O BEIJO
Anteontem no metrô, seis da tarde, muito cansado após um duro dia de trabalho no escritório, eu pude presenciar algo digno de uma cena de cinema, uma daquelas coisas que rejuvenescem a alma, que nos fazem sorrir por dentro (bem, espero ter sorrido apenas por dentro e não ter ficado com aquela cara de tonto que esse tipo de situação romântica em geral nos impinge...) e que nos devolvem, além das forças quase exauridas, um pouco da fé, quase perdida, na humanidade: um beijo romântico. "Ah, isso a gente vê a todo momento", você poderia dizer, e eu até concordaria, em circunstâncias normais, mas não foram circunstâncias normais e muito menos aquele beijo foi um beijo dos que se vê por aí a cada dia no nosso dia-a-dia, ou eu sequer teria notado, ou melhor dizendo, notado é claro que eu teria, porém não o teria anotado, afinal eu estava sentado em um daqueles assentos que ficam bem defronte um do outro e com o trem quase vazio, já chegando na estação terminal, e
com meu instinto de observador voraz, o beijo não teria passado despercebido. "Tá, mas conta logo: o que tinha esse em especial de tão diferente assim?". Bem, não foi um beijo roubado, nem um beijo surgido de um impulso momentâneo, mas sim algo que foi sendo criado aos poucos, como os versos de alguns poetas que sentem a inspiração ao seu redor, mas que criam seu poema em uma atmosfera envolvente e densa que os envolve como uma tênue névoa, quase uma aura divina, e faz com que ele surja aos poucos, lentamente, sem muito pensar sobre ele, mas sentindo intensamente com todo o envolvimento do seu ser nesse processo de criação. A começar pela proximidade dos corpos, quase violando as leis da física e me fazendo crer que dois corpos podem sim, ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo, afinal, para aquelas duas criaturas, naquele momento não havia espaço e o tempo, ah, esse já havia sido descartado em seus relógios, com toda certeza, pois no mundo só havia olhos um para o outro. Sim, os olhos... Os olhares intensos, a dois palmos de distância um do outro, esses é que foram os grandes responsáveis pela magia desse momento. As palavras sussurradas pelas duas bocas cheias de ternos sorrisos eram lidas avidamente pelos dois pares de olhos, que quase não se miravam mutuamente, como se o olhar do olho no olho fosse interromper o diálogo entre os olhos e os lábios, que ao sabor dos movimentos do vagão, se aproximavam e se afastavam um do outro num bailar de tango em que um seguia o outro em sensuais volteios a
cada aproximação. Foi um beijo longo, que começou bem antes de que aqueles desejosos lábios se tocassem, a princípio levemente e em seguida com mais paixão de ternura. Foi um beijo nascido muito antes, naqueles olhares cúmplices que só existiam um para o outro, mas que dizem tudo aquilo que apenas os dois entendem. Essa cena de cinema na vida real me fez lembrar dos olhares trocados entre Charlotte e Bob, que em suas conversas sobre o nada, nos momentos que passaram juntos em Tóquio, sempre disseram tudo sem dizer uma só palavra. Finalmente chegamos à estação terminal e todos foram solicitados a desembarcar naquela estação. Pude então comprovar que Einstein estava absolutamente certo: "Tudo é relativo", pois para aquelas duas criaturas apaixonadas, em seu mundinho particular e tão especial para elas, realmente não havia nem tempo e nem espaço. Enquanto nós, simples e mortais passageiros tratávamos de desembarcar, elas se deram conta de que já estavam muito além de onde deveriam ter descido e as duas garotas permaneceram então em seu assento para reiniciar o trajeto da volta, em direção à Avenida Paulista.
Until we meet again, I bid you peace. Bye-bye.