O desenhador
Tem os olhos pequenos, fechando-os ainda mais quando os dedos movem a caneta pelo papel. A letra é miudinha Donde vem a minha arte? Nos meus desenhos estão as raízes invisíveis das minhas intenções, as calcaduras borrentas dos meus sentimentos e o espelho mágico onde se olham as minhas crenças e sonhos Apanha um livro da prateleira, de pasta preta e folhas amarelas, e lê: O Homem não tem Corpo diferente da sua Alma, pois o que chamamos Corpo é um pedaço da Alma percebido pelos cinco sentidos, as principais portas da Alma neste período da vida Traça com um lápis três seis substituindo os três os no título do poema de William Blake: A v6z d6 Diab6. Um sorriso estremece a sua face, volta para a mesa e continua a escrever entre os desenhos em tinta Sabemos com certeza que a nossa origem é a matéria e a evolução dela para a matéria animada ( primeiro erro sagrado diferençiar uma doutra ). É uma semente que perdura nos nossos cérebros e condiciona os nossos pensamentos, quer os racionais, quer os irracionais Os nossos organismos são pois baús com um tesouro antigo e esquecido, cheio de misterios e cujo mapa se perdeu no interior dele próprio. Mas podemos encontrá-lo em determinados estados: no sono, sob os efeitos das drogas oníricas, no êxtase religioso e por cima de tudo, na criação artística Nos meus próprios desenhos cada traço vem de remotos locales, um após outro vão-me sussurrando e eu lembro o mapa do tesouro. É o meu êxtase e também a minha droga. Dos sonhos já falei no princípio Volta atrás as páginas do caderno. A tinta é roxa Só acredito na irracionalidade do mundo e da existência, pois a Biologia sobre a nossa mente é também biologia, produto duma materialidade. Sim, tudo está nas nossas mentes, mesmo assim a Ciência não pode escapar da sua própria lógica Fica contrariado com a expressão da ideia. Desenha um traço qualquer e umas chamas habitam agora a página, entre as quais uma figura flutua com as mãos nas costas. Texto virado, e apagado, para imagem. Volta adiante Depois está toda a História Infinita da Infância, quando escutava o silêncio das imagens em caixotes cheios de livros duma geração anterior a mim. Legado de pais e duma cultura compartilhada, a mesma que num processo laborioso e cego deixa nos nossos cérebros uma nova história, uma mensagem mítica para compreender o mundo.
Desenha um crânio com um traço rápido enquanto pensa no longo caminho de ideias, pensamentos e paradigmas que mudaram na sua vida, tentando chegar à Verdade: perceber a natureza misteriosa da vida, inalcançável, multíplicel, como o reflexo da luz numa só gota de água O que pretendem muitas filosofias é despir-se da mistura legada pelos nossos organismos e pela nossa cultura. Atingir o primeiro traço para voltar a ele em vida. Então já não existe a morte, o regresso é paz De olhos fechados faz uma linha partida até formar um hexagrama, o símbolo que contém a sabedoria apreendida de todos os desenhos, um mantra gráfico para acalmar a procura febril do risco nu
David Alpuente