Os Mitos, O Homem E O Sagrado

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UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA FACULDADE DE FILOSOFIA

Os mitos, o homem e o sagrado na filosofia de Paul Ricœur

Jorge Manuel Santos Andrade

Dissertação de Mestrado em Filosofia

FUNCHAL 1995

O mito não é uma pré-história; é uma realidade intemporal, que se repete na história. O facto de o nosso século encontrar de novo sentido no mito, conta-se entre os bons prenúncios. Também hoje o ser humano é arrastado por vigorosas potências até ao alto mar, até ao fundo do deserto e do seu mundo de máscaras. A viagem perderá o seu carácter ameaçador, se ele se lembrar da sua força divina. Ernst Jünger

0.

Introdução

Enuma elish… (“Quando no alto…”)1. Seria reconfortante pensar nos mitos como um projecção da verticalidade, ou, para utilizar outro símbolo equivalente, do centro. A roda gira sem parar, mas o centro permanece imóvel; os raios ligam-no à periferia, e no ponto em que um raio intersecta a circunferência dá-se o mito, um mito. A imagem anterior tem o valor e a fraqueza dos símbolos: não pode ser tomada literalmente, mas pode de alguma maneira justificar o fascínio que os grandes mitos continuam a provocar em nós, homens do racionalismo e da história, da suspeita e da vertiginosa periferia. Julgávamos ter morto os deuses e encetado uma caminhada gloriosa em direcção à plena emancipação do homem. Entrámos de facto numa corrida, cada vez mais acelerada, mas acabámos por perder a meta. Não conseguimos alimentar os homens nem satisfazer as necessidades, e a

1Primeiras palavras do

mito babilónico da criação.

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natureza, especialmente a humana, continua a mostrar-se rebelde ao nosso domínio. A história deixou de ter um sentido definido, e por vezes temos a sensação de andar às voltas, arrastados em turbilhão. Hoje, os fantasmas dos velhos deuses voltam a atormentar os nossos sonhos. Sentimos de novo nostalgia do centro, do paraíso perdido, e não há mitos suficientes, antigos ou novos, que saciem a nossa sede. Sentimos de novo — continuamos a sentir — nós homens do Ocidente, da razão, da filosofia — necessidade de absoluto, de eternidade, de transcendência, numa palavra, de sagrado, mas experimentamos simultaneamente a aguda consciência de que as redes que, através da história, fomos lançando em sua procura vieram vazias. No Ocidente o sagrado tinha um nome, Deus, mas acabámos proclamando a sua morte. Todos sabemos quão difícil é ressuscitar um cadáver, e não é fácil, no contexto do pensamento contemporâneo, retomar algo como, por exemplo, as provas racionais da existência de Deus. Por aqui os caminhos parecem barrados. Esgotado o discurso filosófico, a linguagem simbólica de que o mito é um caso particular aparece-nos como aquele dizer originário que nos pode pôr de novo em contacto mais íntimo com o cerne do real. No dizer de Mircea Eliade, que tomaremos como nossa hipótese condutora, o símbolo manifesta o sagrado; ele é importante não apenas porque prolonga uma hierofania ou porque a substitui, mas, sobretudo, porque pode continuar o processo de hierofanização e porque, no momento próprio, é ele próprio uma hierofania, quer dizer, porque revela uma realidade sagrada ou cosmológica que nenhuma outra «manifestação» revela2, constituindo dessa forma uma abertura ao Transcendente. 2Mircea

ELIADE, Tratado de história das religiões, p. 525.

2

Todavia, não nos é possível retomar a fé dos homens simples, que convivem directa e imediatamente com os símbolos do sagrado. A nossa memória imensa, para utilizar um termo de Paul Ricœur 3, no-lo impede; não podemos fazer tábua rasa de mais de dois mil anos de história da racionalidade, e muito menos da multiplicidade das crenças e dos universos culturais, ou simbólicos, que a nossa expansão pelo planeta permitiu descobrir, e que prefiguram modos diversos e díspares de dizer o sagrado. Se reconhecemos no mito e no símbolo uma possível abertura para o Transcendente, reconhecemos também que o seu acesso nos está dificultado, que ele só pode ser feito através de uma exegese e de duma hermenêutica que aproximem o dizer do mito da nossa compreensão. Este aproximar depende também duma espécie de humilhação desta compreensão, filosófica e judaico-cristã, isto é ocidental, demasiado habituada a considerar tudo do seu próprio ponto de vista considerado como superior. Teremos que partir da hipótese de que todos os mitos se equivalem à partida em valor, e de que nada também permite colocar, a priori, o discurso filosófico a acima dos outros discursos, embora, paradoxalmente, a nossa compreensão se faça a partir dele. Parece-nos que estas condições são essenciais para que a interpretação dos mitos se torne factor de transmutação da pessoa que recebe, interpreta e assimila a sua revelação 4, isto é, seja factor de formação e não se limite a um aumento de informação. O que acabámos de dizer de algum modo esboça o percurso que pretendemos seguir, assim como o porquê do pensador escolhido para nos ajudar, Paul Ricœur. Com efeito, a sua obra tem o carácter de uma verdadeira suma filosófica do nosso tempo, congregando correntes de todas as épocas da história da filosofia, e nesse sentido ele é um excelente representante da cultura ocidental e do seu racionalismo crítico. Depois de passar pela fenomenologia husserliana, má-

3Finitude et culpabilité, p. 441. 4Mircea ELIADE, Fragments d’un

journal, 1, Paris, Gallimard, 1973, p. 547, cit. por Monique BORIE, “De l’herméneutique à la régénération par le théâtre”, em AAVV, Mircea Eliade, p. 118.

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xima representante de um pensamento sem pressupostos, completamente transparente a si próprio, Ricœur sente necessidade, em dado momento do seu percurso filosófico, de recorrer aos mitos e aos símbolos, como reveladores de uma dimensão da experiência que, sem eles, permaneceria fechada e dissimulada5. A dimensão assim revelada pelos símbolos e mitos é a do mal, o qual representa para Ricœur, que dessa maneira vai ao encontro de Mircea Eliade, “a experiência crítica por excelência do sagrado”6. Através da análise dos símbolos e mitos do mal é a aventura espiritual da humanidade ocidental, o seu modo próprio de relação com o sagrado, que é traçada nas obras onde Ricœur trata especialmente do tema: La symbolique du mal — segunda parte de Finitude et culpabilité — e alguns dos ensaios reunidos em O conflito das interpretações e Lectures 3. Aux frontières de la philosophie, que serão a base do nosso trabalho. Todavia, a humanidade ocidental não foi a única a se lançar numa demanda do sagrado, e em certos aspectos o seu caso está mesmo longe de ser exemplar, visto a sua história ser em grande parte a história de um progressivo afastamento do sagrado, a ponto de ser talvez a única cultura a se definir como essencialmente laica. Neste aspecto, pareceu-nos que a reflexão de Ricœur sobre os símbolos e mitos da área semítico-helénica, berço da cultura ocidental, deveria ser complementada através do confronto com mitos de um universo cultural estranho, como sejam por exemplo os da Índia. Num certo sentido, trata-se de prolongar o próprio trabalho de Ricœur, que procurou aproximar mitos de áreas culturais diversas, como a Grécia, a Palestina e a Mesopotâmia, estabelecendo mesmo um ciclo, em que mitos à partida divergentes se complementavam e iluminavam mutuamente 7. Pensamos que este passo é necessário, não só numa perspectiva de encontro com o primordial, com o «arcaico», no sentido da arché

5Finitude et culpabilité, 6Ib., p. 169. 7Ib., pp. 441-477.

p. 313.

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grega, mas também porque está em causa uma das grandes questões sobre o futuro da humanidade na era das comunicações globais: o problema da aproximação e do conflito entre culturas, pois na base de cada cultura encontra-se sempre um conjunto de mitos fundadores.8 Até que ponto será possível traduzir os mitos e, portanto, as vivências fundamentais de uma cultura em termos dos mitos e vivências de outra cultura? Da resposta a esta questão depende o aparecimento de um novo humanismo, caracterizado simultaneamente pelo alargamento do horizonte cultural ocidental — talvez fosse mais próprio falar da sua transmutação — e por uma verdadeira aproximação entre as diversas culturas que formam no seu conjunto o panorama espiritual do nosso mundo. Como ajuda para este passo fora do mundo ocidental fomos buscar Mircea Eliade, um nome que dispensa, tal como o de Paul Ricœur, apresentações. A sua presença não constitui aqui um contraponto ao pensamento de Ricœur, e nesse aspecto não será objecto de um tratamento autónomo. Trata-se sobretudo de uma fonte conceituada de informações sobre universos culturais estranhos ao Ocidente, que pretendemos usar para completar a reflexão ricœuriana acerca do universo dos mitos e do seu dizer sobre o ser do homem e do mundo.

8“A

função da classe particular de lendas que são os mitos […] é a de exprimir dramaticamente a ideologia de que vive a sociedade, de manter na sua consciência não só os valores que ela reconhece mas, principalmente, o seu ser e a sua própria estrutura, os elementos, os vínculos, os equilíbrios, as tensões que a constituem, justificar, no fundo, as regras e as práticas tradicionais sem as quais tudo o que é seu se dispersaria.” (Georges DUMÉZIL, Heur et malheur du guerrier, Paris, P.U.F., 1969, p. 11, cit. em Victor JABOUILLE, Iniciação à ciência dos mitos, pp. 34-35).

5

1.

Do símbolo ao mito

1.1. O problema do mal

O problema que leva Ricœur a recorrer ao símbolo e ao mito é o problema do mal. O mal constitui uma dimensão da experiência humana que não se deixa apreender directamente pela reflexão filosófica, mas exige um longo desvio pela linguagem dos mitos e dos símbolos, e isto apesar do seu carácter aparentemente tão imediato. Com efeito, existe na própria noção de mal, tal como é apresentada no discurso de Ricœur, uma forte componente de indefinição, que faz com que, por um lado, pareça representar algo da ordem do facto, uma experiência banal e quotidiana, um dado inquestionável que se trata apenas de elucidar na sua origem e natureza, como quem explica, por exemplo, porque caem os corpos; mas por outro, esse dado, essa existência inexorável do mal, só se nos dá através de indícios, sintomas, signos, símbolos, e aquilo que parecia tão unívoco e definido assume repentinamente a face do enigma e do mistério, ou, mais prosaicamente talvez, deixa-se enredar na equivocidade própria ao discurso e aos seus pressupostos explícitos ou implícitos. É este paradoxo inicial da experiência do mal que gostaríamos de percorrer em primeiro lugar, pois ele parece-nos uma chave im-

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portante para a compreensão da questão do símbolo, tal como é abordada neste autor. Na esteira da tradição teológica judaica e cristã, Ricœur recusa-se a fazer do mal uma substância ou uma natureza.9 “O mal tem a significação de mal porque ele é obra de uma liberdade; eu sou o autor do mal.” 10 O mal não é nada em si, mas uma relação invertida, uma preferência que não deveria existir, radicando numa decisão, num acto do homem, ser criado naturalmente bom por Deus. Todavia, isto não obsta a que seja possível discernir uma certa “realização” do mal, uma certa presença que de algum modo ultrapassa o campo da mera decisão pessoal de cada homem concreto. N’O conflito das interpretações, retomando a teologia paulina da graça, diz Ricœur o seguinte: É possível conceber um devir do ser onde o trágico do mal - desse mal sempre já aí - fosse ao mesmo tempo reconhecido e ultrapassado? Não estou em estado de responder à questão; entrevejo apenas uma direcção possível para a meditação. Direi para acabar aquilo que eu vejo. Propõem-se ao meu espírito três fórmulas que exprimem três ligações entre a experiência do mal e a experiência de uma reconciliação. Primeiro, a reconciliação é atingida apesar do mal. Este «apesar de» constitui uma verdadeira categoria da esperança, a categoria do desmentido. Disto não há prova, mas sinais; o meio, o lugar de implantação desta categoria, é uma história, não uma lógica, uma escatologia, não um sistema. Em seguida, este «apesar de» é um «graças a»; com o mal, o Princípio das coisas faz bem. […] Terceira categoria desta

9“S’opposant

à la tradition gnostique pour laquelle le mal correspond à une réalité, à une substance, à un donné effectif qui environne et englue, Ricœur ne cherche jamais à circonscrire la réalité du mal, à en discerner objectivement les contours, il pense au contraire le mal comme ce qui indispose, perturbe et met à mal la pensée.” (Olivier MONGIN, Paul Ricœur, p. 208). 10O conflito das interpretações, p. 421

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história com sentido: «quanto mais»; e esta lei de sobreabundância engloba por sua vez o «graças a» e o «apesar de». Aí está o milagre do Logos. Dele procede o movimento retrógrado do verdadeiro. Da maravilha nasce a necessidade que coloca retroactivamente o mal na luz do ser. Aquilo que, na velha teodiceia, era apenas o expediente do falso saber, torna-se a inteligência da esperança; a necessidade que nós procuramos é o símbolo racional mais alto que esta inteligência da esperança engendra.11 Apesar do mal, graças ao mal, com o mal, o Princípio das coisas faz bem; quanto mais abunda o mal, mais sobreabunda o seu oposto, a graça. Esta justificação do mal, situada já no fim do percurso através dos mitos e dos símbolos do mal, é ao mesmo tempo testemunho da sua existência e, de algum modo, defesa da sua necessidade. Ela situa também, de forma inequívoca, a reflexão de Ricœur no universo cultural judaico-cristão. Teremos oportunidade de voltar a este aspecto. O texto anterior ao falar do trágico do mal, desse mal sempre já aí, aludia à sua dimensão cósmica, mundana. “O homem, repetirá por diversas vezes Ricœur, não começa o mal. Ele encontra-o. Para ele, começar, é continuar”12. Será apenas através do mito, nomeadamente o mito da queda, que será possível imputar, não sem ambiguidade, através de Adão, representante exemplar da humanidade, a origem radical do mal ao homem. Mas mesmo no mito, e aí reside a sua ambiguidade, a serpente representa o mal já aí, o mal que o homem continua. Todavia, na medida em que, de qualquer maneira, dá o seu consentimento ao mal, iniciando-o ou continuando-o, o homem torna-se mau, culpado. De tal modo que

11Ib., 12Ib.,

p. 309. Cf. também Finitude et culpabilité, p. 409ss. p. 290.

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é unicamente através da condição actualmente má do coração do homem que podemos discernir uma condição mais originária que qualquer maldade: é através do ódio e da luta que podemos perceber a estrutura intersubjectiva do respeito que constitui a diferença das consciências; é através do mal-entendido e da mentira que a estrutura originária da palavra revela a identidade e a alteridade das consciências; passa-se o mesmo com a tripla exigência de querer, de poder e de valer, percebidas através da avareza, da tirania e da glória vã. Resumindo, é sempre «através» do decaído que o originário transparece.13 Dado que já estabelecemos a facticidade do mal, passemos então à outra questão: que é o mal? A citação anterior fala-nos de alguns males humanos: ódio, mal-entendido, mentira, avareza, tirania, vã glória. Ricœur fala também do sofrimento dos inocentes14, que remete directamente para uma dimensão cósmica do mal: Por detrás da projecção da nossa cobiça, para além da tradição do mal já aí, talvez exista uma exterioridade mais radical ainda do mal, uma estrutura cósmica do mal: não, sem dúvida, a legalidade do mundo como tal, mas a sua relação de indiferença para com a exigência ética de que o homem é ao mesmo tempo o autor e o servidor; do espectáculo das coisas, do curso da história, da crueldade da natu-

13Finitude

et culpabilité, p. 160: “C’est seulement à travers la condition actuellement mauvaise du cœur de l’homme que l’on peut discerner une condition plus originaire que toute méchanceté: c’est à travers la haine et la lutte que l’on peut apercevoir la structure intersubjective du respect qui constitue la différence des consciences; c’est à travers le malentendu et le mensonge que la structure originaire de la parole révèle l’identité et l’altérité des consciences; il en est de même de la triple requête d’avoir, de pouvoir et de valoir, aperçues à travers l’avarice, la tyrannie et la vaine gloire. Bref, c’est toujours « à travers » le déchu que l’originaire transparaît.” 14Ib., p. 459.

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reza e dos homens, procede um sentimento da absurdeza universal que convida o homem a duvidar da sua destinação.15 Todavia, estas referências concretas ao mal, ou aos males, têm apenas um carácter ilustrativo. São manifestações, são males, ou, melhor dito, coisas más que se podem apontar e descrever, como acabámos de fazer, mas as coisas más não são o mal: são, quando muito, sinais, manifestações. A maior aproximação que Ricœur faz de uma definição ou caracterização do mal faz referência ainda ao homem e à sua liberdade: o mal verdadeiro, o mal do mal, mostra-se com as falsas sínteses, isto é, com as falsificações contemporâneas dos grandes empreendimentos de totalização da experiência cultural, nas instituições políticas e eclesiásticas. Então o mal mostra o seu verdadeiro rosto; o mal do mal é a mentira das sínteses prematuras, das totalizações violentas. 16 O mal mostra-se nas falsas sínteses, nas totalizações violentas; a escolha dos termos é aqui significativa. Aquilo que assim se mostra, a vontade má do homem, nós não temos conceito para pensá-lo. 17 Como ultrapassar este carácter elusivo do mal? Afinal, em que consiste a experiência do mal? Não é, evidentemente, a experiência do sofrimento, da impotência, de outras limitações próprias da condição humana. O homem é limitado, falível mesmo, mas a limitação e a falibilidade não são o mal, nem são sequer males. Ricœur esforça-se por deixar isso bem claro na primeira parte do segundo

15Ib.,

p. pp. 397-398: “Derrière la projection de notre convoitise, au-delà de la tradition du mal déjà là, peut-être y a-t-il une extériorité plus radicale encore du mal, une structure cosmique du mal: non pas sans doute la légalité du monde comme telle, mais son rapport d’indifférence à l’exigence éthique dont l’homme est tout à la fois l’auteur et le serviteur; du spectacle des choses, du cours de l’histoire, de la cruauté de la nature et des hommes, procède un sentiment de l’absurdité universelle qui invite l’homme à douter de sa destination.” 16O conflito das interpretações, pp. 428-429. 17Ib., p. 425.

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volume da Philosophie de la volonté, que tem por título, precisamente, L’homme faillible.18 A experiência do mal, o acesso mais directo que nos é dado à realidade do mal, é a experiência da culpa. O homem sabe que o mal existe em si, no mais íntimo do seu ser, porque se sente culpado, porque, sendo falível, falhou. Todavia, também esta experiência da culpa não possui um carácter simples e linear. Existe nela, evidentemente, um fundo emocional, de vivência directa: “a experiência de que o penitente dá testemunho é uma experiência cega: permanece presa na ganga da emoção, do medo, da angústia.”19 Mas esta afectividade não se esgota em si mesma, mas fala, procura objectivar-se através da linguagem: “o testemunho exprime, faz brotar a emoção que sem ele fechar-se-ia sobre si, como uma impressão da alma; a linguagem é a luz da emoção; pelo testemunho a consciência de culpa é trazida para a luz da palavra”20; a consciência culpada confessa a sua culpa. Ao fazê-lo, mostra que a culpabilidade é em si mesma uma noção complexa, assente numa multiplicidade de estratos que se interpenetram mutuamente. A confissão dos pecados descobre vários estratos da experiência; a «culpabilidade», no sentido preciso de sentimento da indignidade do núcleo pessoal é apenas a primeira linha duma experiência radical-

18“Finitude

et Culpabilité — ao nível propriamente empírico da Simbólica do Mal — é precedida por uma investigação antropológica, na qual se intenta mostrar que a nossa constituição humana é capaz de se orientar para o mal, de «falir» (L’Homme Faillible); esta investigação antropológica, porém, que se situa a nível estritamente filosófico, também «falirá» na individuação do mal real, limitando-se apenas a enuclear as «condições de possibilidade» do mesmo.” (Joaquim de Sousa TEIXEIRA, “Paul Ricœur e a problemática do mal”, em Didaskalia, VII(1977), p. 58) 19Finitude et culpabilité, pp. 170-171: “L’expérience dont le pénitent fait l’avéu est une expérience aveugle: elle demeure prise dans la gangue de l’émotion, de la peur, de l’angoisse; c’est cette note émotionnelle qui suscite l’objectivation dans un discours: l’aveu exprime, pousse au dehors l’émotion qui sans lui se refermerait sur soi, comme une impression de l’âme; le langage est la lumière de l’émotion; par l’aveu la conscience de faute est portée dans la lumière de la parole; par l’aveu l’homme reste parole jusque dans l’experience de son absurdité, de sa souffrance, de son angoisse.” 20Ib.

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mente individualizada e interiorizada; este sentimento de culpabilidade remete para uma experiência mais fundamental, a do «pecado», que engloba todos os homens e designa a situação real do homem perante Deus, quer o homem o saiba quer o ignore. É deste pecado que o mito da queda conta a entrada no mundo; é ele que a especulação sobre o pecado original procura erigir em doutrina. Mas, por seu lado, o pecado é a correcção e mesmo a revolução duma concepção mais arcaica da falta, a da «mancha» concebida à maneira duma nódoa que infecta de fora. Culpabilidade, pecado, mancha constituem assim uma diversidade primitiva na experiência: o sentimento não é apenas cego enquanto que emocional, ele é equívoco, pesado de significações múltiplas; é por isso que requer uma segunda vez a linguagem, a fim de elucidar as crises subterrâneas da consciência da falta.21 Esta complexa e multifacetada experiência não se deixa apreender de qualquer modo. O homem culpado que confessa a sua culpa manifesta a vivência cultural milenária de uma realidade que foi e continua sempre esquiva à sua plena compreensão; por isso a linguagem da sua confissão, do seu testemunho de culpa, que fala ao filósofo do mal, não é uma linguagem da descrição, ou da

21Ib.,

p. 171: “La confession des péchés découvre plusieurs couches de l’expérience; la «culpabilité», au sens précis de sentiment de l’indignité du noyau personnel est seulement la pointe avancée d’une expérience radicalement individualisée et intériorisée; ce sentiment de culpabilité renvoie a une expérience plus fondamentale, celle du «péché», qui englobe tous les hommes et désigne la situation réelle de l’homme devant Dieu, que l’homme le sache ou l’ignore. C’est de ce péché que le mythe de la chute raconte l’entrée dans le monde; c’est lui que la spéculation sur le péché originel tente d’ériger en doctrine. Mais à son tour le péché est la correction et même la révolution d’une conception plus archaïque de la faute, celle de la «souillure» conçue à la façon d’une tache qui infecte du dehors. Culpabilité, péché, souillure constituent ainsi une diversité primitive dans l’expérience: le sentiment n’est donc pas seulement aveugle en tant qu’émotionnel, il est équivoque, lourd de significations multiples; c’est pourquoi il requiert une seconde fois le langage, afin d’élucider les crises souterraines de la conscience de faute.”

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reflexão, mas “tem de notável o facto de ser simbólica do princípio ao fim”22, exigindo uma prévia hermenêutica do símbolo para poder ser apropriada pela filosofia. Eis-nos introduzidos em pleno no problema do símbolo.

1.2. A simbólica do mal

A filosofia, concebida como ética num sentido lato, isto é, como ciência da normatividade, parte da situação do homem já decaído. Ela pressupõe não apenas a polaridade abstracta do válido e do não-válido, mas um homem concreto que falhou já o alvo; eis o homem tal como a filosofia o encontra no início do seu itinerário: o homem que Parménides arrasta na sua viagem para além das portas do Dia e da Noite, o que Platão tira da caverna sobre o caminho escarpado do Sol, o que Descartes arranca ao preconceito e leva à verdade pela via da dúvida hiperbólica; o homem, tal como a filosofia o encontra no início do seu itinerário, está desviado e perdido. Esqueceu a origem.23 É o homem que não conhece, ou conhece mal, e que age também mal. Mas o mal pressupõe o bem, “se eu não compreendesse o «bom», também não compreen22Ib.,

p. 10: “C’est ce langage de l’aveu qui parle au philosophe de la faute et du mal; or ce langage de l’aveu a ceci de remarquable qu’il est de part en part symbolique.” 23Ib., p. 159: “La philosophie conçue comme éthique présuppose non seulement la polarité abstraite du valable et du non-valable, mais un homme concret qui a déjà manqué la cible; tel est l’homme que la philosophie trouve au début de son itinéraire: l’homme que Parménide entraîne dans son voyage au-delà des portes du Jour et de la Nuit, celui que Platon tire de la caverne sur le chemin escarpé du Soleil, celui que Descartes arrache au préjugé et mène à la vérité par la voie du doute hyperbolique; l’homme, tel que la philosophie le prend au début de son itinéraire, est égaré et perdu; il a oublié l’origine.”

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deria o «mau»” 24, e assim o estado de decadência pressupõe um estado ou possibilidade originária, a partir do qual houve a decadência. Este estado originário, o ser fundamental do homem, é ainda acessível à filosofia, através da descrição fenomenológica do querer e do involuntário nesse querer. Todavia, a falta não é um elemento da ontologia fundamental que seja homogéneo aos outros factores que a descrição pura descobre: motivos, poderes, condições e limites. Ela só pode ser pensada como irrupção, acidente, queda. […] Uma génese da falta não é possível a partir do voluntário ou do involuntário, embora cada um dos traços deste sistema circular (prazer, potência, costume, império, recusa, posição de si) constitua um convite à falta. Mas a falta permanece um corpo estranho na eidética do homem. Não existe inteligibilidade de princípio desta falha, no sentido em que existe uma inteligibilidade mútua das funções involuntárias e voluntárias, no sentido em que as suas essências se completam na unidade humana. A falta é o absurdo.25 Há assim um hiato na compreensão filosófica. Esse hiato representa o salto do falível ao já decaído, da inocência à falta, só acessível através do “testemunho que a consciência dá deste passo e nos símbolos do mal através dos quais ela exprime este testemunho”26. Existe uma zona do ser que o discurso descritivo, 24Ib., 25Ib.,

p. 161. p. 27: “La faute n’est pas un élément de l’ontologie fondamentale qui soit homogène aux autres facteurs que la description pure découvre: motifs, pouvoirs, conditions et limites. Elle ne peut être pensée que comme irruption, accident, chute. Elle ne forme pas système avec les possibilités fondamentales contenues dans le vouloir et son involontaire. Une genèse de la faute n’est pas possible a partir du volontaire ou de l’involontaire, quoique chacun des traits de ce système circulaire (plaisir, puissance, coutume, empire, refus, position de soi) constitue une invitation à la faute. Mais la faute reste un corps étranger dans l’eidétique de l’homme. Il n’y a pas d’intelligibilité de principe de cette défaillance, au sens où il y a une intelligibilité mutuelle des fonctions involontaires et volontaires, au sens où leurs essences se complètent dans l’unité humaine. La faute est l’absurde.” 26Ib., p. 159: “L’énigme dès lors c’est le «saut» lui-même du faillible au déjà déchu; notre réflexion anthropologique restait en deçà de ce saut, mais l’éthique arrive trop tard; pour le surprendre, il faudra partir à nouveaux frais, engager une réflexion d’un type

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analítico, reflexivo da filosofia não consegue penetrar, muito embora se veja obrigado a reconhecer, pelo testemunho que dela dá um discurso que opera por meio de símbolos, isto é, um discurso alusivo, sincrético, imagético. Como relacionar estes dois discursos? De que forma pode a filosofia integrar no seu seio, «compreender», a linguagem do símbolo? Ricœur sintetizará numa frase a resposta a esta questão: “o símbolo dá que pensar.” Pesada de consequências, ela implicará o abandono de uma filosofia do começo absoluto, de uma filosofia sem pressupostos, onde o pensamento seria transparente a si mesmo. Uma filosofia que aceita o símbolo “parte da linguagem que já aconteceu, e onde tudo de alguma maneira já foi dito; ela quer ser o pensamento com as suas pressuposições”27. N’O conflito das interpretações, Ricœur acrescentará: “O símbolo dá que pensar”; esta sentença que me encanta diz duas coisas: o símbolo dá; eu não ponho o sentido, é ele que dá o sentido, mas aquilo que ele dá, é «que pensar», de que pensar. A partir da doação, a posição. A sentença sugere, portanto, ao mesmo tempo que tudo está já dito em enigma e, contudo, que é sempre preciso tudo começar e recomeçar na dimensão do pensar. 28 A filosofia assume-se assim como hermenêutica. Não renunciando à sua dimensão crítica nem à sua exigência de coerência, reconhece no entanto que no caminho da compreensão se interpõe o símbolo, que simultaneamente revela e oculta, preso na opacidade da sua significação literal, na contingência das suas

nouveau, portant sur l’aveu que la conscience en fait et sur les symboles du mal dans lesquels elle exprime cet aveu.” 27Ib., p. 480: “Une méditation sur les symboles part du langage qui a déjà eu lieu, et où tout a déjà été dit en quelque façon; elle veut être la pensée avec ses présuppositions.” 28O conflito das interpretações, p. 283.

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raízes linguísticas e culturais e na problematicidade da sua interpretação.29 Deste modo, partir dum simbolismo já aí, é dar-se de que pensar; mas é ao mesmo tempo introduzir uma contingência radical no discurso. Primeiro existem os símbolos; encontro-os, descubro-os; são como as ideias inatas da antiga filosofia. Porque são estes? Porque são? É a contingência das culturas introduzida no discurso. Além disso, não os conheço todos, o meu campo de investigação está orientado, e porque está orientado é limitado. É orientado porquê? Não apenas pela minha própria situação no universo dos símbolos, mas paradoxalmente pela origem histórica, geográfica, cultural da própria questão filosófica.30 Por outras palavras, Ricœur assume a sua condição de ocidental, situado e orientado pela conjugação das culturas grega e judaico-cristã. Será esta a justificação apresentada para limitar a sua investigação sobre a simbólica do mal à área cultural do Ocidente. Atingimos aqui um dos pontos críticos deste trabalho. Com efeito, uma das suas motivações, como já dissemos, é o problema da aproximação e do diálogo entre culturas, visto na perspectiva do confronto entre as crenças fundamentais sintetizadas nos mitos. A bem dizer, esse problema não se coloca para Paul Ricœur, ao contrário do que nos parecia no início31: ele de facto aproxima mitos de áreas culturais diversas, o mito babilónico da criação, o mito grego do deus 29Ib., p. 312. 30Finitude et culpabilité,

p. 182: “Partir d’un symbolisme déjà là, c’est se donner de quoi penser; mais c’est du même coup introduire une contingence radicale dans le discours. D’abord il y a des symboles; je le rencontre, je les trouve; ce sont comme les idées innées de l’ancienne philosophie. Pourquoi sont-ils tels ? Pourquoi sont-ils ? C’est la contingence des cultures introduites dans le discours. De plus, je ne les connais pas tous, mon champ d’investigation est orienté, et parce qu’il est orienté il est limité. Par quoi est-il orienté ? Non seulement par ma situation propre dans l’univers des symboles, mais paradoxalement par l’origine historique, géographique, culturelle de la question philosophique elle-même.” 31Cf. p. 4.

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mau e o mito também grego da alma exilada, o mito judaico da queda; todavia, o universo em que se move é sempre, de facto, o universo ocidental, do qual se limita a interrogar a memória. As culturas que interroga, para além da sua, são culturas mortas, que não podem contestar as respostas que lhes são arrancadas. O exemplo é flagrante em relação ao judaísmo, que aparece quase que exclusivamente a desempenhar o papel de memória do cristianismo, sendo ignorado enquanto tradição viva e actual, que teria alguma coisa a dizer, por exemplo, acerca do mito da queda, na medida em que nele o contraponto a Adão, ou segundo Adão, não se concretizou numa figura histórica, à maneira de Cristo. Este encerramento de horizontes é voluntário e necessário, para Ricœur. O símbolo introduz uma contingência radical no discurso, na medida em que os símbolos são um dado cultural e introduzem a contingência própria das culturas no discurso universal da filosofia. A própria filosofia também está situada, fala grego, como todos nós sabemos, a sua universalidade não passa portanto de uma universalidade pretendida. Esta declaração de relatividade é, todavia, e de forma estranha, argumento a favor de uma limitação, de um encerramento da investigação à nossa área cultural. As aproximações que se poderiam estabelecer com culturas estranhas à nossa “permanecem arbitrárias enquanto não se estabelecem laços que gerem grandes obras, que renovem o nosso património, como foi o caso entre a cultura hebraica e a cultura grega que se encontraram efectivamente de forma decisiva para a constituição da nossa memória”32. Teremos então que esperar o estabelecimento desses laços, dessas grandes obras; resta saber como será isso possível sem uma série de aproximações prévias de carácter mais ou menos arbitrário. Pode-se ainda perguntar porque razão, se se reconhece

32Ib.,

pp. 184-185: “La science des religions «rapproche» des cultures qui ne se sont pas rencontrées. Mais ces «rapprochements» restent arbitraires tant que des liens ne se sont pas noués qui engendrent de grandes œuvres, lesquelles renouvellent notre patrimoine, comme ce fut le cas entre la culture hebraïque et la culture grecque qui se sont effectivement rencontrées de façon décisive pour la constitution de notre mémoire.”

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o carácter contingente da nossa cultura, se teme a aproximação com outras culturas devido ao carácter arbitrário dessa mesma aproximação. Não nos parece admissível que numa problemática tão importante como a do mal, que Ricœur procura compreender através do símbolo e do mito, se possa ignorar deliberadamente o dizer das grandes culturas extra-europeias. Reconhecemos que o passo fora da nossa cultura é um passo arriscado. Todavia, sem passos desse tipo, mais ou menos ousados, mais ou menos radicais, mais ou menos arbitrários, a nossa própria cultura não existiria. Seríamos ainda, ou gregos ou judeus, ou outra coisa qualquer. Sem contar que as osmoses sempre se deram, apesar de todas as barreiras, naturais ou artificiais. Assim, o cristianismo das origens propaga-se num meio constituído por uma cultura helenizada, mas que havia perdido há muito a sua — se assim se pode dizer — pureza inicial, apresentando-se contaminada por uma série de influências que, geograficamente, vão do Próximo ao Extremo Oriente. No mundo contemporâneo vemo-nos confrontados com a alternativa entre entendermo-nos ou exterminarmo-nos uns aos outros. Assim, reconhecendo embora as dificuldades, o risco real de cair na arbitrariedade de que fala Ricœur, achamos necessário prolongar a sua reflexão sobre o símbolo e o mito para além do universo cultural do Ocidente grego e judaico-cristão. Entraremos numa zona cujas referências desconhecemos, de homens que falam uma linguagem que não é a nossa, que vivem num mundo diferente. Todavia, a nossa crença fundamental é de que, apesar de todas as diferenças, eles são de facto homens, isto é, é possível encontrar entre eles alguém com quem seja possível dialogar; tal como Ricœur noutro lado admite, são acessíveis à nossa compreensão: a abertura do meu campo de motivação é a minha acessibilidade de princípio a todos os valores de todos os homens através de todas as

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culturas. O meu campo de motivação está aberto ao humano no seu conjunto. É o sentido do famoso dito: “nada do que é humano me é estranho”. Sou capaz de todas as virtudes e de todos os vícios; não existe signo do homem radicalmente incompreensível, nenhuma língua radicalmente intraduzível, nem obra de arte à qual o meu gosto não possa se estender. A minha humanidade é esta acessibilidade de princípio ao humano fora de mim. Ela faz de qualquer homem o meu semelhante.33 Sendo impensável um tratamento universal, contamos completar a exploração que Ricœur faz do mundo dos mitos através da cultura hindu. É a que nos é mais acessível, por razões pragmáticas e contingentes, como são todas as razões em casos destes: um pouco mais de familiaridade, um pouco mais de bibliografia disponível, sobretudo a nível do tratamento que Mircea Eliade faz do universo dos mitos e das religiões. A contingência e a limitação da escolha invalidam à partida qualquer pretensão de universalidade às conclusões a tirar desta investigação, que não pretende ser mais do que um passo no longo caminho do autoconhecimento.

33Ib.,

pp. 77-78: “L’ouverture de mon champ de motivation c’est mon accessibilité de principe à toutes les valeurs de tous les hommes à travers toutes les cultures. Mon champ de motivation est ouvert à l’humain dans son ensemble. C’est le sens du fameux mot: « rien d’humain ne m’est étranger ». Je suis capable de toutes les vertus et de tous les vices; il n’est point de signe de l’homme radicalement incompréhensible, point de langue radicalement intraduisible, pas d’œuvre d’art à quoi mon goût ne puisse s’étendre. Mon humanité est cette accessibilité de principe à l’humain hors de moi. Elle fait de tout homme mon semblable.”

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1.3. Mitos e símbolos primários

Precisamos agora justificar também uma outra opção, a que fizemos pela mitologia em detrimento daquilo que Ricœur chama os símbolos primários do mal: mancha, pecado, culpabilidade. Em L’homme faillible, livro que antecede La symbolique du mal, Ricœur procura estabelecer que a possibilidade do mal está inscrita na própria natureza humana, na medida em que o homem é falível. “Dizer que o homem é falível é dizer que a limitação própria a um ser que não coincide consigo mesmo é a fraqueza originária de onde o mal procede. Todavia, o mal só procede desta fraqueza na medida em que ele se põe.”34 Esta posição do mal, esta passagem da falibilidade à falta, é aquilo que a linguagem do testemunho, simbólica do princípio ao fim, descreve, não de uma forma homogénea mas através de diversos níveis, ou estratos. Temos, mais próxima da especulação filosófica, a linguagem da gnose, que procura racionalizar a experiência do mal, «explicá-la», e da qual o pseudo-conceito de pecado original é, na opinião de Ricœur, tributário; a gnose remete para os grandes mitos da origem, como o mito adâmico, mas estes não constituem ainda a última camada: por baixo está a «confissão dos pecados», a experiência penitencial de Israel, que se expressa nos símbolos primários da mancha, do pecado e da culpabilidade. Esta disposição em estratos, todavia, não possui um carácter estático. É como um todo que é preciso tomar a linguagem elementar do testemunho, a linguagem desenvolvida do mito e a linguagem elaborada da gnose e da contra-gnose. Não existe autonomia da especulação, e o mito é ele próprio segundo; não existe também consciência imediata

34Ib.,

p. 162: “Dire que l’homme est faillible, c’est dire que la limitation propre à un être qui ne coïncide pas avec lui-même est la faiblesse originaire d’où le mal procède. Et pourtant le mal ne procède de cette faiblesse que parce qu’il se pose.”

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da falta que possa fazer economia das elaborações segundas e terceiras. É o círculo do testemunho, do mito e da especulação que é necessário compreender. 35 Com que direito pretendemos nós romper este círculo e privilegiar o mito? A análise que Ricœur faz aos símbolos primários do mal é das mais completas e exaustivas que se poderiam desejar. Lamentavelmente, esta riqueza é também sinónimo de limitação: a reflexão desenvolve-se, de alguma maneira, em circuito fechado, nunca saindo realmente do universo judaico-cristão no seu sentido mais estrito, o que se reflecte na inexistência de grandes aporias, análogas às que se manifestarão mais adiante, aquando a análise dos mitos da origem e do fim do mal, em que o confronto entre culturas distintas — Grécia, Israel, Mesopotâmia — apresenta características mais evidentes. A experiência penitencial judaica, de onde são recortados os símbolos primários do mal, é dissecada até ao mais infímo pormenor, segundo um esquema que começa pela mancha, a qual remete para o pecado, que recebe o remate da culpabilidade, embora esta por sua vez pressuponha a mancha. Para dilucidar o ponto de partida, a mancha, cuja riqueza simbólica faz com que ainda lhe estejamos ligados 36, Ricœur procura a ajuda da etnologia, pressupondo o seu carácter arcaico e, de algum modo, universal. A partir da passagem da mancha para o pecado, começam as dificuldades. Reconhecendo que “o homem grego não acedeu nunca ao sentimento do pecado, na sua qualidade própria e com a intensidade das quais unicamente o

35

Ib., p. 173: “C’est donc comme un tout qu’il faut prendre le langage élémentaire de l’aveu, le langage développé du mythe et le langage élaboré de la gnose et de la contregnose. Il n’y a pas d’autonomie de la spéculation et le mythe est lui-même second; mais il n’y a pas non plus de conscience immédiate de la faute qui puisse faire l’économie des élaborations seconde et tierce. C’est le cercle de l’aveu, du mythe et de la spéculation qu’il faut comprendre.” 36Ib., p. 188.

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povo de Israel dá o exemplo”37, Ricœur é obrigado a desenvolver a sua análise posterior quase que exclusivamente dentro do universo judaico-cristão. A única excepção notável prende-se com o contributo dos Gregos para a noção de culpabilidade, através do discurso da imputação penal. Temos aqui um dos episódios de simbiose que constituiram a nossa cultura, na medida em que a experiência penitencial hebraica foi-nos transmitida através da tradução dos seus termos fundamentais em grego, no vocabulário grego da culpabilidade. A elaboração do vocabulário grego da culpabilidade pelo canal da penalidade é um acontecimento cultural imenso: a aventura da hybris, da hamartema, da adikia, é a aventura da nossa própria consciência, nós homens do Ocidente; a própria Bíblia influenciou a nossa cultura através da tradução grega: ora a escolha dos equivalentes gregos do pecado bíblico e de todos os conceitos ético-religiosos de origem hebraica é por si própria uma decisão sobre o sentido dos nossos símbolos; neste plano somos indivisamente gregos e judeus; assim, a elaboração dos conceitos de culpabilidade, através da experiência jurídica e penal dos Gregos, ultrapassa a simples história das instituições penais da Grécia clássica e pertence a esta história exemplar da consciência religiosa da qual traçamos aqui as motivações principais.38

37Ib.,

p. 195: “On pourrait alléguer en effet que l’homme grec n’a jamais accédé au sentiment du péché, dans sa qualité propre et avec l’intensité dont seul le peuple d’Israël donne l’exemple.” 38Ib., pp. 263-264: “L’élaboration du vocabulaire grec de la culpabilité par le canal de la pénalité est un évenement culturel immense: l’aventure de l’hybris, de l’hamartema, de l’adikia, c’est l’aventure même de notre conscience à nous, hommes d’Occident; la Bible elle-même a influencé notre culture à travers la traduction grecque: or le choix des équivalents grecs du péché biblique et de tous les concepts éthico-religieux d’origine hébraïque est par lui-même une décision sur le sens de nos symboles; sur ce plan nous sommes indivisément grecs et juifs; ainsi l’élaboration des concepts de la culpabilité, à travers l’expérience juridique et pénale des Grecs, dépasse la simple histoire des institutions pénales de la Grèce classique et appartient à cette histoire exemplaire de la conscience éthico-religieuse dont nous retraçons ici les motivations principales.”

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Todavia, este incidente permanece, apesar de tudo, marginal: “é preciso confessar que se dispuséssemos apenas do testemunho da Grécia, nunca chegaríamos a uma ideia minimamente coerente da sucessão tipológica da mancha, do pecado e da culpabilidade.”39 Precisamente porque esta sucessão é exclusiva da experiência judaico-cristã, aquela a que Ricœur tem acesso directo através da sua condição de crente. Está-lhe negado o acesso a uma experiência análoga na Grécia e na Mesopotâmia. Este facto explica ainda, de algum modo, o carácter circular, atrás referido, das relações entre testemunho, mito e especulação: a chave está precisamente na sombra poderosa que, em Ricœur, a linguagem do testemunho, isto é, a linguagem da experiência penitencial judaico-cristão projecta sobre o mito e a especulação, sejam eles quais forem, desde que não sejam solidários de outro testemunho, de outra experiência viva, como seriam os casos das culturas árabe, indiana, ou chinesa. Compreende-se assim melhor as reticências de Ricœur em sair do seu universo cultural. E todavia, precisamente ao analisar os mitos, o próprio Ricœur acaba por quebrar o círculo. Os mitos, símbolos de segundo grau, retomam “as significações analógicas espontaneamente formadas e imediatamente doadoras de sentido”40 que são os símbolos primários, e, ao mesmo tempo que as conservam no seu essencial, dão-lhes espessura, consistência, direcção. Existe assim, de facto, um forte laço entre mitos, símbolos primários e vivência cultural, mas isso significa também que não são quaisquer símbolos primários que encaixam em qualquer mito41; o que explica, a nosso ver, a surpresa, a admiração e a riqueza que nos esperam ao ler a segunda parte de La symbolique du mal. Ao ser obrigado a ter

39Ib.,

p. 264: “Il faut avouer que si nous disposions seulement du témoignage de la Grèce, jamais nous ne pourrions arriver à une idée un peu cohérente de la succession typologique de la souillure, du péché et de la culpabilité.” 40Ib., p. 181. 41Em O conflito das interpretações, p. 278, ao falar da narração da queda, Ricœur diz: “Esta narração tem um poder simbólico extraordinário, porque condensa num arquétipo do homem tudo aquilo que é experimentado de modo fugaz e confessado de modo alusivo pelo crente.”

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em conta os mitos gregos e babilónios, Ricœur abre a porta à experiência vivida desses povos, e vê-se obrigado a ultrapassar de algum modo o quadro dos símbolos primários antes delineado. Daí as aporias, os impasses e os paradoxos, mas também a riqueza de compreensão humana e as intuições poderosas que caracterizam esta parte da obra de Ricœur. É esta riqueza de pensamento que gostaríamos de explorar e prolongar.

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2.

Os “mitos” do princípio e do fim

Os mitos que interessam a Ricœur são os do princípio e do fim do mal. Para nós, eles são também, e sobretudo, os mitos do princípio e do fim do homem, na medida em que o que está em causa, para além duma noção de mal que só recebe o seu sentido pleno na tradição judaico-cristã, é a sua/nossa natureza e destino último. Neles se joga o essencial: a compreensão da realidade humana na sua totalidade, a questão do laço entre o homem e o seu sagrado, para utilizar a linguagem do próprio Ricœur. Sem identificar à partida o mal com a mancha, o pecado ou a culpabilidade, demasiado conotados culturalmente, podemos ainda usar o termo para designar o ponto sensível e como que a «crise» deste laço que o mito explicita à sua maneira; limitando-nos aos mitos relativos à origem e ao fim, temos a possibilidade de aceder a um compreensão mais intensiva do que extensiva do mito. Com efeito, é por ser o mal a experiência crítica por excelência do sagrado, que a ameaça de dissolução do laço do homem ao seu sagrado faz ressentir com a maior intensidade a dependência do homem em relação às forças do seu sagrado. Desta forma o mito da «crise» é ao mesmo tempo o mito da «totalidade»: contando como as coisas começaram e como acabarão o mito repõe a experiência do homem num todo que recebe da narrativa orientação e sentido. Assim se exerce através do mito uma compreensão da rea-

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lidade humana em totalidade por meio duma reminiscência e duma expectação.42 Parece-nos que esta formulação é suficientemente lata para justificar a inserção do nosso projecto dentro da intenção fundamental de Ricœur; nesse sentido justifica-se igualmente que tentemos, a partir de agora, repetir no essencial o seu percurso, dando-lhe mesmo toda a ênfase possível, a fim de, ao confrontá-lo finalmente com uma posição estranha, fazer ressaltar as suas potencialidades e os seus limites. Utilizando uma imagem tirada da física das partículas, tomaremos as suas teses sobre os mitos fundadores do Ocidente como os físicos tomam as partículas e as submetem a uma aceleração para projectá-las sobre um alvo, com o fim de obter, da explosão resultante, informação sobre a estrutura mais fundamental da matéria; o nosso alvo será constituído, como já foi dito, pelos mitos hindus, e o nosso objectivo será o mesmo de Ricœur: uma melhor compreensão de nós mesmos.

42Finitude

et culpabilité, p. 169: “Le mal — souillure ou péché — est le point sensible et comme la «crise» de ce lien que le mythe explicite à sa façon; en nous limitant aux mythes concernant l’origine et la fin, nous avons chance d’accéder à une compréhension intensive plutôt qu’extensive du mythe. C’est en effet parce que le mal est l’expérience critique par excellence du sacré, que la menace de dissolution du lien de l’homme à son sacré fait ressentir avec la plus grande intensité la dépendance de l’homme aux forces de son sacré.”

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2.1. A função simbólica dos mitos

2.1.1.

Criteriologia do mito

“Para mim o mito será uma espécie de símbolo, como que um símbolo desenvolvido em forma de narrativa, e articulado num tempo e num espaço não coordenáveis aos da história e da geografia segundo o método crítico.” 43 Nesse sentido, podemos pressupor que ele partilhará das características fundamentais do símbolo, embora, com o seu tempo, o seu espaço, os seus acontecimentos, as suas personagens e o seu drama, irá trazer a uma contribuição própria à função revelante dos símbolos primários.44 Tal como o símbolo, o mito situa-se na confluência de três dimensões essenciais do real: cósmica, onírica, imaginativa. Assim, retoma os símbolos cósmicos, ou símbolos-coisas, com a sua pluralidade de intenções significativas: é o barro de que é feito Adão, por exemplo, ou o Cáucaso ao qual é amarrado Prometeu. Mergulha as raízes no mais profundo da psique, de que expressa simultaneamente a estrutura arcaica, os princípios, assim como uma direcção, um fim para o seu movimento e para o seu dinamismo. A título de exemplo, poderíamos considerar que o mito babilónico da criação, através da luta de Marduk, o princípio da ordem, contra as forças do Caos, personificadas em Tiamat, para além de uma explicação sobre a origem do mal, do homem e das coisas, representa uma atitude, uma posição a tomar face ao mal, face ao homem e às coisas. Uma atitude que neste caso é correlativa de uma visão heróica, essencialmente não

43Ib.,

p. 181: “Je tiendrai le mythe pour une espèce de symbole, comme un symbole développé en forme de récit, et articulé dans un temps et un espace non coordonnables à ceux de l’histoire et de la géographie selon la méthode critique.” 44Ib., p. 310: “Comprendre le mythe comme mythe, c’est comprendre ce que le mythe, avc son temps, son espace, ses événements, ses personnages, son drame, ajoute à la fonction révélante des symboles primaires élaborés plus haut.”

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moral, do destino humano e da realidade: a ordem é sempre algo a conquistar sobre o caos, sobre a desordem, sendo esta contemporânea ou mesmo anterior e primordial em relação àquela. Existem assim, nos símbolos e nos mitos, intimamente associadas e relacionadas com a sua dimensão cósmica e onírica, uma função retrospectiva e uma função prospectiva. É esta função do símbolo como marco e como guia do «tornar-se si mesmo» que deve ser ligada e não oposta à função «cósmica» dos símbolos, tal como se exprime nas hierofanias descritas pela fenomenologia da religião. Cosmos e Psyche são dois pólos da mesma «expressividade»; exprimo-me exprimindo o mundo; exploro a minha própria sacralidade decifrando a do mundo. 45 Finalmente, uma dimensão que, creio, não é suficentemente valorizada por Ricœur, pelo menos nesta etapa do seu pensamento: a imaginativa. Como ele próprio diz, diferentemente das duas outras modalidades hierofânica e onírica do símbolo, o símbolo poético mostra-nos a expressividade no estado nascente; na poesia o símbolo é surpreendido no momento em que é um surgimento da linguagem, “onde coloca a linguagem em estado de emergência”, em vez de estar recolhido na estabilidade hierática sob a guarda do rito e do mito, como na história das religiões, ou então em vez de ser decifrado através das ressurgências duma infância abolida.

45Ib.,

p. 176: “C’est cette fonction du symbole comme jalon et comme guide du «devenir soi-même» qui doit être reliée et non point opposée à la fonction «cosmique» des symboles, telle qu’elle s’exprime dans les hiérophanies décrites para la phénoménologie de la religion. Cosmos et Psyche sont les deux pôles de la même «expressivité»; je m’exprime en exprimant le monde; j’explore ma propre sacralité en déchiffrant celle du monde.”

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Seria preciso compreender que não existem três formas incomunicáveis de símbolos; a estrutura da imagem poética é também a do sonho quando este tira dos retalhos do nosso passado uma profecia do nosso futuro e a das hierofanias que tornam manifesto o sagrado no céu e nas águas, na vegetação e nas pedras. 46 Todavia, esta possibilidade de, através do símbolo poético, assistir à expressividade no estado nascente, parece estar arredada do mito, relegado como tal para os estádios arcaicos da humanidade. O homem moderno, para Ricœur, deixou de mitizar; “ele é o único a poder reconhecer o mito como mito, porque apenas ele atingiu o ponto em que história e mito se separam.”47 Restam-lhe duas alternativas: ou proceder a uma radical desmitização, na medida em que já não é possível de facto coordenar o tempo e o espaço dos mitos à nossa história e à nossa geografia, ou, e precisamente porque, mais uma vez, o mito e a história se separaram, “a desmitização da nossa história pode tornar-se o reverso de uma compreensão do mito como mito e a conquista, pela primeira vez na história da cultura, da dimensão mítica.”48 Estas formulações merecem algumas observações.

46Ib.,

pp. 176-177: “A la différence des deux autres modalités hiérophanique et onirique du symbole, le symbole poétique nous montre l’expressivité à l’état naissant; dans la poésie le symbole est surpris au moment où il est un surgissement du langage, «où il met le langage en état d’émergence», au lieu d’être recueilli dans sa stabilité hiératique sous la garde du rite et du mythe, comme dans l’histoire des religions, ou bien au lieu d’être déchiffré à travers les résurgences d’une enfanœ abolie. Il faudrait comprendre qu’il n’y a pas trois formes incommunicables de symboles; la structure de l’image poétique est aussi celle du rêve lorsque celui-ci tire des lambeaux de notre passé une prophétie de notre devenir et celle des hiérophanies qui rendent manifeste le sacré dans le ciel et les eaux, la végétation et les pierres. ” A citação incluída é de G. Bachelard, La poétique de l’espace, Paris, 1957. 47Ib., p. 309: “Lui seul peut reconnaître le mythe comme mythe, parce que lui seul a atteint le point où histoire et mythe se séparent.” 48Ib., p. 310: “La démythisation de notre histoire peut devenir l’envers d’une compréhension du mythe comme mythe et la conquête, pour la première fois dans l’histoire de la culture, de la dimension mythique.”

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Poder-se-ia contestar, em primeiro lugar, o alcance e a extensão desta desmitização no homem moderno. Mircea Eliade49, a quem Ricœur vai buscar a própria definição de mito50, recenseia uma série de comportamentos contemporâneos que estão sob a égide de uma mitologia mais ou menos patente. Mais concretamente, afirma: não podemos dizer que o mundo moderno tenha abolido completamente o comportamento mítico: inverteu-lhe apenas o campo de acção: o mito já não é dominante nos sectores essenciais da vida, foi recalcado, seja nas zonas obscuras da psique, seja em actividades secundárias ou mesmo irresponsáveis da sociedade.51 Aquilo que ainda hoje, e em relação à maioria dos seres humanos, fornece “modelos para a conduta humana e confere dessa forma significação e valor à sua existência”52 continua a fazer parte do universo do mítico. Um dos domínios privilegiados em que, segundo Eliade, o mito se refugiou é constituido pelo romance, pela narrativa a que Ricœur dedicará três volumes, sob o sugestivo título Temps et récit. Aí, de algum modo, a oposição tão radical que aqui se estabelece entre o tempo do mito e o tempo da história dilui-se na consideração das diversas dimensões da temporalidade, e sobretudo na consideração de um tempo que se torna humano na medida em que se articula sobre um modo narrativo, e de

49Mircea ELIADE, Mythes, rêves et mystères, pp. 50Para Ricœur (Finitude et culpabilité, p. 169),

21-39. o mito é “un récit traditionnel, portant sur des événements arrivés à l’origine des temps et destiné à fonder l’action rituelle des hommes d’aujourd’hui et de manière générale à instituer toutes les formes d’action et de pensée par lesquelles l’homme se comprend lui-même dans son monde.” Eliade, em vez de falar na origem dos tempos, fala do tempo primordial (Mircea ELIADE, Aspects du mythe, p. 16). A gradação talvez não seja de desprezar, mas no resto as duas definições são praticamente idênticas. 51Mircea ELIADE, Mythes, rêves et mystères, p. 38: “On ne peut pas dire que le monde moderne ait complètement aboli le comportement mythique: il en a seulement renversé le champ d’action: le mythe n’est plus dominant dans les secteurs essentiels de la vie, il a été refoulé, soit dans les zones obscures de la psyché, soit dans des activités secondaires ou même irresponsables de la société.” 52Mircea ELIADE, Aspects du mythe, p. 12.

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uma narrativa que atinge a sua significação plena quando se torna uma condição de existência temporal53. A narrativa, histórica ou de ficção, toma assim um poder literalmente configurador, na medida em que se torna factor de repetição, de retoma no plano da acção dos paradigmas que nela encontra o leitor. O que é então repetido é precisamente o que posso ser: são as fontes às quais devo ir colher para operar a censura pela qual rompo com a forma fixada (figgée) do destino da origem […]. Reconhecer o meu poder-ser no meu ter-sido, eis a repetição já não onírica, mas resolvida.54 Não estamos assim tão longe do tempo do mito, do tempo qualitativamente diferente do tempo cronológico, ao mesmo tempo primordial e indefinidamente recuperável, fornecedor dos paradigmas que orientam a vida do homem «primitivo». Tudo isto leva-nos a colocar algumas reticências quanto ao projecto de uma compreensão do mito como mito, ou de uma «conquista» da dimensão mítica, a qual nos lembra demasiado outras conquistas. Preferimos pressupor, como aliás o próprio Ricœur, que nos movemos no interior de uma cultura, com os seus mitos e os seus símbolos, com a sua linguagem já aí, e admitir que aquilo que pensamos como compreensão dos mitos pode não ser mais do que o prolongamento do nosso próprio mito. Não falava Lévi-Strauss, a propósito de uma ciência dos mitos, do mito da mitologia? Não negamos o pensamento racional e científico em prol de um pensamento mítico, mas deixamos em aberto a questão de saber quem envolve ou pode envolver quem.

53Temps

et récit, tome I, p. 85: “Que le temps devient temps humain dans la mesure où il est articulé sur un mode narratif, et que le récit atteint sa signification plenière quand il devient une condition de l’existence temporelle.” 54“La fonction narrative et l’expérience du temps”, em Archivio di filosofia, 80, nº1, 1980, p. 363, cit. em Manuel SUMARES, Para além da necessidade, p. 284.

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Para além das dimensões cósmica, onírica e imaginativa ou poética, o mito partilha com o símbolo o seu carácter de signo em que o “sentido primeiro, literal, patente, visa analogicamente um sentido segundo que é dado unicamente através dele”55. Este sentido segundo não tem uma correspondência directa com o sentido primeiro, não é dado numa tradução, como a alegoria, e Ricœur vai ter um certo cuidado em distinguir tanto o símbolo como o mito da alegoria. O mito engloba a humanidade no seu conjunto numa história exemplar, insere a experiência humana num determinado movimento, numa determinada tensão entre um Princípio e um Fim, e pretende atingir o enigma da existência humana. Todos estes aspectos afastam-no da alegoria. A alegoria é sempre susceptível de ser traduzida num texto em si mesmo inteligível; uma vez este melhor texto decifrado, a alegoria cai como uma veste inútil; aquilo que a alegoria mostrava escondendo pode ser dito num discurso directo que se substitui a ela. Pela sua tripla função de universalidade concreta, de orientação temporal e, enfim, de exploração ontológica, o mito tem uma maneira de revelar, irredutível a qualquer tradução de uma linguagem cifrada numa linguagem clara; como Schelling mostrou na sua Filosofia da Mitologia, o mito é autónomo e imediato: significa aquilo que diz.56 Assim, embora os mitos que nós reconhecemos como mitos estejam marcados pela nossa história cultural e pelas interpretações que nela receberam, existe neles um excesso de significação que impede de reduzi-los a essas interpreta55Finitude et culpabilité, p. 178. 56Ib., p. 311: “L’allégorie est

toujours susceptible d’être traduite dans un texte intelligible par lui-même; une fois ce meilleur texte déchiffré, l’allégorie tombe comme un vêtement inutile; ce que l’allégorie montrait en le cachant peut être dit dans un discours direct qui se substitue à elle. Par sa triple fonction d’universalité concrète, d’orientation temporelle et enfim d’exploration ontologique, le mythe a une façon de révéler, irréductible à toute traduction d’un langage chiffré en un langage clair; comme Schelling l’a montré dans sa Philosophie de la Mythologie, le mythe est autonome et immédiat: il signifie ce qu’il dit.”

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ções, a esses discursos feitos, e os mantém abertos a novas apropriações. Para ser esta reserva de sentido sempre disponível, “é preciso que o mito não seja nem história acontecida num tempo e num lugar determinados, nem explicação”57. É necessário, portanto, distinguir cuidadosamente mito e gnose, tal como já Platão o fazia, ao inserir no seu discurso os célebres mitos platónicos, os quais começam precisamente onde a explicação acaba. O mito não é a expressão mais ou menos velada de um conhecimento qualquer, é símbolo, ou seja, algo que “abre e descobre uma dimensão de experiência que, sem ele, permaneceria fechada e dissimulada”58.

2.1.2.

Tipologia dos mitos

Reconhecendo embora toda a pertinência do mito enquanto pensamento, comportamento e discurso humano, caímos imediatamente na perplexidade quando somos confrontados com a infinita variedade de narrações míticas. Como encontrar caminho no labirinto? Ricœur propõe como solução, na segunda parte de La symbolique du mal, uma tipologia quadripartida dos mitos do mal.59 1. O tipo drama de criação, em que a origem do mal é contemporânea ou mesmo anterior à ordem e ao bem, representada por um “caos” inicial que o deus criador tem de vencer. Nesta visão das coisas a salvação seria equivalente à própria criação, repetida ritualmente ou assimilada simbolicamente à luta contra os inimigos, representantes do caos inicial que permanece como substrato da realidade (Marduk cria o mundo a partir do corpo de Tiamat vencida).

57Ib., 58Ib.,

p.312. p. 313: “Le symbole, avons-nous dit, ouvre et découvre une dimension d’expérience qui, sans lui, resterait fermée et dissimulée.” 59Ib., pp. 318-321.

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2. O mito da queda, que sobrevem como um acontecimento irracional no centro de uma criação acabada e essencialmente boa. A salvação é uma peripécia nova, que passa a ter um carácter histórico, distinto da criação, e é fruto das iniciativas do crente e da divindade. 3. O mito trágico, tipo intermédio entre os dois anteriores, em que o mal deriva da acção do deus que tenta, cega e perde o homem. Impotente face a uma falta que cometeu mas da qual não é culpado, só resta ao homem sujeitar-se e compreender a necessidade, através do sentimento estético originado no espectáculo do trágico. Entre o caos do drama da criação, a falta inevitável do herói trágico e a queda do homem primitivo tecem-se relações complexas de exclusão e de inclusão que tentaremos compreender e retomar em nós mesmos; todavia, até a própria relação de exclusão sobrevem no interior de um espaço comum, graças ao qual estes três mitos têm um destino solidário.60 4. Finalmente, como um tipo aparte, o mito da alma exilada, o único que cinde o homem em corpo e alma, sendo o mal assimilado à queda da alma no corpo, e a salvação ao conhecimento, ou reconhecimento, da sua verdadeira origem e natureza. Em O conflito das interpretações Ricœur substituirá esta tipologia quadripartida por uma bipolar, em que o mito adâmico, apresentado como o mito propriamente antropológico, será oposto a um grupo constituído pelos outros três mitos.61 Aí também, ao tentar caracterizar os grandes mitos da origem e do

60Ib.,

p. 320: “Entre le chaos du drame de création, la faute inévitable du héros tragique et la chute de l’homme primitif se nouent des relations complexes d’exclusion et d’inclusion que nous essaierons de comprendre et de reprendre en nous-mêmes; mais meme la relation d’exclusion survient à l’intérieur d’un espace commun, grace auquel ces trois mythes ont un destin solidaire.” 61O conflito das interpretações, p. 289.

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fim do mal, dirá que estes são narrações que “exploram a falha da realidade humana representada pela passagem, pelo salto, da inocência para a culpabilidade; elas contam como o homem originariamente bom se tornou naquilo que é no presente”62. Para além do seu carácter abusivo, na medida em que nem o mito trágico nem o de criação falam propriamente de uma queda do homem de um estado de inocência para um de culpabilidade, esta afirmação poderia sugerir uma outra tipologia, agrupando o mito adâmico e o mito da alma exilada, os únicos que se referem, de uma forma ou de outra, a um estado original do homem superior ao seu estado actual. Como solucionar este conflito de tipologias? Tendo em conta o desenvolvimento do discurso do próprio Ricœur, parece-nos que a oposição ou conflito fundamental que se joga nesses mitos, e que ecoa na história do pensamento ocidental, é entre a exterioridade ou interioridade do mal em relação ao homem. É o mal um produto da nossa liberdade, ou existe, pelo contrário, uma realidade do mal anterior a qualquer decisão humana? Esta uma das questões persistentes da filosofia e da teologia, de que um dos últimos avatares é o problema da influência dos determinismos na acção. Partindo do facto de que os mitos que Ricœur analisa são mitos fundadores do Ocidente, parece-nos que a exploração desta dicotomia será o melhor caminho para pormos em prática o nosso projecto de confrontá-los com mitos de outra área cultural.

62Ib.,

p. 288.

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2.2. O ciclo da exterioridade

O sofrimento e a morte. A indiferença e a crueldade da natureza, que não se verga aos nossos anseios, mas, quando menos esperamos, nos golpeia com toda a violência do seu poder. A história dos homens, com o seu cortejo interminável de misérias e violências que chegam a ofuscar as catástrofes naturais. A relação com os outros, vivida quase sempre sob o signo da suspeita, da dissimulação ou da violência. Há sempre uma violência, provinda da natureza, dos outros ou de uma parte desconhecida de nós mesmos, absurda no seu poder e no seu sem sentido, que nos enfrenta como um mal que escapa à nossa capacidade de decisão e de acção. “É precisamente esta experiência do mal já aí, poderoso na minha impotência, que suscita todo o ciclo dos mitos diferentes do mito adâmico, que partem todos de um esquema de exterioridade.”63 Esta experiência do mal do mundo atingiu um dos seus pontos de virulência máxima na narração babilónica do Diálogo do senhor e do seu servo, um diálogo pessimista onde são colocados em equação a acção e a inacção, e se conclui pela inutilidade ou absurdo de tudo: falar ou calar, beber, comer, amar uma mulher ou servir o país. A opção lógica é o suicídio. Como diz Ricœur, “o sofrimento é sobretudo, mais do que injusto, sem sentido; por ricochete, torna qualquer projecto insensato; face ao absurdo tudo dá na mesma” 64. Todavia, esta forma de ver as coisas não é exclusiva da Mesopotâmia. Nietzsche narra uma lenda grega cujo fundo é semelhante: Segundo uma lenda antiga, o rei Midas perseguiu na floresta o velho Sileno, companheiro de Diónisos, e durante muito tempo sem poder

63Ib., p. 299. 64Finitude et culpabilité,

p. 449: “Pour l’auteur du Dialogue du maître et de son serviteur, la souffrance n’est pas tellement injuste qu’insensée; par choc en retour elle rend tout projet insensé; face à l’absurde tout est égal.”

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alcançá-lo. Quando conseguiu, por fim, apoderar-se dele, o rei perguntou-lhe qual era a coisa que o homem deveria preferir a tudo e considerar sem par. Imóvel e obstinado, o demónio não respondia. Até que, por fim, coagido pelo vencedor, desatou a rir e proferiu as seguintes palavras: “Raça efémera, e miserável, filha do acaso e da dor! E tu, porque me obrigas a revelar-te o que mais te valeria ignorar? O que tu deverias preferir não o podes escolher: é não teres nascido, não seres, seres nada. Já que isso te é impossivel, o melhor que podes desejar é morrer, morrer depressa”.65 Mircea Eliade, a propósito do ideal yógico da conquista da liberdade, vê no mesmo a “justificação dada pelo pensamento indiano para o facto, à primeira vista absurdo e cruelmente inútil, que o mundo existe, que o homem existe e que a sua existência no mundo é uma série não interrompida de ilusões, de sofrimentos e de desespero”66. Esta caracterização dramática da experiência do mal como um dado irredutível ao poder do homem tem por objectivo situar melhor os mitos da exterioridade. Veremos que eles nos aparecem, de facto, como tentativa de justificar o estado de coisas anteriormente descrito, mas, mais do que isso, como indicador de uma atitude, de um caminho a seguir. É por isso que, segundo as palavras de Ricœur, “os grandes mitos são mesmo, de um só lanço, mitos do começo e do fim”67. Eles introduzem uma certa tensão, um certo sentido, uma dimensão de profundidade na experiência humana.

65Nietzsche, A origem da tragédia, p. 46. 66Mircea ELIADE, Le yoga. Immortalité

et liberté, p. 108: “On serait tenté de voir dans cet idéal — la conquête consciente de la liberté — la justification offerte par la pensée indienne au fait, à première vue absurde et cruellement inutile, que le monde existe, que l’homme existe et que son existence dans le monde est une suite ininterrompue d’illusions, de souffrances et de désespoirs.” 67O conflito das interpretações, p. 305.

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2.2.1.

O drama de criação e a visão «ritual» do mundo

O mito babilónico da criação é talvez aquele em que a exterioridade do mal, ou melhor dito, a conaturalidade do mal e do mundo, é afirmada na sua maior extensão. Tiamat é o princípio originário, o caos de onde provêm tanto os deuses representantes da ordem como os representantes da desordem. Para instaurar a ordem, o cosmos hierarquizado e diferenciado, Marduk, seu descendente, é obrigado a dar-lhe luta e a vencê-la, assim como aos deuses seus aliados. Aventa-se assim a possibilidade de “que a Origem das coisas esteja de tal forma para além do bem e do mal, que dê origem simultaneamente ao princípio tardio da ordem — Marduk — e às figuras retardadas do monstruoso, e que ela deva ser destruída, dominada enquanto que origem cega”68. O próprio homem é formado a partir dos restos mortais do chefe dos deuses vencidos e deste modo a substância do mal está entretecida com todos os níveis da realidade. Isto significa ainda que “o mal é tão velho como o mais velho dos seres; que o mal é o passado do ser; que ele é aquilo que foi vencido pela instituição do mundo; que Deus é o futuro do ser”69. Reconhecendo as forças do caos e da desordem em si e no mundo, restalhe ao homem imitar o comportamento do deus fundador e instaurar a ordem, seja ritualmente, através da repetição simbólica do drama original, seja através da luta contra os inimigos da cidade, assimilados às ressurgentes forças do caos. “A coerência do mito permite antecipar aquilo que se pode chamar uma teologia da Guerra Santa; se o Rei é a figura do deus vencedor do caos, o Inimigo deveria

68Finitude

et culpabilité, pp. 325-326: “Ce récit sauvage évoque une terrible possibilité: que l’Origine des choses soit tellement par-delà le bien et le mal qu’elle engendre à la fois le principe tardif de l’ordre — Mardouk — et les figures attardées du monstrueux, et qu’elle doive être détruite, surmontée en tant qu’origine aveugle.” 69Ib., p. 326: “Que le mal est aussi vieux que le plus vieux des êtres; que le mal est le passé de l’être; qu’il est ce qui a été vaincu par l’institution du monde; que Dieu est l’avenir de l’être.”

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ser a imagem na nossa história das potências do mal e a sua insolência representar uma ressurgência do antigo caos.”70 Para aquilatar do poder deste mito torna-se necessário seguir algumas das suas reencarnações através da história. Ricœur avisa-nos que não nos devemos enganar pela sua aparente simplicidade e forma primitiva, pois ele “anuncia tipologicamente as ontogéneses mais subtis da filosofia moderna e principalmente as do idealismo alemão”71. Para além destes avatares filosóficos, temos a referida teologia da Guerra Santa, que teve o seu mais alto expoente na Idade Média cristã e muçulmana, mas cujos ecos vão mais longe, desde a figura do Rei hebraico ao nazismo; é também a mitologia dos heróis populares de todos os tempos, a braços com todos os monstros possíveis ou imaginários. Trata-se sempre de lutar e vencer uma qualquer representação do mal, que tanto pode assumir forma exterior quanto interior ao homem, mas que é sempre algo anterior, algo já aí. Uma das características desta mitologia, notada por Ricœur, é o seu alheamente em relação a considerações de carácter moral. O herói ou o deus vence ou perde em função da sua força, seja ela a simples força física ou a superioridade de ânimo, inteligência, astúcia, e não em função da sua bondade ou maldade. O que impede Gilgamesh, o herói babilónio, de alcançar a imortalidade, não é qualquer pecado cometido, mas o simples facto de não ter conseguido permanecer desperto durante o tempo de prova.72 É uma violência superior que permite a Marduk vencer a violência de Tiamat: “no decurso da luta que opõe Marduk a

70Ib.,

p. 341: “La cohérence du mythe permet d’anticiper ce qu’on peut appeler une théologie de la Guerre Sainte; si le Roi est la figure du dieu vainqueur du chaos, l’Ennemi devrait être l’image dans notre histoire des puissances du mal et son insolence représenter une résurgence du chaos ancien.” 71Ib., p. 324. 72Mircea ELIADE, Aspects du mythe, p. 164: “Parti à la quête de l’immortalité, le héros mésopotamien Gilgamesh arrive dans l’île de l’Ancêtre mythique Ut-napishtin. Là, il doit veiller six jours et six nuits, mais il ne réussit pas à passer cette épreuve initiatique et il manque sa chance d’acquérir l’immortalité.”

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Tiamat, Marduk aparece como potência bruta, tão pouco ética como a cólera de Tiamat.”73 A acção, mesmo ritual ou sobretudo a acção ritual, é encarada no seu aspecto de acção eficaz, de algo que produz ou não um efeito, e não numa perspectiva de mérito ou demérito ético ou moral. Existe uma certa grandeza nesta visão: é a imagem do guerreiro enfrentando o inimigo e sabendo que pode vencer ou morrer, mas sendo capaz, de qualquer modo, de olhar a violência de face, forte no seu esforço para existir e no seu desejo de ser. Talvez a salvação passe por aqui, como parece indicar aquele episódio estranho da Bíblia que é a luta de Jacob com o anjo.

2.2.2.

O deus mau e a visão «trágica» da existência

O mito de criação é anterior a uma concepção moral da religião. O divino é ainda entendido, como acabamos de ver, um pouco à maneira de puras forças, que o homem domina por meio das acções eficazes e necessitantes que são os rituais, embora se verifiquem bastos indícios de uma evolução noutro sentido, como é o caso do Job babilónio. Mais do que o regresso da compreensão ética, que Ricœur reconhece inexistente nos mitos babilónios, à compreensão trágica da divindade74, parece-nos que testemunhos desse tipo representam sobretudo o distender da distância entre o homem e o divino, colocado agora sob o signo da inescrutabilidade, bem longe já dos deuses que se juntavam como moscas à volta do sacrifício na narrativa babilónia do dilúvio75. É nesta inescrutabilidade do divino, que deixou de se vergar à acção ritual do homem, ao sacrifício, que nos parece estar a chave do trágico. Ricœur reco-

73Finitude

et culpabilité, p. 329: “Au cours de la lutte qui oppose Mardouk à Tiamat, Mardouk apparaît comme puissance brute, aussi peu éthique que la colère de Tiamat.” 74Ib., p. 451. 75Ib., p. 332.

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nhece-o quando afirma que nas tragédias de Sófocles, ao contrário das de Ésquilo, o trágico não tem fim; “Sófocles é neste sentido mais puramente trágico do que Ésquilo; o deus hostil faz-se sentir nele menos pela sua pressão do que pela sua ausência que abandona o homem a si mesmo.” 76 À inescrutabilidade do divino corresponde a inescrutabilidade do homem, expressa na “cegueira” que atinge o herói trágico. Os dois compõem uma espécie de trágico do ser, que mergulha as suas raízes na teogonia e, portanto, no mito de criação, e cuja ilustração mais pertinente é a cadeia de crimes que assola a casa dos Átridas. “Esta crueldade em cadeia, que do crime gera o crime e que figuram as Erínias, mergulha numa espécie de maldade fundamental da natureza das coisas. A Erínia é culpabilisante, ouso dizer, porque ela é a culpabilidade do ser.”77 Enquanto o mito de criação separava os dois polos e afirmava o primado da ordem sobre o caos, a tragédia volta a baralhar as cartas, introduz o caos no coração da ordem, na figura do deus que tanto pode ser fonte de bom conselho quanto de cegueira e perdição. O mito trágico tende a concentrar no cume do divino tanto o bem como o mal. A passagem ao trágico propriamente dito está ligada à personalização progressiva deste divino ambíguo que, embora permanecendo moira, involuntário hiper-divino, toma a forma quase psicológica da malevolência.78

76Ib.,

pp. 370-371: “Mais chez Sophocle il n’y a précisément plus de fin du tragique: Sophocle en ce sens est plus purement tragique qu’Eschyle; le dieu hostile s’y fait moins sentir par sa pression que par son absence qui abandonne l’homme à luimême.” 77Ib., p. 363: “Cette cruauté en chaîne, qui du crime engendre le crime et qui figurent les Erinnyes, plonge dans une sorte de méchanceté fondamentale de la nature des choses. L’Erinnye est culpabilisante, si j’ose dire, parce qu’elle est la culpabilité de l’être.” 78Ib., p. 360: “Le mythe tragique tend à concentrer à la cime du divin le bien et le mal. Le passage au tragique proprement dit est lié à la personnalisation progressive de ce divin ambigu qui, tout en restant moira, involontaire hyper-divin, fatalité irrationnelle et inéluctable, prend la forme quasi psychologique de la malveillance.”

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A malevolência do divino assume a figura da fatalidade do mal que se abate sobre o herói trágico. Este está predestinado a agir mal; é Orestes que deve matar a mãe, ou Édipo que será o assassino do pai e partilhará o leito nupcial com a mãe; nenhum deles, todavia, está disposto a deixar-se arrastar cegamente pela fatalidade; todos eles erguem-se com todo o poder da sua liberdade contra o destino, e a sua vontade é tão grande que por momentos o destino parece hesitar; mas acaba, finalmente, por esmagá-los com todo o seu peso. “É necessário que o destino experimente primeiro a resistência da liberdade, ressalte de algum modo sobre a dureza do herói, e finalmente o esmague para que nasça a emoção trágica por excelência — o phobos.”79 Neste contexto, o momento ético do mal esboça-se, para ser de imediato apagado. O herói não é completamente inocente, existe nele um certo orgulho, uma desmesura, uma culpabilidade, que são, todavia, imediatamente anulados pela predestinação, englobados na culpabilidade do deus que engana. Ricœur manifesta uma certa fascinação pelo mito trágico, esse mito que está antes e depois da visão ética representada pelo mito adâmico, que é, quase poderíamos dizer, a sua sombra. Como ele diz, a tragédia nunca acaba de morrer; morta duas vezes, pelo Logos filosófico e pelo Kerigma Judaico-cristão, sobrevive à sua dupla morte. O tema da cólera de Deus, último motivo da consciência trágica, é invencível tanto pela argumentação do filósofo quanto pela do teólogo; pois não existe justificação racional da inocência de Deus; qualquer explicação de estilo estóico ou leibniziano acaba por que-

79Ib.,

p. 361: “Il faut que le destin éprouve d’abord la résistence de la liberté, rebondisse en quelque sorte sur la dureté du héros, et finalement l’écrase, pour que naisse l’émotion tragique par excellence — le phobos.”

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brar-se, como a ingénua argumentação dos amigos de Job, sobre o sofrimento dos inocentes.80 Do trágico não há salvação, excepto no próprio espectáculo e nos sentimentos que provoca: o terror e “esse olhar misericordioso que já não acusa, já não condena, mas tem piedade.”81 Sentimentos que são também sofrimentos, e através dos quais se acede a uma certa compreensão, situada para além de qualquer saber sistemático. A tragédia é como a teofania final para Job: “não lhe explicou nada, mas mudou o seu olhar; está pronto a identificar a sua liberdade à necessidade inimiga; está pronto a converter liberdade e necessidade em destino.”82 A salvação real está para além do homem: “no fim das Euménides, Orestes é de algum modo volatilizado no grande debate que se desenrola acima da sua cabeça entre Atena, Apolo, as Erínias” 83, “a morte do velho Édipo, a morte em glória do herói assisado, é a suspensão da condição humana mais do que a sua cura”84, e ao homem, através de Job, é-lhe pedido que renuncie à lei da retribuição, isto é, “que não apenas renuncie a invejar a prosperidade dos maus, mas que suporte a desgraça como recebe a felicidade, quer dizer, como um dom de Deus”85.

80Ib.,

pp. 458-459: “C’est pourquoi la tragédie n’a jamais fini de mourir; tuée deux fois, par le Logos philosophique et par le Kérygme judéo-chrétien, elle survit à sa double mort. Le thème de la colère de Dieu, ultime motif de la conscience tragique, est invincible à l’argumentation du philosophe comme du théologien; car il nest pas de justification rationnelle de l’innocence de Dieu; toute explication de style stoïcien ou leibnizien vient se briser, comme la naïve plaidorie des amis de Job, sur la souffrance des innocents.” 81Ib., p. 373: “Ces sentiments, nous le savons depuis Aristote, ce sont d’abord le phobos tragique, cette crainte spécifique à laquelle nous accédons quand nous surprenons la conjonction de la liberté et de la ruine empirique, puis le Eleos tragique, ce regard miséricordieux qui n’accuse plus, qui ne condamne plus, mais qui prend pitié.” 82Ib., p. 455: “Comme dans la tragédie, la théophanie finale ne lui a rien expliqué, mais a changé son regard; il est prêt à identifier sa liberté à la nécessité ennemie; il est prêt à convertir liberté et nécessité en destin.” 83Ib., p. 370. 84Ib., p. 371. 85Ib., p. 455.

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2.2.3.

O mito da alma exilada e a salvação pelo conhecimento

Em princípio, o mito órfico da alma exilada num corpo mau está submetido ao mesmo esquema de exterioridade do mal que os mitos anteriores. “Esse exílio, com efeito, é prévio a toda a posição do mal por um homem responsável e livre. O mito órfico é um mito de situação projectado sem dúvida mais tardiamente num mito de origem, que volta a mergulhar na teomaquia próxima do mito cosmogónico e do mito trágico.”86 Todavia, esse mal que nos mitos anteriores atacava sobretudo de fora, na figura do caos primordial ou do deus que engana, revela-se agora na experiência da discordância íntima do homem, que o mito de situação vem confirmar cindindo o homem em «corpo» e «alma», sendo este o aspecto que, na opinião de Ricœur, o distingue de todos os outros mitos, inclusive o mito adâmico. Com efeito, nenhum destes, mesmo fazendo “aparecer uma ruptura na condição do ser-homem, nunca dividem o homem em duas realidades”87. Parece então que este mito é o único que seja, no sentido próprio do termo, um mito da «alma» e ao mesmo tempo um mito do «corpo». Conta como «a alma», de origem divina, se tornou humana, — como o «corpo», estranho a esta alma e mau de múltiplas maneiras, corresponde a esta alma, — como a mistura da alma e do corpo é o acontecimento que inaugura a humanidade do homem e faz do homem o lugar do esquecimento, o lugar em que a diferença original da alma e do corpo é abolida. Divino quando à alma, terrestre quanto ao corpo, o homem é o esquecimento da diferença; o mito conta como isto aconteceu.88

86O conflito das interpretações, p. 289. 87Finitude et culpabilité, p. 418. 88Ib., p. 418: “Il apparaît alors que ce mythe

est le seul qui soit, au sens propre du mot, un mythe de «l’âme» et du même coup un mythe du «corps». Il raconte comment «l’âme», d’origine divine, est devenue humaine, — comment le «corps», étranger à cette

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O mito de origem vai projectar esta dualidade do homem num acontecimento originário, nos Titãs que devoraram Diónisos e de cujas cinzas Zeus fez a raça actual dos homens. O homem participa assim, simultaneamente, da natureza titânica e da natureza divina; é um deus preso na carne dos Titãs. Este acontecimento originário explica o esquecimento da dualidade constitutiva do homem, apenas discernível fugazmente através do sonho, do êxtase, do amor e da morte89, assim como que concentra a má escolha e o mau destino numa única figura ambígua, na flexão entre o divino e o humano. O Titã não é verdadeiramente outro que o homem: é das suas cinzas que nascemos; ele é a parte herdada e contraída da má escolha, aquilo que Platão chama a nossa natureza titânica; atesta que o grau mais baixo da liberdade está próximo da força bruta, colérica, desmesurada dos elementos desencadeados.90 Dá-se assim uma inflexão do mito da alma exilada numa direcção que o aproxima nitidamente do mito adâmico, justificando a sua posterior sobreposição na tradição do cristianismo. Por um lado, emerge aqui realmente a dimensão ética do mal, ausente no mito de criação e apenas esboçada no mito trágico: o mal que a alma expia na prisão do corpo é fruto de uma má acção, de uma má escolha, e é ainda o mau agir que a mantém presa no corpo, enredada na malha das sucessivas reencarnações. Por outro lado, o Titã representa o fundo de maldade impli-

âme et mauvais de multiples manières, échoit à cette âme, — comment le mélange de l’âme et du corps est l’événement qui inaugure l’humanité de l’homme et fait de l’homme le lieu de l’oubli, le lieu où la différence originaire de l’âme et du corps est abolie. Divin quant à l’âme, terrestre quant au corps, l’homme est l’oubli de la différence; le mythe raconte comment cela est arrivé.” 89Ib., p. 423. 90Ib., p. 435: “Le mythe du Titan, au lieu de dédoubler choix et destin entre homme et démon les concentre dans une unique figure ambiguë à la flexion du divin et de l’humain. Le Titan n’est pas vraiment un autre que l’homme: c’est de ses cendres que nous naissons; il est la part héritée et contractée du mauvais choix, ce que Platon appelle notre nature titanique; il atteste que le plus bas degré de la liberté est proche de la force brute, colérique, démesurée des eléments déchaînés.”

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cado em qualquer escolha actual. Significa, tal como a serpente no mito adâmico, que o mal de algum modo já lá está, que o homem limita-se a continuá-lo. A reflexão platónica irá esbater ainda mais a exterioridade do mal representada pelo corpo, fazendo deste o símbolo da passividade da alma, e inflectindo o simbolismo do «corpo mau» na direcção do tema da «má escolha».91 O tema da «injustiça da alma» sobrepõe-se ao da «maldade do desejo», colocando a origem do mal para além da falibilidade ligada ao ser composto do homem. Se o mito de criação poderia ser colocado sob o signo da acção, da acção ritual e eficaz, e o mito trágico sob o signo do «sofrer para compreender», o mito da alma exilada coloca-se resolutamente sob a égide do conhecimento: O mito da alma exilada é por excelência princípio e promessa de «conhecimento», de «gnose»; os órficos, diz Platão, «nomearam» o corpo; nomeando o corpo, nomearam a alma; ora o acto pelo qual o homem se apercebe como alma, ou, para dizer melhor, se faz o mesmo que a alma e outro que o corpo — outro que o par alternante de vida e de morte —, este acto purificador por excelência, é o conhecimento. Nesta tomada de consciência, neste despertar para si da alma exilada, toda a «filosofia» de estilo platónico e neo-platónico está contida: se o corpo é desejo e paixão, a alma é a origem e o princípio de qualquer retirada, de qualquer distanciação do logos longe do corpo e do seu pathos; e todo o conhecimento de qualquer coisa, toda a ciência seja do que for, enraiza-se neste conhecimento do corpo como desejo e de si próprio como pensamento face ao desejo. 92

91Ib., 92Ib.,

p. 475. p. 436: “Le mythe de l’âme exilée est par excetlence principe et promesse de «connaissance», de «gnose»; les orphiques, dit Platon, ont «nommé» le corps; en nommant le corps ils ont nommé l’âme; or l’acte par lequel l’homme s’aperçoit comme âme, ou, pour mieux dire, se fait même que son âme et autre que son corps — autre que le couple alternant de la vie et de la mort —, cet acte purificateur par excellence, c’est la connaissance. Dans cette prise de conscience, dans cet éveil à soi de l’âme exilée, toute la

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2.3. O mito adâmico e a visão «escatológica» da história

Entramos agora no ponto mais sensível do nosso trabalho, e por diversas razões. Não podemos abordar o mito adâmico e as sua sequelas com o mesmo olhar distanciado com que abordámos os outros, a sua interpretação não é uma questão meramente académica, mas tem a ver com o modo como milhões de seres humanos orientam ainda a sua vida, tem a ver com a forma como nós orientamos a nossa vida e a nossa interpretação, desse e doutros mitos. Quer queiramos quer não estamos dentro da sua zona de influência, a nossa própria capacidade de colocá-lo à distância, de vê-lo como mito, está de algum modo na sua dependência, na medida em que a própria concepção de história, como algo diferente e oposto ao mito, está prefigurada no acontecimento novo e contingente que a queda de Adão representa em relação à criação. “A contrapartida de um esquema de «queda» é que a salvação é uma peripécia nova em relação à criação original; a salvação desenvolve uma história original e aberta sobre o fundo duma criação adquirida e, nesse sentido, fechada.”93 Em comparação, “por um lado, o génio filosófico grego aceitava o essencial do pensamento mítico, o eterno retorno das coisas, a visão cíclica da vida cósmica e humana, e, por outro, o espírito grego não achava que a História pudesse tornar-se objecto de conhecimento.”94

«philosophie» de style platonicien et néo-platonicien est contenue: si le corps est désir et passion, l’âme est l’origine et le principe de toute retraite, de toute distanciation du logos loin du corps et de son pathos; et toute connaissance de quelque chose, toute science de quoi que ce soit, s’enracine dans cette connaissance du corps comme désir et de soi-même comme pensée face au désir.” 93Ib., p. 319: “La contrepartie d’un schéma de «chute» est que le salut est une péripétie nouvelle par rapport à la création originelle; le salut développe une histoire originale et ouverte sur le fond d’une création acquise et, en ce sens-là, close.” 94Mircea ELIADE, Aspects du mythe, p. 144: “Car, d’une part, le génie philosophique grec acceptait l’essentiel de la pensée mythique, l’éternel retour des choses, la vision cyclique de la vie cosmique et humaine, et, d’autre part, l’esprit grec n’estimait pas que l’Histoire pût devenir objet de connaissance.”

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E no entanto, num certo sentido, o mito adâmico tornou-se para nós tão ou mais estranho do que o mito da criação, ou qualquer dos outros. A experiência penitencial de Israel, de que este mito é uma retoma segundo Ricœur 95, tornou-se estranha ao espírito ocidental moderno, ocupado na conquista e no domínio da natureza e no desenvolvimento narcísico da subjectividade. O mito da queda desdobrava a Origem numa origem da bondade do criado e numa origem da maldade da história, e dessa forma satisfazia a dupla confissão do crente judeu na perfeição absoluta de Deus e na maldade radical do homem.96 Todavia, não está aqui precisamente essa separação, essa distância que instaura a religião como terror e a coloca sob a égide da pena e do castigo, e que o homem moderno, a começar por Ricœur, recusa?97 O mito adâmico tem uma motivação decididamente moral: esta motivação tem alguma analogia com a de Platão no livro II da República: porque Deus é o Bem, é inocente; mas enquanto Platão conclui; portanto Deus não é a causa de tudo, nem sequer do maior número das coisas existentes, o pensador judeu continuará: Deus é a causa de tudo o que é bom e o homem de tudo o que é vão. 98 É esta motivação moral que faz recair na figura de um homem exemplar, representante de toda a humanidade, a origem do mal, e por aí também a origem de todos os males. Como diz um certo livro de espiritualidade cristã99, “todos pe-

95Finitude et culpabilité, p. 378. 96Ib., p. 384. 97O conflito das interpretações, p. 359. 98Finitude et culpabilité, p. 381: “Cette motivation

n’est pas sans analogie avec celle de Platon au livre II de la Republique: parce que Dieu est le Bien, il est innocent; mais alors que Platon conclut: donc Dieu n’est pas cause de tout, ni même du plus grand nombre des choses existantes, le penseur juif continuera: Dieu est cause de tout ce qui est bon et l’homme de tout ce qui est vain.” 99Tive acesso apenas a um exemplar em fotocópia, sem indicação de autor ou título, mas creio que esse anonimato forçado até é significativo, dado o carácter mais ou menos geral do conteúdo, característico não de um autor mas de uma certa forma de encarar a religião.

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camos em Adão e todos pagamos as consequências: o castigo é universal, a todos alcança”: dor, trabalhos, doenças, cansaço, frio, guerras, pestes, fome, morte, corrupção, inferno. No entanto, é o próprio livro sagrado, a Bíblia, expondo o progresso da experiência penitencial judaica, que põe em causa este peso herdado do pecado: Porque repetis este provérbio na terra de Israel: os pais comeram as uvas verdes, os dentes dos filhos embotaram-se? Pela minha vida, oráculo do Senhor Yahvé, não mais tereis de repetir este provérbio em Israel. Eis que todas as vidas são minhas. Aquele que pecar, esse morrerá (Ez., 18, 1-4).100 Começam a desenhar-se aqui todas as aporias com que a visão moral da divindade se irá defrontar, e que obrigarão a que no mito, para além da figura central de Adão, se apresentem outras personagens, Eva e a serpente, que dividem com ele a responsabilidade pela introdução do mal no mundo. Assim, a responsabilidade de Adão é de algum modo diluída na fragilidade representada por Eva, e na anterioridade do mal presente na serpente. Para o primeiro homem, inaugurar o mal é também ceder-lhe. Por aqui abre-se a porta a uma visão trágica da existência que, ao contrário da grega, se situa para além de uma visão moral, na medida em que a pressupõe na sua plenitude. Aí onde Deus é percebido como origem da justiça e fonte da legislação, o problema da justa sanção põe-se com um carácter de gravidade sem precedentes; o sofrimento surge como enigma a partir do momento em que a exigência de justiça deixa de poder englobá-lo; este enigma é o produto da própria teologia ética; por isso a virulência do

100Cit.

em Finitude et culpabilité, p. 260.

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livro de Job não tem equivalente em nenhuma cultura; a queixa de Job supõe a plena maturidade duma visão ética de Deus; mais Deus se torna claro como legislador, mais se torna obscuro como criador.101 Face ao seu sofrimento injustificável e à ausência torturante de Deus, Job descobre o Deus trágico, o Deus inescrutável do pavor. “O que também é trágico, é o desenlace. «Sofrer para compreender», dizia o coro grego. Job por sua vez acede, para além de toda a visão ética, a uma nova dimensão da fé, a da fé inverificável.”102 Para além do trágico, e talvez através deste trágico rectificado pela visão ética, esboça-se o movimento escatológico da esperança. Será então a esperança aquilo que o mito adâmico oporá de mais próprio à acção do mito de criação, à compreensão e compaixão do mito trágico, e ao conhecimento do mito da alma exilada, como possibilidade de salvação. Esta categoria da esperança faz do primeiro homem, Adão, por quem o pecado entrou no mundo, o anti-tipo do novo homem, o Filho do Homem ou segundo Adão, através do qual a graça sobreabunda aí onde o pecado se multiplicou. E da mesma maneira que a humanidade inteira estava simbolicamente reunida no pecado do primeiro Adão, também o estará na graça do segundo.103 Trata-se, todavia, de algo que só pode ser vivido na esperança, na história com toda a sua contingência, e que por isso mesmo não pode ser erigido em sistema, nem verificado objectivamente.104 Mas por aí toda a

101Ib.,

p. 448-449: “Là où Dieu est aperçu comme origine de la justice et source de la législation, le problème de la juste sanction est posé avec un caractère de gravité sans précédent; la souffrance surgit comme énigme dès lors que l’exigence de justice ne peut plus l’englober; cette énigme est le produit de la théologie éthique elle-même; c’est pourquoi la virulence du livre de Job est sans équivalent dans aucune culture; la plainte de Job suppose la pleine maturité d’une vision éthique de Dieu; plus Dieu devient clair comme législateur, plus il devient obscur comme créateur.” 102Ib., p. 453: “N’est-ce pas le Dieu tragique que Job redécouvre? le Dieu inescrutable de l’épouvante? Ce qui est tragique aussi, c’est le dénouement. «Souffrir pour comprendre», disait le chœur grec. Job à son tour accède, par-delà toute vision éthique, à une nouvelle dimension de la foi, celle de la foi invérifiable.” 103Ib., p. 412-416. 104O conflito das interpretações, p. 309.

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vivência do mal sofre uma transmutação, uma alteração qualitativa: como em Kant, na Religião nos limites da simples razão, a degradação, livre e fatal, do homem pode ser compreendida como “a via dolorosa de qualquer vida ética de carácter e de nível adultos”105; o «quanto mais» e o «a fim de que» de S. Paulo conferem a sua verdade a essa visão da história segundo a qual o acesso do homem à sua humanidade, a passagem da infância à maturidade, tanto no plano do indivíduo como no da espécie, passam pela tomada de consciência das suas limitações, dos seus conflitos e dos seus sofrimentos.106 Por aí rompe-se definitivamente com o esquema de repetição presente nos mitos anteriores, uma vez que não se trata de reconquistar uma posição perdida ou imitar um paradigma primordial, mas de aceder a um estado novo do ser; o novo Adão “é a réplica do primeiro homem, mas é novo em relação a ele e não pode ser o regresso puro e simples dum primeiro Homem, suposto perfeito e não pecador, como em certas especulações gnósticas sobre Adão”107.

105Finitude et culpabilité, p. 411-412. 106Ib., p. 412: “C’est donc le «combien

plus» et le «afin que» de saint Paul qui confèrent sa vérité à cette vision de l’histoire selon laquelle l’accès de l’homme à son humanité, le passage de son enfance à sa maturité, aussi bien au plan de l’individu qu’à celui de l’espèce, passent par la prise de conscience de ses limitations, de ses conflits et de ses souffrances.” 107Ib., p. 406: “Il est la réplique du premier Homme, mais il est nouveau par rapport à lui et ne peut être le retour pur et simple d’un premier Homme, supposé parfait et non pécheur, comme dans certaines spéculations gnostiques sur Adam.”

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2.4. A mitologia hindu: eterno retorno e libertação

Os mitos que analisámos até agora, longe de representarem uma visão ingénua e primitiva do mundo ou do homem, pressupõem, como tivemos ocasião de verificar, uma certa maturidade cultural, correlativa de uma experiência de vida milenar. É o caso com o mito adâmico, retomando e sintetizando toda a experiência israelita da mancha, do pecado e da culpabilidade, com os seus correlatos da purificação, da misericórdia e da justificação; é o caso com os mitos trágico e da alma exilada, surgidos ou desenvolvidos no apogeu da civilização grega; o próprio mito babilónio de criação tem por detrás todo o peso de uma cultura, sendo o seu carácter aparentemente ingénuo, como sempre, enganador, como se nota nas suas múltiplas sobrevivências. A preocupação de Ricœur não é procurar os mitos originais, os mitos primitivos, mas os mitos significativos; o seu pressuposto é que os mitos são símbolos de segundo grau, sobrepostos a uma camada mais próxima da experiência representada pelos símbolos primários, dos quais retomam e desenvolvem o sentido. Além disso, vimos que o ciclo não terminava nos mitos, mas abarcava também um terceiro nível de elaboração, que Ricœur designava por gnose, em que a direcção do pensamento inflectia do símbolo para a especulação. Estes três níveis ou linguagens deveriam ser tomados como um todo, qualquer elemento remetendo simultaneamente para os outros dois.108 Estas observações preliminares ajudam-nos a encontrar um caminho no labirinto do pensamento hindu e da sua mitologia. Para começar, em nenhum outro lado é talvez mais difícil estabelecer uma distinção entre as três linguagens que acabámos de referir. Símbolo, mito e especulação entrelaçam-se tão mais intricadamente no pensamento hindu quanto é certo que o mesmo não desenvol-

108

Ib., p. 173.

52

veu uma filosofia, isto é, um discurso que se pretende laico e que procura o seu fundamento fora de quaisquer considerações de carácter religioso, isto é, fora de qualquer relação com o sagrado, que apresenta na Índia uma enorme variedade de manifestações. Desde o início, nos textos mais antigos ou mais “primitivos”, como é o caso do Rigveda, encontram-se, a par da mitologia mais ingénua — pelo menos a nossos olhos —, peças especulativas que rivalizam com as dos présocráticos ou de outros pensadores mais tardios na história da filosofia ocidental.109 O pensamento reflexivo e especulativo hindu, em vez de se autonomizar

109Cf.,

por exemplo, o hino “No princípio…”, Rigveda, X, cxxix, cit. em R. C. ZAEHNER (ed. e trd.), Hindu scriptures, p. 11-12: “§ 1. Then neither Being nor Not-being was, Nor atmosphere, nor firmament, nor what is beyond. What did it encompass? Where? In whose protection? What was water, the deep, unfathomable? § 2. Neither death nor immortality was there then, No sign of night or day. That One breathed, windless, by its own energy (svadha): Nought else existed then. § 3. In the beginning was darkness swathed in darkness; All this was but unmanifested water. Whatever was, that One, coming into being, Hidden by the Void, Was generated by the power of heat (tapas). § 4. In the beginning this [One] evolved, Became desire, first seed of mind. Wise seers, searching within their hearts, Found the bond of Being in Not-being. § 5. Their cord was extended athwart: Was there a below? Was there an above? Casters of seed there were, and powers; Beneath was energy, above was impulse. § 6. Who knows truly? Who can here declare it? Whence it was born, whence is this emanation. By the emanation of this the gods Only later [came to be]. Who then knows whence it has arisen? § 7. Whence this emanation hath arisen, Whether [God] disposed it, or whether he did not,— Only he who is its overseer in highest heaven knows.

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como no Ocidente, dando origem à filosofia, permaneceu intimamente ligado à religião, ao mito e ao símbolo. Isto não obsta a que se distingam níveis nesse pensamento, que vão desde a mitologia e folclore mais populares e vulgarizados, até às grandes sínteses em que o homem hindu exprime de forma mais acabada e, porque não, sistemática, as tensões que percorrem a sua experiência e a sua visão global do mundo. São estas síntese que sobretudo nos interessam. Desde os Upanishades que a Índia só se tem preocupado seriamente com um único grande problema: a estrutura da condição humana. […] A Índia aplicou-se, com um rigor em nenhuma outra parte igualado, a analisar

os

diversos

condicionamentos

do

ser

humano.

Acrescentemos imediatamente que ela fê-lo não para chegar a uma explicação exacta e coerente do homem (como por exemplo, na Europa do século XIX, quando se acreditava explicar o homem pelo seu condicionamento hereditário ou social), mas para saber até onde se estendiam as zonas condicionadas do ser humano e ver se existia ainda alguma coisa além desses condicionamentos.110 Esta citação de Mircea Eliade permite situar a nossa reflexão sobre os mitos hindus num movimento paralelo ao da reflexão de Ricœur sobre a simbólica do mal, ressaltando de imediato a sua diferença. Ricœur procura analisar as estruturas do voluntário e do seu involuntário a fim de situar o ponto em que a falibilidade humana permite a inserção do mal no mundo, compreendendo assim o es-

[He only knows,] or perhaps he does not know!” 110Mircea ELIADE, Le yoga. Immortalité et liberté, p. 8-9: “Depuis les Upanisad, l’Inde n’a éte préoccupée sérieusement que d’un seul grand problème: la structure de la condition humaine. L’Inde s’est appliquée, avec une rigueur inégalée ailleurs, à analyser les divers conditionnements de l’être humain. Hâtons-nous d’ajouter qu’elle l’a fait non pas pour arriver à une explication exacte et cohérente de l’homme (comme par exemple, dans l’Europe du XIXe siècle, lorsqu’on croyait expliquer l’homme par son conditionnement héréditaire ou social), mais pour savoir jusqu’où s’étendaient les zones conditionnées de l’être humain et voir s’il existe encore quelque chose au-delà de ces conditionnements.”

54

tado degradado da condição humana, tido como um pressuposto indiscutível a partir da experiência penitencial judaico-cristã. Essa degradação situava o homem numa história, num percurso no final do qual, num «fim do tempo», se vislumbraria a salvação tanto individual como colectiva, fruto da acção de um Deus que se interessaria pessoalmente pelo homem e colaboraria com ele na salvação. A reflexão hindu também se aplica a deslindar a estrutura da condição humana, mas ignora à partida o mal e a sua contrapartida subjectiva, a culpabilidade, como factores relevantes dessa condição; o conhecimento dos condicionamentos, conscientes ou inconscientes, não visa estabelecer de uma vez por todas a finitude e a fragilidade do homem como ser criado, mas, como disse Eliade, “ver se existe ainda alguma coisa além desses condicionamentos”. De uma forma ou de outra, o homem hindu acreditou sempre na possibilidade de alcançar um estado de ser para além de todos os condicionamentos e, mais do que isso, de alcançá-lo de modo, digamos assim, imediato e permanente. Essa crença situa-se, além disso, num plano diferente do da fé, entendida no sentido judaico-cristão, na medida em que, para além de acreditar, o hindu desenvolveu técnicas específicas visando o domínio dos condicionamentos e a conquista do estado nãocondicionado. Assim, mais do que o problema do mal, que como já dissemos está demasiado conotado culturalmente, a questão que podemos colocar aos mitos hindus, como aliás aos outros mitos, o de criação, o trágico, o adâmico, o da alma exilada, é a questão do homem e da sua inserção na totalidade, ou para utilizar uma terminologia eliadiana que Ricœur também retoma, a questão do laço entre o homem e o seu sagrado, a nossa natureza e destino último. É nesta perspectiva que iremos percorrer alguns mitos hindus que nos pareceram significativos, e ao dizer isto queremos assumir toda a carga de subjectividade que a afirmação anterior veicula. Com efeito, falta-nos uma visão de conjunto do pensamento hindu su-

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ficientemente forte para podermos situar de forma rigorosa esses mitos em relação à totalidade de que fazem parte.

2.4.1.

Mitos hindus do tempo e da eternidade

Como o babilónio, o grego ou o hebreu, o homem hindu também procurou perceber para além da realidade limitada do seu quotidiano, composta de sofrimento, de violência e, quantas vezes, de absurdo. O mito que contamos a seguir, tirado do Brahmavaivarta Purâna, texto tradicional hindu, e referido por Mircea Eliade111, mostra um pouco do que ele conseguiu ver. Indra era o Rei dos Deuses, o que na mitologia hindu pode não corresponder, como veremos a seguir, ao estatuto de deus supremo. Era de qualquer maneira um deus poderoso, herói de uma epopeia gloriosa, de que um dos grandes feitos tinha sido a vitória sobre o dragão Vrta, que impedia a manifestação do universo. Para comemorar o feito, decide encomendar ao arquitecto divino, Viçvakarman, um palácio sumptuoso, sem igual em todo o universo, a fim de servir de residência aos deuses. Após um ano de trabalho esforçado, Viçvakarman entrega-lhe um belo e magnífico edifício, como nunca se vira outro igual. Indra, todavia, cheio de soberba pelo seu poder, mostra-se insatisfeito e exige algo ainda mais belo e mais magnífico, muito mais belo e magnífico, como conviria a um Rei dos Deuses autor de tão gloriosos feitos. O arquitecto divino, agastado, pois ficara esgotado após tanto esforço, queixa-se ao Deus Criador, Brahma, o qual por sua vez intervém junto do Ser Supremo, Vishnu, de quem Brahma era apenas um instrumento. Vishnu promete colocar Indra no seu devido lugar.

111Mircea

ELIADE, Imagens e símbolos, p. 56ss.

56

Um dia Indra recebe no palácio a visita de um rapaz esfarrapado, que não era outro senão o próprio Vishnu disfarçado, a fim de dar uma lição ao Rei dos Deuses. Tratando-o por “minha criança”, fala-lhe dos inumeráveis Indras que tinham existido anteriormente, em inumeráveis universos. A vida e o reinado de um Indra dura milhões de anos terrestres, mas durante um único dia e noite de Brahma vivem 28 Indras. Um Brahma, por sua vez, vive uma existência que pode ser contada em 108 anos de tais dias e noites de Brahma. E os Brahma sucedemse uns aos outros através do tempo sem fim. Continua Vishnu: “Mas quem estimaria o número de universos, cada um possuindo o seu Brahma e o seu Indra? Além da mais longínqua visão, muito além de todo espaço imaginável, os universos nascem e desaparecem indefinidamente. Como embarcações ligeiras, esses universos flutuam sobre a água pura e sem fundo que forma o corpo de Vishnu. De cada poro desse corpo um universo sobe um instante e explode. Teríeis a presunção de contá-los? Credes poder enumerar os deuses de todos esses universos — os universos presentes e os universos passados?…”112 Vendo passar um carreiro de formigas, Vishnu ri-se e diz que cada uma das formigas do carreiro outrora, numa anterior encarnação, tinha, por força da sua virtude, ascendido à posição de Rei dos Deuses, isto é tinha sido um Indra, mas agora, múltiplas transmigrações volvidas, voltara a ser formiga. Esta visão terrível de universos arrastados, com as criaturas que os compõem, num ciclo infindável de criação e destruição faz cair Indra em si, levando-o a compreender a futilidade das suas ambições. Recompensa soberanamente o arquitecto divino e renuncia aos seus planos de aumentar ou construir um palácio mais grandioso. 112Ib.,

p. 57.

57

O mito de Indra situa-se no quadro mais vasto de uma doutrina dos ciclos cósmicos que constitui um autêntico mito especulativo do eterno retorno. O ciclo menor é constituído pelo yuga, que poderíamos traduzir por «idade», que se sucede em conjuntos de quatro, desde o Krta yuga, mais ou menos correspondente à Idade de Ouro de Hesíodo, até ao Kali yuga, a Idade de Ferro, aquela em que nos encontramos, e em que o homem e a sociedade alcançam o ponto extremo de desintegração. Um conjunto destes quatro yugas compõe um mahayuga, correspondente a 4.320.000 anos terrestres, e a vida e o reinado de um Indra duram 71 destes mahayugas.113 Nesta perspectiva todas as grandes realizações humanas, arte, impérios, instituições, descobertas, guerras, vitórias ou derrotas, tornam-se vazias de qualquer significado, assemelhando-se às dunas do deserto que se fazem e desfazem ao sabor do vento. A antropologia hindu acompanha de perto a sua cosmologia. De acordo com a escola Samkhya o homem enquanto composto psicofisiológico é parte integrante da Natureza, da prakrti, participando do seu carácter dinâmico e criador, não no sentido positivo que no Ocidente damos a estes dois termos, mas no sentido de algo que está em perpétua transformação e em perpétua manifestação de novas formas, tal caleidoscópio cósmico. Psicologicamente, o homem definese como uma série de potencialidades subconscientes, ou mesmo inconscientes, os vâsanâ, que são actualizadas através das experiências. Os vâsanâ condicionam o carácter específico de cada indivíduo; e este condicionamento é conforme tanto à hereditariedade como à situação kármica do indivíduo. Com efeito, tudo o que define a especificidade intransmissível do indivíduo, assim como a estrutura dos instintos humanos, é produzido pelos vâsanâ, pelo subconsciente. Este transmite-se ou de uma maneira «impessoal», de geração em geração

113Ib.,

p. 59-62.

58

(por meio da linguagem, dos costumes, da civilização: transmissão étnica e histórica); seja directamente (por meio da transmigração kármica […]). Uma boa parte da experiência humana é devida a esta herança racial e intelectual, a estas formas de acção e de pensamento criadas pelo jogo dos vâsanâ. Estas forças subconscientes determinam a vida da maioria dos homens.114 Desta forma, a vida humana normal não é senão um jogo de causas e efeitos (karma) que se joga através de sucessivas gerações e reencarnações.

2.4.2.

Eterno retorno e libertação

A dupla visão da repetição indefinida dos ciclos cósmicos e da vida do homem através das idades é de molde a produzir um sentimento de saciedade que se avizinha do desespero. O homem hindu não conhece talvez o terror da morte, como o ocidental, mas conhece um terror maior, o da vida sem fim, numa cadeia inexorável de desejo e sofrimento. A morte, como o sono ou um desmaio, poderia constituir uma trégua, um repouso momentâneo. Mas logo a seguir era necessário acordar ou renascer, era preciso abrir novamente o coração às torrentes da vida, e os olhos àquele temível, àquele belo e atroz fluxo de imagens, sem fim, inelutavelmente, até ao próximo desmaio e à morte seguinte. Esta era talvez 114Mircea

ELIADE, Le yoga. Immortalité et liberté, pp. 52-53: “Les vâsanâ conditionnent le caractère spécifique de chaque individu; et ce conditionnement est conforme tant à l’hérédité qu’à la situation karmique de l’individu. En effet, tout ce que définit la spécificité intransmissible de l’individu, ainsi que la structure des instincts humains, est produit par les vâsanâ, par le subconscient. Celui-ci se transmet soit d’une manière «impersonnelle», de géneration en géneration (au moyen du langage, des mœurs, de la civilisation: transmission ethnique et historique); soit directement (au moyen de la transmigration karmique […]). Une bonne partie de l’expérience humaine est due à cet héritage racial et intellectuel, à ces formes d’action et de pensée créées par le jeu des vâsanâ. Ces forces subconscientes déterminent la vie de la plupart des hommes. Ce n’est que par le Yoga qu’elles peuvent être connues, contrôlées et « brûlées ».”

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uma pausa, uma trégua breve, ínfima, o tempo de recuperar fôlego, mas em seguida tudo continuava, e novamente éramos uma das mil figuras da dança feroz, bêbeda e desesperada da vida. Ah! A aniquilação não existia, aquilo não tinha fim.115 A cada um dos tipos mitológicos abordados anteriormente correspondia um tipo de salvação; no mito de criação, a repetição ritual da acção criadora do deus; no mito trágico, os sentimentos de terror e compaixão despertados pelo espectáculo do sofrimento do herói; no mito da alma exilada, o conhecimento; no mito adâmico, a esperança na conciliação e justificação final, através da graça que sobreabunda sobre o pecado. Todavia, nenhuma outra cultura concebeu a salvação de forma tão radical como a hindu, talvez porque nenhuma acentuou de tal forma o carácter condicionado do ser humano e de todos os estados de ser que ele é capaz de imaginar ou conceber, dado que a imaginação e o intelecto (buddhi) têm o mesmo carácter condicionado e, digamos mesmo, material, que qualquer outro dos elementos do composto humano. 116 O hindu chegou a conceber céus ou paraísos para onde o homem bom iria depois da morte, mas acabou por reconhecer nesses paraísos o mesmo carácter condicionado, sujeito à lei do desejo e da mudança, que a vida neste mundo; acabaram por se tornar mais uma das estâncias que o homem percorre nas suas infindáveis reencarnações. Face a este panorama, a salvação só poderia ser concebida como libertação total e radical face aos condicionalismos que a condição humana pressupõe, implicando mesmo um estado superior aos próprios deuses, na medida em que estes, como vimos no mito de Indra, participam ainda do mundo condicionado da mudança e da transformação. Para além do homem enquanto composto psicofisiológico, para além dos deuses, para além da prakrti enquanto princípio de manifestação cósmica, estaria a sobre-realidade de atman, ou do purusha, imóvel, plena e imu115Hermann HESSE, O jogo das contas de vidro, p. 444. 116Mircea ELIADE, Le yoga. Immortalité et liberté, p. 28ss.

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tável como o ser de Parménides, e é aí, no radicalmente incondicionado, que o hindu coloca as suas esperanças. Salientamos que estes mitos e especulações, ou mitos especulativos se quisermos, radicam na experiência concreta de certos ascetas hindus, que poderíamos colocar em paralelo com os profetas de Israel ou os poetas gregos, pelo papel que desempenharam no imaginário das respectivas culturas. São eles o yogi e o renunciante (sannyasin), categorias que muitas vezes se confundiram. O primeiro representa o conhecimento e a prática de certas técnicas milenares que, no dizer de Patañjali, o grande compilador do Yoga, visam “a supressão dos estados de consciência”117, o que não corresponde propriamente a um estado de indiferenciação e aniquilação pura e simples. A libertação não é assimilável ao «sono profundo» da existência prénatal, mesmo se, aparentemente, o restabelecimento da Totalidade obtido pelo enstase indiferenciado se assemelhe à beatitude da préconsciência fetal do ser humano. É necessário ter em conta este facto, que é capital: o yogi trabalha sobre todos os níveis da consciência e do subconsciente tendo em vista abrir a via para o transconsciente (o conhecimento-possessão do Si, do purusha). Penetra no «sono profundo» e no «quarto estado» (turîya, estado cataléptico) com uma extrema lucidez, não se perde na auto-hipnose. A importância concedida por todos os autores aos estados yógicos de sobre-consciência, indica-nos que a reintegração final faz-se nessa direcção, e não na de um «transe» mais ou menos profundo.118

117Ib., 118Ib.,

p. 47. p. 107-108: “La délivrance n’est pas assimilable au «sommeil profond» de l’existence prénatale, même si, apparamment, le recouvrement de la Totalité obtenue par l’enstase indifferenciée ressemble à la béatitude de la préconscience fœtale de l’être humain. Il faut toujours tenir compte de ce fait, qui est capital: le yogin travaille sur tous les niveaux de la conscience et du subconscient en vue de s’ouvrir la voie vers le transconscient (la connaissance-possession du Soi, du purusa). Il pénètre dans le

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É esta uma das grandes descobertas da Índia, a da consciência-testemunho, da consciência desembaraçada das suas estruturas psicofisiológicas e do seu condicionamento temporal, a consciência do «liberto», quer dizer daquele que conseguiu se livrar da temporalidade e, portanto, conhece a verdadeira, a indizível liberdade. A conquista desta liberdade absoluta, da perfeita espontaneidade, constitui o fim de todas as filosofias e de todas as técnicas místicas indianas, mas é sobretudo através do Yoga, por uma das múltiplas formas de Yoga, que a Índia acreditou poder assegurá-la.119 O renunciante seria aquele que, tomando consciência destas possibilidades, retira-se da sociedade e vive isolado ou em conjunto com pequenos grupos de outros renunciantes, consagrando todo o seu esforço à obtenção da libertação, por meio do Yoga ou de outras técnicas paralelas. É tal o impacto que estas ideias terão na sociedade hindu que a vida dos indivíduos da casta mais elevada, os brahmanes, será dividida idealmente em quatro períodos, sendo o último precisamente o estado de sannyasin, em que o indivíduo, após ter cumprido todas as obrigações e deveres para com a sociedade, se retira do mundo para se consagrar à libertação. De igual modo, a própria manifestação ou criação do universo, a partir do Ser Supremo — o Purusha, Siva ou Vishnu, de acordo com as

«sommeil profond» et dans le «quatrième état» (turîya, l’état cataleptique) avec une extrême lucidité, il ne sombre pas dans l’autohypnose. L’importance accordée par tous les auteurs aux états yogiques de sur-conscience, nous indique que la réintégration finale se fait en cette direction, et non pas dans une «transe» plus ou moins profonde.” 119Ib., p. 12: “Il est impossible, par exemple, de passer à côté d’une des plus grandes découvertes de l’Inde: celle de la conscience-témoin, de la conscience dégagée de ses structures psychophysiologiques et de leur conditionnement temporel, la conscience du « délivré », c’est-à-dire de celui qui a réussi à s’affranchir de la temporalité et, partant, connaît la vraie, l’indicible liberté. La conquête de cette liberté absolue, de la parfaite spontanéité, constitue le but de toutes les philosophies et de toutes les techniques mystiques indiennes, mais c’est surtout par le Yoga, par l’une des multiples formes du Yoga, que l’Inde a cru pouvoir l’assurer.”

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diversas seitas —, será concebida em termos dos diversos estádios da experiência yógica. Passando agora à cosmogonia que apresentam os grandes purana, temos a surpresa de encontrar os estádios da experiência yógica transformados em planos sucessivos de manifestação do cosmos para formarem em conjunto a primeira fase da cosmogonia, que chamaremos «cosmogonia primeira». Assim os estádios de uma ascensão individual tornaram-se os de uma descida progressiva do Purusha supremo no cosmos: é o Purusha que se tornou yogi, e o processo de criação é assimilado ao regresso do yogi do samadhi [estado de concentração ou libertação suprema] à experiência ordinária.120

2.4.3.

A acção desinteressada

O carácter inessencial do mundo, da sociedade e da história, o seu apagamento face à grandeza dos ciclos cósmicos, acentuam e simultaneamente tornam irisórios todos os desejos e sofrimentos humanos, que estão na base de todas as suas realizações: eles são nada, são absurdos, face ao abismo do ser; mas o homem não pode deixar de senti-los e experimentá-los, pelo menos enquanto permanece homem, lançando-se assim continuamente na acção e alimentando a roda da vida que lhe trará de volta mais sofrimento e mais desejo. Parece restar um único caminho, e é aquele que Indra toma após a lição de Vishnu: abandona

120Madeleine

BIARDEAU, Clefs pour la pensée hindoue, p. 131: “Passant maintenant à la cosmogonie que donnent les grands purana, nous avons la surprise de retrouver ces étapes de l’expérience yogique transformées en plans successifs de manifestation du cosmos pour former ensemble la première phase de la cosmogonie, que nous appellerons «cosmogonie première». Ainsi les étapes d’une ascension individuelle sont devenues celles d’une descente progressive du Purusa suprême dans le cosmos: c’est le Purusa qui est devenue le yogin, et le processus de création est assimilé au retour du yogin du samadhi à l’expérience ordinaire.”

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o palácio, a esposa, as funções de Rei dos Deuses, e retira-se para as montanhas, a fim de praticar o mais terrível ascetismo, e alcançar da forma mais rápida a libertação. É o mesmo passo que Arjuna, no Bhagavadgita, está prestes a dar, ao contemplar o exército que tem diante de si para combater, composto em grande parte por familiares e amigos. Todavia, pode perguntar-se se um príncipe como Arjuna pode abandonar assim uma causa justa, ou se um Rei dos Deuses pode deixar da noite para o dia os seus deveres e abandonar o universo à sua sorte. No caso de Arjuna, é mais uma vez o Ser Supremo, na sua encarnação humana como Krishna, que vem esclarecer as coisas, propondo-se a si mesmo como modelo: Nos três mundos nada existe que eu deva ou tenha necessidade de fazer, nem nada para conseguir que não possua já. Todavia, não cesso de agir. Na verdade, se não estivesse sempre infatigavelmente empenhado na acção, os homens, em toda a parte, empenhar-se-iam após mim na mesma via. Os mundos desmoronar-se-iam se não cumprisse a minha tarefa. Eu seria causa da confusão universal e aniquilaria as criaturas.121 Da mesma forma, Indra acaba por compreender que cada um deve seguir o seu próprio caminho e realizar a sua vocação, ou seja, em suma, realizar o seu dever. Mas como a sua vocação e o seu dever eram de continuar a ser Indra, retoma a sua identidade e prossegue as suas aventuras heróicas, sem orgulho e sem pre-

121Bhagavadgîta,

III, 22-24.

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sunção, pois compreendeu a futilidade de qualquer «situação», mesmo sendo ela a de Rei dos Deuses…122 Define-se assim um outro caminho de salvação para o hindu: o da acção desinteressada, que corresponde a uma certa revalorização do mundo. Por muito absurda ou insignificante que seja a vida humana quando posta em confronto com a totalidade, ela é uma parte da totalidade, e como tal necessária. É preciso, todavia, não perder o senso das perspectivas, o que acontece quando o desejo não nos deixa enxergar para além do horizonte limitado da nossa vida e dos seus condicionamentos. O remédio está na acção desinteressada, no cumprimento do dever123 sem ligar aos frutos das acções: “considerando de igual modo o prazer e a dor, o lucro e a perda, a vitória e a derrota, reune as tuas energias para o combate; assim não sofrerás mal algum”124, diz Krishna a Arjuna.

122Mircea ELIADE, Imagens e símbolos, pp. 65-66. 123Dever que é entendido não num sentido formal e vazio,

à maneira kantiana, mas como o dever ou vocação ligado à sua função social, ao lugar concreto de cada um na estrutura social e, em última instância, cósmica. Assim, o dever do brahmane é diferente do dever do príncepe (kshatrya), e ambos diferem também dos deveres relativos às outras castas (Madeleine BIARDEAU, Clefs pour la pensée hindoue, pp. 57-94). 124Bhagavadgîta, II, 38.

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A priori, todas as vias estão abertas, tanto no alto como em baixo. Cada ser, condicionado por uma delas, nada tem a temer nem nada a esperar, senão aquilo que derivará impessoalmente da natureza dessa via. No sentido mais absoluto, cada coisa e cada ser são abandonados a si próprios. Julius Evola

3.

Conclusão

Fizemos, tal como Ricœur, o percurso em simpatia de uma série de mitos que procuram sondar o insondável, a origem destino último do homem, e a partir daí dar um sentido, uma direcção, para aquilo que o homem procura viver, para o seu conhecimento e para a sua acção125. Chegou a hora de colocarmos as mesmas questões que ele: Podemos viver simultaneamente em todos estes universos míticos? Seremos nós portanto, nós os filhos da crítica, nós os homens de memória imensa, os D. Juan do mito? Cortejá-los-emos todos alternadamente? E se tivéssemos alguma razão para eleger um contra todos, porque tínhamos necessidade de prestar tanta atenção e compreensão a mitos que diríamos abolidos e mortos?126

126Finitude

et culpabilité, p. 441: “Pouvons-nous vivre dans tous ces univers mythiques a la fois. Serons-nous donc, nous les enfants de la critique, nous les hommes à la mémoire immense, les Don Juan du mythe? Les courtiserons-nous tous à tour de rôle?

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A questão é tão mais pertinente quanto é certo que para nós não estão em causa apenas mitos abolidos e mortos, mas mitos que continuam a viver no coração e na alma de outros seres, humanos como nós mas diferentes de nós também, não tanto na cor da pele como sobretudo nos mitos com que dizem o mundo e o seu lugar no mundo. Como dissemos logo na introdução, e ao contrário de Ricœur, não podemos abordar o universo dos mitos a partir da perspectiva privilegiada de um determinado mito, embora também não queiramos “fazer-nos puros espectadores, sem peso, sem memória, sem perspectiva, e tudo olhar com uma igual simpatia”127. A nossa intenção é decididamente, tal como a de Ricœur, uma intenção hermenêutica, isto é, de compreensão de si e de apropriação, e não de indiferença. Todavia, em nós, de algum modo, o círculo encontra-se quebrado: queremos ainda compreender para crer, mas aquela crença que devia servir de base ao nosso compreender encontra-se desfeita precisamente pela multiplicidade dos textos que dizem o ser do mundo e do homem, e que nos deixa perplexos e interditos. Interrogamo-nos assim a partir de ruínas, e com a consciência de que essas ruínas derivam precisamente do modo como construímos o edifício. Não somos nós os herdeiros do espírito crítico grego, que o cristianismo conservou e transmitiu? Como sair deste impasse, como reconstruir a verdade, a sanidade e a vida? Que podemos nós aproveitar destes mitos que, num certo sentido, já não passam de meros restos, meros vestígios, mas que apesar de tudo ainda nos interpelam tanto? A questão é imponente, e não é nossa ambição resolvê-la cabalmente. Todavia, é ela que orienta o sentido do diálogo que queremos continuar com

Et si nous avions quelque raison d’en élire un contre tous, qu’avions-nous besoin de prêter tant d’attention et de compréhension à des mythes que nous dirions abolis et morts?” 127Ib.

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Ricœur, numa tentativa de, através dele, ver um pouco mais além. Parece-nos, com efeito, que para lá da primazia declarada do mito adâmico e da salvação pela esperança, uma outra direcção se esboça a partir da leitura do discurso de Ricœur, onde é possível vislumbrar outra solução para o problema, mais consentânea com o nosso estado de indigência espiritual e com o respeito que nos merecem outras formulações da relação do homem com o sagrado.

3.1. O desejo rectificado

O problema que Ricœur procura solucionar, ou pelo menos melhor compreender, através do recurso aos símbolos e aos mitos, é o problema do mal. Para além da sobredeterminação cultural do termo, que nos levou a algumas reservas na sua utilização, ele significa para Ricœur a falta, o sofrimento, a morte, assim como tudo aquilo que no mundo e na história parece injustificável em termos estritamente éticos e, por aí, racionais. É a crise do sagrado, pois através do mal o homem faz a experiência radical da sua contigência e da sua impotência. Neste sentido o mal representa uma experiência universal que força o homem a ripostar, a agir contra, a tomar posição, dado que é o seu desejo, na dupla acepção de desejo de viver e desejo de felicidade, que se encontra defraudado. É precisamente aqui, no tema do desejo, que cremos encontrar aquele fio condutor que nos permitirá percorrer o universo dos mitos e articular o seu dizer com a reflexão ricœuriana, alcançando uma formulação que, porventura modesta, possa justificar a nossa acção sem atraiçoar o respeito que devemos a todas as formas através das quais o homem tentou exprimir o absoluto, ou através das quais o absoluto se exprimiu no/ao homem.

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Ao fazer o percurso dos mitos, por diversas vezes o tema do desejo vem ao de cima, quase sempre de forma significativa. No mito de criação, encontramo-lo em relação com a história de Gilgamesh, que parte em busca da imortalidade. É talvez onde o tema se encontre na sua forma mais nua, despojado de considerações morais e religiosas no sentido habitual do termo, relacionado unicamente com as possibilidades e limites humanos. Como diz Ricœur, “a demanda de Gilgamesh não tem nada a ver com o pecado, mas unicamente com a morte, inteiramente despojada de sentido ético e com o desejo de imortalidade”128. O desejo não tem conotação positiva ou negativa, a não ser relacionado com a capacidade ou incapacidade do homem para realizá-lo, embora se esboce já o tema da inveja divina que impõe limites: É verdade que Gilgamesh e o seu companheiro matam o gigante da floresta e ainda o «touro do céu» enviado contra eles por ter maldito os deuses. Mas esta morte não tem nenhuma significação culpada; é ainda na perspectiva do desejo de imortalidade que é preciso interpretá-la; significa que o desejo do homem é de partilhar a imortalidade dos deuses; é a inveja dos deuses que faz deste desejo de imortalidade a transgressão de um limite, figurado pela destruição do gigante e do touro do céu. 129 Encontra-se um eco da mesma atitude no Yoga clássico de Patañjali, apresentado como uma técnica pura de libertação, cujo resultado depende unicamente do poder e da vontade do homem em pô-la em prática até às últimas con-

128Ib.,

p. 333: “La quête de Gilgamesh n’a rien à voir avec le péché, mais seulement avec la mort, entièrement dépouillée de sens éthique et avec le désir d’immortalité.” 129Ib., p. 334: “Il est vrai que Gilgamesh et son compagnon tuent le géant de la forêt et encore le «taureau du ciel» envoyé contre eux pour avoir maudit les dieux. Mais ce meurtre n’a aucune signification coupable; c’est encore dans la perspective du désir d’éternité qu’il faut l’interpréter; il signifie que le désir de l’homme est de partager l’immortalité des dieux; c’est la jalousie des dieux qui fait de ce désir d’immortalité la transgression d’une limite, figurée par la destruction du géant et du taureau du ciel.”

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sequências. “A libertação deve ser, por assim dizer, conquistada por meio de alta luta”130, implicando uma atitude decididamente viril. Todavia, ao contrário da Babilónia, em que o herói fracassa e é reduzido à sua condição humana, demasiado humana, a Índia viveu desde sempre sob o signo dos «libertos em vida», dos «homens-deuses» 131, daqueles que demandaram e alcançaram a imortalidade. No mito trágico esboça-se também o tema do desejo, sob a forma da hybris, a desmesura que não é unicamente humana, mas mergulha, através da figura do deus que desencaminha, na própria maldade do ser, dos deuses que, “saídos da luta e votados à dor, têm uma espécie de finitude, a que convém a imortais; há uma história do divino; o divino devém, através de cólera e sofrimento”132; o trio formado por Zeus, Prometeu e Io, no Prometeu encadeado de Ésquilo, é uma das melhores representações plásticas desse encadeamento fatal entre desejo, cólera e sofrimento a nível de todo o existente: deuses, titãs, humanos, a própria natureza, na forma do Cáucaso informe ao qual Prometeu está encadeado. O tema encontra-se também no pensamento hindu, como o mito de Indra o revela, e como Mircea Eliade explica: o homem não é o único a sofrer; a dor é uma necessidade cósmica, uma modalidade ontológica à qual é votada qualquer «forma» que se manifeste como tal. Seja alguém deus, ou então minúsculo insecto, o simples facto de existir no tempo, de ter uma duração, implica a dor,133

130Mircea ELIADE, Le yoga. Immortalité et liberté, p. 131Ib., pp. 100-104 132Finitude et culpabilité, p. 363: “Les dieux, issus de

46.

la lutte et voués à la douleur, ont une sorte de finitude, celle qui convient à des imortels; il y a une histoire du divin; le divin devient, à travers colère et souffrance.” 133Mircea ELIADE, Le yoga. Immortalité et liberté, p. 24: “L’homme n’est pas seul à souffrir; la douleur est une nécessité cosmique, une modalité ontologique à laquelle est vouée toute «forme» qui se manifeste comme telle. Que l’on soit dieu, ou bien minuscule insecte, le simple fait d’exister dans le temps, d’avoir une durée, implique la douleur.”

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embora não exista aquela associação entre dor e culpabilidade que existe no pensamento judaico e que Ricœur crê encontrar igualmente no pensamento grego. A maioria dos homens está condenada a permanecer imersa nesta dor cósmica, através do desejo que a mantém presa ao horizonte imediato da vida e dos seus objectivos limitados, que a torna solidária com este Cosmos ilusório, alimentando o jogo sem fim dos vâsanâ ou potencialidades subconscientes que determinam a experiência, nesta e noutras vidas. “A verdade é oculta por este eterno inimigo do sábio que, sob a forma do desejo, é um fogo insaciável. Tem a sua sede nos sentidos, na percepção, no pensamento; é por eles que, mascarando a verdade, desvia o espírito.” 134 Desenha-se aqui uma aproximação entre a Índia e o orfismo, prolongado no pensamento platónico, que exprime este poder do desejo, ligado também à ignorância e à ilusão, numa citação que Ricœur repete por diversas vezes: “o espantoso desta prisão [a prisão das paixões corporais], a filosofia deu-se conta, é que ela é obra do desejo e que aquele que mais concorre para carregar o encadeado com as suas cadeias é talvez ele próprio.”135 Tal como na Índia, a reiteração ilimitada da existência presa do desejo e do sofrimento leva a uma ultrapassagem da ideia de sobrevivência, substituída pela de libertação: é “à própria alternância da vida e da morte, à reiteração, que é necessário subtrair-se; a alma «divina», é a que pode ser liberta desta geração mútua dos estados contrários, da «roda das gerações»”136. No mito adâmico encontra-se também uma alusão a este ciclo infernal do desejo, cuja origem radica precisamente na queda ou desvio representada pela

134Bhagavadgîta, III, 39-40. 135Fédon, 82 d, cit. em Finitude et culpabilité, p. 397. 136Finitude et culpabilité, pp. 425-426: “L’idée même

de survie est en voie de dépassement; c’est bien plutôt à l’alternance même de la vie et de la mort, à la réitération, qu’il importe de se soustraire; l’âme «divine», c’est celle qui peut être délivrée de cette génération mutuelle des états contraires, de la «roue des générations».”

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desobediência de Adão, fazendo uma vez mais do mal ou do sofrimento qualquer coisa de conatural à história e, através da figura da serpente, ao próprio cosmos enquanto manifestação ou criação. A era aberta à liberdade pela falta é uma certa experiência do infinito que nos mascara a situação finita da criatura, a finitude ética do homem. De ora avante o mau infinito do desejo humano — o sempre outro, o sempre mais — que anima o movimento das civilizações, o apetite de prazer, de possessão, de poder, de conhecimento — parece constituir a realidade humana. 137 A vida humana é assim colocada, na grande maioria destes universos mitológicos, sob a égide do desejo que cega, que desvia, lançando o homem num ciclo infindável de prazer, dor e desejo, a ponto de o pensamento hindu fazer mesmo da eliminação do desejo condição sine qua non de libertação. E no entanto, pode-se legitimamente duvidar que seja o desejo o próprio mal, e, mais do que isso, pode-se perfeitamente aceitar, tal como Ricœur, que é ele que faz a própria unidade do homem ou de qualquer indivíduo, na medida em que se pode identificá-lo, enquanto eros platónico e freudiano, com o conatus de Espinosa, enquanto esforço para perseverar no ser.138 Neste sentido, poderíamos mesmo dizer: o homem é desejo. Como conciliar este aspecto com a maldição que os mitos parecem estender sobre o desejo humano? Os mitos que temos vindo a abordar não são apenas mitos do Início mas também do Fim, conferindo à experiência humana uma orientação, uma tensão 139. São mitos da origem do mal e do homem, mas são também mitos da salva137Ib.,

p. 394: “L’ère ouverte à la liberté par la faute est une certaine expérience de l’infini qui nous masque la situation finie de la créature, la finitude éthique de l’homme. Désormais le mauvais infini du désir humain — le toujours autre, le toujours plus — qui anime le mouvement des civilisations, l’appétit de plaisir, de possession, de pouvoir, de connaissance — semble constituer la réalité humaine.” 138O conflito das interpretações, pp. 334-335. 139Finitude et culpabilité, pp. 310-311.

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ção ou da libertação. É nesta perspectiva que eles não se limitam a descobrir o desejo na raiz de todos os males que afectam o homem, mas podem ser vistos simultaneamente como uma espécie de pedagogia, orientando o esforço de existir do homem numa determinada direcção, levando-o a escapar ao desejo cego que o torna, tal como ao herói trágico, involuntariamente culpado. Assim, o mito de criação alista o homem na acção criadora e ordenadora do deus, o mito trágico rectifica a sua visão através dos sentimentos de piedade e terror em relação ao sofrimento injustificado, o mito da alma exilada obriga-o a separar e a purificar o desejo através do conhecimento, enquanto o mito adâmico desvia a atenção do seu horizonte imediato e restrito para o inserir numa totalidade que se anuncia como esperança e por isso mesmo é compatível com a sua liberdade. Formulados desta maneira, é difícil preferir um ao outro, e não é de estranhar que Ricœur acabe por englobá-los a todos, embora de forma subordinada, no mito adâmico. Todavia, para além da esperança, esboça-se em Ricœur, através da meditação sobre a figura de Job, uma outra perspectiva, que poderíamos caracterizar como a do desejo rectificado, fruto de uma sabedoria que, tal como a sabedoria trágica, não pode ser ensinada, mas orienta-se para uma “renúncia aos próprios desejos cuja ferida gera a queixa: renúncia em primeiro lugar ao desejo de ser recompensado pelas suas virtudes; renúncia ao desejo de ser poupado pelo sofrimento”140. Talvez estejamos finalmente a sair do mito, no sentido de alcançarmos uma sabedoria emancipada de qualquer laço com um mito específico141, mas que pode ser a lição de todos eles. Ricœur aponta aqui para um possível sobreposição da

140Lectures

3. Aux frontières de la philosphie, p. 233: “L’horizon vers lequel se dirige cette sagesse me paraît être un renoncement aux désirs mêmes dont la blessure engendre la plainte: renoncement d’abord au désir d’être récompensé pour ses vertus; renoncement au désir d’être épargné par la souffrance.” 141“On retrouve ici la figure de Job qui aime Dieu pour rien. Mais en même temps la riposte au mal de la sagesse s’est émancipée de tout lien avec une religion spécifique.” (Olivier MONGIN, Paul Ricœur, p. 230).

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sabedoria judaico-cristã com a sabedoria budista, mas também o sage hindu, com o olhar purificado pela contemplação da sucessão infinita dos mundos, nos mandava aceitar com equanimidade tanto o prazer como a dor, o sucesso como o fracasso, renunciando ao fruto das acções. É-nos dado agir, mas a nossa acção, como diz Lévinas, representante do outro lado da nossa tradição, “enquanto que orientação absoluta para o Outro — enquanto sentido — só é possível na paciência, a qual, levada ao limite, significa, para o Agente: renunciar a ser o contemporâneo do resultado, agir sem entrar na Terra Prometida”142. Chegados a este ponto, não nos é possível dizer muito mais. Este desejo rectificado, não-narcísico, que talvez seja aquilo que possa ser propriamente chamado amor, introduz-nos numa dimensão que talvez já não seja própriamente humana, como o parecem querer significar uma série de formulações tradicionais de carácter mais ou menos paradoxal: Jesus diz que “quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á” (Lucas, 9, 24), e o yogi, no final do percurso que o leva à libertação, já não se encontra a si mesmo como homem. A nós, que continuamos humanos, mas que estamos em vias de perder as ilusões, resta-nos, como a Ricœur, “discernir no sofrimento um valor purgativo e educativo”143, uma rectificação do olhar e do desejo, e contentarmo-nos no máximo com um Deus sem os atributos da «providência», um Deus que não nos protege mas nos entrega aos perigos de uma vida digna de ser chamada humana 144.

142Emmanuel

LEVINAS, Humanisme de l’autre homme, p. 42: “En tant qu’orientation absolue vers l’Autre — en tant que sens — l’œuvre n’est possible que dans la patience, laquelle, poussée à bout, signifie, pour l’Agent: renoncer à être le contemporain de l’aboutissement, agir sans entrer dans la Terre Promise.” 143Lectures 3. Aux frontières de la philosphie, p. 232. 144O conflito das interpretações, p. 448.

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BIBLIOGRAFIA

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Lectures 3. Aux frontières de la philosophie, Paris, Seuil, 1994.

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Outros textos •

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ZAEHNER, R. C., (ed. e trd.), Hindu scriptures, Londres, J. M. Dent & Sons, 1966.

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ÍNDICE

0. INTRODUÇÃO.................................................................................................................... 1 1. DO SÍMBOLO AO MITO...................................................................................................6 1.1. O problema do mal ..................................................................................................6 1.2. A simbólica do mal................................................................................................13 1.3. Mitos e símbolos primários...................................................................................20 2. OS “MITOS” DO PRINCÍPIO E DO FIM.....................................................................25 2.1. A função simbólica dos mitos..............................................................................27 2.1.1. Criteriologia do mito................................................................................27 2.1.2. Tipologia dos mitos..................................................................................33 2.2. O ciclo da exterioridade.......................................................................................36 2.2.1. O drama de criação e a visão «ritual» do mundo .................................38 2.2.2. O deus mau e a visão «trágica» da existência......................................40 2.2.3. O mito da alma exilada e a salvação pelo conhecimento ...................44 2.3. O mito adâmico e a visão «escatológica» da história.......................................47 2.4. A mitologia hindu: eterno retorno e libertação ................................................52 2.4.1. Mitos hindus do tempo e da eternidade ...............................................56 2.4.2. Eterno retorno e libertação.....................................................................59 2.4.3. A acção desinteressada...........................................................................63 3. CONCLUSÃO ...................................................................................................................66 3.1. O desejo rectificado ..............................................................................................68 BIBLIOGRAFIA....................................................................................................................76

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