Nick Shadow - Biblioteca Da Meia-noite 2 - Sangue E Areia

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  • Words: 28,415
  • Pages: 160
Nick Shadow

Sangue e Areia Tradução Paulo Reis e Lourdes Menegale

Título original: The Midnight Library — Blood and Sand Série criada por Working Partners Limited. Ilustração de capa: David Wyatt Direção editorial Soraia Luana Reis Editora Luciana Paixão Editor assistente Thiago Mlaker Assistência editorial Elisa Martins Revisão Luciana Garcia Vanessa Rodrigues Criação e produção gráfica Thiago Sousa Assistente de criação Marcos Gubiotti CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ S537s Shadow, Nick Sangue e areia / Nick Shadow; tradução Paulo Reis e Lourdes Menegale. — São Paulo: Prumo, 2008. — (Biblioteca da meia-noite) Tradução de: Blood and sand ISBN 978-85-61618-63-6 1. Ficção infanto-juvenil inglesa. I. Reis, Paulo. II. Menegale, Lourdes. III.Título. IV. Série. CDD: 028.5 08-4899. CDU: 087.5

Bem-vindo, leitor. Meu nome é Nick Shadow, curador desta instituição secreta: a Biblioteca da Meianoite. Onde fica a Biblioteca da Meia-noite?, você pergunta. Por que você nunca ouviu falar dela? Para sua própria segurança, é melhor que essas perguntas permaneçam sem respostas. Contudo... desde que você prometa não revelar onde descobriu o que vem a seguir (não importa quem ou o que exija isso de você), eu revelarei o que mantenho nos cofres antigos. Após muitos anos de pesquisa, reuni a mais assustadora coleção de histórias já apresentada ao homem. Elas irão aterrorizá-lo, e fazer com que a carne de seu jovem esqueleto estremeça. Talvez você devesse tomar coragem e virar a página. Afinal de contas, qual a pior coisa que poderia acontecer?...

Volume II Histórias de Ethan Spicer Sangue e areia O melhor amigo do homem Uma estranha na casa

SANGUE E AREIA — Tédio! Tédio! Tédio! — gritou John, abafando o bramido das ondas na praia e os guinchos das gaivotas no ar. Sarah nem culpava o irmão por não conseguir gozar direito aquelas férias. O céu estava cinzento, e o mar não parecia convidativo. Parecia frio, perigoso e traiçoeiro. As ondas espumantes amedrontavam quem chegasse perto. Um vento gelado varria a praia, atirando a areia áspera no rosto deles. A sensação era cortante, como se a areia tentasse tirar fatias deles. Mesmo sem o vento, dificilmente aquela seria uma praia muito agradável para passear. A areia estava cheia de lixo e tinha um odor estranho. Uma espécie de limo verde e viscoso cobria os rochedos na ponta da praia. E além dos rochedos ficava o píer em ruínas, há muito desativado. Enferrujadas e cobertas de algas marinhas, as pilastras de ferro permaneciam fincadas nas águas acinzentadas. Em resumo, John e Sarah achavam bem melhor que estivessem num agradável balneário ensolarado, de preferência no exterior — com um bom conjunto de

piscinas e uma bela faixa de areia margeando um oceano azul e quente. Tentando afastar a tristeza da cabeça do irmão, Sarah pegou uma concha. — Escute, a gente consegue mesmo ouvir o mar — disse ela, segurando a concha perto da orelha. — Ninguém aqui precisa pôr uma concha perto da orelha para ouvir o mar. A gente está bem perto — rebateu John incisivamente. Depois se abaixou, pegou um seixo, virou para a água e fez um movimento rápido com o pulso. O seixo deveria deslizar horizontalmente na superfície, pulando e quicando, mas afundou logo. Com desprezo, John disse: — Nem as pedras deslizam direito. Sarah achou injustiça culpar a pedra, mas sabia que era melhor não discutir com o irmão quando ele estava de mau humor. E agora ele estava de muito mau humor. A cada ano, John detestava mais aquele balneário. E Sarah também, para ser sincera. Mas ali estavam eles outra vez, já entediados no segundo dia de férias. John tinha treze anos, e Sarah, doze. Eles freqüentavam aquele lugar desde que começaram a andar. Havia fotos que provavam isso. Instantâneos dos dois arrastando-se pela areia ainda de fraldas. Pareciam estar se divertindo muito naquela

época, mas não agora. Quando reclamavam, a mãe exclamava: “Mas vir para cá já virou uma tradição na nossa família. Um dia, talvez vocês também tragam seus filhos para passar as férias”. “Como castigo, você quer dizer?”, retrucava John com sarcasmo. Mas a mãe apenas ignorava o comentário. Ela se recusava a ouvir qualquer crítica ao balneário. Simplesmente não conseguia compreender que nada havia para John e Sarah fazerem ali. Sarah olhou da praia para o píer. A ruína parecia um detrito gigantesco, trazido pela maré e abandonado ali para apodrecer. Ela e John se lembravam vagamente de ver aquilo em pleno funcionamento, com várias atrações divertidas e até uma cartomante. Todas as outras coisas interessantes no vilarejo também pareciam ter fechado. Já não havia mais espetáculos: os dois cinemas estavam desativados. O parque de diversões se mudara para a cidade vizinha. Não existia mais aquário, nem golfe maluco. Havia uma única galeria de diversões, mas era escura, acanhada e entediante. As lanchonetes serviam uma comida tão gordurosa que até John se recusava a comêla, embora gostasse de uma tranqueira. Quase todas vendiam frango frito e hambúrgueres fedorentos. Só havia uma especializada em peixe com batatas, onde a

comida era pelo menos aceitável. Mas até a mãe lamentava que o peixe servido ali já não era fresco e que não tinha mais o mesmo gosto. — Deve haver alguma coisa para a gente fazer — disse Sarah, suspirando. Depois de hesitar, acrescentou: — E se a gente entrasse outra vez no concurso de esculturas de areia? Ela olhou para a parte da praia ao longo do calçadão que fora cercada para o único grande evento anual remanescente no balneário. Os concorrentes moldavam e esculpiam a areia molhada, feito argila. Formavam figuras e arranjos que depois pintavam. O trabalho mais sugestivo ganhava um prêmio em dinheiro. No ano anterior, ela e John haviam participado do concurso. Pela primeira vez tinham idade suficiente para isso. E, embora fossem os competidores mais jovens, tinham se saído muito bem, tirando o segundo lugar. Mas John passara a maior parte da semana emburrado por não ter vencido. Sarah achara divertido só participar, mas sabia que o irmão era muito competitivo. — Não adianta — cortou John. — O Homem de Areia vai ganhar. E não tem graça saber que a gente vai perder. Nenhuma.

Ele atirou outra pedra no mar. Quando essa pedra também afundou sem quicar, John se virou e saiu caminhando outra vez pela praia. — Devia haver um ano em que o Homem de Areia não concorresse. Só um — disse ele, arrastando os pés pela praia. — Por que ele não pode se afastar e deixar outra pessoa ganhar, só para variar? Assim não é justo. Sarah seguiu o irmão, pensando sobre o Homem de Areia. Seu verdadeiro nome era Gavin Bromfield, mas todo mundo chamava o sujeito de Homem de Areia. Era um velho esquisito que morava ali mesmo e esculpia areia feito um gênio. Suas esculturas eram espantosamente realistas, e ele ganhava o concurso todos os anos. Ninguém conseguia se lembrar de alguma vez em que isso não acontecera, e ele sempre parecia superar o que fizera no ano anterior. Sarah pensou nas participações anteriores do Homem de Areia. A primeira de que ela se lembrava fora um enorme arranjo de frutas. Tudo ali parecia perfeito: as bananas, os cachos de uvas, e até os abacaxis. Mas uma das preferidas de Sarah fora um jumento, tão realista que todos ficavam tentados a se aproximar e dar cenouras ao bicho.

— Com o que ele ganhou no ano passado? — perguntou John. — Com o Clunkers — respondeu Sarah. — Ah, é... O Clunkers — repetiu John. — Nós ainda não vimos o Clunkers este ano, vimos? — observou Sarah, surpresa. — Que estranho... Ele está sempre aqui. Clunkers era um cachorro velho que parecia morar na praia. Vivia cavoucando a areia e farejando em busca de comida, ou agachado à sombra da muralha do calçadão, nas raras ocasiões em que o sol aparecia. No ano anterior, o Homem de Areia fizera uma escultura incrivelmente real de Clunkers olhando para o mar. Claro que a obra fora a vencedora. — Talvez a fama tenha subido à cabeça de Clunkers quando aquela escultura de areia ganhou o concurso. Ele pode ter trocado o balneário por outro melhor — sugeriu John com malícia. Sarah riu e disse para o irmão: — Por que não entramos outra vez? Só para curtir... e arranjar uma ocupação. John deu de ombros e respondeu: — Vou pensar no assunto. Eles já estavam perto do píer arruinado e abandonado. Ali em torno a praia também estava toda cercada. Era interditada durante o ano inteiro, tanto para turistas quanto para os

moradores locais. Ao longo da cerca, placas avisavam às pessoas que se mantivessem afastadas. Como se alguém fosse querer entrar ali... até as gaivotas pareciam se manter longe daquela área. Pelas frestas da cerca, Sarah viu que a areia sombreada debaixo do píer parecia mais suja, coberta por algas marinhas podres e detritos trazidos pelas marés. — Este píer parece mal-assombrado. — Assim como aquela casa ali ao lado — acrescentou John, apontando para um velho bangalô improvisado que parecia tão abandonado e descuidado quanto o píer à sua frente. Quando olharam para a casa, viram um vulto conhecido, trajando um elegante paletó claro e calças compridas, sair e trancar a porta da frente. — É ele! — disse Sarah. — O Homem de Areia. Deve ser ali que ele mora! — Pensei que ele morasse num grande castelo de areia em outro lugar — disse John brincando. Sarah ficou olhando para os traços marcantes do rosto do Homem de Areia. Ele era exageradamente bronzeado, como se passasse tempo demais ao sol. Em contraste, seus olhos pareciam negros feito o mar noturno. Com um calafrio, ela disse:

— Ele parece ficar mais sinistro a cada ano... John virou-se para ver o Homem de Areia caminhar pelo calçadão. — Aposto que ele vai trabalhar na sua escultura de areia — disse ele em tom pensativo. Depois, acrescentou: — Acho que até vale a pena participar, se tivermos alguma idéia do que precisaremos derrotar... Sarah olhou para ele. — Você está sugerindo o que eu acho que está sugerindo? — perguntou ela, surpresa. John assentiu e disse: — Precisamos ver o que o Homem de Areia está fazendo para o concurso deste ano. Assim teremos chance de fazer alguma coisa até melhor. — Mas você sabe que ele sempre esconde as esculturas numa tenda especial, para ninguém espiar antes do dia do julgamento — disse Sarah. Depois sorriu com um ar inocente e continuou: — A não ser que alguém se enfiasse lá dentro... John já parecia muito mais animado. — Exatamente. Vamos entrar no concurso. Seja lá o que o Homem de Areia inventar, vamos vencer. Só precisamos ver o que ele está fazendo e depois descobrir uma coisa melhor.

— Esse é o espírito da coisa! — disse Sarah, rindo e imitando a voz da mãe. Eles caminharam para a área vedada da praia, onde o concurso de esculturas de areia seria realizado. Viram que algumas pessoas já começavam a se inscrever. Uma grande tenda com riscas brancas e vermelhas cobria uma pequena área da praia. — Aquela deve ser a do Homem de Areia — disse John. Eles foram até a entrada da área do concurso e pegaram os formulários de inscrição. Chegaram bem a tempo, pois o prazo terminava no dia seguinte. Ao final da tarde, preencheram os formulários e pediram à mãe para assinar a autorização. — Esse é o espírito da coisa! — disse ela, com ar de satisfação. — Estão vendo? Onde mais vocês poderiam se divertir tanto? Sarah e John sorriram um para o outro. A mãe era tão previsível.

Na manhã seguinte, irmão e irmã entregaram os formulários. Depois foram levados ao seu canteiro de areia na área do concurso.

— O Homem de Areia falou que está fazendo uma obra muito especial este ano. Imagino o que será! — disse o concorrente vizinho, vendo que Sarah e John olhavam para a tenda do Homem de Areia. Depois se voltou para sua própria escultura, que era um enorme tabuleiro de xadrez espalhado pela areia. — Espero que nós não fiquemos muito tempo imaginando o que há naquela tenda — disse John entredentes para Sarah. — Então você ainda quer seguir o plano? — perguntou Sarah a ele. John concordou com a cabeça. Sarah sentiu uma pontada de arrependimento. Por um lado, ela queria aproveitar o concurso para se divertir, como aquele vizinho. Mas John estava muito empenhado em vencer. — Tá legal, mas como vamos entrar lá sem sermos pegos por ele? — perguntou ela. — Podemos fingir que estamos testando algumas idéias na areia. Na verdade, vamos ficar observando e esperando — disse John. — Ele vai precisar sair da tenda em algum momento. Por sorte, havia um furgão que vendia sorvetes estacionado perto da área do concurso. Assim eles podiam se abastecer.

John ficou vigiando enquanto Sarah trazia casquinhas. Mais tarde, Sarah ficou vigiando enquanto John trazia picolés. Finalmente, o Homem de Areia saiu da tenda, com o paletó dobrado sobre o braço e as mangas da camisa enroladas. — Acho que ele vai ao banheiro — disse John. — Antes ele do que eu — retrucou Sarah, fazendo uma careta. Quase todos os banheiros da praia eram imundos e haviam sido depredados. Poucos tinham vasos com tampa ou torneiras, para não falar em sabão e toalhas. Além disso, todos cheiravam mal. Sarah detestava precisar usar algum. John puxou o braço dela e disse: — Vamos, não temos muito tempo. Os outros concorrentes estavam ocupados com as próprias esculturas. John e Sarah foram se esgueirando para a tenda do Homem de Areia, por um lado que não era vigiado. Sarah levantou a borda da tenda. John entrou rastejando, e ela foi atrás. Na penumbra, a escultura parecia bastante assustadora, e Sarah ficou arrepiada. Aquilo era um grande retrato da vida marinha. Havia até um tubarão pequeno. Ela ficou olhando para caranguejos, lagostas, peixes e estrelasmarinhas que pareciam de verdade. No

centro de tudo, havia um polvo. Como as outras criaturas do mar esculpidas ali, o bicho era espantosamente real. Os oitos tentáculos eram feitos com tanta perfeição que Sarah realmente visualizou o polvo arrastando-se pelo sombrio fundo do mar. Centenas de ventosas haviam sido formadas e moldadas meticulosamente embaixo de cada um dos longos braços flexíveis. A escultura do polvo era tão real que Sarah ficou hipnotizada. Incapaz de resistir, aproximou-se para tocar um dos tentáculos. A areia, ainda úmida, esfarelou-se e caiu. Sarah prendeu a respiração, consternada por ter danificado a escultura. Mas deu um salto para trás quando viu o que a areia revelara por baixo. Carne de polvo verdadeira. Sarah gaguejou: — John, olhe para... — Shhh — interrompeu o irmão. Sarah percebeu que ele estava prestando atenção em algo fora da tenda, e também se pôs a escutar. — Não, eu nunca revelo o que será a minha escultura. Você precisa esperar para ver — disse uma voz bem-educada e fria, falando com alguém do lado de fora. Era o Homem de Areia! Ele estava voltando para a tenda!

John e Sarah saíram rastejando por onde haviam entrado. Ao abaixar a lona listrada depois de sair, Sarah viu de relance os sapatos do Homem de Areia entrando pelo outro lado. — Ufa! Essa foi por pouco — disse John com um sorriso de alívio, enquanto os dois voltavam para seu lote de areia. — Não tivemos tempo de cobrir nossos rastros — disse Sarah, preocupada. — Deixamos pegadas lá dentro! — Não se preocupe — respondeu John. — O Homem de Areia pode pensar que alguém esteve espionando sua escultura, mas não vai saber que fomos nós. Pelo menos não acho que ele tenha nos visto. — Mas não é só por ele achar que alguém viu a escultura, John — disse Sarah, preocupada. — Ele também vai perceber que alguém já descobriu suas trapaças... John olhou para ela e perguntou: — Do que você está falando? Sarah contou ao irmão o que vira. Pensou que ele fosse ficar tão horrorizado quanto ela, mas em vez disso John riu. — Não pode haver um polvo verdadeiro embaixo daquela escultura de areia — declarou ele. — Você está maluca. — Mas tenho certeza de que havia — insistiu Sarah.

— O que você está dizendo? — retrucou John, irritado. — Que o Homem de Areia conseguiu arrancar um polvo do oceano e cobriu o bicho de areia para fingir que era uma escultura? — Ou roubou o polvo de algum aquário — argumentou Sarah. — Há um aquário na cidade vizinha, não há? John abanou a cabeça, virou, examinou a areia do lote. Então, disse: — Retiro o que falei antes. Você está completamente maluca. Sarah bateu o pé, frustrada. Ela sabia muito bem o que vira. De repente, lembrou-se de Clunkers e disse com veemência: — Tá legal, então onde está o Clunkers? Enquanto as ondas quebravam ao fundo, John se virou, olhou para ela e perguntou: — O que isso tem a ver? — No ano passado, o Homem de Areia ganhou com uma escultura do Clunkers, não foi? — disse Sarah. — E este ano ninguém vê o cachorro em parte alguma. Talvez o corpo do Clunkers estivesse dentro da escultura que venceu. E a escultura do jumento, há uns dois anos? Talvez houvesse um jumento verdadeiro ali embaixo!

— Bom... era bem realista — disse John. — Mesmo assim... — E todo mundo sabe que as esculturas do Homem de Areia começaram, de repente, a melhorar há alguns anos — continuou Sarah. — Lembro que a mamãe falou que recordava que o trabalho dele não era muito bom quando ele começou a competir. Mas, de repente, num verão qualquer, ele começou a fazer coisas maravilhosas. Talvez tenha descoberto que a melhor maneira de criar esculturas realistas... — Fosse moldar a areia por cima do troço verdadeiro? — completou John. — Pois é! — respondeu Sarah, aliviada porque o irmão já parecia acreditar no que ela vira. — Vamos dar um tempo longe dessa areia — disse John. — Tá legal. Aonde você quer ir? — perguntou ela. — Até a casa do Homem de Areia — respondeu John. — Se você estiver certa, talvez achemos mais algumas provas lá. Vamos olhar pelas janelas. Não há perigo enquanto ele estiver ocupado aqui na tenda.

Na frente do velho bangalô do Homem de Areia, as cortinas estavam cerradas. — Vamos dar a volta por trás — disse John. — Se esse nojento tem algo a esconder, aposto que deve guardar nos fundos da casa. Ninguém veria coisa alguma ali. Atrás do quintal há um penhasco até a praia. — Só não podemos ficar presos, caso ele apareça — disse Sarah, inquieta. Mas John já estava abrindo o frágil portão. Sarah seguiu o irmão, dizendo com nervosismo: — Não devíamos fazer isso. O Homem de Areia pode voltar a qualquer hora. Ela se encostou na cerca, tentando vigiar o calçadão, enquanto John ia espiar pela janela dos fundos. Vendo que ali as cortinas não estavam fechadas, mas que as janelas pareciam cobertas de sujeira, Sarah perguntou: — Dá para ver alguma coisa? John encostou a cara no vidro, aguçando o olhar, e disse: — Está difícil, mas, pelo que eu consigo ver lá dentro, é uma verdadeira bagunça. — Depressa — disse Sarah. De repente, o pedaço da cerca em que ela estava apoiada, mais podre do que parecia, cedeu. Sarah despencou no vazio, gritando e caindo sem fôlego na praia lá embaixo. Pelo menos

aterrissara num monte de areia macia e não se machucara. — Você está bem, Sarah? — perguntou John. — Acho que sim... Só estou tremendo um pouco — disse ela, apoiando a mão na areia para se levantar. Sentindo uma coisa redonda e chata sob a palma, olhou para ver o que era. Segundos depois, John já estava ao lado dela, perguntando curiosamente: — O que é isso? — Parece uma moeda velha ou um medalhão — disse Sarah, erguendo um pequeno disco prateado cheio de arranhões. Mas sentiu a garganta gelar quando leu o nome no disco. Mostrou ao irmão e arrematou: — Veja você mesmo... — Parece a plaqueta de um cão — disse John, posicionando o disco de metal na claridade para ver melhor e poder ler a inscrição. Depois, murmurou: — Clunkers... — Ele olhou para o lugar onde Sarah achara a plaqueta. Então disse: — Talvez os restos do Clunkers estejam aqui também. Sarah estremeceu. — Aposto que o Homem de Areia enterrou Clunkers ali, aonde ninguém vai — disse apontando para o local debaixo do píer.

— Tudo isso está condenado. O píer deve ser demolido em breve — disse John, olhando em volta. — Com certeza vamos ser denunciados se alguém nos avistar aqui embaixo. Vamos embora logo. John e Sarah se levantaram e caminharam até uma abertura na cerca que circundava toda a área. — Precisamos descobrir se o Homem de Areia enterrou o Clunkers aqui — disse Sarah para John, enquanto ele aumentava a abertura na cerca para que ela pudesse passar. — Se ele está fazendo coisas horríveis com os animais, é preciso ter provas para que ele pare. John parou, refletiu e sentou-se na areia. Sarah sentou ao lado do irmão, vendo que ele estava pensando seriamente no assunto. — Se formos procurar por aí de dia, seremos apanhados — disse John lentamente. — É melhor voltarmos à noite. Vamos precisar de uma lanterna e de duas pás.

Sarah e John esperaram até meia-noite. Só então, armados com as duas resistentes pás de plástico que haviam comprado na única loja de praia remanescente no calçadão, os

dois desceram a escada da pequena pousada em que estavam hospedados. Passaram pela mesa de recepção desocupada e saíram pela porta da frente. Rapidamente, percorreram a rua escura que levava à orla. Ninguém estava por perto. Depois do anoitecer, o balneário parecia uma cidade-fantasma. A praia também estava deserta, embora a parte do concurso de esculturas de areia continuasse iluminada. A luz dava à areia e às algas marinhas um fraco brilho sinistro. Sarah afastou o olhar rapidamente. — À noite os caranguejos não saem todos das tocas? — disse ela, tentando se animar. — Olhe um aqui! — disse John, dando um beliscão nela e rindo. Depois desceu correndo os degraus de pedra em direção à areia. Sarah hesitou. Àquela hora da noite, até a melhor parte da praia parecia assustadora. A área proibida e isolada do píer, então, ficava apavorante. O mar tinha uma aparência vítrea e misteriosa, repleta de formas de criaturas perigosas. Os choques das ondas na praia lembravam avisos sussurrados. — Venha! — insistiu John. Sarah respirou fundo e desceu os degraus. Os dois começaram a caminhar ao

longo da areia em direção àquela forma escura que era o píer. Quando chegaram perto, Sarah paralisou. Estava muito escuro ali embaixo. As sombras pareciam tão profundas quanto o próprio mar. — Mas não vejo aviso algum proibindo a entrada — disse John, sorrindo. Sarah sabia que ele queria dizer que a escuridão encobria tanto as tabuletas quanto os avisos. — Mas precisamos ter cuidado — disse ela, cautelosa. — Deve haver lixo de todo tipo aí. Metal, vidro e... — Tá legal, tá legal! Você parece a mamãe! — disse John exasperado, acendendo a lanterna para procurar uma abertura na cerca da área sob o píer. O raio de luz iluminou uma tábua solta, e ele arrematou: — Bingo! Depois se apressou a passar espremido pela abertura, acenando para Sarah fazer o mesmo. Com relutância, ela lhe obedeceu... e imediatamente franziu o nariz. O cheiro de algas podres era particularmente forte naquele lado da cerca. John lançou a luz da lanterna pela área sob o píer. Não admira que seja tão fedorento, pensou Sarah. Ela ficou olhando para a

quantidade de algas que havia por toda parte. Parecia que um exército dos troços invadira a praia. Sarah imaginou aquilo cheio de águas-vivas e enguias. Pensou que seria terrível prender os pés ali e acabar sendo engolida por tudo. — É espantoso o que é trazido pelo mar — sussurrou John. — Sempre imaginei toda espécie de criaturas misteriosas vivendo no fundo e saindo da água à noite. Eram coisas gordurosas com escamas e tentáculos, procurando pessoas para arrastar de volta com elas para o fundo. Aposto que todas ficam embaixo desse píer. Provavelmente devem estar à nossa espera. — Cale a boca, John. Você não me assusta — mentiu Sarah. Mas ela também começou a temer que eles tivessem sido vistos pelo Homem de Areia atravessando a praia. Ele poderia descer até a areia para pegar os dois. Ou talvez estivesse esperando que eles chegassem embaixo do píer para se lançar sobre os dois na escuridão profunda. — Sabia que é por causa desse troço que precisamos vir para cá todo ano? — disse John. — O que você quer dizer? — perguntou Sarah, escolhendo cuidadosamente onde pisava.

— A mamãe e o papai se conheceram aqui embaixo — retrucou ele. — Você não lembra que eles nos contaram? É por isso que esta cidade arruinada significa tanto para eles, e também é por isso que somos uma das últimas famílias suficientemente piradas para ainda visitar o lugar. — Eles se conheceram embaixo desta coisa? — perguntou Sarah, surpresa. — Devo ter esquecido! — Só que o troço não era assim antigamente — continuou John. — Você se lembra daquelas fotos antigas das férias da mamãe e do papai, quando eles eram moços... antes de nós nascermos? Naquela época, o píer vivia aberto. Havia espetáculos, atrações, uma roda-gigante, um museu de cera, lojas, uma galeria de diversões e até um teatro onde comediantes se apresentavam. Essa parte aqui da praia também era aberta e cheia de turistas. Isso foi antes da decadência da cidade. Eles estavam de férias e se conheceram aqui embaixo. A mamãe falou que foi amor à primeira vista. O papai levou a mamãe a alguns espetáculos no píer e a algumas atrações. Foi assim que eles ficaram juntos. John dirigiu a luz da lanterna para o alto, iluminando a carcaça podre que assomava acima da cabeça deles. Atualmente, aquilo estava longe de ser o

lugar mais romântico do mundo para um encontro. — Por isso a mamãe e o papai não conseguem enxergar esse lugar como é agora. Não vêem as medonhas casas de peixe com batatas, as fábricas falidas, os prédios caindo aos pedaços — continuou John, correndo a luz da lanterna pelas grossas pilastras do píer. — Nem percebem o monte perigoso de sucata velha e enferrujada que há aqui. Continuam vendo o píer como era quando eles se conheceram. E ainda se enganam, dizendo que isto é um lugar bom e arrastando a gente para cá todo ano. John pegou na areia um pedregulho, que atirou numa das vigas de ferro, provocando um grande barulho. Por um instante, Sarah achou que toda a estrutura desmoronaria em cima deles. Irritada, disse: — Você quer que alguém nos descubra? Vamos escavar um pouco e cair fora daqui. — Tá legal, desculpe. Eles cavaram em silêncio por algum tempo. — Não há coisa alguma aqui — disse John, arquejando. — Ei, espere... Encontrei algo. Acho que existe alguma coisa entre as algas.

Sarah dirigiu a luz da lanterna para o lugar. Era uma coleira de cachorro. Ela quase deixou cair a lanterna de susto. A garota ficou tão enjoada que precisou cobrir a boca com a mão. — Acho que há uma boa razão para o sumiço do Clunkers — disse John, sério. — Parece que você tinha razão, Sarah. Vamos ver o que mais podemos encontrar. Eles não precisaram cavar muito longe para descobrir uns restos manchados de sangue. — O que é isto? — perguntou Sarah, segurando um objeto particularmente fedorento. John dirigiu a lanterna para aquilo, e ambos quase vomitaram. Era a pata apodrecida de um jumento. O pior ainda estava por vir. John desenterrou um crânio, com os dentes expostos pela morte. Ainda havia restos de pêlos presos ali. — É o Clunkers — disse ele. — Isto é... era o Clunkers. Nessa hora, Sarah realmente passou mal. Eles ficaram olhando para aqueles restos, num silêncio quebrado apenas pelo marulho das ondas. Uma gaivota gritou,

como se estivesse pranteando o coitado do velho cão. — O Homem de Areia matou o Clunkers para usar o corpo no concurso de esculturas. E aposto que também matou um jumento. Se não, por que os restos estariam escondidos juntos embaixo do píer perto da casa dele? — disse Sara furiosa, virando-se para John. — Precisamos contar à polícia... e aos organizadores do concurso. Eles vão banir o Homem de Areia para sempre. — Acho que você tem razão. O Homem de Areia deve ter feito isso mesmo. Mas nós não temos provas definitivas de que foi o Homem de Areia que colocou os ossos aqui, temos? E não esqueça que todos os moradores da cidade amam o Homem de Areia. Não vão acreditar que foi ele. Vão pensar que somos “gente de fora” e que estamos com ciúme — respondeu John, com voz sombria. Sarah pensou um pouco antes de falar. Então, propôs, sorrindo: — A não ser que a gente convença alguém a investigar a nova criação dele. John olhou para ela, sorriu e disse: — Boa idéia. Vamos fazer isso amanhã. Quando se afastaram do píer, Sarah notou uma luz acesa num dos aposentos da casa do Homem de Areia. Será que ele estava vigiando?

Não foi difícil encontrar os organizadores na manhã seguinte. O homem e as duas mulheres que dirigiam o concurso estavam na praia dando entrevistas à imprensa, enquanto tiravam fotos com o prefeito da cidade para promover o evento. Durante um intervalo, John e Sarah correram para eles, com palavras e acusações jorrando sem fôlego de sua boca. — O Homem de Areia vem trapaceando há anos! — insistiu Sarah. — Ele mata animais... animais de verdade... e depois cobre os corpos com areia. — Que loucura é essa? — perguntou o prefeito. Era um gorducho de cara vermelha, com sobrancelhas que pareciam lagartas obesas. Tentou ignorar Sarah e John, mas eles insistiram para que os organizadores conferissem a escultura do Homem de Areia. — A prova está na tenda dele — disse John. — Nós vimos um polvo morto lá. Venham ver também! Um ou dois repórteres que entrevistavam os organizadores e o prefeito escutavam tudo com interesse. — Isso parece dar uma boa reportagem — disse um. John e Sarah ficaram satisfeitos quando eles foram junto.

Chegaram à tenda do Homem de Areia e puxaram a porta de lona. O Homem de Areia estava lá, mas não havia qualquer escultura representando a vida marinha — só um monte de areia. Sarah e John se entreolharam, perplexos. — Pediram que viéssemos inspecionar sua escultura — disse um dos organizadores, parecendo bastante embaraçado. — Supostamente era um polvo, e tenho certeza de que seria maravilhoso, se realmente existisse. Nós teríamos ignorado o pedido, já que partiu apenas destas crianças, provavelmente travessas, mas a imprensa estava lá, e... — Está nos chamando de mentirosos? — interrompeu John, indignado. Mas ninguém respondeu. O Homem de Areia sorriu para o prefeito, os organizadores e os repórteres. — Não precisam se preocupar — disse ele, educadamente. — Vocês são muito bem-vindos aqui. Mas, como podem ver, nem comecei o meu trabalho, que ainda está sendo planejado... embora eu já possa prometer que não será um polvo. As crianças têm uma imaginação muito fértil, não é? Sarah começou a dizer:

— Somos perfeitamente capazes de usar nossos olhos... Mas o prefeito a interrompeu: — Chega! Crianças, vocês já causaram muito constrangimento aqui! Um dos organizadores interveio com um olhar gélido: — Esperem um instante! Agora me lembrei desses dois. Vocês tiraram o segundo lugar no concurso do ano passado. Será que o que esta acontecendo aqui é uma vingança? Todos os três organizadores se desculparam outra vez. Depois de lançar olhares malvados para John e Sarah, saíram da tenda. O prefeito virou para os dois irmãos e disse: — Vou deixar vocês aqui para se desculparem com o senhor Bromfield! Com dificuldade, tirou seu corpanzil da tenda. Sarah se virou desafiadoramente para o Homem de Areia. Sentindo o rosto vermelho de raiva, disse: — Nós sabemos o que você fez. Aqueles seres marinhos sumiram daqui porque você percebeu que nós descobrimos tudo. — E sabemos o que você fez com o Clunkers, no ano passado — acrescentou

John. — Além do jumento no ano anterior, e de todos aqueles outros bichos. O Homem de Areia baixou a cabeça e disse: — Vocês estão enganados, se acham que eu matei os animais. Eu amava aqueles bichos. De verdade. Todos eram velhos e morreram de causas naturais. Eu só queria tornar alguns famosos por mais tempo... Preservar o corpo deles um pouco mais. Sarah ficou olhando para o Homem de Areia, sentindo-se confusa. Será que ele estava falando a verdade ao dizer que não maltratava os animais? Mesmo que fosse assim, porém, ele ainda era trapaceiro e mentiroso. — Mas você fingiu que as esculturas eram todas obras suas — denunciou ela. — Você fingia que começava do zero, usando só areia e água do mar, como todo mundo! — Pois é. Vocês me pegaram direitinho — admitiu o Homem de Areia. Depois, sorriu e continuou: — Mas este ano eu tive uma idéia que talvez interesse a vocês. Sarah não conseguia tirar os olhos daquele sorriso fingido, com os dentes brancos à mostra. — Se vocês voltarem aqui mais tarde para me ajudar a criar uma escultura de areia real e verdadeira, eu deixo vocês inscreverem a escultura em seus nomes,

seja o que for que a gente faça — continuou o Homem de Areia. — Vocês podem dividir o dinheiro do prêmio. Este ano está mais alto do que nunca. Não posso ser mais justo do que isso, posso? Se quiserem, podem doar o prêmio a alguma instituição de proteção de animais. Sarah e John se entreolharam, sem saber o que dizer. O Homem de Areia suspirou e sentou-se na areia. — Na verdade, eu não sou um homem mau, sabem — disse ele, levantando os olhos para os dois com uma expressão triste. — Voltem mais tarde, e começaremos a trabalhar assim que vocês chegarem. — Você vai mesmo nos deixar ganhar? — perguntou John. — Vou — respondeu o Homem de Areia. — Dou a minha palavra. — E promete não usar mais animais? — perguntou Sarah. — Prometo do mais fundo do meu coração — retrucou o Homem de Areia em tom solene.

O sol estava se pondo no horizonte quando John e Sarah voltaram ao lugar onde a tenda do Homem de Areia estava armada. Podiam ver o povo que chegara no início da tarde

passeando perto das lojas, mas a praia em volta estava deserta. Como uma pequena faixa de luz se projetava da tenda do Homem de Areia, os dois irmãos perceberam que ele estava lá dentro esperando. — Lá vamos nós — disse John, sorrindo. — Este ano será o da nossa vitória. Sarah retribuiu o sorriso, e eles entraram na tenda. Fazia um dia de sol. Era de manhã. John e Sarah estavam lá fora outra vez. Mas não podiam se mover. Nem podiam gritar. A boca deles parecia estar cheia de areia. Eles podiam sentir o atrito nos dentes. Os braços e as pernas pareciam estar fixados em concreto. Perto dali, podiam ouvir a voz de seus pais, falando com o Homem de Areia. — Que escultura bonita — disse a mãe. — Essas crianças são surpreendentemente realistas! Sem dúvida você vencerá o concurso outra vez este ano. O Homem de Areia sorriu e disse: — O John e a Sarah me inspiraram. Eu não poderia ter feito isso sem eles. Verdadeiramente. John e Sarah ficaram olhando por entre os minúsculos buracos dos olhos da escultura, vendo seus pais se afastarem.

O Homem de Areia ficou em pé acenando, enquanto eles sumiam de vista.

O MELHOR AMIGO DO HOMEM Era o primeiro funeral a que Ben assistia. Havia alguns meninos lá, todos tão pouco à vontade quanto ele, tentando não se mexer nos trajes pretos comprados às pressas. Mas quase todos os demais eram tias, tios e, claro, seus pais. As lágrimas ameaçavam brotar nos seus olhos, mas Ben estava determinado a não chorar. Tinha doze anos e era velho demais para isso, embora alguns adultos à sua volta chorassem. Isso era o pior: ver tantos conhecidos sofrendo. Ben fechou os olhos quando o caixão do avô baixou ao túmulo. Ele se sentira nervoso demais para tomar o café da manhã, e seu estômago começou a roncar, mas por sorte o padre começou a ler as passagens da Bíblia numa voz tão alta que abafava tudo o mais. Quando o padre terminou, a mãe de Ben avançou e jogou um cravo amarelo no caixão. Ben também avançou e olhou para a cova. Pensou que um dia ele próprio estaria deitado numa daquelas compridas caixas de

madeira. A idéia provocou-lhe um calafrio na espinha.

Ben temia mais a reunião na casa de uma das tias depois do enterro do que o enterro em si. Ele sabia que lá todos ficariam conversando embaraçosamente sobre seu avô. Não queria ouvir aquilo.

Mas Ben estava enganado. A ocasião foi longe de deprimente. Em vez de lamentar, a família parecia estar celebrando o fato de estarem todos ali ainda vivos e juntos. Muitos parentes mais velhos trocavam lembranças de infância sobre Eddie Stevens, o avô de Ben. Ele foi se animando... até que uma frase despertou sua atenção. — É claro que eu parei de ir lá quando ele arranjou aquela coisa horrível! — disse uma das tias, enquanto mordia um sanduíche de salmão. Do que ela estava falando? Ben apurou os ouvidos, tentando não parecer bisbilhoteiro. — Todo mundo parou de ir lá — disse outra tia. — Não entendo por que ele comprou aquela criatura horrível. Eu detestava me sentir seguida ao redor da sala pelos olhos daquilo. A primeira tia concordou. — Eu também ficava arrepiada com o olhar que o bicho dava para a gente. Parecia tentar ler os nossos pensamentos. Não sei como ele vivia com aquilo. Ben pensou em perguntar sobre o que elas estavam falando, mas então viu sua mãe. Ela estava sentada numa velha poltrona de couro, soluçando com um lenço na mão. O pai estava sentado bem perto,

com o braço em volta dos ombros dela. Ben nem conseguia imaginar o que seria perder seu pai. E, afinal de contas, o avô era o pai da mãe. Essa lembrança afastou da sua cabeça a tal criatura de olhos penetrantes.

Duas semanas depois do enterro, Ben ainda pensava muito no avô. Na verdade, a mãe e o pai quase não falavam sobre outras coisas. Contaram que o avô deixara uma casa cheia de trastes, e o proprietário queria que tudo fosse retirado até o fim do mês. A mãe e o pai estavam tão entretidos tentando organizar as coisas que às vezes pareciam esquecer que Ben estava presente. Ele já resolvera deixar os dois ocupados, sem atrapalhar até que tudo houvesse terminado. Naquela manhã, porém, a mãe foi ao quarto de Ben e colocou uma velha bolsa de couro na mesa de cabeceira, falando que o avô queria que aquilo fosse dele. Ben abriu a bolsa já gasta e espiou. Um antigo objeto metálico brilhava ali dentro. Puxando uma velha corrente fosca, Ben viu que era um relógio de bolso bastante antigo. O vidro estava rachado, e o tiquetaque do relógio era alto feito o de uma bomba. Ben reparou que a parte traseira estava tão enferrujada que uma fina poeira

alaranjada manchara suas mãos. Na verdade ele não queria aquilo, mas se o avô insistira... Ben sentiu uma onda de remorso. Não vira o vovô Eddie muitas vezes nos últimos anos. Sempre que a mãe e o pai iam visitar o avô, Ben estava ocupado demais com alguma outra coisa. Às vezes, também inventava desculpas. O avô não cuidara muito de si mesmo nem da casa depois que a avó falecera, alguns anos antes. A casa começara a decair um pouco, fedendo a roupa suja e a comida estragada. Quando a gente saía, levava aquele cheiro junto. Então Ben se mantivera afastado sempre que possível. E agora era tarde demais para visitar o avô outra vez. — Ben? — Ouviu a voz da mãe, levando um susto. Ela chamara do andar de baixo. — As outras coisas do seu avô já chegaram. Você quer descer e dar uma olhada? Ben estivera tão perdido nos seus pensamentos que não ouvira o furgão estacionar. Pegando um jeans e uma camiseta no encosto da cadeira, ele desceu a escada. Saindo pela porta dos fundos, viu que Rex chegara antes dele, correndo e latindo diante do caminhão na alameda da garagem.

Rex era o enorme pastor alemão de Ben. Tinha o dorso marrom-acinzentado, barriga clara, pernas longas e uma cauda felpuda. Rex fora um cão perdido, salvo por eles do canil municipal. A mãe e o pai haviam levado Ben até lá, para que ele escolhesse o cachorro que quisesse. Em vez de um filhote, Ben escolhera Rex. Rex sempre amedrontava quem não fosse seu conhecido, principalmente quando entrava no Ciclo de Latidos. Com Rex por perto, não era necessário ter um alarme anti-roubo. O furgão era grande e tomava toda a alameda da garagem. Parecia ser capaz de transportar o conteúdo de um prédio de escritórios inteiro, não só a coleção de coisas do avô. Ben viu seu reflexo no espelho retrovisor quando o motorista abriu as portas traseiras. Fora obrigado pela mãe a cortar o cabelo para o enterro, e gostaria que os fios crescessem mais depressa. Correu a mão pelo cabelo, tentando eriçar as pontas. — Vamos logo, então — disse o pai. Ben foi até a traseira e espiou. Ficou ali examinando todos os pertences e bens mundanos do falecido Edward Stevens. Em outras palavras: uma grande pilha de velhos trastes inúteis.

Ben aguçou o olhar. O furgão estava cheio de jornais amarelados, torradeiras enferrujadas e bagulhos similares. Comparado com a maioria daquelas coisas, o tal relógio de bolso parecia ser de alta qualidade. — O que vamos fazer com tudo isso? — perguntou ele. O pai pôs as mãos nas cadeiras. — Vamos ver o que serve para guardar, o que pode ser útil para os brechós beneficentes, e o que só presta para ser jogado fora, acho eu — respondeu ele. Depois, recuou e olhou para a enorme pilha de itens bagunçados. — Quase todos esses troços são imprestáveis, Ben... mas o proprietário pediu que retirássemos as coisas logo depois do enterro. Do contrário, acho que teríamos jogado quase tudo no lixo lá na casa do seu avô mesmo. — Algumas coisas ainda servem — disse Ben, apontando para certas relíquias legais. Eram uns pequenos enfeites estranhos, uma bandeja cheia de selos antigos, uma máquina de escrever préhistórica, e um rádio... ou um sem-fio, como o avô sempre falava, que parecia muito velho. Ele vira um programa na tevê em que as pessoas vendiam antigüidades por uma fortuna. Talvez valesse a pena guardar algumas coisas daquele lote.

Acompanhando o entusiasmo de Ben, Rex pulou para dentro do furgão. Ben sorriu. Sabia que aquilo para Rex era o Paraíso Farejante. Em cima de uma cômoda, o pai pegou uma caixa que entregou para Ben, dizendo: — Olhe aqui. A caixa estava cheia de fotografias velhas. Algumas já haviam sido reveladas, mas outras eram só negativos ou contatos do tamanho de selos. Ninguém nem sequer pensava em câmeras digitais quando aquelas fotos foram tiradas. Algumas cópias estavam amassadas e trincadas. Outras tinham sido roídas por insetos e atacadas pelo mofo. Mas muitas estavam ótimas. Ben examinou rapidamente o conjunto. Uma delas mostrava o avô e a avó juntos na praia, ainda jovens, mas com trajes de banho antiquados. O pai de Ben olhou por cima do ombro dele, riu e disse: — Essas vamos ter de guardar. — Mas o cheiro é esquisito, pai — disse Ben. — Eu posso escanear tudo isso num CD. Então poderia ser guardado para sempre. A mamãe gostaria disso. — Boa idéia, Ben, mas não acho que o cheiro seja das fotos — disse o pai, apontando para o fundo do furgão.

O pai tinha razão. O cheiro ruim parecia vir de um lençol coberto de poeira. Ben passou por cima de Rex e puxou o lençol. Um currupaaaaaaaaaaaaaaaaaco forte fez com que ele retirasse depressa a mão. Ben gritou de susto, quase tropeçando nos próprios pés. Com o coração batendo forte, perguntou: — O que foi isso? Então recuou e deixou o pai afastar o lençol. Embaixo havia uma gaiola metálica de beleza extraordinária. As grades douradas formavam espirais, com pequenas janelas de vidro colorido fixadas entre elas. Em cima, o gancho tinha a forma de um dragão. O teto também era cheio de desenhos intricados. Mas o que espreitava ali dentro não era tão bonito.

Rex pulou do furgão como se seu rabo estivesse pegando fogo, derrubando Ben no assento de uma velha cadeira poeirenta. O menino examinou atentamente o interior da gaiola. — Um papagaio? — disse para si mesmo. Era isso mesmo o que havia ali. Se não houvesse escutado o grasnado, porém, Ben

pensaria que o bicho estivesse morto, empalhado e roído por traças. Os papagaios que ele vira nos programas sobre a natureza eram animais bonitos, com olhos luminosos e faiscantes. Tinham penas limpas e lustrosas. Pareciam mais vivamente coloridos do que uma exibição de fogos de artifício. Já aquele ali, não. O papagaio era torto e feio. Além disso, era exageradamente grande. Quase preenchia a gaiola, mas não por enfunar as penas ou algo assim, pois não tinha muitas penas. A maior parte do corpo parecia estar coberta de cicatrizes. As poucas penas que tinha eram esfarrapadas e cinzentas. Nas laterais do bico, os orifícios para respirar pareciam ter sido perfurados por um carpinteiro com uma venda nos olhos. Em torno do poleiro, as garras afiadas pareciam capazes de penetrar profundamente na carne de alguém e arrancar um pedaço enorme sem o menor esforço. — Esse é o Igor — disse o pai. — Igor? — perguntou Ben. — Que nome é esse? — Como você esperava que ele se chamasse? Tiddles? — disse o pai de Ben, rindo. Ele tinha razão. Igor era um nome apropriadamente assustador para uma ave muita assustadora. — Sabia que esse camaradinha foi o melhor amigo do seu avô

nos últimos anos de vida? Acho que ele comprou o bicho num mercado qualquer. Já ouvi todo tipo de história sobre ele, que tinha pelo menos cem anos de idade e poderia viver muito mais. Para Ben, a coisa parecia já ter morrido há uns cem anos, mas ainda não percebera. Ben não gostara do papagaio. Mais especificamente, não gostava do olhar que a ave estava lançando para ele, torcendo a cabeça e fixando um olho preto no seu rosto. — O vovô disse à sua mãe que Igor é bom papo — disse o pai, raspando a grade com o dedo. — Currupaco! Currupaco! — Cuidado, pai, você vai ficar sem o dedo — avisou Ben. Mas o pai estava ocupado demais tentando fazer a ave falar. — Currupaco! Currupaco! Por sorte o bicho não bicou o pai, mas também não falou. Só fez um barulho baixo feito um gargarejo, seguido por um som rascante de lixa. — Se ficarmos com ele, e ele gostar de nós, tenho certeza de que vai acabar falando — disse o pai. Agora não era só o papagaio que estava sem fala. Ben mal podia acreditar em seus ouvidos. Ficar com aquilo? O pai só podia estar brincando.

— Não se preocupe — disse o pai, sorrindo. — É brincadeira. Nem em sonho quero isso. Já a sua mãe talvez precise ser convencida. Ela sabe que o Igor significava muito para o seu avô.

Ben não queria partilhar seu lar com aquele pássaro horrendo. Então passou um tempo no quarto surfando na internet, à procura de coisas ruins sobre papagaios para mostrar à mãe. A maioria das páginas que encontrou era de admiradores de papagaios, mas ainda assim havia algumas citações prestáveis: Os papagaios são barulhentos, bagunceiros e potencialmente destruidores. Têm aquisição e manutenção custosas. Necessitam de muito tempo e atenção. Todos os papagaios mordem seus donos sob certas circunstâncias. Os papagaios podem ser agressivos. Quando ficam excitados, sibilam, gritam e batem as asas. Atacam sempre que se sentem ameaçados por alguém. Ben imprimiu o que encontrara e desceu com a folha de papel. A gaiola do papagaio já estava na cozinha. Igor estava agachado no poleiro, sendo alimentado com gomos de laranja

enfiados entre as grades pelos pais de Ben, que se revezavam na tarefa. Em troca, a ave arruinava agradecida, espichando o pescoço para que a mãe de Ben pudesse afagar sua cabeça com o dedo metido na gaiola. Havia algo estranho naquela cena. O papagaio tinha uma aparência horrível e era potencialmente violento. Por que estava sendo paparicado por eles como se fosse um lindo gatinho? Lá no furgão, o pai parecera desgostar da ave tanto quanto ele. Talvez só estivessem satisfeitos porque Igor finalmente começara a falar com eles. — Quem é um menino bonitinho, então? Quem é um menino bonitinho? — cantarolou Igor com uma voz esquisita. — Não é você, companheiro — disse Ben entredentes. — Com toda a certeza. — Está vendo? Ele é bem simpático — disse o pai, sorrindo. — É uma coisinha doce — disse a mãe. Doce? Como os pais podiam ver todas aquelas cicatrizes no corpo do bicho, sem se afastar? Como podiam sentir aquele cheiro, sem correr para a pia e vomitar? Será que a velha ave imunda hipnotizara os dois com aqueles olhos pretos esbugalhados? — Quem é um menino bonitinho ? — repetiu Igor. — O coitado do Igor parece já estar nas últimas — disse o pai. — Ele não vai viver

por muito mais tempo. Talvez seja melhor ficarmos com ele até o fim. Pelo vovô. — Isso é o mínimo que podemos fazer — concordou a mãe. Ben mostrou a folha impressa e disse: — Mas ele pode nos atacar. Está escrito aqui. — Pode nos atacar? — disse o pai, rindo. — Até um passarinho com as asas atadas nas costas podia dar uma surra no coitado do Igor! Tentando convencer a mãe, Ben disse: — Você não pode ter uma coisa dessas voando pela casa. Imagine se as garras dele pegam no seu cabelo. A mãe deu à ave outro gomo de laranja, sorriu e disse: — Ele não ficará voando pela casa, bobinho. Vai ficar na gaiola. Mas vamos deixar a noite nos aconselhar. Amanhã de manhã decidiremos o que fazer. Esta noite colocaremos a gaiola na sala. Na sala? Ben escutara direito? Ele esperava que a gaiola fosse posta na garagem, embora preferisse o terreno atrás do quintal. Sua mãe nunca deixava Rex entrar na sala. Por que o papagaio podia? Ela tinha tanto orgulho daquela sala, conservava tudo ali tão limpo e arrumado. Ben ficou surpreso ao

ver que ela deixaria aquilo ali. Não fazia sentido. De boca aberta, ficou olhando enquanto o pai levava a gaiola para o melhor cômodo da casa.

Depois de instalar Igor na sala, o pai desapareceu no escritório, e a mãe foi ao supermercado fazer compras para o jantar. Ben ficou sozinho com o papagaio. Ele detestara a presença da criatura na casa, principalmente na sala, e nem queria chegar perto da gaiola. Mas estava na hora do seu programa favorito. “Acho que preciso agüentar o bicho”, pensou ele. “Por enquanto.” Ben foi para a sala e sentou-se no chão. Ligou a tevê e pôs o prato no colo. Enquanto a mãe estava fora, ele aproveitara a oportunidade para pegar um sanduíche e um copo de leite. Não era permitido comer na sala, e a mãe tinha detectores de migalhas embutidos nos olhos. Ela sempre mantinha a sala perfeita, para o caso de uma visita aparecer. Ben olhou para o tapete imaculado no chão, a mesa polida, o aparador reluzente, as cortinas pregueadas na janela, o sofá valioso e as grandes poltronas. Parecia estranho que a mãe

deixasse entrar ali aquela ave velha, fedorenta e carcomida. A gaiola de metal fora colocada perto do abajur mais alto, que a mãe sempre mantinha aceso, dizendo que isso era mais barato do que usar as luzes do teto. Igor era uma ave grande e lançava uma sombra ameaçadora na parede. Ben sentiu os olhos da ave queimando as suas costas, enquanto assistia à tevê, mas estava determinado a não olhar para trás. Quando a música de abertura começou e os créditos rolaram, resolveu que de maneira alguma deixaria Igor estragar seu programa favorito. — Currupaaaaaaaaaaaaco! Currupaaaaaaaaaaaaaaco! O som dava a impressão de que Igor fora amarrado na mais perigosa montanharussa do mundo e lançado num mergulho profundo em velocidade máxima. A princípio, Ben tentou ignorar o barulho, pensando que a ave só queria atenção. Ele certamente não compactuaria com aquilo. Lembrou-se de ter lido, numa das páginas sobre papagaios na internet, que as aves pareciam criancinhas. Se fossem ignoradas quando faziam manha, acabavam ficando chateadas e paravam de fazer barulho. Caso contrário, podiam passar a fazer algazarra permanentemente. Ben

pensou que Igor fecharia aquele bico idiota quando finalmente percebesse que não era ouvido. Toda vez que um ator falava, porém, a ave grasnava mais alto, e Ben perdia cada palavra do diálogo. Ele apertou o controle remoto para pôr as legendas, mas mesmo assim não conseguia se divertir com o programa. Quando surgiu o primeiro intervalo comercial, o papagaio finalmente fechou o bico. Enfim, paz. De repente, Ben sentiu um calafrio na espinha. Por que Igor se aquietara? Certamente o papagaio não conseguia diferenciar um programa de um comercial. Então a idéia lhe ocorreu com a força de um soco: o bicho só estava interessado em estragar o seu programa. A prova disso veio quando o intervalo terminou e a ave imediatamente recomeçou a grasnar. Ben não agüentava mais. Virou-se e gritou para o papagaio: — Cale a boca! Cale a boca! A ave parou no meio de um grasnido e ficou em silêncio. Ben sorriu. Pelo menos agora o bicho percebera quem era o chefe ali. Ele se acomodou outra vez no sofá e tentou voltar ao programa.

Então, ouviu uma voz baixa ali atrás dizer: — Eu matei o seu avô. O coração de Ben gelou dentro do peito. Ele se virou lentamente, esquecendo o programa. O papagaio estava no poleiro, com a cabeça torcida para o lado e o olho esquerdo fixado em Ben. Não era um olho saudável como os de um papagaio normal, mas um olho doentio e gelatinoso como a grande gema de um ovo frito gorduroso. Ben clicou o botão mute no controle. A sala ficou silenciosa. Ele podia ouvir a mãe na cozinha. Ela já voltara das compras e estava fatiando cenouras na tábua de madeira. Um carro passou diante da casa, enquanto algumas crianças gritavam e riam na outra rua. Ben levantou e foi lentamente até a gaiola. Sua garganta estava apertada, mas ele ainda conseguiu murmurar: — O que você disse? O bicho arrastou os pés no poleiro e se encostou na grade, dizendo: — Você ouviu! Eu matei o seu avô.

Dessa vez não havia como confundir o que a voz cavernosa cantarolara. Ben correu da

sala para a cozinha, onde encontrou o pai ajudando a mãe com o jantar. — Mãe! Pai! — gritou ele. — O papagaio... falou! — Claro que falou, querido — disse a mãe, sorrindo. — Os papagaios falam. Você sabe disso. Ele estava falando conosco na cozinha antes de você descer. Ben gaguejou: — Mas o que ele falou... — O que ele falou? — perguntou o pai, curioso. — Tudo o que conseguimos tirar dele foi: “Quem é um menino bonitinho?”... Cheios de expectativa, a mãe e o pai ficaram aguardando a resposta de Ben. — Ele disse que matou o vovô — disse Ben. Os olhos da mãe se arregalaram de espanto. O pai pareceu ficar zangado. — Como você pode falar isso, principalmente na frente da sua mãe? — Mas ele disse isso — insistiu Ben. — Foi o que ele disse. O pai já percebera que Ben estava perturbado. Em tom mais gentil, disse: — Ben, isso é impossível. Nós sabemos que os papagaios podem falar, mas só conseguem repetir o que ouvem. Confira aquelas suas pesquisas sobre papagaios. — É isso mesmo, querido — disse a mãe. — Eles só conseguem nos imitar. Não podem começar uma conversa.

— Mas foi isso o que ele disse — insistiu Ben. Por que eles não acreditavam nele? — Provavelmente você ouviu alguma coisa no programa da tevê — sugeriu o pai. —Algum personagem disse aquelas palavras, e você pensou que fosse o papagaio. — Mas o programa da tevê não era sobre a morte do avô de alguém — disse Ben. — Por que falariam isso? — Se o Igor disse qualquer coisa assim, estava só imitando algo que ouviu em algum lugar — disse a mãe. — O seu avô também mantinha o Igor na sala, para poder ver tevê com ele. Os papagaios têm uma memória excelente, e você sabe como o seu avô era: ele nunca desligava a tevê. Provavelmente o Igor viu milhares de filmes e programas na tevê. Por isso, devia estar só repetindo o que ouviu em algum deles. — Eu não vou voltar para a sala — protestou Ben. — Não podemos nos livrar do Igor? — Eu sabia — disse a mãe, parecendo zangada. — Você não gostou do Igor desde o primeiro momento e está dizendo tudo isso só para nos livrarmos dele. O que o vovô diria? — Está bem, esqueça — disse Ben. — Fiquem com o bicho. Eu não ligo. Só vivo

aqui há doze anos, e aquela coisa já passou uma hora inteira aqui. Portanto, podem colocar o Igor em primeiro lugar. Ben saiu da cozinha, cruzou o corredor e subiu a escada. Não queria mais ver tevê. Ficaria no quarto lendo revistas e deixaria os pais com o papagaio. Já que gostavam tanto dele, Igor tomaria também o seu lugar no jantar. Ele não ligava a mínima. Talvez se recusasse a descer até o bicho ir embora. Eles iam ver! Rex esperava na porta do quarto, gemendo. Ben jamais vira o cachorro daquele jeito. — Rex? Você está bem, garoto? — perguntou Ben, ajoelhando-se e afagando a cabeça do cachorro. — Você também detesta aquele bicho, não é, garoto? Mas não era só que Rex detestasse Igor. O pulo que ele dera para fora do furgão indicava que estava apavorado. Parecia que o cachorro sentira que o papagaio não era boa coisa desde o primeiro encontro. Como se ele soubesse. Afinal de contas, supostamente, os cachorros são mais sensíveis do que os seres humanos sob certos aspectos, conseguindo detectar coisas que as pessoas não conseguem. — Não se preocupe, garoto, ele vai embora logo — disse Ben. Ele espalhou uma seleção de revistas na cama e tentou se

concentrar numa história. Mas as batidas do seu coração o impediam. Ele não conseguia esquecer o que o papagaio falara. Eu matei o seu avô. Seria verdade? O pai dissera que o papagaio fora o melhor amigo do avô. Será que ele poderia mesmo ter matado o velho? E, caso fosse verdade, como? Ben deitou na cama, cobriu o rosto com as páginas abertas da revista e fechou os olhos. Precisava pensar sobre aquilo... O sonho começou quase que imediatamente. Ben se viu de volta ao funeral do avô. Sentia-se acalorado e apertado naquele terno novo, preto e desconfortável. Estava rodeado pelos parentes, enquanto o padre lia a Bíblia. Mas alguma coisa estava diferente. O velho papagaio cinzento estava empoleirado no túmulo do avô, olhando para todos e rindo. Rindo feito louco. E repetindo as palavras do padre naquele tom de cantoria zombeteira. Por mais que o padre falasse alto, o papagaio ressoava mais alto ainda. Seus grasnidos soavam pelo cemitério como sinistros sinos de igreja. Mas ninguém parecia notar nem ouvir, além de Ben. Então o vigário disse: — Descanse em paz.

O papagaio abriu as asas quase depenadas e avançou para Ben, cortando o ar. Ben se atirou ao chão, mas o papagaio mergulhou, feito um míssil teleguiado, e conseguiu acertar nele as garras afiadas feito navalhas. Ben gritou, mas ninguém à sua volta parecia perceber o que estava acontecendo. O padre continuou a ler. Ben pôs a mão no peito, sentindo o sangue correr pelos dedos. E então acordou. Sentou ereto na cama, como se houvesse levado um choque, com as mãos agarrando o peito. Percebeu que estivera sonhando, mas sentia as mãos ainda paralisadas. Não ousava olhar para elas. Mas não havia sangue. Tudo o que brilhava nos seus dedos era baba de cachorro. Rex estava ao lado da cama. O cachorrão acordara Ben lambendo a mão dele, quando o braço ficara pendurado fora da cama. — Dá-lhe, garoto! — murmurou Ben. Embora seu estômago estivesse roncando, ele se recusou a descer. Tentou se acalmar, mas todo o seu corpo tremia. Não conseguia esquecer Igor. Precisava descobrir se o papagaio dissera mesmo o que ele pensara. E, se dissera, se aquilo era verdade ou não.

Era cedo na manhã seguinte, e o sol acabara de nascer. Ben esperou até ter certeza de que os pais ainda estavam dormindo, enquanto tomava coragem. É só um pássaro, nada mais que um pássaro velho, repetia para si mesmo. Quando tomou coragem suficiente, desceu. Cada passo era mais lento que o anterior, pois fazia com que ele se aproximasse da sala. Ou seja, mais perto do covil do papagaio. Ele ficou parado diante da porta fechada da sala por um longo período. “É agora ou nunca”, pensou finalmente. Girou a maçaneta. Para sua surpresa, a mãe estava na sala alimentando Igor com um pedaço de cenoura através da grade da gaiola. Tentava fazer a ave falar, dizendo: “Cenoura, hummm, cenoura, hummm... Olá, bom dia, olá, bom dia”. Aquilo não era bom. Ben sabia que Igor nunca repetiria diante da mãe o que dissera para ele. Algo lhe dizia que aquelas palavras eram destinadas somente a ele. Ben estava prestes a falar, mas nesse momento seu queixo quase caiu, e ele só conseguiu soltar um arquejo de descrença. Olhou em volta da sala, mal acreditando no

que estava vendo. Aquela sala que a mãe mantinha perfeitamente limpa e imaculada, sempre pronta para os visitantes, estava imunda. A sujeira era uma mistura de penas e serragem que espirrara da gaiola e se espalhara pelo tapete ao redor do suporte. A mãe tentava fazer Igor recitar uma rima, dizendo: “Era uma vez uma ave bonitinha, que vivia comendo cenourinha...”. Igor permanecia silencioso feito a morte. — Mãe, olhe para isso — disse Ben. — Olhar para o quê? — perguntou a mãe. — Você não vê que estou dando comida para o Igor? Ben se abaixou, recolheu um punhado de sujeira e mostrou a ela. — A sujeira! A bagunça! Imediatamente se arrependeu de ter pegado a sujeira. Não havia somente serragem e penas nos seus dedos. Ele podia sentir algo mais ali: titica de ave. Atirou tudo de volta ao tapete com nojo. — Ora, cresça, Ben — disse a mãe. — Uma ou duas manchas de sujeira não fazem mal. O queixo de Ben caiu mais um pouco. Aquela era a mesma mulher que enlouquecia quando Rex punha a cara na porta da sala? A mesma mulher que reclamava durante uma semana quando

Ben sacudia migalhas do pulôver em cima do tapete da sala? Ela continuou a alimentar a ave, parecendo já ter esquecido Ben. “Cenoura, hummm, cenoura, hummm”. — Tem certeza de que esse bicho não preferiria cenouras orgânicas? — comentou Ben com sarcasmo. — Dizem que são mais gostosas, e é claro que você acha que o Igor deve ser tratado como um rei. — Ah, sim, elas são vendidas nos supermercados, não são? — disse a mãe. Ben não conseguia acreditar. Ela estava levando aquilo a sério! Geralmente dizia que a comida orgânica era muito cara, mas parecia que nada era bom demais para Igor. — É melhor nós sairmos e estocarmos mais comida para ele. O Igor tem muito apetite. E devemos comprar alguns brinquedos também. Você quer vir? Ben mal podia acreditar que estava começando a sentir ciúme de um papagaio, mas disse: — Não, obrigado. Vou ficar aqui, caso o Igor precise de alguma coisa. Ele pode sentir alguma coceira, ou querer que alguém mude o canal da tevê. A mãe de Ben sorriu, ainda sem perceber o sarcasmo na voz do menino.

— Agora está sendo sensato. Eu sabia que você acabaria gostando do Igor — disse ela. Depois saiu da sala e chamou o marido. — Joe, vamos fazer compras para o Igor? O Ben disse que devemos comprar cenouras orgânicas para ele. Ainda é cedo, mas acho que o supermercado do outro lado da cidade deve estar aberto. — Ótima idéia — disse o pai. — Já vou descer. Ben não acreditava no que ouvia. Seu pai não gostava de fazer compras e sempre dava uma desculpa para não ir, mesmo que precisasse lavar o carro duas vezes numa semana. Mas ao menos agora Ben tinha a sua chance. Esperou até ouvir a porta dos fundos bater e o carro se afastar. O pai e a mãe haviam saído. Estava na hora. Ben ficou na frente da gaiola do papagaio. A ave torceu a cabeça para o lado, como que ouvindo instruções de espíritos invisíveis e maus. Tinha o corpo todo aprumado no poleiro, como se soubesse que Ben era uma ameaça. Parecia ter inchado e olhava fixamente para ele. Sem se deixar intimidar, Ben perguntou: — O que você disse para mim ontem?

Igor balançou para a frente e para trás no poleiro, sem dizer nada. — Vamos, sua ave idiota... fale! — ordenou Ben. Como Igor continuou em silêncio, a confiança de Ben voltou, inchando dentro do seu peito como um balão. Aquilo era só um papagaio normal. Claro que era. Como ele podia ter pensado outra coisa? Fora tudo imaginação sua, só isso. Ben sorriu ao pensar como fora tolo. Mas, quando ele se virou para sair, a tal voz esquisita cortou o silêncio como uma espada, cantarolando: — Eu matei o seu avô. Ben virou-se e olhou para a ave. Ele tinha razão antes. O que Igor falara na véspera fora real. O papagaio olhava desafiadoramente para ele. O tamanho de suas pupilas crescia e diminuía. Aquilo era um sinal de agressão, conforme Ben lera na internet. — E você é o próximo! — gritou o pássaro. Ben se sentiu inundado por ondas de choque. O papagaio olhou para o menino de cima a baixo, soltou um grasnido perverso e disse: — Um pedaço magrelo de carne e osso como você. Sem problema, sem problema. Ben só tinha certeza de uma coisa: precisava sair daquela casa já. Calculou que

a melhor coisa seria levar Rex para um passeio.

A manhã estava linda, com tufos de nuvens espalhados pelo céu azul. Depois de vários chamados, Rex finalmente veio se esgueirando nervosamente escada abaixo. O cachorrão nem esperou Ben colocar a coleira; voou para fora assim que a porta foi aberta. — Não se preocupe, garoto — disse Ben. — Vamos nos afastar ao máximo daquele bicho. No começo não foi divertido, porque Rex puxava demais a correia. Quanto mais se distanciava da casa e de Igor, porém, mais o cachorro parecia se acalmar. Finalmente, sua confiança voltou. Relaxando, Rex passou a fazer as coisas caninas comuns: farejar os outros cachorros, inspecionar tufos de grama, postes, poças, árvores e tudo o mais que aparecesse pelo caminho, como se não houvesse preocupação alguma no mundo. Ben e Rex andaram e andaram pelas ruas ladeadas de árvores. Só paravam por causa do trânsito e nunca olhavam para trás. Ben sentiu seu próprio medo diminuir um pouco. A tranqüilidade da vizinhança

parecia estar entrando na sua pele e trazendo calma. De repente, ele reparou que o dia estava realmente muito bonito. Era uma daquelas tardes preguiçosas de verão, em que o sol aquece suavemente nosso rosto enquanto caminhamos. Aquele bairro era agradável. Às vezes parecia meio monótono, mas Ben se sentia feliz por morar ali. As ruas eram limpas. Não havia muito trânsito. A maioria dos vizinhos era amável. Uma profunda sensação de estranheza invadira a vida de Ben desde que Igor aparecera, mas ali fora a simples normalidade de tudo era reconfortante. E tudo continuava normal. As pessoas colocavam as latas de lixo para o lixeiro pegar, lavavam os carros, cortavam a grama, compartilhavam xícaras de chá e trocavam dicas de jardinagem por cima das cercas nos jardins. Parecia que toda a história do papagaio fora um pesadelo e que a realidade subitamente voltara ao seu lugar. Ben sabia que a mãe e o pai tinham razão. Os papagaios não são como os seres humanos. Não conseguem conversar. Só imitam os sinais da fala humana, assim como imitam o som do telefone ou o do furgão da sorveteria. O esquema é esse. Para os papagaios, trata-se só de barulho. Não sabem o que estão dizendo. Portanto,

Ben não podia ter ouvido aquilo saindo do bico do papagaio, nem hoje nem na véspera. A não ser que Igor houvesse aprendido todo aquele diálogo em algum velho filme ou programa da tevê... mas qual era a probabilidade disso? Chegaram ao parque e Ben se sentou embaixo de uma árvore, esfregando pensativamente um pedaço de grama entre os dedos, enquanto tentava dar um sentido a tudo aquilo. Deitou e olhou para as nuvens que passavam. Algumas delas pareciam coisas: desde uma girafa, até o carro do pai. Uma delas parecia exatamente o bico aberto de um pássaro... De repente, Ben sentiu uma língua no rosto e um bafo ruim nas duas narinas. Levantou do chão alarmado. Mas era só Rex, lambendo o rosto dele. — Tá legal, tá legal, já estou limpo — disse Ben, rindo e rolando na grama com o cachorro. Sentia-se feliz com a presença de Rex por perto e percebeu algo importante. — Eu não sou maluco, sou, garoto? Você é a prova disso, porque ficou tão amedrontado com aquele bicho velho quanto eu. Você também sabe a verdade sobre o Igor. Rex inclinou a cabeça para o lado, como se estivesse prestando muita atenção. Ben começou a rir.

Ele resolveu passar pelo cemitério a caminho de casa. Queria ver o túmulo do avô. No dia do enterro a lápide ainda não estava pronta. Ele foi vagueando pelo labirinto de sepulturas. Era um cemitério velho, com algumas lápides e inscrições antigas realmente interessantes. Muitas estavam tortas e corroídas por séculos de tempestades. Alguns nomes nas velhas pedras haviam desaparecido completamente. Diversas estátuas antigas de anjos e querubins sinistros espalhavamse pelo lugar. Rex estava mais interessado na grama alta e nas velhas árvores que lançavam maçãs bichadas no chão em volta deles. Finalmente, Ben achou o que procurava. Leu o que estava escrito na lápide, enquanto Rex deitava e arfava feliz: EDWARD STEVENS AMADO PAI E AVÔ DESCANSE EM PAZ Ben pensou no avô. A casa dele podia estar cheia de trastes velhos, mas o vovô era um cara legal, e Ben sentia muito a sua falta. Será que o papagaio realmente matara o vovô?

— Só você sabe a verdade sobre aquela ave, vô — disse Ben para si mesmo. — E já não pode me contar.

Logo que eles chegaram à rua de Ben, Rex recomeçou a agir de modo estranho, com a cabeça curvada e o rabo abaixado. Quando chegaram em casa, Ben precisou arrastar o cachorro pelo portão para entrar no jardim. — Não se preocupe, garoto, não há o que temer — disse ele, mas sem muita convicção. Sabia bem que havia muito o que temer ali. Embora Ben puxasse com força, Rex não entrava na casa. Ele se recusava terminantemente. E, quando Ben tentou forçar a barra, o cachorro arreganhou os dentes e rosnou. — Está bem, está bem — disse Ben, soltando a coleira. Tão logo ele fez isso, Rex saiu correndo pelo lado da casa. Foi até o final do jardim e ficou lá, agachado embaixo de uma sebe. Ben entrou em casa sozinho. O pai e a mãe estavam na cozinha, preparando o que parecia ser o jantar... até que Ben examinou de perto os ingredientes. A maior parte da comida era granulada. Grânulos nojentos para aves. Alguns eram

marrons, e outros tinham cores vivas no formato de frutas. Havia grânulos em pratos, em pires e em tigelas. Os grânulos faziam as sementes de girassol e a ração em pó nos outros pratos parecerem saborosas. Era tudo comida para Igor. Nem tudo estava espalhado pelas mesas. Uma parte borbulhava e fervia sobre o fogão. A cozinha parecia o laboratório de um cientista louco. A mãe de Ben estava triturando uma mistura de grânulos e sementes numa tina grande. O pai estava a seu lado, tirando a casca das nozes. Havia algo de estranho nos dois. Eles tinham o olhar vago dos sonâmbulos. — O Igor vai se divertir descascando essas nozes! — ralhou a mãe de Ben com o pai. — Deixe isso assim mesmo. Já isto aqui você pode fazer. Ela despejou um pouco de suco de laranja numa tigela. Ben leu o rótulo. Suco Fresco de Laranja Orgânica. — Coloque alguns grânulos aqui dentro — disse a mãe para o pai. — Ele vai gostar mais. Ben estava espantado. A mãe nunca comprara suco fresco de laranja orgânica para ele beber. Mas comprara aquela coisa cara e saudável para Igor, e ainda mergulhara grânulos no líquido!

Por alguns segundos, Ben ficou sem fala. Depois disse: — Pai, o Rex não quer entrar em casa. Está apavorado por causa do papagaio. Ficou lá no jardim e não quer sair do lugar. O pai pareceu aborrecido por Ben perturbar sua tarefa de mergulhar os grânulos. Então disse: — Ora, não precisamos mais do Rex, não é? Agora temos o Igor. Não sei como deixamos aquele cachorro entrar aqui em casa, para começar. Estou pensando em levar o bicho de volta para o canil na semana que vem. Ele dá mais trabalho do que vale. Ben não acreditou no que ouviu. — Pai, como você pode falar assim? O pai sempre gostara de Rex. Os dois pareciam ser os melhores amigos um do outro. O pai passava horas brincando com o cachorro no quintal. Às vezes, ele e Ben discutiam sobre quem tinha direito a levar Rex para passear. — Claro que posso — respondeu o pai. — Como aquele vira-lata horrível provavelmente tem pulgas, é melhor que fique fora de casa. A mãe assentiu com a cabeça e disse: — Basta um animal de estimação. E o Rex será muito mais feliz de volta ao canil, junto com todos os outros cães sujos, babões e pulguentos.

— Vocês não podem levar o Rex de volta para o canil. Eu gosto dele mesmo que vocês não gostem — gritou Ben. Estava tão zangado que queria quebrar a mobília. Como não ousava fazer isso, deu um soco na mesa da cozinha. Depois apontou para a bagunça dos grânulos e disse em tom zangado: — Olhem só para essa gosma! E o nosso jantar? — É muito mais prático nós todos comermos o que o Igor come — disse a mãe. Ben fez uma careta, como se já tivesse provado aquilo. Havia também algumas frutas e verduras frescas espalhadas sobre a mesa. Ben tinha esperança de que a mãe quisesse dizer que eles comeriam aquilo, e não os grânulos. Mas de maneira alguma comeria com aquele pássaro, qualquer que fosse a comida. Não suportava sequer partilhar a casa com o bicho. A coisa já fora longe demais. Ben precisava achar alguma saída, e depressa. Ele entrou na sala e chacoalhou a gaiola de Igor. — Tá legal, se você matou o meu avô, como fez isso? — Depois, insistiu: — Vamos lá... o que você fez? O papagaio olhou para o menino e torceu a cabeça.

— Empurrei o velho escada abaixo. Um fracote. Os ossos se quebraram. O terror foi subindo pela barriga de Ben e saiu pela boca num arquejo estrangulado. Ele fugiu correndo da sala, com as passadas acompanhadas pelas palavras do papagaio: “QUEBRARAM, QUEBRARAM, QUEBRARAM”. Ben bateu a porta da sala atrás de si e se encostou na madeira, ouvindo os cacarejos zombeteiros do papagaio. Lá na cozinha, a mãe estava fazendo um prato com um arranjo bonito de grânulos. Ben se aproximou e disse em voz baixa: — Mãe, como o vovô morreu? Ela olhou para o filho, intrigada. Por um breve momento, quase pareceu ter voltado ao normal. — Ele caiu escada abaixo, Ben — disse ela, triste. Depois seu rosto voltou àquela mascara frígida de antes, e ela continuou a arrumar os grânulos. Ben ficou desanimado. Já sabia que Igor falara a verdade sobre a morte do avô. E isso significava que o papagaio também falara a verdade quando dissera para Ben: “E você é o próximo!”

Ben recusou o jantar bizarro que a mãe e o pai haviam preparado. Fez um sanduíche e foi comer no quarto. Por sorte ainda havia comida de verdade na casa, então ele pôde colocar no sanduíche geléia em vez de grânulos. Normalmente, os pais não permitiriam que ele comesse no quarto ou que trocasse a refeição principal por um sanduíche. Agora, pareciam não ligar. Também pareciam não ligar para ele. As horas foram passando. Eles não chamaram Ben para saber como ele estava, ou onde ele estava. Nem para ver tevê com eles, como habitualmente faziam. Ben quase nunca gostava de ver o que eles viam, mas era bom ser chamado. Agora, era como se ele não existisse mais. Ben desceu para dar boa-noite aos pais e viu uma tempestade lá fora. A chuva batia nas vidraças com tanta força que parecia que alguém estava atirando grânulos ali. Ben pensou em Rex. Será que o cachorro ainda estava no jardim? Embaixo daquilo? Ele correu para a cozinha e girou a chave na porta. A ventania era tão forte que Ben quase foi arrastado para fora. Ficou esperando que Rex corresse para dentro, fugindo daquele tempo horrível, mas o cachorrão não saiu do fundo do quintal.

— REX! — gritou Ben, com a voz trêmula de medo. — REX! Você está aí, garoto? Nada. Ben pegou um guarda-chuva perto da porta e saiu. Uma sombra se mexeu no final do jardim. Era Rex. O cachorro estava deitado, afundando na lama que fora terra algumas horas antes, enquanto a chuva batia forte no seu pêlo. Embora Rex tivesse um pêlo grosso, Ben viu que ele tremia. — Venha, garoto, venha comigo — pediu Ben, abrindo a porta do barracão do pai. Entrou e estendeu alguns lençóis no chão, dando a Rex um lugar mais confortável para dormir. O cachorro passou pelo menino e foi sentar no fundo do barracão, recuando nas sombras ao máximo. Depois de ver que o cão estava aquecido, Ben voltou para casa. Estava encharcado quando entrou. Embora não quisesse muito, decidiu dar boa-noite aos pais rapidamente e atravessou a cozinha até a sala. Seus dedos giraram a maçaneta suavemente. Ele enfiou a cabeça pela abertura e começou a dizer: — Boa... Ficou tão chocado que perdeu o fôlego e não conseguiu terminar. Arregalou os olhos e esquadrinhou a preciosa sala da mãe.

Todas as luzes estavam apagadas, mas o que Ben via era iluminado pelo reflexos bruxuleantes da tevê. Sentados no escuro, seus pais olhavam para a tevê como zumbis. Igor estava empoleirado atrás deles, no encosto do sofá rasgado e roído. As poltronas também estavam tão roídas quanto o velho osso de borracha de Rex. Assim como o tapete. Assim como os abajures. Assim como as cortinas. Aquilo parecia mais a jaula de um animal no jardim zoológico do que o melhor aposento de uma casa. O tapete tinha mais serragem espalhada do que um picadeiro de circo. Sobressaindo na serragem, havia muita comida mastigada e titica de papagaio. Ben começou a temer pelos seus pais. Será que eles haviam enlouquecido? O mais preocupante era que ele não tinha medo só pelos pais: percebeu que também começava a ter um pouco de medo deles. — Boa noite, então — disse Ben. Eles ficaram sentados lá, enquanto o brilho do programa da tevê ressaltava a palidez dos rostos. Nenhum dos dois respondeu. Desde que fora obrigado pela mãe a cortar o cabelo, Ben sempre tentava eriçar as mechas. Mas não precisava mais fazer

isso. O cabelo na sua cabeça já estava arrepiado da raiz às pontas.

Ben precisava pensar cuidadosamente. Precisava ser esperto e pensar depressa. Aquele bicho acabara com o seu avô e agora planejava fazer o mesmo com ele. Um dia inteiro se passara desde que Igor dissera: “E você é o próximo!”. Ben calculou que o papagaio já tivera tempo de sobra para pensar como faria aquilo. Ele estava preocupado com a mãe e o pai, mas pensou que por enquanto eles estariam a salvo: Igor estava usando os dois como escravos. Ben tinha certeza de que o pássaro hipnotizara o casal. Eles já haviam retornado à cidade a fim de comprar mais comida para Igor, e as lojas haviam acabado de abrir. A mãe e o pai podiam estar a salvo, mas um menino como ele apenas atrapalhava Igor. Não tinha utilidade. Ben sabia que precisava agir primeiro... mas como? Será que ele poderia envenenar a comida do bicho? Era arriscado, porque a mãe e o pai estavam compartilhando a comida de Igor. Ben não queria causar mal a eles. Tinha

esperança de que seus pais voltassem ao normal assim que Igor sumisse. Uma outra idéia ocorreu a Ben: e se ele colocasse o papagaio em liberdade? Talvez funcionasse... Ele precisava aproveitar a oportunidade, enquanto os pais estavam fora de casa. Entrou na sala, fazendo uma careta assim que passou da porta. O aposento fedia a titica de papagaio. Na prateleira acima da lareira, a mãe sempre punha uma travessa com ervas para perfumar a sala, mas agora o troço estava cheio da titica do papagaio. E isso nem era o pior. Os jornais da véspera estavam em frangalhos, espalhados como confete pelo sofá. Havia pedaços de alface estragada grudados nas almofadas. Os caules das flores nos vasos haviam sido quebrados.

“Bom trabalho, Igor”, pensou Ben atravessando a sala, “mas logo esta sala e as nossas vidas voltarão ao normal. E você terá partido”. O plano era largar a gaiola no jardim com a porta aberta. Igor seguramente sairia voando. O menino tinha certeza que o papagaio não resistiria. A ave ficou olhando para Ben com curiosidade, enquanto ele lutava para levantar a grande gaiola velha. Igor foi balançando de um lado para o outro no poleiro, enquanto Ben carregava tudo pela sala até a cozinha. A gaiola era pesada, e o menino sentiu as costas doerem sob aquele fardo. O papagaio estava muito mais gordo do que quando chegara. Isso não era surpresa, pensou Ben, pois os seus pais pareciam estar gastando todo o orçamento semanal em comida para o papagaio. Ele só esperava que Igor não houvesse engordado demais para sair voando. Quando imaginou o papagaio sobrevoando os telhados para nunca mais voltar, Ben pensou na reação de seus pais quando vissem que o novo animal de estimação fora embora. Como ele explicaria isso aos dois? Pensaria em alguma coisa. Diria que estava limpando a gaiola e que

acidentalmente deixara a porta aberta. Então, antes que ele percebesse, Igor saíra voando. Talvez eles acreditassem nisso. Para ser sincero, porém, Ben sabia que não se importava se eles ficassem zangados. Qualquer castigo valia a pena para ver aquela criatura sinistra pelas costas. Ben deixou a gaiola na mesa da cozinha e abriu a porta dos fundos. Ofegando, colocou a gaiola na soleira e escancarou a portinhola. Parou e esperou. Será que aquilo funcionaria? O medo de que não funcionasse fez seu estômago começar a latejar, e ele gritou: — Vá embora, Igor! Vá embora! Mas Igor não se mexeu. — Você já está livre — disse Ben, exasperado. — Livre para voltar ao lugar de onde veio. Livre para ir aonde quiser. E, com um pouco de sorte, algum caçador pode confundi-lo com um pato, ou algo assim, e lhe meter um tiro mortal quando você estiver voando pelo céu. Mesmo assim, Igor não se mexeu. Ben chacoalhou a gaiola com o pé. — Você está grudado nesse poleiro? Saia voando daí, seu bicho idiota. Você está livre. — disse.

O papagaio se virou, olhando para o menino, e soltou um grasnado grave, que mais parecia uma horrível risada irônica. — Foi isso mesmo o que o seu avô tentou. E veja onde ele está agora. Ben sentiu seu coração se partir ao meio feito um galho de árvore atingido por um raio. Igor sabia exatamente o que ele estava tentando fazer e não tinha a intenção de partir. Ben chutou a gaiola e ordenou: — Voe. Saia voando! Igor não se mexeu. Mas Ben resolveu não aceitar um não como resposta. Levou a gaiola mais para fora, enquanto a porta balançava na dobradiça. Colocou a gaiola no concreto e voltou às pressas para o jardim. Sabia do que precisava. O pai usava varas de bambu para amparar as pesadas flores de algumas plantas, evitando que se quebrassem com as tempestades. Ben olhou para todas elas, dispostas em fila. As varas cumpriam bem a função. Depois da forte tempestade na noite anterior, todas as hortênsias continuavam firmes. Mas as varas funcionariam com Igor? Ben arrancou uma vara do chão. A planta e as flores amarradas ali arquearam, mas ele duvidava de que o pai se importasse com aquilo. Agora ele só se importava com Igor.

Ben voltou correndo até a gaiola, brandindo o bambu como uma espada. Aquela ave nojenta já tinha mais cicatrizes no corpo que a maioria dos médicos vira na vida e ganharia outras tantas caso se recusasse a sair da gaiola. — Vai sair ou não? — disse Ben. Igor ficou no poleiro. — Está bem — disse Ben. Ele enfiou a vara na gaiola e começou a cutucar o papagaio. — Saia! Cutucão. — Voe! Saia! Cutucão. Cutucão. O papagaio agiu depressa. Num movimento veloz, puxou a vara para dentro da gaiola e partiu o bambu ao meio com uma bicada. — Agora é a sua espinha! — guinchou Igor, como se fosse um carro de corrida com freios defeituosos. — Pronto ou não, lá vou eu! Ben sentiu um calafrio de medo. Tudo o que ele queria era manter Igor preso dentro da gaiola. Correu para fechar a porta da gaiola, trancando a fechadura, antes que as garras do bicho furioso pudessem arrancar seus dedos. Dentro da gaiola, Igor se debatia e bicava violentamente as grades. — Hora de morrer! Hora de morrer!

Ben correu até o barracão para apanhar as luvas de jardinagem do pai. Não havia como pegar a gaiola sem as luvas. Rex continuava lá, coberto com os lençóis, como na noite anterior. Ele afagou a cabeça do cachorro ao passar. Assim que achou as luvas, voltou à gaiola. Com o coração batendo feito um batuque de vodu, tentou puxar o troço para a casa. O papagaio estava cada vez mais nervoso. Tentava arrebentar as grades com o bico, dando repetidas estocadas nas mãos enluvadas do menino. Ben finalmente conseguiu colocar a gaiola de volta perto do abajur, que caíra no chão. Olhando para ele com um olho amarelado, o papagaio gritou várias vezes: — Hora de morrer! É a sua vez! É a sua vez! Ben fez o que pôde para ignorar a ameaça apavorante e saiu apressadamente. Correu para o barracão, tirou as luvas e viu que Rex estava encolhido embaixo da bancada de trabalho. — Vamos lá, garoto — disse ele. Mas Rex se encolheu ainda mais na sombra. Ben se agachou e estendeu a mão. Rex se esticou e deu-lhe uma lambida. Mesmo naquele momento, porém, Ben ainda ouvia ao longe a cantoria mortal do papagaio maligno.

— Hora de morrer... e vai ser logo!

Naquela noite, qualquer barulho fazia Ben dar um pulo na cama: o rangido do assoalho do quarto dos pais, que se preparavam para dormir; as batidas das asas de um inseto na janela do quarto; o gorgolejar dos canos nas paredes; os estalidos em todos os cantos secretos da casa. Mas Ben fez um esforço para se concentrar. Já sabia que estava correndo um sério perigo, e precisava pensar no que fazer. Pegando um pedaço de papel e um lápis, ele fez uma lista dos “prós” e “contras”. Tratar aquilo como apenas um problema normal para ser resolvido com coisas práticas fazia com que se sentisse menos nervoso. Infelizmente, parecia que havia só duas opções, e a primeira tinha mais “contras” do que “prós”. A primeira era chamar o pessoal do departamento de assistência social. Se eles vissem o estado da casa, poriam um fim na situação. Diriam que não havia ambiente para criar uma criança ali. Um porco, talvez, mas não um menino. Pois o andar térreo da casa estava cada vez mais parecido com um chiqueiro. O papagaio só saía da gaiola quando a mãe e o pai estavam na sala, mas

nesses curtos períodos já virava o lugar de cabeça para baixo. Havia tanta titica espalhada pelo chão da sala que era preciso tomar cuidado ao pisar ali. O papagaio dilacerara a mobília com as garras, tal como fazia com as frutas na hora de comer. As poltronas já não estavam só rasgadas; os estofamentos haviam sido arrancados e jogados no chão. Parecia que ali dentro fora solta uma motosserra, e não um papagaio. Até no papel da parede havia marcas de garras; eram tão fundas que parecia que um ancinho arranhara as paredes. Mas logo surgiam todos os “contras”. Os assistentes sociais certamente tirariam Ben da casa. Ele seria levado para um lugar seguro, e provavelmente seus pais seriam processados. Não havia como os assistentes culparem o pássaro. Culpariam a mãe e o pai. Só que a culpa não era deles. Ben não sabia como, mas tinha certeza de que Igor assumira o controle da mente deles. O pai e a mãe estavam agindo mais como robôs, programados para obedecer à vontade do pássaro, do que como pessoas que sabiam o que estavam fazendo. Além disso, os fiscais da crueldade contra animais certamente devolveriam Rex ao canil, e ele jamais reveria o seu cão de estimação.

A única alternativa era ir tocando de ouvido e enfrentar as agruras de cada dia. Tentar sempre evitar Igor, até ter idade para sair de casa e ir morar sozinho o mais longe possível. A desvantagem? Ele tinha só doze anos, e o dia em que poderia sair de casa estava anos e anos à frente. Até esse dia, pensou, ele poderia passar o maior tempo possível fora de casa. Ficaria com amigos e parentes sempre que pudesse. Recém-transformados em zumbis, os pais provavelmente nem notariam a ausência dele. Embora Ben agora estivesse em férias, as aulas recomeçariam em uma semana, e ele ficaria o dia inteiro fora. Podia se inscrever num clube e tentar fazer algum esporte. Assim talvez conseguisse ficar fora de casa depois da escola e nos fins de semana. Podia até procurar um programa de intercâmbio, para trocar de lugar com um estudante estrangeiro e passar um semestre em outro país. Na verdade, porém, Ben não queria deixar os pais sob o feitiço de Igor. Nem queria sair de casa. Por que se deixaria expulsar por aquele papagaio? Adormeceu pensando nisso.

Ben dormiu profundamente, até que um ligeiro farfalhar de asas fez com que ele se mexesse sob as cobertas. Abriu os olhos e estremeceu. Ele nunca percebera quantas sombras havia num quarto escuro. Eram enormes manchas escuras, cada uma negra feito o olho de um papagaio. Uma tensão sufocante pairava ali, como se houvesse um monstro invisível na escuridão, prendendo a respiração para não ser notado. Havia a sombra da porta aberta do armário, sombras de gavetas entreabertas, sombras de roupas jogadas no chão, e muitas sombras que não dava para identificar direito. Mas então Ben viu uma sombra inconfundível. Igor estava empoleirado no pé da cama, com as asas fechadas: uma grande e volumosa massa negra, em forma de pássaro. O gorgolejo baixo da ave soou na escuridão. Ben sentiu um suor frio brotar na sua pele. A criatura desceu para a cama e começou a enfiar as garras na coberta em direção a ele. Antes de dormir, Ben pensava que seu problema era continuar vivo até ter idade para sair de casa. Agora, o problema era ficar vivo até o dia seguinte.

Ele precisava pular fora da cama, mas estava paralisado de medo. Não conseguia se mexer. Parecia que estava preso por mãos geladas. Ele não conseguia gritar. Sentia que estava sendo sufocado. Já Igor não tinha dificuldade para falar. Gritou: — Hora de morrer. O pássaro alcançou a parte da cama em que jazia o corpo de Ben e pulou em cima dele. Ao cravar as garras na perna do menino, gritou com voz aguda: — Hora de morrer! A ave começou a caminhar sobre o corpo em direção ao rosto e à cabeça. Ben sentiu outra pontada daquelas garras quando Igor deu outro pulo e chegou ao seu estômago. Depois as garras passaram a pressionar o seu peito com tanta força que Ben achou que o sangue começaria a encharcar os lençóis. Seu rosto se contorcia diante do fedor do pássaro. Ele tentou se afastar, mas não havia lugar aonde ir. A sombra escura da cara da ave se dividiu, e Ben percebeu que o bico se abrira para atacar. Ele sabia que o bico era mais afiado do que uma navalha. Já vira o papagaio quebrar nozes sem dificuldade e não tinha dúvida de que quebraria seus ossos facilmente.

A mão de Ben tateou em volta da cama, procurando alguma coisa para se proteger da ave. Achou o despertador, mas era muito pequeno para causar dano. Seus dedos esbarraram no abajur, que estava preso à tomada. Ben ligou a lâmpada e se encolheu sobre o travesseiro, enquanto a claridade iluminava a cara de Igor. A língua da ave se assemelhava a um dedo seco e retorcido, apontado para ele. Seus olhos imensos pareciam de alguma forma mais traiçoeiros, tão pretos quanto uma camada nova de asfalto. O bico estava escancarado num sorriso diabólico, parecendo mais cortante e selvagem do que nunca. O bafo da ave fedorenta atingiu o rosto de Ben como uma repulsiva rajada de vento. — Igor! Aí está você! Era a mãe, parada no vão da porta. Ela olhava para a cama, mas seu olhar era completamente inexpressivo. Quando estendeu a mão, Igor voou e pousou no seu pulso. — Não conseguia dormir, então fui limpar a gaiola do Igor, mas ele voou pela sala até o corredor. A porta estava fechada, mas ele usou as garras para virar a maçaneta e sair. Ele é tão esperto, não é? Depois subiu, procurando o seu quarto. Deve ter aberto também a sua porta, como

se soubesse exatamente onde você estava — disse ela, afagando a odiosa cabeça nodosa de Igor. — Fico satisfeita por ver que vocês estão se dando tão bem. Talvez a gente deva mudar o Igor, permanentemente, para o seu quarto. — Não! — gritou Ben. — Quer dizer, o meu quarto não é muito grande. Ele precisa de mais espaço. — Acho que você tem razão — disse a mãe, com uma expressão preocupada. — Mas talvez a gente deva pensar em dar a ele liberdade para voar pela casa. Ele sabe circular por aqui muito bem. E pode abrir todas as portas com essas garras. Ben olhou para o despertador na cabeceira. — Espere um instante, mãe. Ainda são seis e meia da manhã. Por que você estava limpando a gaiola dele tão cedo? —Ah, fiquei na cama a noite inteira achando que estava sendo egoísta por descansar — disse ela. Ben reparou que a voz dela se tornara artificialmente lenta. Soava mais como a voz de um robô, com um pequeno intervalo entre as palavras. — E fiquei pensando o que posso fazer pelo Igor, o que posso fazer pelo Igor... — continuou a mãe. — Então, descobri. Poderia limpar a gaiola dele outra vez. Não fazia isso desde a noite passada. É estranho... Na minha

cabeça, era quase como se Igor estivesse me chamando lá embaixo para abrir a porta da gaiola. Ele é tão esperto, não é? Ela sorriu, se virou e saiu do quarto com a ave no ombro, como uma espécie de pirata zumbi, cocando distraidamente a barriga dele. A mãe já estava completamente enfeitiçada, e era de esperar que o pai também estivesse. Ben se sentiu completamente só.

Cinco minutos depois, o coração de Ben continuava disparado, com a pulsação martelando as têmporas. Quando ele começou a respirar normalmente outra vez, percebeu que o som nos seus ouvidos já não vinha do peito. Aquilo parecia vir da gaveta da mesa de cabeceira. Era um som mecânico, e não as batidas frenéticas do seu coração. Claro! Era o tiquetaque daquele relógio de bolso, grande e horrendo, que o avô deixara para ele. Ben lamentou que o avô não houvesse deixado somente aquilo para a família. Ele abriu a gaveta e pegou o relógio, tentando imaginar por que o avô lhe teria deixado tal coisa. O vovô provavelmente

sabia que o neto usava um relógio digital. Não pensara que uma relíquia daquelas ficaria melhor num velho museu empoeirado em vez de no bolso de um menino moderno? Mas o vovô não se limitara a deixar aquilo para ele no testamento. Também pedira que a mãe de Ben entregasse o relógio logo que possível, como se fosse importante que o neto recebesse a herança imediatamente. Ben sentiu seus braços se arrepiarem quando algo lhe ocorreu. Lembrou que visitara o túmulo do avô com Rex e que ficara olhando para a lápide, pensando: Só você sabe a verdade sobre aquela ave, vô. E já não pode me contar. Mas talvez isso não fosse verdade. Talvez o avô já houvesse encontrado um meio de contar a verdade para ele. Um meio de avisar Ben. Talvez ele tivesse uma razão muito boa para dar o relógio ao neto. Era um presente tão estranho que Ben tinha certeza de que havia algo mais por trás daquilo. Talvez uma pista sobre o papagaio. Seria possível? Ele examinou o relógio, pela frente e por trás, procurando algum indício. Atrás havia uma inscrição, mas que parecia bastante comum:

PARA EDWARD STEVENS NO DIA DO SEU ANIVERSÁRIO COM AMOR, DE MAMÃE E PAPAI Ben leu e releu aquelas palavras, procurando alguma mensagem cifrada, mas era só uma dedicatória normal. Ele virou o relógio e examinou os números no mostrador. Eram algarismos romanos, mas isso era comum nos relógios antigos. Até o velho carrilhão lá no andar de baixo tinha algarismos romanos. Ben procurou outra pista. Não encontrou coisa alguma. De repente, Ben teve outra idéia. Talvez dentro da caixa do relógio houvesse, escondida, alguma espécie de mensagem. Ele examinou a parte de trás e reparou que havia uns pequenos parafusos ali; podia desatarraxá-los e dar uma olhada dentro. Lembrou que tinha um conjunto de miniaturas de chaves de fenda numa das gavetas do quarto. Sentou-se com o relógio no colo e foi girando os parafusos. Acidentalmente, espetou o dedo com a chave de fenda, mas afinal conseguiu abrir o relógio. Ali dentro havia um pedaço de papel bem dobrado. O avô usara o relógio para enviar uma mensagem a ele.

Ben desdobrou o papel cuidadosamente. Os dois lados estavam cobertos por letras. De um lado havia uma mensagem do avô, manuscrita em tinta azul. A escrita parecia um grafite feito por uma aranha. Tomava todo o espaço, e a letra era miúda. O avô devia estar com muita pressa quando escreveu aquilo. Ben deitou na cama com o papel sobre o travesseiro e começou a ler. Querido Ben, Se esta mensagem chegou a você, é porque eu já morri. Coloquei o bilhete aqui dentro sabendo que o papel seria encontrado por você, que sempre foi um garoto esperto. Igor estará na sua casa e seus pais estarão enfeitiçados por ele, assim como eu estou. Eu caie queimei a mão no fogo; isso me livrou do controle dele por tempo suficiente para escrever este bilhete, dizendo o que você pode fazer para matar a ave. Aquele papagaio está possuído por um demônio, Ben. Esse demônio me matará muito em breve, e eu não tenho como impedir isso... mas você ainda pode salvar seus pais. Encomendei um livro que ensina a expulsar demônios. Duvido que receba o exemplar da livraria a tempo, mas você

pode ir buscar a encomenda! Basta dizer que é para mim... Ben ouviu um barulho na janela, e seu coração disparou. Ele ouviu asas farfalhando e, depois, um bico raspando o vidro. Olhou para trás com os olhos arregalados de terror, deixando o papel cair. Mas respirou aliviado, soltando o ar como se houvesse levado um soco no estômago. Era só um galho da árvore batendo na janela pelo lado de fora. Bem pensara que era a ave. O papagaio que matara o seu avô. Continuou a leitura, com o corpo tremendo. Você só precisa buscar o livro lá. Esse demônio TEM de ser detido. Ele entra na casa das pessoas, brinca com elas e depois se livra delas... mas elas sempre morrem. Toda noite ele cacareja e me obriga a escutar as coisas terríveis que já fez. Isso está me deixando maluco! Mas ele nunca conta histórias sobre crianças que tenha possuído e matado. Acho que ele não consegue controlar as crianças, e isso torna você a única pessoa capaz de nos livrar dele. Sua mãe e seu pai não acreditarão no que eu acabo de dizer.

Sua mãe sempre foi sensata demais. Assim, isso cabe a você, Ben. Depressa! Não deixe que ele vença. Pegue o livro, Ben, e acabe com o demônio. Boa sorte! Com amor, vovô. Ben virou o pedaço do papel. Do outro lado havia o recibo de encomenda de um livro. O título era Expulsando demônios. Havia uma data de entrega, e Ben notou que a encomenda já deveria estar na loja. O endereço indicava que a livraria era na cidade do avô, a alguns quilômetros de distância dali. Ben levou algum tempo planejando o trajeto. Imprimiu o mapa a partir de uma página de busca de endereço na internet, mostrando exatamente a rua onde ficava a loja. Anotou o ônibus que precisaria pegar e o horário. Antes de ir à loja, levou uma tigela com ração para Rex no barracão. Reparou que havia ervas daninhas brotando entre as flores e que a grama estava alta demais. O pai já não cuidava do jardim. Antes aquilo era motivo de orgulho e alegria, tal como a sala era para a mãe. Rex estava no barracão, encolhido nos lençóis.

— Não se preocupe, garoto — disse Ben. — Vou sair para buscar um livro que vai me mostrar como acabar com o Igor. E você sempre teve razão. Aquilo não é só uma ave. Há um demônio ali dentro. Mas isso não vai durar muito, garoto. Não vai durar muito. Rex só ganiu e olhou para Ben. — Você logo vai voltar para casa, garoto — disse Ben. — Eu prometo. Ele ouviu umas marteladas. Pensou que fosse na casa do vizinho. Mas, quando atravessou a cozinha, passou pelo corredor e saiu, viu o pai lá fora, encarapitado numa escada, ajustando uma enorme grade de metal na janela do quarto. Apoiadas na cerca, havia mais grades para serem fixadas nas outras janelas. Portanto, eles não haviam ido só comprar comida e brinquedos para Igor. Também haviam gastado uma nota comprando metal suficiente para construir um Titanic. — Pai, o que você está fazendo? — perguntou Ben, alarmado. O pai pareceu não escutar e continuou prendendo as grades. Tentando quebrar aquele transe, Ben gritou: — Pai, porque você está colocando essas grades? — O Igor quer — respondeu o pai. — Nós já lhe demos liberdade para voar pela casa toda, mas ele está muito infeliz por ter

ficado alguns dias preso na gaiola. Disse que agora nós vamos aprender o que é viver atrás das grades. Quando estiverem prontas, vamos ficar trancados com Igor e ele vai nos punir. Nós merecemos, não é, Ben? Ben começou a se afastar. — Por enquanto só tenho o suficiente para todas as janelas da frente — continuou o pai. — Amanhã vou comprar mais para as janelas de trás e as portas. Então, Igor vai ter o que quer. Ben já não estava escutando. Saíra correndo pelo jardim rumo ao portão. Só olhou para a casa uma vez. Achou que a fachada estava começando a parecer a de uma gaiola gigante.

Ben tentou se sentar confortavelmente no banco do ônibus. A almofada fora bastante rasgada por vândalos, mas ele precisava admitir que parecia estar em boa forma se comparada com as cadeiras da sua própria casa. Olhou pela janela empoeirada, vendo as ruas se sucedendo à medida que o ônibus entrava na cidade em que o avô morara. Ele não gostava de pegar ônibus para itinerários desconhecidos. Dificilmente sabia em que ponto exato descer e com facilidade

errava a parada. Pegou as indicações da internet que imprimira e ficou atento ao ponto certo. Ele jamais gostara daquela cidade. Conjuntos de prédios encardidos assomavam por toda parte, e o centro da cidade era empoeirado, sujo e cheio de fumaça. Ben desceu do ônibus e tirou o mapa do bolso. Parecia fácil seguir aquilo, mas, quando chegou ao lugar onde a rua deveria estar, no outro lado da cidade, pensou que fizera alguma coisa errada. O bairro parecia abandonado, com fileiras de galpões velhos apodrecendo silenciosamente lado a lado. A maioria das vidraças estava quebrada, e havia uma imobilidade estranha nas ruas. Quando olhou para a placa enferrujada fixada na parede, porém, Ben viu “Brick Street” escrito. Era lá que ficava a “Livros Raros”. Aquele era o lugar certo. Ele não se sentia muito seguro sozinho ali. Preferiria que Rex estivesse junto, mas foi em frente, seguindo os números dos prédios. Chegou ao lugar onde a livraria deveria estar e se viu olhando para uma grade de ferro. Alguns degraus de concreto quebrado levavam a um porão escuro. Haveria mesmo uma livraria enfiada ali embaixo?

Ele hesitou por alguns minutos. Depois começou a descer, degrau por degrau. Havia uma loja, espremida no desvão. Parecia antiga, como se estivesse escondida ali havia séculos, sem perceber a cidade sendo construída acima e ao seu redor. Os tijolos estavam tão sujos que Ben teve certeza de que nunca tinham visto água. Na placa em cima da janela, estava escrito “Livros Raros” com tinta dourada desbotada. Atrás da vidraça encardida de poeira, o interior parecia sombrio. Ele não conseguia ver nada através do vidro; pelo que podia distinguir, porém, aquilo parecia mais uma caverna do que uma livraria. Ben virou a maçaneta e empurrou a porta, que rangeu como um trem parando com uma freada súbita. Velhos livros empoeirados cobriam cada parede, muitos deles transbordando das estantes. O cheiro das capas de couro e das páginas que lentamente se esfarelavam parecia um tapa no rosto. Ele jamais gostara muito de sebos. E tudo naquela loja parecia arrepiante. Grande parte dos títulos nas lombadas dos livros era escrita numa espécie de idioma antigo. Ben pensou que aquilo devia ser latim: mesmo sem conseguir entender, percebia que ali não havia livros com boas histórias ou que propiciassem diversão na

praia. Algumas lombadas tinham cabeças horríveis de demônios pintadas embaixo dos títulos; outras ostentavam símbolos mágicos gravados em relevo. Ele foi caminhando lentamente pelos corredores. Aquilo parecia um labirinto, serpenteando rumo a um grande balcão antigo. A princípio, o balcão parecia mais uma prateleira coberta de livros, mas Ben percebeu uma cabeça se mexendo atrás das pilhas. — Olá? — arriscou ele. Um velho surgiu por trás da pilha de livros antigos. Era careca, com um apurado cavanhaque grisalho. Pelas suas roupas, parecia que o sujeito parará no tempo. Ele lançou para Ben um olhar aguçado e desconfiado, dizendo rispidamente: — Um menino? Este tipo de loja não é apropriado para crianças, sabia? Vá embora. Ben ficou calado e estendeu o recibo do livro. O homem agarrou o papel, e estreitou os olhos. Depois, disse: — Ah, Expulsando demônios. Está certo, então. Esse livrinho chegou na semana passada. Precisei encomendar no exterior, sabia? Você veio pegar o livro para o senhor Stevens, não é? — Mais ou menos — disse Ben, olhando para os medalhões pendurados no pescoço

do velho. Tinham símbolos estranhos, e Ben ficou imaginando se davam proteção a ele. — Ele é um sujeito encantador. Mas parecia terrivelmente preocupado quando esteve aqui pela última vez. Estava passando por um caso infeliz de possessão... O que era mesmo? Uma espécie de ave, acho. Uma cacatua, não era? — Um papagaio — corrigiu Ben. — Ah, é... Lembrei agora. Ele me contou. Eu recomendei este livro para ele. É muito raro, sabia? Ele precisou pagar duzentas libras. Mas funciona, e é isso o que importa. Onde será que eu guardei a coisa? — pensou alto o velhote, colocando um caixote de livros sobre a mesa e começando a procurar. Correndo os dedos finos feito ossos pelas lombadas, perguntou: — E como está senhor Stevens? — Morto — disse Ben, sentindo-se subitamente triste. — Foi morto pelo papagaio. O velhote lançou a Ben um olhar pesaroso e murmurou: — Que desgraça. Mas isso acontece com bastante freqüência. A gente precisa agir muito depressa quando um animal de estimação está possuído pelo demônio. Mas infelizmente não posso lhe devolver o dinheiro dele, meu jovem. O livro foi encomendado e precisa ser levado por você.

— É isso o que eu quero — disse Ben. — O papagaio está agora na minha casa. — Não diga! — exclamou o livreiro. — Então você realmente precisa do livro. — O senhor pode me dar alguma ajuda? — perguntou Ben. — Sabe alguma coisa sobre demônios? — Um pouco. Já encontrei alguns pela vida — disse o livreiro, parando de procurar por um momento. — Existem vários tipos, sabia? Provavelmente o que está atormentando vocês é um demônio terrestre... deve ter sido expulso do mundo dos espíritos e precisa habitar na terra com os seres humanos. Geralmente eles ficam em túmulos, montanhas ou outros lugares abandonados. O problema é que alguns são um pouco mais corajosos. — E eles podem mesmo possuir aves? — perguntou Ben, imensamente aliviado ao ver que mais alguém levava aquilo a sério. — Claro que sim. Podem tomar posse dos corpos e falar pela boca dos seres possuídos. Esse papagaio tem dito coisas perversas? Ben assentiu. O velhote continuou: — Está vendo? Pelo menos, o que você tem é o tipo mais fraco de demônio. Portanto, ainda há esperança. Só os demônios inferiores habitam outros corpos. Eles não têm capacidade de criar um corpo

próprio, entende? Felizmente, não são fortes o suficiente para possuir seres humanos. Só conseguem controlar vítimas humanas adultas. — Então ele não é tão perigoso assim? — perguntou Ben. — Se não é perigoso? Ah, não se engane... Ele é um assassino. Um demônio muito perverso e violento... mais mortífero do que um ninho de víboras — disse o velhote, puxando um volume fino com capa de couro. — Ah! Aqui está o seu livro. Se um livro tão pequeno custava duzentas libras, devia conter informações valiosas, pensou Ben. O livreiro abriu o livro no capítulo de instruções e disse: — Aqui ensina tudo o que é preciso dizer para se livrar dele. Você vai conseguir controlar o papagaio enquanto faz isso? — Controlar? — É. Ele vai se debater muito — disse o livreiro, virando a página. — Onde ele dorme? Ben pensou um instante antes de responder. — Na gaiola, eu acho. — É provável. Deve ser o instinto natural do pássaro prevalecendo. Ele quer descansar no poleiro. Então isso é bom. Se você conseguir trancar o papagaio na gaiola

enquanto executa o ritual, terá menos chance de ser morto pelo demônio. — Ser morto? — Ben engoliu em seco. — É. Você sabe... Ele poderia rasgar sua garganta, arrancar seu coração do peito com o bico e as garras, esse tipo de coisa — disse o velhote, trocando alguns livros poeirentos de lugar atrás do balcão. — Mas ele vai lutar. Na realidade, fará todo o possível para acabar com você. Por isso, tenha cuidado. Tentando organizar seus pensamentos, Ben perguntou: — Mas, se eu fizer a coisa direito e disser todas as palavras corretas, o demônio vai morrer? — Morrer? Acho que não, meu jovem! Os demônios são imortais, de modo que não podem ser mortos por nós. Mas esse demônio será expulso do corpo do papagaio e lançado bem longe da sua casa. Ele jamais encontrará o caminho de volta. Provavelmente vai acabar do outro lado do mundo. E achará o corpo de outra criatura para possuir. Com sorte, acabará dentro de alguma coisa inofensiva, como um caracol ou um peixe. Ele estendeu o livro. Ben reparou numa instrução, escrita em letras maiúsculas na primeira página: “É OBRIGATÓRIO

PRONUNCIAR CADA PALAVRA EXATAMENTE COMO ESTÁ ESCRITA”. — Obrigado — disse Ben. — Boa sorte — respondeu o livreiro. — Acredite: você vai precisar, meu jovem.

Quando Ben voltou, a casa estava ainda mais parecida com uma gaiola. Ele notou um casal de vizinhos olhando para as grades de ferro que o pai fixara nas janelas. No dia seguinte, o pai compraria mais grades para as janelas e portas traseiras. Então todos ficariam trancados lá dentro com Igor. Ben nem queria pensar no castigo que o papagaio aplicaria. Sabia que precisava acabar com o bicho naquela noite, para não chegar a descobrir qual seria. Até então, precisava manter o livro bem escondido. Sabia que o melhor seria deixá-lo embaixo do colchão, pois a mãe não chamava a sua atenção para fazer a cama havia dias. Ben entrou em casa. Os pais estavam na sala, falando com Igor atrás da porta fechada. Ele correu para cima. Uma vez no quarto, poderia fazer uma barricada na porta. Mas, quando chegou ao quarto, viu que a porta estava aberta. As cobertas estavam

no chão. O colchão fora rasgado e retalhado. A espuma e as molas haviam sido viradas para fora. Igor fizera outra visita. Certamente o papagaio não queria que ele tivesse outra boa noite de sono. Ou talvez estivesse anunciando o que faria com ele em breve. Ben correu os olhos pelo quarto. Não só a cama fora danificada. Todas as suas coisas haviam sido derrubadas da escrivaninha, e a tela do computador fora arranhada por garras afiadas. A porta do armário estava aberta, e Ben examinou o conteúdo. Todas as suas roupas pendiam dos cabides em farrapos. Ele correu os dedos pelos trapos pendurados, sabendo que o duelo final com Igor se daria em poucas horas.

Ben entrou na sala silenciosamente e trancou a porta. Fazendo o menor barulho possível, arrastou o aparador favorito da mãe diante da entrada, fazendo uma barricada ali dentro com Igor. Estava tudo escuro, e a gaiola do papagaio se perdia nas sombras ao fim da sala. Com as luzes apagadas, Ben não conseguiria enxergar para trancar a portinhola da gaiola.

Já com a mão no interruptor, uma coisa lhe ocorreu. Talvez Igor não estivesse na gaiola. Caso a portinhola não houvesse sido bem fechada, o velho papagaio poderia estar solto pela sala. Talvez o bicho estivesse empoleirado à distância de um braço, escondido nas sombras! Ben fez força para se acalmar. Ele logo descobriria. “É agora ou nunca”, pensou, apertando o interruptor. A sala se encheu de luz. Ben se assustou ao ver dois olhos fixados sobre ele. Mas eram apenas seus próprios olhos refletidos no espelho da parede. O espelho quebrado na parede. Fora despedaçado, e havia cacos espalhados pelo tapete. Mas ao menos a ave não estava solta. Na realidade, uma luxuosa capa de vertido vermelho escuro fora colocada para ajudar a ave a dormir. A capa vermelha se amoldava a cada canto e curva da gaiola com perfeição. Ben ficou imaginando se os pais teriam pago para que aquilo fosse feito a mão. A boa notícia era que Igor estava ali embaixo, sem saber que as luzes estavam acesas ou que Ben estava na sala. Aquela cobertura tampava todas as luzes. Mas Ben precisaria levantar a capa para trancar a portinhola da gaiola. E essa

era a única coisa que impediria Igor de ficar livre. Ben colocou suavemente o livro sobrenatural no outrora luxuoso sofá e foi se esgueirando pela sala. Parou perto da gaiola. “E se o Igor estiver acordado aí dentro?”, pensou. “Os demônios dormem?” Ele estremeceu ao pensar em Igor bem acordado ali no poleiro, só esperando que a capa fosse erguida para se lançar fora da gaiola e em cima dele. Mas começou a levantar a capa vagarosamente, a mão tremendo enquanto puxava. A capa foi levantada e... tirada. Igor estava dormindo, mas Ben precisou abafar um arquejo quando viu a posição em que o bicho dormia. O papagaio ficava pendurado de cabeça para baixo, como um morcego, preso ao poleiro pelas garras. Ben sabia que não podia perder tempo. Precisava ser rápido. Fechou a portinhola da gaiola, trancando o ferrolho. Quando ele fez isso, Igor acordou. — Desculpe perturbar o seu sono — disse Ben, recuperando a confiança ao saber que o ferrolho estava puxado. O papagaio se empertigou no poleiro, olhando para ele. Então, disse calmamente:

— Pronto para morrer? Ben estremeceu, como se um par de garras geladas houvesse apertado seus ombros. Já Igor não parecia absolutamente preocupado. Mas então viu o livro. Assim que Ben pegou o exemplar de Expulsando demônios, a criatura ficou agitada. Grasnou curiosamente e esticou o pescoço junto à grade, como se tentasse ver melhor o livro. — Fim da linha — disse Ben, olhando através dos olhos do papagaio para o demônio escondido dentro do corpo. — Não sei como você entrou nessa ave, mas está prestes a partir. Vou mandar você para centenas e centenas de quilômetros de distância daqui, e você vai terminar possuindo uma criatura no fundo de um lago no meio do nada. Então, não será capaz de prejudicar mais ninguém. A ave inclinou a cabeça. Já aparentando menos confiança, gritou: — Abra a gaiola! — Nunca na vida — retrucou Ben. — Abra a gaiola! — insistiu o bicho, sacudindo as grades com as garras e batendo a velha cabeça contra a armação metálica. — Abra a gaiola! Abra a gaiola! Abra a gaiola!

Mas Ben só abriu o livro. Releu as instruções no início. “É OBRIGATÓRIO PRONUNCIAR CADA PALAVRA EXATAMENTE COMO ESTÁ ESCRITA”. Aquilo seria difícil. As palavras não pareciam pertencer a nenhuma língua que Ben conhecesse. Ele realmente precisaria se concentrar para falar corretamente. Num tom já muito menos ameaçador, Igor recomeçou a grasnar: — Abra a gaiola, e podemos ser amigos. Abra a gaiola, e eu posso dar a você qualquer coisa. Abra a gaiola, e posso proteger você. Abra a gaiola, e posso matar seus inimigos. Mas Ben sabia que o demônio estava amedrontado. — ABRA A GAIOLA! — urrou Igor. Ben começou a ler a página em voz alta lentamente. As sílabas daquele idioma estranho saíam desajeitadamente da sua língua. Igor se agitava de um lado para o outro no poleiro enquanto ele falava. Quando Ben terminou a primeira linha, recebeu na nuca a travessa com ervas da mãe, que saiu voando da prateleira acima da lareira. Por sorte, era de plástico e não machucou muito, mas cobriu o menino de titica. Ben percebeu que Igor estava usando seus poderes para afetar os objetos na sala, mas sabia que precisava continuar lendo

sem hesitação, por pior que a situação ficasse. Ele ouviu um barulho áspero. Duas fitas de vídeo estavam se arrastando pelo chão ao lado da tevê. Seriam bem mais pesadas do que a tal travessa com ervas. As fitas voaram em direção à cabeça de Ben. Ele se esquivou, e as duas passaram. Uma delas se chocou contra as grades da gaiola. Ben enfim entendeu como a sala virará aquela bagunça. Ele vinha se perguntando como as asas de uma ave podiam ser fortes a ponto de arremessar a mobília pela sala. Mas percebeu que Igor não precisava pegar nada. O demônio que espreitava dentro do papagaio tinha o poder de mover as coisas com a mente. E estava usando inteiramente todos aqueles poderes. Em seguida, os jornais na mesa se lançaram contra as costas dele, fazendo flépti, flépti, flépti. Depois, mais titica e serragem saíram voando do chão em direção à cabeça de Ben. Parecia que um fantasma zangado estava esfregando tudo aquilo no cabelo dele, tapando-lhe os ouvidos e a boca, para que ele parasse de ler. Ben cuspiu quando alguma coisa horrível roçou seus lábios. Em função do ataque, até errara a pronúncia de uma palavra. Mas não havia tempo para voltar atrás. Então cobriu

a boca o melhor que podia com a mão livre e continuou a ler. Quando chegou à metade da página, Igor pareceu enlouquecer. Ben quase pensou que a gaiola arrebentaria, por causa da força com que o papagaio se atirava contra a grade. O pássaro arremessava o corpo sem parar, enquanto berrava ameaças. A mobília começou a deslizar pela sala. A escrivaninha virou de ponta-cabeça e caiu no chão com estrondo. Um vaso veio voando para cima de Ben, mas se espatifou na parede. Então, o pior de tudo: a lâmpada do teto explodiu feito uma arma, deixando a sala às escuras. Ben já não conseguia enxergar a página. Não podia mais ler. A ave cacarejou satisfeita, mas Ben planejara tudo muito bem. Acendeu uma lanterna que tirou do bolso e fez o facho iluminar a linha que estava lendo. Quando continuou a leitura, Igor ficou ainda mais furioso, bicando ruidosamente a grade. Depois, começou a se balançar para a frente e para trás, como se quisesse derrubar a gaiola. Suas garras tentavam arrancar a portinhola, mas a fechadura se conservava firme no lugar. Outro pesado abajur saiu voando pelos ares, e Ben só teve tempo de se abaixar. O abajur se espatifou na janela da sala. Ben sentiu o ar frio entrar.

Então ouviu um barulho no andar de cima. Os pais haviam acordado e estavam correndo escada abaixo. Ele ouviu a mãe do outro lado da porta, gritando: — Igor! Você está bem? Fora uma boa idéia ter trancado a porta. A fechadura era bem forte, com uma lingüeta de aço. Eles levariam algum tempo para entrar. O mais preocupante era que Igor talvez conseguisse sair da gaiola muito antes disso. O demônio deixara de usar seus poderes para atirar mesas e cadeiras pela sala. Já parecia concentrado em outra coisa. Ele estava começando a curvar as grades da gaiola! O metal da gaiola estava ficando mole feito uma massa; tão mole quanto as entranhas de Ben naquele momento, como se tudo dentro dele estivesse se desmanchando de medo. Precisava terminar o ritual rapidamente. Chegou à última linha, lendo as palavras ainda mais alto e com mais ênfase do que antes: a plenos pulmões, para encobrir o som surdo das asas que batiam no metal. Igor tentou um último recurso, soltando um urro, cuspindo chamas e rasgando o ar com as garras. Mas finalmente caiu do poleiro e tombou no chão da gaiola, com a cabeça inclinada para o lado.

Ao terminar, Ben sentiu algo invisível chispar para fora do papagaio, atravessar a sala e sair pela janela estilhaçada. Ele conseguira. Expulsara o demônio! Dirigiu o facho da lanterna para a gaiola e estremeceu ao ver o corpo do pássaro começar a se enrugar. Partes começaram a explodir como feridas purulentas, salpicando o interior da gaiola. Então o papagaio virou uma massa lodosa de carne morta no fundo da gaiola, ainda espumando e borbulhando, como se estivesse sendo assado para uma refeição repugnante. Ben chegou mais perto, vendo a massa estalar e chiar, para finalmente sucumbir numa poça repugnante. Parecia que o papagaio estava morto havia muitos anos, e somente o demônio que habitava ali dentro mantinha o corpo animado. Alguém estava socando a porta. Ben ouviu o pai gritar: — O que está acontecendo aí? Ele foi cambaleando pelo entulho e abriu a porta. A luz jorrou da cozinha, quando o pai e a mãe irromperam na sala. Eles pareciam ter voltado ao normal. Não tinham mais aquele olhar entorpecido. Era o olhar ainda levemente sono-lento de quem acabara de acordar, certamente, mas não aquele olhar frio de zumbi. E, quando a mãe falou, não

parecia mais um robô. Falou como sempre falara. — O que aconteceu com a luz? — perguntou ela. Mas o pai não precisou de luz para ver que a sala fora completamente destruída. A lua brilhava lá fora, com o brilho prateado ressaltando os estilhaços que emolduravam a janela quebrada. Ele viu os destroços espalhados pelo chão e toda a mobília destruída. — O que aconteceu aqui? — perguntou, zangado. Parecia que nunca vira a sala daquele jeito antes. Ben precisava pensar depressa. — Eu só desci para comer alguma coisa — disse ele. — Mas alguns assaltantes tinham arrombado a sala. Talvez fossem só arruaceiros, mas estavam destruindo tudo. Eu entrei, e eles fugiram. — Onde está o velho papagaio do vovô? — perguntou o pai. — Acho que ele conseguiu fugir e foi embora — disse Ben. — Se ele foi embora, pelo menos alguma coisa boa resultou disso — disse o pai. — Quem teve a idéia de deixar aquela criatura horrível na sala, em primeiro lugar? — Eu não fui — disse a mãe. — Não conseguia nem olhar para ele.

Ben sorriu ao ser abraçado pela mãe. As coisas estavam decididamente voltando ao normal. — Vamos para a luz — disse a mãe, entrando na cozinha com Ben. Ele se examinou no espelho: estava todo machucado e arranhado, além de coberto de serragem e titica de papagaio. — Você quer chocolate quente? — perguntou a mãe. Ben assentiu e sentou-se na cadeira, enquanto a mãe acendia o fogo da chaleira. — Vou chamar a polícia — disse ela. Ben viu a mãe ir apressadamente para o corredor, fechando a porta. — Vou conferir se eles levaram alguma coisa — disse o pai, afagando o cabelo de Ben e saindo da cozinha. Ben sorriu e ficou sentado ali, gozando a normalidade que voltara à sua vida. Então, acima do ronco da chaleira, ouviu um barulho áspero na porta dos fundos. — Rex! — disse Ben, sorrindo e correndo para a entrada. Removeu a corrente, girou a chave e abriu a porta. Rex se esgueirou para dentro. — Seja bem-vindo, garoto! — disse Ben. Agora as coisas realmente haviam voltado ao normal. O demônio fora embora. Seu cão estava feliz por retornar e partilhar

a casa com ele. Todos os males seriam reparados em tempo. Seus pais comprariam um novo papel de parede, além de uma cama nova para ele. Ben recuperaria suas roupas, item por item. Em poucos meses seria como se nada tivesse acontecido. Só que... Só que Rex parecia diferente. Tinha os pêlos do dorso todos eriçados. — O que há, Rex? — disse Ben. — O demônio já foi embora. Nada ruim ficou na casa. Nada. Ben olhou para o cachorrão. Por que Rex estava rosnando? No corredor, a mãe continuava falando ao telefone com a polícia. Ben estendeu a mão para afagar Rex, mas alguma coisa no cachorro fez com que ele retirasse a mão instintivamente. “Por que eu fiz isso?” pensou ele. “Porque você quer conservar sua mão, só por isso”, respondeu seu cérebro num lampejo. Ele entendeu. Havia algo diferente em Rex. O cachorro parecia malvado e olhava para ele como se tivesse um assassinato em mente. — Mãe — exclamou Ben em tom nervoso, mas o medo parecia prender a voz dele na garganta.

Ben colocou o pé no chão, mas Rex rosnou tão forte que ele congelou como uma estátua. Prontamente, sentou-se na cadeira outra vez e ficou ali como se estivesse colado. Pensara em algo que era um pesadelo. “E se eu tiver lido errado as palavras do feitiço de expulsão?”, pensou Ben, quando o suor começou a escorrer pelo seu pescoço. Esse erro poderia impedir que o ritual funcionasse direito? Será que, em vez de lançar o demônio a centenas de quilômetros dali, a fim de achar um novo corpo de animal para possuir, ele simplesmente atravessara uma curta distância? Digamos, até o jardim? O rosnado ficou mais alto. Tremendo de medo, Ben viu Rex erguer o corpo inteiro. Viu a boca do cachorrão se arreganhar, mostrando os alvos dentes brilhantes. Naquele momento, Ben se fez uma pergunta. O que poderia ser muito pior que partilhar uma casa com um papagaio possuído por um demônio perverso? A resposta veio num estalo. Partilhar uma casa com um cachorro enorme possuído por um demônio perverso. Rex começou a rosnar mais alto. Era um rosnado profundo e malévolo, que

deixava tensos todos os músculos de Ben. Cada poro da sua pele formigava e luzia com um suor frio. Então o rosnado se transformou em terríveis palavras guturais. — Eu matei o seu avô.

UMA ESTRANHA NA CASA Laura estava atrasada. Geralmente, ela era tão pontual quanto o relógio suíço na lareira da sala, chegando às sete horas em ponto. Mas naquela noite algo estava diferente. Já eram sete e vinte, e ela ainda não chegara. Laura era a babá deles, embora Jessica, com onze anos, e seu irmão Robbie, com dez, não fossem mais bebês. Até Megan, a irmã caçula, já tinha quatro anos, e Jessica achava que uma nova palavra precisava ser inventada. Qualquer coisa, menos babá. Aquilo era muito vergonhoso. Jessica queria que Laura chegasse logo. Assim, sua mãe e seu pai parariam de discutir e iriam para o jantar de aniversário de casamento na cidade. O pai estava inquieto como se tivesse pulgas. A mãe ligava e tornava a ligar para o celular de Laura, mas só a caixa postal atendia. — Por que ela desligou o telefone? — reclamou a mãe. — Já devia saber que ligaríamos para ela. — Isso não é próprio da Laura — disse o pai. — De forma alguma.

Jessica achava que os pais deveriam deixar que ela ficasse responsável por isso. Sabia que era perfeitamente capaz de cuidar dos irmãos, e seria ótimo poder mandar Robbie para a cama. Mas ela precisava admitir que trazer Laura para cuidar deles era quase tão bom quanto deixar que eles cuidassem de si mesmos. Laura era muito legal. Embora controlasse com severidade a hora de dormir e a qualidade da alimentação, permitia que as crianças fizessem quase tudo o que quisessem quando ficava tomando conta delas. — Talvez esteja na hora de arranjarmos outra babá — disse a mãe, impaciente. Jessica fez uma careta. A outra poderia não ser tão legal quanto Laura. — Tenho certeza de que não é culpa dela — arriscou Jessica. — Talvez tenha havido uma emergência. — Aqui há uma emergência — disse o pai, andando pela sala como um leão enjaulado. — Nós estamos atrasados para o jantar. — Jess, você pode subir e dar uma olhada pela janela, antes que seu pai faça um buraco no tapete novo? — pediu a mãe. — Veja se a Laura está descendo a rua.

Jessica assentiu. Ficou feliz em sair da sala. Havia tanta tensão ali que dava para sentir no ar. No corredor havia um interruptor para acender a luz, mas ela não se preocupou com isso ao subir correndo a escada. Quase no topo da escada, a coisa aconteceu. Com longas unhas verdes, orelhas pontudas, uma cara branca feito gesso e uma boca manchada de sangue, uma criatura horrenda lançou-se das sombras sobre ela. Sibilando feito uma cobra, cravou as garras no peito de Jessica. Jessica gritou, tropeçou e escorregou, deslizando como se a escada fosse feita de gelo. Quase caiu lá embaixo. — O que é isso? — perguntou o pai. — O que aconteceu? Jessica agarrou o corrimão para se equilibrar e ergueu o olhar. Então percebeu que a tal criatura era Megan. A irmã caçula ria com a maquiagem demoníaca. Jessica correu um dedo pelo rosto de Megan. O pó saiu na ponta do dedo. — Foi só mais uma das experiências idiotas de Robbie com maquiagem — gritou Jessica. — E desta vez eu quase quebrei a perna. Ela não quebrara a perna, mas torcera bastante o tornozelo. Jessica apostava como

aquilo incharia feito um balão cheio de água e ficaria roxo como um cacho de uvas. E a sua escola tinha um jogo de basquete importante no fim de semana. Jessica era uma das melhores do time e adorava jogar, mas agora ficaria sentada no banco. Assistindo. Robbie era mesmo um idiota! Idiota! — Medrosa, medrosa, Jessica é medrosa! — cantarolou Megan. Robbie estava parado na porta do quarto, com um largo sorriso no rosto, e disse: — Nada mau, hein? Ela ficou parecendo uma bruxinha. Muito mais interessante do que uma garotinha, não acha? — A sua cara vai precisar de maquiagem depois que eu acabar com você, Robbie... para cobrir os machucados! — gritou Jessica para o irmão. O sonho de Robbie era ser maquiador de artistas de filmes de terror. Ele sempre dizia que, quando crescesse, iria para Hollywood a fim de criar monstros para os filmes. Jessica desejava que ele se apressasse e fosse logo. Então ela finalmente teria paz. Robbie vivia treinando maquiagens de terror e tinha muitos livros com fotos de monstros, dos quais tirava as suas idéias. Na maioria das vezes, treinava com Megan. Nos

braços e nas pernas da dela, Robbie já pintara machucados tão autênticos que a mãe quase chamara a ambulância. Geralmente, porém, ele só transformava a doce e pequena irmã de quatro anos numa horrível criatura sobrenatural. — É melhor você tirar essa maquiagem da Megan antes que a Laura chegue — disse Jessica para ele. — Ah, por quê? — disse Robbie. — Quero dar um bom susto na Laura também. Megan podia ficar escondida atrás do sofá e pular quando ela passasse pela... — Você não devia usar Megan para esse tipo de coisa — advertiu Jessica. — Ela pode ter pesadelos. — Então eu podia transformar você num monstro, Jess. Nem demoraria muito. Você leva tanto jeito — sugeriu Robbie. Mas, quando viu que Jessica não estava rindo, desistiu. Pegou Megan pela mão e foi levando a irmã para o quarto a fim de tirar a maquiagem, dizendo: — Está bem, está bem... — Eu gosto da maquiagem! — insistiu Megan, sendo levada por Robbie. — Gosto de ficar assustadora! Apesar de tudo, Jessica sorriu. Embora fossem chatos em certas ocasiões, Megan e Robbie eram sempre cheios de surpresas.

Ela seguiu os irmãos, entrando no quarto de Robbie, que parecia a Câmara de Terror de um Museu de Cera. Havia máscaras monstruosas de Frankenstein e de lobisomem penduradas nas paredes. Bonecos de vampiros, demônios e zumbis nas estantes. Livros sobre toda espécie imaginável de horrendas criaturas sobrenaturais. Diferentemente de seus amigos, Robbie não gostava dos filmes de terror modernos. Preferia os clássicos em preto-e-branco que gravava da tevê: A criatura da lagoa negra, A múmia, O monstro que desafiou o mundo, O fantasma de Frankenstein, O filho de Drácula. Pilhas e pilhas de fitas de vídeo cobriam o chão. Jessica lembrou por que subira e foi mancando até seu quarto, para procurar pela janela algum sinal de Laura. Seu tornozelo doía muito. Já ia se debruçar na janela quando ouviu o som da campainha. “Antes tarde do que nunca”, pensou. Desceu a escada capengando, pisando cuidadosamente nos degraus com o tornozelo dolorido. Seus pais estavam recebendo Laura, que disse: — Desculpem o atraso. Jessica notou que a voz da babá parecia um pouco mais grave e profunda do

que o normal, como se ela estivesse resfriada. Laura também parecia indisposta. Normalmente, suas faces eram rosadas como maçãs vermelhas, mas seu rosto estava pálido. E Jessica notou que ela arquejava. “Ela deve ter vindo correndo até aqui”, pensou a menina. Ficou imaginando o que atrasara tanto Laura. — Você deveria ter ligado para nos avisar, Laura — disse a mãe, com rispidez. Laura recomeçou a falar, mas o pai não tinha tempo para explicações e interrompeu: — Não tem importância. Vamos embora, ou perderemos a mesa que reservamos. — Até mais tarde! — gritou a mãe para Jessica, Robbie e Megan. Depois saiu com o pai escuridão afora. Jessica acabou de descer a escada e ficou ao lado de Laura, acenando para os dois. — Nunca pensei que você se atrasaria tanto, Laura — disse ela com um sorriso provocante, enquanto observava os pais percorrerem apressadamente a alameda e entrarem no carro. Laura não retribuiu o sorriso. Em vez disso, lançou a Jessica um olhar sombrio. Jessica olhou surpresa para Laura. — Eu só estava brincando, Laura — disse.

Laura estava diferente, mal-humorada. “Talvez ela não esteja se sentido bem, ou tenha tido um dia difícil, pensou Jessica. Acenando para eles, a mãe e o pai se afastaram de carro pela rua. Laura fechou a porta, trancou a fechadura, passou a corrente e puxou a cortina pesada com gestos decididos. Jessica decidiu fazer um esforço para trazer de volta o bom humor de Laura, oferecendo a ela uma xícara de café. Mas as palavras morreram na sua boca quando Laura tirou o casaco. Ela viu manchas vermelhas na blusa da babá. — Laura, você está com manchas de sangue — murmurou ela, desconcertada. Laura olhou para o próprio corpo, e disse friamente: — Eu me cortei. Mas não foi grave. Esqueça. Depois tentou desajeitadamente cobrir as manchas com o casaco. — Ah... Tá legal — disse Jessica, calmamente. Mas parecia que Laura estivera envolvida numa espécie de luta. Não eram só as manchas de sangue seco na blusa. O resto da sua roupa estava amassado. E seu cabelo, geralmente sempre em ordem, estava despenteado. E aquilo no seu braço direito não era um machucado? Jessica pensou que Laura estivera brigando e não

queria falar sobre o assunto. Talvez, por isso, tivesse se atrasado. De repente, Jessica foi distraída por um tumulto. Eram Robbie e Megan descendo a escada. — Oi, Laura! — gritaram os dois. Normalmente tão falante, Laura fez só um aceno com a cabeça. Robbie pareceu não notar e jogou uma bala para ela. — Pegue essa pastilha de hortelã! — gritou ele. Aquilo era rotineiro. Laura agarrava muito mal, e Robbie adorava jogar coisas para ela, só para ver tudo cair. Uma de suas tiradas favoritas era: “Laura, nem resfriado você consegue pegar”. Só que Laura ergueu a mão depressa como um jogador de beisebol pegando uma tacada, e seus dedos agarraram a pastilha em pleno ar. — Puxa — murmurou Jessica para si mesma. Seu olhar cruzou com o de Robbie. Ele parecia tão espantado quanto ela. Megan abriu a boca, incrédula, e, estampando um largo sorriso, disse: — Fantástico! Mas Laura só deu de ombros. Jessica decidiu tentar outra vez levantar o ânimo da babá. Laura gostava da MTV, e Jessica assistia à tevê com a babá sempre que ela vinha tomar conta deles.

— Nosso programa musical favorito já vai começar, Laura — disse ela, animada. — Posso ligar a tevê? — Não! — retrucou Laura. Robbie se adiantou, passando por Jess. — É isso aí, Laura! — disse ele. — Jess vê demais a essas porcarias com bandas de garotos. Jessica fez uma careta para Robbie. Ele detestava a MTV. Só ouvia a trilha sonora dos filmes. Filmes de terror, principalmente. Dizia que todas as bandas de garotos tinham o mesmo som. Mas Jessica discordava. Robbie devolveu a careta. Depois, virou-se para Laura, querendo continuar a brincadeira de sempre, e disse: — Laura, eu sei que hoje você pretende preparar uma boa refeição para nós, mas posso comer só batatas fritas e chocolate? Assim você não precisa cozinhar. Tenho certeza de que a mamãe e o papai não vão se importar. — Tudo bem — disse Laura. — Tanto faz. Jessica não conseguia acreditar naquilo. Robbie sempre tentava aquela jogada de “batatas fritas e chocolate para o jantar” com Laura. Era uma de suas piadas favoritas. Laura sempre dava um sorriso e dizia que não. Às vezes, também fazia um

longo sermão sobre comida saudável, enquanto Robbie fingia dormir. Ela jamais concordara com a sugestão dele. Olhando para o sorriso espantado na cara de Robbie, Jessica viu que ele também não conseguia acreditar que Laura houvesse concordado dessa vez. — Está certo — disse ele, correndo para a cozinha antes que Laura mudasse de idéia. Megan olhou para a babá com um olhar pensativo e perguntou inocentemente: — Onde está a Laura? A babá simplesmente franziu a testa para Megan e passou por ela em direção à sala. Jessica olhou para a irmã caçula. Será que ela estava brincando? — Megan, o que você quer dizer com isso? — perguntou. Megan deu de ombros e disse: — A Laura toma conta de nós, não é? Depois saiu correndo em direção à cozinha, sem dúvida para pedir que Robbie compartilhasse as batatas fritas e os doces. Com um suspiro, Jessica seguiu a irmã, fazendo uma careta ao sentir uma pontada de dor no tornozelo torcido. Megan percebera alguma coisa que escapara a eles? Jessica suspeitava que havia algo de errado com Laura, mas Megan achava que a

babá nem era Laura. Que era outra pessoa. Uma estranha. Dentro da casa deles. Mas, não. Isso era bobagem. Claro que era Laura. Ela só estava de mau humor. Talvez houvesse brigado com o namorado. Talvez estivesse estressada com o curso na faculdade. Todo mundo tinha dias ruins, e aquele era uns dos dias ruins de Laura. Indo para a cozinha, Jessica pisou numa pastilha de hortelã. Quando sacudiu a meia, algo mais ocorreu a ela. Pegue essa pastilha de hortelã! Quando Robbie jogara a bala para Laura, ela não só surpreendera a todos agarrando a pastilha no ar como usara a mão esquerda para isso. E Laura era destra. Jessica tinha absoluta certeza disso. Elas freqüentemente se sentavam para jogar videogame, e Laura sempre segurava o controle com a mão direita. Às vezes, sentava para escrever cartas ou fazer anotações no seu diário, e Jessica também tinha certeza de que ela segurava a caneta com a mão direita. Jessica sentiu um tremor no estômago e chamou: — Robbie? O irmão estava abrindo um grande pacote de batatas fritas. — O que é? — perguntou ele, oferecendo o pacote para Megan, que tirou

um punhado e correu para a sala, com a outra mão cheia de biscoitos de chocolate. — Você notou algo estranho na Laura? — perguntou ela. — Você quer uma lista? — disse ele, brincando. Jessica suspirou. — Não. Só algo mais estranho do que o habitual. Veja você — disse Jessica, apontando para as batatas fritas e as barras de chocolate que Robbie espalhara na mesa. — A Laura sempre segue as regras da mamãe e do papai, mas deixou que você comesse toda essa porcariada em vez do jantar. — É bem esquisito, concordo — disse Robbie. — E, quando ela pegou sua bala, usou a mão esquerda. Mas ela não é canhota, é? Ela é destra. — Eu nunca reparei — disse Robbie, parecendo indiferente. — Talvez fosse a mão que estava mais perto. A outra devia estar no bolso. Ou desabotoando o casaco. Ou limpando o nariz. Ou talvez ela seja... qual é a palavra? Ambígua? — Não é ambígua — disse Jessica. — Você quer dizer ambidestra. Quem é capaz de usar as duas mãos. Mas acho que a Laura não é. — Então, o que você está dizendo? — perguntou Robbie, cuspindo batatas fritas.

Jessica não sabia se Robbie conseguia ouvir sua voz acima do som que saía da boca cheia, nem se valia a pena continuar. Suspirou e disse: — Nada. Mas... a Megan perguntou a ela... Robbie levantou as sobrancelhas. — Perguntou o que a ela? — Onde a Laura estava — retrucou Jessica. — Verdade? — disse Robbie, subitamente interessado. — Tem certeza? Jessica assentiu e disse: — Tenho. Mas ela só tem quatro anos... — Mas dizem que não é possível enganar as crianças pequenas como se enganam as maiores e os adultos — respondeu Robbie. — Quando coisas estranhas acontecem, dizem que elas percebem melhor do que nós. — Quem diz? — perguntou Jessica, curiosa. — Li isso num dos meus livros. Por exemplo, se uma casa fica mal-assombrada, as crianças menores são as primeiras a ver os fantasmas, sabia? — disse Robbie, engolindo as últimas batatas. — Por que você não vai ficar de olho na Laura, procurando qualquer outro sinal estranho? Vou pegar mais comida e encontro você num minuto. — Tá legal — disse Jessica.

Ela foi mancando até a sala. O tornozelo estava inchando, como ela temia. Normalmente, ela esperaria que Laura fosse mais solidária. Agora nem adiantava mencionar aquilo. A babá estava sentada em posição ereta numa cadeira no fundo da sala. Apagara o abajur alto que ficava perto da cadeira. Tinha um ar sinistro sentada ali nas sombras, com o rosto oculto pela escuridão. Parecia uma das criaturas dos livros e filmes de Robbie. Jessica entrou e sentou-se no chão diante da tevê. Apertou o botão com o indicador, e a luz bruxuleante do aparelho apareceu. O televisor estava sintonizado na MTV. Um dos vídeos musicais favoritos estava tocando. Jessica aumentou o volume. Laura pulou como se alguém houvesse acendido um pavio de dinamite embaixo da cadeira. Tampou os ouvidos com as mãos e berrou: — DESLIGUE... ISSO! Jessica ficou tão chocada com a explosão que seus dedos se atrapalharam com o controle remoto, que acabou caindo no chão. Laura já estava realmente urrando: — DESLIGUE ISSO AGORA!

Com os dedos trêmulos, Jessica pegou o controle remoto e apertou o botão de desligar. A tevê silenciou. — Não ligue mais essa televisão — ralhou Laura, olhando para Jessica. A babá tinha uma aparência quase mareada. Seus olhos verdes pareciam querer fixar a menina no lugar. Era um olhar tão intenso que Jessica esperava que um raio laser saísse dali e detonasse sua cabeça. Olhos verdes? Seria um truque da luz? Não parecia ser. Jessica sentiu outra vez aquele tremor no estômago. Laura tinha olhos castanhos, e não verdes. Megan se aproximou lentamente de Jessica e sussurrou: — A Laura não teria feito isso. Por que não podemos ter a Laura de volta? A babá olhou irritada para elas e saiu depressa da sala. Logo depois, Robbie entrou e perguntou: — O que está acontecendo? A Laura estava mais verde do que um campo de golfe quando passou por mim no corredor! Jessica acenou para o irmão se aproximar. Depois sussurrou: — Sente aqui e converse comigo. Vamos fingir que estamos jogando

videogame. O barulho vai abafar a nossa voz e ela não ouvirá o que dissermos, se tentar escutar. Robbie assentiu, e Jessica ligou o jogo. — Eu só liguei na MTV — explicou Jessica. — Uma das minhas canções favoritas começou a tocar. Eu sei que a Laura gosta daquela música também, porque na semana passada ela me contou que tinha comprado o CD. Mas hoje ela detestou a canção. Parecia que o sangue dela estava fervendo por causa disso. — Se era uma daquelas suas bandas de garotos, sei como ela devia estar se sentindo — disse Robbie, brincando. Jessica deu um empurrão no irmão e respondeu: — A música deixou a Laura louca. Ela parecia que ia desmaiar. E não é só isso. Os olhos dela também estavam diferentes. — Os olhos? Como? — perguntou Robbie. — Eles estão verdes — respondeu Jessica. — Mas são castanhos, não são? — Eu não lembro, Jess — disse Robbie, suspirando dramaticamente. — Nunca reparei. Você tem certeza? — Absoluta — retrucou Jessica, com firmeza. Robbie ficou em silêncio. Depois disse devagar:

— Acho que sei o que está acontecendo. Jessica se inclinou para a frente, interessada em ouvir. Mas a conversa entre ela e Robbie foi interrompida pelo som de um grito. Seguindo o irmão, Jessica foi mancando até o corredor o mais depressa possível e encontrou a babá gritando com Megan. A menina estava parada ali, com os olhos arregalados e o rosto branco de medo. Seu lábio inferior tremia. Cheia de culpa, Jessica percebeu que ela e Robbie estavam tão distraídos na conversa que nem haviam percebido Megan sair da sala. — Por que você estava vasculhando a minha bolsa? — gritou Laura. Jessica viu a bolsa de Laura aberta no chão. Enquanto isso, a babá continuou: — Não se atreva a mexer nas minhas coisas! Se você ousar mexer nas minhas coisas outra vez... Jessica interrompeu: — Mas, Laura, você sabe que a Megan sempre gosta de ver o seu bloco de desenho. Você sempre pede que ela tire o bloco da sua bolsa... Robbie se abaixou para consolar Megan. Mas a babá não ficou satisfeita em ser interrompida.

— Vocês dois podem voltar para lá e ficar quietos! — gritou. Agarrando bruscamente Robbie e Jessica pelos braços, ela empurrou os dois de volta para a sala. Ali, o videogame ainda tocava alto. — Mais barulho! — explodiu Laura. Avançando, ela arrancou os controles do jogo. Depois atirou o material ao chão e pisoteou tudo repetidamente. — Ei! — disse Robbie, zangado. — Espere até o papai ouvir que você fez isso — acrescentou Jessica. Mas Laura continuou até que os dois controles ficaram despedaçados, com os fragmentos de plástico espalhados pelo tapete. — Agora sentem e calem a boca — disse ela, ameaçadoramente. Pelo canto do olho, Jessica viu que Megan também viera até a sala. A babá agarrou a mão de Megan e, puxando a menina do chão, disse: — E quanto a você... está na hora de dormir. — Não gosto de você como gostava da Laura verdadeira — disse Megan, numa voz trêmula. Jessica e Robbie olharam um para o outro e, depois, para Megan. Pálida, a menina ia sendo arrastada pela babá para fora da sala.

Normalmente, Megan fazia o maior espalhafato para ir para a cama. Ela odiava perder as coisas divertidas que Jessica, Robbie e Laura faziam juntos. Geralmente chorava e gritava enquanto subia a escada, e também durante a meia hora que levava até adormecer. Mas, naquela noite, nada estava normal. Megan parecia absolutamente calma. — Ela nem está chorando — comentou Robbie. — É porque está morrendo de medo — murmurou Jessica. Depois, acrescentou: — Você disse que achava que sabia o que estava acontecendo. Conte logo. Você acha que uma irmã gêmea má de Laura tomou o lugar dela, ou algo assim? É isso? — É pior — disse Robbie, sério. — Acho que a nossa babá... é um doppelganger. É o doppelganger da Laura. — Um doppelganger? O que é isso? — perguntou Jessica, confusa. — É uma espécie de versão oposta da pessoa — explicou Robbie. — Li num dos meus livros que todo mundo tem um doppelganger em algum lugar. Alguém muito bom deve ter um doppelganger mau, e vice-versa. E geralmente a gente consegue diferenciar os dois, porque não são completamente idênticos. Podem existir

alguns sinais, como cor dos olhos diferente, os dentes, ou qualquer coisa... Mas é preciso estar bem atento para conseguir notar. — Robbie, você lê muitos livros de terror idiotas! — disse Jessica. — Tudo isso não passa de bobagem. — Então dê a sua explicação — respondeu Robbie, teimosamente. Jessica suspirou e disse: — Mas... está bem, continue. Conte mais. — Como eu disse, o doppelganger é o oposto da pessoa. Eles odeiam o que a outra pessoa ama, e vice-versa. Diz a lenda que, quando os dois se encontram, o mais fraco morre... mas sempre há uma luta feia. Jessica arquejou de susto e disse: — Isso explica o sangue na blusa da Laura! Ela parecia ter lutado... Você acha que ela pode ter matado a nossa Laura... a Laura boa? Robbie assentiu gravemente e disse: — Isso acontece muito. Na verdade, há uma página na internet... Ele foi interrompido pelo toque do telefone. Jessica correu para atender. — Jess, querida... Está tudo bem? Jessica reconheceu imediatamente a voz do outro lado da linha. Com a voz inundada de alívio, disse: — Mãe!

— Tive uma sensação horrível de que algo estava errado — continuou a mãe. — O pai diz que é bobagem minha, mas tive um pressentimento. — Desta vez você acertou, mãe — disse Jessica, aflita. — Alguma coisa está errada! Muito errada! Então a ligação foi cortada. — Mãe? — disse Jessica, nervosa. — Mãe! Alô? Mas o fone na sua mão era apenas um pedaço de plástico inútil, silencioso e morto. — O telefone parou de funcionar — disse ela para Robbie. Então a porta foi aberta. A babá estava parada na entrada da sala, segurando a grande tesoura que ficava guardada na cozinha. Ela jogou a tesoura numa cadeira com a ponta virada para baixo, rompendo a almofada, e disse: — Não suporto o som da campainha do telefone. Isto aqui veio a calhar. Pela cara de Robbie, Jessica viu que ele achava a mesma coisa que ela: a babá usara a tesoura para cortar o fio do telefone no corredor. E eles não tinham celular. A mãe proibira, porque lera algo sobre os riscos para a saúde. Mas agora a saúde deles estava correndo risco. Não havia jeito de pedir socorro. A babá atravessou a sala e afundou na tal cadeira fora da luz. Jessica e Robbie

sentaram juntos no sofá, completamente imóveis, sem ousar mexer um músculo. O silêncio na sala chegava a parecer mais ruidoso do que o jogo do computador. Jessica só queria saber se Megan estava bem. Sem telefone ou outro jeito de comunicação com o mundo lá fora, nem ela nem Robbie podiam pedir ajuda. Arriscou um olhar de esguelha para o irmão, sabendo que ele pensava a mesma coisa. O rosto de Robbie estava profundamente franzido: ele parecia estar tentando escutar algum barulho produzido pela irmã caçula. Finalmente, Robbie perguntou com voz trêmula: — Nós podemos ir à cozinha fazer uma comida? “Boa idéia, Robbie!”, pensou Jessica. “Por favor, diga que sim, seja você quem for. Assim poderemos sair desta sala e subir para ver se a Megan está bem.” — Façam o que quiserem — disse a babá. Jessica e Robbie deram um suspiro de alívio e saíram da sala, tentando não demonstrar que estavam com pressa. No corredor, Robbie cutucou Jessica e sussurrou: — Ponha a chaleira no fogo. Assim ela vai ouvir a água fervendo. Mas encha até a borda, para levar um bom tempo antes de

ferver. Então poderemos subir e ver como a Megan está. Jessica concordou e entrou na cozinha. Levou a chaleira até a pia e abriu a torneira de água fria. Quando a vasilha ficou cheia, ela acendeu o fogo. Depois, juntou-se a Robbie, que aguardava na porta gesticulando para que ela se apressasse. — Podíamos tentar sair de casa para pedir ajuda ao vizinho — disse ele. — E deixar a Megan aqui? Com ela? — espantou-se Jessica. — Claro que não — retrucou Robbie. — Podemos subir e pegar a Megan. Quando descermos, ela virá conosco. Jessica olhou para cima. O silêncio era total. — Espero que ela esteja bem — disse Jessica, ansiosa. Os dois subiram a escada, Robbie na frente. Jessica seguia atrás o mais depressa possível, tentando pôr o peso no corrimão para aliviar o tornozelo torcido. Quando chegaram ao topo, Robbie acendeu a luz, e eles cruzaram rapidamente o corredor. A porta do quarto de Megan estava fechada. A maçaneta fora arrancada. O trinco estava emperrado, e era impossível abrir a porta. Jessica soltou um arquejo de susto e perguntou:

— Laura, ou seja lá quem for, arrancou a maçaneta só com as mãos? — Talvez — disse Robbie. — Tente encostar o ouvido na porta e escutar. Dá para saber se a Megan está bem? Jessica aguardou, mas não ouviu coisa alguma. Colocando as mãos em volta da boca, começou a sussurrar o mais alto que ousava: — Megan... Megan! Por um lado, Jessica tinha vontade de arrombar aquela porta, só para ver se Megan estava bem. Por outro, sabia o que aconteceria se agisse assim: ela e Robbie seriam pegos pela babá. Nesse caso, era melhor deixar Megan ali até conseguirem alguma ajuda. Nada de resposta. O quarto de Megan estava tão silencioso quanto um túmulo. Robbie bateu de leve na porta e chamou: — Megan? Mas não houve resposta. Jessica olhou à sua volta, desesperada. Devia haver algo, qualquer coisa, que pudessem fazer. — Vamos até o meu quarto — disse Robbie de repente. — Vou mostrar a você no computador uma coisa que talvez nos ajude a salvar a Megan. — O que é? — perguntou Jessica. — Uma página que eu descobri, criada por uns meninos. Tem muitos casos de

doppelgangers que invadem a vida das pessoas e vão tomando o lugar delas, uma a uma. — Tem certeza de que não é uma página falsa? — perguntou Jessica. — Tenho — confirmou Robbie. — Os relatos eram muito sérios. As pessoas estavam apavoradas. — Também podemos enviar umas mensagens — disse Jessica, seguindo Robbie até o quarto. — Talvez alguém venha nos ajudar. Deve haver alguma maneira de podermos nos comunicar com a polícia, ou algo assim. Quando Robbie acendeu a luz do quarto, as máscaras de lobisomem, vampiro e monstros pularam à vista. Mas, naquele momento, o único monstro que tinha importância para Jessica era o que estava lá embaixo. A tela do computador na mesa de Robbie estava negra. — Tenho certeza de que deixei esse troço ligado — disse ele, mexendo o mouse para a frente e para trás. — Quanto tempo leva para ligar? — perguntou Jessica, procurando escutar algum movimento lá embaixo. — Não demora muito — respondeu Robbie. Ele pressionou a tecla, mas nada aconteceu.

— Veja a tomada — disse Jessica. — Talvez o computador esteja desligado da parede. Robbie se abaixou ao lado da cama, afastando uma pilha de revistas de terror e um busto plástico do Frankenstein. Então soltou um arquejo. — O que houve? — perguntou Jessica. — Ela cortou o fio. Assim como fez com o fio do telefone! Está cortando toda a nossa comunicação. Precisamos sair de casa — disse ele apressadamente. — Nós não vamos deixar a Megan aqui — disse Jessica com firmeza. Os dois ouviram um grito no corredor da entrada. — Onde vocês estão? — Estamos descendo — respondeu Jessica, fazendo força para não gaguejar. Virou-se para Robbie e perguntou: — O que ela está fazendo aqui? Quer dizer... O que você acha que ela quer aqui? — Ora, todo doppelganger é o oposto do seu original — disse Robbie lentamente. — A Laura boa adora músicas de bandas de garotos, e a má odeia as bandas. Então... Ele engoliu em seco. — O quê? — perguntou Jessica. — Como a Laura boa queria cuidar de nós e nos manter em segurança, acho que a Laura má... vai querer nos fazer mal.

— Vocês dois! — gritou a babá lá embaixo. — Desçam já! — Finja que está tudo bem — sussurrou Robbie. Os dois saíram do quarto de Robbie e desceram a escada. A babá esperava lá embaixo, parecendo muito zangada. Pegou no braço de Robbie e começou a subir a escada puxando o menino, enquanto dizia: — Está na sua hora de ir para a cama. Pode subir outra vez. Jessica viu Robbie tentar se soltar, mas aquela Laura era claramente muito mais forte do que a Laura verdadeira. Quando chegaram ao corredor, ele lançou um olhar amedrontado para Jessica. Seus olhos imploravam ajuda. Jessica ficou ao pé da escada, tentando desesperadamente descobrir o que fazer. Sabia que precisava sair da casa e dar o alarme antes que fosse tarde demais. Mas também sabia que nunca conseguiria passar pela porta da frente, trancada com cadeado e corrente, antes de ser pega pela babá. Então ela correu para os fundos da casa. A porta da cozinha estava trancada, e não havia sinal da chave. A chave das trancas das janelas também fora tirada.

Jessica saiu da cozinha e foi para o corredor. O mesmo acontecera com as janelas dali. Ela pensou em bater no vidro, mas tinha certeza de que ninguém escutaria. Se ao menos fosse noite de churrasco ao ar livre na casa dos vizinhos, haveria uma porção de gente no quintal deles... — Jessica! A babá estava parada na porta. Jessica ficou gelada quando ela começou a andar em sua direção. E, então, ouviu uma batida na porta. — Espere aqui — disse a babá rispidamente. Virou-se e saiu da sala, fechando a porta. Jessica correu até a porta para escutar. Ouviu a corrente da porta da frente ser removida. Depois, as duas pesadas fechaduras serem giradas. Por fim, o murmúrio de vozes e passos na escada. Seus pais teriam voltado? Por que Laura destrancara a porta da frente? Jessica abriu a porta da sala silenciosamente e olhou. O corredor estava deserto. Com a corrente e a tranca abertas, talvez ela pudesse fugir. Jessica foi mancando pelo corredor o mais depressa possível. O tornozelo torcido enviava pontadas de dor pela panturrilha, mas ela não ligou. Qualquer coisa era

melhor do que ser capturada por aquele monstro. Quando Jessica pegou a maçaneta para abrir a porta, porém, sua mão foi encoberta por outra. Ela se virou e encarou os glaciais olhos verdes da babá. Qualquer esperança que ainda tinha de sair da casa se evaporou. — Acha que eu vou deixar você sair sozinha no escuro a essa hora da noite? — disse a babá com um sorriso sinistro. — Você pode correr tudo que é tipo de perigo... Jessica percebeu que a babá estava só criando tormentos para ela. Deixara que ela pensasse que tinha chance de escapar. E, então, acabara com a esperança dela. — Hora de ir para a cama — sibilou a babá. E, lentamente, começou a forçar Jessica a subir a escada. Jessica começou a achar que seria morta pela babá naquele instante. Imaginando que ela já matara seu irmão e sua irmã, sentiu lágrimas arderem nos olhos. Desesperadamente, pensou em outra maneira de fugir. Não havia jeito de escapar pela força. Ela precisava usar algum ardil. Se fingisse concordar com a babá, talvez ela abrisse a guarda e lhe desse chance de pensar em outra coisa. Então teve uma idéia. Valia a pena tentar.

— Você não precisa me empurrar, Laura — disse Jessica. — Eu vou para a cama, sim. Estou cansada demais para resistir agora... — Boa menina — disse a babá, soltando o braço dela. Com um repelão, Jessica subiu rapidamente a escada até o quarto. Não sentia dor nenhuma no tornozelo, que parecia ter ficado dormente de medo, como o resto do corpo dela. No patamar da escada, olhou para trás e viu a babá subindo em perseguição, com uma expressão sinistra. Jessica entrou no quarto e correu para o aparelho de CD. Sim! Era como ela lembrava. A capa do último CD da sua banda de garotos favorita estava em cima do aparelho de som. Isso significava que o CD ainda estava lá dentro. Ela apertou o botão para tocar e ouviu o disco zumbir. Depressa, depressa, pensou ela, colocando o volume no máximo. Com o rosto branco de fúria, a babá entrou no quarto e fechou a porta. Enquanto ela se aproximava de Jessica, a música começou a sair pelos alto-falantes. A babá parou e tapou os ouvidos. Depois abanou a cabeça de um lado para o

outro violentamente. Por fim, saiu do quarto e desceu correndo a escada. Jessica se sentiu enjoada de tanto alívio. Aumentou o volume tanto quanto possível, mais alto do que jamais ousara. O lustre pendurado no teto começou a balançar, e os móveis do quarto chacoalhavam feito castanholas. “Logo”, pensou ela, “os vizinhos vão reclamar. Eles chamarão a polícia... Ou virão bater na porta aqui. Então tudo vai ficar bem”. Mas, de repente, a música parou, e a casa inteira foi engolida pela escuridão. Horrorizada, Jessica lembrou que dentro da despensa havia uma chave que desligava toda a eletricidade da casa. Provavelmente a babá desligara essa chave. Jessica foi mancando até o patamar e olhou por cima do corrimão. A babá estava parada no escuro ao pé da escada. — Por que você está fazendo isso? Vá embora da nossa casa! — gritou Jessica para ela. A babá começou a subir. Degrau por degrau, foi subindo a escada para pegar Jessica. O facho de luz de um poste na rua entrava pela janela do patamar. A sombra

da babá subia vagarosamente pela parede, chegando cada vez mais perto. Jessica voltou cambaleando para o quarto. “Desta vez é realmente o fim...”, pensou ela. A babá apareceu na porta. Jessica queria gritar, mas sua garganta parecia congelada pelo terror. Então ela ouviu um barulho lá embaixo. Alguém estava à porta da frente. Seria...? — Laura? Por que as luzes estão apagadas? O fusível queimou? Sim! Seus pais estavam de volta! A babá ficou parada, claramente procurando decidir como lidar com aquele imprevisto. Então as luzes voltaram a brilhar. Seus pais haviam ligado a chave. Quando a música de Jessica tornou a tocar, a babá correu para fora do quarto e desceu a escada. Com o coração aos pulos, Jessica desligou o som. Ela queria gritar para o pai, mas estava sem fôlego por causa do alívio. Mal podia sussurrar, mal podia se mover. Ouviu uma conversa lá embaixo e apurou o ouvido. — Desculpem isso ter acontecido. Eu já estava procurando a caixa do fusível — explicou a babá.

— Não se preocupe. Desculpe se fui agressivo — disse o pai. — Sem problemas — explicou a babá. — Eu estou tão cansada que mal consigo ficar em pé. Pode me dar uma carona até em casa? — Claro que sim — concordou o pai. — Eu vou também — disse a mãe. — Quero ver a reforma que você fez no seu apartamento. Você me falou sobre isso, na semana passada. É logo aqui virando a esquina, não é? Quando voltarmos, vamos ver as crianças. — Não! Não vão com ela! — gritou Jessica. Mas a voz saiu baixa e rouca. Desesperadamente, ela voltou mancando até o patamar da escada, com as lágrimas escorrendo e o tornozelo latejando. Lá viu seu reflexo no espelho. O rosto estava branco como o de um cadáver. Parecia que Robbie estivera treinando com ela sua técnica de maquiador. Mas era tarde demais. A porta da frente bateu atrás deles. Jessica desceu a escada o mais depressa possível e abriu a porta da frente. Mas o carro da família já estava saindo e descendo a rua, com aquele monstro dentro. Jessica não sabia se voltaria a ver seus pais. Então, tudo ficou negro.

Quando Jessica voltou a si, a porta da frente estava se abrindo. Com um arquejo, ela tentou subir a escada depressa, mas caiu estatelada no chão ao sentir uma pontada de dor no tornozelo. Já ia deixar escapar um grito preso na garganta, quando viu... O pai, parado na porta, sorrindo e deixando a mãe passar. Os dois haviam voltado depois de deixar a babá em casa. E pareciam estar bem. — O que você está fazendo deitada aí? — perguntou o pai, com curiosidade. — Já devia estar na cama. Jessica tinha tanto o que explicar a eles. Começou a gaguejar: — Pai, nem sei por onde começar. Mas você precisa chamar a polícia... — A polícia? — repetiu o pai, parecendo preocupado. — Venha cá. Ele estendeu a mão para ajudar a filha a se levantar. Jessica esticou o braço, mas recuou, amedrontada. Era a mão esquerda dele. Ela olhou do rosto do pai para o rosto da mãe, vendo os olhos recentemente esverdeados do pai e os olhos recentemente esverdeados da mãe.

Apavorada, Jessica se apoiou na perna boa, levantou-se e começou a subir a escada. — Jess, o que é isso? — perguntou o pai, indo atrás. Sua voz parecia um pouco diferente. Era como se ele estivesse resfriado. Assim como acontecera com Laura. — Fique longe de mim — disse Jessica. — Eu sei quem vocês são. — Quem somos nós? Jessica... você teve um pesadelo? O pai tentou tocar nela outra vez. Jessica se afastou e disse: — Vocês precisam que eu morra para me substituir pela minha sósia maligna. Ela se virou e foi mancando escada acima, fugindo dos dois, mas parou ao ver os dois vultos parados no topo da escada, olhando para ela. Jessica vacilou por um segundo sobre a perna boa. Então, exclamou: — Robbie? Megan? Vocês estão bem? — Nós estamos muito bem, Jess — retrucou Robbie, pegando a mão de Megan. — E agora você também pode estar. O irmão e a irmã de Jessica avançaram para a luz. Seus olhos verdes brilhavam, enquanto eles desciam a escada na direção dela.

Digitalização/Revisão: Yuna

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