Os animais e o homem O Livro dos Espíritos (LE), Parte Segunda, Capítulo XI, questões 592 a 610
Às vezes parece difícil estabelecer uma linha de demarcação no que se refere à inteligência do homem e dos animais. No entanto, o homem é um ser à parte, que desce às vezes muito abaixo ou que pode elevar-se muito alto. No físico, o homem é como os animais e menos bem provido que muitos dentre eles; a Natureza lhes deu tudo aquilo que o homem é obrigado a inventar com a sua inteligência, para prover às suas necessidades e à sua conservação. Seu corpo se destrói como o dos animais, isto é certo, mas o seu Espírito tem um destino que só ele pode compreender, porque só ele é completamente livre. Pobres homens, que se rebaixam mais do que os brutos! Reconhecei o homem pelo pensamento de Deus. (LE 592) O instinto domina na maioria dos animais: mas há os que agem por uma vontade determinada. É que têm inteligência, porém ela é limitada. Além do instinto, não se poderia negar a certos animais a prática de atos combinados, que denotam a vontade de agir num sentido determinado e de acordo com as circunstâncias. Há neles, portanto, uma espécie de inteligência, mas cujo exercício é mais precisamente concentrado sobre os meios de satisfazer as suas necessidades físicas e prover à conservação. Não há entre eles nenhuma criação, nenhum melhoramento; qualquer que seja a arte que admiremos em seus trabalhos, aquilo que faziam antigamente é o mesmo que fazem hoje, nem melhor nem pior, segundo formas e proporções constantes e invariáveis. Os filhotes separados de sua espécie não deixam de construir o seu ninho de acordo com o mesmo modelo, sem terem sido ensinados. Se alguns são suscetíveis de uma certa educação, esse desenvolvimento intelectual, sempre fechado em estreitos limites, é devido à ação do homem sobre uma natureza flexível, pois não fazem nenhum progresso por si mesmos, e esse progresso é efêmero, puramente individual, porque o animal, abandonado a si próprio, não tarda a voltar aos limites traçados pela Natureza. (LE 593) 1
Os animais não têm uma linguagem formada de palavras e de sílabas; mas possuem um meio de se comunicarem entre si. Eles se dizem muito mais coisas do que supomos, mas a sua linguagem é limitada, como as próprias idéias, às suas necessidades. (LE 594) Os animais, sendo dotados da vida de relação, têm meios de se prevenir e de exprimir as sensações que experimentam. O homem não tem o privilégio da linguagem, mas a dos animais é instintiva e limitada pelo círculo exclusivo das suas necessidades e das suas idéias, enquanto a do homem é perfectível e se presta a todas as concepções da sua inteligência. Aqueles que não possuem voz compreendem-se por outros meios. Os peixes que emigram em massa, bem como as andorinhas, que obedecem ao guia, devem ter meios de se advertir, de se entender e de se combinar. Talvez o façam entre si, ou talvez a água seja um veículo que lhes transmita certas vibrações. Seja o que for, é incontestável que eles dispõem de meios para se entenderem, da mesma maneira que todos os animais privados de voz, que realizam trabalhos em comum. Deve- se admirar, diante disso, que os Espíritos possam comunicar-se entre eles sem o recurso da palavra articulada? (Ver item 282) (LE 594 a) Os animais não são simples máquinas, como supomos, mas sua liberdade de ação é limitada pelas suas necessidades, e não pode ser comparada à do homem. Sendo muito inferiores a este, não têm os mesmos deveres. Sua liberdade é restrita aos atos da vida material. (LE 595) Descartes ensinava que os animais são máquinas, agindo segundo as leis naturais, por não terem espírito. Essa concepção, que no tempo de Kardec era ainda bastante difundida, prevalece até hoje entre a maioria dos homens. Os Espíritos a contestaram, como se vê, e a sua opinião é referendada pelas ciências. (Nota de J. Herculano Pires) A aptidão de certos animais para imitar a linguagem do homem vem da conformação particular dos órgãos vocais, no caso de algumas aves, secundada pelo instinto da imitação. O símio imita os gestos; certos pássaros imitam a voz. (LE 596) Pois se os animais têm uma inteligência que lhes dá uma certa liberdade de ação, há neles um princípio independente da matéria, que sobrevive ao corpo. (LE 597) Esse princípio é também uma alma, por assim dizer; isso depende do sentido em que se tome a palavra; mas é inferior à do homem. Há entre a alma dos animais e a do homem tanta distância quanto entre a alma do homem e Deus. (LE 597 a) A alma dos animais conserva após a morte sua individualidade, mas não a consciência de si mesma. A vida inteligente permanece em estado latente. (LE 598) A alma dos animais não pode escolher a espécie em que prefira encarnar-se. Ela não tem o livre arbítrio. (LE 599) A alma do animal, sobrevivendo ao corpo, numa espécie de erraticidade, pois não está unida a um corpo. Mas não é um Espírito errante. O Espírito errante é um ser que pensa e age por sua livre vontade; o dos animais não tem a mesma faculdade. É a consciência de si mesmo que constitui o atributo principal do Espírito. O Espírito do animal é classificado após a morte, pelos Espíritos incumbidos disso, e utilizado quase imediatamente: não dispõe de tempo para se pôr em relação com outras criaturas. (LE 600) Os animais seguem uma lei progressiva, como os homens, e é por isso que nos mundos superiores, onde os homens são mais adiantados, os animais também o são, dispondo de meios de comunicação mais desenvolvidos. São, porém, sempre inferiores e submetidos aos homens, sendo para estes servidores inteligentes. Nada há nisso de extraordinário. Suponhamos os nossos 2
animais de maior inteligência como o cão, o elefante, o cavalo, dotados de uma conformação apropriada aos trabalhos manuais, o que não poderiam fazer sob a direção do homem? (LE 601) Os animais progridem como o homem, não por sua própria vontade, mas pela força das coisas. É por isso que, para eles, não existe expiação. (LE 602) Nos mundos superiores, os animais não conhecem a Deus. O homem é um deus para eles, como antigamente os Espíritos foram deuses para os homens. (LE 603) Tudo se encadeia na Natureza (vide LE 540), por liames que não podemos ainda perceber, e as coisas aparentemente mais disparatadas têm pontos de contato que o homem jamais chegará a compreender, no seu estado atual. Pode entrevê-los, por um esforço de sua inteligência, mas somente quando essa inteligência tiver atingido todo o seu desenvolvimento e se libertado dos preconceitos do orgulho e da ignorância poderá ver claramente na obra de Deus. Até lá, suas idéias limitadas lhe farão ver as coisas de um ponto de vista mesquinho e acanhado. Devemos saber que Deus nunca se contradiz e que tudo, na Natureza, se harmoniza através de leis gerais, que jamais se afastam da sublime sabedoria do Criador. (LE 604) A inteligência é assim uma propriedade comum, um ponto de encontro entre a alma dos animais e a do homem, mas os animais não têm senão a inteligência da vida material; nos homens, a inteligência produz a vida moral. (LE 604 a) O homem possui uma dupla natureza: a natureza animal e a espiritual, mas não significa que tenha duas almas. O corpo tem os seus instintos, que resultam da sensação dos órgãos. Pelo seu corpo, o homem participa da natureza dos animais e dos seus instintos; pela sua alma, participa da natureza dos Espíritos. (LE 605) Assim, além das suas próprias imperfeições, de que o Espírito deve despojar-se, deve ele lutar contra a influência da matéria. Quanto mais inferior é ele, mais apertados são os laços entre o Espírito e a matéria. A alma do animal e a do homem são distintas entre si, de tal maneira que a de um não pode animar o corpo criado para o outro. Mas se o homem não possui uma alma animal, que por suas paixões o coloque no nível dos animais, tem o seu corpo, que o rebaixa freqüentemente a esse nível porque o seu corpo é um ser dotado de vitalidade, que tem instintos, mas ininteligentes e limitados ao interesse de sua conservação. O Espírito, encarnando-se no corpo do homem, transmite-lhe o princípio intelectual e moral, que o torna superior aos animais. As duas naturezas existentes no homem oferecem às suas paixões duas fontes diversas: umas provêm dos instintos da natureza animal, outras das impurezas do Espírito encarnado, que simpatiza em maior ou menor proporção com a grosseria dos apetites animais. O Espírito, ao purificar-se, liberta-se pouco a pouco da influência da matéria. Sob essa influência, ele se aproxima dos brutos; liberto dessa influência eleva-se ao seu verdadeiro destino. (LE 605 a) Os animais tiram o princípio inteligente, que constitui a espécie particular de alma de que são dotados, do elemento inteligente universal. (LE 606) A inteligência do homem e a dos animais emanam, portanto, de um princípio único; mas no homem ela passou por uma elaboração que a eleva sobre a dos brutos. (LE 606 a) A alma do homem, em sua origem, assemelha-se ao estado de infância da vida corpórea, que a sua inteligência apenas desponta e que ela ensaia para a vida (Ver item 190). O Espírito cumpre essa primeira fase numa série de existências que precedem o período que chamamos de Humanidade. (LE 607)
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A alma teria sido, assim, o princípio inteligente dos seres inferiores da criação. É nesses seres, que estamos longe de conhecer inteiramente, que o princípio inteligente se elabora, se individualiza pouco a pouco, e ensaia para a vida. É, de certa maneira, um trabalho preparatório, como o da germinação, em seguida ao qual o princípio inteligente sofre uma transformação e se torna Espírito. É então que começa para ele o período de humanidade, e com este a consciência do seu futuro, a distinção do bem e do mal e a responsabilidade dos seus atos. Como depois do período da infância vem o da adolescência, depois a juventude, e por fim a idade madura. Nada há, de resto, nessa origem, que deva humilhar o homem. Os grandes gênios sentem-se humilhados por terem sido fetos informes no ventre materno? Se alguma coisa deve humilhálos, é a sua inferioridade perante Deus e sua impotência para sondar a profundeza de seus desígnios e a sabedoria das leis que regulam a harmonia do Universo. Devemos reconhecer a grandeza de Deus nessa admirável harmonia que faz a solidariedade de todas as coisas na Natureza. Crer que Deus pudesse ter feito qualquer coisa sem objetivo e criar seres inteligentes sem futuro, seria blasfemar contra a sua bondade, que se estende sobre todas as suas criaturas. (LE 607 a) A Terra não é o ponto de partida da primeira encarnação humana. O período de humanidade começa, em geral, nos mundos ainda mais inferiores. Essa, entretanto, não é uma regra absoluta e poderia acontecer que um Espírito, desde o seu início humano, esteja apto a viver na Terra. Esse caso não é freqüente, e seria antes uma exceção. (LE 607 b) O Espírito do homem, após a morte, não tem consciência das existências que precederam, para ele, o período de humanidade. Isso porque não é senão desse período que começa para ele a vida de Espírito, e é mesmo difícil que se lembre de suas primeiras existências como homem, exatamente como o homem não se lembra mais dos primeiros tempos de sua infância, e ainda menos do tempo que passou no ventre materno. Eis porque os Espíritos nos dizem que não sabem como começaram. (Ver item 78). (LE 608) O Espírito, tendo entrado no período de humanidade, pode conservar os traços do que havia sido precedentemente, ou seja, do estado em que se encontrava no período que se poderia chamar anti-humano. Isso depende da distância que separa os dois períodos e do progresso realizado. Durante algumas gerações ele pode conservar um reflexo mais ou menos pronunciado do estado primitivo, porque nada na Natureza se faz por transição brusca; há sempre anéis que ligam as extremidades da cadeia dos seres e dos acontecimentos. Mas esses traços desaparecem com o desenvolvimento do livre arbítrio. Os primeiros progressos se realizam lentamente, porque não são ainda secundados pela vontade, mas seguem uma progressão mais rápida, à medida que o Espírito adquire consciência mais perfeita de si mesmo. (LE 609) Os Espíritos que disseram que o homem é um ser à parte na ordem da Criação não se enganaram, mas a questão não havia sido desenvolvida, e há coisas que não podem vir senão a seu tempo. O homem é, de fato, um ser à parte, porque tem faculdades que o distinguem de todos os outros e tem outro destino. A espécie humana é a que Deus escolheu para a encarnação dos seres que podem conhecê-lo. (LE 610) ***
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Leitura complementar Evolução e finalidade da alma Léon Denis A lei do progresso não se aplica somente ao homem; é universal. Há, em todos os reinos da Natureza, uma evolução que foi reconhecida pelos pensadores de todos os tempos. Desde a célula verde, desde o embrião errante, boiando à flor das águas, a cadeia das espécies tem-se desenrolado através de séries variadas, até nós. Cada elo dessa cadeia representa uma forma da existência que conduz a uma forma superior, a um organismo mais rico, mais bem adaptado às necessidades, às manifestações crescentes da vida; mas, na escala da evolução, o pensamento, a consciência e a liberdade só aparecem passados muitos graus. Na planta, a inteligência dormita; no animal, sonha; só no homem acorda, conhecese, possui-se e torna-se consciente; a partir daí, o progresso, de alguma sorte fatal nas formas inferiores da Natureza, só se pode realizar pelo acordo da vontade humana com as leis Eternas. É pelo acordo, pela união da razão humana com a razão divina que se edificam as obras preparatórias do reino de Deus, isto é, do reino da Sabedoria, da Justiça, da Bondade, de que todo ser racional e consciente tem em si a intuição. Assim, o estudo das leis da evolução, em vez de anular a espiritualidade do homem, vem, pelo contrário, dar-lhe uma nova sanção; ensina-nos como o corpo do homem pode derivar de uma forma inferior pela seleção natural, mas nos mostra também que possuímos faculdades intelectuais e morais de origem diferente, e esta origem achamo-la no Universo invisível, no mundo sublime do Espírito. A teoria da evolução deve ser completada pela da percussão, isto é, pela ação das potências invisíveis, que ativa e dirige esta lenta e prodigiosa marcha ascensional da vida do Globo. O mundo oculto intervém, em certas épocas, no desenvolvimento físico da Humanidade, como intervém, no domínio intelectual e moral, pela revelação medianímica. Quando uma raça que chegou ao apogeu é seguida de uma nova raça, é racional acreditar que uma família superior de almas encarna entre os representantes da raça exausta para fazê-la subir um grau, renovando-a e moldando-a à sua imagem. É o eterno himeneu entre o céu e a Terra, a infinita penetração da matéria pelo espírito, a efusão crescente da vida psíquica na forma em evolução. O aparecimento dos homens na escala dos seres pode explicar-se assim. O homem, demonstranos a embriogenia, é a síntese de todas as formas vivas que o precederam, o último elo da longa cadeia de vidas inferiores que se desenrola através dos tempos. Mas, isso é apenas o aspecto exterior do problema das origens, ao passo que amplo e imponente é o aspecto interior. Assim como cada nascimento se explica pela descida à carne de uma alma que vem do Espaço, assim também o primeiro aparecimento do homem no Planeta deve ser atribuído a uma intervenção das Potências invisíveis que geram a vida. A essência psíquica vem comunicar às formas animais evoluídas o sopro de uma nova vida; vai criar, para a manifestação da inteligência, um órgão até então desconhecido - a palavra. Elemento poderoso de toda a vida social, o verbo aparecerá e, ao mesmo tempo, a alma encarnada conservará, mediante seu invólucro fluídico, a possibilidade de entrar em relações com o meio donde saiu. A evolução dos mundos e das almas é regida pela Vontade Divina, que penetra e dirige toda a Natureza, mas a evolução física é uma simples preparação para a evolução psíquica e a ascensão das almas prossegue muito além da cadeia dos mundos materiais. 5
O que impera nas baixas regiões da vida é a luta ardente, o combate sem tréguas de todos contra todos, a guerra perpétua em que cada ser faz esforço para conquistar um lugar ao Sol, quase sempre em detrimento dos outros. Essa peleja furiosa arrasta e dizima todos os seres inferiores nos seus turbilhões. O nosso Globo é como uma arena onde se travam batalhas incessantes. A Natureza renova continuamente esses exércitos de combatentes. Na sua prodigiosa fecundidade, gera novos seres; mas logo a morte ceifa em suas fileiras cerradas. Essa luta, horrenda à primeira vista, é necessária para o desenvolvimento do princípio de vida, dura até ao dia em que um raio de inteligência vem iluminar as consciências adormecidas. É na luta que a vontade se apura e afirma; é da dor que nasce a sensibilidade. A evolução material, a destruição dos organismos é temporária; representa a fase primária da epopéia da vida. As realidades imperecíveis estão no Espírito; só ele sobrevive a esses conflitos. Todos esses invólucros efêmeros não são mais do que vestuários que vêm ajustar-se à sua forma fluídica permanente. Cobre-os com vestuários para representar os numerosos atos do drama da evolução no vasto palco do Universo. Emergir grau a grau do abismo da vida para tornar-se Espírito, gênio superior, e isto por seus próprios méritos e esforços, conquistar o futuro hora a hora, ir-se libertando dia a dia um pouco mais da ganga das paixões, libertar-se das sugestões do egoísmo, da preguiça, do desânimo, resgatar-se pouco a pouco das suas fraquezas, da sua ignorância, ajudando os seus semelhantes a se resgatarem por sua vez, arrastando todo o meio humano para um estado superior, tal é o papel distribuído a cada alma. Para desempenhá-lo, tem ela à sua disposição toda a série de existências inumeráveis na escala magnífica dos mundos. Tudo o que vem da matéria é instável; tudo passa, tudo foge. Os montes se vão pouco a pouco abatendo sob a ação dos elementos; as maiores cidades convertem-se em ruínas, os astros acendem-se, resplandecem, depois apagam-se e morrem; só a alma imperecível paira na Duração Eterna. O círculo das coisas terrestres aperta-nos e limita as nossas percepções; mas, quando o pensamento se separa das formas mutáveis e abarca a extensão dos tempos, vê o passado e o futuro se juntarem, fremirem e viverem o presente. O canto de glória, o hino da vida infinita enche os espaços, sobe do âmago das ruínas e dos túmulos. Sobre os destroços das civilizações extintas rebentam florescências novas. Efetua-se a união entre as duas humanidades, visível e invisível, entre aqueles que povoam a Terra e os que percorrem o Espaço. As suas vozes chamam, respondem umas às outras, e esses rumores, esses murmúrios, vagos e confusos ainda para muitos, tornam-se para nós a mensagem, a palavra vibrante que afirma a comunhão de amor universal. (Parte do capítulo IX, da obra O problema do ser, do destino e da dor, de Léon Denis)
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