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  • May 2020
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  • Words: 1,856
  • Pages: 10
Especial Volta ao Mundo

Texto e fotos: Gustavo Cieslar e Elke Pahl

Capítulo 35 (último episódio)

Argentina

Missão cumprida!

“As motos vão chegar ao Brasil com um mês e meio de atraso. Enviámo-las por engano para Hong Kong e Coreia.”. Era assim que dizia o email da companhia naval, pela qual, há um mês atrás, tínhamos enviado as duas motos num contentor, desde a Austrália, com destino ao Rio de Janeiro. Foi exactamente três dias antes da data prevista para o seu desembarque que nos chegou este comunicado. Foto de Alejo Rodríguez (f1photo)

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O cómico percurso das motos seria então: Austrália, Singapura, Hong Kong, Coreia, Hong Kong, Singapura e Brasil. Tentámos por todos os meios, primeiro amavelmente e depois ameaçando com advogados, uma compensação por parte da agência marítima, que cobrisse parte dos gastos que essa espera de seis semanas nos causaria, mas nem sequer um pedido de desculpa obtivemos como resposta. Por ali, pela cidade de Rio de Janeiro, tinha passado com a minha moto, fazia já cinco anos e meio, durante os primeiros dias da viagem. Ao voltar a essa mesma cidade fechava-se o círculo à volta do mundo, e estava prestes a acabar uma história que, sobre duas rodas, tinha transformado a minha vida e a de Elke. Estávamos a poucos dias de chegar a Buenos Aires, de onde tinha partido no dia 22 de Dezembro de 2003, com a promessa de voltar vinte dias depois. Os vinte dias acabaram por se converter em dois mil, e a visita a um país vizinho converteu-se numa travessia de quarenta países e cinco continentes. A pequena viagem de descanso transformou-se numa aventura que mudou a história das nossas vidas e simultaneamente de muitas outras. A prolongada espera pelas motos dava-nos agora bastante tempo extra para descansar no Brasil, adiantar os trabalhos atrasados e reflectir sobre tudo o que tinha sucedido e o que viria depois, assim que as rodas deixassem de girar. Não seria fácil abandonar, de repente, uma vida em que tudo muda constantemente à nossa volta, regressando a algo mais normal e rotineiro. Era ao mesmo tempo um desejo intenso e um desafio aterrador. Ansiávamos voltar a ter a nossa própria cama, a nossa família por perto, os amigos, as saídas de fim-de-semana em que sabemos que voltaremos a casa. Durante a viagem muitas pessoas disseram que nos invejavam, que éramos pessoas com muita sorte. Nós sempre lhes respondemos que eles não imaginavam o quanto os invejávamos a eles, por terem um refúgio próprio para onde voltar todas as noites, por poderem ver crescer os seus filhos, irmãos e sobrinhos, por poderem fazer uma viagem e ao estarem cansados terem um lar para onde voltar, e por muitos outros tesouros que as pessoas nem reparam que têm entre mãos. Enfim, algo que temos apreendido nesta viagem é a sonhar sempre com intensidade, mas não deixar de valorizar o bem que se tem quando se tem o nosso próprio refúgio. Voltar ao Brasil foi reviver as emoções dos primeiros quilómetros. O sam-

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ba, as praias, o carnaval, os batidos de frutas exóticas, a alegria dos motoclubes, as garotas desinibidas... O país perfeito para se começar e terminar uma viagem. Só não conseguimos assistir ao Carnaval do Rio, porque os nossos “amigos” da empresa naval voltaram a enviar-nos outro inesperado email. “Alterámos o porto de destino.

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As motos não poderão ser desembarcadas no Rio de Janeiro, mas sim em Porto de Santos”. Deslocámo-nos para essa bonita cidade, sede do maior porto da América Latina, de onde se exportam toneladas de café, bananas e carros. Ali o sambódromo era menor e o seu Carnaval mais simples, mas cheio da mesma paixão e das mes-

mas raízes africanas. Retirar as motos do porto custou-nos suor e lágrimas. Informaram-nos depois que Brasil não é o melhor lugar na América do Sul para onde despachar um veículo. O custo somado dos portos de partida e destino, que se compõem de transporte e abertura do contentor, inspecções, impostos,

taxas, sindicatos, despachantes e demais burocracia, triplicam o custo original do frete marítimo. Ou seja, se o transporte em si custa 400 euros, os portos chegam a cobrar até 1.200 euros de taxas, ou mesmo mais. Durante a viagem gastámos no transporte das motos mais de cinco vezes o seu próprio valor. Houve momentos, ao saber

do preço que nos iriam cobrar para atravessar um oceano, em que tivemos a tentação de abandonar as motos ali mesmo e seguir a pé. Nunca o fizemos pelo carinho que temos para com esses bichos mecânicos, que nunca se cansaram de nos transportar. Rumámos a sul a todo vapor, cheios de expectati-

vas. Queríamos aproveitar os últimos dias de algo que não se repetiria jamais. Estávamos a poucos milhares de quilómetros da meta e todos os grandes problemas já tinham ficado para trás. Bem... todos menos um, que nos esperava na fronteira e que não era pequeno. A minha carta de condução já tinha caducado há meses, não tínhamos segu-

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ro dos veículos, e a minha moto estava em grave infração nas aduanas, por ter saído durante tanto tempo do país sem autorização. Por qualquer um destes motivos nos poderiam aplicar severas multas, e inclusive apreender as motos. Um conhecido de um amigo, trabalhava num dos postos de fronteira, e nos facilitaria a entrada no país. Era assim que estava combinado. Mas no último momento, mesmo no último dia, avisou-nos que entraria de férias no dia seguinte. Decidimos então mudar de estrada e entrar por uma fronteira

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mais pequena. Fechámos os olhos e começámos ali os trâmites de entrada. Os empregados pareciam inexperientes e relaxados, e em nenhum momento deram conta das três faltas, até que, por fim, nos despedimos e começámos a caminhar, com uma calma aparente, para longe deles. — Hei, esperem! Vocês têm o seguro internacional? — Gritou-nos uma velha senhora que se encarregava de pedir esse documento a cada carro que chegava. — Bem... sim... — respondemos-lhe dando a volta

cheios de dúvidas, franzindo a testa e esfregando os olhos e coçando as orelhas, esperando o pior. Não sei se acreditaram, se tiveram pena de nós, ou se só queriam mesmo fazer-nos sofrer mais um pouco, mas nos deixaram seguir. Estávamos a entrar na Argentina na Semana Santa e estava tudo fechado, um autêntico deserto. Não era possível adquirir os seguros obrigatórios, mas mesmo assim continuámos pela estrada. Essa foi uma má e irresponsável decisão. Nas estradas havia tanto controlo policial como nunca

tínhamos visto no mundo. Um posto de controlo a cada cinquenta quilómetros. Passámos sem ser detidos pelos primeiros cinco, mas no sexto nos mandaram parar. A multa era no valor de trezentos litros de gasolina para cada uma das três infracções (carta de

condução caducada e falta de seguro para as duas motos), dando um total de 2.000 pesos, comunicou-nos o polícia. “Apreenderemos também o seu motociclo até que alguém, com carta de condução válida, o venha buscar. Pode ser um familiar ou um amigo.”.

Isso era algo que não podia estar a acontecer naquele momento. Já tínhamos programado uma data para a chegada a Buenos Aires e nesse momento já não era possível alterar as coisas. Havia gente que estaria à nossa espera pelo que não podíamos cancelar. Fizemos um último esforço e

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demos uma demorada explicação das razões pelas quais não estávamos legais. A longa história amoleceu o coração dos polícias, que acabaram por nos deixar partir com uma multa de 250 pesos. Foi a única multa da viagem, exactamente três dias antes desta terminar. Esta flexibilidade latina, ainda assim, facilitou-nos as coisas, mas tratámos dos seguros na primeira povoação que encontrámos. Tivemos sorte, nos seguintes controlos policiais, e atravessámos a última ponte, aquela que nos deixaria na recta final de 50 km até ao ponto de onde tinha partido à mais de cinco anos. Do outro lado da ponte esperava-nos uma grande surpresa. Havia um grande grupo de motociclistas à nossa espera. Acompanharam-nos, em caravana, até ao centro da cidade, e quando vimos na base do Obelisco (o monumento central de Buenos Aires) uma massa de

gente gritando, saltando e acenando, câmaras de canais de televisão, familiares e velhos amigos, as lágrimas começaram a cair dos nossos olhos sem as conseguirmos conter. Parámos os motores das motos e abraçávamos as pessoas que podiamos. Era uma festa que jamais tínhamos imaginado. Os meus pais estavam em casa, esperando-nos e sem saberem de nada daquilo. Junto com essa caravana de centenas de motos e automóveis, entrámos no bairro, acelerando os motores e tocando buzinas e sirenes. A surpresa foi também enorme para eles. Os meus pais abriram a porta espantados e o abraço foi imenso, tal como imensas também foram as lágrimas de alegria. O carinho de toda aquela gente fez com que esse dia fosse inquestionavelmente o melhor de toda a viagem. Mais tarde despedimo-nos de todos, deixámos

as motos na garagem, esvaziámos as malas pela última vez e sentámo-nos a olhar em volta, como quem chega de outro planeta. Chegava agora uma nova etapa, aquela em que haverá outros sonhos, outras lutas, outros objectivos. E a nossa primeira luta, o nosso maior sonho neste momento, é que neste mundo seja mais compreendido o significado de uma palavra que descobrimos ser tão importante, mas que tantas vezes esquecemos ao longo das nossas vidas. Esta viagem ensinou-nos a necessidade que este planeta tem de que todos nós aprendamos mais sobre a palavra “respeito”. Respeito pelo meio ambiente, pelas diferencias culturais e religiosas, políticas e sexuais, pelos nossos vizinhos, pelo nosso próximo. É de um respeito profundo que precisamos para salvar este planeta. Desde o simples respeito por quem atravessa a rua diante de nós, até ao respeito pe-

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las outras espécies existentes, que povoam este nosso mundo, pelos rios e pelos homens e mulheres que virão depois de nós. Pensemos nisso, e que essa seja a base de todas as nossas acções futuras. Obrigado por terem viajado connosco durante todo este tempo. Ao escrevermos estes trinta e

cinco capítulos, para a Moto Report, sentimo-nos muito perto de vós. Provavelmente voltaremos a encontrar-nos em próximas aventuras, em próximas edições, em próximas viagens para outros sonhos. Mas e porque não os vossos?!... Até sempre.

Vemo-nos por aí... na estrada. Gustavo Cieslar e Elke Pahl Poderão ver o vídeo da chegada em: http://www. youtube.com/watch?v=oyfH-Y6FaQc e o da viagem em: www.re-moto.com

Alguns elementos curiosos da viagem Motos usadas na viagem: duas Yamaha YBR 125 cc (uma de nome “Garota”, conduzida por Gustavo Cieslar; outra de nome “Milton”, conduzida por Elke Pahl). Tempo total da viagem: 1.944 dias (5 anos e 4 meses). Total de quilómetros percorridos: 85.701 Total de pneus gastos: 13 (6 traseiros e 4 dianteiros na “Garota”; 2 traseiros e 1 dianteiro na “Milton”. Total de furos: 10 Total de quedas: 6 Total de litros de gasolina gastos: 3.506 (2.597 na “Garota” e 909 na “Milton”). Total de países visitados: 43 Total de fotos registadas: 48.970

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