não poderia de modo algum gerar conflitos sociais mas que acabou gerando a maior das injustiças, expressa justamente essa tensão corpo/espírito, somado ao fato de que a justiça é sempre social e não aceita exceções. *sobre isso, ver também a passagem de Jacó, Leá e Raquel. Jacó amou Raquel, mas lhe foi dada Leá por causa dos costumes locais. Ele fica com as duas. Uma ele ama, a outra lhe dá mais filhos. Os filhos de uma esposa não resolvem o problema do ciúmes por causa do amor pela outra, e o amor pela outra não resolve o problema da sua posição social com relação a esposa que tem mais filhos. Jacó ama uma mulher, mas lhe é dado outra, logo na primeira noite de núpcias, sem que ele o saiba. Ele fica com ela achando que é a outra. Esse engano fatal é o arquétipo também da nossa ilusão com relação a mulher ideal. Mas, mais propriamente, é o arquétipo dessa tensão entre a ordem social do casamento e o casamento por amor. Essa tensão entre o pessoal e o social existe em muitas áreas da vida humana, e o arquétipo dessa tensão é a existente entre a alma e o corpo: o corpo segue a alma, mas a alma é muito mais livre para pensar e imaginar coisas que o corpo não pode fazer. A liberdade nesse mundo é só espiritual, enquanto os corpos dependem uns dos outros para sua manutenção; quer dizer, mesmo que a alma dependa também de outras almas para se desenvolver, através da educação, são almas livres que guiam outras para a liberdade, o que não acontece com os corpos, estes são sempre limitados por outros corpos não podendo se expandir ocupando todo o cosmos. A alma é que é um microcosmos, o corpo é uma imagem fixa da alma como um todo. A realização de cada pessoa está assim limitada pelas possibilidades do seu corpo com relação a outros corpos; mas, espiritualmente, ela sempre pode se realizar, pois tem liberdade interior e imaginação.

De qualquer modo David fica com Bet-Sheba, e ela concebe novamente, e nasce Salomão, que Deus amou, conforme o profeta Natã depois anunciou. E de Salomão nascerá o Messias. À Salomão é atribuído o Cântico dos Cânticos, e, se for verdade, então é bastante claro que ele conhecia bem o amor entre um homem e uma mulher (é curioso, no entanto, que ele tenha tido 700 esposas e 300 concubinas, e ainda assim tenha escrito algo como os Cantares, onde só existe uma mulher para o seu esposo e vice-versa. Mas o Eclesiastes o repreende dizendo: “saciastes o teu corpo”). O fato é que foi daquele “acidente” em que o Rei David viu Bet-Sheba e a “desejou ardentemente” – utilizando o termo de São Paulo – que saiu a linhagem do Messias. Deus não sabia disso? É curioso como na Bíblia costumam acontecer acidentes benéficos para a humanidade; temos aqui, novamente, a imagem do pecado original. Deus havia dado tudo de graça para David, e ele quis provar aquilo que não era dele. De novo o homem desprezou Deus, de novo alguém foi condenado à morte, de novo Deus faz do pecado um pretexto para nascer Jesus Cristo, o Salvador do Mundo. *Devemos lembrar que a imagem do amor como elaborada na idade Média, o amor cortês, não existia em nenhuma parte na Antiguidade. Para que o amor cortês fosse elaborado, era preciso levar em consideração a parte do evangelho onde Jesus diz que o casamento é a união entre um homem e uma mulher até a morte de um deles, ocasião em que os discípulos demonstraram grande perplexidade, dizendo: “mas, Senhor, isso é muito difícil, quem vai querer casar assim?”. Ora, naquele tempo era inconcebível como que um casamento poderia ser somente entre um homem e uma mulher até a morte. A imagem do amor cortês certamente contribuiu para que o matrimônio cristão fosse algo mais desejável, incutindo esse senso na população. Na Antiguidade essa imagem do casamento como sendo a união de um homem e uma mulher até a morte de um deles praticamente não existia, não tinha nenhuma elaboração literária, de modo que esse tipo de relação não era concebível como trajetória de vida humana, e, portanto, nem era algo normalmente desejado. Assim, é normal que as passagens bíblicas que tratam do amor, desse amor que é forte como a morte, não nos pareça com o amor tal como foi projetado na Idade Média, mas isso não significa que não seja a mesma coisa no seu princípio. As instituições da Antiguidade são bastante diferentes, e é normal que David não projetasse o seu amor por Bet-Sheba da mesma maneira que um cavaleiro medieval o faria, mas isso não significa que ele não a amasse do mesmo modo. Seguindo esse raciocínio, podemos imaginar que Jacó também amou Raquel desse jeito, até o fim da vida, mas não precisava projetar a sua relação com ela como fazem os cristãos da Idade Média que também sabiam amar, porque ele não possuía as mesmas imagens disponíveis com que poderia artisticamente compor a vida. E é interessante notar também que o próprio Abraão teve uma concubina, de acordo com o livro das Crônicas. Essa concubina é omitida no Gênesis, parece não ter importância (ao menos para a salvação da humanidade), seu nome é omitido (tal como o nome das concubinas de David, etc.), mas é intrigante que um patriarca como Abraão tivesse UMA concubina; por que não

mais de uma? Por que não nenhuma? Aqui temos uma certa liberdade para imaginarmos. **Uma outra coisa interessante de se notar, é que assim como os mandamentos de Deus se referem primeiro à ordem social (os Dez Mandamentos), Deus mesmo costuma “respeitar” as instituições humanas, (se não as aprova, ao menos não as rejeita de todo), de modo que Ele aceita a legitimidade de todas as esposas dos reis de Israel e dos Patriarcas, reconhecendo o direito dos filhos delas de herdarem o trono ou abençoando os filhos delas por meio da benção do patriarca da família. De modo semelhante, Deus abençoa os matrimônios, por meio da Igreja, ainda que não seja baseado no amor mútuo, ainda que haja apenas outros interesses por detrás dele, caso os noivos estejam de acordo em se casarem e prometerem fidelidade e educar os filhos na fé. Assim, o casamento, mesmo quando é apenas uma instituição social usada para unir pessoas que não se amam verdadeiramente, mesmo assim ele é abençoado e é irrevogável até a morte. E, de fato, o esposo tem direito sobre a esposa, e viceversa, mas o amante não tem direito sobre o corpo da amada, e vice-versa. Por isso existe aí uma tensão: entre a Igreja que institui o casamento podendo abençoa-lo mesmo quando não há amor, e o verdadeiro amor, que não respeita o casamento e nem pede permissão a ninguém para acontecer, podendo acontecer nas circunstâncias mais desfavoráveis; o casamento é uma escolha, depende da vontade livre, já o amor é uma determinação, não depende muito da gente. Deus instituiu o matrimônio; o homem deve procurar se utilizar dele do melhor modo, respeitando as Leis de Deus. Há muita confusão no mundo. O que acontece, então, quando não somos Rei David, e não somos Shequém, e não podemos raptar a mulher que amamos, nem seduzi-la, nem cometer adultério? Não me parece que esse tipo de amor aconteça a todo mundo igualmente, me parece mais é que a maior parte das pessoas não se sentem como se existisse apenas uma mulher/homem para elas no mundo. Quem pode esperar 7 ou 16 anos pelo seu amado, tal como o fez uma personagem da Jane Austen? Ou esperar a vida inteira? é possível, mas creio que raro. Nas Sagradas escrituras me parece que a única forma de encontrarmos um tipo de amor não correspondido é o de Yaweh por Israel (afora as imagens secundárias de Sansão ou Oséias); Yaweh esperou até o fim do mundo pela Sua amada esposa, que, pior de tudo, se prostituía com ídolos (*Os 3,1: “O Senhor disse-me: Ama de novo a uma mulher que foi amada de seu amigo, e que foi adúltera, pois é assim que o Senhor ama os filhos de Israel, embora se voltem para outros deuses e gostem das tortas de uvas” – o interessante nessa passagem é que Oséias é ordenado a “amar” esta mulher do mesmo modo como Deus “ama” Israel: ele a amava mesmo ou estava apenas figurando o amor por meio do casamento com ela?). Mas, na Bíblia, para ser mais exato, não me parece que exista nada parecido com o que chamamos de amor não-correspondido estrito senso. (É normal que não haja narrativas sobre casos de amor, como o fazem os trovadores medievais, pois naqueles

tempos isso realmente não era possível ser narrado). Explico: parece-me que na Bíblia Israel sempre ama a Deus, sabendo disso ou não, e por isso mesmo é que sofre com as consequências da sua própria prostituição, com a sua própria perversão. Essa estória pode ser resumida assim: Deus enche a Igreja de regalos, a Igreja se afasta de Deus, só para depois perceber que Deus era melhor do que o que ela conseguiu em outro lugar, e aí ela volta para ele arrependida, é perdoada, e fica feliz. Ora, por que diabos o povo de Deus se afastou dele pra começar? Respondo: é que o fruto proibido é “bom de se ver”; isto é, primeiro concebe-se uma ideia acerca daquilo que não me foi dado possuir, e, depois, deseja-se provar daquilo mesmo sem CONHECER de fato o que aquilo É. E adultério é isso. Maria Madalena é um arquétipo da mulher adultera; ela é a prostituta que muito amou e por isso muito foi perdoada. Não existe amor nãocorrespondido na Bíblia, existe apenas a ignorância, o erro, a maldade, a perversão, o desvio, a negação, a traição... ou seja, tudo o que impede que Israel ou a Igreja deseje a Deus mais que qualquer outra coisa. Na verdade, nesse sentido, só existe um único amor na Bíblia inteira, o amor de Deus. O que é amor é Deus, o que não é Deus, não é amor. Essa imagem também aparece na vida das santas místicas, como Santa Catarina de Sena, Santa Teresa Dávila, Santa Clara, etc... Há uma metáfora sobre o casamento da freira com Jesus Cristo, o Esposo Divino; também sobre a guarda da virgindade até as bodas celestes; e às vezes esse casamento celeste é revelado à santa na forma de um casamento simbólico e visionário. Os famosos esponsais místicos, geralmente entre uma freira e o seu confessor, que lhe é especialmente designado por Deus para a tarefa de cuidar da sua alma. Temos também o exemplo de São Bernardo de Claraval, que escreveu uma belíssima carta para sua amada Hermenengarda. A freira é um símbolo da Igreja: a vida dela é especialmente litúrgica; é como uma verdadeira filha da Igreja. O amor da freira por Cristo tem que ser de tal modo que imite o amor da mulher do Cântico dos Cânticos; é assim que os Cantares costuma ser interpretado no seu sentido místico – São João da Cruz e outros místicos são reconhecidos na literatura universal pelos seus poemas eróticos. O amor de Cristo pela Igreja ou pela freira é semelhante, em algum ponto, ao amor de Jacó por Raquel, ou de Sansão por Dalila, ou de David por Bet-Sheba, que é o tipo de amor que expressa o Cântico dos Cânticos de Salomão, posteriormente trabalhado pelos trovadores medievais, que fizeram uma belíssima obra. A minha sugestão é a de que, sendo o Amor um só, ele se manifesta no mundo de diferentes modos, sendo o mais eminente e “natural” aquele em que o homem vê a mulher como sendo a única mulher para ele, a mais bela do mundo. Essa é a imagem do amor de Deus por Israel, também imitado simbolicamente naquelas graças mais místicas, por assim dizer – e digo simbolicamente porque não acho que se possa descrever experiências místicas em outros termos. O próprio amor entre o homem e a mulher, no conjunto das suas manifestações de ordem psicofísica, é um símbolo

daquele Amor entre Deus e a Igreja, e também provém dele. Que outra fonte poderia haver para esse amor, que liga duas pessoas de uma forma tão maravilhosa? A própria ligação entre Deus e o homem é o Amor. E que ligação pode haver entre o homem e o homem senão Deus, que é Amor? E esse amor pode se manifestar de muitas formas, onde a mais clarividente me parece ser aquela em que um homem e uma mulher se desejam ardentemente, de tal modo que não há oceano que apague esse fogo. ***Aqui já podemos começar a imaginar que podem existir variadas manifestações desse Amor na vida das pessoas, e que nem todo mundo se une por puro amor verdadeiro. Por outro lado, deve existir um sentido em haver diferentes manifestações do mesmo Amor, cada uma servindo a um fim específico, sendo diferentes os dons concedidos. Acredito que o amor seja um dom de Deus, abrangendo todo o composto psicofísico do indivíduo, que participa do Amor com todo o seu ser. O amor se torna clarividente para o amante quando ele vê a mulher amada. É esse o mesmo amor que os místicos devem experimentar em um outro estado do ser. Acredito que a experiência dos místicos seja a “melhor parte” do Amor, mas a experiência dos poetas não o exclui, apenas enfatiza a parte menor. A diferença essencial é que o amor como dom se refere a uma pessoa concreta do outro sexo que o sujeito encontra e ama. A meu ver, esse é o arquétipo do Amor de Deus pela pessoa humana – não podemos esquecer que “Deus amou Salomão”; ora, Deus não ama todo mundo? por que Ele “amou Salomão”? Até Deus tem seus prediletos. A mim me parece que esse amor possui a estrutura de uma vocação específica, quer dizer, uma vez que se encontra a pessoa amada – e então nós passamos a amar desta forma – aí nós concebemos uma estrutura do amor entre o homem e a mulher, e fazemos isso baseando-nos na análise da própria intencionalidade do nosso desejo pela pessoa amada, e nos perguntando por que que nós a sentimos e interpretamos de modo diferente de como vemos qualquer outra pessoa. Ela é diferente porque ela nos inspira o conhecimento dessa estrutura, ao passo que as outras não. O dom do amor é uma inspiração. Nós nos empenhamos por aquela mulher, nos empenhamos em dar o nosso melhor, a sermos sinceros, e nos entusiasmamos em descobri-la. Não fazemos isso porque queremos, mas porque encontramos ali o nosso entusiasmo. Uma pessoa pode estar mais ou menos comprometida com o amor. Alguém pode estar totalmente comprometido com o amor, de modo que a relação amorosa se torna o seu principal projeto de vida. A vocação matrimonial acontece “naturalmente” quando dois amantes estão empenhados neste mesmo projeto de vida, que consiste no amor e fidelidade mútuos. O amor é necessário para a vocação, o voto de fidelidade para a realização desse projeto. Por outro lado, podemos nos relacionar com quase qualquer mulher, pois sabemos que 90% das mulheres tem tudo o que é preciso para agradar a qualquer homem. É possível que tenhamos um projeto de vida a dois com quase qualquer pessoa, ainda

que não estejamos apaixonadas por ela, e esse projeto ainda pode ser melhor do que a sua não-realização, pois também é uma obra que irá acrescentar algo ao indivíduo, à sociedade, etc.. Isso é assim porque as leis do corpo e da alma são independentes das leis do coração. No entanto, o fato é que não encontramos igual entusiasmo na relação com as diferentes pessoas, ainda que sejam todas moralmente e espiritualmente elevadas (e isso talvez nem conte muito). O que acontece é que pode acontecer de encontramos nosso entusiasmo em alguma pessoa que consideramos a “certa”; e, às vezes, todo nosso entusiasmo está em uma pessoa só, para o resto da vida, e aí essa é a pessoa “certa”, e nenhuma outra poderá ter a mesma importância que ela. Nós não escolhemos por quem nos apaixonamos; é possível gostar dessa mesma forma de alguma outra pessoa? Não sei. Jacó parece ter amado mais a Raquel a sua vida toda, ainda que Leá tenha sido igualmente bela (segundo uma tradição hebraica elas eram gêmeas), e apesar de Leá ser favorecida por Deus na geração de filhos. Parece que o ápice do nosso entusiasmo já está ali, não podemos ficar mais entusiasmados que isso por qualquer outra coisa. O nosso maior prazer também está ali. Não podemos conceber nada que seja melhor que isso. E pode ser que por isso mesmo nem tentemos nos relacionar (com todo nosso ser) com outra pessoa. Será por termos medo de ter que nos destruir e nos reconstruir novamente, como se fosse possível alterar a nossa essência individual? Mas talvez nem seja possível deixar de amar quem amamos. Será que é possível esquecer o amor se evitarmos lembrar da nossa amada, se afastarmo-nos dela, indo para longe...? No entanto, quem pode garantir que ela não vá continuar lá, na nossa memória, nos influenciando? E como vamos viver o amor ignorando a sua causa? Mas eu acredito que existe um “verdadeiro amor” que não pode ser apagado. Será uma ilusão? Se esse amor não é real, se não é o “eu mesmo” que ama, então, o que é essa experiência? Ou o que seriamos nós mesmos? Creio que menos que uma mentira. A experiência do amor também é a experiência de ser alguma coisa: porque nEle é que somos, vivemos e existimos. Não é possível substituir a mulher amada por alguma outra, a mulher realmente amada, ela é um símbolo vivo do Eterno Amor, e sobrenatural. Sim, é verdade que podemos nos unir carnalmente com quase qualquer outra pessoa, e ter uma vida mais ou menos feliz assim, (nem todo mundo pode ser feliz assim), porém, só existe uma união verdadeira, e é aquela com o verdadeiro amor. Por isso o amor parece-me ter a estrutura de uma vocação específica nesse mundo: se eu não amar aquela pessoa para o resto da vida eu não terei minha felicidade totalmente realizada. Mas nem todo mundo ama desse jeito. Por outro lado, na minha experiência pessoal é assim. Isso é uma vocação no sentido mais essencial, é “vocação” porque é eterno: eu sinto que vou amar essa mesma pessoa desse mesmo jeito pela eternidade. Aí, o que eu mais quero é que nós possamos nos unir no céu, onde não haverá medo nem insegurança. Essa vocação só pode ser plenamente realizada quando aquela pessoa que amamos corresponde num mesmo nível, como no caso de Heloísa e Abelardo, Romeu e Julieta, Lancelot e a rainha, Tristão e Isolda, etc... Aí sim, aí “o amor é forte como a morte”.

Suponhamos agora que padeço de “amor não-correspondido” por uma pessoa; e suponhamos que uma outra garota, bonita, demonstrasse interesse por mim; aí, talvez eu fosse capaz de quere-la também, de até deseja-la, e de ficar com ela. Mas me parece que nunca poderia querê-la pelo mesmo motivo que quero a mulher que despertou em mim aquele amor que é “forte como a morte”. Eu posso querer alguma outra mulher só porque ela tem certas qualidades que me atraem, porque é virtuosa, e outras qualidades que tornam a vida ao lado dela mais agradável, menos dura, de modo que nós poderíamos ser bons parceiros para o resto da vida, e construir uma casa, uma boa obra juntos, ajudando-nos mutuamente. Não é por este motivo que eu quero a “minha” amada, eu a quero porque é por ela que fui ferido de amor; com a visão dela que fui arrebatado. Esta vontade não veio de mim, é só uma constatação de minha parte: eu a amo. É claro que posso amar outras pessoas, outras mulheres, em especial se são belas, mas não com este amor, e mais por causa da beleza ou da virtude delas. Quando se tem este tipo de amor o que importa é o outro como um todo, e nada mais importa; quando nos apaixonamos por qualquer outra pessoa que não seja nossa amada, não parece haver nessa relação aquela ligação profunda e especial que imaginamos ter com nossa amada, de modo que essa união mais parece com uma amizade, uma espécie de parceria que encontra seus limites neste mundo, no corpo material do casamento; nesse tipo de relacionamento, os nossos projetos e sonhos estritamente de união amorosa são mais para este mundo do que para o outro. Quando amamos alguém, queremos estar eternamente intimamente unidos a essa pessoa por quem ela é; quer dizer, queremos estar eternamente no círculo da sua intimidade. Para que essa união possa se realizar aqui na terra, é preciso que as duas pessoas enxerguem esse amor da mesma forma, que elas olhem uma para a outra e se desejem mutuamente da mesma forma, com este mesmo amor soberano. A união consiste em SABER que o outro te ama do mesmo modo que o amas tu. Na terra, a consciência dessa união não pode ser constante, mas deve acontecer em algum momento. Se não acontecer, é porque há algum problema entre o casal. E se acontecer, pode haver vários níveis de realização dessa união, quanto maior for o amor e a consciência dele. Desejar ser íntimo de uma pessoa do sexo oposto é o mesmo que deseja-la no Paraíso. Amar é uma imposição: você simplesmente admite que o Paraíso sem ela não deve prestar. Mas o amor do amigo é querer uma pessoa “do seu lado”, o amor conjugal é querer aquela pessoa “de frente”. Existem também diferentes modos de desejar ver uma pessoa no Paraíso, tantos quantos os modos do amor.

A forma do amor conjugal

“Ninguém pode servir a dois senhores”. Chamo de amor conjugal aquele amor entre um homem e uma mulher que os leva a desejar ser para o outro e servi-lo de modo exclusivo, dedicando-se a ele exclusivamente do modo que uma mulher pode se dedicar a um homem e vice-versa. O ciúmes está necessariamente presente, seja de modo patente ou latente, pois na relação exclusiva, tal como é a relação sexual, existe um senso de propriedade, e o algo que me pertence ou que me é devido é aquilo que o outro faz enquanto mulher ou varão. Isto é, minha mulher, enquanto age a partir da sua sexualidade, pertence só a mim, só pode estar relacionada comigo, só pode se dirigir a mim nesse sentido. Essa exclusividade faz parte da forma do relacionamento conjugal. Existe uma diferença entre o que a mulher é para um homem e o que ela é para o seu homem. Para a mulher dos Cantares só existe um homem para ela – o seu homem – de modo que as outras mulheres perguntam: o que tem o seu amado de diferente dos outros? E ela responde que ele é em tudo mais agradável. E o amante diz: “como o lírio entre os espinhos, assim é minha amiga entre as jovens.” (Ct 2,2). A mim, parece-me que toda mulher é criada para um só homem, e vice-versa. É curioso que o próprio escritor dos Cantares, se foi Salomão, ele mesmo teve 700 esposas, como que a provar que essa mulher não existe. De qualquer modo, entre os humanos, parece-me que a forma do amor perfeito é o amor conjugal, pois é aí que nossa natureza humana pode encontrar sua plena realização. A relação que uma pessoa tem com seu ente amado não é exteriormente diferente da que ela pode ter com as outras pessoas; a diferença é interior. Reage-se integralmente de uma forma diferente quando se trata do seu amado ou quando se trata de qualquer outra pessoa. O significado das relações e das atitudes é que são diferentes. A “minha mulher” é diferente de todas as outras mulheres porque ela é a única que é “minha”, que me foi dada em casamento. Quando esse significado é aceito ele se reflete na totalidade do ser da pessoa, e ela passa a interpretar seu conjuge de uma forma diferente de como interpreta as outras pessoas do sexo oposto. Sente-se diferente diante do seu marido ou de outro homem qualquer. Pode-se ter amigos do sexo oposto, de verdade, mas se a esfera sexual adentrar esta relação de amizade ela será manchada e correrá perigo. É por fraqueza que dois amigos se relacionam sexualmente; se eles forem pessoas castas, sua amizade não se degradará na busca de prazer. Mas, se eu estiver correto ao afirmar que o amor entre um homem e uma mulher tem uma forma própria, e não é só uma amizade entre pessoas que se dão ao prazer usufruindo do corpo do outro, mas que consiste realmente numa união de almas individuais que permanecem voltadas uma para a outra enquanto se amam, então temos que buscar essa forma própria do amor e diferenciá-la da amizade entre homem e mulher.

A amizade entre um homem e uma mulher é arriscada porque a presença do sexo oposto, em certas condições, gera dor e tensão, que se podem ser aliviadas por meio do sexo. São os apetites concupiscível e irascível que movem o sujeito na direção da relação sexual. Quando eu amo uma mulher, também são meus apetites que me movem para o sexo com ela, mas o que eu quero não é o sexo e sim a união pessoal, que ela seja “para mim”; por isso o sexo com ela é tão desejável. Por outro lado, é triste o casal que não pode ter essa união mas que a busca no sexo. O sexo não efetiva união nenhuma, mas a união no amor é “sexual”. Quando duas pessoas que se amam fazem sexo elas estão fazendo o que o coração manda; a relação que elas tem é essa, é sexual, ainda que não possam de fato fazer nada sexual uma com a outra. E essa relação não depende de nada que não seja o sentimento de “propriedade” da outra pessoa, de que somente ela se refere a mim enquanto mulher de modo que eu seja o seu homem. Se dois corações se possuem mutuamente dessa forma eles se amam com amor conjugal. O amor conjugal, dessa forma, tem a finalidade de ser união eterna, e se sobrepõe à finalidade biológica do sexo; também se sobrepõe à finalidade humana e religiosa do sexo, que é a geração e educação dos filhos. Acontece que, ao que parece, a coisa mais fácil que tem é as pessoas se enganarem com relação a esse amor. Parece que raramente as pessoas se amam assim; geralmente as pessoas vivem o amor conjugal apenas na sua estrutura material e temporal, e não amam realmente seu conjuge com um amor que vem da eternidade. É como se elas imitassem esse amor sem que realmente o vivessem na carne.

Significado do amor conjugal "Seja bendita a tua fonte! Regozija-te com a mulher de tua juventude, corça de amor, serva encantadora. Que sejas sempre embriagado com seus encantos e que seus amores te embriaguem sem cessar!" (Provérbios 5, 18-19).

Significado do adultério “Por que hás de te enamorar de uma alheia e abraçar o seio de uma estranha? Pois o Senhor olha os caminhos dos homens e observa todas as suas veredas. O homem será preso por suas próprias faltas e ligado com as cadeias de seu pecado. Perecerá por falta de correção e se desviará pelo excesso de sua loucura.” (Pr. 5, 20-23). “Porque os lábios da mulher alheia destilam mel; seu paladar é mais oleoso que o azeite. No fim, porém, é amarga como o absinto, aguda como a espada de dois gumes.” (Pr. 5, 2-3).

O adultério aqui aparece como um desvio do verdadeiro caminho ao coração. A “mulher alheia” é pura sedução pelo prazer, pela promessa de prazer. Mas é um prazer desconhecido, apenas imaginado, onde não há a busca de união. Desviar do caminho é tomar o prazer como finalidade. A “mulher estranha” não tem identidade, sua identidade não interessa, ela é desconhecida. A “mulher alheia” não é “minha mulher”, não me oferece a si mesma, mas apenas convida ao prazer sem sentido. Ao se desviar do caminho o homem necessariamente se prende nas redes enganadoras da mulher alheia, quer dizer, do prazer sem sentido, do ciclo infinito de satisfação e insatisfação que é repetidamente incitado, oferecido, loucamente percorrido, e frustrado.

Só porque amamos alguém isso não significa que devemos empreender todos os esforços para tê-la, para conquista-la, ou que devemos fazer tudo para ela e não nos preocuparmos com mais nada. E, se já a temos, isso não quer dizer que só porque a amamos mais que tudo nesse mundo devemos fazer tudo para agradá-la, etc.. O amor não exclui a verdade. Mas não é por causa do nosso amor pelo outro que agimos como idiotas, egoístas, e pessoas ruins e mal educadas, é por causa do nosso amor próprio. É por causa do amor próprio que acreditamos dever preferir o que nos é próprio do que aquilo que é verdadeiro; por isso o homem é mal juiz nas coisas justas. “... Não é nem a nós mesmos e nem aos nossos próprios bens que devemos nos devotar se pretendemos ser grandes, mas sim ao que é justo...” disse Platão (As Leis 732a). Não se pode usar o amor como justificativa da injustiça que se pretende cometer, senão que é o amor próprio a causa dela.

Teoria do amor não-correspondido A meu ver, há duas atitudes possíveis com relação ao amor não correspondido: nós podemos pensar que a outra pessoa não tem nada a ver conosco, isto é, que não há nenhuma ligação essencial entre eu e ela, de modo que se ela ficar com outra pessoa ela sai ganhando, e se eu ficar com outra pessoa eu saio perdendo; ou, de outro modo, pode ser que nós tenhamos sim alguma ligação, alguma coisa a ver um com o outro, e que eu, que estou amando, tenho um potencial mais elevado para fazê-la feliz, para fazê-la vislumbrar o mistério do amor num nível mais elevado ou participar disso mais conscientemente, de modo que se ela não conseguir prestar atenção em mim ela sai perdendo, e se eu ficar com outra pessoa ela também perde algo, ainda que sem

saber, simplesmente porque não pôde ver o que é melhor, ou porque isso não lhe foi dado. Por exemplo, eu posso me apaixonar por outras mulheres, que também podem ser muito bonitas, e também posso ficar encantado por elas; mas me parece que eu não vou conseguir me dedicar a qualquer uma delas tão sinceramente como eu me dedicaria à minha amada, isto é, pelo puro desejo de me unir a ela. No caso de ter que ficar com outra mulher, teria que pensar em como construir um relacionamento saudável, e assim teria que cultivar o relacionamento de forma mais ou menos artificial, como se tivesse que descobrir também um modo de amá-la – nesse caso, o amor evolui com o tempo; enquanto que com minha amada, tudo fluiria mais naturalmente, já que é o próprio amor quem me move na direção dela, e não a sua beleza. Se for assim, então é possível que outros homens gostem da minha amada de um outro modo, por exemplo, porque ela é bonita, virtuosa, jeitosa, ou porque é fácil ou conveniente, etc... e não porque simplesmente a viram e ficaram tomados de paixão, tal como eu fiquei, só por ela e por nenhuma outra. E, seguindo essa hipótese, teríamos então que ela estaria perdendo um bom amante para ter um outro sujeito que não poderá amá-la com tanta força (apesar de talvez poder dar a ela outras coisas que ela queira). Por outro lado, é possível que ela nunca nem se dê conta do que perdeu, e, por isso, porque não almeja nada mais no amor, não sente que perdeu, e continua feliz para o resto da vida com o que já tem, sem desejar mais nada, de modo que o único que parece que perdeu alguma coisa fui eu, já que eu sempre sofro por estar longe da pessoa amada. Essa hipótese depende do que é que faz com que nós nos apaixonemos dessa forma. Se o que nos faz nos apaixonar por outra pessoa é alguma coisa substancial, algo que informa quem nós somos, então essa hipótese é válida. Nesse caso, a pessoa amada estaria deixando de ver algo para ela precioso se desprezasse o amor do seu maior amante; seria como no caso da Bela e a Fera: se a amada desprezar tal amante, não conseguindo enxergar o príncipe que a espera por detrás das aparências, então ela também terá perdido um grande amor. Mas, de qualquer modo, quem mais sofre é o amante, porque sofrimento é amor. Mas, se admitirmos que o motivo da paixão é algo acidental à nossa essência individual, que não informa quem nós somos de verdade, e que é só um engano e ilusão causada por fatores desconhecidos que nos influenciam desde fora, então aí esse amor é como uma doença que atinge uma pessoa só, que a faz sofrer irracionalmente, de modo que o amante nada tem a ver com a pessoa amada, que continua vivendo sua vida sem nenhum problema. Nesse caso, a forma correta de se relacionar seria buscando pessoas que estão dispostas a ter com você o mesmo que você quer ter com elas, sem que para isso precisemos enxergar a nossa amada como sendo a única no mundo para nós, mas, pelo contrário, admitindo que existem “muitos

peixes no mar” e que se não der certo com ela poderá aparecer uma outra depois, pela qual também podemos nos apaixonar igualmente. *** Ciúmes Vem do Latim ZELUMEN, de ZELUS, “desejo amoroso, ciúme, emulação”, do Grego ZELOS, “zelo, ardor, ciúme” O ciúmes é medo de perder o amor da pessoa amada? Essa definição me parece superficial demais. O meu ciúmes se refere a tudo o que a minha mulher faz que não pode ser interpretado por ela como tendo alguma coisa a ver comigo. Ciúmes é uma manifestação do meu desejo de estar unido à minha mulher, e que se manifesta quando há falta de união, quando eu não posso interpretar o que ela faz como tendo algo a ver comigo, quando existe uma área na vida dela em que eu não posso entrar de algum modo. Todo mundo que não está perfeitamente unido sente ciúmes. O ciúmes não é ciúmes do corpo da minha mulher; mas no momento em que ela se entrega a outro homem, isso significa que eu perdi o meu lugar na vida dela, que houve uma separação radical, análoga à idolatria. Existe também uma ordem no amor, na relação amorosa, onde cada coisa deve estar no seu devido lugar; se essa ordem é quebrada, então temos o ciúmes, que manifesta o zelo do amante pelo relacionamento. A esposa deve ser devota ao seu marido e vice-versa, tudo o que ela faz deve voltar e se referir a ele de algum modo, ela deve fazer esse esforço de interpretação para que tudo na sua vida tenha um lugar dentro da sua relação amorosa, e não fora; qualquer espaço “fora” é um ambiente de risco para o relacionamento. Por exemplo, se o marido gosta de apreciar arte, mas a sua esposa não, então ele pode apreciar a arte levando consigo a sua esposa em espírito, se relacionando com ela enquanto contempla as obras de arte – de modo que ele sempre vai saber como falar com a sua amada sobre a sua relação com a arte –, ou ele pode excluí-la da sua apreciação das obras de arte assumindo que “isso não tem nada a ver com ela” – e aí eles não irão nem tocar no assunto; nesse último caso, o seu gosto por arte será um ponto fraco da relação, um lugar onde ele pode se relacionar com outras pessoas como se fosse solteiro, pois nesse âmbito o seu relacionamento não tem influência. A falta de esforço de interpretar a vida no sentido da união com seu esposo/esposa é também falta desse amor romântico. Se minha mulher não me conta o que está se passando com ela, ou o que ela faz ou pensa, de um modo que revele que ela me levou em consideração, e não conversa comigo sobre as coisas que ela faz na vida dela que ela considera biograficamente relevantes, então aí eu sinto ciúmes dela, isto é, eu sinto um desejo ardente de restaurar a comunhão naquela parte da relação aonde apareceu um “buraco”. O ciúmes é maior quando as pessoas se amam verdadeiramente, porque aí o ciúmes não é simplesmente ciúmes do corpo do outro, de ver seu amado se deleitando no corpo de outro, mas o ciúmes aqui é zelo pelo amor, é a tensão máxima entre o desejo

de ver seu amado lutar pelo seu amor e o medo desesperado de vê-lo cair e ceder às tentações da carne e do mundo. A diferença entre esse ciúmes de pessoas que se amam e o ciúmes que existe no casamento ou entre pessoas que não se amam mas que possuem um contrato conjugal é grande. O ciúmes entre pessoas só casadas, que não se amam verdadeiramente, é um ciúmes do corpo e da honra, quer dizer, da autoimagem. Não é um zelo pelo amor, mas ódio de quem o ofende, inveja de quem usurpa um privilégio só seu, medo de ser envergonhado perante o mundo, orgulho ferido por ter o seu ego quebrantado, medo e insegurança por ter perdido a sua identidade egoísta e imaginária. Tratado do Amor Cortês, de André Capelão, pg.129: “... o verdadeiro ciúme sempre teme que seus serviços não bastem para conservar o amor da bem-amada, teme que o amor dela seja menor que o dele, e imagina as torturas que sofreria se ela tivesse uma ligação com outro amante, ao mesmo tempo em que considera ser isso inteiramente impossível.”. – O homem que ama verdadeiramente deve fazer as seguintes considerações: 1- meu amor vem de mim ou vem da minha amada? Nenhum dos dois, ele só pode ser dom de Deus, ou então não é amor; então como eu posso temer perder o amor da minha amada se não sou dono nem mesmo do amor que sinto por ela? 2- Eu posso escolher amar ou desamar alguém? É certo que não. Então, como posso esperar da minha amada que ela me ame ou que me ame tanto quanto eu a amo? 3- Por que eu deveria me preocupar demasiadamente se minha amada está sendo fiel ao amor que tem por mim? Saber que eu sou fiel a ela deveria ser o suficiente. E, se ela é culpada, um dia se descobrirá, pois onde há amor verdadeiro não pode haver falsidade, e quem sabe amar sabe farejar a mentira e o disfarce no outro; se ela é culpada, então, eu já a perdôo, e, quando descobrir o que houve, sofro tudo com paciência desejando que ela se arrepende e volte para mim que a amo. Não a ofendo, antes a defendo de si mesma e dos outros, e a instigo a voltar para mim porque a amo de verdade. Se eu pensar desse jeito, jamais serei desviado pelo ciúme.

A questão do ciúmes, que sempre existe entre verdadeiros amantes, a meu ver só pode ser resolvida tendo em vista que só Deus sonda os corações e os conhece as intenções do espírito humano. A confiança em Deus é fundamental para o união no amor entre um homem e uma mulher. Se amo do fundo do coração, Deus o sabe, mas se minha mulher me ama igualmente, eu não posso saber, só Deus sabe; portanto, se minha mulher diz que me ama, só me resta acreditar nela e confiar que Deus dará a ela corresponder o amor que me deu por ela, de modo que já basta que eu saiba que a amo do fundo do coração. Não posso esperar que minha mulher me ame deste ou daquele jeito, mas tenho que ter fé que Deus também quer que ela me ame como eu a amo, se meu amor por ela veio mesmo só de Deus. Então, tendo fé em Deus, e no

amor que ele me deu por ela, acredito assim no amor dela por mim. Eu acredito no amor dela por mim porque eu a amo com Deus no coração. Assim, se ela não me ama, devo ter paciência e esperar; se ela me trair, não será pior para mim do que para ela: devo ter paciência e tentar persuadi-la caridosamente de se arrepender do seu erro. Em qualquer caso, quem ama mais não deve exigir mais amor, ao contrário, deve amar mais, perdoar mais, e ser mais paciente e humilde; nunca ceder ao ódio, à irritação, ao ciúmes, à inveja, mas sempre afastar pensamentos ruins e agir com simplicidade para com a amada. *** Hoje em dia, me parece que a sucessão dos eventos que levam ao casamento está algo embaralhada. O beijo, que era para acontecer para selar a união, acontece apenas para dar ocasião à essa mesma união, que ainda não aconteceu; o sexo, que era para ser a consumação da união, aparece agora para ser motivo e inspiração para se alcançar essa união. As coisas me parecem estar um pouco invertidas. Quando um jovem namora muitas pessoas, e faz sexo com todas as pessoas que namora, o que ele está fazendo afinal? Qual o sentido disso? A mim, me parece que ele está errando o alvo. Não era para as pessoas estabelecerem a sua intimidade através do diálogo, primeiro, para que daí elas fossem incitadas ao beijo carinhoso, ao beijo romântico, e só mais tarde ao sexo? Isto é, quando os amantes estiverem se desejando ardentemente, aí estarão prontos para um compromisso para a vida toda, certo? E o que é o sexo fora dessa ordem? Parece-me ainda que hoje as pessoas são facilmente levadas por momentos de grande excitação, que não significam nada de profundo, mas que levam direto ao sexo. Mas se o sujeito só quer fazer sexo porque se sente muito excitado, então o sexo para ele é só um balde de água fria no seu sofrimento causado pela excitação. Não há aí uma confusão entre desejo sexual e amor? O amor é maior que o desejo sexual, “o amor é paciente, o amor é bondoso. Não inveja, não se vangloria, não se orgulha. Não maltrata, não procura seus interesses, não se ira facilmente, não guarda rancor. O amor não se alegra com a injustiça, mas se alegra com a verdade. Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor nunca perece; mas as profecias desaparecerão, as línguas cessarão, o conhecimento passará” (1 Cor 13:4-8). Mas a união do casal não consiste no sexo. Parece-me que hoje o sexo funciona como uma espécie de “abertura”, uma atitude que coloca o casal mais à vontade para se relacionarem mais intimamente, criando uma disposição para a busca da intimidade um do outro. O sexo não é mais a consumação daquele amor, ele é um instrumento para tornar o relacionamento suportável e/ou para dar força e impulso ao relacionamento. Funciona mais como uma alavanca. Os jovens não sabem mais se relacionar, é por isso que precisam desesperadamente criar situações de êxtase para

poder sentir que estão ligando-se um ao outro. Mas o sentimento passa, e aquela pessoa já não parece mais tão especial assim para você. Então começa tudo de novo. É claro que há a quase total obscuridade em nossa cultura moderna sobre o “por que eu deveria ‘esperar’ afinal de contas?”. A total obscuridade acerca da moral sexual, que diz respeito a como tomar decisões felizes no relacionamento, e, por outro lado, certa ideia dominante no ar de que o sexo é um prazer ao qual todo casal deve se submeter, isso faz com que os jovens em geral prefiram arriscar uma relação sexual mesmo sem saber se aquela pessoa é a “certa”, se ela vai ficar com você para o resto da vida ou não. Daí, o tipo de namoro que existe hoje em dia praticamente já significa que os namorados estão abertos ao relacionamento sexual um com o outro. Isso significa que pessoas que tem dois ou três namorados tiveram uma relativa intimidade com eles, porque mesmo se o amor deles tiver sido limitado, eles não podem ser indiferentes ao que fizeram um com o outro; as nossas ações exercem grande influencia na nossa psique; o sexo exige interpretação. O sujeito vai ter que interpretar e saber contar para ele mesmo o que houve entre ele e aquela pessoa, e cada pessoa com quem ele se relaciona irá deixar uma marca, um vazio. Se a pessoa repete esse ato muitas vezes, ela se torna cada vez menos capaz de amar uma mesma pessoa totalmente, com todo seu ser. Os seus parceiros/companheiros vão parecendo cada vez menos “especiais”, e mais como todas as outras pessoas; daí as pessoas viram “tipos”. E aí séries americanas como Two and a half Man e How I Met Your Mother ficam bastante verossímeis, onde todo o enredo é baseado na premissa de que é “normal” nos relacionarmos com o sexo oposto por “tentativas”, e podem assim cativar a imaginação do publico jovem. Para essas pessoas que não tiveram a experiência de serem tomadas de amor na verdade, de se apaixonar por uma pessoa só para o resto da vida, assim, de repente, como quem cai numa armadilha, para essas pessoas me parece que é muito ruim se relacionar por “tentativas” tão irresponsavelmente ou inescrupulosamente, afinal, estão se entregando a um risco não pouco grande, risco de se tornarem insensíveis àquele amor mais alto e sublime.

Vocação para o amor Tu és meu projeto de vida, minha querida! meu sonho é testemunhar tua vida, tuas alegrias e tristezas, na saúde e na doença, e todos os momentos da tua vida; quero estar junto a ti, dormir ao teu lado... ver-te levantar da cama, ao amanhecer o dia, descabelada. Quero casar contigo, e ter filhos contigo; contemplar-te amamentando meu filho, que saiu do teu ventre. Quero te servir, sendo homem para ti, trabalhando para ti e nosso filho, e, principalmente, nas pequenas coisas, aquelas que são só para ti: cozinhar, arrumar casa... Quero falar-te sobre as minhas coisas, e ouvir como foi o

teu dia, e interpretar contigo a nossa vida. Quero admirar tua vocação de perto, e que tu admires a minha, e que a deseje para a eternidade. Quero que envelheças contemplando tudo o que Deus te deu, e dizendo com Ele: “tudo isso é muito bom”. Envelhecendo na idade, crescendo nas virtudes, na paciência, na humildade, na tolerância... pacificando o espírito, perdoando as faltas, alcançando misericórdia... sentindo gratidão ao contemplar toda a obra que Deus fez em nossas vidas... assim quero passar o resto de meus dias ao teu lado, para encontrar-te depois no Paraíso do Céu, e te agradecer por ter me dado teu favor, por ter me aceitado na tua vida, por ter me dado uma família e ter cuidado dela fazendo-a crescer como uma árvore. *** Nenhum poeta, me parece, jamais descreveu o objeto de seu amor. Ele ama a pessoa inteira; ela toda. Cada gesto, feição, ação ou qualquer outro acidente da pessoa não significa nada por si só, mas só despertam o encantamento porque são daquela pessoa. Ela deixa sua marca por onde passa, deixa suas impressões em cada ação, em cada objeto que toca. Esse objeto, agora, tem um valor especial, porque ela o tocou, ela deixou ali uma parte de si, o objeto guarda a memória daquela que o tocou: há algo dela ali. O mesmo com suas ações; as ações dela são carregadas de significado, de intensões; elas expressam aquela pessoa que as exerce. A mão dela é especial, porque é dela: ela também está na sua mão. Suas feições são reveladoras de sua essência, refletida ali como num espelho. Seus olhos são a luz dos olhos de quem a ama, porque neles nós enxergamos realmente, neles é que nós contemplamos as coisas que são. E como descrever isso? Como podemos descrever a pessoa como tal, como ela mesma? Como podemos descrever o seu “self”? Não há descrição que seja suficiente, mas nenhuma descrição é necessária, pois quem vê já traz na alma o que deseja, e se já o tem de algum modo, por que ir buscar isso fora dele mesmo? Assim, o poeta descreve como a visão da pessoa amada causou nele um estado de pura perplexidade consigo mesmo; como se os olhos dela tivessem iluminado uma parte essencial dele; como se a mera visão dela o tornasse consciente do seu nada. *** Não é possível ter o mesmo grau de intimidade com todas as pessoas. Seu interesse por uma pessoa pode ser limitado, seu entusiasmo em conhece-la pode não vir, pode não ser “acionado”: simplesmente não acontece nada. Nós podemos dar ocasião e oportunidade para que as coisas aconteçam, mas se elas acontecem ou não dependem de inúmeros fatores que estão longe de nosso controle e nosso conhecimento. Sendo assim, é provável que não seja possível você ter o mesmo grau de intimidade com qualquer pessoa com quem você possa se casar. É claro que o amor pode crescer ao longo do relacionamento, toda vida humana é interessante e digna de ser conhecida, mas essa diferença continua existindo: umas pessoas te interessam mais que outras, de modo que é mais fácil alcançar uma intimidade maior com aquelas do que com

estas. Para mim, pessoalmente, eu posso ver que existiram pessoas por quem eu me interessei bastante, e depois de um tempo, mais curto ou mais longo, eu acabei desinteressando completamente da pessoa, de modo que não me via ligado a ela de modo algum. O que houve? Parece que eu mudei, e considero que me tornei “maior” do que eu era, e que aquelas pessoas não mudaram junto comigo; talvez nossa conexão fosse fraca desde o início, talvez não fosse uma conexão “substancial” mas apenas “acidental”, isto é, meras aparências nos uniam. Por outro lado, existem aquelas pessoas pelas quais eu me interessei, e que me interesso cada vez mais, e que me relaciono com elas a anos sem perder o entusiasmo e o espanto de vê-las. Uma pessoa, entre essas, é especial para mim, porque nela eu encontro minha realização pessoal: eu quero me relacionar com ela de tal modo que eu me torne essa pessoa que “diz respeito a ela”; a minha pessoa se refere á pessoa dela; nós somos um. Isso se dá por meio da contemplação amorosa: eu contemplo o “vir-a-ser” dela neste mundo, aceitando-a e querendo-a, e é a ela que eu desejo “responder” com a minha vida. Eu preciso conhece-la para ser eu. Sem ela eu sou como uma pessoa sem seus meios de realização neste mundo. Como ser feliz? Se eu a ignoro, ignoro uma parte essencial de mim mesmo; mas se não a posso ter, como ficarei? Creio que ficarei bem, porque o que eu amo eu já possuo como Forma, já é “eu”; ainda que só tivesse visto minha amada duas vezes na vida, como Dante Alighieri, ela continuaria comigo para sempre, em mim, e eu nela. E aí só somos levados ao desespero pelo desejo do corpo de se unir à ela, um desejo frustrado, antinatural, que é como que a condenação do próprio corpo. (é o desejo do corpo de tomar o lugar da alma). Mas como o corpo e a alma estão indissoluvelmente ligados, quando o corpo quer uma coisa, a alma também se volta para essa coisa, assim como quando a alma quer se unir a alguém, o corpo também deseja imitá-la. Dessa interação nasce o desejo sexual, um desejo irrealizável nesse mundo, que só pode ser alcançado pela morte do corpo para si mesmo. Quando o corpo estiver submetido à alma, a experiência que ele busca no exterior se concretizará no seu interior, pois aí a alma terá liberdade para se unir com a outra alma no seu exterior; porque aí o corpo se nutrirá da carne e do sangue do espírito, e a alma será tão sensível quanto um coração, ao toque de outra alma. *** O casal deve ter uma conexão mais profunda. Se essa conexão não vem espontaneamente, de um modo que não precisa ser verbalizada, então temos que fazer alguma coisa. O método é o marido se abrir para sua mulher e vice-versa; mas essa “abertura” no diálogo não é só falar sobre o que você quiser, você tem que criar uma interpretação da vida com sua esposa e contar para ela os seus projetos, como você a vê, como você se vê, como vê o relacionamento. É esse o campo que cria ocasião para uma conexão mais profunda. E isso exige algum esforço de artista, e requer que se tenha algum interesse real na pessoa amada, que se dê à pessoa dela a devida atenção curiosa e interessada, que se tente descobri-la com entusiasmo.

Quanto maior o desejo, maior o medo e insegurança – é preciso virtude no relacionamento amoroso Ainda que eu namore a pessoa que amo, nesse mundo, haverá o medo e a insegurança para contorcer minha alma. Se não a tenho, é como vencer uma guerra sem precisar lutar, porque morro só no desejo não atendido. Se eu a tenho, o meu desejo pode se realizar, meio imperfeitamente, mas ganho em troca medo de perde-la, (ela pode se apaixonar por qualquer outro, e parece que sempre vai haver ocasião para isso), medo de não ser suficiente para ela, de não poder contentá-la, de não ser interessante para ela; e aí vem a insegurança: quem eu devo ser? o que devo fazer? será que eu posso dizer isso ou fazer aquilo? Ela ainda gosta de mim? Eu posso fazê-la feliz?...

Quando o amor é mais arrebatador, o desejo fica muito intenso e a união íntima se torna mais urgente; sofre-se mais. Se o amor não é único, especial, a pessoa fica mais paciente para conhecer o seu parceiro, e menos exigente, menos ansioso, porque sofre menos. Mas quando o amor é mais intenso, a busca pela fusão das almas é prioridade para a pessoa; ela precisa que o outro conheça seu amor, e deseja conhecer profundamente aquele a quem ama, e se sentir conectado a ele de verdade.

Matrimônio O matrimônio existe porque reflete certo atributo divino; este é o fundamento do matrimônio. As pessoas casam porque até a Encarnação do Verbo essa era a forma mais perfeita conhecida de se viver à imagem de Deus. Por isso o casamento sempre existiu, mesmo com imperfeições, porque o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus, mesmo que tenha pecado. No início, Deus fez um homem e uma mulher; poderia ter feito vários casais, não Lhe pareceu justo. Parece que a Terra foi feita para Adão e Eva, não no tempo, mas na eternidade: era para continuar assim mesmo. Isso é um Arquétipo. Só existe um Adão e uma Eva, e todo mundo que se propõe a imitar o ato de procriar iniciado por estes dois, deverá ser também um outro Adão e uma outra Eva, “carne da minha carne e ossos dos meus ossos”: inseparáveis na carne. É a carne que pertence à outra carne. Desde então, todo homem e mulher que se casa se unem na carne, fazendo memória da Criação, como um sinal, como quem diz: “ela também é carne da minha carne e ossos de meus ossos”. O matrimônio renova sacramentalmente e revela aquele ato da

criação do homem, quando Deus cria o homem como varão e mulher, proclamando que “não é bom que o homem fique só”. Deus cria o homem; o homem atualiza o matrimônio; Deus abençoa o matrimônio. Ora, Deus só fez de Adão uma única Eva; isso significa que só é possível contrair um matrimônio: a costela que foi retirada não pode ser reposta, a Eva que foi feita não pode ser desfeita. Do mesmo modo, não se retirou de Adão outra costela, portanto, nunca houve uma segunda Eva, e, mesmo se houvesse outra mulher, não seria de Adão, seria uma estranha. O matrimônio é o âmbito da intimidade entre um homem e uma mulher. A relação entre marido e mulher, por ser íntima, exige fidelidade mútua. A palavra fides designava, nos primórdios da língua latina, a "adesão [do devoto aos preceitos de sua religião]". Ou seja, o matrimônio é uma missão que se toma para si de servir o outro de livre e espontânea vontade. É um voto de escravidão perpétua. Agora o seu corpo pertence à sua esposa e você deve servir só a ela enquanto varão. É por isso que os Apóstolos disseram: “se for assim não vale a pena casar”, porque aparentemente não há vantagem alguma em alguém se prender a outra pessoa dessa forma, de modo que seria melhor se unir a pessoa sem casar e assim poder permanecer livre. Por outro lado, a Bíblia chama o sexo fora do casamento de “prostituição”, a virgem deve esperar até o casamento. O que leva as pessoas a se casarem é um projeto ou desejo de ter um projeto de vida em comum com a outra pessoa do sexo oposto. O matrimônio é antes de tudo um projeto de vida unificado de um homem com uma mulher; não qualquer tipo de projeto, mas aquele fundamentado no encontro sexual – se não há relação sexual não há necessidade nenhuma de se falar em casamento. É importante notar que esse projeto sempre inclui a possibilidade de ter filhos, porque ainda que o casal seja estéril o ato sexual continua sendo o caminho natural para a geração de filhos, o que significa que todo esse projeto já inclui automaticamente a estrutura da família. Ou seja, esse projeto já tem a estrutura de uma família; quando esse projeto é baseado em votos de amor e fidelidade, temos aí o que chamamos de matrimônio.

A moral sexual No fundo, a moral sexual me parece um mistério. O sexo é tratado como algo sagrado. O mandamento de que não se pode fazer sexo fora do casamento, que só no âmbito do matrimônio o sexo pode ser feito dignamente, de alguma forma exalta o ato sexual. Não é uma atividade humana comum, não há exceções a essa regra. Sexo fora do

casamento é adultério ou prostituição, não importa o motivo. Aliás, parece que há uma exceção: quando se pensa estar casado, mas depois se anula o casamento, o esse adultério não é contado como adultério. É uma atividade que o homem só pode fazer dentro de certa estrutura, estabelecida de comum acordo entre o casal. E por que? por causa da possibilidade de ter filhos? isso uma simples operação sirúrgica daria jeito; mas só se pode fazer sexo para ter filhos? Não, pois a pessoa estéril também pode fazer sexo com seu conjuge. E o que é o sexo? no que consiste? Atrito entre as partes sexuais do corpo. Só? Prazer. O prazer está no ato sexual? Não, é só um efeito colateral dele. O sexo envolve a pessoa amada. Amor, em primeiro lugar, é amor àquela pessoa do sexo oposto que se deseja tomar para si. Sexo envolve amor, é o lugar onde se desfruta o amor. Aonde? na intimidade; o sexo é íntimo, deve ser desfrutado de modo íntimo, na intimidade do lar, entre pessoas que se amam. Mas podemos amar várias pessoas. Só podemos desfrutar desse amor com uma pessoa. E se deixarmos de amar essa pessoa? Uma vez casado, não se pode deixar de amá-la, e se deixar de amá-la, isso é uma falta, e casando-se de novo se cometerá uma falta em cima da outra. Por que só podemos desfrutar do amor com uma pessoa só até a morte? Uma promessa? E por que prometemos isso? Por que isso deve ser prometido? Porque só se pode fazer sexo dentro do casamento, porque essa é a Lei. É a Revelação; é assim porque é assim: sexo no casamento – fora dele não. Deus também é assim, desfrutando o amor com Sua Esposa, perfeita, sem mancha, e nada existe fora dessa união mística. O casamento foi feito à imagem do Paraíso Terrestre; nele o homem é servido pelos Prazeres; a vida é gozo, não padecimento, e toda ação é sem esforço, porque é livre. Faz-se a promessa porque se reconhece a imagem de Deus no matrimônio, e realiza-se o matrimônio só para se lembrar de Deus. Mas por que deve-se fazer a promessa, por que não se pode não fazer a promessa e se unir mesmo assim? Por que a Lei diz que o lugar do sexo é no casamento? Ora, já está respondido, é porque Deus é assim, e se se faz sexo fora do casamento não está se fazendo nada de bom, porque Deus é a Bondade, ou seja, nada de Deus está nessa atitude. Eu disse que o sexo era o desfrute do amor erótico, mas o nós não casamos por amor, nós casamos por conveniências. E esse casamento tem que dar certo. No entanto, nós não escolhemos nossos amores, e parece que quanto maior o amor, maior o desejo, e maior prazer nos dá o ato sexual. O prazer do sexo também tem a ver com a beleza. As mulheres muito belas dão mais prazer sensual aos homens, e os homens mais viris e atraentes dão mais prazer às mulheres. No entanto, também podemos amar de todo nosso coração uma mulher que não seja tida como uma das mais belas na sociedade, ou para os padrões de beleza da época e lugar. Mas dificilmente amaremos assim uma pessoa feia, porque

ela não nos dá prazer sensual nenhum. Mas a mulher que amamos de todo o coração nos dá o maior prazer sensual que podemos ter, e só de olhá-la o nosso corpo treme de desejo. Porém, isso não acontece com todo mundo. De todas as mulheres que tem potencial de satisfazer as nossas sensualidades, existem àquelas que atendem melhor as nossas necessidades e desejos sentimentais e psíquicos, e são essas que os homens comumente procuram para casar. Mas existe um caso especial, em que ao ver a mulher o amor desperta como dum sono, como se já estivesse ali o tempo todo, e como se fosse uma sentença irrevogável do destino, independente de tudo o mais – e dependente de quê não se sabe. Independentemente do amor ou do prazer, o lugar do sexo é no casamento, e o casamento é com qualquer um que possa fazer sexo. Ora, eu só posso casar com uma pessoa, e com qualquer uma, mas posso amar várias, de modo que o prazer de estar com outra mulher pode ser maior que o prazer de estar com a minha mulher, o que pode me fazer desejar outra mulher. Posso até mesmo me arrepender de ter casado, pode ser que tenha casado cedo demais; será que eu tinha já maturidade para entender a promessa que fiz? Será que eu podia prometer amar alguém que eu mal conhecia? E, além disso, também posso simplesmente deixar de ter qualquer prazer com a pessoa com a qual eu casei. Tudo isso nada muda o fato do casamento, e o sexo fora do casamento continua sendo uma estultice. Logo, não se casa por amor, porque o amor pode mudar, mas também não se casa sem amor, como se fosse um desesperado da felicidade. No entanto, me parece que a felicidade suprema é se unir sexualmente com aquela única pessoa que se ama com todo o coração, que é chamado o verdadeiro amor, porque só acontece uma vez na vida. Essa é a felicidade suprema porque o amor é o maior amor, extremamente intenso e doloroso, e, daí, o prazer do sexo é quase místico, como se a carne se dissolvesse no êxtase da intimidade. Assim, a felicidade suprema não está no casamento, e sim na união íntima com a pessoa amada; mas, nesse mundo, essa união se manifesta no sexo. Portanto, é feliz quem ama, mas só usufrui dessa felicidade quem dorme com a pessoa amada conhecendo-a, e só podendo provar dela por um instante. E, para manter essa felicidade, o casamento é inútil, pois, se os amantes são livres, se não há intervenção da sociedade, então eles são felizes sem precisarem se casar, e podem até usufruir dessa felicidade livremente, transformando a dor física de estarem longe um do outro no prazer da união sexual. Se eu soubesse que a mulher que eu amo me ama do mesmo modo como eu amo ela, então eu já me consideraria unido a ela, e só desejaria ela, e nunca desejaria ofendê-la fazendo sexo com outra mulher, mesmo escondido, o que consideraria uma traição, pois esse amor é ciumento, de modo que eu não poderia fazer com o outro o que não gostaria que fizessem comigo, e eu não gostaria que ela fizesse sexo com nenhum outro, e que pertencesse só a mim de todo o coração, como eu a ela. Ora, esse amor e

essa união não dependem do casamento para existir. O casamento em si não tem nada a ver com a felicidade. Mas é possível ter prazer também com outras mulheres, porque o prazer depende da beleza das formas, e todo mundo ama o que é belo. Portanto, pode-se ter prazer com uma mulher porque ela é bonita, ainda mais porque é bonita e virtuosa, com bom temperamento e bela personalidade. Mas esse prazer não será igual ao prazer daquela outra união amorosa; esse prazer vem do amor da beleza, mas o outro vem de um amor misterioso e dominante – não se sabe como esse amor vem nem porque acontece. Uma coisa é viver a intimidade do sexo com uma pessoa porque ela é bonita, outra é viver a intimidade do sexo com a pessoa porque você sente que pertence a ela. A diferença é análoga a que existe entre as casas: existem até casas melhores que a minha, mas eu só me sinto bem na minha própria casa. Ou seja, “isso” é melhor porque me pertence. E, se uma pessoa nasce para a felicidade sua e dos outros, poderá ela nascer também para a felicidade de alguém em especial? O que significa esse sentimento? Engano? ilusão? orgulho? forças psíquicas em movimento? É um vício? uma doença do coração? Ora, de todas as pessoas que amaram assim, nenhum testemunho chegou até mim de alguém que tenha abominado este sentimento tendo-o por mal, por mais doloroso que fosse; se se apega a este sentimento é justamente porque ele parece trazer o anúncio da felicidade. Assim, só se encontra a paz na intimidade com aquela pessoa (um jardim fechado), e o desfrute do corpo dela é o paraíso (superlativo de prazer). Acontece que Deus aceita qualquer casamento, sendo que o casamento é um só até a morte. Ora, podemos assumir que, quanto mais forte o amor no casamento, melhor será; por outro lado, o casamento não parece ter sido feito para o amor, e sim para o serviço. Mas o sexo serve ao amor, não ao casamento, de modo que é melhor casar com quem se ama. Assim, casamento não depende de amor ou felicidade, mas é em si mesmo serviço. Se a Lei ordena que o sexo deve ser feito dentro do casamento, então o casamento deve ser também o lugar do amor, de modo que as pessoas que se casaram devem se amar-se mutuamente; mas esse amor pode ser maior ou menos sem prejuízo do casamento. E se se ama alguém fora do casamento, não se pode deseja-la para si; mas se esse amor for o amor de que falei, como não se pode desejar a outra pessoa, se o sentimento é de que ela é a única que te pertence? (ou a única pessoa a qual pertence o seu amor). A resposta me parece ser que somos mais adúlteros do que pensamos.

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Existe um arquétipo geral para a felicidade: é a união do esposo com a esposa amada. É daí que vem a felicidade, e ela consiste em viver essa união no amor com consciência total. -//Existe desejo sexual, mas existe desejo amoroso? Ou seja, eu posso desejar alguém? O que seria desejar uma outra pessoa? O que em mim pode recebe-la e como? Não é possível desejar uma pessoa, é possível desejar, claro, que uma pessoa faça algo ou seja algo ou te dê algo, mas não desejar ela mesma. Só Deus pode “receber” uma pessoa, como, por exemplo, elevando-a a uma ordem superior de existência. Eu posso desejar também que a pessoa exista (na medida em que a conheço), e, quando faço isso, estou de certa forma imitando o próprio Deus que a criou e a conhece. Mas quando eu desejo a existência do outro, nesse sentido pessoal, e não num sentido abstrato e genérico, eu o desejo na minha própria vida, que ele exista para mim, tal como Deus deseja que o homem exista para Ele. Quando isso acontece, não posso dar outro nome a esse desejo senão amor. Se é assim, então quando digo que amo alguém, apaixonadamente, isso não significa que a desejo para mim, mas que com ela eu me encontro num estado evidente de amor. Daí, o que eu passo a desejar não é a pessoa, mas uma relação com ela (é difícil eu desejar que uma pessoa exista e não querer nada com ela ao mesmo tempo); o objeto de desejo, do qual tenho uma imagem, é a relação com aquela pessoa. A imagem que eu crio dessa relação terá uma forma, e eu devo aperfeiçoar essa forma na medida em que eu busco descobrir e conhecer a finalidade última da relação que é esse estado em que sei que amo e sei que sou amado por esta pessoa concreta. A estrutura geral da nossa relação, que deve ser descoberta por nós dois (para se chegar à plenitude do amor mútuo), é dada pela própria estrutura geral da nossa individualidade. Eu te amo porque sou eu e quero que você corresponda a esse amor. Essa estrutura nós a preenchemos sempre com vida divina: imperfeitamente neste mundo, mas perfeitamente no outro. Mas a expressão “eu te amo” é ambígua; geralmente amor aqui significa desejo de algo. Essa expressão tem outra complexidade: amor é algo que se padece, e não uma ação, de modo que “eu te amo” significa “eu sofro de amor por você”; mas, então, quem é que faz ou exerce o amor? Ninguém exerce amor sobre ninguém. Nem a beleza nem o prazer nem nenhum objeto de desejo causa amor no sentido de desejar a existência do outro numa relação íntima consigo mesmo. Eu sei bem quando eu desejo uma relação por alguma intensão diversa e quando eu desejo uma relação porque ela me torna melhor, porque enriquece a minha vida, a minha existência. Então, qual é a finalidade dessa relação com outra pessoa? A finalidade de uma relação interpessoal é, em última análise, um enriquecer a vida do outro, de modo que

os dois venham a ter uma forma de existência superior. E o que é que me diz que forma de existência é superior, e quais relações vão tornar a minha vida mais feliz, mais plena, mais brilhante? É a própria Bondade, o fim último a que leva todo e qualquer desejo, se ele for retamente direcionado. Então, o que causa o amor é uma espécie de conhecimento do Bem. Daí, a expressão “eu te amo” é um reconhecimento de um bem possível que pode vir a se realizar mediante a efetivação de uma relação mútua de certo tipo; significa que, conhecendo esse bem específico dessa forma de relação, o indivíduo entrou no âmbito do amor: ele está amando. Amor é uma experiência, um modo de sentir e de ver a relação com o outro; ele não acontece por qualquer bem, nem para qualquer um, ou em qualquer circunstância. Aparentemente, ninguém sabe as causas do amor – talvez por ser algo bastante individual e pessoal. Por que eu amei aquela mulher e não qualquer outra? alguém já respondeu a essa pergunta? O amor como que tem uma relação ambígua com o Bem: ora eles estão juntos, ora parece que o amor está ausente. Mas, por detrás da aparência do amor, nós podemos reconhecer um princípio que sempre leva à realização plena do bem possível daquela relação. O que eu chamo de “aparência” do amor é a sua experiência total, incluindo todo o organismo psico-físico; ou seja, o amor mesmo não depende dessa experiência para existir, e para que o sujeito participe dele. Daí, sempre que nós preferimos o Bem a qualquer outra coisa, nós amamos do mesmo jeito, tendo ou não aquela experiência total do amor. Quando nós temos a experiência total do amor nós podemos criar uma imagem dele. Ora, como essa experiência quase sempre acontece quando amamos uma pessoa concreta do sexo oposto, é aí que ele assume uma forma, a forma da relação interpessoal, e é passível de ser imaginado. Dessa imagem, nós podemos fazer um símbolo do amor, que nos lembra de uma existência superior para a qual fomos feitos e não deixa que nos acomodemos à vida que levamos agora. Amor, como experiência total, só pode ser um modo humano de experimentar o amor divino, sendo, portanto, imagem do Amor. É essa imagem do Amor que no Cântico dos Cânticos representa o amor da alma à Deus; também é essa imagem do Amor que representa a aliança de Deus com o homem no símbolo do matrimônio. Assim, do mesmo modo, o amor que nós temos por qualquer coisa é reflexo do amor de Deus por nós, na medida em que nós amamos por causa do Bem, e em que o Bem é bom para nós por causa da nossa própria natureza criada por Deus. Ou seja, nós amamos na medida em que o Deus que nos criou nos ama, e por causa disso; ou, dito de outro modo, nós amamos na medida em que conhecemos e desejamos o Bem para o qual fomos feitos. O amor humano, se é verdadeiro amor, é uma correspondência do amor divino: note que isso é um fato, a gente não pode amar porque a gente quer, é algo que nos acontece, do qual participamos, e não podemos controlar. Nessa perspectiva,

a única escolha que você tem é se você quer ficar do lado de Deus ou contra Deus; ou seja, o ódio aqui é não só a ausência da experiência psico-física do amor, mas uma espécie de cegueira voluntária do amor como princípio. Se o amor é amor do Bem, o ódio é o que não leva a realização de bem nenhum, ou o que impede a realização de algum bem. Todo mundo ama, todo mundo sabe que vida é boa ou má para si mesmo. Para algumas pessoas (ou muitas, não sei) existe a experiência de quando todo seu organismo psicofísico é como que absorvido no amor (amor por uma pessoa concreta), levando-a a um estado de êxtase amoroso onde a ordem superior do amor pode ser contemplada através do seu mesmo organismo psicofísico que participa desse amor numa outra ordem. Essa experiência “natural” de êxtase amoroso acontece no âmbito da relação sexual, entre duas pessoas do sexo oposto que se amam. Talvez isso possa ser chamado de “amor natural”, já que é pela sensualidade da relação sexual que ele é evocado e assumido pelo indivíduo. Primeiro, na relação sexual, o indivíduo ama sem entender, depois ele entende que ama (sendo o ato sexual como que a liturgia do amor na ordem natural), e só depois ele pode amar de verdade. Amar é entender o que acontece na relação sexual, é voltar sua atenção à finalidade do ato e não se deter apenas no mundo das sensações. Se o indivíduo reflete sobre isso, ele deve parar de fazer sexo como um animal e passar a fazer sexo como ser humano. Assim, é normal que o mero desejo sexual seja tido pela maior parte das pessoas como verdadeiro amor; todo desejo sexual tem algo de amor, que é o amor de Deus gravado na ordem física, e nesse sentido os animais também amam os seus pares, é claro. Mas o amor para o ser humano também naturalmente inclui um componente de autodoação na relação, e por isso é comum as pessoas dizerem que sós e aprende a amar depois do casamento, porque é só aí que as pessoas terão ocasião de amar de verdade. Mas se o desejo sexual for compreendido como amor e integrado num projeto de vida humano, então aí nós podemos chamar isso de amor; e se há correspondência, então temos um relacionamento amoroso autêntico.

A forma do matrimônio A finalidade do relacionamento amoroso é a geração de filhos. Quando você reconhece sua esposa como digna de te dar um filho, olha nos olhos dela e diz: “eu quero um filho teu”, que significa dizer “eu desejo que Deus faça em você uma nova criatura, porque você é bela, e esse seria um bem extremo para nós”; e, do mesmo modo, quando a esposa reconhece seu esposo como digno de lhe dar um filho, e ela o aceita com um beijo e um abraço, é como se dissesse: “se for você que vai me

dar um filho, então eu o recebo como que de Deus, e abraço assim o seu propósito, desejando essa criança, para que a Bondade d’Ele se realize por meio de mim”. Quando numa bela alma você deseja que uma nova vida seja gerada, é aí que o amor se manifesta com toda sua força. (Aonde eu encontrarei essa bela alma?). Uma vez gerada a prole, agora o mesmo amor pode se manifestar no nível do relacionamento: essa criança deve ser sustentada e educada para crescer um bom ser humano: o bem deve continuar a ser desejado e gerado na beleza do relacionamento. Para isso é preciso que o indivíduo se esforce para elevar sua mente à contemplação da beleza da alma do outro – o que não acontece de qualquer modo ou em qualquer circunstância –, isto é, sem alguma virtude a alma do sujeito é incapaz de amar nesse sentido espiritual, e, por outro lado, é preciso uma certa base material e psíquica para que os indivíduos possam projetar um relacionamento amoroso que se fundamente nesse amor; assim, se a forma do relacionamento amoroso for dada por esse amor ideal, então o casamento terá a finalidade de trazer a Bondade para o mundo por meio do amor mútuo e fidelidade a esse amor. Ora, se a estrutura do casamento se baseia na forma desse amor, então tudo aquilo que se opõe a essa forma, ou que deforma essa estrutura, é contrário ao verdadeiro casamento; e mais: a forma do casamento deve ser de acordo com sua finalidade. Ora, se amar é desejar gerar o bem no belo, então a finalidade do matrimônio é a geração desse bem; e isto, na sua plena manifestação terrestre, significa a geração de filhos. Então, por exemplo, sabendo que o varão não pode carregar em si um filho, é loucura que outro varão possa desejar que um filho seja gerado no primeiro, de modo que esse tipo de relacionamento não corresponde à finalidade do casamento. Ou, por exemplo, se um homem amar duas mulheres, mas haver ciúmes entre elas, uma irá querer destruir o relacionamento da outra (e, talvez, com razão), de modo que isso também é contrário ao casamento e ao verdadeiro amor. Mas se o ciúmes for inerente ao amor, o que poderemos provar em outra ocasião, então nem varão nem mulher poderão ter mais de um parceiro, pois somente poderá haver amor aonde houver ciúmes, mas aonde há ciúmes não poderá haver mais de um parceiro sem que se destrua o amor. Não é o ciúmes que destrói o amor; o ciúmes, pelo contrário, protege o amor na medida em que procura afastar aquilo que ameaça esse amor; o que destrói o amor é o ódio, ou seja, é a sufocação desse amor pela desconfiança, pela inimizade, pela competição, pela dignidade ferida, pelas feridas sentimentais, etc... Alimentar o relacionamento amoroso é alimentar esse amor de gerar o bem no belo em todas as áreas da vida do casal, é isso que faz um casal, que forma o casamento. Se não há amor não pode haver casamento – que bem ele poderia trazer para o mundo? O amor erótico, que se revela na criação dos corpos feminino e masculino, é o que dá a

forma ao verdadeiro matrimônio. É essa a imagem que nos é dada do amor de Deus pela Igreja. Um varão pode desejar ter filho com muitas mulheres; mas, na prática, um relacionamento saudável só vai poder acontecer se ele abdicar de todas as outras para ficar com uma só. Isso é assim porque o desejo de ter todas as mulheres é apenas desejo de novidades, e não um desejo de alguma coisa substancial. Na sua busca de repousar na beleza, o varão pode se perder na multiplicidade das formas femininas; se ele tiver uma mulher só, ele pode se esforçar para se concentrar só nela: ele não se contentará com a visão daquela bela figura unicamente, então ele terá que voltar sua vista para a contemplação das coisas eternas, da própria Beleza. Se ele assim o fizer, abdicando de olhar para todas as outras belas e atrativas figuras femininas em toda a sua diversidade, ele não terá perdido nada (já que a rebeldia dos olhos não tem sentido e só visa mesmo à degradadora diversão da psique), pelo contrário, encontrará desse modo a paz interior necessária para a estabilidade do relacionamento, além de que terá o seu sofrimento atenuado toda vez que, olhando para uma bela mulher, sua alma se lembrar da verdadeira Beleza, pois ele já estará suficientemente acostumado à contemplação da verdadeira Beleza a ponto de não confundí-la com uma mera figura temporal da mesma. Assim, por meio da concentração e elevação da sua vista, o varão pode alcançar uma felicidade profícua, ao contrário daquela outra felicidade estéril de alguns homens que, por uma artimanha do destino, têm a sorte ou o azar de terem grande facilidade em se relacionarem intimamente com mulheres de todo tipo, e que acabam gozando da intimidade de muitas, sucessivamente, durante o tempo que lhe for permitida toda essa experimentação. Nessa perspectiva, podemos também ver que “conhecer” a mulher do próximo significa roubar dele toda a confiança que ele tinha na própria mulher e na qual ele se apoiava para poder se elevar espiritualmente até esse desejo de gerar o Bem na Beleza do relacionamento. Se o relacionamento está comprometido pela desconfiança, então está rompida a ligação material onde se apoiava o amor: sem o amor, não há mais o desejo de gerar o Bem no Belo, e o relacionamento vira um deserto árido (quente e seco): a forma sólida do relacionamento perde a dinâmica da atração mútua e se torna quebradiço, deteriorando-se pelos leves atritos do casal; e a atração sexual continua a mesma, só que se torna mais animal, sem aquela adaptabilidade mútua dos espíritos que se buscam acomodar um no outro. É por isso que Jesus revelou ao vidente de Kibeho que adultério é roubo. Voltando ao assunto principal, acontece que, me parece, é mais fácil nos acontecer esse amor com relação a algumas pessoas que com outras; e, às vezes, há uma só pessoa que, até ao final da nossa vida, passa a encarnar o próprio símbolo da feminilidade ou masculinidade para nós, de modo que essa pessoa se torna maximamente atraente para os espíritos sensíveis à contemplação do Belo. A relação

com essa pessoa é vista como um grande bem, e o desejo por ter isso é quase insuportável, porque é com ela que se deseja frutificar; sem ela o mundo perde a graça, e ter as coisas já não significa nada: fora do amor não há nada para se desejar. Mas eu não sei se isso acontece por uma conjunção de fatores acidentais ou se é uma espécie de identificação íntima com aquilo que a forma total da vida daquela pessoa representa para mim, ou se é alguma outra coisa. O certo é que por meio daquela pessoa Deus nos trouxe a experiência do amor num nível diferenciado.

Ainda sobre o Matrimônio O casamento é um ato da livre vontade, é uma escolha, uma decisão, e, por isso, um sacrifício: a restrição voluntária de todas as outras possibilidades; e isso é necessário para que haja ação e movimento, isto é, caridade de fato e não apenas amor teórico. De fato, pode-se amar todas as mulheres, mas consumar este amor somente com uma, sob o risco de cair em prostituição. Na verdade, não ama-se todas as mulheres, mas ama-se a Mulher que cada uma delas representa; ou, então, ama-se todas as pessoas. Existe uma grande diferença em se dormir com a “sua” mulher e com “uma” mulher... Dormi com uma mulher: “que belo corpo com o qual me deleitei; mas quem é esta pessoa que está aqui do meu lado?” A relação com o “eu” dela é fria. A relação “carnal” é uma relação de pura dependência afetiva, tudo no relacionamento gira em torno das necessidades afetivas um do outro: eu quero carinho, amor, atenção, quero ceder ao prazer e que você ceda junto comigo, quero segurança, conforto, status... O que pode haver entre o “eu” e o “tu”? Só comunhão. O que é comunhão? É a proporcional participação nas mesmas coisas. É quando o nosso corpo é feito da mesma carne, e um corpo conhece permanentemente o outro corpo; quando nosso sangue vem do mesmo vinho, e todos se entendem perfeitamente. Mas só a comunhão não basta, e a presença? O amor não exige a presença da pessoa amada? É preciso ter um mesmo projeto, e um contato físico. Seria o Paraíso ociosidade? A ociosidade é apenas a ocasião do prazer. O Paraíso precisa ser um mundo de atividade, expansão, aprofundamento, de vida sempre nova, sempre totalmente autoconsciente mas infinita, porque sabe que mora em Deus.

Se na Igreja todos são amigos de Deus, e, portanto, todos são amigos, é preciso, porém, que alguns estejam mais próximos e outros mais afastados uns dos outros, devido à estrutura “espacial” do “eu”. Só existe união em Cristo, que é o “lugar” da união, e por meio do Espírito Santo, que é em si mesmo a união. A união entre ti e mim é com relação a Cristo (um só corpo), e é efetivada pelo Espírito Santo que nos une (num mesmo espírito). No Amor e na Verdade.

“Sinto por ti uma paixão violenta; mal posso pensar quando na tua presença, não posso esperar mais para me unir a ti... eu te quero muito, se eu tiver só a ti não preciso de mais nada. És tudo para mim.”. Que diabos isso significa!?! É como se a pessoa com quem se fala fosse ela mesma um estado de prazer infinito, o próprio Paraíso. Ou, por outro lado, é como se a única coisa que importasse para quem fala fosse o prazer, sendo a mais alta de todas as coisas, isto é, sendo o prazer como que a coroa do estado de felicidade supremo. Quando tudo o mais é abstraído da mente do sujeito, o prazer é exaltado desproporcionalmente, e ele cede a um prazer ilícito. Talvez o prazer carnal (metaforicamente) seja mesmo o coroamento do estado de felicidade, mas só se estiver em harmonia com todas as outras necessidades espirituais e anímicas do sujeito, e dentro da reta ordem cósmica; caso contrário esse prazer é ilícito e desordenado.

Para um casal que se ama o não ter filhos é um motivo de sofrimento constante. A união espiritual do amor só se realiza plenamente quando se tem filhos. Enquanto o casal não recebe uma terceira coisa que provém da sua união íntima, e que é gerada pelo mesmo fator que sustenta essa união, ele não pode estar plenamente unido pois não têm com o que se ocuparem juntos o tempo todo. O sexo é como um rito do amor, mas o filho é como um símbolo eterno desse mesmo amor. Se só se tem o sexo, o casal passa a maior parte do tempo sentindo a ausência um do outro; mas se se têm filhos, se têm também a consolação constante da concreção desse projeto íntimo para a vida toda que ele representa – é como se a união do casal se materializasse e estivesse o tempo todo presente para eles espiritualmente. Caso contrário, o amante dificilmente tem a mesma consciência real da sua união, que lhe parece puramente sentimental e sem fundamento, e daí o medo e a insegurança que lhe entristecem. Se

se têm filhos, eles vivem já uma dimensão a mais da eternidade: a responsabilidade mútua sobre uma terceira vida que proveio deles, e que, portanto, é também como que uma personificação do seu amor. E quando seus corações se rejubilam sincronicamente na presença do próprio amor é que eles são felizes. É aí que os amantes tem diante deles, o tempo todo, o mistério do amor, que é profundo como a Vida, que é eterna novidade, que é infinito sagrado como outra pessoa.

Prostituição A prostituição é o sujeito que é mal, egoísta, egocêntrico, sem amor, e que portanto vive num mundo que é divisão, desintegração, ódio a realidade, e que por não ter existência própria, por ser mera ausência de bem, mera oposição à realidade do que é bom e verdadeiro, por isso precisa fantasiar ou fingir perversamente sua realidade, e esse fingimento de realidade, fundamentado na revolta à própria realidade, é a imitação demoníaca de Deus, é a realização de um ato materialmente divino porém formalmente maligno, isto é, na falsidade.

Senhor Deus, que me destes este sublime amor conjugal pela vossa filha Caroline, peço-vos agora que guardeis a sua vida e conduzi-a para o Vosso Reino Eterno. Enviai, Senhor, o Vosso Espírito Santo, que me ensina a orar e a amar, e fazei-me mais digno do Vosso Amor. Amem.

Sobre a finalidade do casamento No ato sexual, se tudo der certo, a última coisa que acontece é a geração de outro ser humano. Se todos os processos biológicos desencadeados pelo ato sexual levado até o fim ocorrerem sem nenhum impedimento eles necessariamente levarão à formação de um indivíduo humano – sua consequência última. Isto significa que a finalidade normal do ato sexual é a geração de filho(s). Nós dizemos que a finalidade do casamento é a geração de filhos, mas o que isso significa? Por outro lado, o ato sexual é a consumação do casamento – sem isso o casamento não se efetiva, a cerimônia matrimonial fica sem efeito real. Ora, se é

assim, então é claro que a geração de filhos é finalidade do casamento enquanto finalidade do ato sexual necessário à consumação do próprio casamento. É claro que a geração de filhos é a finalidade do ato sexual, mas é um motivo suficiente para que dois indivíduos do sexo oposto se encontrem no ato sexual? O desejo de ter filhos é motivo para que duas pessoas se casem? Suponhamos, então, que uma mulher queira casar para ter filhos, e que ela viva numa sociedade onde, devido às suas circunstâncias, é impossível para ela casar-se, mas que ela pode ser concubina de algum homem. Se o que ela deseja é casar para ter filhos, então ela ficaria feliz em ser concubina de alguém e não precisaria de fato se casar para realizar seu desejo. Por outro lado, se ela quiser realmente casar e ter filhos nesse casamento, então é claro que o casamento em si vale alguma coisa independentemente de se ter filhos. Mas, se a pessoa não quer casar senão com alguém que possa lhe dar filhos, então ela não considera o casamento como uma finalidade em si mesmo, mas como apenas um meio de obter algo que ela deseja acima dele – (assim como “o outro”, nesse caso, também é visto apenas como um meio, mais ou menos agradável). Se a finalidade do casamento é ter filhos, nesse sentido, de servir como meio à alguma finalidade superior, então o casamento em si não é nada, é apenas uma circunstância mais ou menos favorável. Nós devemos desconfiar dessa crença, pois a imagem que Deus usa para Sua união com a Igreja é a imagem do casamento, e nós sabemos que a união entre Deus e a Igreja não é um meio mas sim uma finalidade. É provável que o casamento também seja algum tipo de finalidade. Voltamos então à questão: ter filho é finalidade do ato sexual, mas o que faz duas pessoas se encontrarem nesse ato? Ora, ninguém é biologicamente determinada a fazer sexo com uma pessoa em particular, ou mesmo com qualquer uma, então ter filhos não pode ser motivo para que ela encontre alguém com quem se relacionar dessa forma. Ou seja, não há nenhum nexo causal entre se relacionar com uma pessoa e ter filhos com ela. Ter filhos, ou fazer sexo, é um ato da vontade e consentimento mútuo de duas pessoas, portanto, não pode ser ao mesmo tempo o que determina esse ato. Querer fazer sexo não é motivo suficiente para fazer sexo, nem querer ter filhos é motivo suficiente para ter filhos. Ou seja, seus desejos subjetivos, especialmente nesse caso, devem ser devidamente justificados com base na finalidade real de cada ser. É por isso que é necessária uma teoria do amor, porque a finalidade do amor é a união entre duas pessoas, e é esse o motivo pelo qual desejam encontrar-se no sexo. Uma outra coisa importante para se ter em vista é que uma pessoa pode gostar da ideia de ter filhos, pode se imaginar como pai/mãe, etc., mas isso não significa que ela vá gostar desse ou daquele filho que ela tiver. Ninguém sabe QUEM será o seu filho. Isso significa que o casal deve estar aberto a receber uma pessoa estranha em sua casa, uma outra vida que lhes foi confiada mas que não tem nada que ver com a

relação deles um com o outro – aquela relação amorosa do casal e suas consequências independem completamente do filho que eles possam ter ou não. Mas eles estão abertos mesmo assim a essa nova realidade: é um serviço prestado a Deus. Confia-se que aquela vida, seja ela qual for, é boa aos olhos de Deus, e que vale a pena se sacrificar por ela. É um auto-sacrifício voluntário à uma pessoa que você não conhece de fato. Só duas pessoas que são realmente felizes podem chagar ao ponto de querer se sacrificar por um estranho, de graça, sabendo que não vão receber nada em troca. Isso é ao mesmo tempo uma graça superabundante de Deus, é graça sobre graça: aquilo que era perfeito recebeu uma nova plenitude de perfeição que vem do Céu. Essa nova plenitude não completa o amor do casal, ela está à serviço desse amor. Então, a finalidade de ter filhos é sobrenatural, de modo que o desejo de ter filhos é também sobrenatural, quando vem do coração. Nós desejamos muitas coisas, mas poucas são o que o nosso coração realmente quer. E saber o que deseja nosso coração é fazer um caminho vocacional. Ajoelhado diante dela e segurando-lhe a mãe esquerda, com a mão direita sobre a sua barriga, disse-lhe o seu esposo: “existe uma alma aqui que Deus colocou sob a nossa guarda”.

A imagem demoníaca do amor Há uma série de estórias em que a imagem do adultério ou do romance adultero entre duas pessoas aparece como algo extremamente desejável. Nessas novelas e romances o adultério geralmente não aparece como tema moral, ao contrário, ele é quase que moralmente desprezível frente ao desejo arrebatador das personagens apaixonadas. Essas estórias são verossímeis porque o tipo de paixão que elas expressam existe mesmo; porém, essas estórias não oferecem nenhuma impressão ou pressentimento de que se o amor é assim mesmo ou se o amor é uma outra coisa, e se, na verdade, isso que está se passando na estória não é uma experiência de um outro tipo que não podemos chamar “amorosa”. Eu pessoalmente fico perplexo e bastante confuso com o fato de que as pessoas podem realmente ter um desejo tão arrebatador, um prazer e uma dor tão intensas, umas pelas outras, sem que haja a menor indicação de uma ordem por detrás desses sentimentos (chamados de “amor” aqui e ali), como se tudo estivesse se passando num mar caótico e a única coisa constante fosse o desejo sexual. Por detrás de cada uma dessas estórias, existe já um pressuposto, uma teoria do amor, ou, pelo menos, admite-se que o amor deve ter aquela forma, e que as pessoas

normalmente amam daquele jeito. Porém, se formos comparar as várias estórias de amor, é impossível para mim admitir que as personagens dessas várias estórias estão amando do mesmo jeito, que elas estão de fato num mesmo mundo quando amam, tão disparatadas são as interpretações, pensamentos e ações de cada personagem das estórias mais famosas. Um autor que me chamou a atenção foi Ovídio, que transformou o amor num instrumento de prazer. Nos seus escritos nos parece muito claro que qualquer pessoa pode “amar”, e que todas as pessoas que “amam” amam do mesmo jeito. De fato, todo mundo que diz amar se expressa da mesma forma, e essa forma de se expressar parece ter sido cabalmente expressada por Ovídio nos seus escritos. Eu, no entanto, não posso me convencer de que só porque as pessoas apaixonadas expressam o mesmo desejo de união carnal e mais ou menos espiritual, todas elas amam do mesmo jeito, que todas elas amem de verdade. A mim, me parece que existem certas gradações aqui, por exemplo, posso ver que umas pessoas só são sensíveis à beleza mas não conhecem o amor, outras conhecem o amor mas não aceitam a sua verdade, outros conhecem a verdade do amor e a aceitam. Ovídio conhece o amor, mas não aceita a sua verdade, e é por isso que ele foi capaz de esvaziar o amor de sentido e fazer dele um instrumento de prazer; é evidente que ele fala de pessoas que querem viver uma fantasia prazerosa, e não de pessoas que querem amar de verdade. Ovídio não trata do amor, pelo contrário, ele trata da negação do amor, ele trata das pessoas que não desejam amar de modo algum. É difícil enxergar isso porque as pessoas que amam sempre podem ser interpretadas como se estivessem falando de uma realidade mais inferior, enquanto que as pessoas que só querem usar a imagem do amor como instrumento de prazer sempre podem ser interpretadas como se estivessem falando de uma realidade superior. Essa confusão existe porque a experiência do amor não é vivida como um todo por todo mundo. É preciso aprender a amar do mesmo modo que é preciso aprender a ser gente. O amor não é um objeto da experiência, nem um estado do ser, ele é um âmbito de existência. É preciso aprender a viver e a respirar nesse âmbito. Então, quando as pessoas tem a experiência do amor conjugal, elas geralmente só olham para a sua expressão corpórea, que é o desejo sexual, e esse desejo sempre aparece da mesma forma em todos os corpos; ora, o melhor modo de falar sobre a realidade total do amor é por analogia com a experiência do amor no seu nível mais corpóreo, de modo que a linguagem da pessoa que estuda seu desejo sexual como se fosse a totalidade do amor se assemelha muito àquela da pessoa que ama a partir de um patamar mais elevado dessa mesma experiência. Nessas estórias de que eu estava falando, o adultério geralmente nos parece algo realmente desejável, e isso nos deixa bastante confusos, para sermos sinceros. Nos deixa confusos porque do jeito que nós imaginamos aquele amor adultero nos parece

incrivelmente prazeroso. Eu, que não sou muito crente no ser da maldade, tenho minhas dificuldades em crer que existe uma coisa má que é prazerosa. Mas é fato que algumas pessoas tem o ápice de prazer no ato do seu crime, e isso não é de se espantar, pois o sujeito mal é justamente aquele que gosta do que é mau. Porém, o que nos espanta não é que existam maus sujeitos que gostem de adulterar porque são maus, mas que existam bons sujeitos que encontrem na mulher do próximo o ápice do seu prazer e alegria. Isso é possível. A questão é que, no meio dessa confusão, o próprio adultério parece deixar a relação mais prazerosa. Ficamos sem saber exatamente se o que nos atrai nessas estórias é o desejo de amar ou o desejo do adultério. O amor parece mais vivo quando o prazer é culposo, quando existe um risco, quando a relação deve ser mantida em segredo. De fato, essas três coisas também existem no amor verdadeiro: a culpa do pecado original (não mereço estar aqui no paraíso), o risco de ser traído (me entrego a uma pessoa que não conheço, que pode ser meu inimigo), e o segredo entre os corações (deve ser mantido longe dos olhos da sociedade). Mas, no amor verdadeiro, logo se nota que essas três cosias significam coisas bem diversas. Já nas estórias de que falo, essas três coisas aparecem sob outra perspectiva: a culpa do ato ilícito, o risco de ser condenado pela sociedade, e o segredo do roubo. Tendo esclarecido essas três características, já podemos começar a vislumbrar uma diferença fundamental de dois tipos de amor, sendo que, na verdade, um deles só é amor, e o outro é uma paródia demoníaca dele. Existem estórias em que o amor entre as personagens me parece realmente desesperador, a tal ponto que eu sinto a dor pura do desespero no peito. Nessas estórias, no entanto, eu posso notar que as personagens apaixonadas vivem o amor de forma totalmente infernal. Veja, por exemplo, o Vermelho e o Negro de Standhal; nele, se pergarmos o romance do jovem personagem principal com a jovem burguesa rica no meio da estória, teremos aí um imagem clara de que o inferno pode nos parecer a coisa mais prazerosa do mundo. E considero que chamar esse caso de “amor”, “paixão” ou coisa do tipo é realmente um presságio, porque também o demônio quer ser chamado de deus, de modo que, se um indivíduo mau tem a experiência do amor, ele certamente verá o amor como uma realidade infernal, e vai gostar dela. A imagem demoníaca do amor surge dessa experiência da negação da ordem do amor pelo coração perverso. Isso acontece porque o mal sabe que ama, querendo ou não amar, sabe que é um “ser amante”, porque foi criado para amar, e, portanto, não pode negar seu desejo do amor; porém, como é orgulhoso, não quer servir o Amor, antes deseja ser ele mesmo o dono do amor, atribuindo o amor à sua personalidade como uma qualidade intrínseca, ao invés de reconhecer a supremacia do amor. Desse jeito, ele vai querer adequar o amor à forma da sua personalidade como um todo, e, quando tiver a experiência de se apaixonar, a sua expressão dessa experiência será de acordo com a sua personalidade; assim é que o indivíduo mal fará de tudo para perder a pessoa amada sob o pretexto de amá-la muito. Por isso, essas estórias são muito verdadeiras quando fazem o caso de amor degenerar em desespero e morte sem dar o menor

fruto, e o fazem de modo que nós mesmo podemos sentir o gosto amargo desse amor, ainda quando também sentimos simultaneamente o desejo de experimentá-lo. Existem dois amores aqui, e a distinção deles vai me dar algum trabalho, porque não conheço alguém que tenha se empenhado antes de mim nesta tarefa. Um modo bem simples de dicerni-los, no entanto, me parece ser a morte: o verdadeiro amante deseja morrer, o falso amante deseja viver; o verdadeiro amante quer provar seu amor pela morte, e o falso amante quer viver seu amor pelo adultério. Quando o verdadeiro amante está em adultério, ele vive mas não suporta a sua condição; mas existe um falso amante que não esteja em adultério? Mas devemos examinar mais de perto o que significa o adultério para um e para outro. Uma questão importante é que para o amante o adultério significa uma coisa, para o falso amante significa outra; bem como para o amante o casamento significa uma coisa, para o falso amante significa outra. E, também, para o verdadeiro amante o amor significa uma cosia, para o falso amante significa outra. Bem como para o verdadeiro amante a traição significa uma coisa (a pessoa traída fica triste acima de tudo), e para o falso amante significa outra (ele, quando traído, fica desesperado). E ainda existem outras realidades experienciadas de modo totalmente diferente nos dois casos. É por isso que eu disse que haviam dois amores: e o mais confuso é que essas duas cosias são realmente chamadas “amor”, uma delas sendo a imagem apocalíptica e a outra a imagem demoníaca do mesmo Amor.

Existe uma tensão entre a lei social e a lei do amor. Essa tensão existe, por exemplo, quando Jesus diz: “quem deseja a mulher do próximo já pecou com ela em seu coração”; ora, é no mínimo muito difícil para um homem ter uma amiga sem que ele em momento deseje toma-la em seus braços. Não é necessário que um homem queira tomar uma mulher casada para si se ele quer ser amigo dela, mas quem pode deixar de desejar possuir a sua amiga? Se uma pessoa não escolhe quem vai amar, ela tem que escolher com quem vai casar, e quando, de modo que qualquer um pode casar com qualquer pessoa mesmo que não a ame ou que não a ame com todo o seu ser. Se uma pessoa vem a amar uma mulher, como podemos dizer que é culpa dele deseja-la? Mas, se ele não pode alimentar os sentimentos de desejo, se deve tentar esquecê-la, como ele aprenderá a amar? Como se pode aprender a amar se você ignora o amor quando o encontra? Por outro lado, quem aprendeu a amar uma pessoa por vontade própria, como se esse amor não fosse dom de Deus?

O verdadeiro sexo é quando o amante ao mesmo tempo sente o que está acontecendo na carne e intui o que está acontecendo na alma; é desejar espiritualmente o que está acontecendo na carne. Só aí ocorre a união na carne, que, de outro modo, é apenas atrito corporal mais ou menos impessoal. O que se intui no ato sexual é a estrutura do conhecer o “tu”. Essa estrutura é fixa para o homem e para a mulher: o homem tem uma maneira masculina de conhecer a mulher, e a mulher uma maneira feminina de conhecer o homem. O homem deseja conhecer a mulher ativamente: ele quer tocá-la, agarra-la, comprimi-la contra o seu corpo, quer sentir sua pele atritando contra a sua; por isso ele se movimenta, ele vai a procura dela, acha, entra; é envolvido por ela; ela é atraente, convidativa, carinhosa; a mulher espera; o homem tem coragem; ela aceita e o deseja dentro de si, tocando-a por dentro; ele abre o caminho, explora adiante, devolve ela a si mesma por meio do seu toque, encontrando-a desprevenida; ela agora se espanta, acorda para si mesma, o acolhe dentro de si e dá a ele a chave da sua intimidade, dá a ele o direito de comandá-la, e guia-o para a bem-aventurança. É a mulher quem dá o ritmo da relação, ela se contém mais facilmente que o homem, ela é um continente para ele, como uma taça: é ela quem o recebe; o homem tem o poder de abrir e fechar, mas ele não controla o ritmo do portão; ele está sempre pressionando, empurrando; a mulher escapa, foge, espera, volta, dança, incita, recolhe-se, abre-se, acolhe, fecha-se sobre si mesma com ele – aprisionando-o, sem que ele perceba, no único lugar que é só seu e dele. Eles se entreolham nos olhos, como que a comunicar tacitamente o significado profundo de tudo o que percebem e sentem. O ritmo corporal aumenta; o homem com a mulher, subjugados pelos seus corpos, se deixam levar pelo que dita a sua natureza, inconscientemente. O homem sente a necessidade, que vem crescendo, de se perder no fundo do ser; de transcender o seu “eu”; até que um poder maior o lança fora de si, e ele se despeja, subitamente, preenchendo o útero da mulher, ocupando todo o mundo dela, se unindo a ela. Ambos saltam do seu próprio corpo, um e outro, como que para se unir no ar logo acima dos seus corpos, que caem como que mortos, com lassidão, um ao lado do outro. É aí que eles entendem que se conhecem mutuamente; não digo “conhecer” no sentido de vulgar familiaridade com os hábitos e comportamentos do outro, mas no sentido daquele sentimento de que sempre se conheceram, desde a eternidade, e agora estão apenas voltando a se encontrar, como já acontecera em tempos pre-históricos, como se estivessem sempre unidos. Só se pode fazer sexo com uma pessoa por vez; só se pode amar com todo seu ser uma pessoa por vez. A eternidade é toda uma vez só. Seu ser eterno é todo um só e imutável na sua totalidade. Se eu amar uma mulher na eternidade com todo meu ser será somente ela por toda a eternidade.

A impressão que se tem do que é um relacionamento amoroso hoje é a de que ele é uma espécie de amizade entre pessoas que fazem sexo somente uma com a outra. O sentimento que se tem é que o namoro é basicamente isso aí. E o casamento, quando muito, toma a forma de um projeto familiar, de criação de filhos e manutenção da economia doméstica. O homem que vê a mulher como uma espécie de amigo com quem ele pode ter prazer sexual, com quem pode passar um tempo agradável estando juntos, nunca se unirá com a sua esposa de verdade.

Olhando nos olhos - venha aqui, Caroline, deixa eu falar uma cosia ao teu coração. Eu te amo; quero que tu sejas minha, só minha. Aceite as palavras do meu coração; guarda o meu segredo. (minha declaração é como uma resposta que o meu ser inteiro dá à realidade dela na minha frente. Eu espero para que ela me responda também com seu ser inteiro. Eu falo tudo isso tendo a consciência viva da infinitude e completa liberdade da pessoa da minha amada. É preciso acreditar muito no amor ou no casamento para sentir todo o peso do outro na sua frente – me unir com uma pessoa viva!) -Eu confio em ti, Carol, e desejo me unir a ti, profundamente. Não desprezes o meu amor; chamai-me a ti e eu irei, dócil e fiel. Confia em mim, eu te imploro, só quero morrer por amor a ti... e morrerei feliz sabendo que te amo. (se ela me corresponderia ou não, isso não está em meu poder produzir ou controlar, nem mesmo está em poder dela escolher me amar ou não. Mas, dada a oportunidade, é isso o que eu deveria dizer, porque é a verdade da minha experiência. Que a minha esperança seja também a esperança dela).

Sobre a felicidade no casamento: “There a bowl of ambrosia was mixed and ready and Hermes took the pitcher and poured wine for the gods. They all held glasses and made libations, praying all good things

for the groom.” - Sappho [LP 141]

Amar é como plantar um jardim florido para o deleite do seu amado. Planta-se na alma tudo o que irá proporcionar o maior prazer para o seu amado quando ele vier se unir a ti.

Deus Pai ama, Deus Filho ama, Deus Espírito Santo é Amor. Deus Filho, que é filho de Nossa Senhora, é esposo das filhas de Nossa Senhora. Deus Espírito Santo, que é esposo de Nossa Senhora, é o Amor das esposas de Jesus Cristo. Se o Espírito Santo é identificado com o amor, não é também Ele que nos une no amor? Se duas pessoas se amam verdadeiramente, não é o espírito Santo que os une? Não é por isso que essa união proporciona prazer? Quem ama deseja a união com o ente amado, e essa união só existe no Espírito Santo que é causa do seu amor; então, é preciso aprender a amar segundo a lei do espírito para que tal união se realize de modo ideal. O casamento é Símbolo do Espírito Santo Ora, só existe um Deus, e mesmo assim Israel cultuou outros deuses pagãos, ocasião em que foi acusado de prostituição. O que é prostituição? Nós só amamos o único Deus, porque Deus é a causa do amor, e não existe amor nenhum que não seja a Ele mesmo direcionado. O que é então idolatria? Israel não amou outros deuses com amor verdadeiro, ele amou com falso amor, e amar com falso amor é prostituição. A prostituta ama com falso amor, porque ela finge que ama o que não ama, e ama o que não ama como se o amasse. É esse o pecado da prostituta, tal como do idólatra, porque este idolatra o que seu ser não adora. A prostituta ama como que intimamente aquilo que seu ser mais íntimo não ama. Assim, as pessoas são capazes de amar errado, de pensar que amam o que não amam, de pensar que adoram o que não adoram. O caminho para Deus é o caminho para o coração: descobrir o que é seu coração é descobrir qual o desejo de Deus. Quem cria uma imagem do próprio coração cria uma imagem de um falso deus, e ama em falso. Quem ama sofre. Quem ama amar deve aprender a amar conforme o Amor. Amar é sofrer. Quem ama verdadeiramente suporta todo sofrimento por amor, pois é melhor

amar do que não amar. O Amor é bom, mas primeiro vem a dor, e depois o prazer da união. Quem sofre mais por causa da separação, este terá maior prazer por causa da união que há de se realizar, isto é, se suportar tudo com paciência. Quem, pelo contrário, não suporta a dor, cede ao prazer, e, cedendo ao prazer despreza o amor, não aprendendo a amar como deveria. Sem saber amar com todo o seu ser, ama-se com parte dele, ama-se com o corpo, ou com a alma, ou com os sentidos, mas nunca ama-se totalmente, com o coração; é daí que vêm os enganos e desilusões amorosas. Quem não ama com o coração, não ama. Quem ama com o coração, segue o amor, suporta a dor, aprende a amar. Talvez, quem ame de verdade, não consiga esperar muito para se unir a sua mulher, por causa da fraqueza do corpo; mas quem não ama verdadeiramente nunca consegue esperar, e nem quer esperar. Quem ama verdadeiramente sempre tem esperança; quem não ama fica desesperado para obter a união tão desejada, sem refletir a cerca do verdadeiro amor e suas exigências, como se o amor não existisse mas fosse apenas uma criação dele mesmo; daí, ama-se a carne, ama-se o ego, ama-se o poder, ama-se o dinheiro, mas não ama-se o Amor; não ama de verdade. É Deus quem move o coração de quem ama. Quem ama conforme o Amor ama de verdade, e assim a união com o ente amado gera máximo prazer e alegria. Felicidade é diferente de alegria: é-se feliz amando, mas a alegria é a da festa do casamento (da vitória), e o prazer é o da união. Ninguém pode separar o que Deus uniu; Ele mesmo não me parece querer separar o que Ele uniu. A segurança da aliança do casamento está em Deus. Se o casamento é baseado no verdadeiro amor ele não acaba nunca, porque a união é eterna. O amor não acaba. Ora, o casamento é um fato humano, terrestre, e é uma instituição divina, mas que dura somente até a morte; esse casamento é um contrato social tornado sacramento quando usado para a cooperação na realização da obra da salvação de Deus por meio de Jesus Cristo. Esse casamento é uma missão, não exige necessariamente o mesmo tipo de amor conjugal que estabelece o arquétipo do próprio casamento entre um varão e uma mulher. O casamento terrestre acaba, mas o amor verdadeiro gera um casamento celeste. Se Jesus Cristo disse que no céu ninguém será dado em casamento, talvez isso seja assim porque o próprio Amor une os corações sem a necessidade de nenhum tipo de contrato. O próprio Espírito Santo é uma Aliança eterna, entre Deus e o homem, entre o homem e o homem, entre os vários tipos de homem. Ninguém que é justo deseja aquilo que não lhe foi dado por Deus. Só o Espírito Santo pode me entregar tanto a minha intimidade como a do outro, que sou incapaz de desejar por mim mesmo aquilo de que não tenho notícia. Quem vê, vê na luz do Espírito Santo. Não há possibilidade de se desejar uma pessoa fora da união quando se está unido pelo Espírito Santo. Não existem ciúmes quando só se deseja o que é seu, confia-se no espírito Santo. Ele é a fonte do amor, no centro do jardim, onde os amantes bebem da água da vida; lá eles vivem eternamente no amor, em meio aos

prazeres do Paraíso. O amante sempre é livre para romper com o Amor, para abandonar o amado e ir buscar prazeres em outros jardins, em terras estrangeiras; ele nunca será feliz lá, só terá prazeres sem quietação. Ele vagueia de um lugar a outro em busca de mais prazeres, amando a diversidade das aparências que fluem pelos seus olhos de superficial visão. Esses prazeres são seu castigo, pois, orgulhoso, se afastou do seu verdadeiro amor. Livre do Amor virou escravo do Mundo. (Quem é escravo do Amor será livre para desprezar o Mundo). O mal amante é aquele que não ama o amor: a união com ele nunca é estável.

"Virginity, Virginity, leaving me where have you gone away?" "I'll never come back to you, I'll never come back......." - Sappho A perda da virgindade é um fato marcante na biologia da mulher. A virgindade é algo passível de ser “perdido”. A virgem tem algo que a não virgem não tem; o que é isso? A mulher só pode perder a virgindade com um homem, uma vez na vida; e ela é irrecuperável. A virgindade não volta. Aquele primeiro ato onde a mulher atraiu um homem e deixou-o entrar dentro de si a marcou para o resto da vida. Foi fulano, foi ele, não foi nenhum outro. A primeira vez em que a mulher faz sexo com um homem ela fica marcada no seu corpo, até a morte, e essa marca fica ligada ao homem que a marcou. Como essa mulher vai interpretar esse fato? É preciso, antes, sabermos o que é a virgindade afinal; o que ela significa.

Amar uma mulher que me ama, e depois de um tempo juntos ela começar a amar outro (do mesmo jeito perfeito que me amou), e deixar de me amar, como quem esquece, sendo mesmo uma pessoa nobre e tudo o mais, e ainda assim isso acontecer, isso seria como perder o paraíso; “minha alma chora e geme de tristeza”. Ou, melhor, isso seria como uma traição do próprio amor.

Chegou um momento na história da humanidade em que o homem sentiu a necessidade de falar sobre o amor de uma maneira nova, de uma perspectiva nova. Na

Antiguidade, até onde eu sei, o tema do amor, quando desenvolvido pelos poetas, a começar por Sappho e Platão até Ovídio e os autores latinos, era sempre abordado pela perspectiva do prazer e da fascinação do sexo, nunca de um ponto de vista do relacionamento em si mesmo, entre um homem e uma mulher. Na Idade Média é onde o tema começa a ser abordado do ponto de vista do indivíduo que deseja ter uma relação amorosa única, destacando a individualidade e insubstituibilidade do seu ente amado. Na Idade Média a atenção dos trovadores se volta para a substância da relação amorosa, ou no que ela consiste. É necessário explicitar o que é o amor. Deseja-se amar para ser fiel ao amor. Agora isso é necessário porque eu tomo consciência de que estou me relacionando com outro indivíduo, com uma personalidade individual, e, portanto, ela não me pode ser indiferente como substância individual. Não é possível que as pessoas me sejam indiferentes enquanto tais. Uma pessoa me diz respeito mais que outras, e eu desejo me relacionar com elas. Por outro lado, há a imagem do casamento, que significa não ficar só, e isso nesse contexto sugere fortemente que existe uma pessoa que eu amo mais que todas as outras, porque ela é toda para mim. Isso não é só uma teoria, tem-se nessa época as primeiras experiências conscientes desse fato, quer dizer, tem-se a experiência do amor como uma relação única e especial entre dois indivíduos que são, cada um, insubstituíveis. A ênfase na relação amorosa faz com que seja necessária a expressão desse amor por parte das duas pessoas na relação. É preciso que ambos sintam esse amor um pelo outro e o expressem, para que ambos estejam participando da mesma relação. Agora que a ênfase está nessa relação é preciso saber se ela está ocorrendo ou não, e para isso é preciso saber no que ela consiste e no que o amor consiste afinal de contas, e como um amante deve se comportar. Ou seja, se uma pessoa deseja estar numa relação amorosa, como ela deve entender o amor, e como ela deve ser? Quando o sujeito se dá conta de que sua experiência do amor é a desse amor pessoal, que se refere à uma substância individual que é outra pessoa, então aí ele tem que ter um modo de expressar isso, e também precisa que a outra pessoa saiba expressar seus sentimentos para que ele possa saber se ela também o ama dessa forma, e só assim eles poderão viver um amor que é forte como a morte de modo consciente. Percebo que na minha própria biografia eu fui tomando consciência desse amor aos poucos, e que também mudei o foco de atenção, em algum momento, de algum modo, do objeto da relação amorosa – a mulher e o que eu posso fazer com o corpo dela – para a própria pessoa dela – se ela se sente como eu – e depois para a relação mesma, isto é, a verdade do amor: o que é que nós amantes podemos ter juntos como homem e mulher, e como pessoas únicas que somos; o que é que pode haver entre nós de real; no que consiste a nossa união no amor.

O casamento A vida aqui na terra é um arranjo provisório que prepara para a vida no céu. Como é que Deus une os esposos, de modo que “o que Deus uniu o homem não separe”? Se duas pessoas, batizadas, casam sob a proteção e benção da Igreja, isto é, se procuram se unir com as intenções esclarecidas pela doutrina da Igreja, então, quando elas casam e se deitam uma com a outra, aí disso elas podem inferir que a sua intenção de união foi aceita por Deus, que efetivou a sua união de uma forma sobrenatural em Cristo, conforme as palavras das Escrituras. Se as pessoas vivem na Lei do Antigo Testamento, ou segundo a lei natural, elas não têm ainda a benção da Igreja na medida em que sua intenção não é plenamente conforme à Vontade de Deus, e, assim, também não há a benção de Cristo tornando esse casamento indissolúvel. Por outro lado, o que Cristo disse foi que todo casamento é indissolúvel, de modo que todo mundo esteve até então vivendo em adultério – senão de fato ao menos em ausência da intenção correta ao casar-se. Toda intenção de união entre duas pessoas do sexo oposto que é aceita pela comunidade e tida como casamento é abençoada também por Deus na medida em que Ele aceita as intenções e votos religiosos dos noivos. No entanto, se o casamento depende da intenção dos noivos, entra aí um elemento bastante sutil da psique, pois ela precisa durar para que os votos sejam cumpridos, ou seja, precisa ter algo mais concreto em que se apoiar, e esse algo é dado pela estrutura social e familiar do casamento. As pessoas só tiveram a intenção de casar naquele momento do casamento, mas depois disso passam a viver como casados, e a aceitação dessa vida revive a intenção do casamento. O que outrora você havia feito por vontade, você passa agora a padecer por fidelidade. O vínculo sagrado do matrimônio significa que esse contrato entre os esposos é sagrado, isto é, diz respeito à justiça. Por isso há a analogia jurídica do matrimônio, como contrato, porque tudo o que é sagrado é sagrado com relação à sociedade, é uma parte separada em relação ao que é profano. O casamento tem que ser respeitado do mesmo modo que um templo. A instituição divina do matrimônio se refere, portanto, à justiça, à justa ordem social e familiar, e não à atração afetiva dos indivíduos. De que modo os indivíduos vão casar não importa, eles podem ter mais ou menos sorte, podem fazer a cosia de modo mais ou menos vantajoso ou prejudicial, de modo mais ou menos adequado à sua própria natureza, mas o contrato continua sendo igualmente válido em todos os casos, porque ele se refere ao matrimônio como instituição e não à sua relação pessoal com o seu conjuge. O problema é que as pessoas não costumam se unir no casamento unicamente por questões sociais e familiares, mas elas se unem por questões afetivas e sentimentais também. As pessoas, para se unir de modo justo, precisam casar, mas se casarem

podem casar com uma pessoa com quem não consiga ter uma relação pessoal íntima ou completa, ou que simplesmente não amem de verdade. Essa é toda a tenção que existe no casamento: como encontrar “a pessoa certa” para casar? Ou seja, a pessoa com quem o único modo de me relacionar com ela é casando-me com ela porque eu a amo de verdade e ela é única para mim? A intenção de união só pode se realizar no casamento, mas o indivíduo pode simplesmente se enganar com relação a essa intenção, ou então o seu parceiro pode mudar muito como pessoa e passar a despreza-lo. A única saída seria encontrar uma pessoa que você ame com todo o seu coração, isto é, que, sendo o sujeito uma pessoa completa, ele encontre alguém que faça o coração dele responder de forma única e pessoal à presença daquela pessoa, e essa resposta seja direcionada à união com aquela pessoa. Se ele casasse com ela, seria o sujeito mais feliz do mundo.

Vocação matrimonial

“Tu és seu entusiasmo, ele teu equilíbrio. Ele é teu impulso genial, te és seu braço” – Constanza Mirianzo (Cássate y se sumissa) “De que adiante viver se não constroes algo que te supere?” “... no lote completo do matrimônio entra essa adesão total a qual aspira todo coração. Há um a quem podes te mostrar toda inteira, e se sentir amada assim.” “A mulher reconcilia com o mundo tanto o homem como a si mesma, está em harmonia com a existência em uma medida desconhecida para o homem, porque a mulher explica a finitude, ela é a vida profunda do homem: uma vida tranquila e escondida como o é sempre a vida nas suas raízes.” “O que deve-se fazer para ‘ser a vida’ de alguén? O primeiro de tudo, ajuda-lo a levar seu jugo e suas debilidades, estando ao seu lado sem sentir-se superior.”.

Sobre traição “E como te explicas que uma mulher possa aceitar a desolação dos encontros clandestinos, a infinita tristeza de voltar à casa com os filhos, carne da carne e sangue do sangue de duas pessoas, e não poder olha-los nos olhos por medo de desvendar

que já não existe o motivo pelo qual nasceram?” – Constanza Miriano, Cássate y se sumisa.

COF 123 O impulso do amor, da afeição, da ajuda mútua, é diferente do impulso reprodutivo, mas o que nós chamamos de relação sexual hoje em dia, não é nem só o impulso reprodutivo, nem só o amor ao próximo, é um mezzo a mezzo, é uma zona indeterminada entre os dois. Só que não existe clareza discussões públicas. As pessoas acreditam que existe uma força, que na verdade é inexistente, chamada “impulso sexual”. O que existe é o impulso da reprodução e o impulso do amor ao próximo, que se dosando e misturando em dosagens diferentes, produzem isso que nós equivocamente chamamos de impulso sexual.

Não é possível explicar a mistura de desejo e afeição que leva o homem, por exemplo, a casar com uma pessoa, a passar o resto da sua vida com ela. Não dá para explicar nem por uma dessas motivações nem pela outra, são de fato duas motivações agindo juntas, e elas são tão diferentes que é possível ter desejo sexual por uma pessoa que se odeia e despreza, e que se quer ver pelas costas tão logo termine a relação. Isto é possível, o mundo está cheio de exemplos. O indivíduo é manipulado pela natureza, é enganado por ela, que o induz a fazer algo que ele, conscientemente, não quer fazer, até despreza. Mas o instinto do amor ao próximo é muito forte. Lipot Szondi, um sábio, claramente distinguia essas duas coisas. Ele chamava o primeiro impulso de “sexo” e o segundo impulso de “contato”. ... Se Deus quis juntar esses três impulsos [1:20] diferentes, é porque quer salvar algo além da nossa alma, ou seja, a recordação do universo físico. Você leva consigo a recordação da experiência que teve no universo físico, e isto é santificado através de você. É por isso que Deus não estabeleceu o celibato universal como queriam os cátaros, que acreditavam que “se é pra santificar, então não se casemos, vai todo mundo para o céu direto e pronto, chegamos à última geração...” Por que Deus quis isso? Ele quis que a experiência nossa na terra valesse algo, a nossa experiência do universo físico, nossa experiência da história, a recordação de tudo que herdamos das gerações passadas; tudo isso, de alguma maneira, é levado conosco.

Por trás dessa noção idiota, esquemática, de que a Igreja só admite o sexo para reprodução, existe uma concepção enorme, grandiosa, alquímico-cósmica do ato sexual, mas os idiotas não entendem.

O direito do amante O amor conjugal puro, que vem do coração, torna a intenção para o ato sexual puramente amorosa, e esse é todo o motivo pelo qual o amante tem o direito sobre o corpo da sua amada. Aqui, o direito sobre o corpo do outro é justificado pela pureza da intenção que vem da consciência clara de que eu te amo com amor conjugal. Se amo com esse amor perfeito, e você também me ama, então não há nada que possa nos separar por direito, porque é nosso direito possuir o corpo um do outro. Se dois amantes se amam com o verdadeiro amor conjugal, e se ambos são fiéis a esse mesmo amor, então ambos tem o direito sobre o corpo do outro e já estão casados, pois a fidelidade a esse amor exige matrimônio. Mas o matrimônio exige algo mais: exige o sacrifício; é preciso que ambos tenham um projeto de vida único, que sacrifiquem sua liberdade individual para formar uma família. O matrimônio não diz respeito ao amor, mas ao serviço. O amor leva ao matrimônio, mas não o realiza, é preciso dar um passo além. Assim, nós podemos ver isso no caso de Heloísa e Abelardo: Heloísa não quer casar, ela sabe que viver assim não é certo, mas também sabe que sua consciência está limpa, pois ama de verdade; mas Abelardo quer casar: ele estava sendo despedaçado por um conflito impossível entre seu desejo por Heloísa e todo o ciúme possessivo que vem com ele, e a realização da sua vocação como o grande filósofo que estava destinado a ser.

-//Nem durante o sexo o homem pode descansar, porque ele não pode ceder completamente ao desejo de prazer, ele tem que se manter firme na sua intenção amorosa. No sexo, entre pessoas que se amam verdadeiramente, a dor da separação é como que antecipada, de modo que o maior prazer já vem misturado com grande dor. O puro prazer só é possível na união espiritual, e quanto mais se deseja o corpo do outro maior o sofrimento da inevitável separação – pois os corpos não se unem, mas sim o espírito. É necessário, pois, que os amantes aprendam a unirem-se no Espírito.

-//Se esta testemunha dizia a verdade, então Heloísa expressa perfeitamente o sentimento do amor conjugal para além da morte: “conta-se que, quando ela repousava da sua última doença, ela deu instruções para que quando ela estivesse morta, ela deveria ser deitada na tumba do seu marido. E quando o

seu corpo morto estivesse sendo carregado para a tumba aberta, seu marido, que tinha morrido muito antes dela, levante seus braços para recebe-la, e então agarre-a para perto em seu abraço.” (The Letters of Abelard and Helouise, Penguin Classics, p.xlvi).

-//Algumas mulheres se gabam com parcial razão de que a mulher é mais fiel ao homem do que o homem à mulher. Sim, é verdade que para um homem, mesmo que ame a sua mulher, se ele fica muito tempo afastado dela, fatalmente cairá nos braços de outra, ainda que seu coração esteja totalmente comprometido com a primeira – o que é uma traição dupla: para com a primeira mulher e também para com a segunda. Já a mulher, ela tem uma virtude própria que sabe esperar, (não que essa virtude seja facilmente alcançada, mas está presente). No entanto, se um homem ainda não se desesperou de ficar com a mulher que ama, ele pode ser atacado por todas as mulheres ditas mais belas do mundo que ele as afastará sem escrúpulos. Mas o homem tem medo de deixar sua mulher à mercê de outros homens; ele desconfia que, por causa da fraqueza feminina, sua mulher não saberá resistir a um homem que julga ser bom e que demonstre amá-la, isto é, pela própria natureza do amor, ele não sabe se ela vai deixar de amá-lo e passar a amar o outro. Mas, no fundo, o homem sabe que ama e, amando, sabe que nenhuma outra mulher jamais tomará o lugar da sua; mas ele não sabe se a mulher que o acolhe não quererá acolher outro depois dele. Talvez essa seja uma desconfiança tola. A mulher, por ser acolhedora, não pode simplesmente trocar um amor por outro. O homem pode, e esse é o medo da mulher: é ela quem deseja o lar, a casa onde eles devem habitar juntos – mas e o homem, ele quer habitar nessa casa? Ele parece mais é querer explorar todas as casas! Mas esse medo também é tolo quando se trata de amor verdadeiro, porque o homem, como a mulher, é incapaz de trocá-la por outra em seu coração, apesar de mais possivelmente poder ter outra mulher diante da sociedade, desde que seu amor esteja desesperado da pessoa amada.

-//Pela própria dinâmica interna do amor conjugal, ele exige uma relação física. Ora, esse tipo de amor não depende de modo algum do matrimônio para acontecer, e isso gera a tensão de se relacionar fisicamente com uma pessoa enquanto se ama verdadeiramente outra. Quer dizer, quem pode mandar no próprio coração? Talvez alguns homens não amem nenhuma mulher em particular, e daí dizem que amam todas; mas alguns homens amam uma mulher de coração, com aquele tipo de amor que jorra do coração, e cujo fluxo não pode ser interrompido de todo, por mais que se tente tapá-lo. Dentre os homens que amam, nem todos podem casar com a mulher que ama; o que fazer? Se o sujeito ama uma mulher, com esse amor, ele quer ter relação sexual com ela e só com ela, porque a ama; mas, se não pode tê-la, continua desejando ter uma mulher, e, às vezes, desejando sinceramente ser um marido e pai devotado à sua família e assim fazer

uma boa obra. O que ele faz, então, se não pode ter a mulher que ama? Ele não tem o poder de “desamá-la”. Se ele casa com outra mulher, aí é que está: ele não tem apenas um simples desejo sexual por aquela mulher fora do casamento, mas ele a ama de verdade, com amor conjugal. Mas tem uma sutileza aqui: porque o que eu entendo por verdadeiro amor conjugal não é o que as pessoas chamam de amor conjugal, mas é um amor que não se pode prever nem medir nem controlar. O que se tem por amor conjugal normalmente é aquilo que começa como uma imitação do que eu chamo de amor conjugal “que jorra do coração”; ele é fundamentado não no desejo do coração mas num desejo de amar e na fidelidade a um projeto de vida conjugal. São duas coisas distintas. O amor que começa no coração já nasce pessoal e intransferível. O amor conjugal mundano é criação humana, é uma eleição; escolhe-se a pessoa que se imagina poder amar, e alimenta-se a amizade e intimidade com ela, e deseja-se o bem dela, e cresce-se na virtude e no amor mútuo. Pode um desses amores se transformar no outro? Se um amor é “eleito”, “alimentado”, não seria ele passível de ser substituído por outro, por sua própria natureza de ser? Mas se um amor nasce do coração, assume-se já, desde o início, que não existe outra pessoa a quem se possa amar desse jeito. Será isso um engano? Mas um engano do coração?! Seria o auto-engano mais cruel do mundo.

-//Sobre a submissão da mulher 1 Tm 2 11:15 – “A mulher ouça a instrução em silêncio, com espírito de submissão. Não permito à mulher que ensine nem que se arrogue autoridade sobre o homem, mas permaneça em silêncio. Pois o primeiro a ser criado foi Adão, depois Eva. E não foi Adão que se deixou iludir, e sim a mulher que, enganada, se tornou culpada de transgressão. Contudo, ela poderá salvar-se, cumprindo os deveres de mãe, contanto que permaneça com modéstia na fé, na caridade e na santidade. -//-

“Aquele que olhar para uma mulher desejando-a já cometeu adultério em seu coração” O homem que olha para uma mulher e a deseja, deseja na figura dela a sua própria luxúria. O que ele deseja não é ela, mas a luxúria, é por isso que ele comete adultério: porque o homem que deseja a luxúria odeia a si mesmo, e trai a si mesmo com seu próprio ego. Vejam bem, olhar uma mulher e deseja-la significa que você deseja todas as mulheres, e que odeia todas. Note bem: você olha para uma mulher e a deseja; daqui a pouco olha para outra mulher e a deseja também; depois encontra outra mulher, talvez que você conheça, do trabalho ou da escola, e, vendo-a, sente ciúme de que ela possa sair com outros homens que não você mesmo. Ou seja, você tem ciúme de todas as mulheres

desejáveis, porque queria que todas elas fossem suas, de modo que sua relação com as mulheres é sempre ambígua: como você pode dizer que ama alguma mulher? você quer o bem delas ou quer ganha-las para você? Não tem como saber, porque você olhou para uma mulher desejando-a, e, portanto, não quer saber quem elas são nem o que você mesmo deve ser para elas. Por isso você as odeia. Não é fácil explicar o que quero dizer. Quando você olha para uma mulher desejando-a, isso significa que você deseja todas as mulheres, mas odeia todas elas. Você odeia porque o que você desejou não foi a mulher, foi a imagem da sua luxúria, você desejou ceder ao desejo sexual apenas. Todas as mulheres desejáveis despertam o homem para o prazer sexual, e o que ele busca é ceder a essa inclinação ao desejo sexual – não por causa dessa mulher em especial, mas por causa do que a visão dela causou nele. A pura visão da beleza feminina balança a alma masculina, enlouquecendo o corpo no processo. No homem que não tem autodomínio a alma cede para o corpo e deseja ser subjugada por ele: é aí que o sujeito deseja aquela mulher. Note bem, ele não desejou a mulher, antes desejou ceder para o corpo. Mas isso acontece com todas as mulheres belas, e, portanto, ele potencialmente já deseja todas as mulheres belas. É por isso que esse sujeito tem ciúme de todas as mulheres, porque ele não pode aceitar que o prazer que lhe é recusado seja dado a outros homens. O problema de ceder para o corpo é que o sujeito é impotente para se realizar, e agora depende da mulher. Mas se o homem depende da mulher para se realizar, ele vai dar poder a ela em troca da sua atenção e dos seus favores. A mulher deseja poder, e ela se erguerá contra o homem. O homem que não pode contra o seu corpo também não pode contra a sua mulher, porque o homem é a cabeça da mulher. Então, se um homem olha para uma mulher desejando-a, ele trai a si mesmo como homem, e automaticamente “troca” ou adultera em seu coração a própria mulher que ele desejou, fazendo com que ela deixe de ser uma pessoa e vire a imagem da própria luxúria. Ele peca assim por falta de amor ao próximo (pois não vê a verdade do outro, nem a sua), e peca por adultério, trocando a outra pessoa pela imagem da própria luxúria. É preciso aceitar que as outras mulheres não são minhas. Que, talvez, exista uma mulher que seja minha, mas que eu não conheço ainda, e, assim, é melhor que não deseje nenhuma. Afinal, como eu posso me relacionar com as mulheres no céu, se eu desejar que todas elas sejam minhas? Impossível. É melhor aceitar, ou perceber, que as outras mulheres não são minhas, mas são outras pessoas que eu realmente não desejo, mas cuja beleza desperta em mim um desejo de ceder para o corpo, e de desejá-la por tentação de adultério. É preciso separar as coisas. E depois juntá-las para compreender melhor a realidade. Acontece que, para quem tem a experiência de amar uma mulher com todo o coração, sabemos que só se ama uma mulher, e, se os amantes forem bons, que o desejo da mulher amada é puro desejo de união com uma pessoa. Nesse caso, não é que o amante deseja ceder para o corpo – pois ele já provou muitas vezes ser uma alma viril –, mas é que ele não tem escolha. Esse amor exige união sexual num nível além do corporal,

como se a própria alma se regozijasse em contemplar esse ato de amor, sendo por meio dele elevada à união quase mística com o outro. Quando quem ama olha a própria mulher que ama, o seu desejo não é adultério, porque o seu desejo é o mesmo desejo do seu coração, e ele sabe o que deseja, e que aquilo que deseja é um abismo sem fim, e que não há volta, e que não há outro em que possa lançar a sua própria vida. -//The Letters of Abelard and Heloisa, pg. 241: “VocÊ frequentemente me pergunta, minha doce alma, o que o amor é – e eu não posso me esquivar sob pretexto de ignorância, como se estivesse sendo questionado sobre um assunto que não me é familiar. Porque este mesmo amor tem me trazido sobre seu comando de tal modo que não parece ser externo mas muito familiar e pessoal, mesmo visceral. Amor é, portanto, uma força particular da alma, não existindo por si mesmo nem satisfeito por si próprio, mas sempre vazando a si mesmo dentro de outro com uma certa fome e desejo, querendo se tornar um com o outro, para que de duas vontades diversas um seja produzido sem diferença... Sabendo que embora o amor talvez seja uma coisa universal, ele tem sido mesmo assim condensado dentro de um lugar tão confinado que eu teimaria em afirmar que reina em nós apenas – isso é, ele fez sua própria casa em mim e em ti. Porque nós dois temos um amor que é puro, nutrido, e sincero, desde que nada é mais doce ou feliz para o outro a não ser que tenha benefício mútuo. Nós dizemos sim igualmente, dizemos não igualmente, nós sentimos o mesmo acerca de tudo. Isso pode ser facilmente demonstrado pelo jeito como você frequentemente antecipa os meus pensamentos: o que eu penso em escrever você escreve primeiro, e, como eu lembro bem, você tinha dito o mesmo sobre você. Adeus, e tenha-me com amor imorredouro tal como eu o tenho por você.” 25 Woman: “para o seu tesouro incomparável, mais delicioso do que todos os prazeres do mundo: bem-aventurança sem fim e bem estar sem esmorecimento. Eu também tenho considerado por mim mesma o que é o amor ou que ele pode ser por analogia com nosso comportamento e afetos, o que sobre todas as formas de amizades, e, uma vez levado em conta, leva a retribuí-lo com a troca de amor e obedecê-lo em todas as cosias... Se nosso amor deserdou-nos com uma força tão fraca, então não é verdadeiro amor. As simples e afetuosas palavras que temos trocado até agora um com o outro não foram reais, mas apenas desmaiado amor. Porque amor não abandona facilmente aqueles a quem uma vez tenha aferroado. Você sabe, amor do meu coração, que os serviços do verdadeiro amor são devidamente cumpridos apenas quando estão continuamente em débito, de tal modo que nós agimos para um amigo de acordo com nossas forças e não paramos de desejar ir além de nossa força. Esse débito de verdadeiro amor, portanto, eu devo me esforçar para cumprir, mas, ai de mim, não sou capaz de pagá-lo por completo. No entanto, se o dever de te saudar de acordo com meus parcos talentos é o suficiente, ao menos meu desejo sem fim de fazê-lo seja de algum mérito na sua estimação. Porque saiba disso, meu amado, e saiba isso verdadeiramente, que desde

quando seu amor clamou para si a câmara de convidados – ou antes a tenda – do meu coração, ele tem sempre permanecido bem-vindo e dia após dia mais delicioso, sem que, como frequentemente acontece, presença constante leve à familiaridade, familiaridade à confiança, confiança à negligencia e negligência ao desprezo. De fato, você começou a me desejar com muito interesse logo no começo da nossa amizade, mas com grande anseio você lutou para fazer nosso amor crescer e durar. E, então, nosso espírito flutuou de acordo com como os seus negócios sucederam, de modo que sua alegria eu tenho como ganho meu e seus infortúnios por minha perda mais amarga. Mas você ter completado o que você começou não me parece a mesma coisa que você aumentar o que você completou, porque no primeiro caso o que está faltando é preenchido, no outro algo é adicionado ao que está completo. E mesmo se nós mostrarmos bondade perfeita para todo mundo, nós ainda não amamos todo mundo do mesmo jeito; e o que é geral (universal) para todo mundo é tornado particular para certas pessoas.. Uma coisa é sentar-se à mesa do príncipe, outra estar ali para aconselhálo, e uma coisa maior é ser escolhido por amor, em vez de apenas ser convidado para a reunião. Então, eu te devo alguns agradecimentos por não me esporar mais por me receber de braços abertos. Deixa-me falar abertamente à sua mente resplendente e seu coração puro. Não é grande coisa se eu te amo, mas ao contrário uma maldade se eu alguma vez me esquecer de você. Portanto, meu querido...” 26 – sempre conhecendo a quem se ama: “À sua amada ainda não conhecida, e ainda por ser conhecida mais intimamente, o jovem que anseia profundamente provar o entendimento de tão grande bem: que você sempre abunde em tal segredo e fonte inesgotável de bondade, e por meio dela nunca esteja sem refresco.” -//-

O mais maravilhoso do amor conjugal é a intensão de união. O que deseja unir-se, deseja unir-se como um todo. Mas o que é isso que deseja unir-se? De que modo eles podem unir-se? As Escrituras nos dizem que o homem deixará pai e mãe para se unir à sua mulher, e ambos formarão uma só carne. Essa uma só carne pode ser imperfeitamente simbolizada no filho que eles podem gerar; mas, é claro, eles também podem não ter filhos, ou ter vários filhos, e podem até ter filhos de outras pessoas fora do casamento ou antes/depois do casamento começar/terminar. De qualquer modo, essa passagem coloca uma verdade incrível do modo mais simples possível: a união entre um homem e uma mulher se dá na carne. Ou seja, existe uma união que se dá entre o homem e a mulher, e o lugar dessa união é na carne. Veja bem, isso é extraordinário: varão e mulher são estruturas analíticas da vida humana, como disse Julián Marías, quer dizer, são elementos universais que estruturam a vida humana, e, por outro lado, a carne é o que há de mais individual e pessoal no homem: cada um tem um DNA, cada pessoa se faz individual NA CARNE. Quer dizer, não existe esse negócio de alma pura isolada do corpo: todo

indivíduo é corpo e alma: sua individualidade é corporal. A marca da individualidade, da pessoalidade, é o corpo, não a alma. A alma sem o corpo é irreconhecível. Quando Jesus ressuscitou, os discípulos não acreditaram porque acharam que era um fantasma, e aí Jesus mostrou a marca das suas chagas, e aí os discípulos creram nEle. Então, coisa mais incrível, quando as Escrituras nos dizem que a união entre o homem e a mulher se dá na carne, isso significa que eles se unem na sua própria individualidade. O sexo, disjuntivo, universal, participante da dualidade, se faz particular em cada ser individual, dando ao “um” da pessoa o poder de união com uma outra pessoa que encarna o outro polo da dualidade sexual. O sexo é, pois, o modo de duas pessoas se unirem como um todo. A carne, sendo o que há de mais baixo no homem, de mais manifestado, é o que mais o determina como indivíduo, o que mais o singulariza, e, portanto, a união na carne é a última e a mais completa: a única capaz de simbolizar a união da pessoa como um todo. Só pode haver uma única união na carne: o que está dividido não permanece de pé. Essas palavras me parecem guardar algum mistério: “o que Deus uniu, o homem não separe”. Ora, mas como eu vou saber o que Deus uniu? Não há tantos casamentos que foram feitos pelos homens? O que é uma união efetivada por Deus? Deus une qualquer menina que é dada em casamento por causa de dinheiro a um homem mais velho? É Deus quem une dois jovens que se casam por pura atração física? Deus uniu aquele casal onde a mulher só casou porque o homem era rico? Mas, o mais estranho de tudo é: o que Deus uniu? E como Ele uniu? Ele uniu duas pessoas na carne. Basta as duas pessoas consumarem o casamento com a intenção correta para que isso aconteça? Provavelmente sim, pois é isso o que chamamos casamento, e é disso que Jesus estava falando. No entanto, se Deus de fato une as pessoas, como é essa união, no que ela consiste? Mas essa união divina no matrimonio termina com a morte da carne, de modo que a ligação é estabelecida apenas entre os corpos marcados pela morte. Ou seja, o casamento é um contrato, não uma união amorosa, e a união amorosa não tem nenhuma ligação necessária com o casamento, tal como a alma individual não depende em nada do corpo de morte para que seja purificada. Ou seja, tal como o corpo pode estar sujo, mas a alma limpa, assim o casamento pode não ter amor, mas o coração amar outra pessoa. Tal como o corpo morre, o casamento acaba; tal como a alma permanece, o amor permanece. O que une um homem e uma mulher na carne é o amor, não o casamento, mas o que valida a união carnal é o casamento, não o amor. Ou seja, a “união” carnal pode ser instituída e validada sem que haja amor verdadeiro ou união pessoal e espiritual, bem como pode haver verdadeiro amor conjugal onde não haja casamento válido. A pergunta que faço é, quando Jesus falava “o que Deus uniu o homem não separe”, do que Ele estava falando: da união no amor, entre dois corações, ou do contrato de casamento, entre dois corpos mortais? Parece ser dessa segunda coisa, mas também poderia ser daquela primeira. -//Ainda não consegui achar a expressão correta para dizer o que é o amor.

Amor é um estado em que a pessoa se encontra, porque a pessoa que ama tem sempre esperança de obter o maior dos prazeres. Como se pode conhecer esse prazer antes de tê-lo experimentado? De algum modo o amante é capaz de vislumbrar a maravilha desse prazer por meio da intensidade da paixão de que sofre – essa paixão já foi exaustivamente descrita pelos poetas de todas as épocas e lugares. Mas sempre essa paixão se refere a alguém em especial, um indivíduo único: às vezes por mero capricho, às vezes para o resto da vida. Não é que a imagem da pessoa amada fica gravada na minha alma porque eu fomento meu desejo por ela; mas é que um dia eu vi essa pessoa, e então concebi por ela um grande amor, e foi por isso que a memória dela ficou profundamente gravada na minha alma, de modo que, sempre que vejo sua foto ou qualquer lembrança dela meu estômago recusa alimento e meu coração se contrai. Mas por que acontece de meu coração, ou então minha alma, se apegar à presença de outra pessoa a tal ponto que já não posso mais ter prazer se não for no amor com ela? Como posso depender de outra pessoa para ter alegria na vida? No momento em que se ama, nesse mesmo instante alguma coisa muda em nosso coração: ele imediatamente abandona todas as cosias para comprar o terreno do prazer onde se encontra essa pérola que se ama. Já nada mais pode contentar esse coração senão a pérola, e por isso vendeu tudo para comprar o terreno que a guarda, ou seja, seu único prazer é possuir aquela pérola, que a seus olhos é mais valiosa que tudo no mundo. Só o amor faz essa transformação no coração, e, uma vez tendo achado a pérola, não é fácil crer que essa pérola possa ser substituível por outra. De qualquer modo, é certo que o coração está convicto de que não há outra pérola no mundo, só essa pode satisfazer meus olhos e todos os meus sentidos. O que segura o amante no amor é o prazer. O campo do prazer determina o estado que na física se diz ser o de “menor energia”, quer dizer o estado de repouso: o repouso é a finalidade de toda vida. Assim, tudo o que nos coloca no estado máximo de prazer, também é o nosso meio de repouso e o fim para o qual tende o nosso coração. Ora, existem muitos amores, mas é o amor a uma pessoa do sexo oposto que determina o terreno do máximo prazer: é no coração da pessoa amada que o nosso coração tende a buscar reconfortante repouso. Mas esse repouso não é sono mas atividade, é vida desperta pelo prazer, pois o sono é morte, que é dor e medo. O prazer, portanto, é vida ativa sem trabalho e cansaço, é repouso sem sono, fogo que não queima... Não é possível entender o amor sem entender o prazer. A questão mais crucial de se entender, no entanto, é que neste mundo o amor não está no prazer, mas no sofrimento: quem ama busca o sofrimento para amar mais. O coração se faz cativo do amor conjugal por causa do prazer; e é por causa desse prazer que ele deseja sofrer tudo por quem ama. Porque o prazer não é separado do amor, o prazer é como o terreno em que o amor foi enterrado: ele esconde o amor dos olhos alheios para que ninguém cobice o que já tem dono. E vender tudo para comprar o prazer é renunciar todos os bens da terra para desejar somente os prazeres do amor, que vem da união com a pessoa amada na carne e na virtude. É preciso ressaltar: a união com a pessoa amada só pode acontecer entre almas virtuosas, porque só existe união em Deus. Portanto, essa união aqui não significa simplesmente sexo, mas plena união espiritual no amor que leva os corpos ao ato sexual. Porém, a verdade é que, na terra, muitas vezes essa união espiritual é impossível, e aí é que se prova a virtude dos amantes. Se quem ama ama do

coração, e com amor de Deus, então ele deverá buscar acima de tudo a união espiritual, desprezando o máximo possível o ato sexual. Mas, a verdade, é que só o prazer é que tem o poder de causar no homem o desejo de amar e ser fiel ao amor. Portanto, o prazer é a força de campo do amor, e o amor é o núcleo de gravidade do prazer: quanto maior o amor maior a força atrativa do prazer. Quanto maior o prazer, mais difícil será para o nosso coração abandonar a memória da pessoa amada. Mas, além disso, é preciso admitir esta hipótese: existe um ponto em que o amor deixa de ser amor baseado numa forma que dá prazer aos sentidos, e abruptamente passa a ser amor íntimo e pessoal, comprometendo todo o coração de uma só vez. Quando eu vejo a mulher que amo, pressinto o prazer que posso ter com ela, e passo a desprezar todos os outros prazeres. A expectativa do prazer faz com que eu não queira deixar de amá-la deste modo. Mas como eu sei que não é meu amor por ela que faz com que nossa união seja tão prazerosa? Aliás, mesmo se não nos unimos ainda, eu experimento imaginariamente que ela é em tudo mais agradável que todas as outras. O que me liga a ela é o prazer ou é o que podemos chamar amor? Não é possível conceber um amor conjugal onde se exclua a expectativa de prazer. Faz parte da natureza humana que a mulher dê prazer ao homem e vice-versa. Mas a ênfase da nossa relação amorosa não está no prazer, e sim na nossa união total. Mas, nesse perspectiva de união, a expectativa do prazer está sempre aí, e é essa expectativa desse prazer, que é o único prazer que pode consolar uma pessoa que ama, é o que faz essa pessoa perseverar no desejo de ter a outra pessoa junto a si. Se não há prazer, o que sobra desse amor? Não existe amor conjugal sem prazer, sem corpo. Contra-argumento: não é assim. Não podemos afirmar que a expectativa do prazer é o que fixa a memória da pessoa amada no meu coração. Mas podemos supor uma hipótese mais provável: que assim como Deus tem os seus eleitos, nós também temos aqueles que nos foram dados pelo Pai. Por exemplo, Jesus teve Maria Madalena, que muito foi perdoada porque “muito amou”, e que mereceu ser a primeira a ver Jesus depois da Ressurreição; depois, Jesus escolheu seus discípulos, e os chamou de amigos; e, ainda, São João é dito “o discípulo que Jesus amava”. Ora, se Deus Pai é quem dá ao seu Filho Jesus aqueles que pertencem a Ele, e alguns desses foram chamados amigos por Jesus e outros não, e uns deles mereceram estar com Jesus nos momentos de mais intimidade e outros não, então pode ser que na nossa vida Deus Pai também nos envie os nossos, isto é, quem Ele quer que nós tenhamos por amigo, irmão, mãe, discípulo, mestre... todas as relações que nós devamos ter. Isso não exclui o fato de que nós possamos ser para alguém “como” um irmão, “como” um amigo, etc... isto é, agindo para com aquela pessoa como se agiria para com um irmão ou para com um amigo verdadeiro. Mas amigo verdadeiro mesmo só temos um ou dois, quer dizer, amigo que Deus nos deu. Como reconhecer isso? A descrição fenomenológica que distingue um amigo dado por Deus e qualquer outro amigo que chamamos “amigo” por sentimento talvez não seja possível, porque a diferença entre essas relações pode ser simplesmente um dom de Deus: o meu amigo me deixa feliz por ser meu amigo, os outros não me dão felicidade por serem meus amigos, mas se me dão felicidade ou alegria será por outras causas. Ou

seja, na relação dada por Deus como dom, a própria relação tem vida própria e é causa de bens espirituais, enquanto que as outras relações não são diretamente sustentadas por Deus mas são fundamentadas em outras causas; por exemplo, quando duas pessoas lutam para defender uma mesma coisa, eles podem se tornar amigos, e podem até ter sentimentos de amizade e admiração pelo outro, sentir gratidão e tudo o mais, e a amizade deles terá fundamentos nas virtudes, mas caso um deles caia no vício ou mude radicalmente de ideia, o outro poderá não sofrer grande perturbação. Porém, podemos ler nas Escrituras que Jonas amou David, e daria sua vida pelo amigo, e que Jesus disse que “não tem amor maior que morrer pelo amigo”. Não podemos admitir que esse “amigo” de que fala Jesus seja qualquer pessoa, pois, mesmo que demos nossa vida por Cristo, pode ser também que Cristo para nós seja um amigo específico por quem damos nossa vida num momento crítico, tal como Jonas e David: não damos a vida porque seja justo, nem por misericórdia, mas por amizade. Como compreender esse sentimento? Não creio que possamos compreender essas coisas, acredito que essas relações sejam um mistério, mas podemos captar a sua essência como um símbolo. Assim, no amor entre um homem e uma mulher, a mulher se torna todo o bem do coração do homem. Mas há uma diferença se isso de fato acontece com uma pessoa ou se é apenas uma ideia que nós temos a cerca de uma paixão que nos acomete. Se isso acontece de fato, a única causa possível é Deus Pai, em Jesus Cristo, porque só Deus conhece os corações, e porque só Ele tem poder para nos dar esse dom, e porque só nEle nós temos vida verdadeira. Uma coisa é querer se entregar totalmente ao serviço da mulher amada, outra coisa é não ter escolha e só poder esperar o momento certo para agir. -//-

O amor verdadeiro leva quem ama a conhecer a pessoa amada. Ele se abre mais facilmente para ela porque deseja sinceramente ser conhecido por ela, e deseja sinceramente conhecer quem ela é de verdade. Por isso o amor está intimamente comprometido com a verdade. Sem desejo sincero pela verdade da outra pessoa não pode haver amor; mas é pelo amor e no amor que se conhece verdadeiramente. É o amor que faz a gente desejar conhecer outra pessoa como um todo, conhece-la de verdade, como um todo. Porque é claro que podemos conhecer muitas pessoas, mas isso não quer dizer que nós desejamos conhecer todas elas como um todo, como uma personalidade integral: corpo, alma e espírito. Não é só desejar conhecer outra pessoa, mas se alegrar em contemplá-la de perto, porque se vê a beleza de sua pessoa como um todo. Quem ama é inspirado pela visão da pessoa amada e se entusiasma em conhecê-la; o movimento para se aprofundar nela é natural para aquele que ama, é um movimento que vem do fundo do coração. Quem ama sente-se privilegiado por poder amar alguém desta forma, porque esse dom nos revela a abertura total para o outro, sendo diferente de todas as outras relações humanas. As pessoas que se amam desejam ardentemente concordar em todas as cosias, e não podem parar de lutar para atingirem este fim; uma

divergência radical em qualquer ponto seria um dano irremediável ao seu amor. A esperança de atingir este fim, essa união perfeita, é o que sustenta o entusiasmo com que se desejam. -//-

O amor conjugal é o que faz desejarmos o bem do outro e a nossa união com ele. O modo de se unir a uma pessoa é conhecendo-a. Isto porque conhecer uma pessoa não é como conhecer uma coisa. Quem ama deseja ser correspondido, porque se não for correspondido não pode conhecer a pessoa amada. Quem ama quer conhecer a pessoa amada; o amor leva a pessoa a se dar a conhecer sinceramente e com facilidade e entusiasmo, e também gera o desejo de conhecer a pessoa amada na mesma medida em que quer ser conhecido por ela. O conhecimento mútuo no amor gera intimidade, e a intimidade efetiva a união dos amantes. Eles se tornam cada vez mais parecidos um com o outro, não nas suas circunstâncias, mas no coração, porque os seus corações estão de tal modo conectados que um sempre sabe trazer para o outro a sua vida e despejá-la no outro enquanto o outro é ávido em recebê-la dele, e de ser lançado na intimidade do outro, e ser para o outro como que um alvo e um espelho ao mesmo tempo. A sua união no amor traz paz, e é fonte de consolação neste mundo e felicidade eterna. Só o amor leva ao conhecimento do outro como pessoa. Sem amor não se busca nada além de si mesmo. O amor ao próximo é como o mesmo amor de si mesmo: “ama o próximo como a ti mesmo”; esse amor, ágape, é o amor puro, quer dizer, sem forma. É amor puro porque não está determinado num tipo de relação humana, ele independe de toda relação interpessoal e afetiva que se pode ter. Podemos dizer que é o conhecimento do outro como ser humano como nós mesmo, igual em dignidade, e também filho de Deus; é conhecer o outro como nós nos conhecemos a nós mesmos, quer dizer, como ser humano como um todo. Mas, se, por um lado, as formas de amor são determinadas pelo tipo de relação humana que se estabelece, e que as relações humanas são circunstanciais, devemos também, por outro lado, diferenciar quando há amor afetivo sincero nesta forma de relação e quando há apenas um fundo de amor ao próximo nesta aparência do amor que tem certa forma. As formas de amor são determinadas por formas de afetividade, mas deve-se diferenciar a afetividade que nasce da paixão e a afetividade que nasce do espírito. Ou seja, é preciso distinguir uma amizade sincera que nasce do coração e uma amizade que é circunstancial. É claro que existem amizades circunstanciais, não que sejam sem amor, mas é que o amor envolvido é ágape e não amor de amizade: isso eu chamo de amizade “circunstancial”, quer dizer, não comove as nossas entranhas, mas a forma da relação que se estabelece em certo momento do tempo é exatamente aquela da amizade, ou seja, os sentimentos, pensamentos e atos são todos de amizade. No entanto, a forma de uma relação, por exemplo, a da amizade, não determina a amizade de fato, e isto é assim pelo simples fato de que nós não mandamos no nosso coração, e nem temos liberdade para determinar o fundo do nosso ser. Nós podemos imitar em tudo a forma de uma relação

humana, porque toda relação humana é circunstancial, e, no entanto, existe uma forma do amor correspondente, e esse amor pode existir ou não no coração da pessoa que ama, e, se existir, é ele quem irá determinar a forma da relação, e essa forma não será uma imitação da verdadeira amizade, mas as outras amizades é que serão uma imitação formal desta que é espontânea. A espontaneidade e entusiasmo são as características próprias do amor sincero e livre. Quando nós escolhemos amar, é porque não amamos, mas desejamos amar desta forma devido à circunstancia. Posso escolher ser amigo desta pessoa por ser conveniente e por nós nos fazermos o bem mutuamente; mas quando a amizade verdadeira aparece nós não temos escolha: só temos a liberdade de cria-la nas circunstâncias e cultivá-la ou não. Nós lutamos interiormente pela amizade verdadeira, ela nos faz agonizar; a amizade circunstancial não é agonia, é acomodação. A amizade verdadeira sofre para nascer na circunstancia deste mundo, que sempre se opõe a ela em algum momento, mas a outra amizade já é do mundo. Quando um amigo verdadeiro morre, o amigo que ficou na terra não sente nenhum vazio, como as pessoas que estão apegadas umas às outras, mas, pelo contrário, ele encontra o pleno sentido daquela amizade quando ele e o amigo foram separados pela morte. Quando um amigo circunstancial morre, é uma perda circunstancial, e a dor de qualquer perda pode variar de acordo com o grau de entendimento que a pessoa tem de si mesma e a posse que tem da sua circunstancia. No fim das contas, uma amizade verdadeira enriquece a vida de uma pessoa ainda que a sua circunstancia não permita que essa amizade se forme numa relação concreta e só exista no coração. É esse dom da amizade que nos ensina a sermos amigos de alguém; se não temos o dom da amizade, podemos imitar superficialmente as amizades que conhecemos, mas nunca saberíamos de fato o que é amizade. E o dom da amizade só nos é dado com respeito a algumas poucas pessoas e raramente durante toda a vida, que é só o que precisamos. Do mesmo modo, existe o dom do amor conjugal, e esse amor leva à união de um homem com uma mulher, por meio de uma abertura mútua ao conhecimento um do outro como um todo, e na medida em que quem ama é ávido em conhecer o que ama para amá-lo mais perfeitamente. Uma pessoa é infinita: o conhecimento dela também; portanto, o amor de uma pessoa é infinito, quer dizer, eterno. O amor eterno só pode vir de Deus. Ora, há uma diferença espiritual fundamental entre o homem e a mulher, e é por isso que o amor conjugal, o amor que é fome e sede do coração e do espirito do outro, só acontece entre um homem e uma mulher: porque a alma masculina está naturalmente voltada para a feminina. A fidelidade a esse amor é o reconhecimento sincero de que ele não nasceu do acaso e nem por causa dos atributos do outro mas que é um dom irrepetível dado por Deus e sem garantias de que poderá ser recuperado se perdido ou substituído por outro segundo o livre arbítrio de quem o pede ou o deseja. Aliás, não é possível pedir esse amor por uma pessoa, porque só Deus conhece o coração do homem e, portanto, só Ele pode dizer quem deve amar quem sem que se cometa nenhuma violência contra a natureza individual de cada pessoa. Se se reconhecer isso, nada se pode fazer senão ser fiel à pessoa que se ama; e, se se é fiel a esse amor, não se deseja mais amar assim nenhuma outra pessoa, e naturalmente toda paixão é afastada da sua alma. Porque a paixão ofusca o olho do coração com desejos

compulsivos e ilusórios, quem ama não deseja ceder a ela, mas luta para se erguer acima dela. Por outro lado, qualquer amor, também o conjugal, não implica diretamente no tipo de relação que se estabelecerá com aquela pessoa, porque a relação interpessoal é também circunstancial, e o amor espiritual é somente do coração, podendo ele irradiar numa forma de relação circunstancial ou não. Uma relação entre pessoas espirituais pode ser formada com um simples olhar, e num único encontro, e as duas pessoas permanecerem amando-se até o fim da vida sem nunca mais se verem, com toda certeza de que se encontraram no céu. A dificuldade, e a confusão que me parece haver em todos os escritos até hoje, é que os santos às vezes chamam de “amor puro” um amor que é conjugal, e todo mundo chama de “amor conjugal” um amor que não tem nada de conjugal, mas que é apenas paixão ou amizade no casamento, coisas que são absolutamente distintas uma da outra. Por exemplo, na carta de são Bernardo a Ermenengarda ele demonstra ter por ela um amor que é claramente conjugal, ainda que puramente espiritual, como ele o afirma, que quer dizer simplesmente que ele não sofre de paixão. Ora, São Bernardo não se expressa do mesmo modo com qualquer pessoa, então ele deve admitir que seu amor por esta Ermenengarda tem algo de diferente do amor dele pelas outras pessoas, porque senão ele não poderia ter mais cuidado por ela do que pelos outros em seu coração. Também nos casos onde há uma espécie de casamento místico entre o confessor e a monja, a única forma de entendermos isso é que Deus deu a eles realmente um amor conjugal puramente espiritual um pelo outro, de modo que, a monja, ao se abrir para seu confessor, por causa do dom do amor que recebeu por ele, tem a graça de se abrir perfeitamente e se dar a conhecer a ele como um todo, e ele a corresponde com a sua instrução, não só com palavras, mas com o coração na mão, como uma pessoa inteira que está ali para dirigí-la, guia-la e conduzir sua alma para Deus, coisa que ela reconhece porque o conhece, e o conhece porque o ama, e ele se dá a conhecer no amor e ela também, de modo que pela união espiritual ambos trilham um só Caminho para o Céu. Acontece que nem a todos é dado amar assim sem sentir paixão, e foi por isso que São Paulo disse: “a cada um é dado seu dom”, e, “se estiver ardendo de desejo é melhor casar”, etc... Às vezes o sujeito sente paixão sem ter amor verdadeiro, mas, às vezes, como no caso de Heloísa e Abelardo, ele sente uma paixão terrível justamente por ter amor verdadeiro e não saber distinguir uma coisa da outra. Outras vezes, como São Bernardo, pode-se ter amor verdadeiro, amor conjugal, sem ter paixão, e aí se está livre da relação conjugal mesmo sendo ela perfeitamente possível, porque já se está determinado, neste caso, por vocação inclusive, a viver para servir somente à Deus e cuidar das coisas de Deus, como dizia São Paulo. O dom do amor conjugal está para a forma do amor conjugal assim como o ponto está para a circunferência ou o coração para o corpo; ele é o que determina a forma do amor conjugal. A forma do amor conjugal é dada pela imagem ideal do matrimônio cristão, com as afetividades próprias da relação carnal entre um homem e uma mulher. Sem este dom não é possível entender a origem e a necessidade do casamento, nem contemplá-lo no sua verdadeira beleza. É no dom do amor conjugal que encontramos o pleno sentido

da vida matrimonial. O dom do amor conjugal é o conhecimento da intenção que Deus tem com relação à criação do sexo humano desde a eternidade. O dom do amor conjugal é uma fonte inextinguível de luz para o conhecimento mútuo dos esposos; é a vida mesma da relação amorosa entre um homem e uma mulher; é a substancia daquilo que os une efetivamente e de modo espiritual. Todo mundo pode se apaixonar, se envolver numa relação amorosa com outra pessoa do sexo oposto, e aí eles vão conhecer a forma do amor conjugal... a diferença é que sem o dom do amor conjugal eles não vão entender espontaneamente, apenas refletindo sobre sua experiência amorosa com seu conjuge, a origem espiritual dessa forma, quer dizer, por que o casamento é assim. A pessoa pode se apaixonar, pode ter afetos pelo outro, pode amá-lo sinceramente como amigo e querer o bem dele, e pode escolher passar o resto da vida ao lado daquela pessoa, construindo com ela uma família unida e feliz... porém, ela pode fazer tudo isso sem ter o dom do amor conjugal por aquela pessoa, quer dizer, sem que o homem deseje ser o esposo espiritual da sua mulher, e vice-versa. Os cônjuges não estarão unidos pelo amor conjugal, mas imitarão o amor conjugal na sua forma para manter uma estrutura familiar estável. O que é “imitar o amor conjugal”? É “sublimar” a sensualidade e dar um sentido superior a ela por meio da compreensão intelectual do verdadeiro amor; quer dizer, é inserir o amor sensual que os esposos sentem um pelo outro dentro de um contexto que abrange esse desejo sensual e dá um sentido superior à união do casal por meio do entendimento da estrutura do matrimônio como um todo. Aqui, portanto, o matrimônio é para essas pessoas um serviço divino ao qual eles devem se dedicar santamente, e onde eles encontram um sentido espiritual para o seu amor sensual. (Quando é assim, o relacionamento não tem vida própria, porque não vem do coração dos esposos, e daí vem a necessidade de criar artifícios teóricos e imaginários para justificar o próprio casamento; e daí também vem a ideia de que o amor conjugal é a mesma coisa que paixão; ou que o casamento é só um meio lícito que as pessoas encontram de fazer sexo; ou a ideia de que a finalidade do casamento é a procriação). A diferença entre a “imitação do amor conjugal” e o “dom do amor conjugal” é que o dom leva as pessoas a se unirem espontaneamente, com ou sem amor sensual, de modo que elas são naturalmente levadas a uma relação conjugal, mas não por causa da paixão que um sente pelo outro, mas por que um só consegue pensar no outro como sendo seu esposo/esposa, um vai sempre querer conhecer o outro como um todo e estar espiritualmente unido ao outro (ainda que carnalmente esta união não possa acontecer). -//-

O amor verdadeiro significa que você tem uma obrigação especial para com a salvação daquela alma que te foi encarregada por Deus. -//-

Em todos os elementos do amor conjugal que eu tento descrever me parece que há sempre um componente de paixão e um de amor ao próximo, de modo que eu não consigo distinguir amor conjugal de paixão nem de amor ao próximo (é análogo à combinação de corpo e alma, ou à combinação dos elementos vegetal e animal na alma). Mas o que é a paixão amorosa em si mesma? parece-me que ela é geralmente identificada com a luxúria; mas será isso verdade? A luxúria é um vício que começa com o desejo do prazer sexual em si mesmo. A paixão está cheia de desejo sexual pela pessoa amada, mas esse desejo não é desejo de sexo, mas de união com a pessoa amada; o problema é que esse desejo de união é intuído no desejo sexual, de modo que a paixão, o ardor pela união carnal significa simultaneamente o desejo de se unir àquela pessoa como um todo excluindo todas as outras. Ou seja, não há amor conjugal sem paixão, mas também não há verdadeira paixão sem amor ágape. A paixão sem amor é luxúria, mas a luxúria não pode ser simplesmente paixão, porque se for assim então o único motivo da existência do casamento é a luxúria do homem. Talvez o amor conjugal seja até mesmo um dom, e talvez por isso São Paulo tenha dito “gostaria que todos fossem como eu.... mas cada um tem seu dom”. Se não houvesse paixão, não haveria motivo para o casamento (sendo sua estrutura do jeito que é), porque a união mais elevada que existe entre seres humanos é dada pelo amor conjugal, que exige um certo tipo de afeto ou afeição que pode ser mais ou menos apaixonada. A paixão, por outro lado, não nasce do desejo sexual, mas da contemplação da outra pessoa como um todo. E, depois, é preciso amar a Deus e ao próximo para se apaixonar sem luxúria, porque também é possível se apaixonar sem amor, e isso é luxúria, e não vem do amor da outra pessoa como um todo, mas de uma fantasia do ego.

-//Quando São Paulo diz “mas se estiver ardendo de desejo”, ele não diz “ardendo por alguém”, mas simplesmente “ardendo de desejo”. Alguém pode arder de desejo sem ser por alguém? Talvez ele estivesse se referindo às pessoas que desejam amar alguém apaixonadamente, e não àquelas que não se aguentam por causa da luxúria, que só estão buscando sexo ou prazer, afinal, este não é um motivo lícito para o casamento. Mas àquelas pessoa que desejam amar alguém apaixonadamente, ele diz “a cada um foi dado um dom”. O amor místico das mulheres religiosas por Jesus é em tudo semelhante ao amor apaixonado. A mulher religiosa que tem raptos místicos de união com Deus descreve sua experiência do mesmo modo que uma mulher ama um homem apaixonadamente, e não existe nada de luxúria neste amor. Todo mundo sabe do perigo que essas religiosas correm de ter confundir o misticismo com devoção sensual. Esse tipo de experiência mística só é possível quando Deus se faz Homem, e Jesus é Deus-Homem. Mas, Santa Teresa, por exemplo, que ama Deus apaixonadamente, e que, como podemos ver nos seus poemas onde, assim como no Cântico dos Cânticos, ela não poupa a sensualidade, que esse amor apaixonado dela é isento de qualquer apelo à luxúria. Podemos perceber que a sua sensualidade é pura e espiritual, e não sentimos o gosto da excitação carnal nos seus escritos de amor. Seus afetos são de amor conjugal, mas sua paixão é isenta de luxúria. Essa experiência de amor, elevada à enésima proporção quando uma mulher tem essa experiência mística com o próprio Deus feito Homem, é substancialmente a mesma experiência do amor apaixonado entre um homem e uma mulher, que é cada vez mais semelhante ao amor da religiosa à Cristo na mesma medida em que esse homem e essa mulher mais se assemelham ao próprio Cristo. A vocação religiosa, portanto, principalmente no caso das mulheres, só pode ser plenamente realizada na terra caso ela consiga subjugar todos os elementos da sua alma ao seu desejo de se submeter em tudo à Jesus Cristo, e isso só pode ser realizado com a ajuda do próprio Deus. Também no amor conjugal, a mulher só pode amar seu marido com a plenitude desse amor se receber tal dom de Deus. Lendo The Adam and Eve Syndrome, do Roy Masters, eu ardi de desejo de ter uma esposa. Acho que esse é um sinal de que um homem pode se casar. Desde que se reconheça tudo o que Roy Masters escreveu nesse livro, e se deseje ardentemente enfrentar essa situação, considerando que tem tudo para sair vencedor com a ajuda de Deus, é possível que esse seja um sinal do que podemos chamar “vocação matrimonial”. Roy Masters é obrigatório para todos os casados. Ele diz claramente: ser esposo é isto; ser esposa é isto. Quem ler e não encontrar a si mesmo no que foi escrito, e se o homem não desejar casar para salvar a sua esposa, e a mulher não desejar casar para dar suporte ao bem que há no seu marido, então essa pessoa não deve casar em hipótese alguma.

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O amor não se dá no prazer, mas na agonia, na participação da agonia, da luta do outro. -//Eu tenho um sonho no coração: no céu, eu queria ser o único a ter o direito de andar de mãos dadas com você, só isso. -//Tanto o Antigo quanto o Novo Testamento apresenta a concepção do casamento graficamente como sendo a aliança entre Deus e Israel e entre Cristo e a Igreja. As Escrituras claramente ensinam que o comprometimento sagrado do casamento foi intencionado por Deus para ser um sinal sacramental do Seu amor por Seu povo. Efésios 5,31-32 “Por isso o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher, e os dois constituirão uma só carne. Este mistério é grande, mas eu falo em Cristo e na Igreja.”. -//-

O sexo é um mistério. Se você não sente medo de se envolver sexualmente com a pessoa que você ama, é porque você não a ama de verdade, é porque você está tendo apenas um amor egoísta. Se envolver totalmente, de verdade, com uma pessoa é algo muito grave que compromete sua existência inteira, e até seu futuro após a morte. O sexo com a pessoa amada deve ser algo maravilhoso, claro, mas essa maravilha inclui um mistério ao qual devemos nos aproximar com reverência e certo temor, e que também moderam a excitação orgulhosa do ego e inclinam a alma humilde para o conhecimento do outro sem agredi-lo. -//O amor natural O sexo, por outro lado, também representa a queda do homem: toda vez que o marido faz sexo com sua mulher, o homem morre nela, e a mulher chora a sua morte; no entanto, também existe na possibilidade de gerar filhos a perspectiva da ressurreição: a mulher sofre as dores do parto da ressurreição do próprio marido. Na mitologia pagã, onde não há a perspectiva da ressurreição definitiva no fim dos tempos, o homem ressuscita como homem carnal, e a mulher todo ano deve chorar sua morte e sofrer as dores do parto da sua nova ressurreição. Se o ego exaltado do homem resolver que é imortal, ele irá falhar, e irá idolatrar sua mulher vivendo uma vida que é morte. Mas, para o homem viver com sua mulher sem cair, ele vai ter que morrer para si mesmo até a próxima vez em que seu ego voltar a demandar o amor gratificador da mulher. E ela

deve chorar a morte do marido, que é um lamento do seu próprio orgulho que a levou a amá-lo de forma criminosa. No amor conjugal natural, a perspectiva da vitória definitiva sobre o ego fica obscurecida pelo ciclo de morte e nascimento. -//No casamento, a mulher é o seu projeto; o homem é o seu projeto. Você casa porque você quer edificar sua mulher, você quer conhece-la e viver com relação a ela, viver “para ela”, quer dizer, para fazê-la sua mulher. Você vai torna-la sua mulher do mesmo modo que vai se tornando o marido dela, conhecendo-a e dando-se a conhecer, acolhendo e sendo acolhido; mas, na verdade, é a mulher que m mais irá acolher, e é o homem que mais será acolhido. -//A mulher precisa do homem para se sentir segura. O homem é a fonte de vida (espiritual) para a mulher. Se o homem ama com amor conjugal verdadeiro, ele vai passar o resto da vida trabalhando para buscar uma união mais perfeita com sua esposa, para conhece-la e se envolver mais profundamente com ela. Ele tem que trabalhar em cima do amor que ele tem pela mulher para atualizar esse amor na vida conjugal deles.

-//Um grande mistério sobre o pecado original é este fato de que nós no nosso estado decaído temos essa estranha capacidade de nos comprazermos na ilusão de sermos como Deus. Esse estado de identificação com o ego em nosso orgulho não é exatamente prazer, mas pode ser sentido como prazer intenso em certas circunstâncias. Por exemplo, quando uma pessoa ama de verdade, mas vive uma vida egoística movida pelo orgulho, sendo que esse amor agora serve de base aos sentimentos egoístas, quando esse sujeito tiver prazer com sua amada ele se sentirá de tal modo como deus que não conseguirá mais imaginar nenhum outro tipo de felicidade que se compare a esta, o próprio paraíso não parecerá digno de ser buscado para ele. Esse prazer é uma mistura de alívio com o prazer da contemplação. Não é só porque o sujeito vive uma vida egoísta que ele não é capaz de amar de verdade, mas o prazer que ele tem é uma mistura: ele tem alívio da culpa (psicológica) – na ausência de insegurança, ciúmes, etc... –, alívio da dor (fisiológica) e algum prazer espiritual por estar com sua amada (dom de Deus). -//-

O maior sofrimento do amante A fidelidade do homem à mulher está relacionada com o prazer que ela lhe dá, mas a fidelidade da mulher ao homem está relacionada com a segurança que ele é capaz de lhe oferecer. Uma mulher que ama é capaz de dormir com um homem que não ama simplesmente pelo que ele pode lhe oferecer de bens materiais e segurança; um homem que ama não é capaz de se deitar com uma mulher que não ama, porque o homem só se deita com a mulher por prazer, e o único prazer do homem que ama é sua amada. Mas o único amado de uma mulher pode não oferecer a ela a segurança que ela precisa. A mulher amada sempre oferecerá ao seu homem o maior prazer, de modo que ele facilmente desprezará todas as outras mulheres. Dizem que o homem que trai sua mulher tem menos culpa, porque ele faz isso só por causa do prazer, enquanto que para que a mulher traia o homem ela precisa se envolver sentimentalmente com o outro. Por outro lado, existe o tipo de mulher que sabe usar o uso que o homem faz dela para conseguir outros bens em troca, e essa mulher é capaz de trair seu amado sem remorsos, porque para ela o sexo não significa nada. Se o homem sabe como usar as mulheres para ter prazer, as mulheres sabem como usar o uso que o homem faz delas para obter deles bens materiais, poder e segurança. O homem degrada a mulher usando ela, e a mulher degrada o homem usando o uso que ele faz dela. O corpo da mulher é muito mais importante para o homem do que o corpo do homem o é para a mulher. O corpo da mulher tem um significado especial para o homem, ele é um verdadeiro templo onde o homem adentra para festejar sua união com ela. O corpo da mulher é uma casa para o homem, uma habitação sagrada que é o descanso dele, um “jardim selado”. O corpo do homem não é isso para a mulher, ele tem outro significado para ela. Se um homem se deita com outra mulher, o corpo dele não é tão manchado como o da mulher que comete adultério. A mulher não sente nojo do corpo do homem que cometeu adultério nem do que foi abusado por outro homem. Mas o homem sente repugnância do corpo da sua mulher se ela foi abusada por outro. Porque é o homem que entra na mulher, e ele sente que esse lugar é sagrado para ele. A mulher recebe o homem, mas como ele é todo exterior, o adultério não o deixa sujo, bastando que ele se lave para limpar toda a sujeira. A mulher pode engravidar de outro homem, já o corpo do homem não é alterado pela mulher. O corpo da mulher é muito mais importante para o homem do que o corpo do homem para a mulher, mas o amor do homem é igualmente importante para a mulher como o corpo da mulher é para o homem. Há aí um desequilíbrio natural: o homem, quando ama, não pode desamar uma mulher para amar outra; mas, a mulher, quando ama, pode dar seu corpo a outro se ela quiser sem sentir nenhuma mágoa nisso. O adultério de uma mulher dói muito para o homem, porque ele enxerga o amor dela em união com a atitude corporal dela para com ele, enquanto que a mulher separa uma coisa e outra,

porque ela vê o amor do homem separado da atitude corporal dele para com ela, sendo esta uma coisa secundária na relação. A mulher não é tão ferida quando um homem faz sexo com outra do que quando ele demonstra ter sentimentos de afeto por outra. Para o homem é diferente, quando a mulher dorme com outro ele encara essa atitude como uma traição monstruosa; ele não sabe que a mulher é capaz de vender seu corpo com a maior falsidade, com indiferença. A mulher tem medo de que o homem traia ela com outra, mas o maior medo dela é que ele acabe se envolvendo sentimentalmente com a outra e passe a despreza-la. O homem tem medo de que a mulher o traia com outro porque pensa que ela pode facilmente ceder à pressão de outro homem e acabar tendendo para ele sem saber como impedi-lo de chegar até o coração dela. A mulher pensa que o homem pode ser atraído por uma mulher mais bonita; o homem pensa que a mulher pode traílo com algum homem mais forte, atrevido e poderoso. O maior sofrimento de todos os sofrimentos do coração é saber que sua mulher está dormindo com outro sujeito, pior ainda se for seu amigo. Esse sofrimento atroz é causa de desespero. O coração é tomado por uma profunda tristeza e desânimo, não se tem mais vontade de fazer nada, de pensar nada, de viver nada. É como ser excluído da existência, como se não houvesse mais lugar para mim no céu, ou como se o céu fosse uma dimensão completamente nova onde tudo que existe na terra é vão será esquecido para sempre. Isso é assim porque não se pode conceber outro céu que não a união com sua amada. Quando sua amada está dormindo com outro homem, é como se você fosse automaticamente desligado dela e ela de você, como se ela estivesse cumprindo um ritual que a desligasse completamente de você e você dela. Esse ritual que ela faz não a liga a outra pessoa automaticamente, pois o Amor só pode ligar efetivamente aquele par que ele absorveu em Si numa unidade. Mas esse ato dela dormir com outro sujeito é uma ação consciente e livre que se opõe ao amor do amante, como que negando-o ou desprezando-o da maneira mais brutal e concreta. O sexo é como um ritual de amor, a celebração do amor conjugal, de modo que se sua amada faz sexo com outro sujeito ela está negando e desprezando seu amor da forma mais solene e definitiva; mas, se ela não ama o sujeito com quem faz isso, e se é impossível para o sujeito amá-la como você a ama, então todo esse ritual simbólico no caso deles é apenas um “mito”, um ritual cuja substância não existe efetivamente, um rito que significa uma realidade que não existe entre eles. De qualquer modo, se estão casados, eles têm direito sobre o corpo um do outro. Só o amor conjugal não dá nenhum direito sobre o corpo do outro, porque todo direito é social, e o casamento é uma estrutura social, e o sexo só pode ser concebido moralmente dentro do matrimônio, de modo que o direito sobre o corpo do outro deve ser socialmente reconhecido, mas é impossível reconhecer socialmente o sentimento de uma pessoa, ainda mais um sentimento tão profundo e único, e que nem todos possuem capacidade para compreender. Se o amante não é correspondido, ele estará

condenado a não ter mais a felicidade que se pode ter nesta vida; se ele não aprender o caminho da humildade ele se perderá. -//Por que motivo o amor pode tornar um homem pior: “Você foi carregado pela beleza dela, pela sua esperança de se deleitar nela, e pelo seu impetuoso desejo” – se ele agir só por estes motivos, ignorando todo o contexto, se ignorar o bem e o mal, e o qual é o melhor caminho como um todo, então ele age mal. Não é fácil condenar o amor. Vejamos como Petrarca, pela boca de Santo Agostinho, condena o amor por meio de seus sintomas: “Lembre-se de como, assim que essa praga tomou posse da sua mente, você estourou em lágrimas; como você ficou tão infeliz que você passou a ter um lúgubre prazer nas lágrimas e suspiros; como suas noites eram de insônia e o nome da sua amada estava sempre em seus lábios; como você desdenhava tudo e ansiava pela morte; e como você teve um amor melancólico pela solidão evitava contato humano.” Veja que todos esses sintomas, que se sucedem ao amor, não são causados pelo amor, mas sim pelos vícios que já estavam alocados na alma antes da chegada do amor. O amor cria uma tentação e uma tensão, tensão que é a dor mais profunda, uma constatação de uma ausência; ele gera um novo estado de cosias. Diante dessa nova situação, a alma pode reagir virtuosamente ou viciosamente, ou, como geralmente acontece, conflituosamente em meio aos seus próprios vícios e virtudes. O amor, inflamando a alma como um todo, não permite que os vícios e as virtudes continuem existindo ao mesmo tempo, de modo que a alma que ama geralmente ascende rapidamente na virtude ou se degrada completamente no vício. Então, não se pode condenar o amor pelos seus sintomas, já que esses sintomas são apenas a manifestação dos vícios que já existiam na alma mas que antes não eram sentidos, pois estando a própria alma sonolenta, ela fica menos sensível aos seus próprios vícios e virtudes. Quando a alma acorda subitamente, com um desejo que ela não sabe de quê, nem vindo de onde, ela faz o estômago revirar como que pressentindo uma grande guerra. E a guerra é esta: aquilo que eu amo pessoalmente, e a quem desejo me unir de todo coração, é, assim como eu, alma e corpo, e meu amor por ela é carnalespiritual, mas enquanto minha carne é movida para baixo, minha alma é movida para cima, e meu amor não pode existir sem um e sem outro, e eu não posso viver sem amar. Depois, ele cita um outro autor que disse: “se você tentar resolver essas contradições por meio da razão, tudo que você estará fazendo é cuidando de ficar louco de um modo racional”.

-//O erro de tratar o amor como uma doença da mente Ao tratar o amor como sendo uma doença da mente, é preciso curá-lo. Como fazer para curá-lo? Os doutos no assunto dizem que, se o indivíduo querer mesmo ser curado, basta ele se afastar de tudo o que o faz lembrar da pessoa amada, e aí ele irá esquecê-la. Contra argumento: ora, mas como podemos achar a cura de uma doença se não sabemos nem quais são suas causas? Para começar, porque alguém começa a amar uma pessoa em especial, e no que consiste esse amor? Depois, como é que se pode curar algo pelo simples esquecimento do problema? Esse método é uma imbecilidade suprema. O que acontece é que a pessoa pode persistir obstinadamente em não lembrar da pessoa amada e se esforçar para pensar em outra pessoa que se quer amar no lugar dela – se aquela pessoa amada voltar e reivindicar o seu amor, esse indivíduo se dará conta de que nunca a esqueceu de verdade, pois mesmo que não ceda ao seu amor, certamente ficará perturbado e terá que fugir de novo. Mas, de qualquer modo, não é possível ser realmente feliz longe do seu amor, porque só nele o amante encontra a perspectiva da plena felicidade. -//O desejo mais alto de amor que eu tenho é desejar que minha esposa deseje carregar um filho meu. Se ela deseja isso de coração, então ela vai gerar um filho meu na sua própria alma e vai cuidar dele para mim. Esse filho é o fruto do meu amor que fecunda a sua alma fértil. Esse filho sou eu nela, sou eu sendo dela, gerado por ela; eu providencio a vida para ambos, dando a ela o material, a substância, com que ela alimenta e protege o seu filho. Para que eu encontre repouso nela, eu preciso ser aceito por ela, para que eu possa provê-la com minha vida. Eu quero que ela seja para mim o meu tabernáculo, onde eu coloco meu coração, e a mãe dos meus filhos, que completam a nossa alegria. Um filho é sempre novo, autônomo, como uma metáfora ambulante do amor dos esposos. Uma casa cheia de filhos é a alegria do amor profícuo de duas almas bem unidas. -//A mulher bela – a beleza do corpo da mulher “Uma bela virgem é bela” – Hípias Maior 287e. O que a mulher bela significa para o homem? OU, Por que o homem é fraco pela beleza feminina?

A bela virgem tem a sua beleza intacta, pura, porque ninguém a conheceu, sendo por isso mais desejável que a bela não virgem. *Tudo o que a beleza parece fazer é revelar com esplendor a adequação da figura da coisa à sua forma ideal. Símbolo do corpo masculino e feminino (analogias com o corpo): Masculino: Primeiro, é notável como o corpo do homem, comparado com o da mulher, é mais forte, duro e voltado para o exterior (como se evidencia na sua postura e no órgão sexual). Assim, a postura do homem adequada ao corpo masculino é mais rígida que a da mulher, com movimentos mais “retos” e rápidos ou “bruscos”. A dureza do seu corpo “repeli” mais do que “atrai”, e sua força o torna útil para prover (conforto e proteção) e para explorar (característica de expansão). O corpo do homem é mais “seco” que o da mulher – por isso a mulher costuma ser mais resistente ao efeito do álcool. O corpo masculino é próprio para gerar movimento, ação; o homem faz cosias, move coisas, faz pressão para transformar o seu meio. Assim, o corpo masculino é todo voltado para o serviço, de modo que o homem evidencia maximamente a Bondade do Criador ao oferecer e prestar serviço ao próximo. Um corpo masculino é belo porque é bom. Então, a virtude correspondente ao corpo masculino, para tornar o homem perfeitamente adequado à masculinidade do corpo, é a continência, a sabedoria de se conter. De fato, vemos que um homem incontinente se comporta mais como uma besta do que como um homem, e é a característica que mais o degrada, porque ao invés dele utilizar seu corpo para o que lhe é próprio, para fazer o bem, ele utilizará o corpo para obter prazer egoisticamente, degradando a mulher e a si mesmo. Um homem não continente dificilmente poderia cumprir os seus serviços que ele oferecesse a alguém, ou ao menos um homem continente é mais confiável em qualquer caso, pois é mais capaz de se ater ao bem que se propõe. Feminino: Primeiro, é notável que o corpo da mulher é em tudo mais agradável aos sentidos do que o corpo do homem, e principalmente atraente aos olhos, sendo propício para promover o contato humano por meio da atração, sendo a mulher mais convidativa à convivência que o homem. Além disso, a maciez (“umidade”) do corpo feminino o torna propício ao aconchego, seja do bebê seja do homem, servindo para ele como que de almofada; em que lugar o homem colocaria um filho seu senão no corpo da própria mulher? Em tudo o corpo feminino é útil para acomodar o homem e carregar seus filhos e cuidar deles. Do mesmo modo, o corpo feminino é propício para oferecer companhia, para oferecer convivência, pelo seu aspecto centrípeto, de atração, de gravitação. O corpo feminino não é tão eficiente na ação, na qualidade do movimento físico (força e agilidade), sendo mais apropriado para o repouso, mas por causa da sua

energia psíquica ele como que oferece uma base para a ação do homem por meio do “acolhimento”, do cuidado (nutrição) e da preocupação. Assim, o corpo da mulher evidencia maximamente a Beleza do Criador – e de forma misteriosa, devo dizer – principalmente como o “lugar” da geração do bem (ver Platão). Dessa perspectiva, podemos inferir que a virtude correspondente ao corpo feminino, quer dizer, aquela virtude que corresponde no plano espiritual à beleza do corpo feminino como um todo, é a virtude da modéstia: do agir de modo mais apropriado em todas as coisas. De fato, vemos que quando uma mulher não é modesta, essa falta nela a torna mais provocante para o homem, ofendendo-o, pois ao invés desta mulher estar oferecendo convivência, ela está na verdade oferecendo mais tentação do que outra coisa. O corpo feminino é bom porque é belo. Uma boa mulher é modesta. -//Se eu amo uma pessoa que não me ama do mesmo modo, então eu tenho ciúmes da “felicidade” dela, porque é como se isto que a faz feliz a estivesse roubando de mim; e, por outro lado, é como se eu desejasse roubar esta felicidade dela sempre que eu a desejasse para mim. Fazer o bem ao “próximo” ou desejar o bem do “peóximo” é diferente de desejar fazer o bem a quem eu amo (de amor conjugal). Para o “próximo” eu não sou “eu”, mas “alguém”; quer dizer, quando eu faço o bem ao “próximo” eu não desejo ser reconhecido como sendo “eu mesmo”, mas como sendo apenas “seu próximo”, isto é, simplesmente “algum homem” que estava passando pela mesma estrada naquele momento em que ele precisava de ajuda. Ou seja, eu não desejei estar ali, foi a Providência que me pôs ali naquelas condições, e daí a Caridade exigiu de mim seus serviços naquele momento. Já no amor conjugal não é assim, porque, além do meu conjuge ser o meu “próximo” em algumas circunstâncias, ele também é meu companheiro com quem muito desejo estar intimamente unido. Ou seja, ao mesmo tempo que desejo o bem da minha amada, também desejo que ela me receba como sendo “eu mesmo” um bem para ela. No amor, deseja-se possuir um bem, no caso do amor conjugal, esse bem é o amor do outro: quem ama deseja ser correspondido do mesmo modo. Eu desejo ser para minha amada o que ela é para mim, e ela é o meu maior bem. Há aí um conflito, porque se eu quero o bem dela, eu ao mesmo tempo quero ser o bem dela, de modo que existem dois bens em competição: o que ela precisa, e o que eu quero que ela precise. Quem quer ser desejado no amor quer ser necessitado, porque quem ama se vê miserável sem o amor da pessoa amada. Por isso, toda vez que o amante deseja o bem da pessoa amada, ele sofre a tensão de ao mesmo tempo desejar ser o único bem dela, e estas duas coisas estão misturadas e confundidas em todas suas ações com relação à ela. Por isso o amante quase sempre confunde o bem que deve fazer por caridade com o valor que ele deseja ter para a pessoa que ama, e assim ele agirá mais tendo em vista a autopromoção do que o bem

da pessoa amada. Mas por que o amante acaba confundindo estas duas coisas quase que inevitavelmente? Porque o homem cria uma imagem que representa aquilo que ele pensa ser, e, no seu orgulho, se torna inclinado a realizar essa imagem que ele criou às custas da própria realidade, de modo que, se atendo mais aos seus desejos do que à própria realidade, ele acaba acreditando que será mais igual a si mesmo por meio da imitação de certas imagens que concebeu como boas, e não por meio da humildade, do padecimento e da obediência ao que há de mais sagrado na sua vida – porque esta última opção não dá a ele nenhuma evidência de que ele atingirá os seus propósitos, de modo que ele deverá agir com fé, esperando que o melhor haverá de se cumprir de qualquer modo. Ora, amar com amor conjugal significa que me unir com minha amada é um bem supremo para mim. Essa união irá durar enquanto durar o amor – mas “o amor é forte como a morte”. Então, a pessoa que eu amo, eu também desejo como sendo um bem exclusivo meu. Mas, como a felicidade no amor depende da união de duas pessoas livres, é preciso que ambos amem igualmente, tornando-se assim o bem um do outro, sendo ambos como que coagidos pelo mesmo amor e atraídos um para o outro. O que fazer, então, se o amor não afeta ambos do mesmo modo? Aquele que ama desejará a sua amada como o maior de seus bens enquanto que ele mesmo não será um bem equivalente para ela. Portanto, se ele desejar ela, ele estará desejando a si mesmo para ela, e assim estará desejando para ela algo que ela não deseja para si mesma. É evidente que ao deseja-la ele estará ao mesmo tempo desejando ser o bem dela tanto quanto ela é o dele, mas ele não é o bem dela ao menos tal como ela o vê neste momento. Assim, ao deseja-la, ele estará desejando para ela algo que ela não deseja para si mesma. Mas como pode alguém amar uma mulher sem deseja-la? Porque, se ele a ama, a ama por pura necessidade, então como não deseja-la? Esse desejo do amor é como terra sedenta e sem água, é a necessidade do amor, amor que é dado e não criado do nada, e é dado pela revelação do valor do bem que se vê. Acontece, porém, que quem ama não pode fazer nada para obter dessa água – ela está selada na rocha e ele não é capaz de invoca-la. Quem ama deseja com um desejo que é necessidade. Quem ama necessita como quem tem sede: pela fé no amor tem-se maior prazer na esperança de se obter o que deseja do que dor provocada pela necessidade, e quanto maior a necessidade maior o prazer de se esperar com fé. Mas o amor mesmo ninguém vê, porque ele é o que une dois numa visão mútua. Quem ama não busca realizar o que deseja, pois não sabe nem o que deseja, só sabe o que ama: ele ama a rocha e deseja a água, mas a água está escondida na rocha e ele não sabe se está lá ou não, ele só pressente; assim também ele ama o corpo e deseja o amor da pessoa escondida naquele corpo. Buscar o que deseja é loucura, pois é algo que está além das suas faculdades. Volto à questão: pode o amante desejar a amada sem que ao mesmo tempo deseje a si mesmo para ela? Se ele a ama, deseja o amor dela, se ele a deseja porque a ama,

também deseja que ela o deseje do mesmo modo. Se ele quer que ela seja dele, quer que ele seja dela – então deseja-la é o mesmo que querer a si mesmo para ela! Porém, quem deseja, deseja o que? O desejo do amor é duas coisas: desejo do corpo e desejo do coração da pessoa amada. O desejo do corpo é insano, nunca se sacia, é irracional porque não se realiza nunca. Já o desejo do coração, o desejo de amor correspondido, esse desejo é pura necessidade – e não se refere a nenhum bem terreno. Então, desejar o amor da pessoa amada é apenas uma consequência de amá-la, mas desejar o corpo de quem se ama é o mesmo que desejar a si mesmo para ela – o que é puro egoísmo. Então, como vimos, quando um amante deseja sua amada, ele a deseja como um todo, e não consegue distinguir facilmente as diversas camadas do seu desejo, de modo que o desejo pelo corpo da amada aparece com tanta intensidade quanto for o desejo de ser correspondido pelo amor do coração dela. De fato, a unidade que se vê entre alma e corpo é tão profunda que é tão difícil aceitar a distinção desses desejos quanto é difícil aceitar a própria morte. Quem ama uma pessoa, não tem ciúmes só dos seus afetos, mas também do seu corpo, e com igual intensidade. Assim, o chevalier des grieux sofre desesperadamente ao ver a sua Manon Lescaut o traindo com outro homem, e, no entanto, mesmo que ela também o amasse de verdade, ela envia para ele uma outra mulher e diz algo como: “eu só quero a fidelidade dos seus afetos não do seu corpo”. Mas Manon estava cruelmente certa em saber distinguir estas duas realidades! Ela sabe que pode ter o corpo “usado” por outro homem e ainda permanecer amando seu amante com o mesmo tipo de puro e sincero afeto que ele tem por ela; mas isso será sentido por ele como uma dolorosa traição, e ele se sentirá ferido ainda que seu amor verdadeiro esteja intacto: porque o amor mesmo não sofre qualquer perda, só o homem é que perde ao “cair” do amor para o ódio. Ele vai continuar amando ela do mesmo jeito, mas poderá se rebelar contra o amor orgulhosamente e passar a agir de modo desordenado – talvez entre numa disputa por poder, ou se torne um tirano, ou seja infeliz tentando fazer com que sua amada também seja infeliz – tudo isso por causa do orgulho. O amor mesmo jamais é atingido, só o que é atingido é o nosso orgulho. Mas quem sabe amar, sabe que deseja acima de tudo o amor da pessoa amada, porque sabe que esse amor é eterno; depois, deseja que esse amor se manifeste nos afetos do coração da pessoa amada. Só que quando isso acontece a alguém, essa pessoa se vê invadida por uma variedade de sentimentos, emoções, paixões, temores, desejos, como se estivesse caído dentro de um fluido turbulento. Isso acontece porque a natureza decaída cria resistências ao amor. Então, o desejo do corpo da pessoa amada passa a estar em primeiro plano, porque o homem carnal tem sua atenção voltada a este e não ao plano das realidades mais sutis, de modo que ele vai tentar realizar seus desejos mais baixos sem se dar conta de que eles não correspondem ao amor, mas são como que efeitos colaterais do amor.

-//A afetividade está muito relacionada ao corpo; e a beleza do corpo, de modo geral, favorece a afetividade humana. Afetividade e sexualidade estão muito relacionados, uma desperta a outra. Porém, a espiritualidade também está presente no corpo e o corpo na espiritualidade, mas a espiritualidade transcende o corpo; isso quer dizer que um homem pode ter afetos carnais ou carnais-espirituais. Quer dizer, o homem pode sentir as mesmas coisas por diversos motivos diferentes. Assim como um mesmo fato pode ser interpretado de muitos modos e significar cosias diferentes para pessoas diferentes, de igual modo uma mesma causa pode provocar diversos sentimentos; e também um sentimento pode ter origem em causas diversas. Uma pessoa pode ter raiva simplesmente porque está com fome, ou pode ter raiva porque na hora em que ia comer o seu bife ele escorregou do prato e caiu, ou pode ter raiva porque alguém roubou o único pão que tinha para alimentar a família: cada uma dessas raivas será diferente e levará a atitudes diferentes diante dessa emoção; este homem pode simplesmente ignorar a raiva no primeiro caso e pensar que ela é um sinal do seu amor próprio e que não fará nenhuma diferença para o universo se ele morrer de fome ou não – ou então ele pode simplesmente xingar o primeiro indivíduo que lhe der “bom dia”; no segundo caso, ele pode pensar na fragilidade humana que é sujeita a erros, ou pode dar um soco na mesa e amaldiçoar o mundo; no terceiro caso ele poderá correr atrás do vagabundo (digamos que o caso seja esse) e tentar captura-lo ou, então, inventar uma desculpa para frustrar a sua raiva e esconder o seu orgulho ferido mentindo para si mesmo por covardia. O terceiro caso é o único em que a raiva corresponde a um valor: ela corresponde ao zelo pela justiça. Do mesmo modo, aquela afetividade do homem que está relacionada à sexualidade, a afetividade do consolo e do prazer sensual, as pessoas podem ter esses afetos por diferentes causas, e segundo essas causas nós podemos afirmar o que uma pessoa busca na sua relação com outra pessoa. Uma bela mulher tende a ser tratada carinhosamente pelo homem em geral, porque a visão da sua beleza desperta nele a sensualidade, e ele reage mais ao sentimento da sua sexualidade despertada do que àquilo que essa mulher deseja que ele veja nela – na hipótese dela realmente querer que ele veja algo além do seu corpo. Qualquer homem pode achar que essa sensualidade é amor, porque ela gera sentimentos de amor. Mas esses sentimentos de amor também são gerados por outras causas, significando outras coisas e estabelecendo um outro tipo de relação entre pessoas e entre as pessoas e seus corpos. -//Amor e Divina Providência O amor é algo que acontece. Amor acontece num momento, como que num passe de mágica. De fato, como pode haver uma evolução gradual do verdadeiro amor? Existe um abismo entre o amor do próximo e o amor que é se enamorar por uma pessoa do

sexo oposto por ter visto sua beleza com os olhos do coração. Mas isso acontece num momento, numa circunstância, e esse acontecimento é único e irrepetível, e até onde sei não acontece da pessoa amar desta forma duas vezes na vida. Se um homem amou duas mulheres, ele não amou nenhuma delas, e vice-versa; se amou uma mulher desse jeito, a amou de uma vez por todas porque esse amor é eterno – só acabando realmente no caso da pessoa amada ir para o inferno, onde “mesmo o que tem lhe será tirado”. Se esse amor acontece num momento, e acontece para uma pessoa e para outra não, no decurso de uma vida, além de que não pode acontecer duas vezes, pois que esse acontecimento deixa uma marca profunda cuja dura cicatriz não pode ser novamente penetrada por outra lâmina, então esse acontecimento deve ter um significado único para a vida do indivíduo que o padece, e esse significado transcendente deve ter em vista a Divina Providência. Casar com uma pessoa é casar com um projeto de vida humana, e com um “estilo” de vida. Só se você casa com uma pessoa por confiar na Providência divina, por ter se entregado à Divina Providência, e não por desejar mulher ou homem, é que faz sentido você se deitar com seu conjuge para ter filhos e não por sensualidade. Se você casou com uma pessoa porque acredita e confia que Deus a reservou para você de algum modo, então pode-se presumir que os frutos dessa união serão mais agradáveis a Deus, mais conforme seus desígnios, por assim dizer. Amar é sofrer. O sexo é a consolação do sofrimento que é amor – ele não cura, é só consolação. Se eu casar com a mulher que eu amo, continuarei sofrendo de amor por ela, e ela só pode me consolar disso, e melhor ainda se nós pudermos ser o consolo um do outro, mas o sofrimento não acaba enquanto a morte não nos libertar da temporal separação para a união na eternidade. -//-

Livro: Sobre el amor humano (título em português: “O que Deus Uniu”) “conhecer o amor perfeito e sem retorno/ exige corações que em suas próprias derrotas,/entre largos esforços e amarguras derrotas,/ hajam com rudes golpes lavrado seu contorno.” “Os instintos e as paixões do homem estão feitos para o espírito; seu estado normal é estar abertos e transparentes a esta força imaterial que os completa e os coroa.”

25-26% ele fala sobre a tendência moderna de espiritualidade: “Uma renúncia absoluta ao exercício de certas faculdades naturais chegam a ser condição, não digo inúteis, mas sim cada vez menos necessárias para os contatos profundos com Deus, para a imersão da alma na caridade.”. E há para isso duas causas: “uma tomada de consciência mais profunda de Deus e de nós mesmos... e um considerável esgotamento do tonos vital que já não nos permite grandes tensões ascéticas”. “Por outro lado, se desenha atualmente no mundo católico um vasto movimento intelectual em favor da espiritualização das coisas do corpo e da vida.”. “Todo amor que chega à maturidade, entregue a si mesmo, chega a unir-se ao Amor”. -//A confusão das formas de expressão do amor Os atos de “amor” ou carícias afetivas são atos puramente físicos, “instintivos”, de modo que podem ser interpretados de várias maneiras, como significando coisas diversas. O ato com que um homem usa uma mulher, ou com que uma mulher usa o uso que o homem faz dela, coincide na sua estrutura física com o ato de mais puro amor conjugal. E também é assim com todas as outras carícias, de modo que um homem que realmente ama uma mulher deverá se expressar de um modo muito similar àquele do homem que deseja apenas conquistar uma mulher por motivos mais sensuais do que vitais. “Nenhum afeto pode permanecer puro e verdadeiro se os seus componentes humanos não concordam com o amor divino. Entre as condições para esse acordo, há duas que se enraízam no coração mesmo de nosso destino: a verdade e a dor.”. “Somente os afetos que resistem à destruição e à “noite” de seu primeiro componente sentimental estão chamados a transcender no tempo. Um amor é grande e duradouro na medida em que o nutrem a decepção e as dores semeados em seu caminho.”. “Não há mito mais venenoso do que pretender realizar uma síntese afetiva universal no plano dos prazeres sensíveis. Tal mito leva à dissolução e agonia de todo amor. A síntese das paixões e do amor transcendente, da inquietude temporal e da paz eterna, jamais se há consumado senão no desprendimento e no silêncio do temporal e sensível.". Sobre casamento entre castas sociais distintas: “Direi claramente: esta confusão não supõe progresso. A identidade do meio social me parece uma das condições centrais da felicidade conjugal. Desde logo não rechaço em absoluto as uniões entre pessoas de meios diferentes. Penso unicamente que devem constituir exceção, já que exigem de uma e de outra parte qualidade individuais que não se podem pedir à generalidade dos homens. Quando um homem e uma mulher

entram pelo matrimônio em um meio superior, ou simplesmente diferente do seu, é preciso que entrem sabendo (hoje em dia se pensa demasiado que se pode entrar em qualquer lugar sem escalas) e que supram com seu poder de amor e adaptação à comunhão espontânea que resulta da identidade do meio. Um príncipe só pode desposar acertadamente com uma pastora se a pastora possui uma alma de princesa, e estaremos de acordo que pastoras assim não andam pelo mundo. Uma das taras do mundo moderno é pretender fazer costume do que só pode ser exceção e cair mais baixo da norma ao querer generalizar aquilo que está por cima da norma.” “não há nada tão perfeitamente egoísta como certos matrimônios de amor que não nascem da união íntima das almas, senão da sede vulgar de uma felicidade superficial e imediata, de uma felicidade impermeável ao dever.”. Nós olhamos para outras mulheres por curiosidade – luta contra uma das múltiplas variedades de sede de infinito que desde o pecado original consume o homem. Nietzsche: “no verdadeiro amor, a alma envolve o corpo”. “Pois bem, a constituição sexual da mulher e, como consequência, seus gostos e suas necessidades nesta ordem, são muito diferentes das do homem. Além disso, temos que levar em conta as divergências individuais resultantes do temperamento, a educação, etc. Se cada um dos cônjuges não buscar a sua própria satisfação, o que irá acontecer? O sentido mais elementar do dever conjugal ensina aos esposos a subordinar sempre o gozo que recebem ao gozo que dão. No matrimônio, o máximo da plenitude sexual recíproca não pode ser alcançado se cada um dos esposos não consinta em sacrificar em certa medida sua plenitude sexual individual.” obs.: Isso significa que a continência no matrimônio é simplesmente estar atento a essa realidade: se você ama sua mulher, você vai querer fazer sexo com ela só quando ela te desejar. A sexualidade nas mulheres funciona de um modo diferente. No que diz respeito ao sexo, são as mulheres que naturalmente devem “ditar” o momento certo, porque a mulher tem o privilégio de ser a parte atraente ou em repouso da relação enquanto que o homem é a parte que é atraída ou que deve se movimentar para ter o que deseja; além disso, e de acordo com isso, o homem só depende da visão da mulher para se preparar para o ato sexual, enquanto que na mulher essa preparação é mais complicada. Para o homem o sexo é a melhor coisa que há, e não há motivo para que ele não queira fazer isso até começar a sentir dor; mas para a mulher o apetite sexual dela não é assim, a sexualidade da mulher é mais interior e menos vulnerável às irradiações que vem do exterior. Isso tudo eu digo somente com relação ao estado ideal da natureza pura (não individual, de cada um). “O homem geralmente sublima seu instinto sexual em pensamento, em ideal extrapessoal; a mulher, em ternura. Se a mulher é muito menos carnal que o homem no exercício material da sexualidade, o é muito mais em suas sublimações mais sãs. A

compenetração da carne e da alma se dá nela em um grau desconhecido para o sexo oposto. Nas emoções mais carnais ela põe mais alma que o homem; e, em vingança, mescla mais a carne às paixões do espírito... Sua sexualidade, muito menos localizada e brutal, muito menos animal, por assim dizer, que a do homem, encontra frequentemente em manifestações muito inocentes de ternura uma satisfação quase suficiente. Mas as mesmas carícias que, para a mulher, substituem a plena possessão carnal, no homem não podem senão preparar esta possessão, e no lugar de acalmar o instinto, torna-o mais exacerbado.”. “A mulher, com efeito, pode realizar o prodígio (absolutamente desconhecido no mundo animal) de fazer convergir num mesmo ser seu instinto sexual e seu instinto maternal. Creio não exagerar se digo que o primeiro filho de toda mulher, nascida realmente para ser mãe, é seu esposo. E creio que esta é uma das mais profundas raízes da perenidade do grande amor feminino.”. •

Amor feminino -> mãe e esposa (representação simbólica e alegórica ou personificada). Mãe= amor espiritual; esposa=amor carnal.

“A mulher foi criada para sacrificar-se pelos seres que a rodeiam e que conhece e assegurar o porvir imediato da humanidade. O homem, ao contrário, está destinado a uma doação mais universal”. “O afeto da mulher se universaliza em contato com o ideal de seu esposo; e também o amor do homem ganha em delicadeza concreta em contato com a ternura feminina.”. “No matrimônio é preciso, assim como na vida mística, aprender a respeitar e amar o que não se compreende de todo. Também o amor da criatura exige atos de fé.” “ ‘Sentir como o ser sagrado se estremece no ser querido’, assim define maravilhosamente Víctor Hugo o grande amor. Desse modo o ser amado é realmente insubstituível: dado por Deus, é único como Deus; um mistério inesgotável habita nele. Os verdadeiros esposos conservam eternamente almas de noivos: a possessão aprofunda para eles a virgindade. Quanto mais são um do outro, mais fome têm um do outro. É uma maneira sagrada de possuir as cosias que, em lugar de matar o desejo como na satisfação carnal, o exalta e transfigura... Como pode se esgotar o amor dos esposos, se foram criados e unidos para dar-se Deus um ao outro? A vida dos dois se desenrola e se faz infinita em uma oração única.”. “Nenhum outro amor impregna mais forte e totalmente ao homem que o amor entre os sexos, inclusive na ordem do espírito e da personalidade. Nada entre as coisas criadas... envolve maior exigência de absoluto e de eternidade que esta paixão surgida das obscuras emoções da carne; nada como esta chama que, parecendo ser apenas e essencialmente servidora da impersonalidade da espécie, une e plenifica as pessoas.”

obs.: isso se deve porque o “âmbito” da sexualidade simboliza no homem justamente o âmbito da união pessoal, íntima e amorosa. “Coisa estranha: esse amor comunica a alma um calor afetivo, uma vibração lírica indizivelmente profunda, mas não implica nenhuma purificação interior, nenhuma “conversão” no sentido profundo da palavra; muda o colorido, mas não a orientação da vida afetiva. Moralmente falando, o amor não engrandece os amantes. Causa uma revolução nas sensações do homem velho; não toca seus motivos, seus interesses, sua atitude corrente ante si mesmo e ante o mundo... a alegria nascida do amor sexual é independente da elevação espiritual do indivíduo.”. obs.: daí porque uma pessoa que passou a amar (com toda força do amor) pode se tornar muito melhor ou muito pior – e raramente continua a mesma coisa. O amor não melhora o homem, ele como que colore a vida, não, ele é fogo que arde sem se ver. “... libido sciendi. Amar é cobiçar avaramente o segredo de um ser, não para compartilhá-lo, senão para mata-lo; é escrutar impudicamente as entranhas desse ser, é tirar dele, colher, e ao mesmo tempo esterilizar o que se colhe, pois o homem não recebe senão na medida em que dá e só possui na realidade ao ser a quem se entrega: no amor, os conquistadores só se apoderam de coisas mortas.” “Para tais amantes, o amor se mede pela curiosidade, pelo atrativo malsano do mistério..., e esse amor se extingue quando a curiosidade está satisfeita. A amada não é nesse caso uma terra que se cultiva e se habita, uma pátria, é uma terra de exploração, um lugar de excursão que se atravessa e se esquece...”. “amamos uma mulher para descarna-la de seu mistério”. essa sequidão afetiva pode evoluir para três direções: 1) morte do amor; 2) simbiose de egoísmos (compromisso artificial), um resido mais ou menos mecanizado da antigua ternura pode cimentar essas uniões mortas. Mas a associação repousa, sobretudo, em uma comunidade de satisfações carnais, interesses materiais, convenções sociais... 3) transfiguração do amor. “O que ama através da decepção ama por fim o objeto em si mesmo. Produz-se em seus sentimentos uma espécie de descentralização: à deformação subjetiva do primeiro “amor” sucede a perda de si mesmo. O amante aprende o realismo do amor: s sente ligado, vencido pelo outro, invadido por um destino estranho. Ama mais além dos sentidos e de todo desejo. E uma nova alegria nasce nele: a alegria grave, silenciosa e incorruptível de entregar-se. Ama também agora a criatura pela sua pobreza. Quanto mais pobre é, mais pode dar a ela. Sua dileção é tão vasta, que quisera oferecer-se todo inteiro ao ser amado sem sequer incomodá-lo com uma exigência em troca... Mas nisso também é verdade que aquele que consente em perder sua alma a recobra imortalizada. O homem que deu tudo está disposto a recebe-lo todo. A criatura amada com esta pureza se converte numa fonte inesgotável

de delícias... Então, descobre a alma do ser amado. Purificado pela prova, e pela sua fidelidade através do colapso de todo o estreito e impuro que seu amor levava consigo, é capaz de comungar com esta alma. A criatura se lhe faz agora transparente e libertadora até o infinito. Amou nela o vazio e agora esse vazio se povoa de dons maravilhosos como um espaço deserto que a luz invade. Porque a criatura não abre seus verdadeiros tesouros senão aos corações vírgens de cobiça; só entrega seu ser profundo e imortal a quem antes a amou por seu nada.” “Não há entre as coisas criadas nada tão puro e completo como esta entrega de amor entre os sexos.”. “O homem não é já o escravo torturado de seu destino; é o escravo de uma alma, e nesta dependência encontra a paz e a liberdade.”. “A ternura que emerge do seu nada é indizivelmente serena; ignora os temores, as dúvidas, os ciúmes. Os amantes não se sentem mais ameaçados pelos azares, pois estão ligados um ao outro pela mesma fonte de seus destinos, por este fundo do ser que não mente nem morre; uma segurança inefável envolve seu amor, que agora para eles se confunde com a existência e a necessidade. E o mesmo desejo perde neles seu caráter ordinário de necessidade e de inquietude, é tranquilo e como que transbordante; a fome já está saciada, esperar e possuir se confundem... Então a alma compreende o que é o amor, o que é, segundo as definições antigas, “sair de si”, “querer o bem” de outra alma.” “... A dor sustenta as promessas do amor nascente. Nesta crise do amor, o que importa é antes de tudo a alma saber morrer para renascer e não resistir às transformações que a prova engendra.” “é como a respiração de duas substancias entremescladas: que para querer-se mutuamente lhes basta existir”. “A última essência do grande amor do homem e da mulher reside numa série de confidencias e de graças divinas feitas a uma alma pelo canal elegido de outra (este “apagar-se” em favor das causas segundas é um sinal de uma das mais profundas delicadezas divinas). A criatura dá aqui algo mais que a si mesma..., revela à outra criatura, elegida entre todas, o segredo divino do mundo e o segredo humano de Deus.”. nota 15 (de algum capítulo): “Os eleitos conservarão uma vida específica e atualmente instintiva, mas seus instintos estarão perfeitamente limpos de finalidades materiais e perfeitamente espiritualizados. Quando Cristo, respondendo às torpes objeções dos judeus, diz que os bem-aventurados serão “como anjos de Deus”, não quer dizer que serão assexuados como anjos, mas que sua sexualidade será desprendida da polaridade material terrestre, do seu caráter genital (Freudiano)... Deve-se notar que, quando os sentidos estão profundamente de acordo com o espírito, sem nenhum desequilíbrio da vida interior, os prazeres da carne podem ser vividos. Tal unidade, não

sendo impedida pelo peso da matéria e do pecado,, deveria ser regra do matrimônio cristão.” -//-

É totalmente compreensível que algumas vezes se tenha tomado os prazeres sexuais como sendo “prazeres proibidos”. De fato, o ato sexual carrega uma intencionalidade intrínseca no seu gesto que raramente está em comunhão com o coração dos indivíduos que dele participam. Isso significa que só uma pequena parte dos casais tem prazer sexual isento de mentira ou falsidade. A virgindade da mulher é algo que se sacrifica. O corpo da mulher é sacrificado por ela junto do homem no ritual do sexo. É a mulher que “se entrega para o homem”, ela “dá o seu corpo”. O único motivo digno para que a mulher sacrifique seu corpo deste jeito é a intenção de receber os filhos de Deus. Esse sacrifício do próprio corpo ao entregalo a um homem é um abdicar da sua pureza orgânica, um abdicar de guardar a sua pureza para o Noivo Celeste. Se existe algum outro interesse que manche a intenção de ter filhos para Deus, então, nessa parte manchada, esse corpo será imolado para aquele que o adora, para o seu prazer, honra, glória e poder. A virgindade só se perde uma vez, mas, se o pecado pode ser apagado, também a virgindade pode ser regenerada, porque essas duas coisas são a mesma coisa. Parece-me que, de algum modo, quase todo ato sexual envolve pecado, e que o matrimônio sacramental é uma espécie de “vista grossa” que Deus faz para esse pecado tendo em vista a fraqueza humana. O verdadeiro amor, se foi purificado, é o único capaz de preservar a pureza no ato sexual, porque é inspiração divina.

-//-

“A pessoa espiritual da mulher traz consigo um dom incomensurável de que o homem não se pode beneficiar senão por ela.” – A Mulher Eterna, pg. 32. “No domínio da natureza, ela libera o homem da sua solitude, no domínio espiritual, ela o libera dos limites que lhe impõe a pessoa.” pg. 32

“Quando o homem percebe a colaboração que lhe traz a mulher como esposa de seu espírito, verifica ao mesmo tempo que a sua própria atividade criadora não passa duma colaboração na obra de Deus, o Criador único.” pg. 38 “A mulher que permanece submetida à ordem eterna só pode pretender um desempenho cultural: o da esposa do espírito masculino” pg. 44 “Para a mulher digna deste nome (de esposa), não se trata nunca duma parte somente do homem que ela ama, duma parte somente do mundo onde ele vive; quer, porém, sua pessoa inteira. E, outrossim, deseja tomar parte em todo o domínio de sua vida.” pg. 47

-//A angústia do amor não correspondido Eu não faço parte da vida dela; talvez seja só mais uma sombra no passado dela, como tantas outras pessoas que passaram por lá... E, no entanto, ela é tudo para mim; eu não sou nada para ela. Só ela pode me dar a mim mesmo, a única esposa do meu espírito. Eu sinto angústia profunda quando vou falar com a Carol. A expectativa do desejo, o próprio desejo, a antecipação da sua frustração, o medo dessa frustração, tudo isso gera uma tensão paralisante que se traduz em angústia mortal. O amor é real mas diz respeito à relação ideal; o desejo é imaginário mas se refere à situação mundana. Como seria possível não deseja-la se eu a amo? Eu posso até não consentir nesse desejo, mas ele está aí; qualquer movimento que eu faça até ela no mundo estará sempre no âmbito desse desejo, que existe por causa do amor, na intenção de união conjugal. Se não é possível falar com ela sem desejo, não é possível falar sem medo, pois a própria intenção do desejo será sempre frustrada: seja por causa da tentativa de negar previamente essa intenção (e aí correrei o risco de agir inconscientemente), seja porque eu sei que não há nada de fato entre nós – se houvesse qualquer coisa entre nós eu não precisaria inventar nada para colocar aí nessa relação, bastava eu tomar conta do que já houvesse. A única coisa que existe aí foi o que eu já coloquei: minhas cartas, minha vida, meu amor. Se eu inventasse qualquer cosia, correria sempre o risco de ser irrelevante e sem significado nenhum para nossas vidas, e eu não posso ser essa nulidade. O pior é que eu não posso falar o que eu quero, eu não posso me dar a ela, mostrar o que eu sou para ela, não se eu não sou admitido na vida dela. Eu não posso compartilhar com ela a minha vida, as minhas alegrias e tristezas, nem na saúde nem na doença... frequentemente eu tenho a ideia de mostrar algo para ela, mas logo em seguida perco o ânimo; sinto passar rapidamente o entusiasmo da ideia de

compartilhar tal coisa com ela quando percebo quão longe estão os nossos pensamentos um do outro. Eu tenho a impressão de que a vida dela é um paraíso, de que ela vive toda a felicidade que eu desejaria ter com ela, só que com outra pessoa. Tenho uma forte impressão de estar perdendo algo sempre que interajo com ela, mesmo quando vejo suas mensagens num grupo do whatsapp (sem que eu esteja participando da conversa). Tudo o que me lembra da materialidade da vida dela, da “carnalidade” da vida dela, me lembra de que eu estou constantemente ausente da vida dela, e, ao mesmo tempo, me vem a ideia da vida dela como uma imagem sensual que eu desejo, como uma cena cinematográfica de intimidade feminina. Acho que eu projeto uma imagem da vida dela como se fosse a realização dos meus desejos, e penso que a vida dela é assim como a minha felicidade realizada, só que sem mim. Se tudo o que eu faço é deseja-la, desejar ter essa vida com ela, a vida que eu imagino para ela, então não há possibilidade de eu falar com ela sem a expectativa de alcançar esta vida. Mas, se eu desejar a salvação da alma dela mais do que me unir a ela nesta vida, então eu posso tentar me relacionar com ela em outro nível. Mas o que me leva até ela é o amor conjugal, de modo que o desejo de me unir a ela nesta vida permanece no fundo orgânico do meu ser como um todo. O problema é que eu não consigo interagir com outra pessoa pensando no bem dela. Isso raramente acontece, e, quando acontece, eu naturalmente fico amigo dessa pessoa. A dificuldade é que eu não me vejo sendo um bem para as outras pessoas, e eu não vejo as outras pessoas sendo um bem para mim numa relação qualquer. Geralmente eu só tenho a perder falando com alguém, e geralmente eu só perco mesmo. Eu espontaneamente só falo com as pessoas o essencial, só interajo na medida da necessidade, porque eu já sei que no estado de confusão mental em que as pessoas estão eu só tenho a perder caso precise emitir e ouvir opiniões. No entanto, não acho que seja possível viver no mundo sem estar o tempo todo emitindo e ouvindo opiniões. As pessoas ao meu redor são geralmente sem graça, mas não entendem os meus gracejos; estão o tempo todo a falar besteiras e coisas sem sentido, ou então falam sobre coisinhas insignificantes mas, quando o assunto pode ser relevante, logo mudam de tópico. Quando alguma questão interessante é levantada, ela some rapidamente depois de três ou quatro chavões e frases de efeito serem emitidas. Não é possível conversar de verdade com ninguém aqui no momento. Mas talvez eu possa começar a emitir quaisquer opiniões sobre algum assunto da hora, começar a interpretar certo modo de ser no mundo, apenas para as pessoas do mundo, só mesmo para interagir com elas cotidianamente, e para fazer notar a minha presença como pessoa, para ajuda-los a criarem de mim uma imagem social e assim facilitar para eles me aceitarem em suas vidas. Talvez, nesse momento da minha vida, eu já esteja preparado para interpretar um papel social, e de fazer isso de uma forma que não seja absolutamente vergonhosa; talvez possa falar coisas que interessam

publicamente de uma forma que não seja totalmente patética, de forma que não venha a sentir vergonha da minha própria ignorância. Para isso, eu terei que interpretar um papel social muito mais baixo do que aquele que estaria de acordo com meu nível de consciência; mas eu não posso fazer papel de filósofo na sociedade, de modo que eu terei que agir, para me adequar a um meio social inferior, como se eu fosse apenas mais um deles só que um pouco mais maduro e culto. É provável que não seja a primeira vez na história que algo assim acontece. Mas, realmente, eu não posso continuar me esquivando disso, porque as outras pessoas precisam que eu tenha algum papel social para que elas interajam comigo. Mas eu não posso conversar com a Caroline principalmente porque eu não me sinto como ela; eu não sei o que ela está passando, como ela sente a vida. Com ela, eu só quero saber da intimidade dela, que ela conheça todo meu amor; eu quero casar com ela por amor. Mas, de qualquer modo, não há nada que nos ligue além disso. Ela não precisa de mim, e talvez não precise mesmo de alguém como eu. Eu me atenho às realidades mais altas e sublimes e sobre os problemas temporais que são mais universais, e só falo sobre essas coisas buscando a verdade e não por vaidade ou para ter alívio. No entanto, se eu quiser começar a falar sobre essas coisas com ela, se eu quisesse enviar para ela alguma reflexão sobre a vida, eu não saberia por onde começar, não saberia como encaixar isso no contexto da vida dela, se ela não me diz sobre o que ela costuma pensar ou o que lhe interessa de verdade.

-//Conferência com Alice von Hildebrand https://www.youtube.com/watch?v=3wtguZe5p6A - “Eu estou muito perto de uma juventude eterna. Você meio que reexamina a sua vida, e tem uma porção de coisas que você não gosta, de que você se arrepende, que você não fez, mas tem uma coisa de que eu estou muito orgulhosa. Por causa da diferença de idade entre nós, eu me arrependo do fato de que eu perdi uma boa parte do seu passado que eu não compartilhei com ele... a solução dele foi imediata: ele escreveu suas memórias em 5000 páginas (escrito à mão). Adão e Eva perderam a inocência no pecado original. Não há vergonha de estar nú, mas há vergonha da concupiscência. “... um dia ele (o pai de D von Hildebrand) chegou para sua esposa e 5 filhas e disse: algo absolutamente extraordinário aconteceu comigo – ele tinha em torno de 53 ou 54 anos -; ele disse: pela primeira vez na minha vida eu tenho uma modelo com a perfeição da beleza feminina – ele já tinha visto centenas de modelos. Mas uma vez

ele viu uma que era absolutamente perfeitamente bela. E ele dizia que é mais difícil achar um belo corpo do que um belo rosto – que já é bastante difícil. Então ele disse a eles: vem ao meu estúdio para ver isso. Então o pequeno garoto, que tinha 13 anos, disse: pai eu não quero ir. E todo mundo ficou surpreso: como você não vai!? Só imagina: a beleza feminina perfeita! Mas ele disse: não, eu quero guardar o dia de ver uma mulher nua para o grande dia do meu casamento quando eu me comprometer para a vida toda; eu não quero ver uma mulher nua antes desse dia.” Meu marido estava convencido de que a esfera íntima deve ser o domínio em que o homem e a mulher unidos no matrimônio expressão o desejo de união. É algo sagrado. -//-

A Bíblia designou um livro específico só para falar sobre o amor conjugal, que tem um elemento sensual intrínseco, e que é expresso de forma cabal e sublimada no Cântico dos Cânticos. O amor sensual do Cântico de Salomão é descrito de forma “pura” e “sublimada”, quer dizer, ele não descreve os desejos desse amor da forma como eles aparecem na imaginação humana, mas de forma metafórica, relacionando o amor sensual com a beleza da criação. Fora esse livro, nenhum outro livro da Bíblia expressa o amor sensual inerente ao amor conjugal. Nos evangelhos, na vida de Nosso Senhor Jesus Cristo, o elemento sensual do amor é omitido em toda parte, bem como nos outros livros da Bíblia. Nas Epístolas, a ênfase do amor está na caridade, e o amor sensual só é visto explicitamente na sua forma viciosa e ilícita; a forma válida de amor sensual é omitida. Isso não significa que o amor sensual não tem sentido no contexto da História Divina, da Salvação de Deus. Uma interpretação mais coerente com a realidade seria de que o lugar de expressar o amor sensual é dentro do casamento e privadamente, no coração do amado, como diz a Bíblia em alguma parte: “e falou ao seu coração”. A sensualidade do amor não é simplesmente omitida, ela é como que pudoradamente escondida, porque é o sentimento mais íntimo e pessoal do coração, é o que diz respeito ao “meu corpo” apenas, à minha individualidade junto ao meu amado e a mais ninguém, à minha felicidade pessoal. O amor sensual tem um elemento intrínseco de procriação, de modo que a sua finalidade só se encontra no mundo terrestre. Onde não há procriação biológica não pode haver amor sensual. Mas o amor sensual tem uma finalidade espiritual que é expressar a união de duas almas num amor mútuo pessoal, íntimo e exclusivo. Essa espiritualidade do amor sensual o faz símbolo de algum amor sensual eterno, que não diz respeito mais à procriação, e é esse amor que nos é comunicado pelo Cântico dos Cânticos. E, não dizendo mais respeito à procriação, a imagem corporal desse amor sensual, a sua expressão corpórea, já não tem mais sentido. Porém, sendo outrora apenas símbolo dessa união espiritual mais profunda, o sexo, que no céu não tem

sentido (não tem finalidade), não precisa mais ser realizado como um ritual, mas vira apenas uma lembrança terrestre daquela realidade que se atualiza perfeitamente no próprio Paraíso Celeste. O caminho de expressão do amor conjugal na terra já não mais existirá no céu, onde este amor estará plenamente consumado e as almas dos amantes verdadeiramente e inseparavelmente unidas. Não podendo mais a alma intencionar a procriação, e não podendo o corpo sentir dor, o amor conjugal não se manifestará no corpo de forma sexual, envolvendo o órgão sexual, pois o corpo entenderá que não tem mais aquela participação nesse amor, sendo uma ressonância perfeita da voz da alma. -//O desejo Eu não sei qual a origem do meu desejo de ter mulher, que para mim parece ser algo como um desejo de ter mulher em geral, que pode se atualizar sempre que eu olho para uma mulher bela (que tem um corpo cuja figura se assemelha mais perfeitamente com a forma ideal da mulher). Eu não desejo necessariamente uma mulher bela quando ela aparece diante de mim, mas me é sempre possível deseja-la. Esse não me parece ser o puro desejo de prazer – que eu não acredito que exista – nem mesmo um simples desejo desordenado, mas é algo que está dado na estrutura do ser varão, como um puro desejar se unir a uma mulher. Eu não acredito que um varão possa desejar uma mulher somente pelo prazer sexual, porque o prazer sexual sem a mulher não é nunca buscado nem na imaginação. O varão busca a mulher e não o sexo, mesmo que ele se atenha praticamente só ao prazer sexual que tenha com ela. Mas esse desejo de ter mulher não é o mesmo que desejar essa ou aquela mulher em específico, é um sentimento meio vago como se estivéssemos sentindo falta de alguém que deveria estar aí para nós, mas “estar aí” de um modo específico, isto é, no amor conjugal. O fato da mulher bela ser mais atraente, e da mulher feia não ser atraente, significa que o desejo do homem pela mulher não acontece sem que haja o elemento da beleza do corpo feminino. O corpo da mulher bela de fato proporciona mais prazer, como se este corpo fosse mais adequado à união conjugal do que os outros menos belos e os feios. Daí que se a atenção do homem está constantemente voltada para o prazer, ele poderá desejar uma mulher visando esse bem acidental da união conjugal que é o próprio prazer. Porém, eu não posso imaginar como um homem pode desejar uma mulher sem que ele a deseje justamente na expectativa de um prazer sensual que ele imaginou poder ter com ela.

O desejar mulher tem uma conotação um pouco diferente do simples desejo sexual. Quando eu falo “desejar mulher”, estou me referindo ao desejo sexual incorporado por uma personalidade humana completa que deseja se unir ao outro no amor. Ou seja, aqui o desejo sexual adquire um sentido espiritual mais elevado. Toda vez que se deseja mulher existe a expectativa do prazer sensual, mas essa expectativa pode ser o centro motivante do desejo ou pode ser uma espécie de termômetro que indica o grau de felicidade da união que se busca. Se a união buscada é parcial, isto é, viciosa, o prazer será uma motivação predominante do desejo do sujeito. Mas se o sujeito está centrado no seu próprio coração, então o prazer é como que um termômetro que indica a qualidade da união que ele busca. Se um homem tem o habito de fantasiar relações sexuais com as mulheres que o atraem, é provável que ele será sempre incapaz de amar qualquer uma delas, sendo seu desejo pela mulher pervertido por uma inclinação viciosa para o prazer sensual. Além do mais, quando mais uma pessoa vive uma vida mais animal, se atendo quase que exclusivamente ao aspecto corporal do seu ser, o desejo dele de ter mulher será praticamente só desejo sexual, isto é, o elemento de interação entre corpos irá predominar nesse desejo sobre o elemento de união espiritual ou então de uma amizade mais elevada. Já uma pessoa que se conhece suficientemente para ter um contato mais humano com outras pessoas, quando desejar uma mulher, desejará não só um corpo bonito mas ao mesmo tempo uma amiga fiel, e o prazer será muito maior caso encontre uma amiga mais virtuosa além de bela. Um homem é capaz de amar uma mulher de verdade, ao mesmo tempo em que a deseja, se ele for capaz de ouvir a voz do próprio coração, e depois buscar ouvir a voz do coração da sua amada. Se ele está centrado no próprio coração, ele poderá atingir o coração dela, e todo seu desejo será unir seus corações. A melhor explicação para o fundo desse desejo não é que o homem está em busca de prazer sexual ou de segurança, reafirmação, etc., mas que é simplesmente bom para o homem ter uma mulher. Sempre que a possibilidade de ter mulher se apresenta, o homem sente um desconforto, uma tensão, de modo que se ele não souber o que quer para sua vida, se ele não estiver compromissado com outra, se for uma pessoa sem rumo ou dissoluta, ele facilmente se envolverá com qualquer uma que apareça. Mas não é isso que o homem realmente quer, não é se envolver superficialmente com qualquer mulher, isso é apenas um erro ou uma queda. O fato, é que para o homem acertar na sua escolha de ter uma mulher, ele precisa levar diversos elementos em conta, que são todos os elementos que formam a trama do relacionamento entre um homem e uma mulher, para assim poder ser capaz de projetar o seu relacionamento com essa mulher específica, e aí poder constatar se no todo essa mulher é mais ou

menos desejável ou se lhe agrada ou não. Se ele não estiver centrado em seu coração, ele será incapaz de reunir todos esses elementos e projetá-los. Ora, é bom ter mulher, mas isso não significa que seja lícito olhar para uma mulher desejando-a. O problema é que quando se está casado com uma mulher que lhe agrada, o homem ainda assim não deixa de poder desejar outras mulheres, e essa possibilidade como que o persegue aonde quer que ele vá, de modo que sempre que ele está lidando pessoalmente com uma mulher bonita é possível sentir essa tensão das possibilidades que há entre os dois sexos, possibilidades de serem felizes como um casal. O homem busca a felicidade, e um bom casamento muitas vezes significa felicidade para o homem. Mas se o homem não para de desejar outras mulheres quando está comprometido com sua esposa, então como ele poderá ser feliz? Porque ele sempre poderá desejar uma outra, e nunca poderá ter o que ele realmente deseja: que é desejar uma mulher só. Ele nunca poderá ter todas as mulheres, e, mesmo se pudesse, essa não seria a sua felicidade. O homem deseja ter uma mulher só, e nisso consiste a virtude da fidelidade. É possível para o homem se unir de tal modo a uma mulher, que ele não desejasse nenhuma outra quando estivesse na ausência da sua própria mulher? Ou a libertação dessa tensão do desejo teria uma outra causa? Para muitos homens, parece que sua felicidade está na realização do amor conjugal com a pessoa amada. Se eu estiver perfeitamente e espiritualmente unido a minha mulher no amor, então o que serão para mim as outras mulheres? Existe também o atrativo da mulher exercido sobre a curiosidade do homem. O homem quer conhecer muitas mulheres porque ele é curioso, ávido por novidades. Ele quer amar todas, mas não ama nenhuma, porque se contenta com a imitação do amor que pratica com cada uma delas, sem que de fato as conheça mais profundamente. Mesmo estando unido com a minha mulher, eu terei que amar as outras mulheres de um modo diferente de como eu amo os outros homens, porque as mulheres compartilham do mesmo sexo que a minha mulher, e continuam tendo todos os atrativos que na minha mulher a tornam minha mulher, e a única diferença é que a minha mulher me foi dada a mim, enquanto que a outra mulher foi dada a outro homem. É possível que, se a beleza da minha mulher está o tempo todo diante dos meus olhos, eu não tenha olhos para nenhuma outra. Se eu estou unido à minha mulher, o amor tem poder de o tempo todo me lembrar que eu a prefiro sobre todas as outras, e que ela é a única com quem eu quero estar unido para sempre. Se, além disso, eu soubesse

que só minha mulher me ama, e que as outras mulheres amam outros homens, e os outros homens outras mulheres, de tal modo que todos os casais já estivessem perfeitamente formados, e todos soubessem disso, então a tensão de desejar outra mulher não existiria mais. O que precisaria, então, desaparecer para que a tensão de desejar mulher também desaparecesse? Seria preciso que o homem fosse de tal modo uno que, mantendo essa unidade orgânica sem esforço, o desejo pelas outras mulheres fossem absolutamente frustrados o tempo todo em que qualquer uma delas estivesse diante dele, pelo simples fato da inviabilidade real desse desejo. Ou seja, ao levar em conta a pessoa como um todo, a união conjugal seria impossível na realidade, de modo que o desejo não poderia nunca chegar a ser concebido no coração. Isso é assim porque, na verdade, o desejo por mulher só é concebido no coração porque ele não tem o tempo todo consciência total do seu ser inteiro. Não sendo uno, o coração é capaz de conceber desejos parciais, isto é, como se fosse possível se unir a uma pessoa apenas em alguns de seus aspectos e não como um todo. Assim, se espelhando o coração numa alma fragmentada, ele acaba respondendo à realidade também de modo fragmentado, não levando em consideração a individualidade mais profunda da pessoa como um todo, e sim apenas alguns de seus aspectos. Por isso o coração é capaz de desejar muitas mulheres diferentes, e ao mesmo tempo, podemos conhecer algumas pessoas que desejaram uma mulher só a vida inteira, e com todas as forças. O desejo de união que se tem pela mulher certa “faz sentido”. O desejo por qualquer mulher não tem sentido, porque se o meu coração não responde com desejo total de união. No entanto, existem homens que ainda não encontraram a mulher certa mas que a buscam de algum modo, como que advinhando que deve ou deveria existir alguma mulher no mundo que lhe foi destinada unicamente a ele. Não há desejo maior do que esse, porque a pessoa inteira está na voz do seu coração, e o seu coração deseja se unir a outra como um todo, não aceitando nada menos que isso. -//-

D. von Hildebrand afirma que o amante ama porque capturou um vislumbre da beleza do amado. É a individualidade daquela personalidade tomada como um todo que nós vemos como bela e preciosa para nós que desperta em nós o amor; e esse vislumbre é algo que nos é “dado”, é um dado objetivo acerca do valor daquela pessoa como tal.

É essa beleza que afeta o amante e o fascina de tal modo a despertar o seu amor. Hildebrand garantiria que a beleza de uma pessoa não se mostra igualmente a todo tipo de olhar, e isso nos coloca a questão do que é que vem primeiro: é o amor que nos permite enxergar essa beleza ou, pelo contrário, é porque enxergamos essa beleza que passamos a amar? A melhor resposta é que as duas coisas acontecem simultaneamente: no momento em que contemplo essa “beleza total” do outro como pessoa ela desperta em mim o amor com que eu já a amava no momento em que a vi. Mas aí eu sempre posso perguntar: e por que essa pessoa, essa beleza, e não uma outra? É claro que deve entrar aí um elemento “subjetivo”, ou seja, alguma informação do meu próprio ser (e mais a influencia da circunstância, do Destino, etc.) que faz com que o meu coração responda dessa forma a essa beleza particular e a nenhuma outra. Eu não sei se o Hildebrand explorou essa questão em algum lugar. A pessoa que eu amo é para mim como uma pérola que vale mais que todas as outras: ela tem por si mesma um valor único, que eu contemplo, e que é ao mesmo tempo um bem objetivo para mim, na medida em que diz respeito à minha realização pessoal como esposo. Eu a amo porque ela é ela e nenhuma outra, e por ela ser ela é que ela é um bem para mim que a amo. A atração constante que ela exerce sobre a minha pessoa é uma provocação para o meu aperfeiçoamento pessoal. O QUE É SER ESPOSO? Eu não escolho quem amar, o amor é algo que me acontece, sem saber por que me aconteceu. A partir do momento em que estou amando a minha amada é incomparavelmente bela; isso não significa que eu a escolhi por ser ela a mais bela, mas essa beleza é significativamente diferenciada por uma informação a mais que me é dada pelo próprio amor, que é um canal de comunicação com o coração da pessoa amada. Eu me encontro de algum modo ligado a ela, por um vínculo que não posso desfazer por mim mesmo, e que está presente para a minha pessoa do mesmo modo que a gravidade da terra para o meu corpo. Eu posso comparar objetivamente a beleza da minha amada com a beleza de outras mulheres, e posso até achar algumas que sejam objetivamente mais belas sob algum aspecto, e até sentir algum apetite sensual por usufruir dessa beleza estética, mas a consciência disso em nada afetará a minha experiência do amor. Mesmo que eu esqueça da minha experiência do amor, e volte minha atenção para outras coisas, por exemplo, me atendo à sensualidade do corpo e me distraindo com a satisfação de meus apetites mais baixos, buscando novidades e fragmentando minha memória e minha personalidade, o amor é irrevogável e continua me chamando à unidade, tão presente como uma dor de dente toda vez que o efeito anestésico do orgulho e do prazer se enfraquece na minha consciência e ela volta aos poucos a ouvir os ruídos do coração.

O amor como resposta afetiva causa ainda um deleite afetivo. Tem aí um tipo de prazer envolvido nesse estado afetivo de “estar amando”. Esse prazer está ligado com a expectativa de união amorosa que só é possível com a pessoa amada. É a própria possibilidade dessa união amorosa, que o sujeito vislumbra como que por encantamento, que ilumina o seu mundo interior com uma promessa de felicidade cheia de sentido, e que se torna logo o seu objeto de mais alta esperança. A felicidade de uma união amorosa, ainda que vislumbrada apenas como esperança, é uma volta ao Paraíso Terrestre, e já é uma participação (como símbolo) daquela perfeita felicidade que pode ser alcançada no céu. A própria expressão “união amorosa”, aqui no caso do amor conjugal, já indica aquela unidade transcendente que é constituída de dois seres opostos, varão e mulher, que buscam se harmonizar num plano superior. Quer dizer que quando um homem se une a uma mulher, o que só é possível pela diferenciação sexual (diferenciação biológica que simboliza um certo tipo de polaridade existencial), os dois estão buscando um estado de existência superior onde nem um nem outro poderiam viver apenas como homem ou apenas como mulher. Agora, é o homem unido à sua mulher e a mulher unida ao seu homem. Que tipo de união é essa? O que eu chamo de união com minha esposa indica um estado espiritual que só poderia se realizar no âmbito do amor conjugal, e esse estado me lembra o Paraíso, ele é tudo o que eu encontro na minha vida que me remete à uma imagem da vida como deveria ser no Paraíso Terrestre, e creio que seja assim porque esse estado me indica de algum modo a perfeição ou plenitude da natureza humana (justamente por transcender a condição de dualidade intrínseca dessa natureza). Só a experiência de “estar amando” pode dar à pessoa humana o vislumbre dessa felicidade que é ela mesma participação na felicidade eterna. A característica mais distintiva dessa felicidade é que, na experiência de estar amando, essa felicidade é sentida como a verdadeira e única felicidade; já não há nenhum outro lugar no mundo onde se possa encontrar a felicidade senão nos braços da pessoa amada – e essa felicidade é inerente à experiência do amor conjugal. A felicidade é eterna porque o amor é eterno. Por isso a felicidade eterna é mais proximamente análoga à felicidade que existe na união conjugal (entre pessoas que se amam desde o fundo do coração), e é por isso que a união conjugal é verdadeiramente o arquétipo do Paraíso e da união com Deus. O vislumbre dessa felicidade que vem com a experiência de “estar amando” é como a experiência de encontrar uma pérola que vale mais do que tudo no mundo, ou de encontrar um tesouro que você vende tudo o que tem para comprar o terreno onde ele está. Essa experiência é sempre radical, reformando todo o senso das proporções do sujeito com relação ao valor objetivo que as coisas têm para ele à vista dessa felicidade eterna que só pode ser alcançada na união amorosa com a pessoa amada. Essa experiência impõe para o sujeito decisões radicais na medida em que não pode

haver nada mais importante para um pessoa do que a sua plena felicidade e realização pessoal. Então, se a experiência de “estar amando” traz consigo a expectativa de uma completude que se remete de algum modo à felicidade eterna, tudo na vida do sujeito será redimensionado, enquanto objeto de valor pessoal, segundo a profundidade dessa experiência, que é a experiência daquilo que há de maior e mais profundo no mundo: o amor. Mas nem o amor nem a felicidade podem ser elas mesmas realizadas pelo próprio homem como produto de algo que ele faz. O amor é um dom, e a felicidade é um mistério. O amor aparece para mim como algo “dado”; não fui eu quem o produziu, e eu nada poderia fazer para apaga-lo. O amor não pode ser ignorado, ele compromete a totalidade do meu ser desde o coração; ele altera o meu próprio modo de existência: antes eu não estava amando, agora estou amando. A verdadeira felicidade, por outro lado, é a perfeição do momento – algo que eu não tenho poder de produzir por nenhum meio. O que pode o amante fazer diante disso? Não sei o que fará, mas deve confessar duas coisas: 1) é melhor amar do que não amar e 2) ele precisa de ter o seu amor correspondido. Independentemente se ele terá ou não o seu amor correspondido, ao confessar a primeira coisa ele terá de se conformar com as exigências do amor, terá de lutar para ser um verdadeiro amante. Onde está a sua felicidade aí estará o seu entusiasmo. O coração da pessoa que ama se acende com o entusiasmo pela pessoa amada, responde a ela com entusiasmo. O entusiasmo é fervorosa devoção e permite uma entrega espontânea e ígnea da sua própria pessoa. A presença do entusiasmo na relação amorosa significa que tudo aquilo diz respeito ao seu íntimo, ao que é mais propriamente “seu”. Aonde está o seu entusiasmo ali está o seu “trono”. Assim, você se entrega na união amorosa não como escravo mas como rei, do mesmo modo como um rei se entrega a seu povo. A relação entre esposo-esposa é análoga a relação entre rei-povo: o rei é ao mesmo tempo senhor e servo do seu povo. Assim, também, Cristo é Senhor e Servo da Igreja, é o primeiro e o último. Essas três relações são perfeitamente análogas. O coração, sendo um símbolo perfeito do núcleo do ser ou da individualidade, representa o “aonde” a pessoa está. Você está aí aonde está o seu coração. Se o coração responde ao valor com a adequada afetividade, então essa afetividade é também um sinal daquilo que aquele valor representa para a sua pessoa como um todo (a sua pessoa como tal). Assim como a sua inteligência te informa algo sobre o Ser, e a sua vontade te informa algo sobre o que é bom, o seu coração te informa algo sobre o sentido da vida. Daí vem a expressão “seguir o próprio coração”, que significa realizar-se como pessoa, porque é o coração que nos informa sobre quem nós devemos nos tornar, sobre a beleza daquilo que devemos ser – “beleza” porque é o fundo do nosso ser que nos chama a realiza-lo e a fazermos com que nossa vida concorra para ele. A pessoa que ama ganha assim uma coragem para seguir o seu

coração, para enfrentar seus medos, para preferir arriscar tudo do que buscar segurança e conformação com o meio social. O propósito de se unir a outra pessoa transcende o próprio propósito de ser você mesmo. É claro que quem não é ninguém não pode se unir a ninguém, mas quem deseja ser alguém sempre pode se perguntar: e para que eu quero me tornar alguém? Quem ama sempre pode responder: eu quero ser alguém para a pessoa que amo. A finalidade de ser alguém é ser alguém para alguém, em especial, e depois para a comunidade (filhos, amigos, vizinhos, etc..). O objetivo de ser bom só tem sentido no âmbito do amor. Qual é a finalidade de ser bom? ser bom para si mesmo? Só é bom ser bom porque Deus nos ama, mas se outra pessoa também nos ama então o nosso ser é convidado à realização. Se sou eu quem amo, é porque meu ser já foi chamado à se realizar. É no amor que o meu ser entra em movimento com força total – é quando eu amo, quando participo do Amor. Se é no relacionamento amoroso que eu encontro todo o meu prazer e a minha felicidade, (sendo este o lugar onde a realização pessoal do próprio ser encontra o seu sentido pleno, isto é, eu sendo eu com relação à pessoa com quem desejo e posso me unir), então aí a pessoa amada se torna um bem objetivo para mim na medida em que eu encontro a minha felicidade na minha relação com ela e vice-versa. Agora eu me dou a ela de um jeito único, desejando ser para ela como que a fonte da sua felicidade, do mesmo modo que me dou a ela desejando ao mesmo tempo aquela mais profunda felicidade que encontro no meu relacionamento com ela. Mas não é que a fonte da felicidade seja realmente a pessoa amada, mas é no relacionamento com a pessoa amada que está a fonte da felicidade. É no relacionamento ele mesmo onde a unidade do casal pode ser efetivada, é aí onde está a fonte da felicidade do casal. É como se a pessoa amada estivesse constantemente invocando o meu eu mais profundo, chamando em mim aquilo que de mais digno, mais nobre e mais valoroso eu posso ser. É diante da beleza da pessoa amada, e da felicidade que o seu amor me promete, onde eu me deparo com a necessidade de encontrar a minha própria dignidade, e só aí a busca do caráter bom e nobre ganha pleno sentido. Essa é uma das cosias mais interessantes que acontecem no amor: Na medida em que eu conheço o amor e participo dele eu me descubro num estado de total miséria onde já nada me satisfaz e do qual eu não posso sair nem fazer nada para me ajudar, necessitando totalmente do amor do outro para ser feliz novamente. Mas eu querer que o outro me ame desse mesmo jeito é eu querer que o outro passe pela mesma experiência que eu de se sentir miserável enquanto não tiver o meu amor. Isso é bastante confuso, porque a minha felicidade agora depende de uma submissão do outro a mim, mas uma submissão que não pode ser causada por nada senão por uma força maior que nos transcende, ou que vem do fundo do nosso ser interior. Ora, tendo a intuição imediata do amor em mim, e sabendo o que ele significa para mim, isto é, sabendo que o amor

me dá totalmente para a pessoa que amo, como se eu fosse para ela um presente do céu, prometendo a felicidade completa caso a outra pessoa esteja aberta a me receber no seu coração, entendendo o significado disso, eu tenho uma vergonha tremenda de sequer desejar que essa outra pessoa me ame do mesmo jeito que eu a amo, dado que eu jamais poderia pedir um presente tão grande em valor quanto a minha melhor existência possível. Mas de algum modo o amor que já recebi como dom me promete uma felicidade da qual eu sei imediatamente que não sou digno. De fato, a minha felicidade agora está encarnada numa pessoa a quem amo pelo seu próprio valor intrínseco e que por isso desejo possuir; ou seja, a minha própria felicidade e realização pessoal mais elevada, pela qual eu daria tudo o que tenho para possui-la, é agora representada por uma outra pessoa cujo valor intrínseco para mim é equivalente à minha única felicidade na vida. Mas se eu não desejo para mim mesmo que alguém me possua, então é certo que não posso desejar possuir alguém; mas, por outro lado, é por pura necessidade do amor que eu desejo possuir a pessoa que amo. Existem aí, portanto, dois desejos: um deles é o desejo de ser feliz, e o outro o desejo de alcançar os meios para ser feliz. Algumas pessoas se concentraram em adquirir os meios para essa felicidade no amor, outras pessoas se concentraram em tornarem-se dignos do amor para caso essa felicidade venha a lhes acontecer.

O amor conjugal é uma resposta afetiva do meu coração ao valor de uma pessoa como pessoa (a sua qualidade individual que a faz única e irrepetível; o valor objetivo da sua existência como pessoa diante de Deus e dos homens) e como bela (num conjunto harmonioso). Por um lado, o meu coração simboliza o núcleo do meu ser, a unidade orgânica da minha pessoa – aonde está o meu coração, é aí que “eu” estou; por outro lado, o valor existe objetivamente na pessoa do outro, e ele me afeta e move meu coração na medida em que me é dado contemplá-lo naquela pessoa que é bela. É aí que o amor aparece como autotranscendência na medida em que me movo na direção do outro por ele mesmo e não por qualquer motivo que eu possa conceber por mim mesmo; é um movimento do coração para algo que está além do “si mesmo”, como uma exigência interior de algo que não existe absolutamente no meu mundo interior e nem pode existir, que é a outra pessoa. O amor é uma necessidade humana, mas não um relacionamento amoroso, ainda mais com essa pessoa específica. Então, a pessoa amada, aparecendo para mim radiante no seu valor, me desperta para o amor movendo a minha afetividade. Mas se eu não pudesse contemplar esse valor do outro como pessoa e como bela, o meu coração não poderia responder a ela com amor. É o valor intrínseco que eu encontro na pessoa do outro que toca de algum modo meu coração fazendo com que ele responda com a afetividade adequada; e é essa energia afetiva que me lança na busca do outro nele mesmo. Essa busca é posta

em movimento por um ato da vontade, tendo por base a minha resposta afetiva como um desejo espontâneo e sincero do coração. A “saída de si” ou “êxtase” amoroso só ocorre se a captação do valor intrínseco que o outro tem para mim como esposo ou esposa tiver um alcance transcendente. O ato de alcançar o valor intrínseco do outro só é transcendente se eu puder contemplar o valor que o outro tem como esposo ou esposa para mim por ser a pessoa única que ele(a) é. Ou seja, se a pessoa do outro aparece para mim como única e, na sua totalidade, perfeitamente bela, então aí é que se alcança a contemplação do verdadeiro valor da outra pessoa como um todo. -//-

A nova realidade do amor Quando acontece de encontrarmos uma pessoa (ou será “a” pessoa?) que desperta em nós o amor, algo novo acontece, algo essencialmente diferente de tudo o mais. O amor é algo que me acontece. É intrínseco à realidade do próprio amor que quando nós amamos nós não queremos nem desejamos não amar mais ninguém que não a pessoa que amamos. O único modo de não mais amar essa pessoa seria odiando a própria realidade do amor. Mas mesmo que você odeie o amor, você sabe que ele é um dado da sua experiência, de algo que te aconteceu, e que não pode ser mais apagado de todo mas apenas esquecido ou encoberto por tecidos de mentiras e preconceitos. Eu sou grato pela existência da pessoa que eu amo, e fico feliz por poder amá-la; e esse é um dado do próprio amor. A própria realidade do amor me informa que a pessoa que eu amo é a que me foi dada, que é insubstituível para mim como esposa ou esposo. -//-

A pessoa certa “Assim diz Kierkegaard em algum lugar de seus diários: “Oh, será que eu posso mesmo acreditar nas estórias dos poetas, que dizem que quando alguém vê sua amada pela primeira vez ele tem a impressão que a tem amado desde há muito tempo, e que todo amor é um rememoração (anamnese), tal como o conhecimento o é?”. Nós não amamos qualquer pessoa; mas quando eu amo uma pessoa ela faz sentido, quer dizer, faz sentido que seja ela quem eu amo, e isso porque ela é ela.

-//Amor predestinado? “ser ordenado para” é uma condição moral “a priori” que está gravada na natureza humana. Por exemplo, nós somos ordenados para Deus, e por isso Santo Agostinho disse “Oh, Senhor, Vós nos fizestes para Vós”. A pessoa é capaz de responder a um valor porque ela é ordenada ao bem, à verdade, à beleza... mesmo que a Providência divina governe as nossas vidas, ainda assim podemos perceber a clara diferença entre essas duas situações: quando nós respondemos a algo ao qual nós não somos particularmente ordenados, e essa outra situação quando nós respondemos a algo para o qual nós somos objetivamente ordenados e pelo que nós temos um senso de preenchimento e realização. Um exemplo dessa última situação é o encontro com uma pessoa que gera em nós um profundo amor e que nos parece ser a realização de tudo aquilo pelo que nós sempre ansiamos. Nós estamos ordenados para bens e valores no sentido de que devemos ar a resposta apropriada à essas cosias. Às vezes isso também pode significar que eu como indivíduo tenho uma afinidade particular por este bem, mas nesse caso o “ser-ordenado-para” sempre se revela precisamente na resposta-ao-valor, na capacidade de dar essa resposta. Nós somos objetivamente chamados a dar esta resposta. -//Os tipos de amores são determinados pelo tipo de valor presente no amado e que move o coração daquele que ama. Se o meu amor é gerado primeiramente pelo charme da outra pessoa ou pela sua fascinante riqueza intelectual ou pela bondade e pureza do outro, isso naturalmente tem uma grande influencia sobre a qualidade do meu amor. Ou seja, em qual domínio do valor eu encontro a pessoa amada? quanto mais elevado esse domínio, mais sublime é a resposta de amor. Mas a personalidade daquele que ama também tem uma grande influencia na qualidade do amor. A personalidade que você ama é extremamente característica de quem você é. Cada resposta-ao-valor, cada ser-afetado, pressupõe na pessoa a profundidade e a sensibilidade ao valor que possibilita a pessoa ser afetada por esse valor ao invés de por um outro, ou responder a esse valor ao invés de algum outro. -//De todas as respostas-ao-valor, o amor é a única que não define objetivamente o valor da pessoa. Se o meu amor me desse um julgamento objetivo do valor da pessoa amada enquanto pessoa e como bela, então todos os homens que tivessem o mesmo nível de sensibilidade que eu também amariam aquela pessoa do mesmo jeito, ou de um jeito muito semelhante, dado que ela provocaria em todos nós a mesma resposta

ao seu valor. Por outro lado, é possível que uma mulher ame um homem de todo inferior a ela, e vice-versa; e, mesmo que ele não a mereça, o amor faz com que ela seja dele de certo modo. O amor faz com que ele seja o meu rei ou ela seja a minha rainha. Se eu dissesse que venerasse essa pessoa acima das outras, eu a estaria julgando objetivamente mais venerável que as outras; mas se eu digo que “ela é tudo para mim”, não existe esse tipo de resposta-ao-valor em jogo. Assim, Walther von der Vogelweide diz de sua amada em relação às outras mulheres: “talvez elas sejam melhores, mas você é boa”. Então, o amor não corresponde a um valor objetivo da pessoa amada como pessoa, mas não porque o amor seja algo só subjetivo, ou arbitrário, mas porque o próprio valor que uma pessoa carrega como tal é relativo à outra pessoa. Eu sempre posso me perguntar: “por que eu vim a amar essa pessoa e não alguma outra?”; isso não significa que o amor é somente subjetivo, porque o meu coração respondeu ao valor dessa pessoa por um dado objetivo de que ela é boa e bela por quem ela é. O fato é que nunca foi encontrado nenhum dado objetivo que pudesse determinar que “eu” fosse amar apenas esta mulher e nenhuma outra. No amor, o valor objetivo da pessoa amada está objetivamente ligado à subjetividade de quem ama, de modo que esse valor é objetivamente diferente segundo os olhos de quem o contempla. Mas por que deveríamos esperar que uma pessoa, que não é uma “coisa”, fosse valorada como se fosse uma “coisa”? Se um ícone sagrado suscita devoção em uma pessoa pelo seu próprio valor artístico, então ele suscitará devoção em todas as pessoas que puderem contemplar o seu valor, que forem sensíveis à sua beleza. Mas se uma mulher suscita amor em mim, isso não significa que meu melhor amigo também responderá a ela com amor, mesmo que ele seja sensível à sua beleza num nível mais estético. Isso é assim porque o valor de uma pessoa é objetivamente diferente para cada outra pessoa, e é essa diferença que irá suscitar as diferentes formas de amor nas outras pessoas. Existem diferentes formas de amor porque as próprias pessoas podem significar coisas diferentes para mim, por quem elas são como pessoa. O próprio fato de eu poder amar uma mulher que não é considerada objetivamente a mais bela, ou a “melhor”, mesmo eu admitindo isso, já mostra que o que ela significa para mim não é nenhum dado puramente objetivo, isto é, que pode ser avaliado sem levar em conta a minha individualidade como pessoa. O amor não é uma resposta a um dado universal mas sim a um dado particular, porque não existe o universal de um indivíduo concreto; mas eu estou dizendo que amo este indivíduo aqui por quem ele é e não por uma característica universal sua – e esse é o mistério do amor. Todas as outras respostasao-valor se referem a valores universais, que suscitam a mesma resposta em qualquer indivíduo capaz de ser impressionado por aquele valor; mas o amor é uma resposta que se refere a um indivíduo único, porque pessoal, e cujo valor também é único e relativo a cada outra pessoa que o contempla. Ou seja, um indivíduo concreto não carrega um valor universal, porque como pessoa ele significa coisas diferentes para pessoas diferentes. Uma pessoa só pode ter um valor absoluto para Deus; para as

outras pessoas o seu valor é sempre relativo. Se isso é assim, podemos dizer que não existe uma “forma” universal do amor, que cada amor é único e pessoal, que o próprio Amor só pode ser uma Pessoa e não uma qualidade ou característica. Mas a visão de Hildebrand sobre isso que coloquei acima pode ser um pouco diferente. (pg 66-67). Ele diz que a passagem de um valor individual do outro para a sua beleza tomada como um todo pode ser feita mesmo antes de amarmos o outro. Mas no tipo único de afirmação sobre outra pessoa que pertence ao amor, há aí uma atuação pessoal nessa passagem. – Ou seja, a relação entre aquela beleza e a minha subjetividade se torna algo pessoal para mim. No amor, nós “entronamos” o amado como um todo independentemente de qualquer falha ou deficiência que ele possa ter; ele não é, como um todo, “feito” (“produzido”/”criado”) ser precioso, mas, antes, é “declarado” ser precioso no amor. – o “entronamento”, aqui, é uma característica intrínseca do amor. O “entronamento” do amor tem uma qualidade especificamente diferente do que ocorre com outras respostas afetivas; o trono em que o amado é colocado apresenta uma característica diferente. Esse trono é o domínio do prazer e da felicidade. O próprio dado de valor que pressupõe o amor se distingue eminentemente por ser especificamente prazeroso. O trono em que a pessoa amada é colocada pela afirmação do amor é o trono do prazer e da felicidade, e por isso o “entronamento” adquire uma qualidade bem diferente daquela do que se refere a outras respostas afetivas. Esse trono afeta a minha subjetividade de um modo específico, e altera o tipo de relação pessoal que eu tenho para com a pessoa amada. -//Assim eu falava à minha esposa, quando ela se reestabeleceu de uma grave enfermidade muito dolorosa: - Eu queria ter sofrido no seu lugar; eu me arrependo de não ter sofrido no seu lugar, mas Deus sabe como eu sou fraco. Eu preciso confessar isso. Eu sou um nada, eu sou totalmente miserável. Não tenho nada para te oferecer. Você é melhor do que eu; você é perfeita; você tem tudo o que precisa sem mim. Eu não te mereço. Sabe por que, então, eu estou com você? Sabe por que tenho a ousadia de querer você? Porque eu te amo, e porque a única coisa que eu tenho certeza receber constantemente de Deus é amar você como seu esposo. A única coisa que posso te dar é esse dom do amor que recebi de Deus, porque é a única coisa que possuo de valor; só que, na verdade, esse dom também não é meu. Eu não possuo meu amor, é ele que me possui. O Amor me tem em suas mãos. O Amor me deu a você, ele quer que meu coração seja seu, e mesmo se eu quisesse resistir eu não teria forças para isso. Por força do Amor, eu sei que sofreria mil vezes todos os males do mundo por você, e isso não seria nada. Então, eu te peço, te imploro, aceite o meu nada e permita que eu seja teu escravo.

Porque você é boa. Aceita a oferta do meu coração, e deixa eu servir a Bondade em você. Meu Senhor e meu Deus, deixa eu servir nela a Sua Bondade! -//No amor nós estamos lidando com uma qualidade de valor único e totalmente individual; a beleza do indivíduo como um todo; estamos lidando como que com a ideia irrepetível de Deus que ele é. O amor não se refere à pessoa amada como portador daquela beleza total que desperta meu amor, como se eu a amasse apenas pela sua beleza, mas a própria pessoa vale o meu amor, de modo que eu a amo por ela mesma e enquanto bela. A beleza é fundamental para despertar o amor (o tipo de beleza segundo o tipo de amor), sendo o amor em si uma resposta a um indivíduo como belo. Este indivíduo em particular vale o mau amor porque é extremamente agradável para mim, sendo ele mesmo todo belo enquanto é quem ele é de verdade. Dizer que eu amo a pessoa enquanto bela não é dizer que eu amo a beleza dela ou que eu a amo por causa da sua beleza; mas é dizer que a beleza daquele indivíduo invoca o meu amor porque ele é aquela pessoa em particular. A beleza de uma pessoa tomada como um todo é tão particular quanto a própria pessoa, de modo que dizer que eu a amo porque ela é “toda bela” é o mesmo que dizer que eu a amo porque ela é quem ela é. Quando digo “toda bela”, me refiro à sua pessoa como um todo. Assim, não é possível uma pessoa se apresentar para mim como “toda bela” sem que eu a ame. Aqui, a beleza total da pessoa está intimamente ligada à sua individualidade como tal: ela é “toda bela” porque ela é “assim”. E eu a amo porque ela, sendo “assim”, é toda bela. É impossível, portanto, não amar uma pessoa que aparece para mim como sendo “toda bela”, nesse sentido. Mas isso parece contrariar o pensamento de Hildebrand, que disse que a passagem de um valor individual do outro (de uma virtude particular que ele tenha) para a beleza do seu indivíduo tomado como um todo pode ser feita mesmo antes de amá-lo. Por outro lado, ele diz que o amor é uma resposta afetiva à essa beleza do outro como um todo; se é uma “resposta”, então é necessário que essa resposta apareça sempre que apareça o valor ao qual ela responde. O que ele parece querer dizer aqui é que essa “passagem” pode ser percebida primeiramente sem que eu afirme ou negue o que estou vendo (como no fenômeno da “simples apreensão”). Ele estava falando que o tipo de afirmação que eu faço da outra pessoa quando digo que a amo é um tipo único no qual existe uma atuação pessoal no reconhecimento da beleza do outro como um todo. Sendo a beleza o dado de valor fundamental que corresponde ao amor, a sua característica específica de tornar o seu portador agradável e encantador também qualifica o tipo de afirmação que eu faço do amado, estabelecendo um novo tipo de relação interpessoal. Declarar o outro como amável é ao mesmo tempo reconhece-lo como subjetivamente (com relação à minha

subjetividade) agradável e encantador, como alguém que me faz feliz e torna minha vida mais agradável. Isso é o que Hildebrand chamou de “entronamento”. Como toda afirmação do amor está relacionada com a beleza, Esse entronamento está presente em todo amor. QUAL A RELAÇÃO ENTRE AMOR E BELEZA? -//O amor transcende toda a resposta-ao-valor. Vamos supor que, mesmo sendo intrinsecamente impossível que algo assim ocorra, que eu encontrasse uma mulher diferente daquela que eu amo mas que possuísse uma individualidade qualitativamente igual e que sua beleza total fosse qualitativamente a mesma: essa pessoa certamente não poderia tomar o lugar daquela que eu amo, e eu que amo jamais poderia ter nem o sentimento de amor por ela nem amá-la (com amor conjugal), como se não houvesse nenhuma diferença em se é essa ou aquela pessoa que retorna o meu amor. É esta pessoa irrepetível, única e concreta que eu amor e por quem eu desejo ser amado de volta. A pessoa que eu amo é inteiramente temática. O amor vai além de uma pura resposta-ao-valor por quanto envolve um comprometimento extremamente pessoal que não é obrigatório e que dá algo que transcende toda resposta-ao-valor. -//Uma aparente “antimonia” do amor. O amor é uma porta de entrada a um novo mundo de valores. É um mundo renovado pelo amor. O mundo se torna mais belo e mais real quando eu amo. Ela, que despertou em mim esse amor, representa para mim a encarnação desse novo mundo de valores. -//Palavra de Deus “Além disso, em toda categoria natural do amor sempre há, em acréscimo à respostaao-valor, uma consciência de uma afinidade especial, de ser feito um para o outro, de ter a ver um com o outro – é como se uma palavra especial de Deus tivesse sido proferida entre os dois. Esse fator não é só decisivo para que se possa vir a apreender a beleza do outro como um todo, para ser capaz da resposta-ao-valor do amor, mas também é, à parte dessa função no amor, um fator importante por si mesmo, que é experienciado como tal mesmo depois que o amor passou a existir.” (final do cap3).

“Uma esposa é um presente dado ao homem para consolá-lo da perda do Paraíso.” Johann Wolfgang von Goethe. Aforismos.

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Santo Agostinho diz que o sexo no casamento, sem a intenção de ter filho, é sempre impelido pelo mal hábito, ainda que não seja fornicação, porque ele não é praticado por causa do matrimônio, mas é perdoado por causa do matrimônio (On the good of marriage, 6). Mas aí eu pergunto: como o sexo não é praticado por causa do matrimônio? Se um homem e uma mulher casam porque se amam, e se o desejo sexual é inerente à essa forma de amor, então as pessoas se casam para se amarem mutuamente, e o sexo é como um ritual que celebra esse amor. É claro que a dimensão biológica e social de ter filhos e educa-los não pode ser excluída da ordem do matrimônio, mas não podemos ainda dizer que o matrimônio tenha sido feito em primeiro lugar para isso; quer dizer, a finalidade última do matrimônio pode ser a geração e criação de filhos, mas a sua finalidade primária, ou interna, é a própria união dos esposos, que é simbolicamente efetuada por meio do ato sexual. Portanto, se os esposos tem o desejo de ter filhos maior do que o desejo de usar um ao outro, mas se não é conveniente ter filhos no momento, não podemos dizer que a única força que os impele a fazer sexo num período de provável infertilidade da mulher seja a força do mal hábito, porque o próprio amor que os une contém em si um elemento de desejo sexual pelo outro, pois de outro modo o amor-conjugal seria apenas uma mistura de amor com luxúria, o que é inconcebível se nós admitirmos que no princípio Deus criou o homem e a mulher para que eles se reproduzissem – e como iriam se reproduzir se o sexo não fosse subordinado ao amor? Quando o esposo ou a esposa faz sexo porque ama, ele tem naturalmente o desejo de ter filhos, mas nem sempre tem a possibilidade material de cria-los. Além do mais, nem sempre há a possibilidade de ter filhos por esse meio. O que acontece com um casal estéril? Se se amam, sofrem por não poderem ter filhos, mas o casamento continua, não porque eles esperam por um milagre, porque o milagre pode não acontecer, como geralmente não acontece, mas porque eles continuam se amando, e é se amando que continuam fazendo sexo na esperança de terem filhos, ainda que sabendo que não podem ter. A finalidade do sexo, além de ser um pedido a Deus para a geração de filhos-de-Deus, é ao mesmo tempo a expressão interna do amor do casal, e por isso a pratica do sexo, para ser virtuosa, não está submetida à condição de se ter filhos. Portanto, não é impossível que haja um momento em que a força predominante que impele o casal para o ato sexual é o desejo de se expressar e se relacionar com a

pessoa amada, por causa do amor que se tem por ela, enquanto que o desejo de ter filhos fica apenas como que no fundo dessa relação, como uma possibilidade, mas não como uma intenção primária que leve ao ato sexual. Do mesmo modo que algumas pessoas mais sensíveis sentem mais devoção do que outras, e são mais impelidas a orações e práticas devotas, que no fundo são também uma forma de expressão da sua gratidão a Deus, assim, do mesmo modo algumas pessoas amam de uma forma mais pura, e sentem maior necessidade de se expressar e se relacionar com a pessoa que ama, sendo o sexo para essas pessoas a maneira única e excelente de dizer “o que você significa para mim”, isto é, dizendo com o próprio corpo. O sexo, sendo praticado no âmbito do matrimônio, por ocasião do amor sincero do coração, é de fato uma renovação da aliança matrimonial, como que o frescor da beleza primaveril lançando novo perfume para dentro da relação. O sexo é para fazer memória à beleza do amor conjugal. Mas, enquanto o desejo sexual está incluído no amor-conjugal, a intenção de ter filhos está incluída no ato sexual. Desejo sexual não é mal, nem impelido pelo mal hábito, e nem é desejo de ter filhos. Mas o desejo de ter filhos está de algum modo ligado ao amor-conjugal. Esposos que realmente se amam sempre desejaram ter filhos juntos, mas isso não significa que ter filhos seja a única motivação boa deles para fazer sexo; pelo contrário, ter filhos não pode ser uma boa motivação para fazer sexo se não há amor que une o casal. Se o amor que une o casal é apenas caridade, amor ao próximo, a única motivação boa que eles terão para o sexo é a geração de filhos. Mas se o amor que os une for o amor-conjugal, é o próprio amor que os impele a se relacionarem desta forma, sendo a geração de filhos apenas uma consequência da finalidade primeira que é a união dos esposos. Para pessoas que se amam com amor-conjugal, a continência no casamento é uma abnegação muito mais extrema do que para os outros casais – não é só um ato de virtude, é um ato de sacrifício. Santo Agostinho diz que o ato sexual que não visa a geração de filhos é pecado venial, mas, existem aí duas coisas: ele está falando do desejo de ter filhos ou da intenção de ter filhos “agora”? Como eu mostrei, a intenção de ter filhos “agora” não pode ser uma motivação para o ato sexual, pelo simples fato de que ninguém nunca ficou sexualmente excitado PARA ter filhos, mas as pessoas ficam excitadas para fazer sexo. Isso não significa que o desejo de ter filhos seja excluído do desejo sexual, mas também não podemos dizer que a intenção deliberada de ter filhos “agora” seja necessária para tornar o ato sexual lícito. De certo modo, o mero desejo de ter filhos já faz com que o ato sexual esteja visando a fecundidade; a simples aceitação ou abertura para a geração de filhos já é o suficiente para que o sexo movido pelo amor não seja vicioso. Daí Santo Agostinho diz que “a continência absoluta é melhor até mesmo do que o ato sexual no casamento visando a geração de filhos”. Ou seja, se nós partimos do

princípio de que a única motivação lícita para o ato sexual é a geração de filhos, e que sempre haverá um elemento de luxúria envolvido no ato sexual, então só podemos chegar à conclusão de que a continência total é a melhor coisa no que diz respeito a sexo. Assim, a meta de todo casal seria alcançar a virtude da continência. No entanto, isso não pode ser justo, porque entre as pessoas que se amam a continência já não significa mais simplesmente continência, porque ela vem junto com um sacrifício, com o sacrifício de algo que é lícito e bom para eles. O que eu afirmo é que o sexo pode ser praticado de modo virtuoso sem que a intenção primária do casal seja a geração de filhos, e que isso faz bem ao casal por meio de renovar integralmente a sua relação e mesmo dar um novo alento a cada um deles na sua vida espiritual. Eu não digo que o sexo possa ser praticado como se pratica uma virtude, com a finalidade de crescer espiritualmente, pois o ato sexual em si não serve para nada, sendo um meio apenas para a geração de filhos. O sexo não é instrumento ou meio para nada que não seja a geração de filhos; mas, por outro lado, o sexo é em si uma forma de expressão; ele significa alguma coisa por si mesmo; isto é, quando o casal unido pelo amor encontra o momento mais propício para demonstrar fisicamente o que cada um deles significa para o outro – e essa é uma necessidade também espiritual –, o sexo tem aí um significado próprio e independente de que se a procriação aconteça. Assim, se o casal se ama na humildade de coração, o sexo entre eles será mais semelhante àquele que deveria acontecer entre um homem e uma mulher antes do Pecado Original, não sendo motivado pela geração de filhos, mas pelo amor, ainda que intrinsecamente indissociável da intenção de geração de filhos. Santo Agostinho afirma que a causa do matrimônio é a geração de filhos. Eu digo que essa é apenas a causa final. A causa formal do matrimônio é o amor-conjugal. O matrimônio existe para a geração de filhos, mas ele existe por causa do amor-conjugal – e não estou falando do amor que pode ou não haver entre os esposos, mas de uma forma de amor eterno que é manifestado na própria forma do matrimônio em si. Só por isso o casamento pode ser em si mesmo um motivo de felicidade entre pessoas que se amam. Não devemos nos surpreender, portanto, que o casamento possa ser anulado caso um dos dois seja estéril. Se a geração de filhos fosse a causa da existência do matrimônio, TODO casamento estéril seria nulo. Mas, como a verdadeira causa da existência do matrimônio é uma forma especial e manifestação do Amor Divino, o casamento estéril apenas PODE vir a ser considerado nulo, isto é, caso a intenção que os esposos tivessem de se unir no casamento fosse subordinada à sua intenção de ter filhos, o que nem sempre acontece desse modo, pois algumas vezes os esposos desejam primeiro a união no amor, o que constitui para eles a sua felicidade, independentemente se a expressão dessa união venha a ser um meio de geração de filhos ou não. E esse casamento de amor é válido, mesmo que ambos sejam estéril, e mesmo que não queiram adotar filhos ou não possam fazê-lo, e isso é assim porque, se os esposos se amam, a esperança de ter filhos coma pessoa amada está dada no

fundo do desejo sexual, na medida em que esse desejo brota do amor-conjugal e não do vício, e essa esperança é o que pode fazer com que o sexo entre esses esposos, no amor, seja um ato também de fé, enquanto estiverem abertos à possibilidade do milagre – no entanto, não podemos absolutamente dizer que esse casamento existe e é válido apenas tendo em vista esse possível milagre. De fato, a geração de filhos como causa final do casamento não precisa ser realmente efetivada para que o casamento venha a existir como tal, podendo permanecer apenas em potência; e é a própria possibilidade do milagre da geração de filho numa mulher estéril que garante absolutamente a causa final do matrimônio. Assim, do mesmo modo, a própria intenção deliberada de ter filhos “agora” não precisa existir para que o matrimônio seja efetivado, nem para que o sexo seja lícito e praticado de forma virtuosa dentro dele, bastando que ambos os cônjuges estejam abertos à possibilidade de ter filhos, e que assumam com humildade a esperança dessa realização que repousa no fundo do seu amor mútuo. No entanto, se o casal não deseja ter relações sexuais, o casamento simplesmente não acontece; não há casamento sem sexo, ainda que haja casamento sem filhos. A tensão que existe aqui é que, por um lado, temos como elemento intrínseco do amor conjugal o desejo sexual; e o desejo sexual expressa, por meio do corpo, uma dupla intenção do amor conjugal: a intenção de união e a esperança de que essa união dê frutos. E o problema é que as causas naturais (biológicas, psicológicas, sociais, cósmicas, etc.) que influenciam a procriação estão em desarmonia com aquelas que influenciam a excitação sexual. Isto é, o desejo sexual carrega em si duas intenções que no amor se encontram unidas como que numa semente, mas que na realidade do corpo, no mundo corpóreo, estão numa conflituosa desarmonia. Ou seja, as causas que regem o amor no coração estão em plena desarmonia com as causas que regem a sua possibilidade de manifestação no mundo. Uma manifestação desse conflito é que às vezes um casal que se ama não pode se casar por questões sociais, ou não pode ter filhos, enquanto que um casal que casa apenas por questões sociais podem ter filhos e conviver como se se amassem com um tipo de amor que realmente não têm um pelo outro. Ora, existem muitas forças alheias ao amor-conjugal que impelem o indivíduo a ter desejo de sexo; e tantas e tão fortes que, se o indivíduo não for virtuoso, o próprio amor-conjugal pode ser inteiramente pervertido por essas influencias (externas ao seu coração), de modo que o sexo aí passa a servir quase que somente para alimentar o seu orgulho e não para expressar a união do casal no amor. É justamente essa tensão entre a realidade do coração e a realidade do mundo, a interferência entre esses dois campos de realidade, que tem o seu momento agudo de máxima intensidade na questão sexual, é justamente essa tensão que torna a moralidade da relação sexual tão complicada. O matrimônio é ao mesmo tempo uma realidade que vem do coração do homem e da mulher que se unem no amor e uma realidade social que independe do que se passa no coração de cada um para acontecer. O sexo é ao mesmo tempo a expressão do amor-conjugal, que vem do coração da pessoa, e um ato corporal pelo

qual se gera filhos, que é uma realidade biológica e independente do que se passa no coração de cada conjuge. E, mais ainda, essa tensão também é expressa na imagem do casamento como relação entre Deus e a sociedade humana: a forma de organização dessa relação no mundo é sempre complexa e cheia de conflitos internos, ainda que Deus esteja de fato unido ao Coração da Sua Igreja. O próprio matrimônio, e o ato sexual dentro dele, é o ponto mais alto e agudo da ligação entre o coração humano e a sociedade humana. A continência só tem sentido dentro do sacramento do matrimônio, e como um sacrifício por amor a Deus, um sacrifício oferecido por ambos os esposos em união. Porém, note que, o sexo, para esposos que se amam com todo o coração, significa uma coisa muito distinta daquilo que representa o sexo entre esposos que não se amam desse mesmo modo; assim, para esposos que se amam com o coração, a continência significa um tipo de sacrifício, e para os esposos que se amam de outro modo, essa continência representa um outro tipo de sacrifício. A diferença é que os esposos que se amam oferecem, junto com a negação da satisfação de um impulso corpóreo, o silêncio do próprio coração, enquanto que os esposos que não se amam desse modo oferecem apenas a negação do impulso sexual, já que o sexo para eles não é a expressão de uma necessidade do próprio coração. Para Santo Agostinho, a continência é melhor que o casamento, na medida em que a continência tende para a eternidade (não prescindindo de relação corporal), e o casamento tende para o arranjo da vida neste mundo. Nesse sentido, a continência prepara para a vida eterna pela negação da vida terrena, enquanto que a vida conjugal é de certa forma uma negação da morte pela afirmação da continuidade da espécie humana no mundo. Mas, por outro lado, a esperança de continuidade da espécie humana nesse mundo contém um elemento de eternidade, é ao mesmo tempo uma esperança de imortalidade, que é dada também no próprio amor-conjugal, que deseja se eternizar; enquanto que na própria continência também existe um elemento de desespero e negação da eternidade, na medida em que cala e sufoca o mesmo amorconjugal. Para Santo Agostinho, o ato sexual será “destruído” tal como o conhecimento será “destruído”, de modo que, no céu, onde viveremos “como anjos”, estaremos livres do sexo, e, como disse São Paulo, só o amor continuará eternamente. Ou seja, se a causa final do sexo cessa de existir, que é a procriação, então o sexo cessa de existir; mas, como vimos, a causa formal do sexo é o amor-conjugal, e, se o sexo deixa de existir, o amor-conjugal deixa de existir, pois enquanto houver amor-conjugal haverá, ao menos em potência, a necessidade do ato sexual. Mas, na eternidade do Paraíso Celeste, é necessário que todo amor se realize plenamente, em todas as suas formas, pois de outro modo o mundo terrestre teria um elemento a mais que o mundo celeste, caso a dimensão sexual do homem só se realizasse na terra mas não no céu. Ou seja, se o

amor-conjugal existe como manifestação do amor puro de Deus na dimensão sexual da humanidade assim criada por Ele, ela deve continuar existindo formalmente enquanto existirem varão e mulher. Se existe amor-conjugal, o ato sexual já está dado aí em potência. Mas se não há necessidade de procriação, não há necessidade de realizar o ato sexual, portanto ele não será atualizado. Mas se o ato sexual nunca mais será realizado, corporalmente, isso não significa que formalmente ele tenha cessado de existir, isto é, como símbolo do amor-conjugal. Se o sexo nada significasse, e fosse totalmente destruído, então o tipo da relação conjugal também seria destruído, e o matrimônio nada poderia significar, e o amor-conjugal seria um mero absurdo. mas, se o sexo tem algum sentido com relação ao amor entre os esposos, sendo a realidade do “esposo” em si uma realidade mais espiritual do que temporal, então o fato de não haver ato sexual não contradiz a existência da própria disjunção sexuada da espécie humana, dado que “varão” e “mulher” são também realidades mais espirituais do que temporais. Ou seja, o ato sexual nunca será realizado no Paraíso, mas será uma potência já realizada, subsistindo como sinal na própria forma do amor-conjugal entre os “casais”, amor este que, por sua vez, não precisará mais ser expresso de forma sexual-corpórea, devendo haver uma forma análoga e superior de realização para ele. De fato, se o sexo significa alguma coisa na terra, é justamente isso que ele significa que já estará realizado no Céu, de modo que o casal já não precisará reafirmar aquilo que será perfeitamente realizado e manifesto na união entre os esposos. A continência é algo que só pode existir no âmbito cristão, porque só aí existe a possibilidade de abdicar de todas as coisas do mundo para servir a Cristo na Igreja. 9. Para Santo Agostinho o casamento é um bem que serve para a propagação da espécie humana. Mas ele diz que a amizade é um bem que vale por si mesmo. Isso significa que o casamento não deve ser buscado por si, mas tendo em vista o bem da geração de filhos, e da assistência mútua entre os esposos para a superação da concupiscência. Mas, se eu amo uma mulher, eu não sinto que quero casar com ela por causa de nenhuma dessas duas coisas, mas eu só quero casar com ela porque eu a amo, porque é a pessoa dela que eu amo, e só com ela quero estar unido como esposo; só que, como esse amor na terra é unido ao desejo sexual, por meio do corpo, é só no casamento que esse amor pode encontrar sua realização. Isso não significa que o desejo sexual seja fruto apenas da concupiscência, algo que deve ser superado, mas ele está, na verdade, à serviço de um tipo de amor que é uma finalidade em si mesmo, sendo a procriação e o ato sexual apenas efeitos colaterais desse amor e dessa união que ele promove entre os esposos. As estórias de amor que surgiram na Idade Média, por todo o mundo civilizado, estavam tentando mostrar que o relacionamento conjugal é em si mesmo uma necessidade para as pessoas que amam, não por força do vício, mas por força do amor. Se, por um lado, o adultério e a fornicação não podem surgir do amor, por outro, o próprio matrimônio se torna inútil e dispensável para o próprio amor. O que essas estórias querem mostrar é que existe uma dimensão do

amor-conjugal que é totalmente independente do mundo, das relações sociais, do matrimônio, e da continuidade da espécie; e, por outro, esse mesmo amor, por causa do seu elemento sexual, só pode ser realizado na terra por meio do matrimônio, e, portanto, do serviço prestado pelos esposos para a geração e educação dos filhos. O amor entre os esposos é único e irredutível a uma simples amizade onde acontece relação sexual. No amor-conjugal “eros” e “caridade” estão unidos de tal maneira que não se pode saber aonde é que um termina e começa o outro; os dois amores se unem num amor com características próprias e com uma área de realização própria na vida humana; e, sem esse amor a própria diferenciação sexuada da espécie humana seria ridícula senão absurda. Mas, como o amor-conjugal se manifesta como uma resposta afetiva que envolve o desejo sexual, ele está necessariamente ligado à geração de filhos e, portanto, ao contrato do matrimônio. O matrimônio, como o âmbito de realização do amorconjugal, é, de certo modo, independente da procriação; ou seja, a própria relação conjugal entre os esposos possui uma finalidade em si mesma: é a própria união esponsal que é desejada. Mas a sua realização, no plano terrestre, se dá de modo sexual. O matrimônio, independente do amor, é apenas um meio para os esposos servirem como suporte material para a geração e educação de descendência, podendo servir também como remédio para a concupiscência. Mas, de fato, não existe apenas uma parte do matrimônio, que nós podemos chamar de “Marta”, que é o serviço à Deus por meio do trabalho bruto, mas também existe a parte que diz respeito a “Maria”, que é a vivência interior do próprio amor-conjugal que une marido e mulher, sendo assim a relação conjugal uma relação simultaneamente e indissoluvelmente mundana e espiritual, como se o amor-conjugal fosse a imagem da própria ordem divina da manutenção da ordem terrestre, do amor de Deus pela Sua Criação. Esposos que se amam sustentam o matrimônio e a vida no mundo por amor, e é esse amor que é a vida deles, que os sustenta e os une. As estórias de amor que surgiram na Idade Média nos mostram claramente essa outra dimensão do matrimônio, que até então vivia na obscuridade do inconsciente, que é fundamentada num tipo de amor profundamente pessoal e que diz respeito a uma outra individualidade única e insubstituível. O que estamos tentando mostrar aqui é que o matrimônio não é uma realidade puramente social, mas encontra o seu fundamento na própria realidade do amorconjugal, que brota do coração dos amantes. Todas as obrigações sociais do matrimônio já estão dadas no grão do amor, na forma mesma do tipo de união que o próprio amor impõe aos amantes. Mas se o desejo sexual pode ser despertado por força do amor, e não só de uma condição viciosa, ou pela fraqueza da carne, então ele já adquire um outro sentido que não o de mero “apetite” do corpo. E acontece que, antes da Idade Média, o desejo

sexual era visto apenas como um apetite do corpo, algo como a fome ou a sede, e não algo como um “apetite” positivo, tal como o desejo de conhecimento, por exemplo, que não é exatamente o preenchimento de um vazio. E, no entanto, em todos os lugares existe essa analogia entre o ato sexual e o conhecimento: todo mundo se refere ao ato sexual dizendo “João conheceu Joana, e eles tiveram um filho...”. 9. Santo Agostinho diz que casar é bom porque ter filhos é bom, porque é bom ser mãe de família, mas que guardar a continência é melhor, para manter uma sociedade pura. Eu não vejo dessa forma, porque eu não sei como o estado de continente pode ser absolutamente melhor que o estado de casado. Na verdade, o estado de continente só pode ser dito melhor ou pior, realmente, relativamente às circunstâncias de cada um. De nada adiante dizer que o estado de continente se assemelha mais à vida do Cristo, ou à vida do espirito, do que o de casado, porque eu não sou Cristo, nem sou anjo, e a minha necessidade de casar pode ser simplesmente porque eu amo alguém, e isso diz respeito à minha felicidade como pessoa. Se você vem a amar alguém, e você despreza esse amor em nome de uma pretensa continência que não te foi dada por Deus, então o que pode sair de bom disso tudo? E, no entanto, o homem envelhece, e na velhice o estado de todo homem moderado tende a se igualar. 10. Daí Santo Agostinho diz, baseando-se em São Paulo, que aconselha a se casar somente os que “não se contém”, como se o casamento só existisse para os fracos e pecadores, e não para os santos, que já superaram essa necessidade. É verdade que nunca ouvimos falar de santos que se casaram santos, ouvimos falar apenas de santos casados. Mesmo supondo que santos não precisem casar, e que o casamento seja um meio de santificação para os que “ardem de desejo” e “não conseguem se conter”, existe ainda uma outra força que impele os indivíduos a se casar: a felicidade de se unir coma pessoa que se ama. Esse amor não é levado em conta em nenhum lugar na Antiguidade, tal como se ele nem existisse. Que direito eu tenho de desprezar a minha própria felicidade? O erro mais comum hoje em dia, no que diz respeito a “vocação”, é justamente o sujeito escolher o modo de vida “melhor”, “mais perfeito”, “mais espiritual”, desprezando assim aquilo que é a única coisa que ele sente que o faria feliz. Ora, é fácil dizer que nós estamos enganados, que aquilo que a gente quer só nos faz feliz porque a gente é mal e gosta de pecar, etc.; mas, pensando bem, se Deus mora em nossos corações, talvez seja aí mesmo que Ele se comunique conosco, nos chame, nos prepare, e nos guie para fazer a Sua Vontade. Deus está no coração é não na cabeça. Portanto, não é lícito ignorar o coração para por em prática o que está na cabeça, mas, pelo contrário, deve-se buscar Deus no coração justamente para que possamos descobrir o que Ele preparou para nós, de modo que a nossa felicidade possa realmente estar em fazer a Vontade de Deus, e não que seja feita apenas de palavras da nossa cabeça. Portanto, se a continência é mais perfeita que o matrimônio, pode ser que, por outro lado, o matrimônio seja perfeito para mim, e que a continência não diga respeito a mim pessoalmente. E se isso tem a ver ou não com a

“dureza” do meu coração, eu só posso descobrir isso depois de ter seguido o meu coração, e nunca apenas com a minha própria cabeça. Se eu não for feliz seguindo o caminho que eu estava seguindo, é porque eu estava enganado, e devo me converter, mas isso só é possível se eu estiver sinceramente buscando a verdade no meu coração. Se, por outro lado, eu achar que domino a Verdade por meio de palavras, e decidir tudo sozinho a partir da minha cabeça, então eu seguirei sempre no caminho errado e nunca irei me converter, por mais que eu sofra, porque o caminho que escolhi é o caminho “logicamente melhor”. Por fim, se eu experimento a felicidade como sendo necessariamente melhor do que a infelicidade, então com que direito, entre dois caminhos lícitos, um dito “bom” e outro dito “melhor”, eu vou escolher aquele que não move o meu coração, e não aquele onde eu vejo a minha felicidade se realizando? A maneira dos Padres da Igreja, em geral, de abordar o matrimônio, é sempre sob uma perspectiva “angelicamente objetiva” e impessoal, e até platônica, como se todas as pessoas fossem espíritos presos em corpos mortais. A dimensão “subjetiva” (Eigenleben) do homem, aquilo que diz respeito especialmente à sua própria alma imortal e a nenhuma outra, é totalmente ignorada nos escritos antigos. Aquilo que me diz respeito pessoalmente não importa, o que importa é eu querer todas aquelas coisas boas que os sábios da religião me disseram que é a Vontade de Deus – é isso o que deve me importar. Mas a hierarquia de valores que eu encontro na teologia não determina aquilo que eu devo buscar para mim na minha vida pessoal, porque tudo o que eu encontro no mundo tem um significado único para mim, e a minha relação com Deus se dá por meio da minha percepção daquela Realidade que Ele quer me mostrar no meu coração, de modo que ignorar a resposta que o meu coração dá àquelas coisas que eu encontro no mundo que “me dizem respeito” é a mesma coisa que ignorar a Palavra de Deus no meu coração. O fato é que Deus não costuma nos mostrar a Sua Vontade por meio de raciocínios – mas Ele fala diretamente no fundo do nosso coração. É claro que os Padres falavam desse jeito por um motivo, e, muito provavelmente, eles queriam mostrar uma realidade que não pode ser acessível para nós somente pelos seus textos, mas eles próprios deveriam ser homens quase angélicos, de tão bons que eram e tão belas as suas almas. E, no entanto, se homens dessa estatura não mais estão aí para nos falar, esse mesmo fato é também providencial, e nós não podemos ler os seus escritos como se estivéssemos vendo a mesma Verdade que eles viram quando escreveram aquilo. A Verdade do nosso tempo é outra. Além disso, o casamento é em si mesmo um valor, e é um bem para mim na medida em que contemplo a sua beleza, bondade e verdade. Eu posso querer ser esposo porque é bom ser esposo, e porque é bom ter uma esposa. Ter esposa pode ser bom para mim, porque a própria esposa é um bem – e eu a recebo como se recebesse um presente das mãos de Deus. O casamento para mim pode ser uma boa forma de viver, não porque eu estou ardendo de desejo, nem porque eu quero ter filhos, mas

simplesmente porque a própria relação matrimonial é em si mesma bela, boa e verdadeira, e eu contemplo a beleza do amor e todo o bem que isso significa para mim, e me encanto e me sinto atraído para realizar essa imagem que concebi do matrimônio. E, quando eu digo “realizar essa imagem” eu não quero dizer que eu idealizei o casamento, mas simplesmente que eu contemplei o que ele tem de bom, belo e verdadeiro, e imaginei que possa existir para mim um estado de vida tão bom, belo e verdadeiro quanto eu seja capaz de conceber, sem que eu precise mentir ou me iludir. Não é porque muitas pessoas se iludem com o matrimônio, com a esposa(o), ou com a sua fonte de felicidade, que o matrimônio ou qualquer outra coisa não pode realmente ser um meio para se alcançar a felicidade. Hoje em dia, quando as pessoas leem a vida dos santos, elas têm a impressão de que a santidade consiste em você ser indiferente à sua própria felicidade, como se você devesse ser indiferente se você mesmo é feliz ou infeliz, de modo que tudo o que você fizesse não fosse para você mesmo, mas fosse, como que num ato de obediência, apenas uma resposta ao valor de cada coisa com que você se depara. É claro que é muito fácil você dizer que o santo é feliz, mas, na prática, o que você faz é apenas assumir que essa felicidade santa que você acredita desejar é alguma coisa desconhecida que você só vai alcançar se abrir mão daquela felicidade que lhe é conhecida no momento. Daí o sujeito pega a hierarquia de valores presente em qualquer compilação de doutrina da Igreja, e acredita piamente que viver santamente, viver “para Deus”, significa ignorar a voz do seu coração, ignorar todas as suas respostas afetivas, que provavelmente estão erradas, já que você não é santo, e, por um ato de vontade, de acordo com a capacidade da sua inteligência, passar a se dedicar mais àquelas coisas que tem um valor mais elevado, do ponto de vista da doutrina angélica dos Doutores da Igreja, e passando por cima de todos os seus desejos, sonhos, ambições, etc., etc.. Esse erro é fatal. Esse erro consiste em esquecer a dimensão “subjetiva” do homem, a sua individualidade como pessoa. Tudo na vida da pessoa se refere à esse centro misterioso que constitui o caráter de sujeito do homem. A “subjetividade” do homem tem as suas características próprias, e está intimamente ligada com a dignidade da pessoa humana. Acontece que, se existe uma hierarquia de valores nos bens que são encontrados no mundo, externa ao sujeito, também existe uma constituição interna do próprio sujeito, que vai determinar, segundo as suas circunstâncias, aquilo que é melhor “para mim”. Não adiante você buscar a santidade, porque a “santidade” é uma abstração, é só uma palavra que você usa para dizer que faz parte do grupo dos bonzinhos. Você tem que buscar a sua felicidade na Verdade, e isso significa ser humilde, porque muita gente pode ser feliz na mentira, mas a felicidade deles vai durar pouco. Eu não quero uma felicidade que dure pouco, eu quero a felicidade eterna; então, enquanto eu viver, eu vou buscar a minha felicidade, porque eu já sei que a minha felicidade está em Deus, mas eu ainda não sei quem é esse tal de Deus, então eu vou ter que descobrir isso. E para alcançar essa felicidade, mesmo na terra, só existe uma regra: você não pode mentir; ao

contrário, você é obrigado a confessar, e confessar significa confessar o que se passa de verdade com a sua subjetividade. Se você ignora a sua subjetividade, porque você tem medo de se desviar do caminho, então aí você acabou de abandonar o Caminho, porque você nunca mais vai conseguir ser sincero na sua confissão. Conheça-te a ti mesmo; você está na sua felicidade; Deus é a sua felicidade. Se eu passo a ignorar a minha subjetividade, como se fosse algo ruim, então sobre o que eu vou falar com Deus? Porque se você não fala com Deus sobre as coisas dEle que dizem respeito à sua pessoa, à sua subjetividade, então porque você iria pedir a Deus pelas outras pessoas? Quando você nega a sua subjetividade e considera apenas sua salvação, a “salvação” para você é apenas uma abstração, e não a salvação de uma pessoa real, pois uma pessoa real possui uma subjetividade que deseja ser salva. O valor de uma pessoa está relacionado ao valor da sua subjetividade, e não é o mero valor da sua alma abstrata. Uma alma sem subjetividade ama o que nos outros? apenas a sua alma? mas o que é uma alma sem subjetividade? Não é uma alma apática que “ama” tudo o que é bom, mas não gosta de nada? Que caridade é essa, desinteressada da própria felicidade? A verdadeira caridade só é possível caso o sujeito ame a sua própria subjetividade, porque a caridade é a união de todas as subjetividades em Cristo. Como alguém pode se importar com alguma coisa por causa de Deus, sem que se importe com nada por causa de si mesmo? Ou, dito de outro modo, se Deus se importa COMIGO, o que isso significa? Não significa que ele se importa comigo enquanto sendo alguém que possui uma subjetividade que deseja ser plenamente realizada? Mas, se Deus se importa com a minha subjetividade, então isso significa que ao desprezá-la eu estou desprezando o próprio Deus. Reconhecendo que eu sou uma pessoa única e irrepetível, que algumas coisas dizem respeito especialmente a mim, como se fossem palavras de Deus recitadas especialmente para mim, como uma música particular de Deus na Obra da Criação, eu peço a Deus para que Ele ordene a minha vida no mundo de acordo com todas essas coisas e pessoas por que eu me interesso e que constituem o que há de mais importante para mim na vida, isto é, abaixo de Deus; do mesmo modo, parece que Deus pede de mim que eu contribua para a ordem da Sua Criação, da Realidade, por meio da caridade, servindo à propósitos que vem da “Subjetividade” de Deus. Se há uma relação pessoal entre Deus e o homem, ela deve ser baseada nesse tipo de relação, onde há realmente uma analogia com a relação matrimonial: sendo Deus a cabeça do homem, e o homem sendo obediente a Deus, e Deus servindo o homem, e o homem servindo a Deus; do mesmo modo que a Caridade ordena todo amor e é maior do que todas as formas de amor que constituem a vida subjetiva do homem. O homem cria o seu mundo subjetivo, organiza a vida segundo as coisas que lhe interessam, desde que seja tudo não só aprovado por Deus, mas dado pelo próprio Deus, que também se interessa pela vida subjetiva do homem. E, o homem, deve não só obedecer a Deus, mas receber tudo somente dEle, tanto os bens quanto os males, e recebendo-os do mesmo modo, pois Deus é maior que o homem, e o homem deve ser submisso e servir a Deus com

obediência e fé. Daí a caridade é cuidar das coisas por causa de Deus, mas ela não exclui as outras formas de amor, que dizem respeito à vida pessoal e íntima do homem, pois Deus também se importa com estas coisas, sendo o provedor da individualidade do homem. Existe aí uma tensão entre a “Subjetividade” de Deus e a subjetividade do homem, e, se o mundo da subjetividade do homem fosse aniquilado, não podemos imaginar que significado teria a palavra “relacionamento” para ele. Jesus disse “quem fizer isso a um desses é a mim que o faz”; ou seja, o “relacionamento” com o próximo, por causa de Deus, isto é, da Caridade, é na verdade um relacionamento com o próprio Deus. Ora, não existe somente o relacionamento com Deus, existe o relacionamento com os outros seres humanos, e que podem assumir várias formas diferentes. Quem duvida que a amizade seja um dom? Se Deus nos dá esse dom, então ele o deu para quem? Para a minha alma sem subjetividade e que, portanto, toma o seu amigo como se fosse qualquer outro desconhecido? Tanto a caridade quanto o mundo da subjetividade fazem parte da nossa relação com Deus, e, sem um desses dois, essa relação não existiria de fato, porque a caridade é o que Deus pede de nós, e o mundo da nossa subjetividade é o que nós pedimos de Deus (e que, antes de pedirmos, já nos foi dado). Tudo o que existe de belo na obra de arte é fruto da subjetividade humana. O que o artista expressa não é outra coisa senão a sua subjetividade, ou o que há de verdade divina nela. Em toda obra artística, bela, o seu conteúdo deve ser algo que toque a intimidade do autor, a sua subjetividade, o seu coração. A matéria da arte é algo que toca o autor de modo pessoal, íntimo, que tem um sentido especial para ele, na vida dele. A dança, a música, a pintura, a escrita poética, tudo isso é belo e necessário para a vida humana, e é produto de uma subjetividade, de um sujeito que ama o que lhe foi dado por Deus de modo singular, e expressa isso de forma única. Nenhuma obra de arte, tal como seu autor, é repetível, reproduzível. E, ainda assim, a obra de arte é capaz de tocar muitas pessoas, cada uma a recebendo à seu próprio modo, e sendo tocada de um jeito diferente por ela; e isso só é possível porque aquela obra diz respeito à algo que toca profundamente o seu próprio autor, mas a expressão desse algo é uma forma genérica que pode servir para a expressão de outras coisas semelhantes que nos tocam a nós pessoalmente, e que em nós é diferente em conteúdo daquilo que tocou o autor mesmo da obra. A beleza da obra de arte prova o valor intrínseco de cada subjetividade humana capaz de ser tocada pela arte. Isso equivale a dizer que a vida humana é bela não só na sua estrutura, como também no seu conteúdo subjetivo, na sua interpretação do que é a sua própria vida e das coisas que te pertencem de modo singular porque têm um sentido especial para você. Nesse sentido, uma vida bela é uma bela autobiografia, ou uma autobiografia contada de forma bela. O que é uma autobiografia senão “todas as coisas que eu interpreto subjetivamente como dizendo respeito a mim pessoalmente de modo singular”? Eu escrevo na minha autobiografia as coisas que entendo dizerem respeito à minha vida, e todas elas me tocam de um modo singular, único. Se a minha subjetividade pudesse

ser aniquilada, isso significa que a minha autobiografia cessaria de existir, pois eu não teria como selecionar dentre tudo o que me aconteceu aquelas coisas que dão sentido à minha história. Isso acontece porque o próprio sentido da vida humana é feito de tudo o que é humano e subjetivo: a felicidade, o prazer do amor e da amizade, a dor do sofrimento, o medo da morte, a alegria da vida, o sentimento de valor, o sentimento de derrota e de vitória, etc., etc.. Todas essas coisas formam a melodia subjacente à letra da nossa própria vida. No fim, a vida também é algo que se padece: e você é o sujeito da sua vida. Isso não significa que a minha felicidade (terrena ou eterna) é a coisa mais importante para mim independente de tudo o mais, nem que tudo o que eu faça tenha relação direta com a minha felicidade ou a minha subjetividade. Buscar o Reino de Deus e a Sua Justiça está em primeiro lugar, e a Justiça do Reino de Deus diz respeito não só à minha felicidade, mas à felicidade de todo o mundo. Isso significa que é mais importante, para mim, buscar a Justiça de Deus do que buscar a minha própria felicidade pessoal, ou, em outras palavras, buscar a Glória de Deus mais do que a minha própria salvação, porque Deus é absolutamente mais importante do que eu, e o meu reconhecimento disso, de que eu sou criatura dEle, e não consubstancial a Ele, esse reconhecimento é absolutamente necessário para que a minha própria subjetividade ganhe vida, para que eu viva a minha própria vida de modo pleno; isso é o que significa “quem perder a sua vida por mim, ganhá-la-á”, isto é, quem submeter a sua subjetividade à Subjetividade de Cristo, mesmo que perca a sua felicidade no mundo, ela lhe será restituída plenamente no Céu, e é isso mesmo o que prefigura a história de Jó, que, depois de ter perdido tudo na terra, e depois de ter visto Deus, e se arrependido de seus pecados, Deus o restituiu com todos os seus bens. Isso significa apenas que a minha felicidade, aquilo que toca o meu coração, tem para mim prioridade sobre aquelas coisas que não importam para a minha subjetividade. Eu dou preferência à realização daqueles bens que me animam e movem o meu coração de modo mais pessoal (personalizado) do que à realização de bens que não me afetam subjetivamente. Para fazer isso de modo justo, é necessário reconhecer que o outro também é um sujeito como eu – e eu devo ser justo porque a Justiça é de Deus. É isso o que fundamenta a possibilidade de eu competir honestamente com alguém por um mesmo emprego; é claro que eu prefiro que eu esteja empregado e não o outro, mas isso não significa que eu esteja sendo egoísta. Do mesmo modo, se eu desejo que meu amigo consiga certo emprego que ele deseja, porque eu acredito que ele realmente o mereça e seja capaz de exercer tal ofício tanto quanto os outros candidatos, eu estou dando preferência ao meu amigo sobre todos os outros competidores, e essa preferência é legítima pelo mesmo motivo que é legítimo eu preferir que eu seja empregado e não os que estão competindo comigo: é que, dado que seja justo que qualquer um dos competidores consiga o emprego, eu prefiro que seja o meu amigo, porque ele tem um lugar na minha vida que os outros não têm. Ou seja, dentro da

Justiça de Deus, eu só posso me preocupar de verdade com aquilo que é da minha conta, que diz respeito à minha subjetividade. Se eu for indiferente à minha própria subjetividade, eu não terei lugar no mundo, e nem desejarei que as outras pessoas sejam felizes, porque desprezando a minha própria felicidade eu automaticamente desprezarei a subjetividade dos outros. Não podendo desprezar o meu próprio lugar no mundo, o que me foi dado, tudo aquilo que eu encontro que toca a minha qualidade de sujeito, a minha pessoa, o meu coração, mas, pelo contrário, sendo obrigado a realizar a minha pessoa no mundo, eu só posso dar preferência àquilo que é preferido para mim desde a minha perspectiva. Se eu não me reconheço como um “centro” em redor do qual gira um campo de interesses pessoais, então eu não posso reconhecer o outro como sendo um “centro”. Mas o que seria o puro desinteresse? O que seria a justiça impessoal? Se Deus nos criou como pessoas, é porque ele quer que nos realizemos como pessoas, e é por isso que é preciso buscar a Sua Justiça, que consiste na relação harmônica de todas as subjetividades. Mas, se as pessoas passam a se desinteressar da sua própria subjetividade, então a Justiça Divina é uma ordenação do quê? De seres vazios que não atualizam nada de si, que não sabem reconhecer o valor da própria criação, que não conhecem o significado de ser um “eu”. A ideia é que nós estamos aqui para sermos como instrumentos nas mãos de Deus para a salvação das almas, que aqui não é o lugar de ser feliz, mas a nossa felicidade está no Paraíso, após a morte, e aqui no exílio nós só podemos trabalhar e ter alguma consolação, mas não estamos aqui para buscar a felicidade no mundo, que não podemos ter, porque é tudo ilusão. Só que essa ideia tem um quê de gnosticismo, pela separação radical que faz entre, por um lado, a vida terrestre, e, por outro, a vida espiritual, como se a nossa vida no mundo não tivesse nenhum significado, nenhum sentido em si mesma, sendo toda a criação apenas uma ilusão maligna para nos desviar de fazer a Vontade de Deus e levar as almas para o inferno. Quer dizer que Deus criou tudo isso só para que a gente sofresse e lutasse para alcançar o Céu? Ou será que a minha real felicidade seria viver como se eu fosse um anjo, mas que eu não sinto essa felicidade somente por que eu sou mal de coração, preferindo assim a vida de pecado, ou uma mistura de pecado e virtude? Mas os santos são felizes por causa do seu estado de vida, ou porque eles ganharam algo melhor do que tudo aquilo que eles abdicaram? Mas eles realmente abdicaram de tudo, ou, antes, é que na verdade eles preferiram uma outra coisa “melhor”, (sendo que esse “melhor” não exclui o valor dos bens que eles deixaram de buscar, nem o que aqueles bens significam para eles, mas os transcende), uma coisa que lhes foi dada como tendo um valor mais alto do que aquelas outras que ele buscava, por dizer respeito diretamente à salvação da sua alma e da dos outros, mas uma coisa que foi dada diretamente à subjetividade dele, e não como um preceito geral para todo mundo, de modo que só aquela pessoa daquele santo pudesse responder a esse valor mais alto, e de forma única, abdicando de outras coisas que ele poderia ter tido, mas que para ele já não são necessárias, em face da sua nova missão sobre a terra, que exige dele apenas toda a disponibilidade do seu

coração com exclusividade e de modo permanente. A vocação religiosa, ou sacerdotal, do mesmo modo, deve ser uma resposta ao valor dada a partir da subjetividade do sujeito, e não como uma deliberação puramente objetiva. Ou seja, por que você está fazendo voto de castidade? É porque ela existe já no seu coração ou é porque você está pensando que isso que você chama de deus vai te achar “mais perfeito” se você fizer isso? Note bem que, assim como há casamentos “arranjados”, assim como existe a pessoa que casa com a pessoa errada por pura ilusão, existem também pessoas que fazem votos religiosos por engano, por ilusão, ou porque simplesmente são obrigadas a dar um jeito de se arranjarem no mundo. Para essas pessoas, ainda que a entrada delas no casamento ou na vida consagrada tenha sido um erro, um engano, ou uma fatalidade do destino, ainda assim elas devem cumprir os votos que fizeram, e arcarem com as consequências de seus atos, pois essa é a coisa mais madura e responsável a seu fazer. Além do mais, tudo o que nos acontece tem um sentido, e nos serve para que nós venhamos a conhecer o nosso próprio coração, e nele o nosso Criador. Tudo pode se converter em um bem para nós; no entanto, não devemos pensar que podemos fazer o que quisermos, quer dizer, que qualquer escolha que fizermos será igualmente boa: escolher ignorar o que é melhor para você não é uma boa escolha. “Eu estou interessado num bem de relevância moral por causa dele mesmo”, diz Von Hildebrand em The Nature of Love. Do memo modo, eu posso não estar interessado no casamento como meio para nada, mas eu posso desejar estar casado simplesmente porque eu me sinto realizado sendo esposo, e essa realidade me toca de modo especial, como sendo uma palavra de Deus para mim. 19. Santo Agostinho fala da maior santidade das pessoas casadas do Antigo Testamento, porque naquela época ter filhos era um dever moral e uma obra de piedade, enquanto que hoje em dia é apenas uma vontade carnal de ter filhos. 20. Ele fala que era lícito para os homens ter várias mulheres, mas não era lícito nem nunca vai ser, que uma mulher possa ter vários maridos, devido à própria ordem da relação entre homem e mulher, que é análoga à relação entre mestre e escravo. Um escravo não pode ter vários mestres, mas um mestre pode ter vários escravos. E ele diz que o matrimônio cristão é somente entre um homem e uma mulher, porque no matrimônio cristão a relação matrimonial passa a ser análoga à relação de Cristo com a Igreja, que é Una – apesar de ele dizer que o concubinato do AT prefigure a união das várias Igrejas (bispos) com Cristo. Mesmo que a mulher tenha um marido estéril, ela não pode ficar com outro para ter filhos, porque ela está sujeita ao seu marido. (Esse não me parece um argumento muito bom para justificar a ligação da mulher ao homem estéril, no casamento, se você diz que o único propósito do casamento é ter filhos. Por que é que o matrimônio cristão tem essa estrutura, sendo mesmo um casamento estéril sagrado e indissolúvel? Se a finalidade única do matrimônio fosse ter filhos, o próprio sacramento seria uma absurdidade, colocando o homem numa

situação quase absurda. Se o casamento entre pessoas comprovadamente estéril é válido, então a finalidade dele não pode ser ter filhos, ainda que exista a possibilidade do milagre, porque Deus em nenhum momento prometeu que daria filhos a todo mundo que vivesse o matrimônio honestamente. Além do mais, ninguém casa só para ter filhos, e pessoas velhas que já não terão mais filhos continuam casados, sem que o matrimônio tenha sido dissolvido como desnecessário, de modo que a relação entre os esposos continua existindo como tal, isto é, com o marido sendo a cabeça da mulher, uma relação que São Paulo chamou de “grande mistério”, isto é, com relação à Cristo e à Igreja.). Santo Agostinho aprece querer dizer que o Celibato é tão bom no tempo presente como o casamento foi no tempo passado, para os Patriarcas, ao passo que no passado o celibato seria uma demonstração menor de virtude, enquanto que hoje o casamento é que é um “degrau abaixo na santidade”. 25. novamente afirma que todo mundo que pode ser continente, que o seja. 26. Diz que a virtude pode existir como disposição na mente do sujeito, e ser invisível, ou pode se manifestar numa ação dele. Que Abraão tinha o celibato como disposição da mente, e João Batista o tinha como prática, mas que a castidade de João não era maior que a de Abraão. Baseando-se na palavra de Jesus, “quem puder receber isso, receba-o”, Santo Agostinho diz que com essa palavra Jesus inaugura um novo tempo, onde a procriação não é mais um dever sagrado, e onde a virtude do celibato é manifesta para o mundo, criando um lugar na sociedade para a prática dessa virtude. O problema é que geralmente nós não sabemos se temos ou não essa virtude. Talvez, como disse São Paulo, a melhor solução seja essa: cada um continue no estado em que está. Mas nem sempre isso é possível ou conveniente. O que fazer se você quer casar ou quer fazer votos religiosos? Por outro lado, dificilmente uma pessoa que realmente deseje a virtude do celibato não a receberá de Deus; no entanto, querer ser celibatário não é algo que as pessoas costumam desejar, ainda que elas reconheçam que é melhor ter essa virtude do que ser incontinente. E, mesmo quando uma pessoa tem essa virtude, ao menos em potencial, não me parece ser necessário, daí, que ela não possa querer contrair matrimônio, não por uma obrigação, mas porque ser pai de uma família que ele ame é para ele um bem melhor, para ele, nas suas circunstâncias, do que viver só; ou, ainda, ele pode querer casar com quem ele ama, porque para ele é melhor estar casado com quem ama do que estar sozinho e longe da pessoa amada. Note que, nesse caso, a questão não é a maior ou menor atenção dada às coisas de Deus, pois o que o afasta de outros estados de vida não é a incontinência, nem o desejo de coisas mundanas, mas o medo da solidão, e o fato dele não encontrar amigos em nenhum desses lugares religiosos, e, ao mesmo tempo, desejar ter uma

amiga especial com quem ele possa compartilhar a vida. Nesse caso, o meio ou menor valor do celibato, com relação à vida matrimonial, bem como a questão de servir mais ou menos à Igreja, não conta absolutamente para que o sujeito busque esse ou aquele estado de vida. Existem inúmeros outros fatores que contam para que alguém possa querer ou não contrair matrimônio, e geralmente esses fatores não são pensáveis na sua totalidade, de modo que a sua escolha, em última análise, é sempre um “chute”; e não há como alguém dizer que toda pessoa humilde e virtuosa, que busca a Deus, vai sempre preferir o celibato ao casamento, em qualquer circunstância onde essa escolha for “livre”. E eu acredito que isso seja assim porque, para a pessoa estar disposta ao celibato, é necessário mais do que o conjunto das virtudes, é preciso que ela encontre um meio de viver apropriado às suas qualidades espirituais e aptidões físicas, e, acima de tudo, é preciso que a sua escolha de um estado de vida leve em consideração toda a sua biografia, ou seja, que sentido isso terá para a vida dele como um todo, levando em conta inclusive quem ele quer se tornar e qual o problema que ele precisa resolver com a sua vida. Se o sujeito com todas as virtudes sente que a vida dele encontra seu sentido pleno sendo pai e esposo, então o que significa dizer que o estado de vida no qual ele está é “menos perfeito”? No tempo de Santo Agostinho, era evidente que a Igreja precisava de celibatários, de pessoas que se dedicassem aos trabalhos litúrgicos, pastorais, e intelectuais, para transmitir o Evangelho e formar uma cultura eclesiástica sólida. Nos nossos tempos, de modo geral, o celibato já não tem o mesmo sentido que ele tinha no contexto da vida de Santo Agostinho. Acontece que o homem não foi feito para o celibato, o celibato é que foi feito para o homem. 31. Santo Agostinho afirma que, se alguém faz sexo sem que seja para ter filhos, isso é uma “imperfeição”, e por isso mesmo isso foi desculpado pela palavra do Apóstolo. Agora, se não é mais necessário ter filhos, então todo matrimônio, ou praticamente todo, é sempre um estado imperfeito. A única maneira do cristão evitar essa imperfeição é permanecendo virgem. Só que o anjo disse a Daniel que ele deveria se deitar com a sua prometida esposa mais para ter filhos do que por desejo sensual, ele não disse “somente para ter filhos”. Está aí, implícito, não que o anjo duvidasse da continência de Daniel, mas que é impossível duas pessoas que se amam quererem fazer sexo só para ter filhos, porque, se elas se amam, elas se desejam sexualmente, não para ter filhos mas simplesmente porque se amam, e isso é necessariamente assim para um casal que se ama. É por isso que Jacó, que não duvidaremos da sua virtude, quis ter Raquel por esposa e não Leá. É verdade que nos nossos tempos ter filhos não é um dever sagrado, sendo até mesmo algo muito dispensável; no entanto, há ainda um outro motivo para o casamento, igualmente virtuoso, que é o de caminhar rumo ao Céu junto com a pessoa que se ama. A relação matrimonial é um tipo específico de relação, com um sentido próprio e

especial, que pode oferecer a uma pessoa aquilo que ela precisa para a sua santificação, para o fortalecimento da sua vida espiritual, para a sua perseverança e crescimento na fé. A solidão, por outro lado, não é uma virtude, mas um sofrimento, e “não é bom que o homem esteja só”. Nem todo mundo é capaz de viver isoladamente do mesmo modo. Não é o mesmo viver numa comunidade religiosa e conviver intimamente com outra pessoa com quem se está casado. A comunhão entre esposos é um tipo de relação específica, ainda que vivida entre duas pessoas continentes. É possível que toda a constituição psico-física do indivíduo clame por esse tipo de união mais profunda com uma outra pessoa de carne e osso. Mas, além disso, é importante notar que para Santo Agostinho, e no contexto em que ele escreveu, o sexo não é em si mesmo um bem, mas apenas um “meio”, do mesmo modo como um alimento, que dá prazer, é um “meio” para a nutrição do corpo, e não algo que deve ser buscado em si mesmo. No entanto, Deus dispôs todas as coisas de modo que houvesse alimentos mais saborosos e alimentos menos saborosos, e, mais ainda, de modo que o ser humano, pela arte, pudesse tornar mais saborosa a sua refeição. Ainda que a refeição vise a nutrição do corpo, o ser humano prefere aquela que é mais saborosa, e não só prefere como dá mais valor a ela, como sendo uma refeição melhor. Ou seja, uma refeição tem o seu valor em primeiro lugar pela sua capacidade de alimentar, mas se essa refeição tivesse um odor podre, ela dificilmente serviria bem ao seu propósito. E, no entanto, mesmo as refeições tendo naturalmente um sabor agradável, o ser humano sempre valorizou uma refeição bem preparada e bem temperada, acrescentando ao valor nutritivo do alimento um valor artístico que o torna mais agradável. Ora, o agradável pode ser bom ou mal para nós, do mesmo modo que a dor pode ser boa ou má; mas o agradável é em si mesmo um bem, e não algo ruim. E, se é um bem, o agradável pode ser buscado por si mesmo NAS COISAS. Ou seja, se podemos escolher entre duas cosias que servem à mesma finalidade, é possível que a mais agradável seja a melhor para nós. Assim, não foi pecado ter Santa Teresinha pedido para suas irmãs comprarem para ela uma bomba de chocolate quando ela estava enferma, pouco antes de sua morte. Do mesmo modo, o sexo no casamento não tem somente um valor devido à sua finalidade, mas ele tem um valor em si mesmo por servir como TEMPERO da relação. Eu não estou dizendo que é lícito buscar o sexo para ter prazer, o que eu não considero nem mesmo algo possível de ser feito, mas estou dizendo que, na relação conjugal como um todo, o sexo possui um valor de tempero, uma demonstração afetiva de um alto grau de comprometimento absolutamente indispensável para a manutenção da relação, e até necessária, na maior parte dos casos, para que os esposos aprendam a se amar e se relacionar COMO ESPOSO(A), e assim alcancem o grau de união necessário para serem uma família estável e poderem ajudar um ao outro no caminho da perfeição cristã. Por isso, nas leis civis de todas as sociedades tradicionais, mesmo na lei judaica, por exemplo, era previsto o número de vezes que O HOMEM deveria cumprir o ato conjugal com a esposa, de acordo com sua classe, e, caso ele não cumprisse o seu dever conjugal, sua

esposo podia pedir o divórcio, o que era garantido por lei. Isso mostra que, naturalmente, o homem sempre entendeu que o sexo, justamente por ser sensual e prazeroso, tem uma função essencial na relação matrimonial, e de certo modo a define, distinguindo-a de todas as outras formas de relação humana (lícitas); e essa função nunca foi encarada como sendo visando apenas à procriação, o que seria um absurdo pois isso é realmente impossível. O ato sexual tem em si mesmo uma função essencial na relação matrimonial, o que fica subentendido inclusive no próprio sacramento do matrimônio, ao proclamar casados os esposos que comprovadamente não podem ter filhos juntos um com o outro. Essa função tem a ver com o próprio tipo de relação interpessoal que se estabelece no matrimônio, de modo que a pratica do sexo entra nessa relação tal como um tempero, algo que torna mais agradável o sabor da própria relação. Por isso, mesmo que a finalidade biológica do sexo seja ter filhos, o que pode ser interpretado, como fora interpretado na Antiguidade, como sendo também o propósito divino e absoluto do sexo, ele também pode ser praticado licitamente sem que se tenha o propósito direto de ter filhos, mas desde que essa possibilidade continue existindo naturalmente, isto é, sem que se atente deliberadamente contra o processo natural de geração de filhos. Ou seja, desde que Deus tenha criado o homem e a mulher de modo tal que, de acordo com ciclos biológicos estáveis, houvesse períodos em que a mulher estivesse fértil para engravidar, e períodos de altíssima improbabilidade dela engravidar, e, por outro lado, Ele também os criou de modo a poderem praticar o sexo em qualquer tempo, diferentemente de todos os animais, de modo desapegado dos ciclos biológicos que regem a reprodução, dado essas duas coisas, é natural pensarmos que a pratica do sexo num tempo em que a mulher esteja num período biológico de altíssima improbabilidade de engravidar seja não só lícita, mas até mesmo algo que é por si mesmo desejável e bom. Com relação ao sexo praticado deste modo, dizemos que há aí um propósito “indireto” de ter filhos, isto é, uma “aceitação passiva” da finalidade biológica do próprio ato sexual; enquanto que, quando o casal quer ter filhos, e se programa para isso, de modo que eles procuram fazer sexo num período onde a mulher possa conceber, nesse caso dizemos que há uma “aceitação positiva” da finalidade biológica do sexo, isto é, há uma vontade ativa de que a procriação se efetive. Do mesmo modo, nós dizemos que Deus não criou o mal, mas ele “permitiu que o mal existisse”; no entanto, os Antigos, mesmo quando interpretavam isto desse mesmo modo, diziam que Deus faz o mal, tal como Jó: “Se Deus dá o bem, por que não dará também o mal?”; e diz Deus por outro profeta: “Eu, o Senhor, e não há outro, faço a luz e crio as trevas, produzo a paz e crio os males”. Ou seja, se Deus não teve a intenção de fazer os males, ele teve a intenção passiva de os fazer na medida em que os permitiu. Afinal, a nós, homens, não nos é permitido deixar que seja cometido contra alguém um mal que nós mesmos podemos impedir, pois é como se nós, ao permitir esse mal, tivéssemos assentido com ele. Assim, a minha distinção é perfeitamente cabível aqui, porque o sexo possui a sua finalidade biológica, (que na

Antiguidade era também uma finalidade sagrada), e, por outro lado, uma finalidade afetiva, sendo em si mesmo um bem para o relacionamento conjugal; e, somando-se a isso, Deus parece ter criado o homem para que ele pudesse fazer sexo para ter filhos ou não. Ou seja, daí só podemos concluir que, quando Santo Agostinho e outros Doutores nos dizem que o propósito do sexo é ter filhos, eles estão pensando unicamente na finalidade biológica e no dever sagrado, que são realidades que estão SEMPRE presentes em todo ato sexual, mas que, no entanto, não são as únicas realidades presentes. Se o sexo deve atender a outra finalidade diversa, é preciso que essas duas finalidades estejam de acordo – é preciso que elas não sejam realmente contraditórias. E, o modo de como isso é possível, é que há duas maneiras de se interpretar o “propósito de se ter filhos”, do mesmo modo que há duas maneiras de dizer que intencionamos qualquer coisa: a positiva e a negativa. Deus não faz o mal (positivamente), mas Deus faz o mal (negativamente – para daí tirar um bem maior); eu posso matar (positivamente), ou eu posso matar (negativamente – impedindo de matar um inimigo para salvar uma pessoa); e, do mesmo modo, eu posso querer ter filhos (positivamente), ou eu posso querer ter filhos (negativamente – por meio de não impedir artificialmente o processo de ter filhos). Então, para que o sexo seja lícito, de acordo com a ordem da natureza tal como criada por Deus, a primeira finalidade a ser atendida deve ser a da procriação, e ela pode ser atendida desses dois modos: ou tendo o propósito “positivo” de ter filhos ou o propósito “negativo” de ter filhos. Com isso fica demonstrado que, quando duas pessoas fazem sexo sem ter o propósito “positivo” de ter filhos, elas não só não pecam, como NÃO É NECESSÁRIO daí que eles estejam sendo movidos unicamente pela concupiscência, mas podem estar sendo motivados quase que somente pelo próprio amor-conjugal que os uniu, já que a concupiscência na verdade está sempre conosco para nos mover ao excesso e ao usufruto desordenado de todo e qualquer bem de que dispomos. A questão é essa: na era do AT os santos casavam porque acreditavam que ter filhos era um dever religioso, de modo que o matrimônio é assim submetido à finalidade da procriação. Mas, hoje, as pessoas não precisam ter mais filhos, porque a finalidade da procriação não é mais uma ordem divina, sendo assim meramente a finalidade biológica dada no próprio ato sexual. Então, quando as pessoas casam hoje, elas não o fazem para ter filhos, mas têm filhos apenas ou por desejo carnal ou porque estão casados; isto é, a pessoa não se casa para ter filhos, mas têm filhos porque se casaram, de modo que o ter filhos está agora submetido ao matrimônio, e não o contrário. Então, antigamente os santos casavam para ter filhos, mas hoje as pessoas têm filhos porque casam (mesmo que esteja mesclado aí um desejo carnal de ter descendência). Vamos ignorar se os santos casam ou não hoje em dia. Existem alguns problemas aqui. Se no tempo do AT era considerado uma obrigação religiosa o ter filhos, essa podia ser uma força de pressão social para o casamento, mas não há nenhum ensinamento explícito com relação a não ser aquela ordem do Gênesis: “crescei e multiplicai-vos”. Só que essa ordem não serve só para aquele tempo, ela também serve para este

tempo, já que Jesus nunca a revogou. Se essa ordem existia como uma força social e cultural da época, ela hoje pode continuar existindo no coração do homem. De fato, como já mostrei, quando um homem ama uma mulher, com amor-conjugal, o desejo de ter filhos com ela está intrinsecamente relacionado com o tipo de amor que ele tem por ela. Nesse sentido, casar por amor é o mesmo que casar por desejar ter filhos. E, mesmo que o ter filhos não seja agora uma obrigação religiosa, ele é um ato de amor, ratificado pelo Sacramento do Matrimônio; pois, tal como os antigos receberam a Lei, e nós recebemos o Verbo Divino feito carne, assim os antigos obedeciam a Lei e submetiam sua vida exterior à letra da lei, enquanto nó obedecemos à Cristo que nos livrou da letra morta da Lei. Portanto, nós somos livres para casar por amor, o que não foi dado a Jacó, porque ele estava preso à letra da Lei, enquanto nós fomos libertos por Cristo. Na nossa liberdade de espírito, no Sacramento do matrimônio, nós podemos contrair um matrimônio fundado no amor-conjugal, e não na obediência à letra da Lei. Podemos dizer que os antigos nunca conheceram o verdadeiro significado do matrimônio, que foi dado por Cristo, e por isso não conheceram o matrimônio baseado no amor e na liberdade do Espírito, porque viviam no tempo da Lei. Hoje, no tempo do Espírito, o homem está cada vez mais livre para se desenvolver individualmente e buscar por seus próprios meios a sua santificação, coisa que não acontecia na Antiguidade, onde cada um tinha o seu papel claro e distinto que precisava exercer e o seu lugar pronto na sociedade. 32. Os três bens do matrimônio: o propósito de ter filhos (mesmo sendo um desejo carnal), a fidelidade, e o sacramento (indissolubilidade do matrimônio). A fidelidade, para Santo Agostinho, inclui a “natural parceria dos esposos”. Mas ele diz que a primeira e natural finalidade do matrimônio é ter filhos; eu digo que a parceria dos esposos é uma finalidade natural “concorrente” com aquela. As duas finalidades estão juntas, pois a comunhão entre os esposos é, por um lado, para ter filhos, mas, por outro lado, é um bem em si mesmo, e pelo qual se pode vir a ter filhos. O matrimônio não é apenas um meio para se ter filhos, bem como ter filhos não é a única finalidade do matrimônio. Se o casamento dos Patriarcas foi especial porque foi profético, o próprio casamento em si mesmo também tem um sentido espiritual. Acontece que, na época do AT, esse sentido era social, e, hoje, ele é mais individual, como sendo algo que é “dado” a cada pessoa conhecer, isto é, o sentido do matrimônio na vida dela. Isso é assim porque, na cosmovisão antiga, a sociedade humana se dirigia para o tempo da vinda do Messias, e, com a vinda do Cristo, todas as coisas são renovadas, e o próprio sentido do matrimônio é renovado, pois agora o matrimônio não serve mais principalmente para garantir a procriação da espécie humana, como um dever social, mas adquire um novo sentido pessoal e individual no amor, agora livre de toda obrigação social. E é no tempo da Idade Média que essa separação se manifesta na literatura, com as primeiras

estórias de amor romântico: é a distinção do duplo significado do matrimônio: um de ordem social e outro de ordem individual e pessoal. Novamente, com o advento do Cristo, o matrimônio deixa de ser uma instituição apenas social, e passa a ser um vínculo livre entre duas pessoas que se amam, e isso é feito justamente por meio da abolição da Antiga Lei, e por meio de, ao mesmo tempo, renovar a instituição do matrimônio por um novo mandamento dado diretamente por Cristo. Cristo mesmo ratificou a dignidade do matrimônio, ao afirmar a sua indissolubilidade, e com isso ele está dizendo que o matrimônio deve ser um meio de santificação para os esposos, tal como São Paulo depois vai ensinar; mas que deve buscar esse meio de santificação? Todo aquele que precisar desse meio para se santificar... Não podemos dizer, como São Paulo, que só casem aqueles que “ardem de desejo”, porque não entendemos o que essa palavra significa hoje. Hoje as pessoas são livres para “permanecerem no estado em que se encontram”, mas, por outro lado, nem sempre é conveniente “estar a serviço da igreja” enquanto comunidade de pessoas, pois o trabalho da Igreja vai além desses círculos. Portanto, às vezes é conveniente se casar, quando aparece uma pessoa disponível a quem se pode amar e com quem se pode viver uma vida bela e virtuosa. O amor-conjugal, que tem um elemento de desejo sexual envolvido, não é o mesmo que apetite sexual, ou incontinência. Amor-conjugal não significa amor-incontinente; não é amor “imperfeito” nem amor misturado com “apetite sexual”. Quando eu amo a pessoa com a qual quero casar, não é que eu fique “ardendo de desejo” por ela, porque o que eu sinto por ela é um desejo que vem do coração: eu quero poder falar ao coração dela, e unir os nossos corações. Jacó não tinha nenhum apetite sexual incontrolável, e ainda assim ele trabalhou mais sete anos por Raquel, o que ele não faria por Leá, caso as coisas tivessem ocorrido de outro modo. O amor-conjugal é exatamente isso: é o misterioso “algo a mais” do matrimônio, que está para além de qualquer obrigação social ou religiosa. Isso também é indicado pelo primeiro milagre de Jesus na ordem da natureza. Quando Jesus transfora água em vinho, isso significa que a Nova Aliança, o Novo Casamento, realiza aquilo que o Antigo prefigurava, e que a diferença entre uma e outra é análoga à diferença entre a água e o vinho para uma festa de casamento. Quem precisa de água numa festa de casamento? Nós queremos vinho, porque é para manifestar o que se passa no coração. Mas a finalidade do vinho, para o praticante da virtude, não deve ser apenas a saúde do corpo? Mas não é por isso que Maria pede vinho a Jesus, é porque o vinho é necessário para que a alegria dos noivos seja plena, e a festa não acabe antes do tempo. Ou seja, no amor, a finalidade das coisas adquire um sentido mais elevado; o vinho não serve mais à sua finalidade biológica apenas, mas passa a servir também a um propósito espiritual, o de significar na festa de casamento a alegria do coração dos noivos. E isso também significa que, naquele momento, não é ruim beber um pouco mais do que o necessário, porque o motivo pelo qual eles bebem mais do que manda a lei do corpo é que aquele é um momento propício para expressar a alegria do coração. Assim, no ato

sexual, a Lei define e limita a vontade do homem, mas o Amor impera, motiva e justifica a ato da vontade que está de acordo com a Lei. Santo Agostinho termina a carta dizendo que o mérito do celibato é maior do que a do matrimônio, bem como a glória que irá receber no céu quem consagrou sua virgindade. Mas isso com relação ao corpo, existem outros méritos relativos a outras coisas. Eu entendo que o mérito do celibato é maior, porque é um sacrifício maior, prestado a Deus por meio da fé em Cristo, representando o oferecimento de toda a sua subjetividade, tal como acontece no amor-conjugal, onde um conjuge “doa-se” ao outro por inteiro, dá ao outro um lugar especial com relação à sua subjetividade. A vida consagrada é simbolicamente um casamento com Deus por meio da Igreja de Cristo, por meio dos votos religiosos, de modo que a pessoa que se consagra de corpo e alma vive como se fosse a encarnação da própria Igreja, que vive inteiramente, de corpo e alma, só para Cristo. E, na prática, isso significa que a pessoa abdicou de toda sua subjetividade, de toda a sua felicidade terrena, e esse é o maior sacrifício que alguém pode fazer sobre a terra. O sacrifício da sua virgindade é o maior sacrifício que se pode fazer, caso a pessoa viva em consonância com o significado desse sacrifício. O que é maior que a castidade conjugal é o celibato cristão, que representa o oferecimento total da pessoa diretamente a Deus, e que só é possível por causa da Encarnação de Cristo e do Seu convite para deixar tudo e segui-lO. Mas a vida consagrada não é a morte da subjetividade, é a sua máxima ampliação para que ela possa caber o mundo todo. O celibato é maior no que diz respeito à caridade, e a continência é uma força que permite o sujeito a ter uma vida melhor. Mas, aí é que está, a diferença entre o casamento e o celibato é só que o celibatário é mais “forte” do que o sujeito que quer casar? O casamento existe por causa de uma “imperfeição”? No fim das contas o celibato e o matrimônio não dão no mesmo? Não são caminhos diferentes para se alcançar a mesma coisa? Tanto quem opta pela vida celibatária quanto quem opta pela vida matrimonial tem que aprender a se desapegar das coisas do mundo e tomar mais consciência da sua alma imortal, nos dois casos nós temos que aprender a morrer, porque é para lá que estamos indo. Quem busca a vida celibatária é mais apressado. Mas por que o mérito da virgindade é maior que o da castidade conjugal? É mais difícil? É mais difícil para quem? O desejo sexual está mesclado à concupiscência? O amor entre um homem e uma mulher foi manchado pela concupiscência? Mas e se isso não influenciar a relação do casal? Quer dizer que as pessoas só casam por cederem à concupiscência? Todo amor sexual é fruto do pecado original? Isso não é possível, então tem que haver um desejo sexual ideal ausente de concupiscência, ou no qual a concupiscência é desprezível. Assim, tem que haver um casamento em si mesmo perfeito. Então, por que eu abdicaria desse casamento pelo celibato? Isso não vai depender do bem que eu posso fazer em cada caso? Essa minha

escolha não depende do bem que eu quero realizar no mundo e das minhas circunstâncias? Não depende de quem eu sou e aonde estou, de qual o meu lugar no cosmos? De que modo o celibato para mim é melhor do que o matrimônio? Santo Agostinho me diz que o celibato é um bem mais alto do que a castidade conjugal, mas como eu posso saber isso? – se eu não sei, talvez seja porque eu não tenho essa virtude. Para mim, o celibato só é uma virtude para quem é “chamado” a esse estado, como um “chamado” para que o sujeito venha a por em prática essa virtude, essa força que ele vai precisar para por em prática aquela obra. Fora isso, como eu posso escolher abdicar de algo para viver uma vida que eu nem sei por que seria melhor que aquela que eu gostaria de viver? O celibato só é maior que a castidade conjugal porque o celibato inclui a castidade conjugal, porque ele a transcende, é uma abdicação da castidade conjugal, é um bem maior que outro bem – mas é um bem que não pode ser buscado por ele mesmo, ele tem que ser “dado” de cima, porque o sujeito tem que ter um motivo para negar um bem para buscar outro maior, e esse motivo não pode ser dado pela autoridade dos padres e teólogos, ele tem que ser motivado pelo préconhecimento daquilo que ele já vê como sendo o melhor por experiência própria. Por outro lado, talvez, se um sujeito pode se beneficiar muito do matrimônio, talvez ele não possa se beneficiar em nada do celibato, ainda que o celibato seja em si um estado “superior” ao matrimônio. Existe uma hierarquia de valores, mas nenhum desses valores é absoluto – o único Absoluto é Deus; cada valor universal é relativo ao bem que ele proporciona a esta pessoa em particular na sua situação concreta. Nós não seremos julgados pelas nossas virtudes, que vieram todas de Deus, mas pelo uso que fizemos delas, de acordo com nossas capacidades. De que adianta eu buscar as virtudes mais elevadas, do estado de vida mais alto, se para isso eu vou ter que ignorar a única realidade da minha vida que faz sentido para mim? Tudo deve ser feito ordenadamente, sem saltar etapas. O bem que eu busco deve estar em consonância com a unidade da minha vida e da minha pessoa. Eu devo buscar primeiro aquilo que me foi dado, e esperar que eu faça o uso correto disso para poder receber mais depois. O estranho é que, enquanto eu estou solteiro, uma esposa é a única coisa de que eu sinto falta; e isso não é desejo sexual, é um sentimento mais parecido com saudades de algo que não aconteceu ainda, uma espécie de vazio que quer ser preenchido. Não se pode resolver isso optando pela vida celibatária. Mas também não preciso “procurar mulher”. “Cada um continue como está”, e esperarei para ver o que acontece. Daonde vem esse desejo por mulher (esposa)? Consupiscência? Não me parece. Mas, se eu não o tivesse, seria mais fácil consagrar minha vida a Deus de corpo e alma. Porque, como eu posso me consagrar a Deus, excluindo de vez o matrimônio, se eu tenho esperança de ser mais feliz no matrimônio e nenhuma esperança de ser curado por meio da vida celibatária? No cristianismo, é como se Deus dissesse: olha, aqui está a vida perfeita, a vida ideal. Mas essa não é a vida que você quer. A vida que você quer também é boa, e Deus

aceita ela, mas não é a melhor. Você deveria viver sempre tendo em vista a vida melhor, ainda que você queira uma vida diferente. Mas isso não significa que você deva querer a vida melhor só porque disseram que ela é melhor, é preciso realmente enxergar esse melhor, de modo que você não corra o risco de estar se enganando a seu próprio respeito, pensando que você é bom quando na verdade está apenas se escondendo de si mesmo. A nossa glória nos céus depende do que Jesus pede de cada um, e o quanto nós nos entregamos a Ele. Se estamos totalmente entregues a Deus, pouco importa se Ele pede que a gente não tenha nada no mundo, ou que a gente seja um rei poderoso, porque no Céu ele nos tratará de acordo com o quanto de nós é dEle, e não de acordo com o tamanho das nossas obras. Sobre matrimônio e concupiscência Em outra carta, Santo Agostinho diz que “a castidade conjugal faz uso do mal da concupiscência para a geração de filhos”, o que dá a entender que o desejo sexual é pura concupiscência... -//-

“Augustine held that continence should be understood as God’s gift and motivated by love for God.” – The Goods of Marriage in Canon Law. “He believed that original sin was passed on through sexual intercourse and that sinful lust was a primary manifestation of original sin.”. “Prior to original sin, Augustine thought that the sexual “organs which are now excited only by lust could have been completely controlled by deliberate choice...”. Sexual intercourse remained a good within marriage even if it had been disordered as a consequence of original sin.”. “A newly discovered letter of Saint Augustine distinguishes between lawful concupiscence in marriage and the disordered concupiscence of the fallen human condition. In this letter, which is dated to about 421 AD, Augustine writes to the Bishop of Constantinople acknowledging that there may have been a sinless sexual desire in pre-lapsarian Paradise. This possibility seems consistent with his thought about the fullness of the threefold goodness of the marriage between the Virgin Mary and her chaste spouse Joseph.” (p. 7). •

A minha tese é que esse desejo sexual não pecaminoso ainda existe, só que misturado com a concupiscência, ao menos para aquele que está destinado a amar uma pessoa só.

“When c. 1055, 83 CIC, defines the co-equal ends of marriage as the good of the spouses and procreation of children, it reflects a development in the Church’s understanding that is rooted in the traditional Augustinian analysis.”.

“Unlike the 17 CIC and Casti Connubii, Gaudium et Spes declined to articulate a hierarchy of ends of marriage.”. “Number 48 of Guadium et Spes states that the good of the spouses is “rooted in the will and embraces the good of the whole person.” … these canonists have opined that the good of the spouses represents a new fourth good of marriage.”. “A second group of canonists have found it helpful to distinguish between the good of the spouses as an end of marriage and the traditional three goods of marriage. Saint Augustine thought that the threefold goodness of marriage represented qualities that made marriage objectively beneficial for society and individuals. Fidelity, children, and stability are all qualities of the intrinsic and overall objective good which is marriage. In contrast, the good of the spouses is an end in the sense that one of the goals of marriage is to increase and deepen the love between the spouses. The traditional view of marriage as an objective societal good did not focus on the interpersonal nature of the spouses’ relationship and the deepening of the love between them. Rather, the Augustinian analysis of the goodness of marriage suggests that fulfilling the threefold goodness of marriage contributes to the good of the spouses. In light of this distinction between the inherent traditional goods and inseparable ends of marriage, the good of the spouses depends on the fulfillment of the traditional threefold goods. Exclusive sexual fidelity, openness to the gift of children, and sacramental permanence of the marriage deepens the love between the spouses. Vatican II’s recognition of the good of the spouses as an end of marriage acknowledges the profound nature of marital love.” (p.9).

In Love and Responsibility, the future pope wrote: “Neither sensuality nor even concupiscence is a sin in itself, since only that which derives from the will can be sin—only an act of a conscious and voluntary nature (volunatrium).”

O que significa ser fiel à sua esposa? Significa você querer amar somente ela como esposa, e nenhuma outra, nunca, enquanto ela (ou você) estiver viva. É fidelidade à

união do matrimônio, que é até a morte. Mas também existe um amor que promete fidelidade eterna...

-//“Para comprender un poco mejor esta inefable procesion de amor, dejemos por un momento la metafisica divina e interroguemos simplemente a nuestro corazon, y el nos dira que en el amor consiste toda su vida. El corazon late, late continuamente hasta que muere. Y en cada latido no hace sino repetir: Amo, amo; esa es mi mision y unica ocupacion. Y cuando encuentra, finalmente, otro corazon que le comprende y le responde: ≪Yo tambien te amo≫, |oh, que gozo tan grande! Pero .que hay de nuevo entre estos dos corazones para hacerlos tan felices? .Acaso el solo movimiento de los latidos que se buscan y confunden? No. Estoy persuadido que entre mi y aquella persona que amo existe alguna cosa. Esta cosa no puede ser mi amor, ni tampoco el amor de ella; es, sencillamente, nuestro amor, o sea, el resultado maravilloso de los dos latidos, el dulce vinculo que los encadena, el abrazo purisimo de los dos corazones que se besan y se embriagan: nuestro amor. !Ah, si pudieramos hacerlo subsistir eternamente para atestiguar, demanera viva y real, que nos hemos entregado total y verdadeiramente el uno al otro! Esta fatal impotencia, que, en los humanos amores, deja siempre un resquicio a incertidumbres crueles, jamas puede darse en el corazon de Dios.” - El gran desconocido EL ESPIRITU SANTO y SUS DONES, (p. 20 no pdf) Antonio Royo Marin

-//No documentário por Josias Teófilo a esposa do Olavo aparece dizendo “ele me embeleza”. Calcídio diz que a matéria almeja o aperfeiçoamento ou embelezamento como a fêmea deseja o macho. (Imagem Descartada p70). Soneto de Camões: “e o vivo e puro amor de que sou feito/ como matéria simples busca a forma”.

-//Para mim, “eu te amo” significa “eu quero morrer com você, para você, e em você”.

-//Diversos autores consideram significativa a «seriedade» que invade os amantes no momento da união dos corpos. Cessa nesse momento toda a brincadeira, frivolidade, toda a vã galanteria, todo o desgaste sentimental. Nem o libertino, nem a própria prostituta, a não ser que esteja anestesiada devido a um regime de prestação passiva e indiferente do começo ao fim, constituem exceções. «Quando se ama não se ri; talvez se sorria apenas... Durante o espasmo está-se sério como na morte (69).» Cessa toda a distração. Para além da seriedade, o ato sexual comporta um grau de concentração particularmente elevado, mesmo que seja frequentemente uma forma de concentração involuntária, imposta ao amante pelo próprio desenvolvimento do processo. Por este motivo, tudo o que o possa distrair pode ter sobre ele um efeito imediato eroticamente ou até psicologicamente inibitório. Emotiva e figurativamente é isto o que, no ato sexual, implica o «dom» de um ser ao outro, mesmo quando tem o caráter de uma união fortuita e sem continuidade. Essas características, essa seriedade, essa concentração, são reflexos do sentido mais profundo do ato de amor e do mistério que encerra. Já na Introdução mencionamos a dificuldade que há em recolher testemunhos acerca do que se passa no homem e na mulher no limite do ato sexual, dificuldade que é devida não somente a um natural escrúpulo em falar, como ao fato de o climax, o acume, corresponder frequentemente a condições de consciência reduzida, e, por vezes até, a soluções de continuidade, isto é, a interrupções da consciência.

No sexo a alma está maximamente “encarnada”. não só a alma se torna mais corpórea, mas o corpo também se torna mais sutil, e entre os dois se dá a tal da “embriaguez erótica”.

Aristóteles escreveu o seguinte sobre a procriação: «O macho representa a forma específica; a fêmea, a matéria. Enquanto a fêmea é passiva, o macho é ativo (3).

É possível que um homem estupre uma mulher, mas o contrário não é possível: Como determinações ulteriores poderemos fazer corresponder o masculino e o feminino ao ser e ao devir, aquilo que tem o princípio em si mesmo, e ao que tem o início num outro: a ser (imutabilidade, estabilidade) e vida (mutação, alma ou substância animadora, substância materna do devir). Este autor também põe o ser em contacto com , que é um outro termo cujo sentido original é difícil de compreender nos nossos dias: é o princípio intelectual concebido como princípio olímpico, presença imutável e pura luz que tomam, para Plotino, a figura de Logos quando considerado como a ação que fecunda e faz mover a matéria ou poder cósmico. O feminino é, ao contrário, a força-vida; é como Psique, «a vida do ser eterno» e quando a manifestação «procede» de Um e toma forma, «perpetua» o ser, isto é, desenvolve no tempo, no devir, nas situações em que os dois princípios estão unidos e diversamente misturados, mantendo-se o masculino, ou Logos, em tudo o que é, se mantém idêntico a si próprio, não devem, e é o princípio puro da forma (5).

Encontramos igualmente em Aristóteles uma polaridade com este sentido: perante o νους imóvel, que é o ato puro, encontra-se a «natureza», em que o primeiro pela sua simples presença como «imobilidade móvel» desperta o movimento real, a passagem da possibilidade informe ou «matéria», à forma, à individualização. São equivalentes a esta dualidade a díade Céu e Terra, a

polaridade do princípio uraniano e do princípio telúrico ou ctónico, imagens cósmicosimbólicas dos eternos masculino e feminino.

E possível, neste plano, encontrar um outro símbolo para o feminino, do qual, de resto, já falamos, ou seja, o das águas. As Águas compreendem sentidos diversos. Representam em primeiro lugar a vida indiferenciada, anterior à forma, que ainda não está fixada à forma; simbolizam em segundo lugar, o que corre, flui e é, portanto instável e mutável, ou seja, o princípio do que está submetido à procriação e ao devir no mundo contingente denominado pelos Antigos, mundo sublunar; por fim representam, também, o princípio de toda a fertilidade e crescimento, segundo a analogia demonstrada pela ação fertilizante que a água exerce sobre a terra. Fala-se, de um lado, do «princípio úmido da geração» e do outro das «águas da vida» e também das «águas divinas». Acrescentemos que às Águas está associado o símbolo de horizontal, correspondendo à categoria aristotélica do ser deitado xeíOac, que se opõe ao da vertical — e à categoria de éxety, no sentido específico do ser, o ser direito, o ser ereto; sentido este cuja relação com o princípio masculino foi expressa, entre outros, pelo símbolo fálico e itifálico (o falo em ereção).

o fogo este símbolo, considerado no seu aspecto de chama que aquece e alimenta, pôde ser igualmente utilizado como símbolo do elemento feminino, desempenhando, deste modo, um papel muito importante nos cultos hindo-europeus: Atar, a Hestia helênica e a Vesta romana são personificações da chama tomada neste sentido (Ovídio — Fast., VI, 291 — diz: Vesta é a chama viva); estava também relacionado com o aspecto feminino do divino considerado como força-vida e elemento vivificante o eterno fogo sagrado que brilhava nos palácios dos Cesares

Ao yin é também própria a sombra, o obscuro, relacionado com as potências elementares anteriores à forma que, no ser humano, correspondem ao inconsciente, à parte vital e noturna da sua psique, o que nos conduz diretamente à relação que sabemos ter existido entre as divindades femininas e as divindades da noite e das profundezas da terra, à noite, Nyx, hesiódica, considerada mãe do dia: tendo dia neste caso a qualidade clara, iluminada, («ensolarada») do yang que é própria das formas manifestas, definidas e acabadas que se destacam da obscuridade ambígua, da indeterminação do seio materno da substância feminina ou matéria-prima.

I Cor 11: 6 Se a mulher não cobre a cabeça, deve também cortar o cabelo; se, porém, é vergonhoso para a mulher ter o cabelo cortado ou rapado, ela deve cobrir a cabeça. 7O homem não deve cobrir a cabeça, visto que ele é imagem e glória de Deus; mas a mulher é glória do homem. 8Pois o homem não se originou da mulher, mas a mulher do homem; 9além disso, o homem não foi criado por causa da mulher, mas a mulher por causa do homem. 10Por essa razão e por causa dos anjos, a mulher deve ter sobre a cabeça um sinal de autoridade. 11No Senhor, todavia, a mulher não é independente do homem nem o homem independente da mulher. 12Pois, assim como a mulher proveio do homem, também o homem nasce da mulher. Mas tudo provém de Deus.

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O que os poetas medievais queriam dizer com o amor cortes? O amor cortes, no seu significado mais profundo e talvez de caráter sagrado senão iniciático, não tem nada a ver com a simples paixão entre um homem e uma mulher. Esse amor é uma experiência que lava os amantes a terem uma relação tão diferente da relação mundana, tão separada da vida neste mundo, que é como se o amor entre um homem e sua amante fosse completamente ininteligível para o seu marido e para as outras pessoas, e fosse uma relação que dissesse respeito somente aos dois, sem que ninguém mais pudesse compreender o que ela significa, daí o caráter oculto desse

amor e a necessidade que tem de ser expresso nos romances sob a forma de adultério. Porque a relação matrimonial diz respeito à vida nu mundo, enquanto que esse outro amor diz respeito somente à união eterna dos amantes, de modo que a relação deles visa unicamente ao crescimento espiritual de cada um, sem que a formação de uma família tenha nenhum sentido para esses amantes, já que eles não querem ter uma vida mundana mas visam unicamente a união eterna de suas almas. É claro que existe uma contradição profunda entre essas duas coisas, o casamento e o “amor cortes”. Ele cria uma divisão radical entre amor e casamento: o esposo mundano, que constitui a ordem da sua vida no mundo, sem a qual a mulher não é nada, e o esposo do coração, aquele com quem ela está unida tão intimamente que não tem que prestar contas a mais ninguém, que diz respeito somente à sua própria subjetividade e não altera o seu estado de vida e as suas obrigações de mulher mundana para com seu marido e filhos. Nós sabemos que geralmente esses dois esposos se confundem, mas eles representam áreas perfeitamente distintas da vida humana. Na estória de Tolstói, a personagem Ana Karenina tem um sonho onde ela está na cama, e de um lado da cama aparece o seu amante segurando a sua mão, e do outro lado o seu esposo segurando a sua mão, e ela diz, chorando: nossa, me surpreende que eu estivesse tão aflita antes, porque agora tudo se resolveu de modo tão simples! – Ou seja, a felicidade dela é muito simples: bastava que o esposo e o amante se tornassem um! Isto é, a vida dela estava radicalmente dividida, e isto de fato a matou. -//-

Ter o conhecimento do bem e do mal significa poder sentir prazer tanto no bem como no mal. Significa que o seu “eu” é livre para se identificar tanto com o que é mau quanto com o que é bom (sendo bom e mau aqui se referindo à experiência total do ato bom ou mau). Você é conhecedor do bem e do mau porque você é tão capaz de se identificar com o Bem como de se identificar com a perversão (seja você pervertido ou não). O Julgamento Final é justamente a divisão definitiva, absoluta, entre o bem e o mal, de modo que a possibilidade de queda (de identificação com o mau) não exista mais para o homem bom, sendo ele colocado definitivamente no seu lugar próprio, (estabelecido como rei no seu reino pessoal), nem exista a possibilidade de conversão para o homem mau, que agora é definitivamente estabelecido no lugar que escolheu estar. Enquanto estivermos na terra, no mundo intermediário, temos a possibilidade de nos identificarmos com o mal ou com o bem, e podemos sentir prazer com o mau na medida em que nos identificamos com ele, e podemos sentir prazer com o que é bom na medida em que nos identificamos com Bem; mas essa identificação com o Bem ou com o mal não é nunca absoluta, ela é às vezes uma “experiência”, uma “tentativa”, uma “prova”, e só de pouco a pouco a pessoa vai realmente preferindo ficar no mundo do bem ou no do mal.

Mas parece que existe também uma diferença de “gosto” entre ser bom e ser mau. Algumas pessoas acham que o prazer pervertido é muito mais intenso que o prazer que é justo, outras pessoas acham que a dor é muito maior no prazer perverso do que a dor que existe misturada ao justo prazer que podemos ter; mas isso também dependerá de outros fatores não relacionados com o bem e o mal, mas com a própria constituição psicofísica da pessoa, e com aquilo que o seu organismo é capaz de experimentar fisiologicamente devido à sua própria constituição interna ou a traumas passados. --//--

“No sabeis que sois templo de Dios y que el Espiritu de Dios habita en vosotros? Si alguno profana el templo de Dios, Dios le destruira. Porque el templo de Dios es santo, y ese templo sois vosotros” (1 Cor 3,16-17). Ou seja, qualquer coisa que se faça corporalmente sem que se tenha um propósito “íntegro”, ou incluído num propósito espiritual mais elevado, isto é, se o corpo não expressa uma intenção espiritual, então ele está a serviço do mundo, do demônio ou de si mesmo, sendo assim profanado. “O no sabeis que vuestro cuerpo es templo del Espiritu Santo, que esta en vosotros y habeis recibido de Dios, y que, por lo tanto, no os perteneceis?” (1 Cor 6,19). Ou seja, o corpo não é para expressar os desejos mundanos ou “carnais” da alma humana, nem para servir ao demônio pela perversão da alma, mas é para expressar em tudo o sentido da vida humana, servindo também como testemunha do Espírito que nele habita. “Pues vosotros sois templo de Dios vivo” (2 Cor 6,16). Ou seja, se toda ação corporal (voluntária e, às vezes, mesmo as involuntárias) é intencional, então o corpo deve agir conforme o Espírito que nele habita, e não deve fazer coisas que são a expressão do que o Espírito Santo não pode ser.

-//Santo Agostinho On Marriage and Concupiscence Começa dizendo que a concupiscência carnal é um acidente no matrimonio, que, nascendo do pecado original, emerge no matrimonio.

Diz que esse mal é retamente empregado no matrimônio para a geração de filhos. ** Aí é que está! O que é essa concupiscência de que fala Santo Agostinho? Ela está evidentemente ligada à atração sexual, ao desejo sexual e, portanto, à excitação sexual. Se o desejo sexual é concupiscência, então, não importa o motivo do casal fazer sexo, será sempre através da concupiscência. No entanto, será mesmo que o desejo sexual seja idêntico à concupiscência? O próprio Santo Agostinho não parece acreditar nisso quando diz que é possível que Adão e Eva tivessem procriado no paraíso mesmo se não tivessem pecado. ** Essa concupiscência que se origina no pecado original parece ser uma espécie de desordem que “libera” o desejo sexual da sua ligação com a vida espiritual, de modo que ele passa a ter certa autonomia e até mesmo uma característica de caos e desordem. ** Essa concupiscência, já que é consequência do pecado original, continua operando na alma de todo ser humano, de modo que mesmo no caso de um desejo sexual que se originasse da virtude seria manchado por essa concupiscência de algum modo. Mesmo durante o ato sexual o homem teria que lutar contra a concupiscência, porque essa inclinação para o prazer de pecar estaria o tempo todo presente de qualquer maneira. ** Então, de certo modo, Santo Agostinho está falando sobre um aspecto real do matrimônio, porém, ele se omite acerca de se o desejo sexual é pura concupiscência ou se ele pode ter alguma outra fonte, sendo apenas mais ou menos contaminado pela concupiscência, segundo a virtude de quem ama. Santo Agostinho diz que o pecado original é transmitido por meio do contato carnal manchado pela concupiscência carnal, que por sua vez vem do próprio pecado original. “... enquanto que o casamento teria existido mesmo se o homem não tivesse pecado, já que a geração de filhos no corpo que pertence a esta vida teria se efetivado sem esse mal no qual “o corpo dessa morte” não pode estar separado do processo de procriação.”. ** Se o casamento teria existido mesmo que o homem não tivesse pecado, como seria então o desejo sexual aí? Como as pessoas se ligariam então? A minha tese é que as pessoas, mesmo que tenham esse corpo de morte, (um desejo sexual manchado pela concupiscência), ainda podem experimentar algo daquela atração sexual sem culpa, daquele desejo sexual baseado na intenção simples de um coração puro.

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Não é possível falar sobre a sua relação sexual, a sua relação com a pessoa que você ama, com uma terceira pessoa, pois o sentido da relação conjugal amorosa é inseparável do próprio ato sexual, de modo que não é possível conceber o sentido dessa relação sem praticá-la, isto é, desde fora. Isto quer dizer que uma relação sexual concebida do ponto de vista de uma terceira pessoa se transforma automaticamente em pornografia. Se uma amiga me conta sobre a relação sexual que ela teve com o marido, então, eu, que sou homem, não poderei me identificar com ela para poder compreendê-la, antes irei me identificar com o marido dela, e isto me colocará na situação de imaginar-me fazendo sexo com esta amiga e desejando-a, o que, por fim, poderá fazer com que eu acabe desejando-a para mim mesmo (o que, de qualquer modo, acontecerá durante aquele tempo em que eu estiver imaginando aquilo que ela me contar sobre a sua intimidade com o marido). Se uma mulher me contar sobre suas relações com seu marido, é como se ela estivesse pedindo para que eu a desejasse ou a visse desde daquele ponto de vista. Entrar na intimidade do casal é destruir essa intimidade. Uma vez que o casal tem consciência de que um terceiro sabe sobre a intimidade deles, eles passam a considerar e imaginar a própria intimidade entre eles do ponto de vista da terceira pessoa, do mesmo modo que, quando queremos julgar nossas ações na sociedade, nós também somos levados a nos imaginar do ponto de vista neutro de uma terceira pessoa. Mas Jesus disse: “aquele que desejar uma mulher já comete adultério com ela em seu coração”. Desejar uma mulher é concebê-la desde o ponto de vista do seu marido, ou seja, do amor conjugal. Desejar uma mulher não significa que eu realmente a amo, significa apenas que eu me imagino desde o ponto de vista de alguém que a ama ou que tem direito sobre o corpo dela. O que Jesus disse é que nós nuca devemos nos colocar desde esse ponto de vista quando olhamos para as pessoas do sexo oposto. É como se o coração do homem desejasse a mulher eternamente, mas o homem trocasse essa sua mulher eterna por alguma mulher que lhe atrai no momento e fantasiasse que é desta que o seu coração está falando. A relação sexual não pode ser mostrada, exposta ao público. Não estou dizendo isso como um preceito moral, estou dizendo que é impossível que ela seja mostrada na sua integralidade. Quando a relação sexual é mostrada, ela se transforma em pornografia; e se um casal quiser fazer pornografia, a relação sexual aí será apenas aparente, sem verdadeira substância, dado que a relação entre os dois indivíduos será apenas teatral. Do mesmo modo que não se pode mostrar o “eu” eterno senão pelos seus atos, também não é possível mostrar a intimidade de uma relação interpessoal senão exercendo-a. Ou seja, a relação sexual, que acontece na intimidade do casal, só existe para aqueles que a praticaram, não podendo ser concebida na ausência de um ou de

outro conjuge. Isso é assim porque na relação conjugal o esposo escolhe ver a pessoa da sua esposa de uma forma única, que só é permitida dentro do matrimônio, e é a incorporação do amor conjugal à sua personalidade que o torna o esposo da sua esposa. Essa relação é única, exclusiva e personalizada, não sendo possível ser esposo de mais de uma esposa ao mesmo tempo e vice-versa. Mesmo que não se tenha amor ou intimidade com a pessoa com quem se está casado, a fidelidade jurada no matrimônio significa que só essa pessoa você verá como esposa e que você não exporá a sua relação com sua esposa para que ela seja diminuída e aviltada por terceiros. A visão que você tem da sua esposa não pode ser transmitida, porque você não pode fazer um outro homem olhar para a sua esposa como sendo o esposo dela, como sendo você. Você pode até fazer outro homem desejar sua esposa, mas não pode fazer com que ele a deseje como você a deseja, porque cada indivíduo ama outro indivíduo a seu próprio modo. O modo mais sublime de amor conjugal é quando desde a unidade do nosso coração, e num único relance, nós enxergamos a individualidade da pessoa do outro em harmonia com a beleza da sua criação. Em resposta à essa beleza, o próprio núcleo do seu ser é tomado de amor, e o desejo que brota do meu coração é tão profundo que isso me leva a afirmar que “essa pessoa foi feita para mim”. A beleza que meu coração contempla só existe para mim na individualidade daquela pessoa, que é única, e meu coração deseja conhece-la como a ninguém mais, como se só ela fosse a sua verdadeira morada. Eu posso conhecer outras pessoas, mas não na sua totalidade abissal, não como se elas fossem o lugar de meu repouso eterno.

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Um sinal do pecado original presente na relação conjugal é a vergonha da própria nudez, sinal de que uma motivação pecaminosa emerge à consciência do homem. Uma intenção boa e uma intenção má competem entre si em cada ato, e o homem não é capaz de se livrar de nenhuma das duas absolutamente. Se ele opta em seguir a intenção boa, a intenção má não deixa de atraí-lo; se ele opta pela má, a intenção boa pesa na sua consciência. Ou seja, por causa do pecado original, o corpo estando desarmonicamente ligado à alma, manifesta o estado dela por meio de reações brutas motivadas por forças inferiores à vontade orientada ao bem, de modo a recordar a alma do seu próprio estado de miséria, o que causa a vergonha que é por sua vez manifesta no próprio corpo (+psique). A consequência dessa desarmonia na composição corpo-alma se manifesta na fragmentação da consciência como os vícios capitais e seus derivados, que são faltas

de virtude que levam o corpo (psico-físico) a agir fora do âmbito da Razão, isto é, da vontade iluminada, ficando assim à mercê de tudo o que não é a graça de Deus. Não é que o corpo sozinho não se submeta ao espírito, mas sim que a mente não é capaz de harmonizar as reações do corpo com as ações do espírito, ligando um ao outro e submetendo o corpo integralmente ao espírito. A conclusão disso é que aquilo que faz o homem ficar sexualmente excitado não é uma motivação puramente espiritual, mas uma reação sempre mais ou menos decaída pela desobediência do corpo ao espírito, e por isso São Paulo diz que o sexo dentro do matrimônio é “desculpado” – não é que o sexo seja pecado em si, mas o que leva ao sexo nunca ou quase nunca é uma motivação perfeitamente espiritual. -//-

Resumindo o ensinamento de Santo Agostinho sobre isso: No cap 8 [vii] de On Marriage and Concupiscence ele compara o matrimônio com um homem coxo que vai coxeando até um objeto que é bom. Por um lado, a conquista do objeto não é má só porque o homem foi coxeando até ele; por outro lado, o fato do homem ser coxo não se torna um bem só porque ele alcançou um objeto que é bom coxeando. Assim também o matrimônio não se torna um mal só porque a luxúria o acompanha, nem a luxúria se torna um bem porque está no matrimônio. -//Santo Agostinho entende a concupiscência como uma “doença do desejo”, seguindo São Paulo (Ts 4, 3-5). -//Cap.13: ... Todo mundo que nasce de ato sexual é de fato carne de pecado, já que o único que não tem carne de pecado é Jesus Cristo, que não nasceu de ato sexual entre homem e mulher. Mesmo assim o ato sexual não é pecado em si mesmo, quando se tem a intenção de procriar; porque a boa-vontade da mente conduz o prazer do corpo, ao invés de se deixar guiar por ele; e a (livre) vontade humana não é desviada pelo jugo do pecado pressionando a consciência (que não se deixa distrair), na medida em que o golpe do pecado é devidamente direcionado outra vez para o propósito da procriação. Esse golpe do pecado tem uma certa atividade lúdica com a qual joga o rei na imundície do adultério, e fornicação, e lascívia, e impureza; enquanto que nos deveres indispensáveis do estado matrimonial, ele mostra a docilidade de um escravo... Essa luxúria, portanto, não é um bem da instituição matrimonial; mas é uma obscenidade

nos pecadores, uma necessidade nos pais geradores, o fogo das indulgências lascívias, a vergonha dos prazeres nupciais. -//Para Santo Agostinho a luxúria do pecado original “assiste” a procriação, como um efeito colateral ocasionalmente bom da queda. A luxúria move o órgão sexual de um modo que a pura vontade não o pode fazer. O fato de que o órgão deve ser excitado por um estímulo sedutor e não por livre escolha gera vergonha. Essa é a concupiscência carnal gerada pelo Pecado Original. Se o órgão sexual obedecesse a nossa vontade livre tal como os outros membros do corpo, nós não nos envergonharíamos dele. A concupiscência permanece após o batismo apenas nos seus efeitos, mas já não é mais pecado. A concupiscência diminui nas pessoas de idade avançada e aumenta em pessoas incontinentes. A culpa do pecado é apagada no perdão, mas a concupiscência, sua consequência, continua agindo no corpo de morte. Assim, do mesmo modo, o adultério pode ser perdoado, mas o filho do adultério continua existindo, de modo que Deus permite esse mal para que dentro de seu círculo de consequências possa fazer nascer um bem maior. A “lei do pecado” mantém a carne parcialmente sobre seu domínio, o que se manifesta nos desejos pecaminosos que nós temos mesmo sem querer. O batismo significa que, se o sujeito não reconhecer que tem que nascer de novo, se ele não rejeitar seu corpo mortal e se ele não confessar que sua alma não é capaz de se manter firme no seu caminho sem cair para o desejo da carne, ele continuará carregando essa culpa de não odiar aquilo que o faz cair. Se o sujeito odeia aquilo que o faz cair, se ele quer lutar contra a tentação para poder viver na ordem do espírito, então aí ele está pronto para ser batizado. Mas se o sujeito é criança, o batismo facilitará a sua percepção, mais tarde, da realidade do pecado original e da necessidade da Redenção. -//-

A luta no matrimônio é que você não quer querer ceder para a vontade da carne.

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A maior parte do prazer da luxúria está no sentimento de poder. Mas o “poder” aqui é o poder feminino. Isso significa que o homem se sentirá poderoso na sua luxúria por meio da adoração que prestará à mulher, desejando-a sobre todas as coisas e desejando que ela tenha poder total sobre sua alma, desde que ela seja somente sua. Ele vende sua alma para a mulher para que ela o tome como seu único adorador e se glorie com isso. A mulher tem poder sobre o homem admitindo-o como seu escravo, ou melhor, como escravo de seu corpo, e se gloria na sensação de que ele a adora e necessita somente dela para fazê-lo quem ele é. A vida dele é necessitar que ela o satisfaça e o admita como único em sua vida. Na luxúria, o homem seduz a mulher mostrando submissão total a ela, quer dizer, à sedução dela; e a mulher excita a luxúria no homem quando se sente orgulhosa do poder que a sua beleza tem sobre a carne dele. A mulher se sente excitada pelo poder quando o homem faz o papel que ela deseja que ele faça, realizando assim o desejo mal dela de se sentir como senhora do homem. Dói no homem ver a beleza feminina sendo instrumento da sua queda. A beleza da mulher, ao invés de deixar o homem alegre e esperançoso, torna o seu coração triste e intimidado por causa da dor do desejo. A luxúria é uma abertura na alma para o pecado do prazer ilícito; é falta de virilidade. Eu nunca devo submeter a minha alma ao desejo da luxúria, nunca devo submeter-me a esse estado, para que eu não me acostume com ele e perca a visão do céu e minha inteligência se apague e eu morra. Uma vida de luxúria é uma vida de falsidade. Um homem e uma mulher nunca poderão ser felizes na luxúria, pois não é possível servir a Deus e ao diabo, de modo que não é possível ter uma vida cheia de caridade e de luxúria ao mesmo tempo. A luxúria os separará pelo ódio, por uma vida sem sentido, mesmo que eles se agarrem ainda mais ao seu pecado; um dia o castigo chega, para provar que o pecado existe. O homem que curtiu a luxúria será sempre mais fraco, mais acabado. A mulher que se glorificou da queda dele será sempre mais frustrada e sem amor, sem merecer o amor do homem de verdade, sem saber como merecê-lo, sem saber porque não é digna de ser olhada, e, por fim, sem nem mesmo querer ser salva da sua ilusão. -//-

Por experiência eu sei que posso me apaixonar por outra mulher. Essa possibilidade também existe na literatura e em obras biográficas. Essa possibilidade indica que a união entre um homem e uma mulher é dependente das circunstâncias, não só da personalidade de um e de outro. São duas pessoas inteiras que buscam se unir, é a pessoa com a sua circunstância que busca se unir ao outro e com a circunstância dele. A paixão inicial é a afirmação pessoal (um juízo) de um vislumbre da possibilidade do

outro me fazer feliz nessa união de nossas vidas, e essa possibilidade pode ser vislumbrada com relação a várias pessoas diferentes. Ou seja, eu só me apaixono por uma pessoa se eu quiser olhá-la de certo modo após ter estimado a felicidade que ela me traria na sua união comigo. Essa estimativa do outro é algo mais sutil do que um raciocínio, é na verdade uma estimativa da beleza total da personalidade do outro. Essa personalidade é sentida como agradável pelo mesmo modo de como o lobo é sentido como uma ameaça. Mas, quando eu me apaixono, eu me vejo de tal modo comprometido com essa personalidade, que todas as outras, não importa o quão bonitas sejam, me parecem sem graça e não tem encanto sobre mim. A paixão tem um elemento de afirmação, sutil e instantânea, da possibilidade de felicidade na união com o outro, e que é ao mesmo tempo a negação de todas as outras uniões possíveis. Todo o movimento interior da pessoa com relação ao sexo oposto muda, e toda a sua atenção passa a se dirigir para aquela pessoa que você assumiu ser o seu par perfeito, ao menos nas presentes circunstâncias da sua vida. Você necessariamente cria uma expectativa com relação a aceitação da outra pessoa, porque essa união que você deseja só pode acontecer se a outra pessoa fizer o mesmo processo de afirmação da possibilidade de você fazê-la feliz que você fez dela. É importante notar que esse vislumbre da possibilidade que o outro tem de te fazer feliz numa união conjugal é uma estimativa e não um ato de imaginação – é por isso que o “amor à primeira vista” é possível. A imaginação só é desencadeada porque antes se estimou essa possibilidade de ser feliz com o outro. Quando a pessoa imagina muito e medita muito sobre o seu parceiro, é provável que ela não possa ser tão feliz com ele, porque nós temos muito mais chances de sermos falsos na nossa imaginação, com relação aos nossos sentimentos, do que na impressão que nos é dada pela estimativa, que é imediata, intuitiva, mesmo que se demore um pouco mais para podermos traduzir esses dados em intenções e pensamentos. Ou seja, todo mundo que se apaixona quis se apaixonar, e é justamente por isso que é quase impossível se “desapaixonar”, porque a paixão tem a característica de ser uma afirmação que já traz embutido nela a intenção de felicidade suprema na união com o outro, e ninguém vai querer trocar essa felicidade por nada nesse mundo, sendo desistir dela tão difícil quanto desistir do próprio Paraíso que ela simboliza. A intenção de união no amor é definitiva. Se apaixonar é como se lançar num abismo sem volta; é uma escolha que escolhe a irrevogabilidade dada na própria escolha. Na paixão, você escolhe amar aquela pessoa, e sem essa escolha não há propriamente paixão, mas uma mera atração física, que pode ser mais ou menos ardente. Você também pode fingir que se apaixonou pela pessoa só para aumentar a sua luxúria, ou até pensar mesmo que se apaixonou, como um viciado, só para poder usufruir de certo prazer, e então a paixão acaba junto com a luxúria saciada, até que novamente desperta, e assim por diante. A paixão da luxúria e a paixão do amor são distinguidas pela sinceridade e pureza do coração, de onde elas vêm, e para onde cada uma se dirige, se para cima ou para baixo.

Se for assim, então a tendência em se apaixonar rapidamente por alguém é uma falta de virtude, é uma falta de esperança e de paciência para saber o momento certo de se relacionar com alguém ou de saber se essa é a pessoa certa ou não dentro das suas circunstâncias. Acontece que, algumas vezes, pode acontecer se ser praticamente impossível de se resistir ao impulso de afirmar na mesma hora em que se vê a mulher: essa é a mulher que eu quero para mim. Quanto mais se está apaixonado por uma mulher, mais se tem ciúmes do corpo dela ao mesmo tempo em que se despreza o sexo de todas as outras. O ato sexual é uma expressão tão perfeita da intenção de união, que o amor de uma pessoa faz com que o sexo para ela (e a luxúria) se identifique com a pessoa amada de uma forma singular, única. O sexo despersonaliza o homem, mas o amor personaliza o sexo. A relação amorosa dá um novo sentido ao sexo. É impressionante que um homem possa desejar somente a sua própria esposa, na mesma medida em que sente ciúmes só dela, além de não ter nenhuma inclinação para imaginar a vida sexual das outras mulheres. O que diminui com o tempo é a luxúria e não a paixão; mas se a paixão do início era luxúria, então se dirá que acabou a paixão; mas se a paixão do início era também amor, então com o tempo, pelo convívio com a mesma pessoa, a luxúria diminui, mas a paixão continua afetando o coração dos amantes. -//O amor romântico é o amor personalizado. -//“...ainda nas formas inferiores de amor, se fazem os “gestos” que fingem sua inexistente realidade. O homem é capaz de mostrar o verdadeiro mediante falsidades, e ao fazê-lo está descobrindo o que aquilo que faz ou que se passa “deveria ser”.” p. 104

-//-Eu não me apaixono só por uma pessoa enquanto ela mesma, eu me apaixono por ela e pela circunstância dela. A pessoa é inseparável da sua circunstância, da sua história, e irreconhecível sem ela, indiferenciável sem ela. Assim como uma pessoa se reconhece na e através da sua história, ela precisa da sua circunstância para fazer-se e

ser quem ela é. Essa circunstância, e a maneira de como a pessoa se apropria dela, transformando esse mundo no seu mundo, eu não a vejo distintamente da própria pessoa, mas eu vejo a pessoa na sua circunstância, quer dizer, eu não abstraio a pessoa da sua circunstância, mas eu a reconheço na própria circunstância da minha vida em intercessão com a dela. As circunstâncias de duas pessoas estão maximamente unidas (em intercessão) quando os seus projetos pessoais, as suas “trajetórias radicais” são mutuamente referidas um ao outro, porque aí tudo aquilo que diz respeito a quem essa pessoa é irá influenciar em quem a outra pessoa deve ser para essa e vice-versa. Ou seja, tudo o que é radicalmente importante para que eu seja eu mesmo deve ser também radicalmente importante para que minha esposa seja ela mesma, e tudo o que é radicalmente importante para que minha esposa seja ela mesma, é também radicalmente importante para que eu seja eu mesmo, de modo que a própria pessoa dela se torna o meu projeto pessoal e vice-versa. Sem esquecer de que as nossas vidas se dão numa determinada circunstância. Quando eu vejo uma mulher e a amo, eu não vejo só ela mesma, ou só a sua circunstância, mas eu vejo a sua “personalidade total”, eu vejo ela e a circunstância dela indissoluvelmente unidas assim como a alma está unida ao corpo. -//-

O adultério é o símbolo do pecado ele mesmo. “aquele que olhar para uma mulher desejando-a já cometeu adultério em seu coração”. A misteriosa atração que a beleza feminina tem sobre o homem, às vezes, pode ser de um tipo absurdo, obscuro, “sem fundo”, sem consistência, que se assemelha mais a uma fraqueza ou uma falta de ser. O desejo que o homem concebe pela mulher, nesse estado, é símbolo do puro desejo de pecar. Isso é algo na alma do homem que o deixa vulnerável ao pecado, que o expõem à tentação. O símbolo da tentação por excelência é a sedução feminina, da mulher, porque o homem é indefeso contra ela. O homem não é capaz de não desejar a mulher pela sua beleza, pela influência que a beleza dela tem sobre ele; e isso não é somente “luxúria”, não é desejo de prazer, mas é algo muito mais profundo, como uma incapacidade de se manter no nível do espírito. Por isso, tal como o ser humano está constantemente exposto ao pecado, como sendo uma possibilidade constante neste mundo, o homem está constantemente exposto ao adultério, pois ele não é capaz de não sentir a sua fraqueza diante de uma mulher bela. O homem sempre se sentirá fraco diante da beleza feminina, porque ele não quer querer deseja-la do modo como ela se apresenta desejável para ele, mas mesmo assim ele a sente como desejável.

Se um homem não é capaz de desejar somente a sua própria esposa, então ele não é livre, e assim não pode ser feliz. A tentação do adultério é um desejo sem sentido, que paralisa a alma do sujeito e excita o seu corpo, e faz o seu coração sofrer de angústia com a expectativa de uma felicidade absurda. Essa fraqueza do homem faz com que ele nunca esteja seguro de estar com a pessoa certa, de ter casado com a pessoa certa, ou de amar sua esposa como deveria. Ele não sabe se só deve amar uma mulher, porque a fraqueza dele diz respeito à mulher em geral, e geralmente o homem é atraído tanto pela beleza da mulher quanto por sincera afeição, de modo que ele não sabe o que é fraqueza e o que é amor. O homem vive inseguro da sua felicidade, porque a sua felicidade é sempre colocada em cheque pela sua fraqueza principal, que é a sua “queda” pela beleza da mulher. O homem quer amar todas as mulheres, mas ele não pode ser feliz desejando todas elas. O homem quer desejar uma mulher só, porque a felicidade está no casamento, na união do varão com a mulher, mas ele não é capaz de parar de sentir a atração que qualquer outra bela mulher exerce sobre ele. Então, o homem que está com o coração aberto para o amor conjugal vive um certo dilema: ele precisa desejar somente a sua mulher, mas pode desejar qualquer outra pela sua beleza; ou seja, ele sempre se sentirá “limitado”, não podendo “ir além” no seu relacionamento com outras mulheres.

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Questões de método

O método para uma filosofia do amor é confrontar as diversas experiências de amor disponíveis na literatura, criando conceitos que permitam descrever cada elemento dessas experiências de modo a abranger o máximo possível os testemunhos do amor que chegaram até mim, tudo isso dentro de uma visão mais abrangente da pessoa humana e da vida humana, de modo a poder descobrir também o(s) sentido(s) que o amor conjugal pode ter para uma pessoa. Como explicar as atitudes das diferentes personagens das diferentes estórias com relação ao amor ou à pessoa amada? essas explicações devem convergir para a unificação da experiência do amor em todos os seus sentidos. É preciso descobrir se o amor existe, e, se existe, se são várias cosias com o mesmo nome; e, depois, qual a sua essência. Se for alguma coisa, é preciso descobrir se o amor tem causa ou se é ele uma causa ou um princípio.

-//A paixão suscita a ilusão de amor eterno. A paixão é ambígua. A paixão amorosa é um sentimento que corresponde à realidade da dualidade corpo-alma, é um sentimento que surge da contradição íntima entre o corpo mortal e a alma imortal. Os amantes desejam o amor e a morte ao mesmo tempo. Essa paixão está intimamente relacionada à beleza, tanto da mulher como do homem, mas mais propriamente da beleza da mulher. Sem beleza sem paixão. Quanto mais íntegra é a unidade do todo da personalidade de um indivíduo, mais ele será capaz de sentir uma paixão cada vez mais forte, e de suscitar uma paixão cada vez mais forte no outro pela sua beleza, de modo que a paixão também admite graus. A paixão amorosa é subjetiva, quer dizer, é o modo do sujeito sentir-se com relação ao seu relacionamento. Na paixão, o amante participa com o seu coração daquilo que o amor conjugal simboliza, e essa participação se dá na esfera da subjetividade do indivíduo. Na paixão, o indivíduo é alterado na sua subjetividade: ele se torna um apaixonado; mas é a sua subjetividade que se altera. É só para a sua subjetividade que aquele amor tem sentido, tem voz, e é real. É porque o indivíduo possui uma subjetividade, um modo todo pessoal e único de ver e sentir a si mesmo e o mundo em torno, que ele é capaz de apaixonar-se. Apaixonar-se é experienciar na realidade e de modo único e pessoal o sentido último e simbólico que todo relacionamento conjugal tem. Você vivencia a experiência do símbolo. O casamento, e o sexo dentro do casamento, é um símbolo e um mistério em si mesmo. O casamento é um rito, porque ele simboliza de modo dinâmico um mistério eterno, e um rito pode ser vivido em vários graus de experiência. Existem graus de participação num rito. A paixão é sinal de que o indivíduo participa do amor não só com o corpo e a mente como também com o coração, isto é, ele sente com o coração o que aquela relação e a pessoa amada significam para ele. Não existe uma definição para “sentir com o coração”, porque existe o tipo de realidade que diz respeito ao coração do mesmo modo que existe o tipo de realidade que diz respeito à mente, e outro tipo que só diz respeito à visão, e outro à audição, etc.. Nós sabemos que o intelecto se dirige ao ser, e a vontade ao bem, mas e o coração? A que ele se dirige? A que ele responde? O coração responde àquilo que diz respeito à nossa subjetividade. Aquilo que buscamos, além de ser bom, belo e verdadeiro, deve fazer sentido para a nossa vida em nossa existência, à luz da eternidade. Existem certas realidades que “concretizam” o sentido da nossa vida, e nos faz experimentar a eternidade já aqui na terra; essas realidades, quando nós as realizamos, nos trazem a maior felicidade, porque dizem respeito a quem nós somos – já que a nossa subjetividade está para o “eu” substancial como a circunferência para o ponto. O coração sente a realidade viva do sentido da nossa existência em particular enquanto nossa vida. Aquilo que conhecemos com a nossa vida, e como a nossa vida,

sentimos com o coração e no coração. Aquilo que nós desejamos com o coração, é o que torna a nossa vida mais rica, mais valorosa. O desejo do coração pressupõe uma hierarquia de valores subjetivos (que devem ser o máximo possível compatíveis com a objetividade dos valores conhecidos pelo próprio sujeito). O indivíduo sempre buscará o que considera ser o melhor para ele e o que o deixará mais feliz, embora nem sempre os desejos do seu coração estão em ordem com o seu conhecimento do que é bom e do que é o melhor a ser buscado. Mas Deus inspira os corações, e distribui uma diversidade de dons e graças, de modo que cada indivíduo humano será um novo céu e uma nova terra, isto é, cada um, partindo do que é universal e absoluto, será uma subjetividade criadora de si mesma por meio daquilo que Deus lhe deu, e por meio daquilo que não lhe foi dado por Ele. Cada criatura tem um papel relativo no Todo da Criação, sendo uns dependentes dos outros para a sua plena realização. Por isso, a hierarquia de valores é diferente para cada subjetividade, ainda que seja também objetiva, isto é, a mesma na ordem total da Criação; e aí cada pessoa terá um papel único na realização da Vontade de Deus.

Na amizade ou no amor conjugal o amante descobre no amado aquilo que o torna único como pessoa, o sentido da sua existência no mundo e a beleza dessa existência em particular bem como a sua necessidade, isto é, a Vontade mesma de Deus realizada por meio dessa vida humana. Isto não é só compreendido intelectualmente, mas sentido com o coração. Esta vida te encanta de modo especial, porque ela, de algum modo, diz respeito a você e ao sentido da sua própria existência. É como se essas duas vidas estivessem conectadas desde a eternidade, como se devessem realizar juntas um sentido que as transcende. A união dessas almas é bela e cheia de significado, e dessa união nascem novas riquezas para a vida de cada uma em particular, nascem novos incentivos, novas possibilidades de ação, novas intepretações. Nessa misteriosa união, mundos são compartilhados, vidas humanas se confundem: eu tenho consciência de que participo da vida do outro e a atualizo para ele enquanto ele significa o mesmo para mim. É como se caminhássemos juntos e nos encontrássemos numa mesma região da existência, como que vizinhos espirituais. Um entende a vida do outro e vê que ela é bela e necessária, e se anima com a sua existência na medida em que esta ilumina a dele própria. É quando o sentido da existência do amado enriquece e embeleza o sentido da existência do amante, e este assim o sente e o deseja. A relação entre o amor conjugal e o sentido da vida é complexa: Na paixão, tem-se a impressão de que o amado é o sentido da vida do amante, como se este tivesse nascido para conhecer aquele. Isso acontece porque o amor, afetando o núcleo da subjetividade do indivíduo, está presente em todas as áreas da sua vida; mas não é verdade que só o amor conjugal basta, ao contrário, ele deve ser repetidamente

deixado para trás e realimentado para que não pereça. Assim, o homem precisa deixar seu lar e sua esposa para ir a guerra, se ocupando das coisas do mundo, e atuar no mundo, para depois voltar para a sua esposa, coração do seu lar, e seu próprio coração, e aí repousar e se revigorar para novamente voltar à ação. O homem age porque sabe para onde irá voltar. A mulher, por seu lado, se ama, deve guardar o seu coração, e esconder o coração do seu homem em seu próprio coração, de modo a não envergonhá-lo – o desejo do homem pela sua mulher é algo que não deve ser compartilhado. A mulher trai o seu marido quando aceita os desejos de outro homem. A mulher está sempre à espera do seu homem, e seu coração aberto ao coração dele; por isso ela ouve de longe ele chegando, sempre desejando recebe-lo de volta, acolhendo-o no que é dele, no que guardou só para ele. A mulher que ama é guardiã do coração do homem – um homem feliz é aquele que pode confiar na mulher amada. Mas a mulher também está no mundo, no “submundo”, isto é, no mundo das relações sociais mais sutis e determinantes, aonde as primeiras coisas acontecem, nas relações entre famílias. Então, existe essa dualidade: amor conjugal e amor pelo mundo; nenhuma das duas coisas pode ser excluída do sentido da vida. O homem se realiza tanto no amor quanto no mundo, e um não pode ser sem o outro. No amor, ele escapa do mundo para se deleitar na amada, e, no mundo, ele deixa a amada para cumprir a sua missão e chamado. A volta para a amada representa a volta à matéria prima, à potência, e a ida para o mundo representa o ato de ser. (Se um homem não é casado, o seu lar é seu próprio coração; mas se ele tem uma esposa, o seu coração é o coração dela). Esses dois movimentos são necessários à vida humana, e ninguém pode se realizar somente em um deles.

O ser homem e o ser mulher não é algo que possa ser definido ou explicado de modo absoluto, mas existe uma rede de analogias que diferenciam o ser homem do ser mulher, sendo que um sexo se remete diretamente ao outro em todas essas analogias. Essa rede de analogias forma o tecido mesmo da vida humana na sua diferenciação enquanto homem ou mulher.

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