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http://geocities.yahoo.com.br/gastou2002/temporarypreviewfile.html. __ Você acha? Pois é o que eu lhes digo em cada hora que lhes dou, mas não querem ouvir. Preferem acreditar naqueles que as assustam. Isso também é um mistério. __ Eu não tenho medo – afirmou Manu. Mestre Hora sacudiu devagar a cabeça, olhou em seguida para a menina e perguntou: __ Você gostaria de ver de onde vem o tempo? __ Muito! – sussurrou ela. __ Pois vou levar você lá – disse Mestre Hora. __ Mas você terá de ficar inteiramente silenciosa, sem perguntar nem dizer nada. Promete? Manu acenou afirmativamente, sem uma palavra. Mestre
Hora
curvou-se
então
e
carregou-a,
segurando-a
firmemente nos braços. Parecia de repente ter-se tornado muito grande e incrivelmente velho – não como um velho comum, e sim qual árvore muito antiga, ou montanha primitiva. Pôs as mãos sobre os olhos da menina, e foi como se frios e leves flocos de neve caíssem sobre seu rosto. Manu tinha a impressão de que ele a levava por um longo e escuro corredor, mas se sentia segura e não tinha medo algum. No começo, pensou estar ouvindo as batidas de seu próprio coração, logo, porém, pareceu-lhe, cada vez mais, que elas eram o eco dos passos de Mestre Hora. O percurso foi longo, mas por fim ele a colocou de pé, e com o rosto ainda bem junto ao seu, olhando-a fixamente, pôs um dedo nos lábios. Depois, endireitou-se e deu um passo atrás. Um crepúsculo dourado envolveu a menina. Aos poucos, Manu viu que estava sob uma cúpula imensa, tão alta como a abóbada celeste, toda em ouro. No cimo, bem no centro, havia uma abertura circular pela qual uma verdadeira coluna de luz se irradiava sobre um lago, também redondo, do mesmo tamanho da abertura do alto, cuja superfície negra era tão lisa e imóvel como a de um escuro espelho.
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Pouco acima da água, algo parecendo uma brilhante estrela resplandecia na coluna luminosa, movendo-se com majestosa lentidão. Observando melhor, Manu viu que era um enorme pêndulo, oscilando de um lado para outro sobre o espelho negro do lago. Não estava suspenso de nenhum ponto, e pairava no ar como se fosse imponderável. Quando o pêndulo estelar se aproximou da margem do lago, um grande botão de flor surgiu sobre a água escura. Quanto mais perto chegava
o
pêndulo,
mais
desabrochava
o
botão,
até
abrir-se
completamente sobre a superfície lisa. Era a flor mais maravilhosa que Manu jamais havia visto: parecia feita apenas de uma quantidade de cores brilhantes, tão belas como a menina nunca imaginara que existissem. O pêndulo estelar se deteve um instante sobre a flor e Manu, completamente absorta nessa visão, estava inconsciente de tudo o mais a seu lado. O perfume da flor parecia-lhe uma coisa que sempre havia desejado, sem saber o que fosse. Aos poucos, porém, devagar, muito devagar, o pêndulo começou a se afastar e, enquanto se distanciava, Manu viu com assombro que a flor maravilhosa começava a murchar. As pétalas caíam, uma após outra, mergulhando na escura profundeza. Quando o pêndulo chegou ao centro, nada restava daquela extraordinária beleza. Naquele exato instante, porém, outro botão começou a surgir da água, desta vez do lado oposto, e foi se abrindo à medida que pêndulo se aproximava. Manu viu que a outra flor maravilhosa ali desabrochava, ainda mais bela do que a anterior, e deu a volta ao lago para apreciá-la mais de perto. Era inteiramente diversa da flor antecedente: suas cores pareciam à menina ainda mais ricas e suntuosas; seu perfume também era outro, ainda mais delicioso. E quanto mais Manu a contemplava, mais lindos detalhes nela cobria. De novo, porém, o pêndulo oscilou para longe e todo aquele esplendor se desvaneceu, caindo, pétala por pétala, na insondável profundeza do lago.
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Lenta, lentamente, o pêndulo moveu-se para a outra margem, e desta vez aproximou-se de outro ponto, ligeiramente distante do anterior, onde começou a surgir novo botão, que foi gradualmente desabrochando. Extasiada, Manu admirava essa flor – verdadeiro milagre de beleza –, que superava todas as outras. Manu quase chorou ao ver também essa perfeição murchar e desaparecer no lago sombrio. Mas lembrou-se da promessa que fizera a Mestre Hora e ficou muda. Então, na outra margem, no lugar onde se achava o pêndulo, surgia da água outro botão prestes a se abrir. Aos poucos, a menina foi compreendendo que cada nova flor era sempre diferente da anterior e que aquela que floria agora lhe parecia a mais bela de todas. Não
se
cansava
de
apreciar
aquela
cena,
quando
tomou
consciência de que mais alguma coisa ali ocorria constantemente sem que o tivesse notado. A coluna de luz irradiando do alto da cúpula não era apenas visível – Manu começou também a ouvi-la. No princípio era apenas um leve sussurro como o som distante do vento soprando no cimo das árvores. Logo, porém, o som aumentou, fazendo-a imaginar uma cascata despencando das alturas, ou em grandes ondas rebentando contra os rochedos. Foi percebendo, cada vez mais distintamente, que aquele impressionante ruído era composto de inúmeras melodias separadas, que modulavam e se uniam para formar harmonias sempre novas. Era música e, ao mesmo tempo, coisa inteiramente diversa. De repente, Manu descobriu: era música que ela ouvia por vezes, longe, muito ao longe, quando se punha a escutar o silêncio sob o céu estrelado. O som se tornara mais nítido e irradiante. A menina começou então a suspeitar ser essa luz sonora que fazia surgir as flores das profundezas do sombrio lago, dando a cada uma sua beleza própria, única.
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Quanto mais atentamente ouvia, com maior clareza podia distinguir as vozes individuais, que aliás não eram vozes humanas: pareciam vibrações de ouro, prata e outros metais preciosos. Além disso, no fundo, como cortina sonora, ressoavam vozes de outra espécie, de indescritível esplendor, vindas de incomensurável distância. Tornavamse cada vez mais claras e Manu pôde aos poucos ouvir as palavras que elas cantavam. Palavras numa língua que jamais ouvira, e que no entanto compreendia: o Sol, a Lua, os planetas e todas as estrelas lhe revelavam seus nomes reais e verdadeiros. Esses nomes é que determinavam aquela maravilhosa força pela qual, todos unidos, suscitavam a floração das horas, que continuamente floriam e se desvaneciam. Subitamente Manu compreendeu que aquelas palavras se dirigiam a ela! Todo o universo – desde a mais longínqua estrela – voltava-se para ela como se uma única face, inconcebivelmente vasta, a contemplasse e lhe falasse. Sentiu-se invadida por um sentimento maior do que o temor. Nesse instante, viu Mestre Hora, que silenciosamente lhe acenava. Correu para ele, refugiou-se nos seus braços e escondeu o rosto no seu peito. De novo ele colocou as mãos sobre os olhos da menina, tão suavemente como flocos de neve; tudo se tornou escuro, silencioso, e Manu sentiu-se segura enquanto era carregada de volta pelo sombrio corredor. Quando chegaram novamente à saleta entre os relógios, ele deitou-a no sofá. __ Mestre Hora – murmurou a criança –, nunca pensei que o tempo dos homens fosse tão . . . – procurava a palavra capaz de exprimir seu pensamento, e, não a encontrando, disse por fim: __ tão imenso! __ O que você viu e ouviu, Manu, não foi o tempo de todos os homens, foi apenas o seu tempo – replicou Mestre Hora. __ Em todas as pessoas existe um lugar como esse em que você esteve há pouco. Mas
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só podem chegar lá as que consentem em que eu as leve. E também não se pode vê-lo com os olhos comuns. __ Mas onde é que eu estive? __
No
seu
próprio
coração
–
respondeu
ele,
acariciando
suavemente o cabelo da menina. __ Mestre Hora – disse ela baixinho –, posso trazer aqui meus amigos para conhecerem o senhor? __ Não; por enquanto não é possível. __ E quanto tempo possa ainda ficar aqui? __ Até você sentir que deve voltar para junto de seus amigos. __ Posso contar a eles o que as estrelas disseram? __ Pode, mas você não será capaz disso. __ Por que não? __ Porque, para conseguir tal coisa, primeiro as palavras têm de crescer dentro de você. __ Mas eu queria contar a eles – a todos eles – tudo quanto vi e ouvi! E também cantar o que as vozes contavam . . . assim, acho que tudo endireitava outra vez! __ Se você o quer realmente, Manu, tem de preparar-se para uma longa espera. __ Não me importo de esperar. __ Você terá d esperar, tal como a semente precisa dormir dentro da terra, talvez durante todo um ciclo solar, para que brote. Está disposta a isso? __ Sim, estou! – disse ela num murmúrio. __ Então durma! E Mestre Hora pôs as mãos leves sobre seus olhos: __ Durma! Tranqüila, Manu respirou fundo e adormeceu.
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TERCEIRA PARTE A floração das horas
1. Um dia lá mas um ano aqui! Manu acordou e abriu os olhos. Levou algum tempo até perceber onde se achava. Quando percebeu, ficou muito admirada ao ver-se nos degraus cobertos de capim do velho anfiteatro. Não tinha estado na Mansão de Lugar Nenhum com Mestre Hora, havia apenas alguns instantes? Como voltara tão depressa? Estava escuro e frio. No leste brilhava o primeiro clarão da alvorada.
Lembrava-se
perfeitamente
bem
de
tudo
quanto
lhe
acontecera: a fuga noturna acompanhando a tartaruga através da grande cidade, as ruas com aquela estranha luz e as casas ofuscantes de tão brancas, a Alameda do Nunca, a sala cheia de relógios, os pãezinhos com mel e o delicioso chocolate, bem como cada palavra de sua conversa com Mestre Hora e a charada que ele propôs. Acima de tudo, porém, recordava o que se passara sob a cúpula de ouro. Bastavalhe fechar os olhos para rever as maravilhosas cores – jamais sonhadas! – das flores e ouvir de novo as vozes do Sol, da Lua, das estrelas, tão nitidamente que podia até cantarolar a melodia para acompanhá-las. Ao fazer isso, palavras começaram a tomar forma em seu coração: palavras que realmente exprimiam o perfume das flores e a beleza das cores, inexistentes na terra ou no mar. Eram as vozes que, na memória de Manu, falavam as palavras e sucedeu então algo de extraordinário; não só se lembrava de tudo o que vira e ouvira, mas havia ainda muito, muito mais! Milhares de imagens da floração das horas brotavam da sua mente como
se
jorrassem
de
uma
fonte mágica,
inextinguível,
suscitando sempre palavras novas. Bastava ouvir atentamente seu coração para ser capaz de repeti-las ou de acompanhar as vozes, que
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cantavam coisas lindas e maravilhosa. Ao pronunciá-las, Manu percebeu que agora entendia seu verdadeiro sentido. Era sem dúvida o que o Senhor do Tempo dissera por intermédio de Mestre Hora, ao avisá-la de que as palavras tinham de nascer dentro dela mesma! Ou teria sido tudo apenas um sonho? Acontecera realmente tudo aquilo? Manu estava ainda absorta naquelas reflexões, quando viu alguma coisa rastejando no meio da arena. Era uma tartaruga à procura de uma planta saborosa para comer. A toda a pressa, a menina desceu e ajoelhou-se perto do animal, que mal ergueu a cabeça, continuando a mordiscar aqui e ali. __ Bom dia, tartaruga! – disse Manu. Nenhuma resposta apareceu na carapaça. __ Foi você que me levou à mansão de Mestre Hora, a noite passada? – perguntou Também não houve resposta. Manu deu um suspiro de desapontamento e murmurou: __ Que pena, então você é uma tartaruga comum, e não – Oh! Esqueci-me do nome da outra . . . era um nome bonito, comprido, difícil, que eu nunca tinha ouvido antes. “CASSIOPÉIA”,
apareceu
subitamente
em
letras
fracamente
luminosas na carapaça. __ É isso! Era esse o nome! Então é você mesma! Você é a tartaruga de Mestre Hora, não é? “DE QUEM MAIS?” __ Por que, no começo, não me respondeu? “PORQUE ESTOU COMENDO.” __ Oh! Desculpe – disse Manu. __ Não queria interromper seu almoço, mas desejava saber como é que eu voltei para cá. “ POR SUA VONTADE ”, apareceu nas costas do bichinho. __ É engraçado – observou Manu –, não consigo me lembrar disso. E você, Cassiopéia, por que não ficou com Mestre Hora em vez de voltar para perto de mim?
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“ MINHA VONTADE ”, foi a resposta em letras luminosas. __ Oh! Como você é boazinha! Muito obrigada! “ NÃO TEM DE QUÊ! ”, e com isso terminou a conversa, pois a tartaruga estava interessada em continuar sua refeição. Sentada nos degraus de pedra, Manu pensava com alegria em Beppo, Guido e nas crianças. A música ressoava continuamente em seu coração, e embora estivesse inteiramente só, sem ninguém para ouvi-la, pôs-se a acompanhar a música e as palavras, cantando cada vez mais alto e com maior segurança, ao sol da manhã. Parecia-lhe agora que os pássaros, os grilos e até as velhas pedras estavam ouvindo. Não podia saber que, por muito tempo, seriam esses seus únicos ouvintes. Não sabia que esperava em vão por seus amigos, nem que sua ausência fora muito longa e que, enquanto isso, as coisas tinham mudado. Guido foi uma presa relativamente fácil para os homens cinzentos. Tudo começara um ano atrás, logo depois que Manu desapareceu, sem deixar nenhuma pista. Um longo artigo a respeito de Guido saíra então no jornal no jornal com o título “O último verdadeiro contador de histórias”, indicando onde e quando podia ser encontrado, e dizendo ser ele uma atração que não se podia perder. A notícia atraiu cada vez mais gente ao velho anfiteatro para ouvir Guido, que, é claro, não se opunha a tal sucesso. Contava histórias como de costume, aproveitando qualquer coisa que lhe vinha à cabeça; no fim, passava o boné de guia, e o público enchia-o de moedas e notas. Em breve foi contratado por uma agência de viagens, que lhe pagava uma comissão para inclui-lo em seus programas. Os turistas chegavam em grande ônibus, e Guido viu-se obrigado a horários determinados a fim de que o público pagante tivesse realmente oportunidade de ouvi-lo. No começo, sentiu muito a ausência de Manu, pois de certo modo faltavam agora asas às suas histórias, e ele recusava terminantemente contar duas vezes a mesma história, ainda que lhe oferecessem salário dobrado.
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Depois de alguns meses, já não precisava mais ir ao velho anfiteatro: foi descoberto pelo rádio e logo em seguida pela televisão. Aparecia na TV três vezes por semana, contando histórias a milhares de telespectadores e ganhando bastante dinheiro. Abandonou então sua antiga e pobre morada perto do anfiteatro, passando a viver no mais rico e elegante bairro da cidade, onde alugou uma bela e moderna casa, situada em meio de vasto jardim. Deixou também de chamar-se Guido e voltou a ter o pomposo nome de Girolamo. Naturalmente, há muito que já não inventava histórias novas, como fazia a princípio: não tinha tempo para isso, e era obrigado a poupar seus recursos, esticando por vezes a mesma idéia para encher cinco histórias diferentes. Certo dia, quando apesar dessas medidas, não teve meios de satisfazer à crescente procura que o assediava, fez uma coisa que jamais deveria ter feito: contou uma das histórias que inventara unicamente para Manu. História devorada e logo esquecida pelo público com a rapidez habitual. Continuavam porém a exigir dele sempre mais e mais fábulas, e Guido, atordoado pela velocidade com que os compromissos se sucediam, sem tempo para refletir, foi tornando públicas – uma por uma – todas as histórias que inventara só para Manu . . . Mas, depois de ter contado a última, sentiu-se de repente completamente vazio – oco. E sentiu-se que jamais teria novas idéias. Com medo de que o sucesso pudesse fugir começou então a repetir todas as suas velhas histórias, modificando-as ligeiramente e dando-lhes outros nomes. O mais extraordinário é que ninguém parecia saber isso, e ele era mais requisitado do que nunca. Agarrava-se a esse fato como um afogado a uma tábua de salvação. Afinal, estava agora rico, famoso, e não era o que sempre sonhara? No entanto, às vezes, à noite, deitado na cama sob o edredom de cetim, tinha saudades dos dias de antigamente, quando vivia perto
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de Manu, do velho Beppo, das crianças, e era realmente capaz de contar histórias. Porém,
era
impossível
voltar
atrás,
mesmo
porque
Manu
desaparecera sem deixar vestígio. A princípio, Guido fizera vários e sérios esforços para encontrá-la; agora já não tinha mais tempo para isso. Dispunha de três eficientes secretárias, que redigiam seus contratos, taquigrafavam as histórias que ele ditava, encarregavam-se de toda a publicidade, anotavam seus compromissos e nunca havia data em que se pudesse encaixar a busca de Manu. Quase nada ficara do antigo Guido . . . Um dia, porém, ele procurou juntar o pouco de tempo que ainda restava e decidiu pensar seriamente na sua vida. Era agora um homem cujas palavras valiam muito e eram ouvidas por milhões de pessoas. Quem mais indicado para dizer-lhes a verdade? Contaria tudo acerca dos homens cinzentos, dizendo que não se tratava mais de uma história inventada por ele, e pediria até o auxílio de seus ouvintes para ajudá-lo a encontrar Manu. Tomou tal resolução uma noite em que sentiu saudades dos velhos amigos, e pela manhã estava sentado à sua bela escrivaninha, disposto a fazer um rascunho de seu projeto. Não tinha ainda escrito uma só palavra, quando o telefone tocou. Guido atendeu e ficou duro de pavor. Uma voz estranha, átona, cinzenta, começou a falar-lhe; e, enquanto ele ouvia, um frio interior o penetrava, parecendo vir da medula dos ossos. __ No seu próprio interesse, nós o aconselhamos a desistir de seus planos – disse a voz. __ Quem fala? – perguntou Guido __ Você sabe perfeitamente quem é. Nós não precisamos de apresentação. É verdade que até agora você não teve o prazer de nos encontrar; mas há muito que é nosso de corpo e alma. Não me diga que você o ignora! __ Que querem comigo? __ O que você está projetando não nos convém. Seja bom sujeito e desista!
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Guido apelou para toda a seu coragem: __ Não, não vou desistir de coisa nenhuma. Não sou mais o insignificante Guido de antigamente. Agora sou um grande homem. Veremos se vocês podem me impedir de fazer alguma coisa. A voz deu uma risada sem expressão e, subitamente, Guido começou a bater os dentes. __ Você não é ninguém – continuou a voz. __ Nós é que fizemos o que você é hoje: um! – exclamou a voz com outro riso inexpressivo. __ Essa agora, você é a última das criaturas que nos pode falar a verdade. Não, meu pobre rapaz, isso está completamente fora de sua linha. Graças à nossa ajuda, você é hoje famoso pelas histórias que inventa, mas realmente não está qualificado para discorrer sobre a verdade. __ Que é que fizeram com Manu? – perguntou Guido num sussurro. __ Ora, não canse sua cabeça-de-vento quanto a isso. Você não pode socorrê-la, muito menos se quiser contar histórias a nosso respeito. Se o fizer, o único resultado será ver sua fama desaparecer tão depressa quanto surgiu. Evidentemente, quem decide é você! Não queremos impedi-lo de bancar o herói a arruinar-se, já que se sente inclinado a tal atitude. Não pode no entanto esperar que continuemos a promovê-lo, uma vez que se mostra tão ingrato. Não acha mais agradável ser rico e famoso? __ Acho . . . – disse Guido quase sufocando. __ Agora, sim! Acertou! Então deixe-nos de fora, ouviu? Continue contando ao povo o que ele quer ouvir. __ Mas como poderei continuar, agora que sei como as coisas realmente são? – respondeu Guido com esforço. __ Deixe-me dar um bom conselho: não se leve tão a sério, rapaz! Não há nada que você possa fazer. Convença-se disso, e poderá prosseguir como até hoje. __ É – murmurou Guido, os olhos fitos no espaço –, se eu pensar assim...
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Nesse instante, escutou que desligavam e ele também colocou o fone no gancho. Caiu de bruços sobre sua imponente escrivaninha, sacudido por soluços silenciosos. Dali por diante, Guido perdeu toda a dignidade. Abandonou o projeto que formulara e continuou como até então, mas se sentia intimamente frustrado. No princípio sua imaginação conduzira-o por um atalho florido, que ele seguia alegremente; agora, no entanto, só contava mentiras. Tornara-se um fantoche, um palhaço para divertir o público. Sabia-o, e começou a odiar sua profissão. Suas histórias iam ficando cada vez mais ridículas ou sentimentais, embora isso não prejudicasse seu sucesso. Pelo contrário, consideravam ser esse seu novo estilo, que logo se tornou moda, e muitos começaram a copiar. Guido, porém, não tinha mais o menor prazer no seu trabalho. Sabia agora a quem devia tudo aquilo: não ganhara nada; perdera tudo. Mas seu veloz automóvel continuava levando-o a toda parte, de programa em programa; voava nos mais rápidos aviões e, onde quer que se encontrasse, estava sempre ditando a suas secretárias as mesmas velhas