O Reino De Deus E O Engajamento Nas Utopias Politicas

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O REINO DE DEUS E O ENGAJAMENTO NAS UTOPIAS POLITICAS Por Darleison Pereira* Resumo: Este artigo apresenta, embasado na Teologia da Libertação, a premissa do Reino de Deus entendido como escatologia Realizada. Diante disto é apresentado sistematicamente como as utopias podem atuar como incentivadoras das práticas políticas. Tendo em vista que a Escatologia Realizada gera uma participação e envolvimento no mundo no sentido de torná-lo mais justo e sensível aos oprimidos e excluídos. Palavras Chaves: Reino de Deus, Escatologia Realizada, utopias, política, Teologia da Libertação.

INTRODUÇÃO

Este artigo é fruto da identificação com as reflexões realizadas, principalmente pelos teólogos da Libertação, a partir da confluência dos termos: social, religioso e ético; no que tange a percepção da atuação de Deus na história. O tema principal e balizador deste artigo é o Reino de Deus e os desdobramentos deste termo com a história humana a partir da Escatologia Realizada, principalmente no contexto do mundo dos dois terços.

Objetiva-se, neste artigo, a partir da apresentação da cosmovisão da Teologia da Libertação com relação ao Reino de Deus demonstrar como a percepção deste termo altera o envolvimento político social dos sensíveis a esta ideologia. Consequentemente o labor destes teólogos no sentido de viabilizar os preceitos descritos por eles em sua teologia. Perceber-se-á neste artigo a diferenciação e as

*

O autor é graduado em Teologia e pós graduando em Teologia Sistemática pelo centro universitário

Isabela Hendrix.

2

conseqüências destas diferenças entre a denominada Escatologia Clássica e a Escatologia Realizada.

O arcabouço teórico é consequentemente o da Teologia da Libertação com seus principais representantes no cenário brasileiro, como: Leonardo e Clodovis Boff, João Batista Libânio e Maria Clara Bingemer, e com a contribuição de mais teólogos desta linha destacando-se, por exemplo, George Pixley. A partir desta pesquisa percebeu-se um declínio na produção literária sobre o tema nos últimos anos. Grande parte da bibliografia disponível e encontrada é da década de Oitenta.

O tema deste artigo se justifica devido a sua relevância, pois promove uma discussão a respeito da realidade dos(as) oprimidos(as) e excluídos(as) socialmente. Entende-se aqui que o foco da escatologia deve ser a promoção da esperança do Reino de Deus. Entende-se, entretanto, que esta esperança tem seu lugar na realidade terrena. Transportar essa esperança para um futuro, além da vida terrena, se incorre em um processo alienante e descomprometido com as realidades e necessidades humanas, principalmente à aqueles que são negados as condições mínimas.

Este artigo articula-se de forma progressiva: Primeiramente é apresentado o Reino de Deus segundo a perspectiva da Teologia da Libertação, o significado remoto deste termo e como este significado gera um engajamento no mundo no sentido de transformá-lo e faze-lo mais justo. Em seguida, é discutida a contribuição das utopias neste processo de construção de um mundo melhor e mais comprometido com a liberdade e a igualdade.

Após as definições teóricas, de espaço e de forma sobre os conceitos do Reino de Deus e de utopia, projeta-se no segundo momento deste artigo as dinâmicas de atuação destes conceitos no âmbito da política. Discutir-se-á quem são, por direito e promessa, os assistidos e amparados pelo Reino de Deus; a existência de práticas utópicas que dão vazão as reivindicações deste Reino instituído.

3

REINO COMO REALIDADE PRESENTE

O Reino de Deus é percebido, enfocado e experimentado de diversas formas/atitudes pelas várias linhas teológicas na contemporaneidade. O foco deste artigo está no entendimento deste termo segundo a lente hermenêutica da Teologia da Libertação (TdL) que compreende a atuação e relevância deste Reino não somente em uma realidade pós-terrena, mas na história e cotidiano da sociedade. Este entendimento se dá a partir de uma forte manifestação social em busca de sentido e esperança comunitária transportando a idéia da “proximidade de Deus” 1 para as realidades cotidianas. Entende-se esta dinâmica como escatologia realizada, é Deus através do seu Reino se aproximando do povo sofrido. A TdL entende que falar em escatologia é: [...] não responder a perguntas sobre o modo como acontecerão as últimas realidades. Não são afirmações descritivas, narrativas, mas implicam um discurso performativo. Não relatam, mas provocam as pessoas à responsabilidade, a tomar atitudes diante de sua realidade. Falam do absoluto de Deus em relação ao homem e do homem em relação a esse Absoluto, como Esperança, como Perdão, mas também como Justiça. Esse núcleo é vestido de imagens, reflexo de experiências, traduzidas dentro do espaço hermenêutico em que se vive.2

A concepção do Reino de Deus como Escatologia Realizada retoma, segundo Libânio3, os aspectos coletivos da Escatologia. A ênfase deixa de ser a alma do individuo e passa para a luta pela justiça, acolhimento, e liberdade do povo sofrido. O Reino de Deus posiciona-se em favor dos desfavorecidos, dos sem voz, daqueles que se enquadram no discurso proferido por Jesus encontrado nos Evangelhos e descrito como as Bem-aventuranças. Esta perspectiva não nega, entretanto, o sentido futuro do termo e suas implicações. Reino de Deus não é apenas futuro e utopia; é um presente e encontra concretizações históricas. Por isso deve ser pensado como um processo que começa no mundo e culmina na escatologia final. [...] Por um lado o 4 Reino é futuro e há de vir e, por outro lado, é presente.

1

LIBÂNIO; BINGEMER, 1996, p. 76.

2

Ibid, p. 27.

3

Ibid, p. 62.

4

BOFF, 2003, p. 27

4

O entendimento da escatologia como estritamente um projeto futuro, na Escatologia Clássica5, “dispensava de certa maneira o cristão de preocupar-se com as utopias”6. A preocupação neste sentido é com a pátria celestial que é a verdadeira pátria. Sendo assim para que investir em projetos na pátria terrestre. Entretanto, salienta Libânio, na Escatologia Realizada “os olhos voltam-se para o jogo, seu desenrolar, os lances decisivos, as táticas usadas, e não tanto se concentram no escore final. Ora, a Escatologia Clássica descuidava a trama do jogo, para lembrar ao homem continuamente a importância única, decisiva do final do jogo” 7.

A falta de preocupação com a realidade existencial terrestre acarretou na alienação do(a)s cristãos(ãs) referentes às “coisas deste mundo”. Esta falta de consciência gerou certa alienação aos adeptos da Escatologia Clássica que não se engajavam nas práticas de justiça e liberdade, princípios estes essenciais para a dinâmica do Reino de Deus compreendido como Escatologia Realizada. O Reino de Deus, na ótica da TdL, “é a revolução e a transfiguração total, global e estrutural desta realidade, do homem e do cosmos, purificados de todos os males e repletos da realidade de Deus.”8 O agente consumador desta nova realidade intraterrena é Jesus de Nazaré. Suas manifestações e pregação foram essencialmente no sentido de se instituir este Reino. O projeto fundamental de Jesus, segundo Boff, “é proclamar libertação de tudo o que estigmatiza: opressão, injustiça, dor, divisão, pecado, morte; e libertação para a vida, comunicação aberta do amor, a liberdade, a graça e a plenitude em Deus”9. O Reino de Deus, conforme Silva, “não é algo hermeticamente fechado, conforme estereótipos religiosos e sociais. Este é livre e se apresenta aberto àqueles que infundem suas vidas na vontade de paz e justiça divina. 10” Não existem fronteiras, 5

A Escatologia Clássica é entendida a partir da concepção tradicional que visa responder unicamente

as perguntas sobre o além. Maiores detalhes em: LIBÂNIO; BINGEMER, 1996, p. 27. 6

LIBÂNIO; BINGEMER, 1996, p. 31.

7

Ibid, p. 32.

8

BOFF, 2003, p. 23.

9

Ibid, p. 41.

10

SILVA, 2007, p. 23.

5

cabrestos, sistemas de dominação e correntes ideológicas que impeçam o clamor por liberdade e justiça que o Reino de Deus nesta perspectiva da escatologia realizada apresenta. “O reinado divino não se limita aos guetos religiosos e a seus legalismos, antes, manifesta-se de forma progressiva na ação do homem e da mulher que rejeitam seus individualismos e promovem a justiça de forma altruísta.11”

Desta forma, no ponto de vista da TdL, o Reino de Deus está comprometido com as práticas de justiça, de amor e liberdade, consequentemente com a denuncia das injustiças sociais, estruturais e humanitárias. Este comprometimento trás um viés político e social para esta linha teológica.

Na perspectiva da TdL, o Reino de Deus tem uma íntima relação entre esperança escatológica e práxis social, entendida aqui como este envolvimento político social. Isto se dá devido à compreensão que esta linha teológica tem a respeito do termo. A esperança cristã, vista como uma atitude escatológica do cristão perante o futuro da salvação, não pode ser entendida como uma realidade de fuga histórica. Pelo Contrário, em nome da esperança escatológica, todo aquele ou aquela que acredita na dialética salvífica, deve assumir uma práxis social de transformação das realidades históricas, na perspectiva da edificação do Reino de Deus entre nós.12

Compreendendo esta íntima relação entre a esperança escatológica e a práxis social, Libânio13 salienta que todo processo de cumplicidade entre estes termos deve levar ao encontro de uma nova situação histórica entre as pessoas; situação de fraternidade, de justiça, de solidariedade, em vista das exigências do Reino. Na ótica da Teologia da Libertação a relação entre a esperança escatológica e a práxis social não pode ser desassociada, pois conforme Boff14 o Reino de Deus abarca tudo: mundo, homem e sociedade. Para se entender estas relações do Reino segundo a TdL primeiramente é importante perceber a forma como ele é compreendido.

11

SILVA, 2007, p. 23.

12

VEDOATO, 2008, p. 03

13

LIBÂNIO, 1989, p. 157.

14

BOFF, 2003, p. 42.

6

A origem do termo e suas implicações sociais

George Pixley, teólogo da TdL, faz em seu estudo acerca do Reino de Deus a tentativa da retomada do sentido original deste termo. Segundo este autor a concepção primitiva e mais remota é a do Reino de Deus compreendido como o reino de liberdade e de justiça que se manifesta no seio da humanidade com forte viés político e revolucionário. Conforme Pixley15, Yahweh era conhecido inicialmente como um Deus libertador, que libertou os hebreus da tirania do faraó egípcio. Depois ajudou as diversas tribos de camponeses que viviam em Canaã por volta do séc. XIII a.C. a manter o espírito de liberdade em uma sociedade sem classes. Contudo no decorrer da história e das gerações posteriores o Reino de Yahweh (Deus) se transformou através da corte Real instituída em Israel e do templo em Jerusalém em uma ideologia de dominação. O termo Reino de Deus, a partir daí adquiri outro significado, às vezes alienante outras como instrumento de ideologias de dominação. Entretanto, segundo Pixley16, vozes proféticas, como a de Isaías, se levantaram em nome de Yahweh no sentido de restaurar o significado original do termo. Estas funções proféticas se destacam em toda história, até na contemporaneidade.

Percebe-se pela postura, ainda hoje, correntes teológicas muito distantes do sentido ideológico remoto associado ao termo Reino de Deus identificado por Pixley em sua obra descrita acima. Libânio17 classifica estas correntes teológicas de adeptos à Escatologia Clássica. Geralmente estas correntes relacionam este termo a um futuro existencial – pós morte. Como aponta Campos18, estas correntes se acomodam com relação aos problemas políticos e sociais. Movimentos como os pré-milenistas e especialmente os dispensacionalistas advogam neste sentido. Estas posições teológicas geralmente são muito pessimistas com relação a realidade política e

15

PIXLEY, 1986, p. 65.

16

Ibid.

17

LIBÂNIO; BINGEMER, 1996, p. 57-68.

18

CAMPOS, 1998, p. 4.

7

social presente. Seu apego está na restauração completa de toda obra criada a partir da segunda vinda do Cristo.

Contudo para a teologia da Libertação o termo remete-se a concepção dada por Pixley do termo Reino de Deus como Liberdade e Justiça. Neste sentido é algo que remete ao presente – a realidade deste mundo. Esta visão trás consigo uma responsabilidade com os princípios deste Reino instituído, nesta realidade existencial terrena, que são: a paz, o amor, a justiça, misericórdia e a liberdade. Estes princípios foram proclamados pelos profetas de Yahweh e reafirmados como a essência da pregação de Jesus que profetizava, reafirmava e restabelecia os princípios originais do Reino de Deus. Com a sua ressurreição, Jesus, através do Espírito Vivificador que é derramado também sobre todo aquele que coaduna com ele, consuma o Reino da liberdade, o Reino de Deus.

Este Espírito Vivificador dá dinâmica ao Reino. Nele são fortalecidos e amparados os injustiçados, os sem voz, os marginalizados e excluídos. Conforme Costas 19, o Espírito clama e geme por justiça, paz, amor e misericórdia, sempre onde estes princípios estão sendo negados, omitidos ou negligenciados. Fazendo assim este Espírito torna realidade presente o Reino consumado por Jesus, reafirmando a perspectiva escatológica do Reino presente. Nesta perspectiva o futuro escatológico é adiantado e tem sua consumação, ainda que não plenamente, nesta realidade terrena. Com base nesta concepção escatológica, afirma-se que Jesus de Nazaré consumou o Escathón, isto é, o Reino de Deus é uma realidade presente, é a escatologia realizada. Com isto se inaugura um novo modo permanente de atuação de Deus na história humana, à vivificadora e consoladora ação do Espírito.

Entende-se que a dinâmica da realidade escatológica do Reino presente é marcada pela ação continua deste Espírito. Contudo para que essa dinâmica possa ser percebida e experimentada pela humanidade é imprescindível o engajamento utópico na efetivação ininterrupta desta realidade.

19

COSTAS, 1989, p. 59. Orlando Costa é teólogo Batista Latino Americano, destaca-se como

representante da teologia da encruzilhada, devido seu dialogo com várias correntes teológicas em seu contexto histórico social.

8

O espaço das utopias Compreende-se a partir da definição geral20 que a utopia se baseia nos sonhos e desejos humanos projetados a longo prazo, talvez em uma outra realidade que não esta. À consenso se compreende este conceito como algo inatingível, tão distante e remoto que se perde aos olhos humanos, mas é propósito deste artigo ampliar a definição do termo. Baseado em Libânio, redefini-se que “a utopia deve encontrar lugar entre o não existente e o factível, o projeto e a viabilidade, o atrativo e o concretável”21.

A utopia é entendia aqui como algo que pode e deve ser concretizado nesta realidade existencial terrena. Segundo Libânio “a utopia é a mola, o motor, o princípio vital da sociedade humana”22. Isto se dá devido à dupla experiência dos grupos humanos. De um lado, existem interiormente aspirações por convívio, fraternidade e felicidade com os seus semelhantes. Do outro lado, constatam a insuficiência das estruturas sociais presentes. Deste confronto, os grupos humanos imaginam e potencializam modelos melhores. Dá-se inicio então a um movimento no sentido de “dar lugar” a este tópos23 na história24. É a utopia ganhando forma no horizonte histórico. As utopias apresentam-se hoje como um projeto histórico a ser construído, possível de ser realizado historicamente e por isso motor de entusiasmo, de ação. Projeto, fruto do contraste do presente real com a capacidade imaginativa e de desejo do ser humano. Na sua última raiz, encontramos, não o desejo inconsciente da fuga à liberdade, da busca do útero materno, mas a sede de infinito, a abertura à Transcendência inata no homem, pela força do ato criativo de um Ser infinito, comunitário: Deus Trino. Esse ser humano constituído em sua autonomia de liberdade e consciência pelo ato criativo de Deus tem como horizonte o infinito. E tal dinamismo em direção ao infinito açula-lhe a fantasia criativa, projetando novos contextos humanos, em busca das superações dos limites, dos fracassos, das falhas 25 do presente real.

20

Segundo definição do Dicionário Aurélio utopia significa: Projeto irrealizável; quimera; fantasia.

21

LIBÂNIO, 1985, p. 40.

22

Ibid, p. 39.

23

O vocábulo tópos vem do grego e significa “não lugar”.

24

LIBÂNIO, 1985, p. 39; 40.

25

LIBÂNIO; BINGEMER, 1996, p.34

9

Para se entender a relação entre utopia e Reino de Deus Boff e Pixley26 afirmam que a concepção deste como uma realidade presente é valida somente se passar por mediações viáveis. Neste sentido, estes autores apresentam no texto bíblico especialmente dois casos em que os projetos Divinos utópicos foram transformados em realidade histórica.

No primeiro caso, as tribos camponesas de Yahweh reunidas em Canaã, após a libertação Divina do julgo do Egito, se organizaram em um projeto de vida social com leis igualitárias e sem dependência de reis, diferentemente das civilizações vizinhas. Desta forma viviam de maneira justa sem respaldo de um estado. Esta comunidade realizou este feito baseado na utopia de uma terra fértil que manava leite e mel, na realidade esta era a visão utópica da terra que foi, a partir da luta e esforço do grupo, transformada em realidade histórica.27

O fenômeno da validade das utopias pelas mediações viáveis também se repete no segundo caso. A comunidade cristã reunida em Jerusalém depois da morte e ressurreição de Jesus organizou-se de forma que suas necessidades comunitárias se tornaram comuns. Esta implementação no seu contexto social foi devido às utopias pregada por Jesus de uma sociedade igualitária em que os maiores deveriam servir aos menores, onde ninguém teria falta de comida e que não existiria diferença socioeconômica.28

Diante destas premissas é possível perceber a importância da utopia para a concretização do Reino de Deus. Pois, na medida em que se tem em mente a utopia de uma situação melhor isto gera a mobilização para a implementação destes sonhos na sociedade. Desta forma percebe-se a realidade presente do Reino de Deus e a sua luta contra as injustiças e opressões.

26

BOFF; PIXLEY,1986, p. 125, 126.

27

Ibid.

28

Ibid.

10

Libânio afirma que “a criação de utopias está intimamente ligada com as práticas políticas”29. Com esta afirmação demonstrar-se-á as implicações destas utopias políticas na concretização do Reino de Deus.

AS UTOPIAS POLÍTICAS E O REINO DE DEUS

O ser humano inserido na sociedade em algum momento toma decisões, age ou manifesta se politicamente. No contexto atual brasileiro, existe a compreensão de que só é político aquele(a) que se envolve com as questões da política institucional, nas instâncias legislativas ou executivas. Entretanto, todas as ações que envolvam a ordem/desordem social são políticas e os indivíduos engajados nestas ações são por isso agentes políticos. “Tudo que ultrapasse o âmbito estritamente pessoal ou das relações íntimas e incida sobre qualquer realidade social é político”30. A partir da leitura de Maar31, compreende-se que a política se articula através dos interesses. Os atos políticos existem em virtude dos interesses. Quando um determinado negócio de ordem social está em jogo, as forças políticas se articulam para viabilizar-lo ou impedir que este aconteça. Estas são as atividades políticas.

Quando se está em um grupo social existe a possibilidade de não se manifestar, se engajar ou tomar partido sobre questões internas ou externas a ele, contudo essa decisão também é política. A opção política destes(as) é a da alienação, que pode apontar para três sentidos. Conforme Aldé32, a alienação política está relacionada com o aspecto valorativo, à ininteligibilidade ou ao isolamento.

Na dimensão valorativa, o indivíduo(a) percebe a política como ineficaz, comprometida com interesses outros que não o bem coletivo. Na ininteligibilidade o mundo é considerado excessivamente complexo, o individuo(a) então abre mão do

29

LIBÂNIO, 1985, p. 39.

30

Ibid, p. 13.

31

MAAR, 1982. Nesta obra o autor esclarece as noções básicas sobre política e afins.

32

ALDÉ, 2001, p. 38.

11

seu papel de cidadão(ã) e membro atuante na sociedade. No aspecto do isolamento o individuo(a) “atribui baixo valor remunerativo a objetivos ou crenças que são tipicamente valorizados em determinada sociedade, característica típica do rebelde para quem a própria estrutura social situa-se fora dos padrões aceitáveis”33.

A perspectiva política do Reino de Deus não chama os seus participantes à alienação. Pelo contrário solicita, através do Espírito vivificador, que é o dinamizador do Reino presente, o engajamento histórico temporal nas utopias políticas do Reino. No sentido de viabilizá-las e concretizá-las para que assim o Reino se manifeste plenamente. Demonstrar-se-á nesta próxima seção a favor de quem este Espírito se manifesta; de onde vem o clamor do Espírito; a quem falta o direito da liberdade.

Os assistidos do Reino

Na percepção da TdL, entende-se que aos sofridos é negado a liberdade por faltarlhes o essencial. Chamaremos estes(as) sofridos(as) de pobres, mas não se trata somente da pobreza sócio-econômica, mas conforme Boff e Pixley 34, também da pobreza sócio-cultural. Os(as) pobres hoje são, segundo classificação de Boff e Pixley, os(as) que são marginalizados(as) e explorados(as) sócio-economicamente, os discriminados(as) por raça, etnia e por sexo, mais precisamente na realidade brasileira os(as) negros(as), os(as) índios(as), e as mulheres. Estas pobrezas sócioculturais “geralmente não se situam ao lado, mas dentro da pobreza sócioeconômica”35. Isto quer dizer que não são todos(as) os(as) negros(as) e mulheres discriminadas, mas aqueles(as) cuja condição sócio-econômica é desfavorável. E por fim os(as) novos(as) pobres dos grandes centros, que são em particular os drogados(as) e os aposentados(as).

Estes pobres são os escolhidos de Deus para receber o evangelho. A boa notícia para estes é que o Reino de Deus trás uma nova ordem sobre o cosmos, pois no

33

ALDÉ, 2001, p. 36, 37.

34

BOFF, PIXLEY, 1986, p. 27.

35

ALDÉ, 2001, p. 36.

12

seio do Reino estão o(a)s aflitos(as), o(a)s oprimidos(as), o(a)s necessitados(as), o(a)s

dependentes,

o(a)s

empobrecidos(as),

o(a)s

moribundos(as),

o(a)s

desamparados(as), o(a)s excluídos(as) e o(a)s infelizes. Para estes é que Jesus institui o seu Reino. O Reino de Deus é dos pobres.36 O projeto do Reino é de libertação, pois a situação de injustiça representa um desafio à justiça do Rei Messiânico. Deus, através de Jesus, tomou o partido dos pobres37.

São assistidos pelas utopias políticas do Reino presente os que não tem acesso aos princípios da justiça, da paz, do amor e por último de liberdade. Onde estes princípios são negados, negligenciados ou esquecidos o Espírito vivificador movimenta os sensíveis a estes princípios à utilização de práticas libertárias que tragam esperança, solidariedade e senso de justiça aos que sofrem e são marginalizados. Estas práticas são, em parte, concretizações das utopias políticas do Reino presente. A seguir destacam-se algumas práticas libertárias utilizadas pelo Espírito Vivificador na intenção de manter viva as utopias políticas do Reino.

A profecia como instrumento da utopia política

O Reino de Deus entendido até aqui como realidade presente convoca, através do Espírito vivificador, o(a)s sensíveis a esta realidade para a participação ativa na política. Este(a) agente político, conforme Boff38, não pode ser adepto da política do cassetete que tenta dirigir e dominar o povo pelo autoritarismo e coerção. Também não pode coadunar com a política do “tapinha nas costas”, que tenta manipular o povo e usa de demagogia. A política deste(a) agente tem que ser a das “mãos dadas”, que escuta os anseios do povo, que compreende o poder como serviço a coletividade, este é o(a) agente democrático.

Este(a) agente se coloca ao lado do povo, como seu representante e também participante, na função profética e engajada com o propósito de combater as

36

Evangelho de Lucas, Capítulo 6, verso 20.

37

BOFF, 2003, p. 27.

38

BOFF, 1986, p. 119.

13

opressões. Entende-se por função profética o ato de denunciar as injustiças e também lutar para a extinção das mesmas.

A participação política efetiva é feita por este(a) agente através da denúncia do abandono e do esquecimento pelas autoridades instituídas aos tipos de pobrezas descritos anteriormente. Neste sentido estes(as) agentes políticos democráticos agem como verdadeiros(as) profetas que não se calam nem se alienam ao sistema de opressão corrente. Contudo, para que este(a) agente político possa efetivamente contribuir como representante e aliado das massas é indispensável a consciência destas turbas no sentido de ser gente no mundo, daí a necessidade da gestação de um povo.

A consciência de povo como utopia política O que se percebe, segundo Boff39, é que por muito tempo no Brasil uma imensidão de indivíduos, que em vários aspectos tinham algo em comum, não participavam coletivamente da sociedade em função de sua não consciência de classe oprimida, eram as massas. Não havia também instituições que elaborassem e defendessem os interesses destas turbas com isso estas eram manipuladas. Por não saber se situar no mundo as massas são subjugadas e usurpadas dos seus direitos quer sejam eles básicos ou não. Contudo, a participação e interesse pelos assuntos da pólis efervescem nas massas uma outra consciência: Quando do seio da massa a vontade de participação começa a ganhar formas, então começa a se gestar um povo. Um povo se faz, não existe por si só. Ele resulta da prática de participação consciente e organizada.40

A partir desta conscientização da-se o surgimento das organizações populares; os sindicatos, as associações de bairro, os clubes de mulheres, mães e outros grupos. Percebe-se daí a importância da prática da conscientização das massas. Aquele que efervesce as massas nada mais é do que Espírito Vivificador que anseia pela consciência do povo. A utopia política do Reino de Deus se manifesta nesta prática 39

BOFF, 1986, p. 117.

40

Ibid, p. 118.

14

pela liberdade e autonomia que gera naquele(a)s que passam por este processo desalienante.

Destaca-se, também e por último, neste artigo o lugar de encontro e regozijo do Reino. Onde a utopia já se manifesta mais próximo da práxis. É aqui que o Espírito Vivificador alimenta, nutre e distribui vida.

A comunidade terapêutica como utopia do Reino

A utopia de um refúgio onde os indivíduos engajados nas causas do Reino e principalmente o povo oprimido pudessem ser encorajados e acalentados tem sua concretização na comunidade terapêutica. É imprescindível para o Reino de Deus um refúgio, não explicitamente um local físico, uma instituição nem tão pouco um esconderijo, mas um ajuntamento solidário para que se pudesse agir como instrumento do Espírito Vivificador como bálsamo e refrigério na cotidianidade. Não se afirma, contudo que as comunidades religiosas e afins não possam ser este refúgio. Pelo contrário, em grande número de casos estas comunidades são o braço atuante do Reino, transformando esta utopia em práxis libertária.

Leonardo Boff conseguiu perceber o movimento desta comunidade terapêutica em uma parcela da Igreja Católica Romana no Brasil: Surgiu o deslocamento físico e mental de um sem-número de religiosos que deixaram o centro para buscarem as periferias e aí compartilharem a fé, o sofrimento e a vida do povo oprimido. Emergiu entre os leigos um sentido social da solidariedade para com toda uma classe social, aquela dos trabalhadores explorados, dos desempregados e marginalizados do atual sistema de trabalho; a criação de círculos bíblicos, comunidades cristãs e movimentos de promoção e defesa dos direitos dos pobres nestes meios propiciou à Igreja descobrir as potencialidades humanizadoras e libertadoras do Evangelho e novas formas de se viver e organizar 41 historicamente a comunidade eclesial.

Percebe-se este mesmo comprometimento e práxis nas palavras de Cunha e Wood: “É preciso estar disposto a se relacionar como o povo, se envolver com os seus

41

BOFF, 1986, p. 37,38

15

problemas, suas lutas, suas dificuldades, anseios e sonhos”.42 É através desta disposição que se cria o sentido de comunidade terapêutica. Esta é a manifestação da Igreja de Cristo, não institucionalizada, embora, na maioria dos casos, pertencente a uma instituição.

A partir dos levantamentos apontados aqui se abre espaço para um canal de discussão no sentido de apontar outras utopias que possam ser vislumbradas, discutidas e concretizadas na força e no ímpeto do Espírito Vivificador que, conforme dito dá dinâmica ao Reino instituído.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta rápida incursão pela escatologia realizada, pelas utopias e também pela política, percebe-se a confluência destes, mesmo consciente dos significados e importância dos mesmos tratados isoladamente. O propósito deste artigo foi demonstrar a relevância da confluência de tais termos que se cruzam e dão novo significado a fé, a existência e ao cotidiano da humanidade. Especialmente daqueles que vivem no mundo dos dois terços, devido à discrepância e disparidade social que são assolados.

Na perspectiva aqui apresentada, segundo a TdL, o Reino de Deus como Escatologia Realizada se manifesta no meio dos pobres, dos injustiçados econômica e culturalmente. O clamor destes aflitos chega até os céus e volta a terra através do toque e manifestação do Espírito vivificador, que mobiliza os sensíveis a este Espírito para dar continuidade aos projetos e utopias libertárias e de justiça.

Demonstrou-se, a importância das utopias na manifestação deste Reino instituído, principalmente no que tange as atividades políticas. Quando se acredita e se investe na pátria terrestre é imprescindível o uso de políticas em favor dos princípios fundamentais do Reino de Deus: Justiça, amor, paz, liberdade e misericórdia. As utopias influenciam e direcionam tais práticas políticas, primeiramente para que 42

CUNHA; WOOD, 2003, p.108.

16

estas não se desfocalizem e depois principalmente para que o Reino seja vislumbrado em tudo e em todos.

Os termos confluídos aqui neste artigo: Reino de Deus/Escatologia Realizada, utopias e política; são uma tentativa de dinamizar a presença de Deus no seio da humanidade, através do Espírito Vivificador. Reafirma-se, por fim, a posição deste artigo sobre a cosmovisão libertária do Reino Presente. Cavalcanti afirma que: A liberdade sem justiça é falsa; a justiça sem liberdade é uma perversão. O exercício da democracia política por parte de todos os cidadãos pressupõe um mínimo de condições. Uma sociedade na qual se vivencia uma democracia social é uma sociedade sem miséria, sem marginalidade, sem fome, sem desemprego, sem analfabetismo e sem infância e velhice desamparada.43

Deste modo, baseado nestes artifícios e na realidade Brasileira invoca-se o Espírito Vivificador no sentido de sensibilizar a sociedade para os princípios do Reino e assim trabalhar inspirados pelas utopias políticas a amparar e iluminar todos os que anseiam por estes princípios.

43

CAVALCANTI, 2002, p. 261

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REFERÊNCIAS

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