Aa Manu

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  • Pages: 198
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MANU – A menina que sabia ouvir MICHAEL ENDE

PRIMEIRA PARTE Manu e seus amigos

1. Uma cidade grande e uma menina pequena Há muito, muito tempo, quando os homens ainda falavam línguas muito diferentes das nossas, já existiam grandes e magníficas cidades em países ensolarados. Ali se erguiam palácios reais e imperiais, abriamse largas avenidas, existiam suntuosos templos, com estátuas de ouro e mármore, feiras nas quais se encontravam à venda mercadorias do mundo todo, praças bonitas e espaçosos, onde o povo se reunia para discutir as últimas notícias, ouvir ou fazer discursos. Havia, sobretudo, amplos anfiteatros , parecidos com os nossos circos de hoje, feitos de blocos de pedra. As fileiras de assentos para os espectadores eram colocadas em degraus, às vezes formando um vasto semicírculo. Alguns eram grandes como um estádio de futebol, outros eram menores, só podendo conter algumas centenas de espectadores. Alguns eram luxuosos, ornamentados com estátuas e colunatas, outros eram simples e modestos. Esses anfiteatros não tinham teto, e tudo se passava ao ar livre. Por isso, nos de luxo eram estendidas tapeçarias bordadas em ouro, de modo a proteger o público contra o calor do sol ou as repentinas tempestades. Nos modestos, esteiras de palha ou vime tinham a mesma serventia. Em suma, os teatros estavam de acordo com os recursos do povo da terra. Acompanhando os conhecimentos emocionantes, ou cômicos, representados

no

palco,

o

público

tinha

a

impressão

de

que,

2

misteriosamente, aquela vida fictícia era mais real do que a sua própria vida cotidiana, e adorava mergulhar nessa outra realidade. Desde então passaram-se milhares de anos. As nobres cidades daquele tempo se desmoronaram, os templos e palácios ruíram, o vento e a chuva, o calor e o frio desgastaram as pedras, e dos grandes anfiteatros só restaram ruínas. Agora, entre as pedras caídas, os grilos zunem sua canção monótona, que soa como o suave respirar da terra adormecida. Algumas

dessas

grandiosas

cidades

antigas,

entretanto,

continuam a ser grandes cidades até os dias de hoje. A vida ali mudou, claro! O povo anda de ônibus ou de automóvel, tem telefone e luz elétrica. Mas aqui e ali, entre as casas modernas, algumas colunas, uma arcada, um pedaço de muro, ou mesmo um anfiteatro, são recordações daquele tempo antigo. E foi numa dessas cidades que aconteceu a história de Manu. Para lá do limite da grande cidade, ali onde as casas vão ficando menores, mais pobres, e começam os campos, escondidas num bosque de pinheiros existem as ruínas de um pequeno anfiteatro. Mesmo nos tempos antigos, não fora mais importantes; mesmo naqueles tempos chegara a ser, digamos, um teatro para o pessoal modesto. Em nossa época, isto é, na época em se começa a história de Manu, as ruínas estavam quase inteiramente esquecidas. Só alguns professores de arqueologia as conheciam, porém não manifestavam maior interesse porque nada mais havia ali por descobrir, também não era uma atração comparável a outras da cidade, de modo que só uns poucos turistas apareciam de vez em quando, subiam pelas meio recobertas pelo capim, tiravam algumas fotos e iam embora. Voltava então a paz ao semicírculo de pedras do anfiteatro, e os grilos retomavam o zunido de sua interminável canção. Somente o pessoal da terra conhecia aquele estranho edifício. Ali deixavam pastar suas cabras, as crianças aproveitavam o espaço plano

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do centro para jogar bola, e, às vezes, namorados se encontravam à noite. Mas um dia começou a correr o boato de que alguém estava morando nas ruínas. Era uma criança, provavelmente uma menina, mas era difícil dizer com certeza porque sua maneira de vestir era meio esquisita. Seu nome era alguma coisa parecida com Manu. A aparência de Manu era, de fato, um tanto singular e poderia, talvez, escandalizar alguém que fizesse muita questão de ordem e limpeza. Ela era pequena, magrinha, de modo que seria impossível dizer ao certo se teria apenas oito anos ou já estaria com doze. Seu cabelo preto, abundante e crespo, parecia nunca ter sido cortado, nem mesmo penteado. Seus olhos, muito grandes, eram pretos como azeviche, e os pés eram quase da mesma cor, pois ela andava descalça. Às vezes, no inverno, ela calçava sapatos, mas eram grandes demais, e um diferente do outro. Isso acontecia porque Manu não tinha nada que fosse comprado ou feito para ela: só tinha aquilo que encontrava, ou o que lhe davam. Sua saia, comprida até o tornozelo, era mistura de remendos e cerzidos de várias cores, e por cima ela usava um paletó de homem, grande demais, com as mangas enroladas: Manu não quis cortá-las porque pensou – com muito juízo – que ela ainda estava crescendo, e não sabia se tornaria a encontrar outro paletó tão bonito e prático como aquele, com tantos bolsos. Por baixo da arena invadida pelo capim, no centro do anfiteatro em ruínas, restavam umas galerias às quais se podia chegar por um vão aberto no muro, e era ali que Manu se havia instalado. Uma bela manhã, alguns homens e mulheres da vizinhança foram visitá-la, para tentar descobrir alguma coisa a respeito dela. Manu ficou em pé diante deles, olhando para todos com muito medo, receando que eles quisessem expulsá-la dali, mas logo percebeu que eram simpáticos. Eles também eram pobres, e sabiam como é a vida. __ Muito bem – disse um dos homens –, então você gosta deste lugar? __ Gosto – respondeu Manu.

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__ E gostaria de ficar aqui? __ Gostaria, sim. __ Mas não tem alguém esperando por você em algum outro lugar? __ Não. __ O que eu queria dizer é que você devia voltar para casa . . . __ Minha casa é aqui mesmo – respondeu ela prontamente. __ Mas de onde é que você veio, menina? Manu fez um gesto vago na direção do horizonte. __ Então, quem são os seus pais? – insistiu o homem. A menina olhou para cada um deles, com ar perplexo, e encolheu os ombros. Todos se entreolharam, soltando suspiros. __ Não precisa ficar com medo – continuou o homem – Nós não vamos mandá-la embora. Nós queremos ajudá-la Sem responder, Manu respondeu com a cabeça. Ainda não estava inteiramente convencida. __ Você disse que seu nome é Manu, não foi? __ Disse. __ É um nome bonito, mas de que eu nunca tinha ouvido falar. Quem deu esse nome a você? __ Eu mesma. __ Você mesma? . . . __ É. __ Quando você nasceu? Manu pensou um pouco, e afinal disse: __ Acho que eu sempre estive aqui. __ Mas você não tem um tio, ou uma tia, ou uma avó, ou qualquer parente, com quem você pudesse morar? Manu tornou a olhar para o homem, refletindo em silêncio. Afinal, respondeu baixinho: __ Eu moro aqui, nesta minha casa. __ Ótimo – retrucou o homem – , mas você ainda é criança. Quantos anos você tem?

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Manu hesitou, mas acabou respondendo: __ Uns cem. Todos riram, porque pensaram que ela estava brincando. __ Falando sério, que idade você tem? Ainda mais hesitante, Manu respondeu: __ Cento e dois anos. O pessoal demorou um pouco para receber que ela repetia, ao acaso, números que tinha ouvido falar, sem ter noção do que significavam, pois ninguém lhe havia ensinado a contar. __ Escute – disse o homem, depois de ter consultado um outro. – Você se incomodaria se nós avisássemos à polícia que você está aqui? Você podia ser colocada num asilo infantil, onde teria boa comida, podia aprender a ler, escrever, somar, e uma porção de outras coisas, que tal a idéia? Manu murmurou apavorada: __ Não. Eu não quero ir para lá. Eu já estive lá. Tinhas outras crianças também tinha grades nas janelas. E todos os dias um de nós levava uma surra, sem razão nenhuma. Então, uma noite eu pulei o muro e fugi. Não quero voltar para lá . . . __ Compreendo muito bem – disse um velho, balançando a cabeça, e todos o imitaram, declarando que compreendiam perfeitamente. __ Muito bem – disse uma mulher – , mas você ainda é pequena. Alguém tem que cuidar de você. __ É. Eu vou cuidar de mim – respondeu Manu, aliviada. __ Mas você é capaz? – perguntou a mulher Manu ficou quieta, pensando, depois disse com voz suave: __ Eu não preciso de muita coisa . . . O pessoal tornou a suspirar e a se consultar com os olhos, gesticulando com a cabeça. __ Sabe, Manu – recomeçou o homem que tinha falado primeiro –, nós achamos que se podia dar um jeito de você vir morar na casa de um de nós. É verdade que ninguém tem muito espaço, e quase todos têm

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bandos de crianças que precisam comer, mas afinal . . . uma a mais ou a menos não faz grande diferença. Que é que você diz disso? __ Muito obrigada – respondeu Manu, sorrindo pela primeira vez. – Muitíssimo obrigada. Mas vocês não podiam me deixar ficar morando aqui? O pessoal cochichou, discutiu, mas por fim todos concordaram. Afinal de contas, a menina poderia tão bem morar ali como na casa de algum deles, e assim todos poderiam cuidar de Manu. Seria mais fácil do que se um só ficasse incumbido disso. Começaram imediatamente a fazer uma limpeza a fundo na galeria meio em ruínas onde Manu morava, e arrumar o melhor possível. Um homem que era pedreiro fez para ela um fogãozinho de pedra, e de um velho cano enferrujado fizeram uma chaminé. Aproveitando uns caixotes, um velho carpinteiro construiu uma mesinha com duas cadeiras. Por fim, as mulheres trouxeram uma cama enferrujada, um colchão meio rasgado e umas cobertas. A galeria de pedra debaixo do anfiteatro estava transformada numa residência bem jeitosa. O pedreiro, que era dado a artista, pintou na parede um bonito quadro de flores. Pintou até uma moldura em volta e o prego no qual o quadro ficaria pendurado. Depois chegaram os filhos daquela gente, cada um trazendo aquilo que tinha poupado da sua comida: um trouxe um pedacinho de queijo, outro um pãozinho, outro uma fruta, e assim por diante. E como eram muitas crianças, vieram tantas, que por fim armaram uma festinha no anfiteatro, para festejar a chegada de Manu. Foi aquele tipo de festa alegre, que talvez só gente muito pobre sabe apreciar devidamente. Assim começou a amizade entre Manu e seus vizinhos.

2. Um dom raro e uma briga comum

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Dali em diante tudo correu bem com Manu, pelo menos em sua opinião. Ela sempre tinha alguma coisa para comer, às vezes mais, outras vezes menos, dependendo do que o pessoal pudesse poupar. Tinha um teto por cima da cabeça, uma cama, e se sentisse frio podia acender um fogo. E o mais importante de tudo: tinha muitos bons amigos. Parecia que a sorte tinha sido de Manu, que encontrara gente tão amiga, e era isso mesmo que ela pensava. Entretanto, os outros logo perceberam que a sorte tinha sido dele também. Precisavam de Manu e ficavam se perguntando como é que até então se tinham arrumado sem ela. À medida que o tempo passava, a menina tornava-se mais necessária, que eles chegavam a recear que um belo dia, quando acordassem, não a encontrariam mais. Foi por isso que constantemente Manu passou a ter visitas em casa. Havia sempre alguém sentado perto dela, conversando com ar muito interessado. Quem precisasse dela, mas não pudesse ir até lá, mandava buscá-la. E, se alguém ainda não tivesse percebido que precisava dela, ouvia logo o conselho: __ Ora, por que não vai falar com Manu? Na verdade, Manu não tinha bons conselhos para dar às pessoas, e nem sempre encontrava palavras certas para dizer. Ela não era também uma pessoa divertida que cantava ou dançava ou tocava algum instrumento. Nem tinha poderes para ver o futuro. O que Manu sabia fazer, melhor do que qualquer outra pessoas, era ouvir. Seria um erro supor que isso é coisa que qualquer um pode fazer. Ao contrário, muito poucas pessoas sabem ouvir de fato. E a maneira como Manu ouvia era realmente fora do comum. Manu ouvia de um jeito que fazia as pessoas pouco inteligentes terem repentinamente idéias brilhantes. Ela não dizia, nem perguntava, nada que pudesse pôr tais idéias na cabeça das pessoas; ela ficava simplesmente ali sentada, ouvindo com atenção e toda simpatia. Ao mesmo tempo costumava fitar a pessoas com seus grandes olhos

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negros, dando-lhe a impressão de que as idéias que surgiam haviam nascido espontaneamente. Ela ouvia de um jeito que fazia as pessoas preocupadas ou hesitantes de repente saberem exatamente aquilo que queriam; os tímidos, de repente, sentiam-se à vontade e confiantes, os desgraçados e oprimidos de repente sentiam-se felizes e cheios de esperança. Quando alguém percebia que até então sua vida era sem sentido e ele próprio um fracasso total, e que era apenas um ser entre milhões, sem importância alguma, e tão fácil de ser substituído quanto um prato quebrado, ia procurar a menina e contar-lhe tudo isso. Então, à medida que ele contava as suas desventuras, ia percebendo que, não importa o que ele fosse, só havia uma pessoa assim no mundo inteiro, e por isso mesmo ele era importante para o mundo naquele seu jeito próprio. Era essa a maneira de ouvir de Manu. Um dia, dois homens foram ao anfiteatro procurar Manu. Eram inimigos jurados e, embora fossem vizinhos próximos, recusavam-se a falar um com o outro. Outras pessoas tinham-lhes aconselhado procurar Manu, pois não era possível viver brigados assim, e, embora, a princípio ambos recusassem, acabaram por consentir, a contragosto. Agora

estavam

ali

sentados,

em

lados

opostos

da

arena,

emburrados, calados, hostis. Um deles era o pedreiro que havia construído o fogão para Manu e pintado o quadro de flor na parede do “salão”. Chamava-se Nicolau, e era corpulento , com um bigode preto revirado nas pontas. O outro, magro, com um aspecto sempre cansado, era Nino, dono de um pequeno bar-restaurante no subúrbio, onde os principais fregueses eram uns velhinhos que pediam um copo de vinho e ficavam horas inteiras evocando os tempos antigos. Nino e sus mulher, Liliane, também eram amigos de Manu, e costumavam levar-lhe coisas gostosas para comer. Quando Manu percebeu que os dois homens estavam brigados, ficou um momento sem saber qual abordar primeiro. Afinal, para não ofender nenhum, sentou-se numa pedra a igual distância de ambos,

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olhando para um e para outro, aguardando os acontecimentos. Muitas coisas levam tempo, e tempo era a única riqueza que Manu possuía. De repente Nicolau levantou-se e disse: __ Vou-me embora. Vindo aqui mostrei minha boa vontade, mas como você pode ver, Manu, o sujeito é teimoso. Não adianta esperar mais. E, de fato, virou-se para ir embora. __ Adeus, e vá pela sombra . . . – gritou Nino – Para começar, você não devia ter vindo: não pense que eu ia apertar a mão de um trapaceiro. Nicolau virou-se nos pés, vermelho de raiva feito um peru: __ Quem é que é trapaceiro? – perguntou, avançando para Nino – Só quero ouvir dizer isso outra vez . . . __ Vou dizer quantas vezes quiser – berrou Nino – Acho que você pensa que, sendo um brutamontes, ninguém tem coragem de dizer a verdade na sua cara. Pois eu tenho, e digo para você e para quem quiser ouvir. Tá bom, avance, avance e venha me matar, como você já tentou uma vez. __ Gostaria de ter conseguido – rosnou Nicolau, fechando os punhos – Está vendo, Manu, está vendo como ele mente e calunia a gente . . . O que fiz foi só agarrá-lo pelo colarinho e meter essa cara na tina da lavagem de pratos, atrás daquele restaurante imundo dele. Aquilo não dava nem para afogar um rato – E, virando-se para Nino, gritou: __ Infelizmente, está se vendo que você continua vivo . . . As mais incríveis acusações continuaram a ser lançadas de um lado para outro, embora Manu não conseguisse entender do que se tratava e por que os dois estavam tão furiosos um com outro. Aos poucos, entretanto, foi ficando evidente que Nicolau havia cometido aquele ato terrível porque Nino tinha-lhe dado uns bofetões diante dos fregueses, no bar, e isso porque Nicolau havia tentado quebrar toda a louça de Nino.

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__ Isso é pura mentira! – exclamou Nicolau, zangado – Eu atirei na parede um jarro só, e que já estava rachado. __ Mas era meu jarro, não era? – disse Nino – e você não tinha o direito de fazer uma coisa dessas. Mas Nicolau estava convencido de que o direito estava de seu lado, porque antes disso Nino havia lançado a dúvida sobre sua competência profissional de pedreiro-construtor. __ Sabe o que ele falou de mim? – gritou para Manu – Disse que eu nunca consegui erguer uma parede reta porque estou bêbado vinte e quatro horas por dia e que meu tataravô era igualzinho a mim e que foi ele quem construiu a torre inclinada de Pisa! __ Ora, Nicolau, isso era só brincadeira – atalhou Nino. __ Que brincadeira! – rosnou Nicolau – não acho graça em brincadeiras desse tipo . . . Aí então descobriu-se que a “brincadeira” de Nino era para pagar Nicolau na mesma moeda: uma bela manhã aparecera pintado em letras vermelhas, na porta do bar, um trocadilho no qual Nino não achara graça nenhuma. Começaram então a discutir qual das duas “brincadeiras” era a mais engraçada, e cada vez se enfureciam mais. De repente os dois pararam. Manu estava olhando para eles, de olhos arregalados, mas nenhum dos dois entendia bem o significado daquele olhar. Será que ela estava rindo deles? Ou estava triste? A expressão dela não deixava adivinhar, mas, de repente, pareceu aos homens que se estavam vendo como que refletidos num espelho, e começaram a ficar envergonhados. __ Muito bem – disse Nicolau –, eu não devia ter pintado aquilo na sua porta, Nino. Mas eu não teria feito isso se você não tivesse recusado me servir. Isso é contra a lei, sabe, porque eu sempre paguei direito e você não tinha nada que me tratar daquele jeito. __ Ah, não tinha! – retrucou Nino – Não se lembra do caso do Santo Antônio? Ah, está ficando encabulado . . . Me deu o golpe, e eu não me conformei com isso.

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__ Dei, é? – gritou Nicolau, furioso outra vez – Quem deu foi você, mas não conseguiu me tapear. O fato é que na parede do barzinho do Nino havia uma imagem de Santo Antônio, que ele tinha recortado de uma revista e emoldurado. Um dia Nicolau quis comprar a imagem, dizendo que a achava linda; Nino foi negociando até conseguir que Nicolau desse em troca o seu rádio, e ficou rindo por dentro, convencido de que tinha levado a melhor. Fechado o negócio, aconteceu que, entre a imagem e o papelão de trás do quadro, apareceu uma nota de alto valor que Nino nunca tinha visto. Então ele sentiu que, afinal de contas, tinha tomado prejuízo, e ficou muito aborrecido. Quis exigir de Nicolau a devolução da nora porque não fazia parte da venda. Nicolau recusou, e daí por diante Nino não quis mais servi-lo. Depois que remontaram à causa inicial da briga, os dois homens ficaram em silêncio, até que Nino falou: __ Diga com toda franqueza, Nicolau: antes de nós fazermos o negócio você já sabia daquela nota, ou não? __ Claro que sabia. Se não, não tinha feito o negócio, tinha? __ Então você há de confessar que me tapeou. __ Como? Você não sabia mesmo que a nota estava ali? __ Não. Juro que não. __ Está vendo só . . . Então é você que quis me dar o golpe, recebendo o meu rádio em troca de um pedaço de jornal que não valia nada. __ Mas como é que você ficou sabendo da nota? __ Eu tinha visto um freguês enfiar ali, em homenagem a Santo Antônio. Nino mordeu o beiço. __ E valia muito? __ Exatamente o valor do meu rádio. Então os dois começaram a rir. Desceram os degraus de pedra, encontraram-se no meio da arena, apertaram-se as mãos e trocaram palmadas nas costas. Depois, ambos abraçaram Manu, dizendo:

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__ Muito, muito obrigado. Quando afinal foram embora, Manu ficou acenando com a mão até que desaparecessem, muito contente porque seus dois amigos tinham feito as pazes. Noutra ocasião um menino pequeno levou para Manu seu canário porque este não queria cantar. Aí a tarefa foi dura. Manu teve de ouvir o canário uma semana inteira antes que ele recomeçasse a chilrear e cantar. Manu ouvia tudo com atenção: gatos, cachorros, gafanhotos e sapos, até a chuva e o vento nas árvores, e tudo isso tinha sua maneira de lhe falar. Algumas noites, quando todos os seus amigos já tinham ido embora, ela ficava sentada, sozinha, no grande anfiteatro de pedra, debaixo do céu estrelado, simplesmente ouvindo o grande silêncio. Sentia-se colocada no centro de algum vasto ouvido que escutasse a música das estrelas, e parecia-lhe estar envolvida por uma harmonia suave mas poderosa que ia direto ao seu coração. Em noites assim, ela sempre tinha sonhos lindos.

3. Uma tempestade imaginária e um temporal verdadeiro Manu ouvia às crianças com tanta atenção quanto aos adultos, mas havia outra razão para as crianças gostarem ainda mais de ir ao anfiteatro. Elas nunca se tinham divertido tanto com os jogos e brincadeiras como agora que Manu estava ali. Não havia um ó momento de tédio. Na verdade, Manu não tinha idéias fabulosas: ela simplesmente estava ali e tomava parte das brincadeiras. Isso é que, não se sabe por quê, motivava as próprias crianças a terem idéias formidáveis. Cada dia inventavam brincadeiras novas, uma sempre melhor do que a outra.

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Certa vez, num dia quente e abafado, dez ou onze crianças estavam sentadas nas pedras, esperando por Manu, que tinha ido dar uma voltinha para explorar a região, como às vezes fazia. No horizonte as nuvens eram escuras e baixas: parecia que dali a pouco ia desabar um temporal. __ Eu acho que vou pra casa – disse uma menina que levava a irmãzinha – Tenho medo de relâmpago e trovão. __ E quando você está em casa? – perguntou um garoto de óculos – Quando está em casa não tem medo? __ É. Também tenho . . . __ Então fique aqui, que dá na mesma – disse o menino. A menina fez que sim com a cabeça, mas dali a pouco disse: __ Quem sabe Manu não vai mais voltar. __ E daí? – falou o outro garoto, de aspecto meio relaxado e sem trato – Nós podemos brincar sem ter que esperar a chegada de Manu. __ Está certo. Mas vamos brincar de quê? __ Ah, não sei. De qualquer coisa . . . __ Qualquer coisa não quer dizer nada. Quem é que tem alguma idéia? __ Eu tenho – disse um menino gordo, de voz fina – Vamos fingir que esta ruína é um navio de verdade, e nós estamos navegando por mares desconhecidos, e tendo aventuras . . . Eu vou ser o capitão e você aí pode ser o piloto, e você um naturalista – um professor –, porque vai ser uma viagem de descobrimentos. E o resto pode ser a equipagem. __ E nós, as meninas? Que é que nós vamos ser? __ Marinheiras. Vai ser um navio do futuro. A idéia parecia excelente. Começaram a brincar, mas não paravam de discutir, e a brincadeira não ia adiante. Dali a pouco estavam todos novamente sentados nas pedras, esperando. Por fim Manu chegou. A água assobiava ao longo da proa. O navio de pesquisa, Argo, balançava suavemente à medida que atravessava as ondas, a todo o

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vapor em direção ao mar de Coral. Desde tempos imemoriais navio nenhum se atrevera a atravessar aquelas águas perigosas, que escondiam inúmeros bancos de areia, recifes de coral e estranhos monstros marinhos. Pior de tudo era o chamado Ciclone Incessante, um perpétuo furacão que varria as águas como se fosse uma fera cruel e ardilosa em busca de sua presa. Seu rumo era caprichoso, mas aquilo que ele apanhava ficava reduzido a palito de fósforo. O navio de pesquisa Argo fora especialmente equipado para um encontro com esse tufão erradio. Era todo construído de aço azul, flexível e elástico feito uma lâmina de espada, e por um processo especial fora fundido em uma só peça, sem emendas nem soldagem. Assim

mesmo, poucos

comandantes

teriam a

coragem de

enfrentar perigos tão incríveis. O capitão Gordon tinha essa coragem. Do alto da ponte de comando olhava com orgulho os homens e mulheres de sua tripulação, todos especialistas experimentados em seus campos. Ao lado do capitão estava o primeiro-oficial, Don Melu, típico lobodo-mar que já sobrevivera a cento e vinte e sete furacões. Atrás deles, na casa de navegação, estava o Professor Eisenstein, o chefe científico da expedição, com seus dois assistentes, Maurino e Dara, cujas memórias prodigiosas valiam por uma biblioteca inteira. Os três estavam debruçados sobre os instrumentos de precisão, trocando idéias naquele seu complicado jargão científico. Um pouco à parte sentava-se, á moda oriental, Mimosa, a bela moça nativa daquela região. De vez em quando o professor fazia-lhe perguntas sobre várias características daquelas águas, e ela respondia no melodioso dialeto bulan, que só o professor entendia. O objetivo

da expedição era descobrir a causa do Ciclone

Incessante e, se possível, destruí-lo, de modo que aquelas águas voltassem a ser navegáveis. Mas até então tudo era paz, e não havia prenúncio de tempestade. De repente um grito do vigia interrompeu as reflexões do comandante.

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__ Capitão! – gritava ele, as mãos em torno da boca fazendo de megafone – Ou estou maluco ou tem mesmo uma ilha feita de vidro na nossa frente! Imediatamente o capitão e Don Melu olharam pelo telescópio, e o professor e seus dois assistentes mostraram-se interessados. Só a bela moça nativa conservou-se calmamente sentada, pois as tradições de sua tribo proibiam demonstrar curiosidade. Chegaram logo à ilha de vidro. O professor desceu pela escada de corda no costado do navio e pisou no chão de vidro. Era horrivelmente escorregadio, e ele teve imensa dificuldade em manter-se de pé. A pequena ilha era toda redonda, mais alta no centro, onde formava como que uma cúpula. Quando o professor atingiu esse ponto olhou para baixo e pôde ver distintamente alguma coisa brilhando e vibrando bem no coração da ilha. Comunicou o que tinha visto aos outros que, na proa, esperavam ansiosamente. __ Segundo a evidência obtida por ora – disse Maurino, um dos assistentes do professor –, eu diria que se trata de um Oggelmump bistrozinalis. __ É possível – comentou Dara, outro assistente – , mas também pode ser uma Shluckula tapetozifera. O professor Eisenstein endireitou-se, ajustou os óculos e disse: __ Na minha opinião temos aqui uma variedade do Strumpus quietshinensus comum, porém não podemos ter certeza antes de examinarmos por baixo essa criatura. Imediatamente, mundialmente

três

famosas

garotas

como

da

equipagem

nadadoras

e

(todas

mergulhadoras)

elas se

adiantaram, em um momento vestiram seus equipamentos de mergulho, desceram pelo flanco de navio e desapareceram nas profundezas do mar azul. Durante algum tempo só se viam algumas bolhas na superfície da água, mas subitamente Sandra, uma das mergulhadoras, reapareceu e disse com voz arquejante:

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__ É uma água-viva gigante! Minhas duas companheiras estão presas nos seus tentáculos, e não conseguem se soltar. Temos que as socorrer antes que seja tarde demais. Dizendo isso, tornou a mergulhar. Imediatamente

cem

homens-rãs,

sob

o

comando

de

seu

experiente chefe, Comandante Franco – apelidado “O Golfinho” – , mergulharam na água. Uma tremenda batalha se desenrolava lá embaixo, e a superfície cobria-se de espuma. Porém, era tal a força da água-viva gigante, que nem mesmo os cem homens-rãs conseguiam libertar as mergulhadoras. O professor franziu a testa e disse aos seus assistentes: __ Alguma coisa nestas águas parece estimular o crescimento. Interessantíssimo. Enquanto isso o Capitão Gordon e Don Melu, seu primeiro-oficial, tinham examinado a fundo a situação, e agora chegavam a uma decisão: __ Voltem! – gritou Don Melu – Voltem todos imediatamente para o navio. Vamos ter que cortar o monstro em dois pedaços. Não há outro jeito de salvar as meninas. O Golfinho e seus homens-rãs voltaram para bordo. O Argo deu uma breve marcha à ré, e depois avançou, com toda velocidade, em direção à água-viva. A proa do navio de aço era cortante como navalha. Sem barulho, e sem qualquer impacto, dividiu em duas metades a gigantesca criatura. A manobra era perigosa para as duas moças, ainda enroscadas nos tentáculos, porém, Don Melu tinha traçado seu rumo com a máxima precisão, e dirigiu o Argo exatamente pelo estreito espaço entre as duas. No mesmo instante os enormes tentáculos, de cada lado da água-viva, ficaram pendurados, flácidos, sem força, e as cativas conseguiram se desvencilhar. Foram alegremente recebidas a bordo. O Professor Eisenstein disse-lhes: __ Foi minha culpa. Eu nunca deveria tê-las mandado lá. Perdoemme por tê-las exposto a esse perigo.

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Com uma risada alegre, uma delas respondeu: __ Não há nada que perdoar, professor. Afinal, foi pra isso mesmo que nós viemos. E a outra acrescentou: __ Perigo . . . é conosco! Não havia tempo para mais conversa. Ocupados com o trabalho de resgate, o capitão e a tripulação haviam esquecido de manter o vigia alerta, e foi assim que só no último momento perceberam que o Ciclone Incessante tinha surgido no horizonte e estava agora avançando sobre o Argo. O primeiro e violento assalto envolveu o navio de aço, que foi atirado para o ar, virado de lado, depois aspirado para o fosso profundo aberto pelas ondas. Marinheiros menos corajosos

ou experimentados

que a tripulação do Argo teriam sidos lançados ao mar, ou desfalecido de terror ante tal impacto, mas o Capitão Gordon continuava firme na ponte de comando, como se nada houvesse acontecido, e seus homens também tinham agüentado firme. Só Mimosa, a bela nativa, não estando acostumada a essas viagens tempestuosas, tinha se metido em um barco salva-vidas. Em questão de segundos, o céu cinzento tornou-se absolutamente negro. Rugindo e uivando, o ciclone envolveu o navio, jogando-o alternadamente para o céu e para o fundo do abismo. A cada minuto que passava sua fúria parecia crescer, enquanto golpeava inutilmente a nave revestida de aço. Calmamente o capitão deu suas ordens, e o primeiro-oficial transmitiu-as à tripulação. Cada homem estava em seu lugar. O Professor Eisenstein e seus assistentes não haviam abandonados seus instrumentos científicos, e estavam calculando onde seria o olho do ciclone, pois era aquele centro calmo que o navio devia ser orientado. Em seu íntimo, o capitão admirava o sangue frio daqueles cientistas que não estavam habituados ao mar como ele e sua tripulação. O coruscar de uma raio ziguezagueou pelo céu abaixo e caiu sobre o Argo, eletrizando da proa à popa o navio revestido de aço. Tudo o que se tocasse lançava centelhas, mas o pessoal já vinha sendo treinado

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durante meses para que pudessem enfrentar uma emergência dessas, e ninguém ficou preocupado. A única dificuldade foram os cabos, que começaram a ficar rubros e brilhantes como lâmpadas incandescentes, mas a tripulação de preveniu contra isso calçando luvas de amianto. Felizmente a incandescência não durou muito, pois caiu uma chuva, mas uma chuva como ninguém ainda tinha visto – excetuando-se talvez Don Melu. A água caía em lençóis compactos, sem espaço para o ar entre os pingos, de modo que a tripulação foi obrigada a usar capacetes de mergulho e aparelhos respiratórios. Clarão após clarão, seguiam-se os relâmpagos; estrondo após estrondo, ribombava o trovão, enquanto o vento gemia e urrava, as ondas subiam à altura dos mastros, a espuma voava por toda a parte. Com as máquinas em força total o Argo abriu seu caminho em meio à violência primitiva do ciclone. Na casa de máquinas mecânicos e foguistas faziam esforços sobre-humanos. Tinham se amarrado com cabos fortes, para evitar que os violentos saltos do navio os lançassem dentro das fornalhas. Finalmente chegaram ao ponto central do ciclone, e aí de depararam com um espetáculo magnífico! Na superfície da água, que ali era lisa como um espelho porque a força da tempestade aplainara as ondas, pairava um objeto gigantesco. Parecia equilibrado numa perna, e seu contorno alargando-se da base para o topo dava a impressão de um monstruoso pião; mas rodopiava a tal velocidade que não era possível ver detalhe algum. __ É um Shumshum gummilastikum! – gritou o professor, encantado, agarrando os óculos que a chuva teimava em arrancar do seu nariz. __ Poderia nos explicar o que isso significa? – resmungou Don Melu – Nós somos simples marinheiros e . . . __ Não atrapalhe o professor agora – interrompeu Dara, um dos assistentes. __ Esta é a oportunidade única numa vida inteira. Essa criatura rodopiante data, provavelmente, da aurora da criação. Deve ter mais de

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um bilhão de anos. A única variedade que conhecemos só pode ser vista ao microscópio, e só encontra – ocasionalmente – no molho de tomate ou, ainda mais raramente, na tinta verde. Talvez seja o único espécime deste tamanho que ainda sobrevive. __ Mas nossa missão é descobrir a causa do Ciclone Incessante – disse o capitão, gritando para se fazer ouvir em meio à tempestade – , de modo que é melhor o professor começar a ensinar a fazer essa coisa infernal parar de rodopiar! __ Isso eu sei tanto quanto você – disse o professor – Até agora a ciência não teve oportunidade de estudar o assunto. __ Muito bem – resolveu o capitão – Vamos começar por bombardeá-lo, e ver o que acontece. __ Que pena . . . – lastimou o professor – Imagine, bombardear o único espécime vivo do Shumshum gummilastikum! – Mas o canhão antimonstro já estava apontado para o vasto pião. __ Fogo! – ordenou o capitão. Uma longa língua de chama azul saltou do cano duplo, sem barulho algum, é claro, pois, como todo mundo sabe, os canhões antimonstros bombardeiam com proteínas. O míssil brilhante partiu a toda velocidade em direção ao Shumshum, porém o enorme objeto o fez desviar e, após ter rodopiado várias vezes, mais e mais rápido, à volta do Shumshum, o míssil foi aspirado para o alto e desapareceu atrás das nuvens negras. __ Assim não vai! – gritou o Capitão Gordon – Temos que chegar mais perto dessa coisa aí. __ Não podemos chegar mais perto – retrucou, também gritando, Don Melu – As máquinas já estão trabalhando a toda a velocidade, e isso é apenas suficiente para impedir que a tempestade nos arraste para trás. __ Alguma sugestão, professor? – perguntou o capitão. Mas o professor não fez mais que sacudir os ombros. Nem ele, nem seus assistentes, tinham idéia alguma. Parecia que a expedição teria de ser abandonada, havendo falhado em sua missão.

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Nesse momento o professor sentiu um puxão na manga. Era Mimosa, a bela nativa. __ Malumba! – disse ela, com um gesto gracioso – Malumba oisitu sono. Erwini samba insaltu lobindra. Kramuna heu heni sadogau. __ Babalu ? – indagou o professor, assombrado – Didi maha feinosi intu ge goinen malumba ? A bela jovem nativa acenou alegremente com a cabeça, e respondeu: __ Dodo um aufu shulamat wawada __ Oi, oi – disse o professor, esfregando o queixo com ar pensativo. __ Que é que ela quer? – indagou o primeiro-oficial. __ Ela disse que na tribo de seus pais há uma canção muito antiga, que pode embalar o Ciclone Incessante até fazê-lo adormecer, se alguém tiver a coragem de cantar para o Ciclone. __ Não me faça rir . . . – resmungou Don Melu – Quem é que já ouviu falar nisso, cantar uma canção de ninar para um ciclone? __ Que acha, professor? – perguntou Dara – Será possível uma coisa dessas? __ Não devemos ter preconceitos – retrucou o professor – Nessas tradições nativas existe, às vezes, um grão de verdade. Talvez haja certas

harmonias

que

produzam

efeito

sobre

o

Shumshum

gummilastikum. Nós não sabemos o suficiente quanto ao seu modo de vida. __ Mal não pode fazer – declarou o capitão em tom resoluto –, então podemos pelo menos tentar. Diga a ela que cante. O professor Eisenstein virou-se para a bela nativa e disse: __ Malumba didi oisafal huna-huna wawadu? Mimosa imediatamente começou a cantar a mais extraordinária canção, formada apenas por algumas notas e o constante estribilho: “ Eni meni allubeni Wanna tai susura teni”

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Enquanto cantava ia dançando com muita graça, batendo palmas de acordo com o ritmo da música. As palavras simples e a música eram fáceis de decorar. Aos poucos os outros foram aderindo até que toda a tripulação cantava, dançava e batia palmas no compasso. Era um espetáculo sensacional ver Don Melu, velho lobo-do-mar como era, e até o professor, cantando e batendo palmas como crianças no recreio. E então . . . aconteceu aquilo que nenhum deles acreditara que pudesse acontecer! O pião gigante começou a rodar mais e mais devagar, até que parou de vez, e começou a afundar. Com estrondo as águas se fecharam sobre ele. A tempestade acabou, a chuva parou, o céu ficou limpo e azul, as ondas se acalmaram. O Argo estava imóvel no mar transparente como se sempre houvessem reinado a paz e a alegria. __ Membros da tripulação – disse o Capitão Gordon, olhando-os, um por um, com gratidão –, quem é que podia imaginar que nós iríamos vencer? Todos sabiam que ele era homem de poucas palavras, portanto sentiram-se ainda mais gratificados quando ele acrescentou: __ Tenho orgulho de vocês. __ Eu acho que choveu de verdade – disse a menina que estava acompanhada da irmãzinha. __ Eu estou ensopada. De

fato,

o

temporal

tinha

passado,

e

todas

as

crianças,

especialmente a menina com a irmãzinha, estavam espantadas de ver que tinham esquecido completamente do medo de trovão e de raios, enquanto estava, no Argo. Durante algum tempo comentaram as aventuras que haviam tido, um contando ao outro sua experiência pessoal. Depois despediram-se e foram para casa a fim de trocar aquela roupa molhada.

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Só uma das crianças não estava plenamente satisfeita com o desenrolar da brincadeira. Era o menino de óculos. Despedindo-se de Manu, disse: __ Assim mesmo, foi uma pena a gente afundar o Shumshum gummilastikum. Afinal, ele era o único sobrevivente da sua espécie. Eu gostaria tanto de descobrir mais coisas sobre ele. Num ponto, entretanto, todos concordaram: não havia brincadeiras tão boas quanto aquelas que faziam junto com Manu.

4. Um velho silencioso e um jovem tagarela Mesmo quem tem muitos amigos tem sempre um ou dois que são mais queridos, e era o que acontecia com Manu. Ela tinha dois amigos muito especiais, que costumavam ir visitálas todos os dias, e com ele repartiam tudo o que tinham. Um era jovem, o outro, velho, e Manu não saberia dizer de qual deles gostava mais. O

velho

chamava-se

Beppo

Varredor.

Na

verdade,

o

seu

sobrenome era outro, mas como trabalhava varrendo as ruas e toda a gente o chamava “Varredor”, ele também passou a usar esse nome. Beppo Varredor morava perto do anfiteatro numa cabana que ele mesmo havia construído com tijolos e folhas de zinco. Era um homenzinho pequeno e, ainda por cima, corcunda, de modo que parecia pouco mais alto do que Manu. Muita gente achava que Beppo não estava muito bom da cabeça, porque, quando lhe faziam alguma pergunta, ele apenas sorria sem dizer nada. Isso acontecia porque ele costumava refletir muito sobre a questão, e, quando achava que não merecia resposta, não respondia. Quando

resolvia

que

a

questão

merecia

resposta,

examinava-a

novamente, levando duas horas, ou até mesmo dois dias, para responder. Enquanto isso, a pessoa que havia feito a pergunta já se

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tinha esquecido, naturalmente, e aquilo que Beppo lhe dizia depois parecia fora de propósito. Somente Manu dispunha de tempo para esperar horas ou dias por uma resposta, e depois entender o que ele lhe dizia. Ela sabia que ele demorava tanto porque Beppo fazia questão de nunca dizer alguma coisa que não fosse verdade. Na opinião dele a infelicidade do mundo é causada pelas mentiras, intencionais ou não, que as pessoas dizem porque são desatentas ou porque estão com pressa. Todas as manhãs, horas antes de o sol nascer, ele ia na sua velha bicicleta até um grande almoxarifado. Ali esperava, no pátio, com os companheiros de trabalho, até lhe darem uma vassoura, um carrinho de mão, e indicarem as ruas que tinha que varrer. Beppo adorava aquela hora matutina, quando a cidade ainda estava adormecida, e fazia de boa vontade, e bem feito, o seu trabalho, sabendo que era coisa muito necessária. Varria as ruas devagar, mas com muita regularidade, tomando uma respiração a cada passo e a cada movimento da vassoura: passo, respiração, vassourada, respiração, passo, respiração, vassourada. De vez em quando ficava parado, olhando para longe, com ar pensativo, depois recomeçava seu ritmo. Enquanto se deslocava assim, uma rua suja na sua frente, um limpa atrás, acontecia virem à sua cabeça grandes idéias; mas eram idéias sem palavras, pensamentos tão difíceis de comunicar quanto a lembrança de um perfume, ou de uma cor vista em sonho. Depois do trabalho, quando sentava perto de Manu, costumava contar-lhe os seus altos pensamentos, e, enquanto ela ouvia daquela sua maneira especial, a língua dele soltava-se e surgiam as palavras adequadas. __ Sabe como é, Manu – disse ele uma vez –, é assim. Às vezes você tem a sua frente uma estrada muito longa. Você acha que é tremendamente longa, e que nunca será capaz de chegar até fim. Ficou algum tempo olhando para longe, com ar distraído, depois continuou:

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__ Isso acontece quando você começa a se apressar e quer trabalhar mais e mais rápido. Cada vez que você olha, a estrada parece que não encurtou nada; então a gente se esforça ainda mais, e começa a ficar aflito, de modo que no fim está exausto e não pode continuar, enquanto a estrada à sua frente continua tão longa como sempre. Não é esse o jeito de fazer as coisas. Pensou um pouco, e continuou: __ O que se deve fazer é nunca pensar na estrada inteira de uma vez só. Está entendendo? Você tem que pensa somente no passo seguinte, na respiração seguinte, na vassourada seguinte, e continuar sempre pensando só naquilo que vem a seguir. Houve outra pausa para meditação antes de prosseguir: __ Fazendo assim dá prazer, o que é importante, e o trabalho sai bem feito. E é como deve ser. Após uma última pausa, concluiu: __ De repente, você se dá conta de que, passo a passo, chegou ao fim da longa estrada, sem ter percebido e sem ter perdido o fôlego. Acenou com a cabeça e concluiu, devagar: __ Isso é importante. Certa vez, chegou, sentou-se perto de Manu e esta percebeu que ele refletia profundamente, e tinha alguma coisa especial a dizer. Súbito, Beppo olhou-a bem nos olhos e disse: __ Eu nos reconheci Passou-se muito tempo antes que ele continuasse, baixinho: __ Acontece às vezes – ao meio dia – quando tudo está adormecido ao sol. O mundo torna-se transparente – como água cristalina. E pode-se enxergar até o fundo dele. Em silêncio, balançou a cabeça e depois continuou, na mesma voz suave: __ Existem outras épocas lá embaixo, no fundo. Calou-se novamente, refletindo, procurando palavras, mas não as encontrou, pois de repente falou no seu tom habitual:

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__ Hoje estive varrendo junto à antiga muralha da cidade. No muro há cinco pedras de cores diferentes, colocadas assim, está vendo? – e com o dedo riscou na areia um grande T. Com a cabeça de lado, olhou um momento, e sussurrou: __ Eu reconheci essas pedras. Após uma pausa ainda mais longa, prosseguiu em tom hesitante: __ Elas pertencem a outra época, ao tempo em que a muralha foi erguida. Muita gente trabalhou nisso. Porém houve duas pessoas que colocaram aquelas pedras na muralha. Era um sinal, sabe? Eu o reconheci. Beppo esfregou os olhos. O que ele tinha a dizer parecia exigir um grande esforço, pois as palavras saíam com dificuldade: __ Essas duas pessoas naquele tempo eram muito diferentes. Afinal, num tom decidido e quase provocante, falou entre os dentes: __ Assim mesmo, eu nos reconheci, você e eu. Tornei a nos ver. Não era à toa que muitas pessoas sorriam ao ouvir Beppo Varredor dizer coisas desse tipo. Ou, quando ele virava as costas, faziam o gesto significativo de tocar com o dedo na testa. Mas Manu gostava dele e dava grande valor às suas palavras. Outro grande amigo de Manu era jovem e exatamente o contrário de Beppo Varredor. Era um rapaz bonito, com olhos sonhadores, e incrivelmente bem-falante. Era sempre espirituoso e alegre, e dava uma risadas tão gostosas que os outros tinham que rir junto, quisessem ou não. Seu nome era Girolamo, mas ele era conhecido simplesmente como Guido. Guido, como Beppo, tinha o apelido tirado de seu emprego, só que, na verdade, ele não tinha emprego algum. Mas uma das coisas que ele fazia, quando aparecia ocasião, era acompanhar turistas, e por isso ficou conhecido como Guido Guia, embora sua única credencial para guia fosse um boné pontudo e que nem ao menos era do tipo oficial.

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Assim que apareciam turistas na vizinhança, enfiava o boné e com ar muito sério ia falar com eles, propondo mostrar-lhes as ruínas e explicar

tudo.

Se

os

estrangeiros

aceitassem,

ele

começava

imediatamente a discursar, contando as histórias mais fantásticas, inventando nomes, datas e acontecimentos, deixando o pessoal atordoado. Alguns visitantes não o tomavam a sério, e viravam as costas com o ar zangado; porém a maioria tomava aquilo como um Evangelho, e pagava um bom dinheiro quando Guido estendia o boné. Os vizinhos se divertiam com os arroubos da fantasia de Guido, mas de vez em quando tomavam um ar sério e diziam que não era muito direito receber bom dinheiro por um monte de mentiras. __ Todos os poetas inventam coisas – dizia então Guido – E, seja como for, o pessoal recebe alguma coisa em troca do seu dinheiro, não é? E vou-lhes dizer: recebem exatamente aquilo que querem receber! E se aquilo que eu conto está ou não está num livro de guia, que diferença faz? Quem sabe lá se as histórias no livro também não foram inventadas, só que ninguém se lembra mais? De outra vez ele disse: __ Quem sabe o que é verdade e o que não é? Quem sabe o que aconteceu aqui há mil ou dois mil anos? Você, por exemplo, sabe? __ Não – confessaram os outros __ Estão vendo . . . – exclamou Guido – Como é que vocês podem declarar que minhas histórias são mentiras? As coisas podem ter acontecido justamente do jeito que eu conto e, nesse caso, o que eu conto é verdade. Era difícil encontrar resposta para isso. Na verdade, era sempre difícil levar vantagem sobre Guido em matéria de argumentação. Infelizmente, poucos e raros turistas se interessavam em ver o anfiteatro, de modo que Guido tinha que arranjar também uma porção de outros empregos. Conforme a oportunidade, servia de guardador de carros, testemunha de casamento, pajem de cachorros, portador de cartas de amor, ajudante de enterro, vendedor de souvernirs, fornecedor de carne para gatos, e muita coisa mais.

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O sonho de Guido era tornar-se ricos e famoso. Ambicionava morara num palácio de contos de fadas, rodeado de imenso parque, comer em baixela de ouro e dormir em lençóis de seda; e já se imaginava, no futuro, como uma espécie de sol rutilante, cujos raios ajudavam a aquecê-lo em sua pobreza como se de longe lhe chegasse o brilho. __ E vou conseguir – retrucava quando os outros caçoavam de seus sonhos –, e aí vocês vão se lembrar do que eu dizia . . . De como fazer para conseguir, não tinha a menor idéia, mas trabalho sério e perseverança não eram muito do seu agrado. __ Assim não é vantagem – costumava dizer para Manu – Quem quiser pode ficar rico desse jeito. Mas olhe

só para as pessoas que

venderam corpo e alma, por um punhado de dinheiro – olhe só para ver como é que ficaram! Eu não vou me deixar prender nessa corrida de ratos, garanto que não. Ainda que eu às vezes só tenha dinheiro para um cafezinho, serei sempre eu mesmo – Guido continuará a ser Guido. Embora pareça impossível existir amizade entre duas pessoas tão diferentes quanto Guido e Beppo, com pontos de vista tão diferentes sobra a vida e o mundo em geral, o fato é que Guido e Beppo eram amigos. O velho Beppo era a única pessoa que nunca criticava Guido por sua leviandade, e o bem-falante Guido, a única pessoa que jamais caçoava do velho Beppo. Isso talvez tivesse alguma relação com a maneira de Manu ouvir os dois. Nenhum dos três suspeitava que, em breve, uma sombra cairia sobre sua amizade – não só sobre essa amizade, mas sobre toda a vizinhança, uma sombra que vinha crescendo mais e mais, e já se estendera, escura e fria, por sobre a grande cidade. Era uma espécie de invasão silenciosa e imperceptível, adiantadose diariamente, e à qual ninguém se opunha porque ninguém tinha tomado consciência do fato. Mas os invasores – quem eram eles? Até o velho Beppo, que reparava em muita coisa que escapava aos outros, não notou a presença dos homens cinzentos, que vinham ocupando a

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cidade em número sempre crescente, incansáveis em sua atividade. Entretanto, não eram invisíveis. As pessoas os viam, porém não reparavam

neles.

Tinham

o

dom

misterioso

de

parecerem

tão

insignificantes que, ou as pessoas olhavam sem vê-los ou, se viam, esqueciam

imediatamente

a

sua

aparência.

Graças

a

isso

eles

conseguiam trabalhar em segredo, ainda com mais facilidade porque não precisavam se esconder. E, naturalmente, já que ninguém reparava neles, não havia preocupação em saber de onde tinham vindo, e continuavam a vir, pois cada dia surgiam mais. Circulavam

pelas

ruas

em

elegantes

automóveis

cinzentos,

entravam em todas as casas, encontravam-se em todos os restaurantes. De quando em quando anotavam alguma cisa em seus caderninhos. Os homens vestiam-se de cinzento, cor de teia de aranha. Até seus rostos eram cinza. Usavam chapéu-coco cinzento, fumavam pequenos charutos cinzentos, e cada um levava uma pasta cinza-aço. Nem Guido tinha reparado que alguns desses cavalheiros andavam rondando pelo anfiteatro, escrevendo febrilmente em seus caderninhos. Somente Manu os havia visto, quando, uma noite, suas silhuetas escuras destacaram-se nos limites das ruínas. Estavam fazendo sinais, uns para os outros, depois se juntaram, encostando as cabeças como se estivessem conferenciando. Não podia ouvir uma palavra. Porém, desceu pela espinha de Manu um arrepio de frio como nunca ela sentira igual. Enrolou-se mais no seu paletó, mas não adiantou nada porque não era um frio comum. Naquela noite, Manu não conseguiu captar a música distante, que tantas vezes chegava aos seus ouvidos. Mas no dia seguinte a vida continuou como sempre, e Manu não pensou mais nos estranhos visitantes. Ela também os esqueceu.

5. Histórias para o público e histórias particulares Pouco

a

pouco,

Manu

tinha

se

tornado

absolutamente

indispensável para Guido. Ele sentia um grande amor (se é que se pode

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usar tal expressão tratando-se de um rapaz superficial e inconstante) por aquela menina esfarrapada, e gostaria, de fato, de levá-la consigo a toda a parte. Como já dissemos, sua grande paixão era inventar histórias, e era especialmente nesse terreno que ele passara por uma transformação, que se percebia nitidamente. Antes algumas de suas histórias não tinham seqüência: ou ele ficava sem idéias, e continuava repetindo a mesma história, ou copiava algo que tivesse visto no cinema ou lido no jornal. Suas histórias se arrastavam, mas desde que conhecera Manu elas haviam repentinamente criado asas. Era

principalmente

quando

Manu

estava

ouvindo

que

sua

imaginação funcionava. Chegaram turistas que queriam ver o anfiteatro (Manu estava sentada nas pedras, um pouco à parte), e Guido começou: “Senhoras e senhores, como estou certo de que todos sabem, a Imperatriz Strapazia Augustina viu-se forçada a empreender inúmeras guerras a fim de defender seu reino contra os constantes ataques dos Picks e dos Coks. Certa ocasião, após ter subjugado mais uma vez esses povos, ameaçou exterminá-los se o seu rei, Xaxotraxolus, não lhe entregasse como indenização o seu peixe dourado. Naquela época, senhoras e senhores, o peixe dourado era desconhecido nesse país, porém a Imperatriz Strapazia tinha ouvido contar por viajantes que o Rei Xaxotraxolus tinha um peixinho que iria se transformar em ouro puro assim que ficasse grande, e a imperatriz estava resolvida a possuir essa raridade. Quando soube dessa exigência, o Rei Xaxotraxolus deu uma risadinha marota, escondeu o verdadeiro peixinho dourado debaixo da cama, e, em vez dele, mandou para a imperatriz um filhote de baleia dentro de uma terrina de sopa guarnecida de pedras preciosas. Devo dizer que a imperatriz ficou meio espantada com o tamanho do peixe pois ela tinha imaginado o peixe dourado muito menor. ‘Mas’, pensou, ‘quanto maior, melhor porque então o peixe vai render muito

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mais ouro’. É verdade que no momento o peixe não mostrava qualquer sinal de ouro, o que a preocupou um pouco, mas o enviado do Rei Xaxotraxolus explicou que o peixe só ia ficar dourado quando atingisse o máximo de seu crescimento. Por isso era essencial que o seu desenvolvimento não fosse prejudicado em nada. Então a Imperatriz Strapazia teve de se contentar em esperar que o peixe crescesse. O

peixinho

ia

crescendo

dia

a

dia,

consumindo

enormes

quantidades de alimento, mas a Imperatriz Strapazia, não sendo pobre, dava ao peixe tudo que ele conseguisse comer. Foi ficando grande e gordo. Logo a terrina de sopa ficou pequena demais para ele. __ Quanto maior, melhor – disse a imperatriz, e instalou-se na sua banheira. Mas em pouco tempo o peixe já estava grande demais para a banheira. Foi preciso colocá-lo na piscina da imperatriz, o que foi uma dificuldade, pois ele agora pesava tanto quanto um boi. Um dos escravos que estava ajudando a carregá-lo escorregou, e imediatamente a soberana ordenou que o infeliz fosse atirado aos leões, pois o peixe era só o que lhe interessava. Todos os dias ela ficava durante horas sentada à beira da piscina, olhando o peixe crescer, só pensando no ouro que ia render, pois, como vocês certamente sabem, ela levava uma vida altamente luxuosa e nunca tinha tanto ouro quanto precisava. Continuava murmurando para si própria: ‘Quanto maior, melhor’. Essas palavras foram declaradas divisa nacional e colocadas em letras de bronze na fachada de todos os edifícios públicos. Afinal, até a piscina imperial se tornou muito pequena para o peixe. Então a Imperatriz Strapazia mandou seu povo construir o edifício cujas ruínas estamos vendo aqui, senhoras e senhores. Era um gigantesco aquário redondo, cheio de água até a borda, e havia espaço bastante para o peixe. A imperatriz então passava dia e noite vigiando o peixe, para verificar se já estava virando ouro. Não confiava em ninguém, nem nos escravos nem nos parentes: tinha medo de que lhe roubassem o precioso peixe, então ficava ali sentada, emagrecendo dia a dia devido

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ao medo e à aflição. Nunca fechava os olhos: estava sempre de olhos fitos no peixe, que espadanava alegremente na água, sem a mais ligeira intenção de algum dia virar ouro. A imperatriz foi abandonando cada vez mais os negócios de Estado, e era extamente isso que os Picks e Cocks estavam esperando. Sob o comando do Rei Xaxotraxolus lançaram um ataque, e dessa vez conquistaram o país inteiro num instante. Os camponeses nunca tinham visto um soldado e pouco se incomodavam de saber quem é que estava governando. Quando, finalmente, a Imperatriz Strapazia recebeu essas notícias, soltou aquele lamento tão conhecido: ‘Ah . . . se eu tivesse . . .’ Infelizmente o resto da frase não chegou até nós. O fato é que ela se atirou dentro deste aquário aqui, e afogou-se junto ao peixe, que fora o túmulo de todas as suas esperanças. Para comemorar a vitória, o Rei Xaxotraxolus mandou matar a baleia, e durante uma semana inteira o povo todo comeu filé frito de baleia.”

Com essas palavras Guido encerrou suas explicações, deixando o público visivelmente impressionado e olhando respeitosamente para as ruínas. Só um homem, meio acético, indagou: __ Quando é que isso tudo se supõe ter acontecido? Guido, que tinha respostas sempre prontas, não vacilou: __ Como o senhor sabe, a Imperatriz Strapazia foi contemporânea do famoso filósofo Noiosiu-o-Velho. O que perguntara não podia, é claro, confessar que não tinha a menor idéia de quando teria vivido o famoso filósofo Noiosiu, portanto pôde apenas responder: __ Ah . . . muito obrigado. Todos os turistas estavam encantados. Declararam que a visita ao anfiteatro tinha valido realmente a pena, e que ninguém nunca lhes falara dos tempos antigos de maneira tão vívida e interessante. Modestamente Guido estendeu o boné, e os turistas mostrara-se mais do que generosos. Até mesmo o cético deixou cair uns níqueis no

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boné. O fato é que, desde a chegada de Manu, Guido nunca havia contado duas vezes a mesma história. Quando Manu estava entre os ouvintes, ele tinha a impressão de que dentro dele tinha se aberto uma comporta despejando torrentes de idéias novas e invenções, sem precisar fazer grande esforço para pensar. Ao contrário, muitas vezes tinha de tentar frear sua imaginação, para não ir longe demais, como naquela vez em que duas senhoras americanas

tinham

aceitado

suas

préstimos,

e

ele

as

deixara

apavoradas com a seguinte história: “Todo o povo de seu belo e livre país sabe, minhas senhoras, que o notoriamente cruel tirano Marxentius Communis, cognominado ‘O Vermelho’, concebeu o plano de alterar o mundo inteiro para sua própria conveniência. Entretanto, apesar de todos os seus esforços, descobriu que os homens continuavam sempre os mesmos e se recusavam a mudar. Então, na velhice, Marxentius ficou louco. Naquele tempo, como as senhoras sabem, não existiam psiquiatras para ajudar curara essa doença, então deixaram que ele continuasse com seu delírio, e foi quando sua loucura chegou ao auge que ele concebeu a idéia de largar o mundo como estava, enquanto ele próprio ia criar um outro mundo novinho. Para isso mandou construir um globo exatamente do tamanho do antigo, contendo um cópia exata de tudo que existia nele: casa, árvore, montanha, oceano. A humanidade toda foi forçada, sob pena de morte, a trabalhar nessa empresa gigantesca. Começaram por construir a base sobre a qual iria ser colocado o novo globo. E os restos dessa base são o que as senhoras estão vendo aqui. Depois começaram a construir o próprio globo, o novo mundo, vasto como a terra, e quando afinal ficou pronto tudo que havia no velho mundo foi copiado, com imensa dificuldade. Naturalmente, era preciso grande quantidade de material, e o único lugar onde podia ser conseguido era na própria terra antiga. Então

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a terra foi ficando cada vez menor, enquanto crescia o novo globo. Afinal, para completar o novo mundo tiveram de usar até o último restinho do velho mundo. Naturalmente, também, toda a humanidade teve de se mudar para o mundo novo, já que o velho tinha sido todo usado. Quando Marxentius Communis compreendeu que, apesar de tudo, as coisas eram as mesmas que sempre tinham sido, enrolou-se em seu manto e saiu em majestosa atitude. Para onde foi ninguém sabe. Então as senhoras estão vendo que esta depressão em forma de cratera, hoje em ruínas, outrora formava a base do globo de Marxentius Communis, que repousava sobre o mundo anterior. Portanto, as senhoras precisam visualizar tudo isso ao contrário” As duas americanas empalideceram, e uma perguntou: __ E que aconteceu com o mundo de Marxentius Communis? __ A senhora está em pé nele. Este mundo é o novo globo. Dessa vez não adiantou Guido estender o boné. As duas velhotas gritaram de susto, e saíram correndo. Aquilo de que o nosso Guido gostava mais do que tufo era contar histórias só para a pequenina Manu, quando ninguém mais estava ouvindo. Eram geralmente contos de fadas, pois era desses que Manu mais gostava, e quase sempre as personagens eram Guido e Manu. Inventadas especialmente para eles, eram completamente diferentes das outras histórias que Guido contava, ainda mais românticas e poéticas.

SEGUNDA PARTE O tempo perdido

6. A soma está certa mas dá errado

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Há na vida um grande mistério que é tomado como se nada fosse. Todos têm parte nele, porém muito poucos são os que lhe dedicam um pensamento sequer. A maioria simplesmente o aceita, e nunca se preocupa com isso. Esse mistério é o tempo. Existiam calendários e relógios que o medem, mas significam pouco, ou mesmo nada, porque todos nós sabemos que às vezes uma hora parece uma eternidade, ao passo que outras vezes passa como um relâmpago, dependendo do que sucede nessa hora. O tempo é própria vida; e a vida reside no coração. Ninguém sabia disso melhor que os homens cinzentos. Ninguém possuía com tanta intensidade a compreensão do valor da vida contida em uma hora, um minuto ou até um segundo. Possuíam, naturalmente, a seu modo, assim como a sanguessuga “possui” a vítima da qual chupa o sangue; mas o fato é que tinham esse conceito, e manobravam seus negócios de acordo. Eles tinham planos para utilizar o tempo que os homens gastavam, planos de longo alcance, cuidadosamente preparados, e era essencial que

ninguém

percebesse

suas

atividades.

Aos

poucos,

tinham

conseguido estabelecer-se na vida da grande cidade e na de seus habitantes. Passo a passo, sem que absolutamente ninguém notasse, eles progrediam dia a dia e gradualmente iam dominando a humanidade. Tinham uma lista de todos aqueles que poderiam ser úteis aos seus planos, sem que as vítimas tivessem a mais leve suspeita; estavam à espera do instante certo para jogar o laço, e sabiam fazer surgir o bom momento. Um dos que se encontravam na lista, por exemplo, era o barbeiro, Seu Fusi. Mesmo não sendo um cabeleireiro famoso, era respeitado na sua profissão, e vivia bem, sem ser rico nem pobre. Sua barbearia, que ficava no centro da cidade, era pequena e só tinha um empregado.

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Um dia Seu Fusi estava na porta da loja, esperando os fregueses. Como era dia de folga do empregado, Seu Fusi estava sozinho, olhando a chuva pingando na calçada. Era uma dia cinzento, triste, e no coração de Seu Fusi a atmosfera também era cinza e melancólica. “A vida vai passando”, pensava, “e para mim tem sido apenas o clic-clic da tesoura, umas conversinhas com os clientes e muita espuma de sabão. Afinal, que é que eu realmente consegui? Quando eu morrer, será como se nunca tivesse existido.” Na verdade, Seu Fusi não tinha nada contra as conversinhas: ele até gostava de manifestar suas opiniões e ouvir as críticas dos clientes. Também nada tinha contra o clic-clic das tesouras, ou contra a espuma de sabão. Gostava muito do seu trabalho, e sabia que o executava bem. Especialmente no barbear debaixo do queixo, ninguém manobrava a navalha com tanta habilidade. Assim mesmo, havia momentos em que nada disso parecia valer a pena. Toda gente tem momentos assim. “Minha vida é um fracasso”, pensava Seu Fusi. “Afinal de contas, quem sou? Dono de uma pequena barbearia, foi o máximo que consegui. Se ao menos pudesse levar uma vida categorizada, eu seria uma pessoa muito diferente”. Seu Fusi não sabia bem em que consistia essa “vida categorizada”; imaginava algo de importante e luxuoso; coisa assim como o que ele via nas revistas sofisticadas. Aborrecido, continuou suas reflexões: “A questão é que meu trabalho não me deixa tempo para essas coisas. Para viver uma vida categorizada a gente tem que dispor de tempo, precisa de liberdade. Mas eu vou passar minha vida inteira aprisionado entre o clic-clic das tesouras, as conversinhas e a espuma de sabão”. Exatamente nesse momento um elegante carro cinzento parou à porta da barbearia. Um senhor de terno cinza desceu e entrou na loja. Colocando sua pasta cinza-aço sobre a mesa em frente do espelho, pendurou no cabide seu chapéu-coco cinza, sentou-se na cadeira de barbear, tirou do bolso um caderninho que começou a folhear, sempre tirando baforadas de um pequeno charuto cinzento.

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Seu Fusi fechou a porta porque, de repente, começara a fazer um frio esquisito na barbearia. __ Que é que o senhor deseja? – perguntou – Fazer a barba ou cortar o cabelo? Mal acabara de falar xingou-se por sua falta de tato: reparara que a cabeça do freguês era completamente calva e lustrosa. __ Nem um nem outro – retrucou o senhor cinzento, sem um sorriso, falando numa voz estranha, sem expressão – uma voz que poderia ser qualificada como cor de cinza. – Eu venho da parte do Banco Poupa-Tempo. Sou o agente XYQ/384/b. Nós sabemos que você tenciona abrir uma conta conosco. __ Isso é novidade para mim – declarou Seu Fusi. – Para ser inteiramente franco, eu até agora nem sabia da existência desse tal banco. __ Mas agora você sabe – retrucou secamente o outro, consultou seu caderninho e continuou: __ Você é Seu Fusi, o barbeiro, não é? __ Correto. Sou, sim. __ Então eu estou certo: você está em nossa lista de espera. – E fechou abruptamente o caderninho. __ Lista de espera para que fim? – indagou Seu Fusi sem compreender. __ Ora, vejamos, meu caro senhor: o seu tempo está sendo desperdiçado entre o clic-clic das tesouras, as conversinhas e a espuma de sabão. Quando morrer, será como se nunca tivesse existido. Se dispusesse de tempo para levar uma vida categorizada, você seria uma pessoa muito diferente. Só que lhe falta é tempo. Estou certo? __ É exatamente nisso que eu estava pensando agora mesmo – murmurou Seu Fusi, tremendo porque, apesar de a porta estar fechada, o frio aumentava na barbearia. __ Está vendo? – disse o senhor cinzento, com ar muito seguro, tirando baforadas do seu charutinho. – Mas como é que você há de encontrar tempo? O único jeito é poupá-lo! Veja, Seu Fusi, você

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desperdiça o seu tempo com a maior imprudência, conforme eu posso lhe provar por meio de uma simples conta de somar. Um minuto tem sessenta segundos. Uma hora tem sessenta minutos. Até aqui está entendendo? __ Claro que estou. O agente XYQ/384/b tirou do bolso uns pedaços de giz cinzento, e começou a escrever números no espelho da barbearia. __ Sessenta vezes sessenta são três mil e seiscentos. Então, uma hora tem três mil e seiscentos segundos. Um dia tem vinte e quatro horas. Portanto, três mil e seiscentos vezes vinte e quatro são oitenta e seis mil e quatrocentos segundos por dia. Como você sabe, um ano tem trezentos e sessenta e cinco dias (excluindo o ano bissexto), o que dá trinta e um milhões, quinhentos e trinta e seis mil segundos por ano. Ou trezentos e quinze milhões trezentos e sessenta mil segundos em dez anos. Até que idade você acha que vai viver, Seu Fusi? __ B-bem . . . – gaguejou o barbeiro, assombrado. – Eus espero viver até os setenta e oito, se Deus quiser. __ Muito bem – prosseguiu o senhor cinzento – Vamos calcular por baixo, supondo que sejam apenas setenta anos. Teríamos trezentos e quinze milhões trezentos e sessenta mil vezes sete. Dá dois bilhões duzentos e sete milhões quinhentos e vinte mil segundos – E escreveu no seu espelho em números bem grandes: “2 207 520 000”. Sublinhou várias vezes a cifra, e explicou: __ Está vendo, Seu Fusi? Essa é a fortuna à sua disposição. Seu Fusi engoliu em seco e enxugou a testa. A soma era de atordoar. Ele nunca percebera que era tão rico. __ É – continuou o agente, tirando outra baforada do charutinho cinzento – é uma cifra impressionante, não é? Mas vamos examiná-la melhor. Qual é sua idade? __ Quarenta e dois – gaguejou novamente o barbeiro, de repente sentindo-se culpado como se tivesse cometido alguma fraude. __ E quantas horas, em média, dorme por noite? __ Cerca de oito – confessou Seu Fusi.

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O agente fez um cálculo-relâmpago. O giz rangia sobre o espelho de um jeito que arrepiava Seu Fusi. __ Quarenta e dois anos e oito horas por dia vêm a ser quatrocentos e quarenta e um milhões quinhentos e quatro mil segundos, e essa quantidade de tempo deve, sem dúvida alguma, ser considerada perdida. Agora, quantas horas por dia o senhor dedica ao trabalho? __ Umas oito horas – respondeu Seu Fusi, já meio desanimado. __ Então temos que repetir a mesma quantidade na coluna do débito – continuou o agente, implacável. – E, se naturalmente, temos também que deduzir outro período de tempo, pois você precisa comer. Quanto tempo por dia o senhor gasta em comer, incluindo todas as refeições? __ Não sei exatamente – disse Seu Fusi, muito nervoso. – Creio que umas duas horas. __ Acho muito pouco – contestou o agente –, mas vá lá . . . supondo que esteja certo, isso dá, em quarenta e dois anos, cento e dez milhões trezentos e setenta e seis mil segundos. Continuando – conforme nós sabemos, o senhor mora som sua velha mãe –, todos os dias passa uma hora inteira com ela, isto é, senta-se junto dela e conversa, embora ela seja surda e mal consiga ouvir uma palavra do que o senhor diz. Isso também conta como tempo desperdiçado, que sobe a cinqüenta e cinco milhões cento e oitenta e oito mil segundos. Outra coisa: o senhor tem um periquito, inteiramente desnecessário, cujo trato exige diariamente um quarto de hora do seu tempo, o que soma treze milhões setecentos e noventa e sete mil segundos. __ M-mas . . . – tentou argumentar Seu Fusi. __ Não interrompa! – gritou o agente, multiplicando mais e mais rápido. – Como sua mãe tem reumatismo, o senhor mesmo tem que fazer parte do serviço da casa. Tem de fazer as compras, limpar os sapatos, e várias outras tarefas ingratas. Quanto tempo diário isso lhe custa? __ Talvez uma hora, mas . . .

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__ Resultado, cinqüenta e cinco milhões cento e oitenta e oito mil segundos desperdiçados. Além disso, sabemos que você vai ao cinema uma vez por semana, passa uma noite por semana com o grupo de canto coral, vai ao bar duas noites por semana, e as restantes passa com amigos, ou lendo um livro. Em suma, você desperdiça tempo em ocupações inúteis durante cerca de três horas diariamente, o que soma cento e sessenta e cinco milhões quinhentos e sessenta e quatro mil segundos . . . O senhor não está se sentindo bem, Seu Fusi? __ Não, não estou. Com licença . . . __ Estamos quase acabando – prosseguiu o homem cinzento –, mas existe em sua vida um capítulo especial a ser considerado. É aquele seu segredinho, sabe . . . Seu Fusi estava com tanto frio que seus dentes começaram a bater. Sentindo-se fraco, apenas murmurou: __ Sabem disso também? Eu pensei que fosse um segredo entre mim e Dona Dária, e . . . __ No mundo de hoje não existe segredo – interrompeu o agente XYQ/384/b. – Considere o caso com bom senso e realismo, Seu Fusi. Responda à minha pergunta: o senhor pretende se casar com Dona Dária? __ Não, de jeito nenhum . . . __ Isso mesmo – continuou o homem cinza, – Dona Dária terá que ficar a vida inteira numa cadeira de rodas, porque é paralítica das pernas. Entretanto, o senhor vai visitá-la todos os dias durante meia hora, e leva flores . . . Por quê? __ Ela fica tão feliz . . . – respondeu Seu Fusi, quase chorando. __ Mas encare o assunto racionalmente: para o senhor é tempo desperdiçado, que soma vinte e sete milhões quinhentos e noventa e quatro segundos. E se considerarmos que o senhor costuma todas as noites passar um quarto de hora sentado junto da janela, pensando no que aconteceu durante o dia, temos que debitar mais treze milhões setecentos e noventa e sete mil segundos. Agora vamos ver quanto tempo lhe resta, Seu Fusi.

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A conta escrita no espelho era esta: Sono .......................................................................... 441

504

000

segundos Trabalho ................................................................... 441 504 000



Refeições ................................................................. 110 376 000



Mãe ..........................................................................

55 188 000



Periquito ...................................................................

13 797 000



Compras, etc. .........................................................

55 188 000



Amigos, grupo coral, etc. ......................................

65 564 000



“Segredo” ................................................................

27 594 000



Janela ......................................................................

13 797 000



TOTAL ....................................................................... 1 324 512 000



__ Esta soma – declarou o senhor cinzento, batendo o giz contra o espelho com tal força que o barulho era como se fosse um tiro de pistola – esta soma representa o tempo que o senhor desperdiçou até agora. Que tem a dizer? Seu Fusi não tinha absolutamente nada a dizer. Sentou-se numa cadeira, a um canto, e enxugou a testa, pois apesar do frio que sentia estava suando. O homem cinza balançou a cabeça com ar pensativo: __ É, é isso mesmo. O total já ultrapassa mais de metade do seu capital inicial. Mas agora precisamos ver o que de fato lhe resta dos seus quarenta e dois anos. Como já sabe, um ano tem trinta e um milhões quinhentos e trinta e seis mil segundos, e isso, multiplicado por quarenta e dois, vem a ser um bilhão trezentos e vinte e quatro milhões quinhentos e doze mil segundos. Abaixo da soma anterior, escreveu: Tempo perdido até hoje ........................................

1

324

512

000

segundos Menos tempo disponível até agora ..................... segundos

1 324 512 000

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RESULTADO ...............................................................

0 000 000 000

segundo Feito isso, guardou o giz no bolso e esperou que os zeros tivessem tempo de fazer seu efeito sobre Seu Fusi. E, de fato, produziram um efeito e tanto. Arrasado, Seu Fusi pensou: “Então é esse o balanço de minha vida até hoje . . .” Estava tão impressionado com a conta, detalhada como era até o último segundo, que sem duvidar a aceitou. E a adição estava mesmo perfeitamente certa. Era um dos truques que os homens cinzentos utilizavam para enganar as pessoas sempre que podiam. __ Francamente, acho que o senhor não pode continuar assim – recomeçou o agente XYQ/384/b com voz suave – Não gostaria de começar a poupar um pouco do seu tempo, Seu Fusi? Seu Fusi fez sinal que sim. Seus lábios estavam azuis de frio. __ Por exemplo – continuou a voz cinzenta do agente –, se o senhor tivesse começado, há vinte anos, a poupar uma hora por dia, agora, teria um capital de vinte e seis milhões duzentos e oitenta mil segundos. Se tivesse poupado duas horas diárias teria, é claro, o dobro dessa soma, ou seja, cinqüenta e dois milhões quinhentos e sessenta mil segundos. E eu lhe pergunto, Seu Fusi, que são duas miseráveis horinhas, comparadas a esse total? __ Nada! – gritou Seu Fusi – Uma coisa à toa . . . __ Fico satisfeito vendo que o senhor compreende isso – continuou o agente. – E, se agora calcularmos quanto o senhor teria economizado em mais vinte anos assim, chegaremos à simpática soma de cento e cinco milhões cento e vinte mil segundos. Todo esse capital estaria à sua disposição quando chegasse aos sessenta e dois anos. __ F-formidável! – gaguejou Seu Fusi, os olhos quase saindo fora da órbita.

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__ Espere um instante, ainda tem mais: o Banco Poupa-Tempo não somente cuida do tempo que o senhor poupou, mas ainda lhe paga os juros sobre isso. Quer dizer que, de fato, teria muito mais ainda. __ Quanto mais? – indagou Seu Fusi, ofegante. __ Isso dependeria do senhor – explicou o agente –, do quanto o senhor poupasse e o tempo que deixasse suas economias frutificando conosco. __ Frutificando? Como assim? . . . __ Muito simples – explicou o cavalheiro cinzento. – Se durante cinco anos o senhor não retirar seu tempo poupado, nós depositamos o equivalente em sua conta. Em outras palavras, suas economias dobram a cada cinco anos. Em dez anos, já valem quatro vezes mais a quantia original, em quinze anos, oito vezes, a assim por diante. Se há vinte anos o senhor tivesse começado a poupar meramente duas horas por dia, no aniversário dos seus sessenta e dois anos teria à sua disposição duzentos e cinqüenta e seis vezes a soma que teria poupado até hoje. Chegaria a vinte e seis bilhões novecentos e dez milhões setecentos e vinte mil segundos. Tornou a puxar do bolso o giz cinzento. Escreveu no espelho o número: “26 910 720 000 segundos” Pela primeira vez um ligeiro sorriso entreabriu os lábios do senhor cinzento. __ O senhor pode verificar que isso vem a ser dez vezes mais o equivalente à duração de sua vida inteira. E pode ser conseguido simplesmente pela economia de duas horas diárias. Diga-me se não acha que é uma oferta interessante. __ Claro que é! – respondeu o barbeiro, já quase desmaiando. – Claro que é. Eu sou um cretino por não ter começado a poupar tempo há muitos anos. Só agora estou percebendo isso, e confesso que fico desesperado. __ Não há motivo para isso – retrucou suavemente o homem cinzento. – Nunca é tarde demais. Se quiser, podemos começar hoje mesmo. Vai ver como vale a pena.

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__ Eu gostaria muito . . . Que é que tenho que fazer? __ Meu caro senhor – e o agente ergueu as sobrancelhas –, estou certo de que sabe como poupar tempo! Só o que o senhor tem de fazer é trabalhar mais rápido, e deixar de lado tudo que não é essencial. Em vez de dedicar meia hora a cada freguês, dedique apenas um quarto de hora. Poupe o tempo que tem desperdiçado em conversa com eles. Reduza para a metade a hora que você passa com a sua mãe. Melhor ainda, mande-a para um asilo de velhos, bom e barato, onde tomarão conta dela, e você estará poupando uma hora inteira por dia. Largue esse periquito, que não serve para nada. Visite Dona Dária a cada quinze dias, se fizer questão. Acabe com o quarto de hora que você gasta

rememorando

os

acontecimentos

diários.

Acima

de

tudo,

desperdice menos tempo com o canto coral, leitura de livros e os seus supostos amigos. A propósito, eu lhe aconselho a colocar um bom relógio, bem grande, na sua barbearia, para poder controlar a atividade de seu empregado. __ Tudo isso está muito bem – disse Seu Fusi –, eu posso fazer tudo isso, mas o que acontece com o tempo que eu economizo? Que é que eu faço com ele? Tenho de entregar para guardar? A quem? Ou eu mesmo é que guardo em algum lugar? Como é que funciona a coisa? O agente tornou a mostrar aquele ligeiro sorriso. __ Não se preocupe com nada disso. Deixe tudo por nossa conta. Fique descansado, certo de que não deixaremos perder-se um só momento do seu tempo poupado. __ Ah, então está bem – respondeu o barbeiro, boquiaberto. – Confiarei em vocês. __ Pode ter absoluta confiança, meu caro senhor – disse o agente, levantando-se da cadeira. – Tenho agora o agradável dever de saudá-lo como novo membro da Sociedade de Poupança de Tempo. Seu Fusi, o senhor agora é de fato um homem moderno e progressista. Meus parabéns. Dizendo isso, apanhou o chapéu e a pasta.

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__ Um minuto! – gritou Seu Fusi. – Não devíamos fazer alguma espécie de contrato? Eu não deveria assinar alguma coisa? Não recebo documento nenhum? O agente XYQ/384/b, já na porta, virou-se, lançando para Seu Fusi um olhar ligeiramente contrariado. __ Para que serviria? Não se pode comprar economia de tempo com nenhum outro tipo de economia. É inteiramente uma questão de confiança – de ambas as partes. Sua palavra basta para nós – o senhor não pode voltar atrás –, e nós nos comprometemos a zelar pelas suas economias. O quanto o senhor poupar é inteiramente problema seu. Nós não fazemos pressão alguma. Adeus, Seu Fusi. Com isso, o agente entrou no seu elegante carro cinza e partiu rapidamente. Seu Fusi ficou acompanhando com o olhar, e enxugou a testa. Pouco a pouco o frio foi passando, mas ele se sentia fraco e indisposto. A fumaça cinza-azulada, deixada pelo charuto do agente, flutuava ainda na sal em nuvens pesadas, sufocantes, lentas, a se desfazerem. Seu Fusi só se sentiu um pouco melhor quando a fumaça desapareceu. Ao mesmo tempo foram também desbotando os números no espelho, e quando tinham desaparecido completamente Seu Fusi já não conseguia lembrar-se da visita do senhor cinzento, embora lembrasse a decisão tomada no final, decisão que ele agora acreditava ter sido inteiramente sua. A decisão de começar a poupar tempo, de modo a começar vida nova numa data incerta do futuro, tinha se incrustado em seu coração como uma farpa envenenada. Nisso chegou o primeiro freguês do dia. Seu Fusi o recebeu secamente, fez o estritamente necessário, e não conversou nada, de modo que terminou em vinte minutos em vez de meia hora. Tratou desse jeito todos os fregueses. Trabalhando dessa maneira, ele não sentia nenhum prazer no que fazia, porém isso agora já não tinha importância. Tomou mais dois ajudantes e ficou de olho neles, fiscalizando para que não perdessem um minuto. Cada movimento era

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calculado até a uma fração de segundo, e agora uma tabuleta pendurada na barbearia de Seu Fusi dizia: TEMPO POUPADO É TEMPO DOBRADO Seu Fusi escreveu uma carta seca para Dona Dária, dizendo que infelizmente, devido à falta de tempo, não poderia mais visitá-la. Vendeu o periquito para uma loja de animais. Colocou a mãe num bom e barato asilo de velhos, onde passou a visitá-la uma vez por mês. Nas outras coisas também seguiu todos os conselhos dados pelo homem cinzento, convencido de que eram todas idéias suas. Foi ficando cada vez mais atormentado e irritável, pois achava estranho, apesar de todo o tempo que economizava, nunca lhe sobrar tempo. O tempo desaparecia misteriosamente, e nunca mais voltava. Os dias foram ficando mais e mais curtos, a princípio sem que percebesse, depois ostensivamente. Antes que o barbeiro desse por isso, mais uma semana tinha se passado, e outro mês, e outro ano, e depois outro e outro. Já que ele não se lembrava da visita do agente, deveria ter indagado seriamente de si mesmo para onde tinha ido todo o seu tempo, porém, como todos os outros poupadores de tempo, nunca formulou a pergunta. Era como se uma paixão cega o arrastasse. E quando, por acaso, se deu conta de que os dias estavam voando mais e mais depressa, só redobrou seus esforços desesperados para poupar o tempo. O que aconteceu com Seu Fusi já tinha acontecido com muita gente da cidade grande. Cada dia maior número de pessoas começavam aquilo a que chamavam “economizar tempo”, e quanto mais aumentava o número das pessoas, maior era a quantidade daqueles que os imitavam; mesmo aqueles que não queriam eram forçados a aderir porque não tinham outra alternativa. Todos os dias a televisão, o rádio, a imprensa anunciavam e elogiavam os méritos de novos expedientes para poupar o tempo, de maneira a deixar as pessoas livres para viver uma “vida categorizada” num vago futuro. Muros e tapumes estavam cobertos de anúncios com

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figuras descrevendo todas as formas possíveis de prosperidade, e por baixo, em letras fluorescentes, brilhavam frases tais como: A SORTE ESTÁ COM OS POUPADORES DE TEMPO! ou O FUTURO PERTENCE A QUEM POUPA TEMPO! ou APROVEITE SUA VIDA – POUPE TEMPO! A

realidade,

entretanto,

era

muito

diferente.

De

fato,

os

poupadores de tempo vestiam-se melhor do que o pessoal que morava perto do velho anfiteatro. Ganhavam mais dinheiro, e assim possuíam mais para gastar, mas tinham um ar mal humorado, cansado ou cínico, e o olhar hostil. Naturalmente nunca lhes havia chegado ao ouvido a expressão: “Por que não vai falar com Manu?” Não tinham ninguém que os ouvisse de modo a sentirem-se inteligentes, corteses, ou até felizes. Mas ainda que tal pessoa existisse, era pouquíssimo razoável que alguém fosse procurá-la, a não ser que o assunto pudesse ser resolvido em menos de cinco minutos – senão, seria considerado desperdício de tempo. Na opinião dos poupadores, até o seu lazer devia ser aproveitado ao máximo, de maneira a fornecer, tão rápido quanto possível, tanto divertimento quanto possível. Isso significava que para eles já não existia a arte de comemorar adequadamente qualquer ocasião, alegre ou solene. Sonhar era quase um crime. Mas o que menos toleravam era o silêncio, pois quando estava tudo quieto ficavam apavorados, temerosos acerca do rumo que a vida tinha tomado. Por esse motivo faziam barulho assim que o silêncio ameaçava surgir. Não era um barulho alegre, como se ouve num recreio de crianças; era um barulho irritado, agressivo, que se tornava cada dia mais alto na grande cidade. Já não se considerava importante gostar do seu trabalho, ou orgulhar-se dele – ao contrário, isso faria com que ficasse perdido no tempo. A única coisa importante era que trabalhasse cada um o mais possível, no menor tempo possível. Por isso, letreiros foram colocados nas fábricas e nos escritórios, dizendo:

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O TEMPO É VALIOSO – NÃO O PERCA! ou TEMPO É DINHEIRO – ECONOMIZE! Avisos semelhantes foram afixados nas paredes atrás das mesas de gerentes e poltronas de executivos; apareceram nos consultórios médicos, nas lojas, restaurantes, até nas escolas e creches. Ninguém foi esquecido. Por fim, a aparência da própria cidade foi mudando mais e mais. Os antigos bairros foram demolidos, e ergueram-se novas construções, omitindo tudo que pudesse ser considerado supérfluo. Já não se preocupavam em projetar casas adequadas às pessoas que iriam habitar, pois isso implicaria projetar um mundo de casas diferentes. Era muito mais barato, e sobretudo mais rápido, construir todas as casas iguais. No lado norte da cidade grande já haviam surgido novos conjuntos residenciais. Em fileiras intermináveis alinhavam-se blocos de apartamentos, cada um tão igual ao outro como dois feijões numa vagem, e como todas as casas pareciam iguais todas as ruas também pareciam iguais. Essas ruas idênticas cresciam mais e mais, estendendose em linhas retas até o horizonte: um deserto simétrico. A vida para o pessoal que morava ali decorria exatamente da mesma maneira – bitolada a perder de vista –, pois ali tudo era medido e calculado com precisão, chegando ao último centímetro e ao último segundo. Enquanto todos estavam poupando tempo, ninguém queria confessar que sua vida se tinha tornado cada dia mais infeliz, mais monótona, mais sem alma. Quem mais sentia isso eram as crianças, pois ninguém mais tinha tempo para elas. Mas tempo é vida. E a vida reside no coração. E quanto mais o pessoal poupava, menos possuía.

7. Manu procura seus amigos e é procurada por um inimigo

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__ Não sei por quê – disse Manu um dia –, mas me parece que nossos velhos amigos vêm me visitar muito menos do que costumavam. Há alguns que não vejo há um tempo enorme. Guido Guia e Beppo Varredor estavam sentados junto dela nos degraus do anfiteatro, onde crescia o capim, assistindo ao pôr-do-sol. __ É – confirmou Guido –, é exatamente o que eu também acho. Menos e menos pessoas querem ouvir minhas histórias. Não é mais como antes. Alguma coisa está errada. __ Mas o quê? – indagou Manu. Guido sacudiu os ombros, e apagou as letras que tinha escrito numa velha lousa. Algumas semanas antes Beppo Varredor havia trazido para Manu a lousa que encontrara num monte de entulho. Embora não fosse nova, é claro, e tivesse no meio uma larga rachadura, ainda podia ser utilizada. Desde então Guido passava todos os dias algum tempo ensinando o alfabeto a Manu, e, como esta tinha muito boa memória, depois de pouco já podia ler direitinho, embora escrever fosse mais difícil. Beppo Varredor, que ficara pensando na pergunta de Manu, respondeu: __ É verdade. Está chegando mais perto. Na cidade já está por toda parte. Já faz algum tempo que reparei. __ Reparou em quê? – perguntou Manu. Beppo pensou um pouco antes de responder: __ Nada de bom Fez nova pausa antes de prosseguir: __ Está esfriando __ Tolice! – exclamou Guido, passando o braço em torno dos ombros de Manu, num gesto de consolo. – Seja como for, mais e mais crianças continuam a vir aqui. __ É por isso – disse Beppo –, justamente por isso. __ Que é que você quer dizer? – indagou Manu. Beppo demorou muito para responder: __ Elas não vêm para estar conosco. Vêm apenas à procura de um refúgio.

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Os três olharam para o centro da arena, onde algumas crianças estavam se divertindo com um novo jogo de bola que haviam inventado naquela tarde. Entre elas estavam alguns velhos amigos de Manu; Paulo, o menino de óculos; Maria, com a irmãzinha Dedé; o garoto gordo de voz esganiçada chamado Mássimo; e outro menino, Franco, sempre com jeito desleixado. Mas, além destes, havia várias crianças que só tinham começado a aparecer nos últimos dias, entre as quais um menino pequeno, que naquela tarde vinha pela primeira vez. Parecia que Guido tinha razão: cada dia vinham mais e mais crianças. Manu ficaria muito feliz com a presença delas, mas quase todas as crianças novas não tinham a mínima idéia de como brincar. Ficavam ali sentadas, amuadas e aborrecidas, só olhando para Manu e seus amigos. De vez em quando interrompiam de propósito a brincadeira dos outros e estragavam tudo; no começo houve muita discussão e briga, mas não por muito tempo, porque a presença de Manu afetava até as crianças novas, e logo começaram a ter boas idéias, e juntar-se às outras com entusiasmo. Mas quase todos os dias chegavam novas crianças, algumas vindas de longe, do lado oposto da grande cidade, e então as outras tinham que começar tudo de novo, pois bastava uma de má vontade para estragar o jogo. Havia também outra coisa, que começava uns dias antes, e Manu não entendia. Cada vez mais, as crianças traziam consigo brinquedos, brinquedos caros que não eram muito divertidos, tais como tanques de controle remoto, que andavam em círculo, porém não podiam fazer mais nada, ou um foguete espacial, que zunia em torno do suporte, mas não servia para nada mais, ou um robô de olhos acesos, que andava se bamboleando e virando a cabeça e dele não se podia conseguir outra coisa. Eram brinquedos caríssimos, naturalmente; os amigos de Manu nunca haviam possuído um igual, e muito menos ela própria. O mais curioso é que aqueles brinquedos eram completos até no menor detalhe, de modo que absolutamente nada era deixado à imaginação. Muitas vezes as crianças ficavam ali durante horas, de olhos fitos naqueles brinquedos que rodopiavam, zuniam, bamboleavam, fascinadas mas sem interesse, porque não sabiam o que fazer com aquilo. Acabavam

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por voltar às antigas brincadeiras, em que umas caixas vazias, uma velha toalha de mesa, um punhado de pedrinhas eram suficientes para estimular a imaginação. Naquela tarde parecia haver algo atrapalhado o jogo. Uma a uma, as crianças foram desistindo, até que afinal todas estavam sentadas em torno de Manu, Beppo e Guido. Queriam ouvir uma história de Guido, mas não era possível, porque o garotinho, que naquela tarde aparecera pela primeira vez, tinha levado um rádio transístor e, sentado sozinho, ouvia um programa de anúncios, no volume máximo. __ Você não pode abaixar este barulho estúpido? – perguntou, em tom agressivo, Franco, o menino de aspecto relaxado. __ Não posso ouvir – respondeu com um sorriso o garoto. – Meu rádio está tão alto . . . __ Abaixe isso já! – gritou Franco, levantando-se. O garoto empalideceu ligeiramente, mas respondeu obstinado: __ Não me importa que você ou qualquer outra pessoa reclame. Eu posso tocar meu rádio tão alto quanto eu quiser. __ Ele tem razão – disse o velho Beppo. – Nós não podemos proibilo. O máximo que podemos é pedir que não faça isso. Franco tornou a sentar, mal-humorado: __ Então ele devia ir para algum outro lugar. A tarde inteira ele atrapalhou tudo. __ Com certeza ele tem suas razões – disse Beppo, olhando para o garoto com expressão de simpatia. – Garanto que tem. O garoto não disse nada, mas dali a pouco abaixou o volume do rádio, olhando para o outro lado. Manu levantou e foi sentar-se perto dele. Ele desligou o rádio, e durante alguns momentos fez-se silêncio. __ Conte uma história, Guido – pediu uma das crianças que só começara a aparecer havia algum tempo. __ É, conte, por favor! – gritaram os outros. – Conte uma história engraçada – não, uma de meter medo – não, uma de fada – não, uma história de aventuras!.

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Pela primeira vez

na sua vida Guido estava disposto a contar

histórias. Por fim, pediu: __ Eu gostaria muito mais que vocês me contassem alguma coisa – alguma coisa sobre vocês e suas casas, o que é que vocês fazem o dia todo, e por que estão aqui. As crianças ficaram quietas. De repente as fisionomias tinham se tornado tristes e fechadas. Afinal uma delas disse: __ Nós agora temos um carro muito bonito. Nos sábados, quando papai e mamãe têm tempo, eles lavam o carro, e se eu me comportei bem tenho licença de ajudar. Quando eu for grande vou ter um assim. Uma menininha disse: __ Eu posso ir ao cinema todos os dias, se quiser, para que eu possa ficar num lugar seguro, porque eles infelizmente não têm tempo para mim. – Fez uma pausa e acrescentou: __ Mas eu não gosto de ficar num lugar seguro, então eu venho aqui, escondido, e poupo o dinheiro do cinema. Quando eu tiver juntado bastante, vou comprar um bilhete de trem e vou ver os sete anõezinhos. __ Não seja boba! – gritou outra criança. – Isso não existe! __ Existe, sim – insistiu a menina. – Eu até vi o retrato deles num anúncio de viagens. __ Eu já tenho doze discos de contos de fadas – disse um menino pequeno. – E posso tocar quando quiser. Primeiro, quando meu pai voltava do trabalho sempre me contava histórias, e era ótimo. Mas agora ele nunca está em casa, ou então está muito cansado e não tem vontade de contar histórias. __ E sua mãe? – perguntou Manu. __ Ela também está fora de casa o dia inteiro, agora. __ É – disse Maria –, na minha casa é a mesma coisa, mas por sorte eu tenho Dedé. Beijou a irmãzinha, que estava sentada no seu colo, e continuou: __ Quando eu chego da escola esquento a comida, depois faço meus deveres, e depois – sacudiu os ombros – depois nós ficamos

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rodando por aí, até ficar escuro. Agora a gente quase sempre vem pra cá. Com movimentos de cabeça, as crianças concordavam com o que ela dissera, pois era mais ou menos aquele o padrão de vida de todas. __ Eu acho ótimo meus pais não terem tempo para cuidar de mim – disse Franco (embora ele não parecesse nada contente) –, senão eles começaram a discutir, e acabam me dando uma surra. De repente o menino com o transístor virou-se para eles e disse: __ Eu agora estou ganhando muito mais dinheiro pra gastar. __ Claro – atalhou Franco. – Eles nos dão mais dinheiro para ficarem livres de nós. Eles não gostam mais de nós, mas também não gostam mais deles mesmos. Se vocês querem saber: eles não gostam mais de nada. __ É mentira! – gritou zangado o garotinho do rádio. – Meus pais gostam muito de mim. Eles não têm culpa de não terem tempo. É o jeito que as coisas são. Mas em troca eles me deram este transístor, que custa muito caro. Isso prova que eles gostam de mim, não? Ninguém respondeu. E de repente o menino começou a chorar. Tentou segurar o choro, e esfregou os olhos com aquelas mãos sujas, porém as lágrimas corriam deixando riscos mais claros nas bochechas encardidas. As outras crianças olhavam com simpatia ou abaixavam os olhos. Agora estavam entendendo o garoto. Na verdade, todas sentiam o mesmo. Todas sentiam que haviam sido abandonadas. __ É – falou o velho Beppo, após uma longa pausa –, está ficando frio. __ Eu acho que daqui a pouco não vou mais poder vir aqui – disse Paulo, o menino de óculos. __ Por que não? – indagou Manu, surpresa. __ Por que meus pais dizem que vocês todos são uns boas-vidas que não servem pra nada – explicou Paulo. __ Dizem que vocês estão roubando o tempo que é de Deus, e é por isso que vocês têm tanto tempo. Dizem que há gente demais como vocês, e é por isso que os

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outros têm menos e menos tempo. E não querem que eu venha mais aqui, para não ficar igualzinho a vocês. Algumas

crianças,

que



tinham

ouvido

a

mesma

coisa,

concordaram com um movimento de cabeça. Guido encarou cada uma das crianças por sua vez: __ E é isso que vocês também acham de nós: por que continuam vindo aqui apesar disso? Seguiu-se um breve silêncio, que Franco rompeu: __ Eu não ligo. De qualquer jeito, meu velho sempre diz que quando crescer vou ser ladrão. __ Ah, é? – perguntou Guido, erguendo as sobrancelhas. __ E você também acha que nós somos ladrões? As crianças olhavam para o chão, encabuladas. Por fim Paulo, examinando com o olhar o velho Beppo, disse baixinho: __ Meus pais não falam mentira – e ainda mais baixo perguntou: __ Então, você não é? . . . Ouvindo isso, o velho varredor de ruas ergueu-se ao máximo de sua altura (que não era muita), levantou solenemente a mão e declarou: __ Eu nunca – nunca, na minha vida inteira –, nunca roubei o menor tiquinho de tempo nem de Deus nem dos homens. Isso eu juro, e Deus é testemunha! __ Eu também – disse Manu. __ Eu também – repetiu Guido, muito sério. Impressionadas, as crianças estavam caladas. Nenhuma delas duvidava da palavra dos três amigos. __ E já que estamos nesse assunto, quero dizer mais uma coisa – continuou Guido. – As pessoas costumavam vir procurar Manu para que ela, ouvindo o que tinham a dizer, pudesse ajudá-las a conhecerem-se a si mesmas. Mas agora nem pensam mais nisso. As pessoas gostavam de vir escutar minhas histórias também, porque as histórias as distraíam das preocupações. Mas nisso também nem pensam mais. Dizem que já não têm tempo para essas coisas. Mas vocês já notaram uma coisa estranha? É realmente muito estranho ver para que eles já não têm

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tempo. Outro dia encontrei na cidade um velho amigo, o barbeiro Fusi. Fazia algum tempo que eu não o via, e quase não o reconheci, tão diferente que estava: aflito, cansado, irritado, em suma, infeliz. Ele era um sujeito simpático, que cantava com boa voz, e propunha as idéias mais originais. Agora, de repente, ele não tem tempo para mais nada disso. Não é mais Seu Fusi, o barbeiro: virou um fantasma de sua antiga pessoa. Estão entendendo o que eu quero dizer? Se esse fosse o único, eu diria que ele focou meio ruim da cabeça, mas por todos os lados encontra-se gente assim. E cada dia aparecem mais e mais. Agora até alguns dos nossos velhos amigos estão começando a ficar assim, e eu às vezes fico imaginando se não é algum tipo de loucura contagiosa. O velho Beppo concordou: __ Você tem razão, deve ser contagioso __ Se for isso, temos que acudir os nossos amigos! – disse Manu, apavorada. Essa noite passaram muito tempo discutindo qual a melhor maneira de agir; porém não suspeitavam da existência e constante atividade dos homens cinzentos.

No decorrer dos dias seguintes Manu foi procurar os velhos amigos, para perguntar o que tinha acontecido e por que não iam mais visitá-la. O primeiro que procurou foi Nicolau, o pedreiro. Ela sabia onde ele morava, um quartinho no sótão, logo abaixo do telhado. Mas Nicolau não estava em casa. Os outros moradoresão estava em casa. Os outros moradores só sabiam que ele agora estava trabalhando num grande conjunto residencial, no lado oposto da cidade, e ganhando muito dinheiro. Agora ele raramente voltava para casa, e quando voltava eram já altas horas. Também agora quase sempre percebia-se que ele tinha bebido, e era difícil manter a amizade. Manu resolveu esperar por ele, sentou-se na escada, diante da porta. Aos poucos foi ficando escuro, e ela adormeceu. Devia ser já ser muito tarde quando acordou com o barulho de passos cambaleantes e

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uma voz rouca cantando. Era Nicolau, aos tropeções. Quando viu a menina parou, boquiaberto. __ Oi, Manu! – resmungou, evidentemente encabulado de ser visto naquelas condições. __ Então você continua viva, hein? E que é que está fazendo aqui? __ Procurando você – respondeu Manu timidamente. __ Ora, mas que anjo . . . – disse Nicolau com um sorriso. __ Imagine só, vir aqui no meio da noite para visitar seu velho amigo Nicolau! Sabe que há muito tempo estou querendo ir vê-la, mas hoje em dia não tenho tempo para nada que seja . . . Fez um gesto vago, e sentou-se pesadamente ao lado de Manu. __ Vida particular. Você não adivinha o que eu estou fazendo agora, menina. As coisas não são mais como eram. Os tempos mudaram. Lá onde estou trabalhando agora eles fazem tudo no dobro da velocidade. A gente trabalha que é um inferno. Cada dia aprontamos um andar inteiro, ou mais. É. É muito diferente de antigamente. Eles já têm tudo projetado, conhecem todos os macetes, e tudo está previsto até nos menores detalhes . . . Continuou falando, e Manu ouvindo com atenção. À medida que ela ouvia, ele ia parecendo menos entusiasmado. De repente parou e passou pela testa a mão cheia de calos. __ Tudo isso que eu estive dizendo é um monte de bobagens – falou de repente, com tristeza. __ Sabe, Manu, eu estou de novo bebendo demais. Reconheço. Hoje em dia eu muitas vezes passo da conta. Se não fosse assim eu não podia agüentar aquilo que estamos fazendo lá. Quero dizer: vai contra a consciência de um operário honesto. Areia demais no cimento, por exemplo. Vai durar uns quatro ou cinco anos e aí basta soprar em cima pra cair tudo aos pedaços. Tudo trabalho ordinário, malfeito! E isso ainda não é o pior. Pior é o tipo de casas que estamos construindo. Não são casas, são . . . são gaiolas! É da gente ficar doente . . . Mas, afinal, com que tenho eu de me preocupar? Enquanto estiver recebendo o meu dinheiro está OK, não é? Mas o que eu sentia antigamente era outra coisa: costumava ter orgulho do meu

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trabalho quando construíamos alguma coisa que valesse a pena ver, e agora . . . Um belo dia, quando eu tiver ganhando o bastante, largo tudo isso e vou fazer coisa completamente diferente. Ficou de cabeça baixa, os olhos perdidos no espaço, enquanto Manu não dizia nada, apenas ouvia o que ele tinha a dizer. Dali a pouco Nicolau continuou, baixinho: __ Quem sabe eu devia recomeçar a ir visitá-la, e contar tudo isso. É devia mesmo. Que tal amanhã? Ou então depois de amanhã? Tenho que ver como é que encaixo isso. Mas vou sem falta. Então, está bem, está combinado? __ Combinado – respondeu Manu, alegre, e então se despediram porque ambos estavam muito cansados. Porém Nicolau não apareceu no dia seguinte, nem no outro dia. Não apareceu nunca. Com certeza ele já não tinha mais tempo.

A seguir Manu foi procurar o dono do bar-restaurante, Nino, e sua mulher Liliane. A casinha velha, meio descascada, com uma trepadeira crescendo junto à porta, ficava num arrabalde da cidade. Manu deu a volta por trás, como costumava fazer. A porta estava aberta, e muito antes de chegar Manu já ouvia a briga violenta dos dois. Liliane batia as panelas no fogão, seu rosto gorducho reluzindo de suor. Nino gritava com ela e gesticulava. Deitado no berço, a um canto, o bebê berrava. Sem barulho, Manu sentou-se, apanhou nos braços o bebê, acalentando-o devagar, até que ele parou de gritar. Marido e mulher interromperam o bate-boca e olharam naquela direção. __ Ah, é você, Manu? – disse Nino, com um breve sorriso. __ Que prazer, vê-la de novo. __ Quer comer alguma coisa? – perguntou Liliane, meio brusca. Manu balançou negativamente a cabeça. __ Então o que é que você quer? – indagou Nino, irritado. __ Neste momento não temos tempo para atendê-la.

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__ Eu só vim perguntar por que é que há tanto tempo vocês não me visitam. __ Ora, não sei por quê – respondeu Nino ainda mais irritado. __ Agora nós temos outras coisas em que pensar, sabe? __ É isso – gritou Liliane, sacudindo as panelas –, ele tem mesmo outras coisas em que pensar . . . tais como livrar-se de nossos queridos fregueses antigos -–agora é só no que ele pensa! Lembra-se, Manu, daqueles velhos que costumavam se sentar à mesa do canto? Pois Nino mandou eles embora – botou pra fora! __ Não foi assim – protestou Nino. __ Eu só pedi, com bons modos, que eles procurassem outro bar-restaurante. Como dono eu tenho o direito de fazer isso. __ Ora, o direito, o direito! – exclamou Liliane, exasperada. __ Você simplesmente não pode fazer uma coisa dessas. É injusto e horrível. Você sabe muito bem que eles não vão encontrar outro bar. E eles aqui não incomodavam ninguém. __ Claro que não incomodavam ninguém! – gritou Nino. __ Porque os fregueses decentes, que pagam, não vinham aqui enquanto aqueles velhos barbudos estivessem amontoados ali no canto. Você acha que as pessoas apreciam esse espetáculo? E eles só podem gastar um copo de vinho barato por noite, o que não dá lucro nenhum. Desse jeito nós nunca vamos chegar a nada. __ Até agora nos arrumamos muito bem – retrucou Liliane. __ Até agora, sim! – continuou Nino com veemência. __ Mas você sabe perfeitamente que isso não pode continuar assim. O aluguel subiu. Tenho que pagar um terço mais do que costumava. Tudo está subindo. Onde é que eu vou arranjar o dinheiro, se transformar meu barrestaurante num asilo de velhos? Por que é que eu tenho de cuidar dos outros? Ninguém cuida de mim. A gorda Liliane bateu com uma frigideira no fogão. Com as mãos nas cadeiras gritou: __ Deixe eu lhe dizer uma coisa: acontece que um desses velhos sem vintém, como você diz, é meu tio Ettore, e eu não vou ficar quieta

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aqui ouvindo você xingar minha família. O tio é um homem bom e honesto, mesmo que ele não tenha tanto dinheiro quanto esse seu público pagante! __ Mas Ettore pode continuar a vir – respondeu Nino com um gesto magnânimo. __ Eu já disse a ele que pode vir se quiser, mas ele não quer. __ Claro que não quer, sem os velhos amigos! Que é que você pensa? Imagina que ele vai ficar ali encolhido, sozinho, no canto? __ Então não posso fazer mais nada! – berrou Nino. __ O fato é que eu não quero passar o resto da minha vida com um bar-restaurante de Segunda classe, só para benefício de seu tio Ettore. Eu quero fazer algo da minha vida! Será um crime? Quero endireitar isso aqui, quero que seja um lugar concorrido, e não estou fazendo isso só por minha causa, é igualmente por você e por nossa filha. Será que você não entende, Liliane? __ Não, não entendo – retrucou Liliane secamente. __ Se a única maneira de você melhorar de vida é sendo sem coração, então pode se arrumar sem minha ajuda. Um belo dia eu me canso e vou embora. Por isso pode ficar à vontade. – dizendo isso, ela tirou dos braços de Manu a criança, que tinha recomeçado a chorar, e correu para fora da cozinha. Durante algum tempo Nino não disse nada. Acendeu um cigarro, que ficou rodando nos dedos. Manu olhava para ele. Por fim disse: __ É. Eu sei que eles eram bons sujeitos. Eu até gostava deles. Sabe, Manu, eu fico com pena de verdade – mas que é que eu podia fazer? Os tempos mudaram. Após outro silêncio, ele tornou a falar: __ Afinal, quem sabe Liliane tenha razão. Desde que aqueles velhos camaradas deixaram de aparecer, o bar me parece diferente: frio, sabe como é? Eu mesmo já não me sinto bem ali. Honestamente, não sei o que é mais certo fazer. Mas, se hoje em dia todos agem assim, por que devo eu ser o único a fazer alguma coisa diferente? Ou você acha que eu devia?

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Com um movimento quase imperceptível, Manu acenou que sim. Nino olhou para ela, e também acenou com a cabeça. Depois ambos sorriram. __ Foi bom você ter vindo – disse Nino. __ Eu tinha esquecido completamente que nós costumávamos dizer: “Vá falar com Manu”, quando havia alguma dificuldade. Mas agora eu vou recomeçar a visitála, e vou levar Liliane. Depois de amanhã é nosso dia de folga e nós vamos aparecer lá. De acordo? __ De acordo – respondeu Manu. Então Nino deu-lhe um saco cheio de laranjas e maçãs, e Manu voltou para casa. No dia combinado Nino e sua mulher foram, de fato, visitar Manu, levando o bebê e uma cesta cheia de coisas gostosas. __ Imagine só, Manu – disse Liliane, radiante –, Nino foi procurar tio Ettore e os outros velhos – cada um deles –, desculpou-se e pediu que voltassem. __ É – continuou Nino com um sorriso, coçando a orelha. __ Isso é o fim da minha idéia de fazer do bar um local de mais classe, mas estou de novo gastando de lá. – Ele riu, e a mulher disse: __ Acho que vai dar tudo certo, Nino. Foi uma tarde esplêndida, e quando eles partiram prometeram voltar breve. Manu foi procurar todos os seus velhos amigos, um por um. Procurou o carpinteiro que tinha feito a mesinha e as cadeiras para ela. Procurou a mulher que lhe dera a cama. Enfim, procurou todos aqueles aos quais costumava ouvir, todos aqueles que, graças a ela, tinham se tornado mais esclarecidos, mais resolutos, ou mais felizes. Todos eles prometeram voltar de novo. Mas alguns não cumpriram a promessa, ou não puderam cumprir porque não tinham tempo. Entretanto, muitos voltaram, e tudo ficou sendo quase como era antes. Isso demonstrava que Manu estava interferindo nos planos dos homens cinzentos, e eles não iam permitir que ela fizesse isso.

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Poucos dias depois, numa manhã muito quente, Manu encontrou uma boneca nos degraus de pedra do antigo anfiteatro. Já havia acontecido de as crianças esqueceram, ou simplesmente largarem ali, um daqueles brinquedos caros com os quais eram impossíveis brincar, porém Manu não se lembrava de ter visto alguma criança com uma boneca assim; e ela teria forçosamente reparado, pois era uma boneca muito fora do comum. Era quase do tamanho da própria Manu, e tão bem-feita que quase poderia passar por um pequeno ser humano. Mas não parecia uma criança ou um bebê; era como uma moça elegante, ou um manequim de vitrina. Usava um vestido curto, vermelho, e sapatos de salto alto. Manu ficou olhando para ela, fascinada. Depois estendeu a mão e pegou a boneca, que, imediatamente, piscou os olhos, moveu os lábios e disse numa voz esganiçada: __ Bom dia. Eu sou Bibi, a boneca perfeita. Manu recuou, assustada, porém respondeu automaticamente: __ Bom dia. Meu nome é Manu. A boneca moveu novamente os lábios, dizendo: __ Eu sou sua. Toda gente tem inveja porque eu sou sua. __ Acho que você não é minha, não – retrucou Manu. __ Creio que alguém esqueceu e largou você aqui. Pegou a boneca e levantou-a. Os lábios tornaram a mover-se e ela disse: __ Eu gostaria de ter algumas coisas mais. __ Ah, é? – respondeu Manu, e refletiu um momento. __ Eu não sei se você gostaria das coisas que eu tenho. Mas espere um instante: vou mostrar, e você pode dizer se gosta de alguma delas. Carregando a boneca, passou pelo buraco no muro que dava para seu quarto. Puxou de sob a cama uma caixa cheia dos seus tesouros, e abriu-a diante de Bibi. __ Está aqui: isto é tudo o que eu tenho. Mas se você gostar de alguma coisa, é só dizer.

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E mostrou para a boneca uma pena de pássaro multicor, uma pedrinha com bonitos veios, um botão de metal dourado e um pedacinho de vidro colorido. Como a boneca não respondesse, Manu deu-lhe um cutucão. A voz esganiçada recomeçou: __ Bom dia. Eu sou Bibi, a boneca perfeita. __ Já sei – respondeu Manu. __ Mas, Bibi, você disse que gostaria de ter algumas coisas mais. Olhe, eu tenho uma linda concha cor-derosa – Você gostaria? __ Eu sou sua. Toda gente tem inveja porque eu sou sua. __ Sei, você já disse isso. Se você não gosta de nenhuma das minhas coisas, quem sabe nós podíamos inventar um brinquedo? Vamos? __ Eu gostaria de ter algumas coisas mais – repetiu a boneca. __ Eu não tenho nada mais – respondeu Manu. Carregou novamente a boneca e escalou a abertura no muro. Uma vez fora, colocou a boneca no chão e sentou-se em frente dela. __ Vamos fingir que você veio me visitar – sugeriu Manu. __ Bom dia. Eu sou Bibi, a boneca perfeita. __ Que prazer recebê-la em minha casa. De onde a senhora veio, madame? – falou Manu. __ Eu sou sua. Toda gente tem inveja porque sou sua. __ Tá bem, mas escute: se você continuar repetindo as mesmas coisas, nós não podemos brincar. __ Eu gostaria de ter algumas coisas mais – continuou a boneca, piscando os olhos. Manu

tentou

outra

brincadeira,

e

quando

não

deu

certo

experimentou outra e mais outra e mais outra. Mas nenhuma dava certo. Se a boneca não dissesse nada, Manu teria respondido por ela, e poderiam ter uma esplêndida conversa. Porém o simples fato de que Bibi podia falar estragava qualquer tentativa de conversar. Dali a pouco Manu começou a sentir uma coisa que nunca na sua vida havia sentido, e como era novidade levou algum tempo até identificar o que era – tédio. Manu sentiu-se desamparada. O que ela gostaria de fazer seria

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simplesmente largar ali a boneca perfeita e ir brincar de alguma outra coisa. Mas havia algo que não lhe permitia afastar-se do lugar, então ela ficou ali sentada, fitando a boneca que a olhava fixamente com seus olhos de vidro azul. Era como se as duas se tivessem hipnotizado mutuamente. Por fim Manu conseguiu desviar da boneca seu olhar, e assim fazendo teve um susto, pois ali pertinho estava um elegante automóvel cinzento que ela não ouvira chegar. No carro estava um senhor, vestido de um terno cor de teia de aranha e um chapéu-coco cinzento. Fumava um charutinho cinzento, e seu rosto também era da cor das cinzas. O homem já devia estar observando Manu há algum tempo, pois fez-lhe um cumprimento de cabeça e sorriu; e embora o dia estivesse tão quente que o calor reverberava no ar, de repente Manu sentiu um calafrio. O homem abriu a porta do carro, desceu e foi ao encontro da menina, carregando uma pasta cinza-aço. __ Que linda boneca você tem! – disse numa voz esquisita, sem entonação. __ Com certeza todas as suas amigas a invejam por isso. Manu sacudiu os ombros sem responder. __ Deve ter custado caro, não? – continuou o senhor cinzento. __ Não sei – murmurou Manu, meio sem jeito. __ Eu encontrei ela aqui. __ Não diga! – exclamou o homem. __ Você é a Favorita da Sorte. Manu não disse nada, apertando mais em torno do corpo seu largo paletó, pois estava ficando mais frio. Com um sorriso de seus lábios magros, o homem continuou: __ Devo dizer que você não me parece feliz com isso, menina. Manu sacudiu a cabeça. Subitamente parecia-lhe que toda felicidade fugira do mundo para sempre, ou melhor, que nunca existira felicidade e o que ela julgara ser felicidade fosse simplesmente imaginação sua. Ao mesmo tempo sentia alguma coisa que era como um alarme de perigo. __ Eu já estive observando durante algum tempo – continuou o senhor cinzento, – e parece-me que você não tem idéia de como brincar

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com uma boneca tão maravilhosa. Quer que eu lhe mostre a maneira certa? Manu olhou para ele com uma expressão de surpresa, e fez um sinal que sim. __ Eu gostaria de ter algumas coisas mais – disse de repente a boneca. __ Está ouvindo? Menina – prosseguiu o homem –, ela mesma até lhe ensina. É claro que você não pode brincar com uma boneca tão maravilhosa do mesmo jeito que com outra qualquer. Ela não foi feita para isso. Você tem sempre que ir lhe dando alguma coisa para poder brincar. Olhe para isso, menina. Abriu o porta-malas do carro: __ Em primeiro lugar, ela precisa de boa quantidade de roupas. Aqui, por exemplo, está um adorável vestido de noite para ela – pegou o vestido e jogou para Manu. __ E aqui um casaco de peles feito de mink verdadeiro, e aqui um pijama de seda, e uma roupa de tênis, e um conjunto para esquiar, e um maiô de banho, e uma roupa de montaria, e um penhoar, e outro vestido, e outro, e outro, e mais outro . . . Ia jogando uma coisa atrás da outra, formando uma pilha cada vez mais alta entre Manu e a boneca. __ Então?! – e tornou a esboçar aquele sorriso superficial: __ Com tudo isso você vai ser capaz de brincar durante muito tempo, não vai? Ou acha que depois de alguns dias vai perder a graça? Muito bem, nesse caso só o que você tem a fazer é arranjar mais algumas coisas para sua boneca. Tornou a se debruçar sobre o porta-malas do carro, e recomeçou a jogar coisas para Manu. __ Aqui, por exemplo, está uma bolsinha de pele de cobra verdadeira, e dentro um batonzinho de verdade e caixinha de pó-dearroz. E aqui uma maquininha de tirar retrato, e uma raquete de tênis, e isto aqui é uma televisão para boneca que funciona mesmo, e aqui uma pulseira e um colar e uns brincos, e um revólver de boneca, e umas meias de seda, e um chapéu com pluma, e um chapéu de palha, e um

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conjunto para jogar golfe, e um livrinho de cheques, e um vidrinho de perfume, e uns sais para banho, e loções para o corpo . . . Fez uma pausa e com o olhar examinou a expressão de Manu, que estava sentada no chão, no meio de todos aqueles objetos, como que paralisada. __ Está vendo? É muito simples. É só você ir arranjando sempre mais coisas, e assim nunca sentirá tédio. Mas talvez você pense que um dia Bibi, a boneca perfeita, terá tudo, e então virá o tédio. Não, menina, não há perigo. Olhe só, nós temos o companheiro para Bibi. Dizendo isso tirou do porta-malas um boneco. Era do mesmo tamanho de Bibi, e, como ela, perfeito em todos os detalhes, porém era uma rapaz. O homem cinzento colocou-o ao lado de Bibi, a boneca perfeita, e explicou: __ Este é Bubi. Também tem uma quantidade de coisas para ele. E, quando até isso ficar sem graça, nós temos uma amiga para Bibi, com roupas que só servem para ela. E Bubi também tem um amigo, e esse amigo tem outros amigos, de modo que você nunca ficará entediada, porque a coisa pode continuar indefinidamente, e restará sempre alguma coisa para ser desejada. Enquanto

falava

ia

tirando

do

porta-malas



que

parecia

inesgotável – boneca atrás de boneca, colocando-as em torno de Manu, que continuava sentada, sem se mexer, olhando para ele com uma expressão quase de pavor. __ Então? – indagou o homem, soltando baforadas do charuto. __ Agora você compreende como é que se brinca com essas bonecas? __ Compreendo – retrucou Manu, que estava tremendo de frio. O senhor cinzento acenou, satisfeito, e soltou outra baforada. __ Naturalmente, você gostaria de ter todas essas coisas lindas, não é? Muito bem, eu vou lhe dar isso tudo – não tudo de uma vez, é claro, mas aos poucos – e muito, muito mais ainda. E você não precisa fazer nada em troca. A única coisa é brincar do jeito que eu ensinei. Que tal?

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O homem cinzento sorria para Manu, esperando a resposta. Como ela continuasse em silêncio, só olhando para ele muito séria, ele acrescentou às pressas: __ E aí então você não vai mais precisar dos seus amigos, não é? Quando todas essas coisas lindas forem suas, e você ainda puder ganhar mais outras, vai ter muito com que se divertir, não é? E você ficará satisfeita, não é? Você quer mesmo ter essa boneca maravilhosa, não é? Manu sentia vagamente que tinha uma batalha pela frente, ou melhor, que já estava em pleno combate, embora sem saber o motivo da batalha nem contra quem estava combatendo. Mas, à medida que ouvia o visitante, ia sentindo, reforçada, a mesma impressão que tivera com a boneca. Ouvia a voz falando, ouvia as palavras ditas, mas não conseguia perceber quem é que estava falando. Sacudiu a cabeça. __ Como, como? – disse o senhor cinzento, erguendo as sobrancelhas. __ Você ainda não está satisfeita? Vocês, crianças de hoje, são mesmo difíceis . . . Poderia você me dizer que é que ainda está faltando nesta boneca perfeita? Manu olhou para o chão, refletindo. Depois disse baixinho: __ Acho que ninguém pode ter amor por ela. Durante algum tempo o homem não respondeu: fitava o espaço como se seus olhos fosse de vidro, como os da boneca. Por fim disse num tom mais do que frio, gelado: __ Isso não tem importância. Manu olhou-o bem de frente, encarando-o. O homem a assustava, principalmente porque o seu olhar gélido parecia esfriar tudo em torno; entretanto, ela sentia pena dele, embora não soubesse explicar por quê. __ Mas eu tenho amor por meus amigos – retrucou. O homem cinzento fez uma careta, como se tivesse um acesso de dor de dente, mas logo se controlou e, com um sorriso cortante como uma navalha, disse suavemente: __ Menina, acho que um dia desses nós precisamos ter uma conversa séria, para você aprender aquilo que é importante e aquilo que não é.

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Tirou do bolso um caderninho cinzento, e foi virando as páginas até encontrar o que buscava: __ Seu nome é Manu, não é? Manu acenou com a cabeça. O homem fechou com um estalo o caderninho, e foi se abaixando – disfarçando um gemido – até sentar-se no chão, ao lado de Manu. Durante algum tempo não disse nada, apenas soltou baforadas do charutinho, com ar pensativo. Afinal começou: __ Vamos conversar, Manu. Ouça com atenção o que eu vou dizer. Era isso que Manu vinha tentando fazer, desde o começo, mas era muito mais difícil ouvi-lo do que ouvir qualquer outra pessoa. Com outras pessoas ela tinha a impressão de penetrar-lhes o espírito, compreender o que elas estavam pensando, e sentir a maneira de ser delas. Mas com este visitante, era impossível. Cada vez que ele tentava, tinha a impressão de estar mergulhando de cabeça num vazio escuro, como se ali não houvesse ninguém. Até então nunca havia encontrado coisa assim. O cavalheiro cinzento começou a lição: __ A única coisa que importa na vida é o sucesso, é tornar-se alguém, é ter posses. Se você é um sucesso, é alguém, tem posses, tudo o mais vem automaticamente – amizade, amor, honras, e assim por diante. Agora, você me diz que tem amor aos seus amigos. Vamos examinar o caso com toda a imparcialidade. Soprou no ar alguns anéis de fumaça, e Manu enfiou os pés por baixo da saia, agasalhando-se o melhor possível dentro do paletó. __ A primeira questão que surge é esta: que é que seus amigos ganham, de fato, com a sua existência? Você é útil a eles? Não. Você os ajuda a progredir na vida, a ganhar mais dinheiro ou conquistar posições? Claro que não. Você os auxilia em seus esforços para poupar tempo? Ao contrário. Você os prejudica em tudo, você é feito uma pedra amarrada no pescoço, você impede o progresso deles na vida! Talvez você até agora não tenha percebido isso, Manu, mas você está prejudicando seus amigos pelo simples fato de existir. É, na verdade, e

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sem que seja essa sua intenção, você é inimiga deles. É isso que você chama ter amor? Manu não sabia o que responder. Nunca tinha olhado as coisas sob esse aspecto. Teve um momento de incerteza: quem sabe ele estava com a razão. __ Por isso – continuou o senhor cinzento – é que nós precisamos proteger seus amigos contra você. Se você gostar realmente deles, vai nos ajudar. Nós queremos que eles tenham sucesso. Nós somos os verdadeiros amigos. Não podemos ficar quietos, olhando, enquanto você os afasta de tudo aquilo que importa. Nós temos que agir para que você não se meta com eles, e é por isso que estamos dando a você todas essas coisas lindas. __ Quem é nós? – perguntou Manu, com os lábios trêmulos. __ Nós, do Banco Poupa-Tempo. Eu sou o agente BLW/553/c. Pessoalmente, não desejo a você nada de mal, porém com o Banco Poupa-Tempo não se brinca. Nesse momento Manu lembrou-se do que Beppo e Nicolau haviam dito a respeito de a poupança do tempo ser mania contagiosa, e teve a horrível suspeita de que aquele senhor cinzento tinha algo a ver com isso. Como gostaria que seus dois amigos estivessem ali a seu lado . . . Nunca se sentira tão sozinha. Apesar disso, resolveu não se deixar assustar, então apelou para toda a sua coragem, mergulhando de cabeça para o fundo da escuridão vazia atrás da qual o homem cinzento se tinha escondido. O homem, com o canto do olho, não a perdia de vista. A mudança de sua expressão não lhe escapou, e, sorrindo ironicamente, enquanto acendia um novo charuto no toco do outro, disse: __ Não adianta resistir. Você não é parada para nós. Manu agüentou firme. __ Não há ninguém que tenha amor por você? – sussurrou. O homem cinzento contorceu-se dolorosamente, e de repente pareceu encolher. Numa voz sem timbre, como feita de cinzas, respondeu:

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__ Devo dizer que nunca encontrei ninguém como você, palavra que não, embora conheça muita gente. Se houvesse mais pessoas como você, nós em breve teríamos de fechar o Banco Poupa-Tempo, e nos desmancharíamos no nada – pois com o que iríamos nos sutentar? Parou de repente. Fitava Manu, e parecia estar lutando contra alguma coisa que não podia entender e com qual não sabia lidar. Seu rosto tornou-se mais cinza. Quando recomeçou a falar, foi como se o fizesse contra a sua vontade, como se as palavras jorrassem espontaneamente, sem que tivesse forças para impedir. Seus traços se tornavam cada vez mais desfigurados pelo horror daquilo que lhe estava acontecendo. E então, por fim, Manu pôde ouvir sua verdadeira voz, se a voz viesse de muito longe. – Ninguém pode saber que nós existimos, ninguém pode descobrir o que estamos fazendo. Tomamos o cuidado de fazer com que ninguém nunca se lembre de nós . . . pois é só enquanto somos desconhecidos que podemos fazer nosso negócio . . . É um negócio melancólico, esse de roubar o tempo dos outros em horas, em minutos, em segundos . . . pois todo o tempo que eles poupam está perdido para eles... Nós nos apoderamos desse tempo . . . o entesouramos . . . precisamos dele... nós o cobiçamos. Vocês, humanos, não sabem o que o tempo vale! Mas nós sabemos, e estamos sugando vocês . . . e precisamos mais . . . e mais . . . porque nós somos cada vez mais numerosos . . . mais e mais . . . – As últimas palavras haviam saltado da garganta do homem como um estertor sinistro. Ele apertou as duas mãos sobre a boca, os olhos saltando fora das órbitas enquanto encarava fixamente Manu. Após um momento, pareceu emergir de uma espécie de transe. Gaguejou: __ Que que a-aconteceu? V-você a-aí escutando? Eu estou doente, e você é que me fez ficar doente! Depois mudou para um tom persuasivo: __ Eu disse uma porção de asneiras. Esqueça, menina. Você precisa também se esquecer de mim, como todo mundo se esquece.

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Precisa! Precisa! – e agarrou Manu. Ela movia os lábios mas não conseguia falar. De repente, o homem se levantou de um salto, olhou para trás como se estivesse sendo perseguido, agarrou sua pasta cinza e correu para o carro. Aconteceu então algo muito estranho. Como uma explosão às avessas, todas as bonecas e seus pertences, que estavam espalhadas por ali, voaram para dentro do porta-malas do carro, cuja tampa bateu, fechando-se, e o carro partiu roncando, erguendo pedregulhos pelo caminho. Manu continuou sentada no mesmo lugar durante muito tempo, tentando compreender aquilo que acabara de ouvir. Pouco a pouco foi passando aquele frio horrível que sentia, e tudo foi se tornando mais claro. Ela não esqueceu nada, porque ouvira a verdadeira voz do homem cinzento. Uma leve espiral de fumaça subia da grama ressecada, a seus pés. O toco do charuto do visitante, caído ali, ia se apagando, virando cinza.

8. Muitos sonhos e algumas dúvidas Na tarde daquele dia Guido e Beppo apareceram. Encontraram Manu sentada à sombra do muro, ainda meio pálida e aflita. Sentaramse então junto dela e, inquietos, indagaram do que se tratava. Manu, num tom hesitante, começou a contar o que acontecera. Acabou repetindo palavra por palavra a conversa que tivera com o homem cinzento, e enquanto ouvia, o velho Beppo não despregava os olhos de Manu, com ar muito sério, as rugas na sua testa tornando-se mais profundas. Não disse nada, mesmo quando Manu acabou de contar. Guido, ao contrário, escutara, mostrando-se mais animado. Seus olhos começaram a brilhar, como acontecia quando ele se entusiasmava com uma de suas histórias. Pôs a mão no ombro de Manu, dizendo: __ Agora, Manu, chegou a hora da nossa vitória! Você descobriu uma coisa que até agora ninguém sabia direito o que era. Assim vamos

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poder salvar não só os nossos velhos amigos, mas a cidade inteira! Só nós três, Beppo, eu e você. Dizendo isso, ele se ergueu de um pulo, e estendeu os braços. Estava imaginando uma vasta multidão à sua frente, todos o aclamando como libertador. __ Sim – respondeu Manu, ligeiramente perplexa, – mas como é que vamos poder fazer isso? __Que é que você quer dizer com esse como? – perguntou Guido, meio irritado. __ Quero saber como é que nós podemos derrotar os homens cinzentos. __ Ah, bom – retrucou Guido –, no momento é claro que eu também não sei exatamente como. Vamos ter que estudar o assunto. Mas uma coisa é evidente: agora que nós sabemos que eles existem e como estão agindo, precisamos combatê-los – isto é, a não ser que você tenha medo! Manu acenou com a cabeça, timidamente: __ Eu acho que eles não são gente como nós. O homem que veio me ver tinha algo diferente. E o frio é terrível. E se existem muitos deles, isso é mesmo um perigo. Tenho medo, sim. __ Ora, bobagem! – gritou Guido, entusiasmado. __ A coisa é perfeitamente simples. Esses senhores cinzentos só podem levar avante seus negócios sinistros enquanto ninguém os identificar. Foi o seu próprio visitante quem deixou escapar esse segredo. Então, aí está: só o que temos a fazer é ter certeza de que as pessoas os reconhecerão, pois quem os identificar uma vez poderá lembrar-se deles, e quem se lembrar poderá reconhecê-los imediatamente. Assim eles não poderão nos fazer mal algum. Estamos ao abrigo dos ataques. __ Você acha? – perguntou Manu, meio duvidosa. __ Claro que acho! – continuou Guido, os olhos brilhando. __ Se não fosse assim, seu visitante não teria partido em tal disparada. Eles tremem só de pensar em nós.

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__ Mas pode ser que a gente não consiga encontrá-los. Talvez eles se escondam de nós. __ Isso pode muito bem acontecer – concordou Guido. __ Nesse caso nós temos é que atraí-los para fora do seu esconderijo. __ De que jeito? Acho que eles são muito espertos . . . __ Nada mais simples! – E Guido estourou de tanto rir. __ Vamos pegá-los com a isca adequada a eles. Se a gente apanha camundongo com toucinho, é com tempo que temos de pegar os ladrões de tempo. E isso temos muito. Por exemplo, você poderia ficar sentada aqui, fazendose de isca para atraí-los, e então Beppo e eu saltaríamos de nosso esconderijo e agarraríamos os tais homens. __ Mas eles já me conhecem – objetou Manu. __ Ora, não importa – continuou Guido, fervilhante de novas idéias. __ Basta a gente fazer alguma coisa. O homem cinzento falou num Banco Poupa-Tempo. Deve ser um prédio, e certamente deve ficar na cidade, e só o que temos a fazer é encontrá-lo. E não será difícil, pois garanto que é um edifício muito esquisito, como um cofre gigantesco feito de concreto. Já estou até imaginando. Quando o encontrarmos, vamos entrar, cada um de nós com uma pistola automática em cada mão, e eu falo: “Entreguem já todo o tempo roubado!” __ Mas nós não temos pistolas . . . – interrompeu Manu, aflita. __ Então vamos sem pistolas – respondeu Guido, grandiloqüente. __ Aí eles vão ficar ainda mais assustados. Nossa chegada já vai bastar para espalhar o pânico . . . __ Seria uma boa idéia ter mais gente, e não só nós três, para encontrarmos mais depressa o Banco Poupa-Tempo. __ A idéia é ótima – respondeu Guido. __ Nós devíamos mobilizar todos os nosso velhos amigos, e todas as crianças que costumam vir aqui. Proponho partirmos imediatamente, nós três, e cada um de nós conte o caso a cada pessoa que encontrar, e que cada uma passe adiante as notícias para outras. Vamos todos nos encontrar aqui amanhã, às três horas, para um grande conselho.

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Partiram imediatamente. Manu numa direção, Beppo e Guido em outra. Depois de terem caminhado um pouco, Beppo – que até então havia mantido o silêncio – de repente parou. __ Escute, Guido. Estou preocupado. __ E por quê? Beppo fitou-o por alguns momentos antes de dizer: __ Eu acredito em Manu. __ E daí? – indagou Guido, surpreso. __ Quero dizer, acredito que é verdade aquilo que ela nos contou. __ É claro. Mas por que está preocupado? __ Porque, se o que Manu contou é verdade, precisamos pensar muito, e com cuidado, antes de fazer qualquer coisa. Se é realmente questão de lidar com um bando secreto de criminosos, só podemos enfrentá-los quando estivermos bem preparados. Se os desafiarmos simplesmente, talvez estejamos colocando Manu numa situação muito perigosa. Eu não estou preocupado com você, nem comigo, mas, se envolvermos crianças no caso, elas estarão correndo perigo. __ Ora, bobagens! – exclamou Guido rindo – Você está sempre preocupado com alguma coisa. É claro que quanto mais gente tivermos conosco, melhor. __ Eu acho que você não acredita que é verdade o que Manu contou – retrucou Beppo, muito sério. __ Depende do que você entende por verdade. Beppo, você não tem imaginação. O mundo todo não passa de uma grande história, e nós todos somos parte dessa história. Seja como for, eu acredito realmente em tudo o que Manu nos contou, creio tanto quanto você. Beppo não teve nada para dizer, mas as palavras de Guido não afastaram seus receios. Quando se separaram, partindo em direções opostas para avisar todos os amigos e todas as crianças sobre a reunião do dia seguinte, Guido ia de coração leve, Beppo sentia o seu muito pesado. Naquela noite Guido sonhou com sua futura fama como libertador da cidade. No sonho viu-se elegantemente trajado, com Beppo de fraque

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e Manu num vestido de seda branca. Uma comissão de cidadãos colocou correntes de ouro no pescoço dos três, e foram coroados com folhas de louro. Ouvia-se música triunfal, e a cidade organizou, em homenagem aos seus salvadores, um desfile à luz de tochas, mais longo e magnífico do que jamais tinham visto. Enquanto Guido sonhava, o velho Beppo estava deitado na cama sem conseguir dormir. Quanto mais refletia sobre o assunto, mais claramente discernia o perigo. Naturalmente não podia deixar Manu e Guido se arriscarem sozinhos – ele iria junto, fosse qual fosse o desfecho –, mas devia ao menos tentar segurá-los. No dia seguinte, às três horas da tarde, nas ruínas do antigo anfiteatro ressoavam gritos entusiastas e o borburinho de muitas vozes. Infelizmente, os amigos adultos de Manu não tinham comparecido (exceto Guido e Beppo, é claro), mas ali estavam cinqüenta ou sessenta crianças, vindas de perto e de longe, umas ricas, outras pobres, algumas bem-falantes, outras encabuladas, algumas grandes e outras pequenas. Algumas, como Maria, traziam pela mão, ou no colo, um irmão ou irmãzinha, e os pequeninos com o dedo na boca, arregalavam os olhos para aquela reunião extraordinária. Naturalmente Gordon, Paulo e Mássimo ali se achavam, assim como

todas

as

crianças

que

tinham

começado

a

freqüentar

recentemente o anfiteatro, e estavam especialmente interessados no assunto em discussão. O meninozinho do rádio transístor também tinha aparecido, embora desta vez sem o transístor. Sentou-se ao lado de Manu; logo de saída disse-lhe que seu nome era Cláudio e que estava alegre por ter vindo. Quando se tornou evidente que não chegariam mais retardatários, Guido Guia levantou-se e com gesto grandiloqüente pediu silêncio. A tagarelice cessou e um silêncio cheio de expectativa caiu sobre o anfiteatro. __ Amigos – começou Guido em voz alta –, vocês todos sabem mais ou menos do que se trata, conforme avisamos, quando foram convidados para o nosso conselho secreto. Até agora, mais e mais

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pessoas têm-se visto cada vez menos, apesar de tentarem poupar o tempo de todo modo possível. Mas, como vocês verão, é justamente o tempo que procuraram poupar que foi perdido. Como pôde acontecer tal coisa? Manu descobriu isso. “O tempo das pessoas tem sido positivamente roubado por um bando de ladrões de tempo, e precisamos da ajuda de vocês para acabar com essa quadrilha de criminosos de sangue-frio. Se vocês todos estão dispostos a colaborar, a escura sombra que se estende pesadamente sobre nossa gente poderá ser afastada de um golpe. Não acham que é uma coisa pela qual vale a pena lutar?” fez uma pausa e as crianças bateram palmas. __

Mais

adiante



continuou

Guido –

discutiremos

o

que

pretendemos fazer. Primeiro, porém, Manu vai contar o encontro que teve com um desses bandidos e como ele próprio se denunciou. __ Um momento – disse o velho Beppo, erguendo-se. __ Ouçam, crianças! sou contra Manu falar. Ela não deve fazer isso, se ela falar, vai arriscar-se – e também a vocês todos – ao maior perigo . . . __ Oh! Deixe que ela fale! – gritaram várias crianças. __ Deixe Manu falar! Outras vozes juntaram-se a essas, e por fim bradavam todos em coro: __ Manu! Manu! O velho Beppo sentou-se, tirou os óculos e esfregou os olhos. Manu levantou-se, perplexa, sem saber a qual desejo satisfazer; de Beppo ou das crianças. finalmente, começou sua narração, que os pequenos ouviam encantados. Quando terminou, seguiu-se pesado silêncio. Enquanto Manu falava, um estranho constrangimento se apoderou deles. Não supunham que aqueles ladrões de tempo fossem tão sinistros. Um pequenino começou a soluçar alto e foi depressa acalmado. __ Bem! – disse Guido, rompendo o silêncio – quem se arrisca a unir-se a nós na luta contra os homens cinzentos?

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__ Por que Beppo não queria que Manu contasse o que aconteceu com ela? – perguntou Franco. Guido sorriu, respondendo com segurança: __ Beppo pensa que os homens cinzentos consideram inimigos todos os que conhecem seu segredo e hão de persegui-los. Eu, porém, estou certo de que o contrário é que é verdade: todo aquele que conhece esse segredo se acautela e fica precavido contra eles, de modo que os homens cinzentos não podem prejudicá-lo . . . isso é óbvio, não é? Você tem de concordar, Beppo! Mas Beppo apenas sacudiu vagarosamente a cabeça, e as crianças ficaram silenciosas. Guido tomou de novo a palavra: __ De qualquer forma, uma coisa é certa: temos de ficar unidos seja para o melhor ou para o pior, e sermos cautelosos, sem deixar que nada nos assuste. É por isso que torno a perguntar: quem quer juntar-se ao nosso grupo? __ Eu! – disse Cláudio, levantando-se, um pouco pálido. Outros seguiram seu exemplo, meio hesitantes a princípio, depois com crescente entusiasmo. Afinal, todos os presentes aderiram. __ E agora, Beppo – perguntou Guido apontando para as crianças –, que diz você? __ Muito bem! – respondeu Beppo, inclinando tristemente a cabeça. __ Eu estou com vocês, é claro! __ Certo! – e Guido voltou-se de novo para as crianças. __ Vamos discutir nosso plano de ação. Quem sugere alguma coisa? Todos puseram-se a refletir, e Paulo, o menino de óculos, falou: __ Como é que eles fazem? Quero dizer, como é que se pode realmente roubar o tempo? Como funciona isso? __ Sim! – gritou Cláudio – afinal que é o tempo? Ninguém soube responder. __ De qualquer forma – disse Paulo, tirando os óculos – primeiro que tudo, temos de encontrar um cientista para nos ajudar. De outro modo não conseguiremos nada.

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Do lado mais distante da arena, ergueu-se Maria com a irmãzinha nos braços e disse: __ O tempo talvez seja alguma coisa como os átomos. Afinal de contas, existem hoje máquinas capazes de anotar fatos nos quais uma pessoa tenha apenas pensado – vi isso na televisão. E agora há especialistas em tudo. __ Tenho uma idéia – gritou Mássimo, o menino gordo de voz estridente. __ Quando se faz um filme, tudo se fixa na película. E quando se usa um gravador, tudo se grava na fita. Talvez exista um aparelho para registrar o tempo. Se soubermos onde encontrar um, bastará fazer voltar atrás a fita e teremos de novo o tempo! __ Qual, você com seus cientistas! – exclamou Franco. __ Não poderíamos confiar neles! Supondo que achássemos um que conhecesse tudo sobre o assunto, como havíamos de saber se ele não estaria mancomunado com os ladrões de tempo! Aí sim é que ficaríamos numa esrascada! A objeção pareceu válida. Nisso uma menina, visivelmente bem-educada, pôs-se de pé de declarou: __ Acho que a melhor coisa a fazer é ir à polícia e contar tudo! __ Que pode fazer a polícia? – protestou Franco. __ Não de trata de ladrões comuns. E de duas uma: ou a polícia os conhece há muito, e nesse caso á óbvio ser incapaz de combatê-los, ou não sabe coisa alguma dessa trapalhada, e não dará nenhuma solução. É o que eu penso. Seguiu-se um silêncio, misto de frustração e desânimo. __ Mas temos de fazer alguma coisa! – disse afinal Paulo – e devemos agir o mais depressa possível, antes que os ladrões fiquem sabendo do nosso plano. Novamente, Guido ergueu-se e começou a falar: __ Meus queridos amigos, já examinei a questão a fundo. Já formulei centenas de planos, rejeitando todos até encontrar um, capaz de atingir o nosso alvo – desde que fiquemos unidos, é claro. Eu quis

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apenas saber de algum de vocês teria uma idéia melhor. Pis bem, agora vou dizer-lhe o que vamos fazer. – Calou-se por um momento e olhou demoradamente para os ouvintes, ao redor da arena. Havia muito tempo que não contava com tão numerosa assistência. __ Como vocês sabem – continuou – a força dos homens cinzentos está no fato de poderem agir em segredo, sem serem reconhecidos. Portanto, o meio mais simples e eficiente para torná-los inofensivos é cada um conhecer a verdade a respeito deles. Para conseguir isso, faremos uma imensa demonstração pública, na qual todas as crianças tomarão parte. Vamos pintar cartazes e faixas, desfilaremos pelas ruas e convidaremos todo o povo da cidade a vir a este velho anfiteatro a fim de lhe contarmos tudo. Isso despertará extraordinário entusiasmo; milhares de pessoas virão aqui, e, quando a imensa multidão estiver reunida, revelaremos o terrível segredo. Então, no mesmo instante, o mundo se transformará! Ninguém mais poderá roubar tempo de outro. Cada qual terá o quanto necessita, pois daí em diante haverá de novo tempo suficiente para todos. Seremos capazes de realizar isso, meus amigos, se ficarmos unidos e tivermos uma boa vontade firme. Será que temos? A resposta foi uma enorme aclamação de júbilo. __ Concluindo, pois – terminou Guido –, declaro por unanimidade que resolvemos convidar a cidade inteira para vir ao velho anfiteatro no próximo Domingo à tarde. Até lá, temos de conservar o mais absoluto segredo quanto ao nosso plano. Entendido? É agora, meus amigos, mãos à obra! Nos dias seguintes, reinou secreta mas febril atividade entre as crianças. surgiram potes de tinta, pincéis, papel, pepelão, cola e tudo o mais necessário, sendo mais prudente que ninguém perguntasse de onde provinha aquele material. Algumas crianças fizeram cartazes e faixas enquanto outras, que tinham boa letra, imaginaram e escreveram frases bem atraentes como estas, por exemplo:

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POUPAR TEMPO PARA QUEM? POR QUE VOCÊ NÃO TEM MAIS TEMPO? NÓS, AS CRIANÇAS, LHE CONTAREMOS! VENHA AO ANFITEATRO NO PRÓXIMO DOMINGO ÀS TRÊS HORAS VENHA E SABERÁ POR QUE O TEMPO JÁ NÃO É MAIS SEU! NÓS LHE DIREMOS PARA ONDE ELE FUGIU! ÀS TRÊS DA TARDE, DOMINGO, NO ANFITEATRO Cada cartaz anunciava a hora e o lugar do encontro. Afinal, estando tudo pronto, as crianças se colocaram em linha no anfiteatro, tendo à frente Guido, Beppo, Manu, e numa longa fila dirigiram-se para a cidade, empunhando cartazes e faixas. Faziam ao mesmo tempo um barulhão com apitos e tampas de panelas, gritavam as frases atraentes e entoavam uma canção especialmente composta por Guido para a oportunidade: “Cuidado, minha gente, ouça nosso aviso, escute a verdade, ladrões estão roubando o seu precioso tempo! Cuidado, minha gente, ouça o nosso aviso: domingo às três da tarde, saberão como livrar-se de ladrões bem-disfarçados!” Na verdade, havia mais vinte e sete versos que não é preciso citar aqui. Uma ou duas vezes, a polícia interveio para dispensar os manifestadores, quando a passeata interrompia o trânsito. Mas as crianças não desanimavam: reuniam-se em outro lugar e começavam tudo de novo. Fora isso, nada ocorreu de maior importância, e apesar da

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mais aguda vigilância não conseguiram descobrir nenhuma pista dos homens cinzentos. Vendo o desfile, muitas outras crianças, que até então nada sabiam a respeito, aderiram à marcha, crescendo seu número a centenas ou até milhares. De toda a parte, na grande cidade, crianças afluíam agora pelas ruas, numa interminável procissão, convidando os adultos para a importante assembléia que deveria mudar a face do mundo.

9. Uma boa assembléia que não acontece e outra má que se realiza A hora marcada chegara e tinha passado. Passou, sem que nenhum dos convidados tivesse aparecido. De fato, os adultos, especialmente visados, mal notaram a passarela das crianças. Assim havia sido tudo em vão. O sol vermelho e resplandecente, num mar de nuvens arroxeadas, já começava a declinar no horizonte. Seus raios douravam agora apenas os últimos degraus do anfiteatro, nos quais, durante horas, centenas de crianças estiveram sentadas, numa longa espera. Não se ouvia mais nenhum burburinho de vozes, nenhuma risada alegre. Ali estavam elas agora, tristes e silenciosas. As sombras alongavam-se rapidamente. Em breve seria noite e as crianças começaram a tiritar, pois o tempo esfriara muito. O relógio de uma igreja distante bateu oito pancadas. Não haviam mais nenhuma dúvida – toda aquela iniciativa resultara em completo fracasso. Algumas crianças se levantaram e saíram silenciosamente, logo acompanhadas

por

outras.

Ninguém

proferia

uma

palavra.

desapontamento fora demasiado grande. Afinal, Paulo chegou-se a Manu: __ Não adianta esperar mais. Não vem ninguém mesmo!

O

80

Com essas palavras, foi-se embora. Em seguida, Franco aproximou-se, declarando: __ Não se pode fazer nada! É inútil contarmos com os adultos. Tivemos a prova hoje. Aliás, eu já não confiava neles, e agora não quero mais saber de gente grande. Dizendo isso, saiu, seguido por muitos companheiros. Por fim, quando escureceu de todo, as crianças que ainda ali se achavam perderam toda a esperança e partiram também. Manu ficou sozinha, com Beppo e Guido. Após alguns instantes, o velho varredor de rua levantou-se. __ Você já vai? – perguntou Manu. __ Preciso ir – respondeu Beppo –, puseram-me em serviço extra. __ Mas à noite? __ É! Só por essa vez. Estão nos mandando descarregar caminhões de entulho nos depósitos de lixo. Tenho de ir agora para lá. __ Mas é Domingo! E você nunca teve de fazer isso antes. __ Não; mas disseram que é só por essa vez, porque de outra forma nunca conseguiram acabar o trabalho. Dizem que é por falta de pessoal. __ Que pena! – suspirou Manu. __ Gostaria que você ficasse aqui hoje! __ Eu também. Não tenho vontade nenhuma de ir trabalhar, mas tenho de ir. Então, boa noite e até amanhã! – Montou na velha bicicleta e pedalou, desaparecendo na escuridão. Guido parecia distraído, assobiando uma toada melancólica. Assobiava lindamente, e Manu o ouvia, quando ele parou de repente e disse: __ Também devo ir-me embora. Hoje é Domingo, e trabalho como guarda-noturno. Não contei que é essa a minha profissão atual? Já ia quase me esquecendo. Manu olhou para ele com espanto e nada respondeu.

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__ Não fique desanimada porque nosso plano não deu certo – continuou Guido. __ Eu contava com resultado muito diferente! Mas não importa, assim mesmo foi divertido, muito divertido! E como Manu continuasse em silêncio, Guido acariciou-lhes os cabelos, tentando consolá-la: __ Não leve isso tão a sério, Manu! Amanhã as coisa podem mudar! Vamos pensar em algo novo . . . numa nova história, não é? __ Mas não se tratava apenas de uma história – respondeu Manu baixinho. Guido pôs-se de pé: __ Sim, eu sei, mas falaremos disso amanhã, está bem? E está na hora de você ir para a cama. Sem mais, partiu assobiando sua melancólica toada. Manu permaneceu sentada sozinha no grande anfiteatro de pedra. A noite não tinha estrelas e o céu estava carregado de nuvens. Começou a soprar uma

brisa

esquisita,

não

era

um

vento

forte,

mas

soprava

constantemente, trazendo um frio estranho. Era, por assim dizer, uma brisa cinzenta. Em certo lugar, bem distante da grande cidade, havia um gigantesco depósito de lixo. Verdadeiras montanhas de cinzas, vidros quebrados, latas, invólucros de plástico, colchões velhos, caixas de papelão, tudo quanto a grande cidade joga ali se achava, até que aos poucos fosse levado aos colossais incineradores. Até tarde, pela noite adentro, Beppo e seus companheiros de trabalho com grandes pás tiravam o lixo dos caminhões, que de faróis acesos esperavam em fila para serem descarregados. Logo que um se esvaziava, outro o substituía imediatamente. __ Depressa, depressa, pessoal! – era o grito que se ouvia sem cessar. __ Vamos, andem com isso, ou não acabaremos nunca! Beppo jogava pá sobre pá, sem descansar um instante, e sua camisa já estava grudada ao corpo de tanto suor. Finalmente, lá pela meia-noite, o serviço terminou.

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Além de velho, Beppo não era muito forte e sentiu-se exausto. Sentou-se num balde de plástico virado, procurando tomar fôlego. __ Oi Beppo! – gritou um dos companheiros. __ Vamos pra casa! Você não vem? __ Daqui a pouco – respondeu Beppo, pondo a mão no coração, que começava a doer. __ Que é que há? Está sentindo alguma coisa, meu velho? – perguntou outro. __ Estou bem – disse Beppo. __ Podem ir! Só vou descansar aqui mais um instante. __ OK! – gritaram os homens. __ Boa noite! – E foram-se embora. Estava tudo quieto. Apenas os ratos remexiam o lixo, guinchando de vez em quando. Beppo deitou a cabeça nos braços e adormeceu. Foi subitamente acordado por uma rajada de vento frio. Não sabia quanto tempo teria dormido, mas olhou em torno e ficou logo inteiramente desperto. Em cada montanha de lixo, achavam-se os homens cinzentos, em elegantes ternos, chapéu-coco na cabeça, pasta cinza-aço nas mãos e pequenos charutos cinzentos entre os lábios. Estavam todos de pé, silenciosos, com o olhar fixo no cimo do mais alto monte de lixo, onde havia uma espécie de cátedra de juiz, à qual estavam sentados três homens, que, aliás, em nada mais se distinguiam dos outros. No primeiro momento, Beppo ficou assustado. Receava ser descoberto e sabia, sem sombra de dúvida, que nada tinha a fazer ali. Logo, porém, observou que os homens não desviavam os olhos do tribunal, como se estivessem hipnotizados. Talvez nem pudessem ver Beppo, ou pensassem que ele fossem apenas uma coisa jogada fora. Decidiu pois ficar ali mesmo, absolutamente quieto. A voz do homem dentro do tribunal quebrou o silêncio: __ Que o agente BLW/553/c se apresente diante da Suprema Corte. A ordem foi repetida mais abaixo e ressoou como um eco distante. Abriu-se então caminho entre a multidão e um homem subiu lentamente

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ao cimo do monte de lixo. Nada o diferenciava dos demais, a não ser que seu rosto cinzento se tornara quase branco. Chegou por fim à frente do tribunal. __ O senhor é o agente BLW/553/c? – perguntou o homem do centro. __ Exato. __ Desde quando está trabalhando para o Banco Poupa-Tempo? __ Desde o meu princípio. __ Isso é obvio. Poupe-nos essas observações desnecessárias. Quando começou a existir? __ Há onze anos, três meses, seis dias, oito horas, trinta e dois minutos e – neste preciso momento – dezoito segundos. Embora esse diálogo se realizasse baixinho e a grande distância, o velho Beppo não perdia uma palavra. O homem do centro continuou inquirindo: __ O senhor está ciente de que considerável número de crianças desta cidade desfilaram carregando faixas e cartazes por toda a parte, e conceberam até o monstruoso plano de convidar todos os moradores para uma assembléia na qual pretendiam esclarecer o auditório sobre nossa atividades? __ Estou ciente disso – respondeu o agente __ Como justifica o fato de essas crianças saberem realmente tudo a nosso respeito e nossas diligências? – prosseguiu o juiz, implacável. __ Não posso absolutamente justificá-lo – disse o agente. __ Mas, se me for permitida uma observação, lembro à Suprema Corte que conseguimos com facilidade tornar a projetada assembléia nula e sem efeito, simplesmente não deixando às pessoas tempo para dela participar. E sugiro à Suprema Corte que não dê a esse caso mais importância do que merece: trata-se apenas de uma brincadeira infantil. Mesmo que a reunião tivesse se realizado ao auditório, exceto alguma tola história inverossímil. Na minha opinião, deveríamos ter deixado a assembléia se realizar, com o fim de . . .

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__ Prisioneiro, cale-se! – interrompeu severamente o homem do tribunal. __ O senhor sabe onde se encontra? O agente esmoreceu e murmurou apenas: __ O senhor não se acha diante de uma corte humana – prosseguiu o juiz –, mas perante os seus pares. Sabe perfeitamente que é impossível enganar-nos. Por que tenta fazê-lo? __ É . . . é um vício da profissão – gaguejou o acusado. __ Quanto à maior ou menor importância a ser dada ao plano das crianças – continuou o juiz –, deixe isso à decisão dos chefes. O prisioneiro sabe muito bem que nada, nem pessoa alguma, representa maior perigo para a nossa obra do que a infância. __ Sim, eu sei – confessou humildemente o réu. __ As crianças são nossas inimigas naturais – declarou o juiz. __ Se não fossem elas, há muito tempo que toda a humanidade estaria em nosso poder. É muito difícil persuadir crianças a poupar tempo do que adultos. Por isso temos uma lei rigorosa: Só tratar com criança em última instância. O prisioneiro conhece essa lei? __ Sim, sem dúvida, senhor – murmurou o acusado, afegante. __ Não obstante, temos prova irrefutável de que um de nós – repito, um de nós – não só falou com uma criança, como nos traiu contando a verdade a nosso respeito – afirmou o juiz. __ O prisioneiro saberá por acaso qual de nós fez isso? __ Fui eu – replicou o agente BLW/553/c, inteiramente perturbado. __ E qual o motivo para transgredir nossa rigorosa lei? – indagou o juiz. O réu tentou se defender: __ Como essa criança tem notável influência sobre as pessoas, dificultando muito o nosso trabalho, agi com a intenção de servir aos interesses do Banco Poupa-Tempo. __ Suas intenções não nos interessam – retrucou o juiz com gélida indiferença. __ Só levamos em conta as conseqüências. E, no seu caso, agente BLW/553/c, estas foram desastrosas: não só não ganhamos tempo algum, como ainda por cima fomos traídos! Alguns de nossos

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segredos vitais foram revelados a uma criança. O acusado reconhece isso? __ Reconheço – disse o agente baixando a cabeça. __ Então, confessa-se culpado? __ Sim, mas peço à Suprema Corte que leve em consideração as circunstâncias atenuantes. Fiquei verdadeiramente como que sob a ação de um feitiço: a maneira como aquela criança me ouviu, lisonjeou-me, arrancando todos os meus segredos. Não posso explicar como isso aconteceu, mas juro que foi assim. __

Suas

desculpas

não

apresentam

o

mínimo

interesse:

circunstâncias atenuantes não têm para nós valor algum. Nossas leis são invioláveis e não fazemos exceção. Contudo, vamos dirigir nossa atenção para essa criança notável. Como é o nome dela? __ Manu. __ Quem é ela? __ Uma menina. __ Onde mora? __ Nas ruínas de um velho anfiteatro. __ Bem – disse o juiz, escrevendo tudo no seu caderninho de notas. __ O réu pode ficar certo de uma coisa: essa criança não nos prejudicará mais. Usaremos todos os recursos possíveis para essa finalidade. Que isso lhe traga algum consolo, pois vamos prosseguir para chegarmos à sentença que o espera. O prisioneiro começou a tremer e murmurou a custo: __ Qual é a sentença? Os três homens do tribunal juntaram as cabeças, segredando algo entre eles, fizeram menção de estar de acordo, e do centro voltou-se para o réu declarando: __ O veredicto unânime que recai sobre o agente BLW/553/c é o seguinte: é acusado de crime de alta traição. Ele próprio admitiu a culpa. A sentença determinada por nossa lei é que lhe seja imediatamente retirado todo o tempo.

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__ Piedade! Piedade! – clamou o réu. Mas dois homens, que se achavam de pé ao seu lado, arrancaram a pasta cinza-aço de suas mãos e o charuto de sua boca. No momento exato em que o criminoso perdeu seu charutinho, começou a tornar-se cada vez mais transparente. Seus gritos foram se enfraquecendo mais e mais, e ali estava ele com as mãos cobrindo o rosto, dissolvendo-se literalmente em nada; por fim, era apenas um punhado de cinzas redemoinhando ao vento. E também essas logo sumiram. Todos os homens cinzentos – juízes e testemunhas – partiram em silêncio. Mergulharam na escuridão e somente uma brisa cinza ficou flutuando sobre os lúgubres montes de lixo nos arrebaldes da cidade. Beppo Varredor permaneceu sentado, imóvel, fitando o ponto no qual o agente BLW/553/c havia sido transformado numa pedra de gelo e agora estava degelando. Ficara sabendo por experiência própria que de fato existiam coisas como os homens cinzentos. Mais ou menos à mesma hora – o relógio da igreja distante bateu meia-noite –, a pequena Manu achava-se ainda nos degraus de pedra do anfiteatro. Estava à espera de algo – ela mesma não sabia o quê! – e não se decidira ainda a ir para a cama. De repente, sentiu uma coisa roçando levemente seus pés descalços. Estava muito escuro, e a menina inclinou-se para ver o que era: uma grande tartaruga de cabecinha erguida, olhando para ela, de boca entreaberta como que num sorriso. Os olhinhos pretos e vivos brilhavam do modo mais cordial e pareciam até querer falar. Manu fez-lhe gentilmente cócegas sob o queixo: __ Ora, quem será você? – perguntou baixinho. __ Seja como for, estou contente que tenha vindo visitar-me, tartaruga! Ela não sabia dizer se não o havia notado até aquele momento, ou se foi justo naquele instante que se tornaram visíveis nas costas da tartaruga letras luminosas, aparentemente formadas pelos desenhos de sua carapaça. __ VENHA COMIGO – soletrou Manu devagar.

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Pasma de admiração, ela perguntou: __ O recado é para mim? Mas a tartaruga já se tinha posto a caminho. Parou pouco adiante, virou a cabeça e voltou a olhar a menina. “É comigo mesmo!”, pensou Manu, e levantou-se para seguir o misterioso animal. __ Vá andando, que eu a acompanho! – disse baixinho. Passo a passo seguiu a tartaruga, que, lentamente, muito lentamente, conduzia-a para fora do anfiteatro de pedra, tomando depois a estrada, rumo à grande cidade.

10. Furiosa perseguição e calma fuga Beppo montou na velha bicicleta e saiu pedalando pela noite afora. As palavras do juiz cinzento ainda ressoavam em seus ouvidos: “Vamos dirigir nossa atenção para essa criança notável . . .” “O réu pode ficar certo de que ela não nos prejudicará mais . . .” “Usaremos para isso todos os recurso . . .” Não havia dúvida, Manu corria grande perigo. Ele tinha de ir ver imediatamente a menina e preveni-la contra os homens cinzentos, protegê-la, embora não tivesse a menor idéia de como o fazer. Contudo, havia de encontrar um jeito. Pedalava a toda pressa, o cabelo branco esvoaçando ao vento. A distância até o anfiteatro era grande. As ruínas estavam brilhantemente iluminadas pelos faróis de uma frota de elegantes carros cinzentos que as cercavam. Dezenas de homens cinzentos percorriam de cima a baixo os degraus cobertos de capim, procurando a criança por todos os cantos. Finalmente, alguns descobriram no muro o buraco que levava aos aposentos de Manu a ali penetraram, espiando embaixo da cama e até dentro do pequeno fogão de pedra. Depois saíram, sacudindo a poeira de seus elegantes ternos cinza.

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__ O pássaro bateu asas! – disse um deles. __ É incrível como as crianças ficam vagabundando à noite, quando deveriam estar quietas, abrigadas em suas camas! – retrucou outro. __ Não estou gostando deste caso – declarou um terceiro. __ Até parece que ela foi avisada a tempo por alguém! __ Impossível! – disse o primeiro. __ Para que alguém lhe estivesse dado o aviso, teria de conhecer nossa intenção antes mesmo que a tivéssemos formulado. Os homens cinzentos olharam-se alarmados. __ Se tal pessoa a tiver realmente prevenido – observou, preocupado, um deles –, ela decerto não se encontra mais aqui e estamos perdendo tempo nesta busca. __ Que sugere, então? __ Acho que deveríamos informar imediatamente o alto comando de modo a organizar-se uma operação em larga escala. __ Mas a primeira coisa que os chefes vão indagar é se demos busca por todos os arredores . . . e será uma pergunta razoável. __ Muito bem! – declarou o primeiro homem cinzento. __ Antes de tudo vamos pois procurar minuciosamente por todos os bairros. Entretanto, se enquanto isso a menina tiver recebido a ajuda de alguém, estaremos cometendo grave erro. __ Besteira! – retrucou outro, zangado. __ Nada impede que o alto comando organize depois a operação total, em que cada agente disponível tome parte, a fim de perseguir a menina. Ela não terá a mínima chance de nos escapar. E agora, ao trabalho! Sabemos o quanto é grande o nosso risco . . . Naquela noite, em todos os bairros, os moradores estranharam o incessante barulho dos automóveis, correndo a toda a velocidade. Até a madrugada, tudo foi esquadrinhado pelos agentes: desde as mais estreitas ruelas até as primitivas trilhas de carroça, fazendo um rumor somente ouvido nas estradas de intenso tráfego. Ninguém pôde pregar olho!

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Enquanto isso acontecia, a pequena Manu, guiada pela tartaruga, atravessava a grande cidade, que não dorme mesmo nas horas mais tardias. Uma multidão se movimentava apressadamente, empurrando com impaciência quem se achasse à sua frente, acotovelando-se ou entrando em longas filas. A estrada achava-se bloqueada pelos carros, enquanto os enormes ônibus lotados ao máximo roncavam, procurando arrancar para a frente, a fim de abrir caminho. Anúncios em neon brilhavam em cada parede, jogando forte luz sobre o povo e apagandose subitamente para de novo se acenderam. Manu, que jamais havia visto nada disso, caminhava como num sonho, de olhos arregalados, sempre acompanhando a tartaruga. Atravessaram grandes praças e ruas bem iluminadas. Viam passar a seu lado carros velozes estavam cercadas de pedestres, mas ninguém prestava atenção à menina e à tartaruga. No meio daquele intenso movimento, nunca levaram encontrões nem foram atropeladas. Era como se a tartaruga soubesse antecipada e precisamente o momento exato em que não havia pedestres ou carros para atrapalhá-las. Não precisavam apressar-se nem diminuir o passo ou esperar, e Manu admirava-se de como era possível adiantarem-se tão depressa, caminhando tão devagar! Quando Beppo Varredor chegou ao anfiteatro, a tênue luz da lanterna de sua bicicleta mostrou-lhes imediatamente os sinais dos pneus à volta das ruínas. Alarmado, correu para o buraco no muro e pôsse a chamar: __ Manu! – primeiro em voz baixa, depois mais alta: __ Manu! Manu! Nenhuma resposta. Com a garganta seca, Beppo sentiu-se quase engasgado de aflição. Entrou no quarto de Manu, escuro como breu, tropeçou e torceu o tornozelo. Com dedos trêmulos, conseguiu riscar um fósforo e olhar em torno de si.

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A mesinha e as duas cadeiras feitas de caixotes estavam de pernas para o ar; o colchão e as cobertas revirados. De Manu, nem sinal! Beppo mordeu os lábios, sufocando um soluço rouco: __ Meu Deus – murmurou – meu Deus! Lavaram minha menininha! Raptaram a minha Manu! Cheguei tarde! Que devo fazer agora? Que posso fazer? Nesse momento o fósforo começou a queimar seus dedos e ele jogou fora, ficando em completa escuridão. Depois, passou de novo pelo buraco no muro de saiu, tão depressa quanto lhe permitia o tornozelo machucado. Pegou a bicicleta e lá foi pedalando, à procura de Guido. Beppo sabia que Guido ultimamente estava ganhando um dinheiro extra, passando as noites de Domingo numa pequena oficina de conserto de automóveis, que era também depósito de carros velhos. Sua tarefa consistia em vigiar para que carros ainda em condições de prestar serviço não desaparecessem inesperadamente como já acontecera mais uma vez. Quando Beppo chegou, deu fortes pancadas na porta. Guido manteve-se primeiro em completo silêncio. Talvez fosse um ladrão em busca de algum carro ainda usável. Depois, reconhecendo a voz de Beppo, abriu, meio atordoado: __ Que negócio é esse? Detesto que me acordem assim de repente! __ É por causa de Manu! – explicou Beppo ofegante. __ Uma coisa terrível aconteceu à menina! __ Que é que você está dizendo? – perguntou Guido, caindo na cama de tão assustado. __ Manu, que é que houve com ela. __ Eu mesmo não sei – arquejou Beppo. __ Mas só pode ser algum mal! E contou ao amigo tudo o que vira na Suprema Corte, no alto do monte de lixo; as marcas dos pneus em volta do anfiteatro e o desaparecimento de Manu. Levou algum tempo para contar tudo isso, pois, apesar de sua inquietação pela menina, não sabia explicar as coisas rapidamente.

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__ Eu senti isso desde o começo – continuou. __ Sabia que nada de bom ia sair daquela passeata . . . agora eles estão se vigiando: raptaram Manu ! Oh! Guido, temos de socorrer a menina . . . mas como? Que fazer? À medida que Beppo falava, Guido ia se tornando cada vez mais pálido. Até então, tinha considerado o caso como uma boa brincadeira, dando-lhe apenas a importância que dava aos jogos e histórias que inventava, sempre sem medir as conseqüências. Agora, pela primeira vez na vida, via uma história tomar corpo independentemente dele, e suas mais brilhantes idéias não poderiam mudar uma só palavra da realidade. Parecia-lhe ter virado pedra. __ Sabe, Beppo – disse depois de uma pausa –, pode ser que Manu tenha saído só para dar uma volta. Ela às vezes faz isso. Certa ocasião, ficou durante três dias e três noites passeando pelos campos. Quero dizer que talvez não haja motivo para nos preocuparmos assim! __ E as marcas dos pneus junto ao anfiteatro? – perguntou Beppo, zangado. __ E o colchão e cobertas revirados? __ Bem . . . – respondeu Guido evasivamente – vamos supor que alguém tenha realmente estado lá, isso não prova que tenham encontrado Manu! Ela já devia ter saído, do contrário não teriam dado busca e remexido tudo. __ Mas imagine se de fato a encontraram? – gritou Beppo, agarrando o rapaz pela lapela do paletó e sacudindo-o: __ Guido, não seja idiota, os homens cinzentos são uma realidade! Temos de agir imediatamente! __ Calma, Beppo! – murmurou Guido, meio desanimado. __ Decerto que temos de agir . . . mas primeiro é preciso pensar cuidadosamente no que podemos fazer. Afinal, nem sabemos por onde começar para procurar Manu! Beppo largou o paletó de Guido e declarou entre dentes: __ Vou à polícia! __ Pelo amor de Deus, homem, seja razoável – gritou Guido, horrorizado. __ Não se pode fazer isso, de jeito nenhum. Imagine se a

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polícia encontra nossa querida Manu . . . você sabe o que farão com ela, não sabe? Sabe onde colocam órfãos perdidos? São levados para um asilo com grades nas janelas. Você quer que isso aconteça a Manu? __ Não – sussurrou Beppo, desalentado, o olhar perdido no espaço. __ Não, não quero! Mas imagine se ela estiver de fato em perigo. __ Bem – continuou Guido –, suponha no entanto que Manu esteja apenas dando um giro por aí, e você alerte a polícia. Nesse caso, eu não queria estar na sua pele, meu velho. Beppo deixou-se cair numa cadeira junto à mesa, com a cabeça entre as mãos, e suspirou: __ Francamente, não sei o que será melhor fazer . . . não sei! __ De qualquer forma – respondeu Guido –, acho que devemos esperar até amanhã ou mesmo até depois de amanhã, antes de tomar alguma iniciativa. Se então, até lá, Manu não tiver aparecido, iremos à polícia. Mas provavelmente tudo estará resolvido da melhor maneira e estaremos rindo dessa confusão! __ Você acha mesmo? – murmurou Beppo, subitamente tomado por extremo cansaço. Os acontecimentos do dia tinham sido quase excessivos para um homem de sua idade. __ Decerto – afirmou Guido. Tirou os sapatos de Beppo, ajudou-o a atravessar a oficina, levou-o para sua cama, enrolando o tornozelo num pano molhado, e repetiu baixinho: __ Vai dar tudo certo! Tudo vai acabar bem! Quando viu Beppo adormecido, suspirou fundo e deitou-se no chão, enrolando o paletó para servir de travesseiro. Mas não conseguiu dormir. Durante toda a noite ficou pensando nos homens cinzentos: pela primeira vez em sua vida, até agora despreocupada, experimentou o que fosse o medo. O alto comando do Banco Poupa-Tempo organizou uma operação em larga escala: cada agente de grande cidade foi notificado para interromper o que estivesse fazendo a fim de se dedicar inteiramente à procura de Manu.

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Todas as ruas pululavam de homens cinzentos: alguns se instalaram no alto dos edifícios, outros rastejavam pelos encanamentos de

esgoto,

outros,

ainda,

vigiavam

discretamente

as

estações

ferroviárias e os aeroportos, enquanto muitos fiscalizavam ônibus e bondes; em resumo – estavam em toda parte. Mas não encontraram Manu. __ Oi, tartaruga, aonde está me levando? – perguntou Manu a certa altura. Ambas atravessavam nesse momento um escuro pátio interno. “NÃO TENHA MEDO”, foi a resposta que apareceu na carapaça da tartaruga. __ Não estou com medo – disse Manu após ter soletrado aquelas palavras. Dizia-o porém mais para se tranqüilizar, pois sentia-se de fato meio assustada. O caminho pelo qual a tartaruga a conduzia tornava-se cada vez mais estranho e tortuoso. Já haviam atravessado parques, pontes, metrôs, portões, grandes vestíbulos, e por vezes até passagens subterrâneas. Se Manu soubesse que um verdadeiro exército de homens cinzentos estava no seu encalço, certamente ainda ficaria muito mais atemorizada. Mas não tinha a menor idéia disso, assim acompanhava pacientemente a tartaruga, passo a passo, naquele trajeto que se parecia com um labirinto. Tal como a tartaruga anteriormente abrira caminho através do tráfego, também agora parecia saber exatamente o momento em que iam surgir os inimigos. Às vezes, ao homens cinzentos chegavam a um lugar onde ambas tinham estado havia um instante apenas; de modo que perseguidores e perseguidos de fato nunca se encontravam. __ É uma sorte eu já saber ler tão bem, não é? – perguntou a menina, inocentemente. Nas costas da tartaruga, como luminoso sinal de aviso, brilhou a palavra: “SILÊNCIO”. Embora ignorando o motivo da ordem, Manu obedeceu. Três vultos escuros passaram bem perto delas.

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Nesse lado da cidade que agora percorriam, as casa tornavam-se cada vez mais feias e miseráveis. O reboco desprendia-se dos altos edifícios de apartamentos e a rua apresentava enormes buracos, cheios de água estagnada. Ali tudo era sombrio e deserto. O alto comando do Banco Poupa-Tudo recebeu notícia de que Manu tinha sido vista. __ Bem! – veio a resposta. __ Já a capturaram? __ Não. Foi como se a terra se abrisse subitamente e tivesse engolida a criança. Assim perdemos de novo sua pista. __ Como pôde isso acontecer? __ É o que nós também nos perguntamos. Alguma coisa está errada! __ Onde se encontrava ela, a última vez que a viram? __ Pois aí é que está o fato estranho: achava-se numa parte da cidade inteiramente desconhecida para nós. __ Semelhante distrito não existe – afirmou o alto comando. __ Mas tem de existir. É – como se pode descrevê-lo? __ é como se esse distrito estivesse situado na fronteira do tempo e a menina caminhasse ao longo desse limite. __ O quê? – berrou o alto comando. __ Descubram de novo a pista. A menina tem de ser capturada a todo custo. Entenderam? __ Entendemos – foi a resposta cinzenta à ordem ameaçadora. A princípio, Manu pensou que fosse o sol nascendo . . . mas aquela luz fora do comum apareceu de repente, no momento exato em que virou a esquina daquela rua. Ali já não era noite e também ainda não era dia: não era a aurora nem o crepúsculo. Era uma luz que tornava os contornos extremamente agudos e claros; no entanto, não parecia vir de parte alguma, ou melhor, de toda parte ao mesmo tempo, de modo que as longas, escuras sombras projetadas na rua pelas menores pedras tomavam todas as direções: uma árvore era iluminada pela esquerda, uma escala pela direita e um monumento pela frente.

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Por esse motivo, o próprio monumento tinha um aspecto muito singular: era um bloco quadrado de pedra negra sobre o qual de destacava um gigantesco ovo branco. Era só isso. Também as casas era diferentes de quantas Manu até então vira. Eram quase ofuscantes de tão brancas. Por trás das janelas, densas sombras escuras tornavam-se impossível ver se realmente vivia gente ali dentro. Mas, de certo modo, Manu tinha a impressão de que aquelas casas não haviam sido construídas para pessoas ali morarem, e sim para um misterioso desígnio. As ruas apresentavam-se completamente desertas. Não só de gente, mas também de carros, cães ou pássaros. Tudo era imóvel. Não soprava a mais leve aragem. Manu se espantava por ver como se adiantavam rapidamente, embora a tartaruga parecesse mover-se mais devagar do que nunca. Longe desta estranha parte da cidade, ali onde reinava a noite, três elegantes carros de faróis acesos corriam a toda a velocidade pelas ruas esburacadas. Em cada carro achavam-se vários homens cinzentos. No primeiro, um deles localizou Manu, justamente quando ela virava para entrar na rua das casas brancas, onde começava aquela claridade fora do comum. Quando ela dobrou a esquina, aconteceu uma coisa incrível: os carros pararam de repente. Os motoristas pisavam com força no acelerador e a rodas giravam, mas os automóveis não saíam do lugar. Era como se estivessem numa esteira rolante, movendo-se tão depressa quanto eles, em direção oposta. Quanto mais aceleravam, menos iam para frente. Ao perceberem isso, os homens cinzentos pularam de seus carros, praguejando, e tentaram ir a pé no encalço de Manu, agora apenas visível ao longe. De rostos contorcidos pela raiva, puseram-se a persegui-la; quando, porém, tiveram de parar para tomar fôlego, viram que estavam somente a poucos metros do ponto de partida. Manu desaparecera na distância, entre as casas brancas como neve. __ É isso, a coisa não está boa! – disse um dos homens. __ Agora nunca poderemos apanhá-la.

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__ Não compreendo por que nossos carros não foram para diante! – disse outro. __ Tampouco eu! – replicou o primeiro. __ O mais importante, porém, é saber se isso contará como circunstância atenuante quando tivermos de confessar nosso fracasso. __ Acha que seremos julgados? __ Ora, o alto comando por certo não vai ficar satisfeito! Todos os homens cinzentos ali presentes estavam de cabeça baixa, encostados ao capô de seus carros, pois agora não haviam mais razão para que tivessem pressa. Longe, bem longe, em meio ao labirinto das ruas e praças brancas como neve, Manu ia seguindo a tartaruga. E, justamente porque iam tão devagar, a rua parecia deslizar a seu lado, enquanto as casas passavam voando. A tartaruga virou de novo uma esquina. Manu acompanhou-a e ficou imóvel, deslumbrada! Essa rua era inteiramente diversa de todas as outras. Era mais uma estreita alameda do que uma rua. De ambos os lados, as casas muito juntas, com seus inúmeros torreões, balcões e terraços, mais pareciam palácios de vidro em miniatura, que tivessem passado séculos sob o mar para emergir agora, de repente, envoltos em algas marinhas e incrustados de conchas e corais. Todos resplandeciam suavemente em tonalidades cambiantes como da madrepérola. A rua terminava diante de uma casa isolada, em cujo centro via-se uma grande porta de bronze verde com esplêndidos ornamentos. Manu olhou para a placa da rua, na parede, acima de sua cabeça. Era de mármore branco e tinha em letras de ouro gravado este nome: ALAMEDA DO NUNCA. A menina levara apenas um instante para decifrar as letras, mas a tartaruga já se achava lá adiante, quase no fim da rua, em frente à última casa. __ Espere por mim, tartaruga! – gritou Manu; porém, não pôde ouvir sua própria voz.

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A tartaruga, no entanto, pareceu tê-la ouvido: parou e olhou em volta. Manu tentou segui-la, mas quando começou a caminhar pela Alameda do Nunca teve a sensação de estar lutando contra poderosa corrente ou forte ventania (embora não a percebesse!) que a impediam de adiantar-se. Lutou contra a misteriosa força que a retinha, agarrandose à beirada da rua, e até andando de gatinhas. Tudo inutilmente! __ Não consigo ir para a frente! – gritou à tartaruga, que descansava na outra extremidade da rua. __ Por favor, me ajude! O animal voltou lentamente e quando chegou perto da menina apareceu em cima dela este aviso: “ANDE DE COSTAS!” Docilmente, Manu experimentou. Virou-se nos pés, começou a andar de costas e não encontrou mais nenhuma dificuldade em ir adiante. O que lhe aconteceu, porém, enquanto andava assim de costas, foi extremamente esquisito: ao mesmo tempo que caminhava voltada para trás, também seus pensamentos, sua respiração, seus sentimentos, tudo parecia regredir – de fato, estava vivendo para trás. Por fim bateu com as costas numa coisa sólida. Virou-se e viu que estava diante de uma casa construída em curva, fechando a rua. Teve um ligeiro susto; vista de perto, a porta de bronze magnificamente lavrado era enorme. “Serei capaz de abrir esta porta?”, pensou Manu, duvidando. Nesse mesmo instante, os dois colossais batentes se abriram de par em par. Manu deteve-se ainda um momento, pois notou palavras bem acima da entrada. O letreiro, sustentado por um licorne branco, era o seguinte: “MANSÃO DE LUGAR NENHUM”. A menina lia devagar; assim, quando terminou a leitura, dois colossais batentes já começavam a se fechar e ela esgueirou-se depressa entre eles, ouvindo em seguida a monumental porta cerrar-se com o ruído de um distante trovão. Encontrava-se agora num corredor alto, muito longo. À direita e à esquerda, em intervalos regulares, estátuas nuas de homens e mulheres

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pareciam sustentar o teto. Aqui não havia mais vestígio daquela misteriosa corrente contrária. Manu seguia a tartaruga, que rastejava pela comprida galeria, ao fim da qual parou, diante de uma pequenina porta, tão pequena, que mal dava para a menina entrar. Na carapaça da tartaruga apareceu esta palavra: “CHEGAMOS!” Manu ajoelhou-se para ler, à altura de seus olhos, o pequeno letreiro escrito na pequenina porta: “MESTRE DA HORA DO SEGUNDO MINUTO”. Respirou fundo e puxou resolutamente o pequeno ferrolho. Quando a diminuta portinha se abriu, ouviu do interior harmoniosa melodia, feita de vários sons: tique-taques, zunidos, carrilhões. Acompanhou a tartaruga, e o ferrolho da pequena porta fechou-se atrás dela.

11. Os maus tiram o melhor partido de um caso grave Na luz cinzenta de infindáveis corredores e galerias, agentes do Banco Poupa-Tempo apressavam-se de um lado para outro, segredando agitadamente entre si a última notícia: todos os membros da diretoria haviam sido convocados para uma assembléia extraordinária! Afirmavam uns que isso significava ameaça de grave perigo, enquanto outros pensavam haver surgido nova oportunidade, até agora insuspeita, de lucro para o banco. Na enorme sala de conferências, os homens cinzentos membros do executivo do banco estavam em sessão, sentados um ao lado do outro, ao longo da mesa que parecia estender-se interminavelmente. Cada um deles tinha como sempre sua pasta cinzenta e fumava seu charutinho cinzento. Só faltavam os chapéus-coco, e todos apresentavam luzidias carecas. O sentimento dominante da assembléia – se é que se pode falar em “sentimento” ao se referir aos homens cinzentos – era o de melancolia.

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O presidente levantou-se à cabeceira da longa mesa. Cessaram os murmúrios e duas extensas filas de faces cinzentas voltaram-se para ele: __ Senhores, a situação é muito séria. Sinto-me no dever de pô-los imediatamente a par de fatos muitos aborrecidos, mas inegáveis. Quase todos os nossos agentes disponíveis foram empregados na procura da menina Manu. Essa busca durou seis horas, treze minutos e oito segundos. Os agentes nela empenhados foram forçados a negligenciar seu próprio trabalho, que consiste em recolher tempo. A tal déficit temos de acrescentar o tempo que também nossos homens perderam com isso. Esses dois itens representam um prejuízo de tempo que, de acordo com os mais exatos cálculos, soma um débito de três bilhões setecentos e trinta e oito milhões duzentos e cinqüenta e nove mil cento e catorze segundos. Ora, senhores, isso é mais do que o período de uma vida humana. Não é necessário que lhes diga o que tal perda significa para nós. O presidente parou, apontando com gesto eloqüente para um cofre de aço gigantesco, com várias combinações de números e fechaduras de segurança, embutido na parede da sal, e prosseguiu: __ Nossas reservas de tempo não são inesgotáveis, senhores. E se ao menos essa perseguição tivesse dado resultado! Mas o tempo nela gasto foi totalmente perdido. A menina escapuliu de nossas mãos. Semelhante fato não pode ocorrer uma segunda vez. Para o futuro, hei de opor-me categoricamente a qualquer empreendimento que exija tão elevados gastos. Temos de poupar, e não desperdiçar! Peço-lhes pois que tenham isso em mente com referência a quaisquer outros planos. É só o que tenho a dizer. Obrigado! Sentou-se e soprou grossas nuvens de fumaça do seu charuto. Os outros começaram a sussurrar, inquietos. Nisso, um outro orador, que se encontrava no lado oposto da longa mesa, ergueu-se, e todos os rostos voltaram-se para ouvi-lo. __ Senhores – começou ele –, a prosperidade do Banco PoupaTempo nos toca a todos muito de perto. Parece-me, no entanto,

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inteiramente desnecessário perturbarmo-nos com este caso, em muito menos transformá-lo numa espécie de catástrofe. Nada está mais longe da realidade. Sabemos que nosso estoque de tempo tem maciças reservas, e prejuízos semelhantes não nos pões seriamente em perigo. Que significa a duração de uma vida humana para nós? Uma simples ninharia! Contudo, estou de acordo com nosso respeitável presidente: fato semelhante nunca mais deve acontecer. Aliás, o caso da menina Manu é único. Jamais ocorreu antes, e é absolutamente improvável que possa ocorrer de novo. Concluindo, o nosso presidente nos acusa justamente por termos deixado a pequena escapar. Mas qual era nosso intuito? Tornar a menina inofensiva. Ora, esse alvo foi plenamente alcançado: Manu desapareceu, fugiu para além do reino do tempo. Estamos livres dela. Acho pois que temos motivo para estarmos contentes com tal resultado. O orador sentou-se com um sorriso satisfeito, e aplausos isolados saudaram sua argumentação. Um terceiro orador levantou-se: __ Serei breve – disse, com expressão cruel no rosto. __ Considero paliativas

as

palavras

que

acabamos

de

ouvir,

inteiramente

irresponsáveis. Não se trata de uma criança comum. Sabemos que ela possui certos dons, extremamente perigosos para nós e para nossos negócios. O fato de tal incidente não ocorrer até agora não garante que não possa acontecer de novo. Temos de permanecer vigilantes. Não podemos descansar enquanto essa menina não estiver completamente em nosso poder. É o único meio de termos a certeza de que ela não nos prejudicará mais. Se foi capaz de passar além das fronteiras do tempo, será igualmente capaz de voltar a qualquer momento. E voltará. Sentou-se. Os demais membros do governo baixaram os olhos, num silêncio submisso. __ Senhores – declarou então um quarto orador –, perdoem-me falar com franqueza: até agora nada fizemos senão procurar evasivas. Temos de reconhecer o fato de que há um estranho poder envolvido nesse caso. Examinei todos os aspectos, nos menores detalhes. As

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probabilidades de uma criatura viva passar espontaneamente além do domínio do tempo são exatamente de quarenta e dois milhões contra uma. Em outras palavras: é virtualmente impossível. Um murmúrio excitado fez-se ouvir entre os membros do governo. __ Tudo indica que Manu tenha recebido ajuda de alguém para escapar à nossa perseguição – continuou o orador, quando o murmúrio cessou. __ Os senhores sabem a quem me refiro: trata-se do Senhor do Tempo, a quem às vezes chamamos de “Mestre Hora”. Ao

ouvirem

esse

nome,

alguns

dos

homens

cinzentos

se

encolheram como se tivessem levado uma pancada, enquanto outros puseram-se de pé, gritando e gesticulando. __ Senhores, por favor! – prosseguiu o orador, estendendo os braços. __ Peço-lhes que se controlem! Bem sei que pronunciar tal nome não é, vamos dizer, coisa de bom gosto, eu mesmo só o faço com grande relutância. Mas temos de encarar os fatos objetivamente, tais como eles são. Se aquela pessoa veio em auxílio de Manu, deve ter tido razões para isso, e essas são certamente contra nós. Em resumo, senhores, devemos considerar que aquela pessoa não só fará a criança voltar, mas que lhe dará também armas para combater-nos. A menina será então, para nós, um perigo mortal! Temos pois de estar preparados para sacrificar não apenas a duração de uma vida humana, como de outras mais. Sim, senhores, em último recurso temos de arriscar tudo. Repito: tudo! Do contrário, nossa avareza pode nos sair infernalmente cara. Penso que me entenderam. A agitação cresceu entre os homens cinzentos, e começaram a falar todos ao mesmo tempo. Um quinto orador pulou da cadeira e agitou violentamente os braços: __ Silêncio! Silêncio! – gritava ele. __ O nosso colega sugeriu toda espécie de catástrofes possíveis, mas ele próprio não tem a menor idéia de como resolvê-las. Diz que devemos estar preparados para qualquer sacrifício – muito bem! Que devemos ficar firmes até o fim – muito bem! Que não devemos restringir nossos recursos – muito bem! Mas tudo isso não passa de palavras vazias. Deve nos dizer o que podemos realmente

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fazer. Vamos enfrentar um perigo inteiramente desconhecido. Esse é o problema a ser solucionado! O barulho da sala transformou-se em tumulto. Alguns berravam, outros davam socos na mesa, enquanto muitos cobriam o rosto com as mãos, todos tomados de pânico. Um sexto orador teve dificuldades para se fazer ouvir. __ Senhores, por favor! – repetia ele, acalmando-os até conseguir silêncio. __ Peço-lhes que se mantenham tranqüilos e razoáveis; no momento é isso o mais importante. Mas, admitindo que a menina Manu volte



de

certo

modo

armada

por

aquela

pessoa



não



absolutamente necessidade que nenhum de nós tome pessoalmente parte na luta. Não estamos aptos para tal encontro, como ficou demonstrado pelo infeliz caso do nosso desventurado agente BLW/553/c, há pouco liquidado. Nada disso é preciso. Afinal, temos suficiente número de cúmplices entre os seres humanos. Se soubermos usar as pessoas com inteligência e discrição, poderemos dominar a menina e os perigos que ela causar, sem nunca aparecermos abertamente. Essa tática será econômica, sem riscos e altamente eficaz. Houve um suspiro de alívio na assembléia reunida. A sugestão agradou a todos e teria sido sem dúvida aceita imediatamente, se um sétimo orador não tivesse pedido a palavra: __ Senhores, continuamos a discutir como nos livrar da menina Manu, e, encarando francamente esse fato, o que nos leva a isso é o medo. Mas o medo, meus senhores, é mau conselheiro. Parece-me que estamos perdendo uma oportunidade realmente única; diz um provérbio: “Se não puder vencê-los, alie-se a eles”. Por que não procuramos conquistar a menina para o nosso lado? __ Adiante! Continue! Escutem! – gritaram várias vozes ao mesmo tempo. __ É obvio – prosseguiu o orador – que essa criança achou o caminho para encontrar aquela pessoa – caminho esse que temos em vão, desde o princípio. Ora, a menina provavelmente achará de novo esse caminho e poderá nos guiar até lá. Negociaremos então com

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aquela pessoa, segundo nossos próprios métodos. Estou certo de que rapidamente ficaremos donos da situação, não tendo mais de suar e esforçar-nos para ganharmos algumas horas, minutos ou segundos. De um só golpe, seremos possuidores do tempo pertencente à humanidade; e possuir todo o tempo dos homens é ter ilimitado poder! Imaginem, senhores, se alcançarmos nosso alvo! No entanto, Manu, – de quem desejam livrar-se – é a única capaz de ajudar-nos a atingi-lo! Um silêncio de morte reinou na sala. Depois, um dos presentes exclamou: __ Mas todos sabem que é impossível contar mentiras a essa menina! Lembrem-se do agente BLW/553/c; qualquer um de nós sofreria o mesmo destino. __ Ora, quem falou em mentir? – perguntou o orador. __ Nós lhe contaremos com inteira franqueza os nossos planos. __ Nesse caso, ela não nos ajudará! – gritou um outro. __ Essa idéia é simplesmente absurda! Um nono manifestante juntou-se à discussão: __ Não concordo, meu amigo. Teríamos sem dúvida de oferecerlhes alguma coisa que a atraísse. Prometendo, por exemplo, tanto tempo quanto quisesse para o seu próprio uso . . . __

Promessa

que

jamais

cumpriríamos



interrompeu

um

participante da assembléia. __ Promessa que teríamos de cumprir – replicou o outro, com gélido sorriso. __ Ela saberia imediatamente se não tencionássemos cumprir o que tivéssemos prometido. __ Não, não! – declarou o presidente, batendo com o punho fechado na mesa. __ Não posso de modo algum consentir em tal coisa! Se tivermos de dar-lhe tanto tempo quanto desejar, isso nos custará uma fortuna! __ Nem tanto! – retrucou o orador, acalmando-o. __ Quanto tempo gasta realmente uma criança? Admitindo que seja uma despesa pequena mas constante, o que significa isso em relação ao que ganharíamos em troca? O tempo total de toda a humanidade! A quantia

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gasta por Manu seria simplesmente registrada na coluna de débito de nossa conta, e pensem nas vantagens que teríamos! O orador sentou-se e todos puseram-se a refletir nos lucros em vista! Levantou-se então o sexto manifestante: __ De qualquer modo, isso não daria certo! __ Por que não? __ Pelo simples motivo que essa criança infelizmente dispõe de todo o tempo de que necessita. Não adianta procurar suborná-la com uma coisa que ela já tem de sobra! __ Teremos então de retirar-lhe o tempo – concluiu o nono orador. __ Meus senhores – disse o presidente, aborrecido –, notem que estamos sempre na mesma! É um círculo vicioso, pois não conseguimos apoderar-nos da menina, esse é o problema. Nas longas fileiras dos membros da diretoria, houve agora um suspiro de desânimo. __ Tenho uma sugestão – anunciou um décimo orador. __ Posso comunicá-la? __ Estamos todos atentos! – respondeu o presidente. Após inclinar-se diante do presidente, o homem começou a falar: __ Essa criança só vive para seus amigos. Sua alegria é dar o seu tempo aos outros. Vamos imaginar o que aconteceria se não lhe restasse ninguém com quem partilhar o tempo! Se a menina não quiser cooperar conosco voluntariamente, teremos de apoderar-nos de seus amigos. Tirou da pasta um fichário e abriu-o: __ As principais pessoas a considerarmos são um certo Beppo Varredor e Guido Guia. Tenho também uma longa lista das crianças eu costumam visitá-la freqüentemente. Como vêem, senhores, o caso não é difícil.

Bastará

atrairmos

todos

eles,

de

modo

a

afastá-los

completamente de Manu, que ficará inteiramente só. Que valor então terá o seu tempo? Transformar-se-á num fardo ou até em maldição. Mais cedo ou mais tarde, será incapaz de suportá-lo e aí estaremos prontos para impor nossas condições. Aposto dez mil anos contra um décimo de

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segundo que ela nos mostrará o caminho desejado para em troca ter de volta seus amigos. Os homens cinzentos, momentos antes mergulhados em tristeza, levantaram a cabeça: havia em cada face um sorriso de triunfo nos lábios magros. Aplaudiram, e os aplausos ressoaram pelos infindáveis corredores

e

galerias

como

o

barulho

de

pedras

rolando

num

desmoronamento.

12. Manu chega ao lugar de onde vem o tempo Manu achava-se agora numa sala tão grande como jamais vira: mais vasta do que qualquer imensa igreja ou do que a mais enorme das estações de estrada de ferro. Possantes pilares sustentavam o teto alto. Não havia janelas. A claridade dourada e tênue que cintilava na extraordinária sala provinha de inúmeras velas, dispostas por toda a parte, cujas chamas ardiam constante e firmemente como se estivessem pintadas em cores luminosas e não precisassem de cera para luzir. Os milhares de sons – zunidos, tique-taques, carrilhões – que Manu ouvira ao entrar resultavam de inúmeros relógios de todo tamanho e feitio, colocados em intermináveis prateleiras, ou sobre longas mesas, consolos revestidos de ouro, e também sob redomas de vidro. Havia

minúsculos

relógios

de

bolso

ornados

como

jóias,

despertadores comuns de metal, ampulhetas, relógios que tocavam música acompanhada por bonequinhas que dançavam, relógios de sol, relógios de madeira, de mármore, de vidro, e outros, movidos por um jato d’água. Nas paredes, estavam pendurados vários tipos de relógioscuco, relógios com grandes pesos, relógios com pêndulos que oscilavam lenta e seguramente, enquanto outros apresentavam pequeninos e delicados pêndulos que se moviam muito depressa de um lado para outro. À altura de um primeiro andar, havia um balcão ao redor de toda

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a sala, ao qual se chegava por uma escada de caracol. Mais acima, destacava-se um segundo balcão; e depois outro e mais outro. Viam-se também relógios do feitio do globo terrestre, mostrando as horas em todas as partes do mundo, e grandes planetários com o Sol, a Lua, as estrelas. No centro da sala, erguia-se como que uma floresta de relógios antigos, desde os de pêndulo de tamanho habitual até verdadeiros relógios de torre de igreja. Não havia um só momento em que um desses relógios não estivesse dando horas ou tocando carrilhões, pois cada um indicava uma hora diversa. O ruído resultante não era porém desagradável; era um constante murmúrio, que lembrava um bosque num dia de verão. Manu passeava pela sala, de olhos arregalados diante de tantas curiosidades. Achava-se parada diante de um relógio musical, ricamente trabalhando, no qual duas delicadas figurinhas – um rapaz e uma moça – estavam de mãos dadas, como se fosse dançar. A menina pensava até em dar-lhes um empurrãozinho para ver se começavam a dançar, quando escutou de repente, atrás de si, uma voz agradável dizer: __ Ah! Então está de volta, Cassiopéia! E trouxe a pequena Manu? Voltou-se e viu, num dos atalhos da floresta de relógios antigos, um elegante senhor de cabelos prateados, curvando-se a fim de conversar com a tartaruga, que se encontrava no chão a seus pés. O senhor usava longa jaqueta apareciam no pescoço e nos punhos folhos de preciosa renda. O cabelo prateado terminava num pequeno rabinho, partindo da nuca. Manu tinha visto semelhante vestuário, mas alguém menos ignorante reconheceria imediatamente a moda de duzentos anos atrás. __ Que é que você disse? – continuou o velho cavalheiro, debruçado sobre a tartaruga. __ Então ela já chegou? Onde está a menina? – e pôs uns óculos pequeninos, com aros de ouro. __ Estou aqui! – gritou Manu.

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Com um sorriso encantador e de mãos estendidas, os dono da casa dirigiu-se para ela. À medida que se aproximava, parecia a Manu que ele ia se tornando mais jovem. Quando

afinal

se

encontraram,

ele

segurou-lhe

as

mãos

carinhosamente, parecendo então apenas pouco mais velho do que a própria Manu. __ Bem-vinda! – exclamou alegremente. __ Afetuosas boas-vindas à Mansão de Lugar Nenhum. Deixe que me apresente: sou Mestre da Honra do Segundo Minuto. __ Estava mesmo me esperando? – perguntou Manu, admirada. __

Decerto,

pois

até

mandei

minha

tartaruga

Cassiopéia

especialmente para buscar você! Do bolsinho do colete tirou um pequeno relógio cravejado de brilhantes, abriu-o e disse: __ De fato, chegaram com extraordinária pontualidade. Sorrindo, mostrou o relógio à menina Manu notou que não havia ponteiros nem números; apenas duas espirais, finamente desenhadas, postas uma sobre a outra, movendo-se em direção contrária, muito devagar. Na interseção das linhas apareciam de quando em quando minúsculos pontos luminosos. __ Este é o relógio do destino, cujas horas marca fielmente: uma delas está agora se iniciando. __ O que é um relógio do destino? – perguntou Manu. __ Bem – explicou Mestre Hora –, no curso da existência ocorrem às vezes momentos especiais em que cada ser e cada coisa no universo, até mesmo as estrelas mais distantes, tudo coincide de maneira única e perfeita, permitindo acontecimentos que seriam impossíveis antes ou depois daquele momento. Infelizmente, a maioria das pessoas não sabe como aproveitar tais instantes e assim as horas astrais passam sem serem percebidas. Mas quando alguém as reconhece, grandes coisas acontecem então no mundo. __ Talvez seja preciso ter um relógio como o seu para reconhecêlas – observou Manu.

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Mestre Hora sacudiu a cabeça negativamente e sorriu: __ O relógio por si mesmo não adiantaria a ninguém. É preciso saber lê-lo. Com um rápido estalo fechou de novo o reloginho e colocou-o no bolso do colete. Depois, notando o olhar de espanto de Manu diante de seu vestuário, considerou cuidadosamente sua roupa, franziu a testa e disse: __ Oh! Mas creio que estou muito atrasado na moda! Que descuido, o meu! Vou já consertar isso! Estalou os dedos e imediatamente apareceu de sobrecasaca e colarinho duro. __ Estou melhor assim? – perguntou, na dúvida. Vendo porém a expressão perplexa da menina, acrescentou rapidamente: __ Não, decerto que não! Onde estou com a cabeça? Estalou de novo os dedos e surgiu com um vestuário estranho, que nem Manu nem ninguém poderia ter visto antes, pois seria usado cem anos mais tarde. Pela terceira vez deu outro estalo e apareceu, por fim, com uma roupa de acordo com a moda atual: __ Assim está bem, não é? – perguntou a Manu, piscando um olho. __ Espero não ter assustado você. Eu estava apenas brincando. E agora, minha querida menina, é tempo de convidá-la para uma refeição. Venha, está tudo pronto. Você fez uma longa viagem e há de apreciar o que lhe vou oferecer. Tomou-a pela mão, guiando-a através da floresta de relógios. A tartaruga os acompanhava de perto. O atalho pelo qual seguiam fazia voltas e mais voltas, como um labirinto, levando-os por fim a uma saleta, cujas paredes eram formadas pela parte de trás das inúmeras e gigantescas caixas de relógios. A um canto, viam-se uma mesinha de pernas recurvadas e um elegante sofá com poltronas combinando. Também ali tudo era iluminado pelas velas com chamas que não tremeluziam.

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Sobre a mesa, estavam uma grande chocolateira e duas pequenas xícaras juntamente com pratinhos, garfos e facas, tufo de ouro puro. Numa cestinha havia pãezinhos tostados, torradinhos; e, num pratinho, manteiga de um amarelo dourado; outro continha mel que parecia ouro líquido. Mestre Hora serviu o chocolate quente nas duas xícaras e disse com um gesto cheio de carinho: __ Agora, minha cara hóspede, sirva-se à vontade! Manu não o deixou repetir o conselho. Até naquele momento, nem sabia que se tomava chocolate, e pãezinhos com manteiga e mel eram algo muito raro em sua vida. Jamais tinha provado coisa tão deliciosa! Assim, no começo ficou inteiramente entretida com a maravilhosa refeição, saboreando-a de boca cheia, e não pensando em nada. O alimento

fez

com

que

se

sentisse

revigorada

e

repousada,

desaparecendo todo o cansaço, embora não tivesse dormindo um instante sequer durante toda a noite. Quanto mais comia, maior sabor encontrava seu paladar! Parecia-lhe que poderia ficar comendo assim para sempre. Mestre Hora olhava-a com benevolência, tendo a delicadeza de, a princípio, não a importunar com conversa. Sabia que sua pequena hóspede tinha de satisfazer a fome de muitos anos. Talvez fosse o motivo por que, ao observá-la, ficou parecendo aos poucos outra vez mais velho, e seus cabelos embranqueceram de novo. Ao perceber que Manu não sabia usar bem a faca, abriu os pãezinhos, cobriu-os de manteiga e mel e colocou-os diante da menina. Ele próprio não comia quase nada, só o suficiente para lhe fazer companhia. Afinal Manu ficou realmente satisfeita e, sorvendo o chocolate, lançou – por cima da xícara dourada – um olhar curioso para seu anfitrião: quem seria ele? Compreendia que não se tratava de uma pessoa comum, mas nada sabia a seu respeito, a não ser o nome. Colocou então a xícara no pires e perguntou: __ Por que mandou a tartaruga me buscar?

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__ Para protegê-la dos homens cinzentos – respondeu Mestre Hora com toda a seriedade. __ Estão todos à sua procura, por toda a parte, e o único lugar onde você está segura é aqui comigo. __ Eles me fariam algum mal? – perguntou espantada a menina. __ Sim, decerto! – suspirou Mestre Hora. __ Fariam mesmo! __ Mas por quê? __ Porque têm medo de você – explicou Mestre Hora à criança surpresa –, pois você causou-lhes um dano mortal. __ Como? Não fiz nada contra eles! – retrucou Manu. __ Oh! Fez, sim! Por sua causa, um deles se traiu, você contou o segredo a seus amigos e em seguida vocês contariam a todo o mundo a verdade acerca dos homens cinzentos. Não acha que é o bastante para torná-los seus inimigos mortais? __ Mas a tartaruga e eu atravessamos todo o centro da grande cidade – respondeu Manu. __ Se estivessem à minha procura teriam me encontrado facilmente, pois andávamos muito devagar. Mestre Hora apanhou a tartaruga, que se acomodara a seus pés, pôs o animal no colo, coçou-lhe gentilmente o pescoço e perguntou sorrindo: __ Que acha, Cassiopéia, poderiam ter capturado vocês? Na carapaça da tartaruga apareceu a palavra “NUNCA”, e as letras brilhavam tão alegremente que se poderia jurar ter-se ouvido também um riso disfarçado. __ Cassiopéia pode enxergar um pouco do futuro – explicou Mestre Hora. __ Não muito, ainda assim, com antecipação de mais ou menos meia hora. “EXATAMENTE”, viu-se escrito nas suas costas. __ Desculpe – apressou-se em corrigir –, o que eu queria dizer era exatamente meia hora. Ela sabe com certeza o que vai acontecer nesse espaço de tempo, sabia portanto se ia encontrar os homens cinzentos ou não. Mas voltando a você e seus amigos – prosseguiu Mestre Hora –, quero felicitá-los. Seus cartazes e faixas me impressionaram muito bem. __ O Senhor leu o que escrevemos? – perguntou Manu, encantada.

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__ Li tudo, palavra por palavra! __ Foi uma pena! Acho que ninguém mais leu – disse a menina. Mestre Hora acenou afirmativamente com a cabeça: __ Sim, foi uma pena! E os responsáveis por isso foram os homens cinzentos. __ O senhor os conhece bem? – indagou Manu. Mestre Hora acenou de novo com a cabeça suspirou: __ Sim, eu os conheço e eles me conhecem. __ O senhor costuma estar com eles? – continuou a criança a indagar. __ Não, eu nunca saio da Mansão de Lugar Nenhum. __ Então, os homens cinzentos às vezes vê aqui para ver o senhor? Mestre Hora sorriu: __ Não se aflija, Manu! Ainda que eles conhecessem o caminho para a Alameda do Nunca, não poderiam entrar aqui. Mas, de qualquer modo, não sabem o caminho. Manu ficou um momento pensativa. A explicação tranqüilizou-a; porém, tinha vontade de saber mais a respeito de Mestre Hora; assim continuou a perguntar: __ E como é que o senhor sabe de tudo isso? Quero dizer, de nossos cartazes e dos homens cinzentos? __ Estou sempre de olho neles e em tudo quanto a eles se relaciona – declarou Mestre Hora. __ Por isso, estive também vigiando você e seus amigos. __ Mas o senhor disse que nunca sai desta casa! __ Nem é preciso! – E Mestre Hora foi se tornando visivelmente mais jovem à medida que falava. __ Afinal de contas, tenho os meus óculos universais. – Tirou seus pequenos óculos de aro de ouro e entregou-os a Manu: __ Você não quer olhar através deles? A menina pôs os óculos, piscou, envesgou os olhos e disse: __ Não vejo nada!

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De fato, só via uma confusão de cores brilhantes, luzes e sombras que a deixavam completamente tonta. __ É assim mesmo – explicou Mestre Hora –, sempre acontece isso no começo. Não é fácil ver através dos óculos universais. Mas você vai se acostumar! Levantou-se, ficou por trás da cadeira de Manu, pôs delicadamente suas mãos nas hastes dos óculos e moveu-os devagar. Imediatamente, focalizou-se a imagem. Ela viu primeiro o grupo dos homens cinzentos nos três carros, perto da rua onde começava aquela estranha claridade, no momento em que os carros iam em marcha à ré em vez de seguir para a frente. Olhando mais para longe, viu a distância outros grupos nas ruas da cidade, gesticulando e falando agitadamente uns com os outros, como que pedindo a últimas informações. __ É de você que estão falando – explicou Mestre Hora. __ Não compreendem como você conseguiu escapar-lhes. __ Por que eles têm o rosto tão cinzento? – perguntou Manu, observando-os. __ Porque se conservam vivos alimentando-se de matéria morta – respondeu Mestre Hora. __Você sabe que eles vivem do tempo que realmente pertence à humanidade. E, positivamente, o tempo morro quando é arrancado daquele a quem cabe por direito. Cada um tem o seu tempo próprio, que só é vivo enquanto lhe pertence. __ Então os homens cinzentos não são gente? __ Não: tomam apenas a forma humana. __ O que são eles, então? __ Na realidade, não são nada. __ E de onde é que eles surgem? __ Eles surgem porque as pessoas lhes dão oportunidade para que possam existir – isso é o bastante para produzi-los. E agora que as pessoas lhes estão dando oportunidades para dominá-las, será também o bastante para criá-los.

113

__ Mas supondo que não possam mais roubar tempo de ninguém, que acontecerá? __ Voltarão ao nada de onde vieram. Mestre Hora tomou os óculos de Manu e guardou-os no bolso. __ Infelizmente – continuou depois de uma pausa –, eles têm agora muitos cúmplices entre a humanidade. Isso é o pior de tudo. __ Eu não deixarei ninguém roubar o meu tempo! – afirmou Manu decididamente. __ Espero que não – disse Mestre Hora. __ Mas venha comigo, quero mostrar a você a minha coleção. Então parecia de novo um velho. Tomou Manu pela mão e levou-a de volta à enorme sala, onde lhe mostrou toda a espécie de relógios: pôs em andamento alguns que começaram a tocar a música, explicou-lhe o planetário, e a alegria que essas coisas maravilhosas causavam à sua pequena visitante fez com que tomasse novamente o aspecto jovem. Enquanto passeavam, perguntou à menina: __ Você gosta de charadas? __ Gosto muito! O senhor sabe alguma? __ Sei – disse ele sorrindo. __ Sei até uma que é muito difícil de se decifrar. Pouca gente consegue resolvê-la. __ Que bom! Quero aprender essa charada para depois ensinar a meus amigos. __ Estou curioso por ver se você será capaz de decifrá-la. Preste muita atenção – recomendou Mestre Hora. “Numa grande e misteriosa casa vivem três irmãos. Cada uma é diferente do outro. No entanto, se você procurar distinguir irmão de irmão, Descobrirá que os três se parecem muito entre si. O primeiro não está em casa – ainda não chegou. O segundo estava, mas foi-se. O terceiro, o menor do três, está em casa, pois se não estivesse.

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Seus dois irmãos não poderiam existir. Contudo, a existência do terceiro só pode ser avaliada Porque o primeiro se transformou no segundo. E, se você olhar bem para o terceiro. O primeiro e o segundo é que virão à sua lembrança. Decifre a charada: são os três realmente um só? São apenas dois? Ou talvez nenhum? E se, cara menina, seus nomes você descobrir Saberá que são três poderosos reis Governando juntos um grande reino, E são eles próprios esse reino, Que dominam em pé de igualdade.” Mestre Hora olhou para Manu, acenando com a cabeça para animá-la. Ela ouvira atentamente, e, como tinha excelente memória, repetiu vagarosamente a charada palavra por palavra. Depois, suspirou: __ Santo Deus! Esta é mesmo difícil! Não tenho a menor idéia da resposta e nem sei por onde começar. __ Experimente! – disse Mestre Hora, estimulando-a. Manu repetiu de novo a adivinhação, procurando o sentido; em seguida, sacudiu a cabeça e confessou: __ Não sei mesmo! Enquanto isso, Cassiopéia, que os tinha acompanhado, estava junto de Mestre Hora e observava Manu cuidadosamente. __ Bem, Cassiopéia, você que sabe tudo com meia hora de antecedência, responda: Manu resolverá a charada? – perguntou Mestre Hora. A resposta apareceu nas costas da tartaruga: “RESOLVERÁ”. __ Está vendo? – disse ele à menina. __Você vai acertar, Cassiopéia nunca se engana! Manu franziu a testa, esforçando-se para adivinhar. O que podiam ser os três irmãos morando na mesma casa? Evidentemente não se

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tratava de seres humanos – em charadas, irmãos eram em geral sementes de maçã, os dentes, ou coisa parecida. Aqui,

porém,

eram

três

irmãos

que

de

certo

modo

se

transformavam um no outro. Manu olhou em volta . . . Seriam as velas com suas chamas que não vacilavam? Sim, talvez pudessem ser . . . a cera se transformava em luz, pelas chamas. Mas não dava certo, pois na charada “dois irmãos” estavam ausentes. Seria alguma coisa como flor e fruto, semente? Talvez fosse isso: a semente era o menor dos três “irmãos”, e sem a semente a flor e o fruto não existiram. Mas na charada, olhando-se para o “terceiro irmão”, eram o primeiro e os segundo que se viam . . . Não dava certo também! Os pensamentos da menina percorriam todos os campos: por mais que se esforçasse, não conseguia encontrar uma pista. Mas Cassiopéia afirmara que ela acharia a resposta . . . Começou então a repetir lentamente a charada. Quando pronunciou as palavras: “O primeiro não está em casa, ainda não chegou”, viu a tartaruga piscando para ela e na sua carapaça apareceram estes dizeres: “AQUILO QUE EU SEI”, e imediatamente se desfizeram. Embora não estivesse olhando para a tartaruga, Mestre Hora sorriu e disse: __ Fique quieta, Cassiopéia, não precisa dar palpites. Manu vai encontrar sozinha a resposta. Naturalmente, a menina leu o que aparecera nas costas da tartaruga e começou a imaginar o que significaria aquilo. Que é que Cassiopéia sabia? Que ela ia decifrar a charada? Mas isso não adiantava muito! Que mais podia ser? Ah! Cassiopéia tinha conhecimentos das coisas antes de acontecerem . . . então conhecia . . . __ O futuro! – exclamou Manu. __ “O primeiro não está em casa – ainda não chegou” quer dizer o futuro. “O segundo estava, mas foi-se” significa o passado. Mestre Hora acenou afirmativamente, sorrindo satisfeito.

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__ Mas – continuou a menina pensativa – agora está mais difícil: o que será o terceiro? É o menor dos três, sem ele os dois outros não podem existir . . . e é o único que está em casa . . . Refletiu um pouco e gritou de repente: __ É o presente! É este momento! O passado é formado pelos momentos que se foram; o futuro pelos que ainda vão chegar e nenhum dos dois pode existir sem o presente. Acho que acertei! As faces de Manu estavam coradas de entusismo: __ Mas o que quer dizer o seguinte: “A existência do terceiro só pode ser avaliada porque o primeiro se transformou no segundo?” __ Ah! Já sei, deve significar que o presente só existe porque o futuro já virou passado. Olhou para Mestre Hora, cheia de espanto: __ É verdade, e eu nunca tinha pensado nisso, antes. Mas então existe realmente o presente, ou só o passado e o futuro? Agora, por exemplo, quando falo no presente, ele já se tornou passado . . . assim, compreendo também que olhando para o terceiro irmão, é o primeiro e o segundo que nos vêm à mente. Afinal, poderíamos dizer que só existe um único irmão – o presente; como poderíamos dizer que só existem, na realidade, o passado e o futuro. Ou talvez nenhum deles, pois cada qual só tem existência em relação aos outros dois. Puxa! Fiquei de cabeça quente! __ Mas a charada ainda não acabou – disse Mestre Hora. __ Qual é o grande reino que os três governam juntos, e que eles próprios constituem? Manu voltou-se para ele, perplexa. Que seria isso? Onde é que o presente, o passado e o futuro se encontram juntos? Seu olhar percorreu a sala imensa, fixando-se nos milhares de relógios. Com expressão subitamente iluminada, exclamou então: __ É o tempo! Isso significa o tempo! E pulava de alegria. __ Diga-me agora qual é a casa em que moram os três irmãos – acrescentou Mestre Hora.

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__ Deve ser o mundo – respondeu a menina. Desta vez foi Mestre Hora quem bateu palmas de contentamento: __ Bravo! Parabéns, Manu! Você é boa nas charadas! Isso muito me alegra. __ Também a mim! – disse a criança, que secretamente perguntava a si mesma por que Mestre Hora ficara tão satisfeito que ela tivesse acertado a charada. Continuaram passeando pela sala cheia de relógios, o dono da casa mostrando coisas cada vez mais interessantes, mas Manu estava ainda com o pensamento naquela adivinhação e fez-lhe de repente esta pergunta: __ Diga-me, que é afinal o tempo? __ Você já o descobriu sozinha! – respondeu Mestre Hora. __ Mas eu quero saber o que ele é em si mesmo. Se existe, deve ser alguma coisa! O que é realmente o tempo? __ Seria bom que você própria também encontrasse essa resposta – disse Mestre Hora. Manu ficou longo tempo pensativa. Depois, murmurou absorta: __ Ele existe, isso é certo. Mas não pode agarrar o tempo, nem o conservar. Será como uma espécie de perfume? Mas se é uma coisa que está sempre passando, deve vir de algum lugar. Será como o vento? Não; já sei: talvez seja como uma espécie de música, que não se ouve porque está sempre tocando . . . mas penso que eu já a escutei, muito baixinho. __ Sei disso – confirmou Mestre Hora –, e foi por esse motivo que pude mandar buscar você. __ Deve porém haver mis alguma coisa – continuou Manu, sempre meditando. __ A música vinha de muito longe, e no entanto parecia ressoar no mais profundo de mim mesma. Talvez também seja assim, não? Parou, confusa, e acrescentou meio desnorteada:

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__ Quero dizer, talvez seja como as ondas que aparecem na água por causa do vento. Oh! Creio que estou dizendo uma porção de tolices! __ Pois eu acho que você descreveu tudo muito bem! – exclamou Mestre Hora. __ E por isso vou contar um segredo: todo o tempo dos homens provém da Mansão de Lugar Nenhum, no fim da Alameda do Nunca. Manu olhou-o cheia de admiração e disse baixinho: __ É o senhor mesmo quem faz o tempo? Mestre Hora sorriu novamente: __ Não, menina, eu sou apenas o distribuidor; meu dever é dar a cada ser humano o tempo que lhe é consignado. __ E o senhor não pode arranjar facilmente um jeito para que esses ladrões não possam mais roubar o tempo das pessoas? – perguntou Manu. __ Não; não posso – respondeu Mestre Hora –, pois as pessoas têm de decidir elas mesmas quanto ao uso que fazem do seu tempo. E devem também ter cuidado com ele. Só o que me cabe fazer é repartilo. Manu lançou um olhar à sua volta e perguntou: __ É por isso que o senhor tem tantos relógios? Um para cada pessoa? __ Não, Manu. Esses relógios são apenas meu prazer – minha distração predileta –, são simplesmente uma cópia muito imperfeita de algo que cada um tem no seu próprio coração. Assim como você tem olhos para ver a luz, ouvidos para escutar os sons, tem também um coração para entender o tempo. E todo o tempo que não é apreendido pelo coração é tão desperdiçado como o seriam as cores do arco-íris para um cego ou o canto ca cotovia para um surdo. Infelizmente, porém, existem alguns corações cegos e surdos, que nada entendem, mesmo quando batem como os demais. __ Que acontecerá quando meu coração parar de bater? – perguntou Manu.

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__ Então, o tempo terá terminado para você. Ou pode-se também dizer que você mesma é que voltará através do tempo, através de todos os seus dias e noites, meses e anos: voltará através de toda a sua vida, até chegar à grande porta semicircular de prata, por onde no princípio você entrou e pela qual sairá de novo. __ Que é que tem do outro lado? __ Ah! Lá você estará no lugar de onde vem a música que tem por vezes ouvido, muito, muito longe. E então você mesma já fará parte dessa música: será uma nota na grande harmonia. Mestre Hora considerou a criança com olhar atento: __ Mas não creio que você agora possa compreender isso. __ Acho que posso – murmurou Manu. Lembrou-se da caminhada que fizera na Alameda do Nunca, quando teve de andar de costas e pareceu-lhe regredir através de toda a sua vida. Perguntou então: __ O senhor é a morte? Mestre Hora sorriu e ficou silencioso por alguns momentos, antes de responder. __ Se as pessoas soubessem como é a morte, não teriam meda dela e assim já não seria possível roubar o tempo de ninguém. __ Então, o que temos de fazer é avisá-las – sugeriu Manu. __ Você acha? Pois é o que eu lhes digo em cada hora que lhes dou, mas não querem ouvir. Preferem acreditar naqueles que as assustam. Isso também é um mistério. __ Eu não tenho medo – afirmou Manu. Mestre Hora sacudiu devagar a cabeça, olhou em seguida para a menina e perguntou: __ Você gostaria de ver de onde vem o tempo? __ Muito! – sussurrou ela. __ Pois vou levar você lá – disse Mestre Hora. __ Mas você terá de ficar inteiramente silenciosa, sem perguntar nem dizer nada. Promete? Manu acenou afirmativamente, sem uma palavra. Mestre

Hora

curvou-se

então

e

carregou-a,

segurando-a

firmemente nos braços. Parecia de repente ter-se tornado muito grande

120

e incrivelmente velho – não como um velho comum, e sim qual árvore muito antiga, ou montanha primitiva. Pôs as mãos sobre os olhos da menina, e foi como se frios e leves flocos de neve caíssem sobre seu rosto. Manu tinha a impressão de que ele a levava por um longo e escuro corredor, mas se sentia segura e não tinha medo algum. No começo, pensou estar ouvindo as batidas de seu próprio coração, logo, porém, pareceu-lhe, cada vez mais, que elas eram o eco dos passos de Mestre Hora. O percurso foi longo, mas por fim ele a colocou de pé, e com o rosto ainda bem junto ao seu, olhando-a fixamente, pôs um dedo nos lábios. Depois, endireitou-se e deu um passo atrás. Um crepúsculo dourado envolveu a menina. Aos poucos, Manu viu que estava sob uma cúpula imensa, tão alta como a abóbada celeste, toda em ouro. No cimo, bem no centro, havia uma abertura circular pela qual uma verdadeira coluna de luz se irradiava sobre um lago, também redondo, do mesmo tamanho da abertura do alto, cuja superfície negra era tão lisa e imóvel como a de um escuro espelho. Pouco acima da água, algo parecendo uma brilhante estrela resplandecia na coluna luminosa, movendo-se com majestosa lentidão. Observando melhor, Manu viu que era um enorme pêndulo, oscilando de um lado para outro sobre o espelho negro do lago. Não estava suspenso de nenhum ponto, e pairava no ar como se fosse imponderável. Quando o pêndulo estelar se aproximou da margem do lago, um grande botão de flor surgiu sobre a água escura. Quanto mais perto chegava

o

pêndulo,

mais

desabrochava

o

botão,

até

abrir-se

completamente sobre a superfície lisa. Era a flor mais maravilhosa que Manu jamais havia visto: parecia feita apenas de uma quantidade de cores brilhantes, tão belas como a menina nunca imaginara que existissem. O pêndulo estelar se deteve um instante sobre a flor e Manu, completamente absorta nessa visão, estava inconsciente de tudo o mais

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a seu lado. O perfume da flor parecia-lhe uma coisa que sempre havia desejado, sem saber o que fosse. Aos poucos, porém, devagar, muito devagar, o pêndulo começou a se afastar e, enquanto se distanciava, Manu viu com assombro que a flor maravilhosa começava a murchar. As pétalas caíam, uma após outra, mergulhando na escura profundeza. Quando o pêndulo chegou ao centro, nada restava daquela extraordinária beleza. Naquele exato instante, porém, outro botão começou a surgir da água, desta vez do lado oposto, e foi se abrindo à medida que pêndulo se aproximava. Manu viu que a outra flor maravilhosa ali desabrochava, ainda mais bela do que a anterior, e deu a volta ao lago para apreciá-la mais de perto. Era inteiramente diversa da flor antecedente: suas cores pareciam à menina ainda mais ricas e suntuosas; seu perfume também era outro, ainda mais delicioso. E quanto mais Manu a contemplava, mais lindos detalhes nela cobria. De novo, porém, o pêndulo oscilou para longe e todo aquele esplendor se desvaneceu, caindo, pétala por pétala, na insondável profundeza do lago. Lenta, lentamente, o pêndulo moveu-se para a outra margem, e desta vez aproximou-se de outro ponto, ligeiramente distante do anterior, onde começou a surgir novo botão, que foi gradualmente desabrochando. Extasiada, Manu admirava essa flor – verdadeiro milagre de beleza –, que superava todas as outras. Manu quase chorou ao ver também essa perfeição murchar e desaparecer no lago sombrio. Mas lembrou-se da promessa que fizera a Mestre Hora e ficou muda. Então, na outra margem, no lugar onde se achava o pêndulo, surgia da água outro botão prestes a se abrir. Aos poucos, a menina foi compreendendo que cada nova flor era sempre diferente da anterior e que aquela que floria agora lhe parecia a mais bela de todas.

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Não

se

cansava

de

apreciar

aquela

cena,

quando

tomou

consciência de que mais alguma coisa ali ocorria constantemente sem que o tivesse notado. A coluna de luz irradiando do alto da cúpula não era apenas visível – Manu começou também a ouvi-la. No princípio era apenas um leve sussurro como o som distante do vento soprando no cimo das árvores. Logo, porém, o som aumentou, fazendo-a imaginar uma cascata despencando das alturas, ou em grandes ondas rebentando contra os rochedos. Foi percebendo, cada vez mais distintamente, que aquele impressionante ruído era composto de inúmeras melodias separadas, que modulavam e se uniam para formar harmonias sempre novas. Era música e, ao mesmo tempo, coisa inteiramente diversa. De repente, Manu descobriu: era música que ela ouvia por vezes, longe, muito ao longe, quando se punha a escutar o silêncio sob o céu estrelado. O som se tornara mais nítido e irradiante. A menina começou então a suspeitar ser essa luz sonora que fazia surgir as flores das profundezas do sombrio lago, dando a cada uma sua beleza própria, única. Quanto mais atentamente ouvia, com maior clareza podia distinguir as vozes individuais, que aliás não eram vozes humanas: pareciam vibrações de ouro, prata e outros metais preciosos. Além disso, no fundo, como cortina sonora, ressoavam vozes de outra espécie, de indescritível esplendor, vindas de incomensurável distância. Tornavamse cada vez mais claras e Manu pôde aos poucos ouvir as palavras que elas cantavam. Palavras numa língua que jamais ouvira, e que no entanto compreendia: o Sol, a Lua, os planetas e todas as estrelas lhe revelavam seus nomes reais e verdadeiros. Esses nomes é que determinavam aquela maravilhosa força pela qual, todos unidos, suscitavam a floração das horas, que continuamente floriam e se desvaneciam.

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Subitamente Manu compreendeu que aquelas palavras se dirigiam a ela! Todo o universo – desde a mais longínqua estrela – voltava-se para ela como se uma única face, inconcebivelmente vasta, a contemplasse e lhe falasse. Sentiu-se invadida por um sentimento maior do que o temor. Nesse instante, viu Mestre Hora, que silenciosamente lhe acenava. Correu para ele, refugiou-se nos seus braços e escondeu o rosto no seu peito. De novo ele colocou as mãos sobre os olhos da menina, tão suavemente como flocos de neve; tudo se tornou escuro, silencioso, e Manu sentiu-se segura enquanto era carregada de volta pelo sombrio corredor. Quando chegaram novamente à saleta entre os relógios, ele deitou-a no sofá. __ Mestre Hora – murmurou a criança –, nunca pensei que o tempo dos homens fosse tão . . . – procurava a palavra capaz de exprimir seu pensamento, e, não a encontrando, disse por fim: __ tão imenso! __ O que você viu e ouviu, Manu, não foi o tempo de todos os homens, foi apenas o seu tempo – replicou Mestre Hora. __ Em todas as pessoas existe um lugar como esse em que você esteve há pouco. Mas só podem chegar lá as que consentem em que eu as leve. E também não se pode vê-lo com os olhos comuns. __ Mas onde é que eu estive? __

No

seu

próprio

coração



respondeu

ele,

acariciando

suavemente o cabelo da menina. __ Mestre Hora – disse ela baixinho –, posso trazer aqui meus amigos para conhecerem o senhor? __ Não; por enquanto não é possível. __ E quanto tempo possa ainda ficar aqui? __ Até você sentir que deve voltar para junto de seus amigos. __ Posso contar a eles o que as estrelas disseram? __ Pode, mas você não será capaz disso. __ Por que não?

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__ Porque, para conseguir tal coisa, primeiro as palavras têm de crescer dentro de você. __ Mas eu queria contar a eles – a todos eles – tudo quanto vi e ouvi! E também cantar o que as vozes contavam . . . assim, acho que tudo endireitava outra vez! __ Se você o quer realmente, Manu, tem de preparar-se para uma longa espera. __ Não me importo de esperar. __ Você terá d esperar, tal como a semente precisa dormir dentro da terra, talvez durante todo um ciclo solar, para que brote. Está disposta a isso? __ Sim, estou! – disse ela num murmúrio. __ Então durma! E Mestre Hora pôs as mãos leves sobre seus olhos: __ Durma! Tranqüila, Manu respirou fundo e adormeceu.

TERCEIRA PARTE A floração das horas

13. Um dia lá mas um ano aqui! Manu acordou e abriu os olhos. Levou algum tempo até perceber onde se achava. Quando percebeu, ficou muito admirada ao ver-se nos degraus cobertos de capim do velho anfiteatro. Não tinha estado na Mansão de Lugar Nenhum com Mestre Hora, havia apenas alguns instantes? Como voltara tão depressa? Estava escuro e frio. No leste brilhava o primeiro clarão da alvorada.

Lembrava-se

perfeitamente

bem

de

tudo

quanto

lhe

acontecera: a fuga noturna acompanhando a tartaruga através da grande cidade, as ruas com aquela estranha luz e as casas ofuscantes

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de tão brancas, a Alameda do Nunca, a sala cheia de relógios, os pãezinhos com mel e o delicioso chocolate, bem como cada palavra de sua conversa com Mestre Hora e a charada que ele propôs. Acima de tudo, porém, recordava o que se passara sob a cúpula de ouro. Bastavalhe fechar os olhos para rever as maravilhosas cores – jamais sonhadas! – das flores e ouvir de novo as vozes do Sol, da Lua, das estrelas, tão nitidamente que podia até cantarolar a melodia para acompanhá-las. Ao fazer isso, palavras começaram a tomar forma em seu coração: palavras que realmente exprimiam o perfume das flores e a beleza das cores, inexistentes na terra ou no mar. Eram as vozes que, na memória de Manu, falavam as palavras e sucedeu então algo de extraordinário; não só se lembrava de tudo o que vira e ouvira, mas havia ainda muito, muito mais! Milhares de imagens da floração das horas brotavam da sua mente como

se

jorrassem

de

uma

fonte mágica,

inextinguível,

suscitando sempre palavras novas. Bastava ouvir atentamente seu coração para ser capaz de repeti-las ou de acompanhar as vozes, que cantavam coisas lindas e maravilhosa. Ao pronunciá-las, Manu percebeu que agora entendia seu verdadeiro sentido. Era sem dúvida o que o Senhor do Tempo dissera por intermédio de Mestre Hora, ao avisá-la de que as palavras tinham de nascer dentro dela mesma! Ou teria sido tudo apenas um sonho? Acontecera realmente tudo aquilo? Manu estava ainda absorta naquelas reflexões, quando viu alguma coisa rastejando no meio da arena. Era uma tartaruga à procura de uma planta saborosa para comer. A toda a pressa, a menina desceu e ajoelhou-se perto do animal, que mal ergueu a cabeça, continuando a mordiscar aqui e ali. __ Bom dia, tartaruga! – disse Manu. Nenhuma resposta apareceu na carapaça. __ Foi você que me levou à mansão de Mestre Hora, a noite passada? – perguntou Também não houve resposta. Manu deu um suspiro de desapontamento e murmurou:

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__ Que pena, então você é uma tartaruga comum, e não – Oh! Esqueci-me do nome da outra . . . era um nome bonito, comprido, difícil, que eu nunca tinha ouvido antes. “CASSIOPÉIA”,

apareceu

subitamente

em

letras

fracamente

luminosas na carapaça. __ É isso! Era esse o nome! Então é você mesma! Você é a tartaruga de Mestre Hora, não é? “DE QUEM MAIS?” __ Por que, no começo, não me respondeu? “PORQUE ESTOU COMENDO.” __ Oh! Desculpe – disse Manu. __ Não queria interromper seu almoço, mas desejava saber como é que eu voltei para cá. “ POR SUA VONTADE ”, apareceu nas costas do bichinho. __ É engraçado – observou Manu –, não consigo me lembrar disso. E você, Cassiopéia, por que não ficou com Mestre Hora em vez de voltar para perto de mim? “ MINHA VONTADE ”, foi a resposta em letras luminosas. __ Oh! Como você é boazinha! Muito obrigada! “ NÃO TEM DE QUÊ! ”, e com isso terminou a conversa, pois a tartaruga estava interessada em continuar sua refeição. Sentada nos degraus de pedra, Manu pensava com alegria em Beppo, Guido e nas crianças. A música ressoava continuamente em seu coração, e embora estivesse inteiramente só, sem ninguém para ouvi-la, pôs-se a acompanhar a música e as palavras, cantando cada vez mais alto e com maior segurança, ao sol da manhã. Parecia-lhe agora que os pássaros, os grilos e até as velhas pedras estavam ouvindo. Não podia saber que, por muito tempo, seriam esses seus únicos ouvintes. Não sabia que esperava em vão por seus amigos, nem que sua ausência fora muito longa e que, enquanto isso, as coisas tinham mudado. Guido foi uma presa relativamente fácil para os homens cinzentos. Tudo começara um ano atrás, logo depois que Manu desapareceu, sem

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deixar nenhuma pista. Um longo artigo a respeito de Guido saíra então no jornal no jornal com o título “O último verdadeiro contador de histórias”, indicando onde e quando podia ser encontrado, e dizendo ser ele uma atração que não se podia perder. A notícia atraiu cada vez mais gente ao velho anfiteatro para ouvir Guido, que, é claro, não se opunha a tal sucesso. Contava histórias como de costume, aproveitando qualquer coisa que lhe vinha à cabeça; no fim, passava o boné de guia, e o público enchia-o de moedas e notas. Em breve foi contratado por uma agência de viagens, que lhe pagava uma comissão para inclui-lo em seus programas. Os turistas chegavam em grande ônibus, e Guido viu-se obrigado a horários determinados a fim de que o público pagante tivesse realmente oportunidade de ouvi-lo. No começo, sentiu muito a ausência de Manu, pois de certo modo faltavam agora asas às suas histórias, e ele recusava terminantemente contar duas vezes a mesma história, ainda que lhe oferecessem salário dobrado. Depois de alguns meses, já não precisava mais ir ao velho anfiteatro: foi descoberto pelo rádio e logo em seguida pela televisão. Aparecia na TV três vezes por semana, contando histórias a milhares de telespectadores e ganhando bastante dinheiro. Abandonou então sua antiga e pobre morada perto do anfiteatro, passando a viver no mais rico e elegante bairro da cidade, onde alugou uma bela e moderna casa, situada em meio de vasto jardim. Deixou também de chamar-se Guido e voltou a ter o pomposo nome de Girolamo. Naturalmente, há muito que já não inventava histórias novas, como fazia a princípio: não tinha tempo para isso, e era obrigado a poupar seus recursos, esticando por vezes a mesma idéia para encher cinco histórias diferentes. Certo dia, quando apesar dessas medidas, não teve meios de satisfazer à crescente procura que o assediava, fez uma coisa que jamais deveria ter feito: contou uma das histórias que inventara unicamente para Manu.

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História devorada e logo esquecida pelo público com a rapidez habitual. Continuavam porém a exigir dele sempre mais e mais fábulas, e Guido, atordoado pela velocidade com que os compromissos se sucediam, sem tempo para refletir, foi tornando públicas – uma por uma – todas as histórias que inventara só para Manu . . . Mas, depois de ter contado a última, sentiu-se de repente completamente vazio – oco. E sentiu-se que jamais teria novas idéias. Com medo de que o sucesso pudesse fugir começou então a repetir todas as suas velhas histórias, modificando-as ligeiramente e dando-lhes outros nomes. O mais extraordinário é que ninguém parecia saber isso, e ele era mais requisitado do que nunca. Agarrava-se a esse fato como um afogado a uma tábua de salvação. Afinal, estava agora rico, famoso, e não era o que sempre sonhara? No entanto, às vezes, à noite, deitado na cama sob o edredom de cetim, tinha saudades dos dias de antigamente, quando vivia perto de Manu, do velho Beppo, das crianças, e era realmente capaz de contar histórias. Porém,

era

impossível

voltar

atrás,

mesmo

porque

Manu

desaparecera sem deixar vestígio. A princípio, Guido fizera vários e sérios esforços para encontrá-la; agora já não tinha mais tempo para isso. Dispunha de três eficientes secretárias, que redigiam seus contratos, taquigrafavam as histórias que ele ditava, encarregavam-se de toda a publicidade, anotavam seus compromissos e nunca havia data em que se pudesse encaixar a busca de Manu. Quase nada ficara do antigo Guido . . . Um dia, porém, ele procurou juntar o pouco de tempo que ainda restava e decidiu pensar seriamente na sua vida. Era agora um homem cujas palavras valiam muito e eram ouvidas por milhões de pessoas. Quem mais indicado para dizer-lhes a verdade? Contaria tudo acerca dos homens cinzentos, dizendo que não se tratava mais de uma história inventada por ele, e pediria até o auxílio de seus ouvintes para ajudá-lo a encontrar Manu. Tomou tal resolução uma noite em que sentiu saudades dos velhos amigos, e pela manhã estava sentado à sua bela escrivaninha, disposto

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a fazer um rascunho de seu projeto. Não tinha ainda escrito uma só palavra, quando o telefone tocou. Guido atendeu e ficou duro de pavor. Uma voz estranha, átona, cinzenta, começou a falar-lhe; e, enquanto ele ouvia, um frio interior o penetrava, parecendo vir da medula dos ossos. __ No seu próprio interesse, nós o aconselhamos a desistir de seus planos – disse a voz. __ Quem fala? – perguntou Guido __ Você sabe perfeitamente quem é. Nós não precisamos de apresentação. É verdade que até agora você não teve o prazer de nos encontrar; mas há muito que é nosso de corpo e alma. Não me diga que você o ignora! __ Que querem comigo? __ O que você está projetando não nos convém. Seja bom sujeito e desista! Guido apelou para toda a seu coragem: __ Não, não vou desistir de coisa nenhuma. Não sou mais o insignificante Guido de antigamente. Agora sou um grande homem. Veremos se vocês podem me impedir de fazer alguma coisa. A voz deu uma risada sem expressão e, subitamente, Guido começou a bater os dentes. __ Você não é ninguém – continuou a voz. __ Nós é que fizemos o que você é hoje: um simples boneco de borracha que enchemos de gás. Mas, se nos trair, nós o esvaziaremos. Ou você pensa que deve tudo quanto é atualmente a seu medíocre talento e a si próprio? __ Sim! É isso mesmo que eu penso – respondeu Guido roucamente. __ Coitado! Você é e sempre foi um romântico sonhador: costumava ser o Príncipe Girolamo disfarçado num pobre-diabo chamado Guido; hoje você é esse pobre-diabo fantasiado de Príncipe Girolamo. Contudo, deve ser-nos grato, pois nós fizemos com que seu sonho se realizasse. __ Iss . . . Isso não . . . não é verdade! É mentira! – gaguejou Guido.

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__ Vejam só! – exclamou a voz com outro riso inexpressivo. __ Essa agora, você é a última das criaturas que nos pode falar a verdade. Não, meu pobre rapaz, isso está completamente fora de sua linha. Graças à nossa ajuda, você é hoje famoso pelas histórias que inventa, mas realmente não está qualificado para discorrer sobre a verdade. __ Que é que fizeram com Manu? – perguntou Guido num sussurro. __ Ora, não canse sua cabeça-de-vento quanto a isso. Você não pode socorrê-la, muito menos se quiser contar histórias a nosso respeito. Se o fizer, o único resultado será ver sua fama desaparecer tão depressa quanto surgiu. Evidentemente, quem decide é você! Não queremos impedi-lo de bancar o herói a arruinar-se, já que se sente inclinado a tal atitude. Não pode no entanto esperar que continuemos a promovê-lo, uma vez que se mostra tão ingrato. Não acha mais agradável ser rico e famoso? __ Acho . . . – disse Guido quase sufocando. __ Agora, sim! Acertou! Então deixe-nos de fora, ouviu? Continue contando ao povo o que ele quer ouvir. __ Mas como poderei continuar, agora que sei como as coisas realmente são? – respondeu Guido com esforço. __ Deixe-me dar um bom conselho: não se leve tão a sério, rapaz! Não há nada que você possa fazer. Convença-se disso, e poderá prosseguir como até hoje. __ É – murmurou Guido, os olhos fitos no espaço –, se eu pensar assim... Nesse instante, escutou que desligavam e ele também colocou o fone no gancho. Caiu de bruços sobre sua imponente escrivaninha, sacudido por soluços silenciosos. Dali por diante, Guido perdeu toda a dignidade. Abandonou o projeto que formulara e continuou como até então, mas se sentia intimamente frustrado. No princípio sua imaginação conduzira-o por um atalho florido, que ele seguia alegremente; agora, no entanto, só contava mentiras. Tornara-se um fantoche, um palhaço para divertir o público. Sabia-o, e começou a odiar sua profissão. Suas histórias iam

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ficando cada vez mais ridículas ou sentimentais, embora isso não prejudicasse seu sucesso. Pelo contrário, consideravam ser esse seu novo estilo, que logo se tornou moda, e muitos começaram a copiar. Guido, porém, não tinha mais o menor prazer no seu trabalho. Sabia agora a quem devia tudo aquilo: não ganhara nada; perdera tudo. Mas seu veloz automóvel continuava levando-o a toda parte, de programa em programa; voava nos mais rápidos aviões e, onde quer que se encontrasse, estava sempre ditando a suas secretárias as mesmas velhas histórias com alguma roupagem diferente. Todos os jornais comentavam sua extraordinária “fecundidade literária”. Beppo Varredor foi para os homens cinzentos um problema bem mais árduo. Desde a noite em que Manu desaparecera, ele sentava-se no anfiteatro, sempre que seu trabalho o permitia, e lá ficava à espera dela. Sua inquietude e aflição aumentavam cada vez mais e por fim, não suportando o peso daquela ansiedade, apesar de todas as justas objeções de Guido, resolveu dar parte à polícia. “Afinal”, pensava ele, “é preferível que Manu seja levada a um orfanato, mesmo com grades nas janelas, a ficar prisioneira dos homens cinzentos. Se ela já uma vez fugiu do asilo, talvez possa escapar de novo... e quem sabe até eu consiga dar um jeito de não ser preciso interná-la . . . Mas a primeira coisa a fazer é encontrar a menina.” Dirigiu-se pois ao distrito policial mais próximo, no subúrbio da cidade. Ficou por algum tempo parado diante da porta, girando o boné entre os dedos e recorrendo a toda a sua valentia para entrar. __ Que deseja? – perguntou o policial, ocupado em preencher um longo e complicado formulário. Beppo demorou um pouco até poder pronunciar estas palavras: __ Aconteceu uma coisa terrível. __ Ah! – disse o policial, sempre escrevendo. __De que se trata? __ De nossa pequena Manu – respondeu Beppo. __ É uma criança?

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__ Sim, uma menina. __ É sua filha? __ Não – replicou Beppo, confuso –, ou melhor, é; mas não sou seu pai. __ Que história é essa? – perguntou o policial, aborrecido. __ Então ela é filha de quem? Onde estão seus pais? __ Ninguém sabe – murmurou o varredor. __ Onde é que foi registrada? __ Registrada? Acho que conosco mesmo, todos nós conhecemos a menina. __ Não foi registrada! – disse o policial, suspirando: __ Não sabe que isso é contra a lei? Com quem mora essa criança? __ Sozinha, no velho anfiteatro; isto é, morava, mas agora não está mais lá. __ Um momento – pediu o policial –, se entendi bem, trata-se de uma menina errante que vivia naquelas ruínas, e agora desapareceu. Como é mesmo o nome dela? __ Manu – disse Beppo, enquanto o policial tomava notas. __ Manu de quê? Dê o nome completo, por favor! __ Mas é só Manu! O policial coçou o queixo, contrariado. __ Assim não é possível! Quero ajudar o senhor, mas não posso redigir um relatório desse jeito. Primeiro, diga-me seu próprio nome. __ Beppo. __ Beppo . . . que mais? __ Beppo Varredor. __ Não perguntei qual seu emprego, quero o seu nome todo! __ Mas é esse mesmo – respondeu Beppo humildemente. O policial escondeu

o rosto entre as mãos e murmurou,

desesperado: __ Deus me dê paciência! Por que estou de serviço justamente agora?

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Em seguida, endireitou-se, jogou os ombros para trás, sorriu animadoramente para o velho e falou-lhe de mansinho, como quem fala a um doido com quem é preciso concordar: __ Os detalhes particulares ficam para depois. Agora conte-me a história toda do começo ao fim – o que realmente aconteceu, como aconteceu. __ Toda a história? – indagou Beppo, na dúvida. __ Tudo de importante. Só Deus sabe como é que estou ocupado, não tenho um momento a perder! Preciso terminar esta pilha de formulários até a hora do almoço, mas não se afobe, conte-me tudo que tem na cabeça. Recostou-se e fechou os olhos com cara de mártir, enquanto Beppo, no seu modo original e minucioso, narrava o caso todo, desde o imprevisto aparecimento de Manu e seu extraordinário dom de saber ouvir até acena dos homens cinzentos, reunidos no depósito de lixo, que ele tinha presenciado. __ Nessa mesma noite a menina desapareceu – concluiu afinal. O policial lançou-lhe um demorado olhar de pena e declarou: __ Em outras palavras: era uma vez uma menina de cuja existência não temos provas, que foi raptada por uma espécie de espíritos (que todo mundo sabe não existirem) e levada Deus sabe para onde. E mesmo disso, não há certeza. Ora, o senhor espera que a polícia vá se incomodar com semelhante história? __ Sim, por favor! – disse Beppo. A essa altura, o policial debruçou-se por cima da mesa e gritou furioso: __ Deixe-me cheirar o seu bafo. Beppo não compreendeu o alcance da ordem, mas encolheu os ombros e soprou docilmente sobre o rosto do policial, que sacudiu a cabeça negativamente, dizendo: __ Não, aparentemente não está bêbado. Vermelho diante do vexame, Beppo afirmou: __ Nunca estive bêbado!

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__ Então por que me conta todas essas tolices? Acha que a polícia é tão idiota que vai acreditar nessas asneiras? __ Acho que sim! – respondeu Beppo inocentemente. Exasperado, fora de si, pulou da cadeira, deu um murro na mesa e berrou: __ Chega! Saia já daqui! Senão mando prender você por desrespeito à autoridade. __ Desculpe – murmurou Beppo –, não tive essa intenção, o que eu queria . . . __ Fora! – rugiu o agente. Beppo virou-se nos pés e saiu. Nos dias seguintes procurou vários outros distritos, mas a cena era sempre a mesma. Os policiais mandavam-no embora ou diziam-lhe gentilmente que fosse para casa, enquanto outros tentavam consolá-lo com promessas para se livrar dele mais depressa. Certa vez, no entanto, Beppo entrou em contato com um agente mais velho e com menos senso de humor que seus colegas. Este ouviu toda a história com fisionomia impassível e declarou friamente: __ Este homem é maluco. Temos de saber se ele é um perigo para a segurança pública ou não. Prendam-no numa cela. Assim, Beppo passou metade do dia na cadeia, até que dois policiais o levaram de automóvel através da cidade a um grande edifício branco com grades nas janelas. Não era uma prisão, como a princípio pensou, e sim um hospital para doentes mentais. Ali passou por um exame completo. Os médicos especialistas e as enfermeiras eram gentis com ele; não gritavam nem zombavam, pareciam até muito interessados na sua história, pois tinha sempre de repeti-la. Não descobriam doença alguma; contudo, não o deixavam ir embora. Cada vez que ele perguntava quando poderia sair, diziam-lhe: __ Logo; mas precisa ficar aqui mais um pouco; nossas pesquisas não estão completas, porém estão bem adiantadas. E Beppo, pensando que estavam investigando acerca de Manu, enchia-se de paciência.

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Deram-lhe uma cama num grande dormitório, onde havia com número de doentes. Uma noite, acordou e na débil luz noturna percebeu alguém de pé a seu lado. Primeiro distinguiu apenas a ponta de um charuto aceso; depois reconheceu o chapéu-coco e a pasta cinzenta que um vulto escuro trazia. Quando compreendeu tratar-se sem dúvida de um dos homens cinzentos, sentiu frio até a medula dos ossos e já ia gritar por socorro. __ Quieto! – ordenou uma voz cinzenta, saída da escuridão. __ Fui autorizado a fazer-lhe uma proposta. Escute e não fale até que eu lhe diga. Você já teve provas da extensão do nosso poder. As histórias que conta a nosso respeito absolutamente não nos prejudicam, mas nós não as apreciamos. Por acaso, a suposição de que sua amiguinha Manu é nossa prisioneira está certíssima. No entanto, pode perder a esperança de encontrá-la: isso jamais acontecerá. E seus esforços para libertar a menina não a ajudam em nada: pelo contrário, ela terá de pagar por todas as tentativas que você fizer. Daqui por diante, tenha pois cuidado com seus atos e palavras. O homem cinzento soprou uma série de anéis de fumaça e observou, satisfeito, a impressão causada por seu discurso no velho Beppo, que acreditou em tudo. __ Serei o mais breve possível, porque o meu tempo também é valioso – continuou ele. __ A proposta que lhe fazemos é a seguinte: Manu voltará, desde que você nunca mais fale em nós e nas nossas atividades. Além disso, a título de perdas e danos, terá de nos dar cem mil horas de tempo poupado. Não se preocupe com o modo pelo qual entraremos de posse desse tempo – isso é problema nosso. A você cabe poupar o tempo. Se estiver de acordo, faremos com que dentro de poucos dias você seja mandado para casa; se não, ficará aqui para sempre e Manu continuará conosco. Pense bem! Esta generosa oferta não se repetirá! Beppo engoliu em seco algumas vezes e por fim resmungou: __ Concordo!

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__ Ainda bem que você é sensato! – disse o homem cinzento. __ Mas não se esqueça: silêncio absoluto e cem mil horas! Logo que as tivermos, soltaremos Manu. Comece pois quanto antes seu trabalho. Com isso, o homem cinzento saiu, deixando atrás o toco do charuto que ficou luzindo fracamente no escuro como um fogo-fátuo. Daí em diante, Beppo nunca mais contou a sua história. Quando lhe

perguntavam

porque

tinha

inventado

tudo

aquilo,

encolhia

tristemente os ombros, em silêncio. Após alguns dias mandaram-no para casa. Ele, porém, não foi para casa. Dirigiu-se para o grande edifício, onde, com seus companheiros, costumava apanhar a vassoura e o carrinho de mão. Pegou a vassoura, foi para a grande cidade e começou a varrer. Agora, não mais no seu antigo ritmo, mas premido por terrível pressa, sem a menor satisfação no seu serviço, aflito somente por poupar tempo. Tinha dolorosa consciência de que estava agindo contra suas mais profundas convicções, traindo os hábitos adquiridos durante toda a sua vida. Sentiu-se desgostoso e, se não fosse por Manu, teria preferido morrer de fome a ser infiel a si mesmo. Era preciso no entanto resgatar a manina, e o único jeito que conhecia de poupar tempo era aquele. Varria dia e noite sem parar. Quando se sentiu muito exausto, sentava-se no banco de um parque ou mesmo no meio-fio e tirava um cochilo. De vez em quando, sempre varrendo, comia qualquer coisa. À sua cabana, junto ao anfiteatro, nunca mais voltou. Veio o outono, depois o inverno; em seguida a primavera e o verão, mas Beppo quase não percebia mais as estações, varrendo, varrendo, varrendo, a fim de poupar as cem mil horas exigidas. A gente da grande cidade não tinha tempo para reparar no velho varredor. Os poucos que o notavam batiam na testa significativamente ao vê-lo, sem fôlego, empurrando a vassoura como se disso dependesse a sua vida. Para Beppo não era novidade que o considerassem maluco e não se importava com isso. Agora, porém, quando lhe perguntavam o

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motivo de tanta pressa, olhava assustado e ansiosamente para o interlocutor e punha o dedo nos lábios. A tarefa mais difícil para os homens cinzentos era pôr nos seus moldes as crianças que haviam sido amigas de Manu. Mesmo depois do desaparecimento da menina elas continuavam a se reunir no anfiteatro sempre que podiam, e inventavam novas brincadeiras. Algumas caixas e cestos vazios eram o bastante para embarcarem em longas e arriscadas viagens ao redor do mundo ou construírem castelos e altas montanhas. Além disso, faziam planos para o futuro, contando histórias umas às outras, procedendo enfim como se Manu ali estivesse. Agindo assim parecia-lhes

que, na verdade, também Manu estava ali. Nunca

duvidaram de que ela voltaria; não falavam nisso, mas estavam unidas numa silenciosa certeza; Manu lhes pertencia e era o secreto laço de união entre elas. Os homens cinzentos foram impotentes contra essa força, e não conseguindo um assalto direto aos pequenos, a fim de fazêlos esquecer a menina, resolveram usar de outro método e contornar o caso. Dirigiram-se então aos adultos, encarregados de cuidar da infância. Não a todos, é claro, mas àqueles que se mostravam um instrumento dócil a seus planos . . . e esses, infelizmente, não eram poucos. Serviram-se das próprias armas das crianças, usando-as contra elas: algumas pessoas recordaram-se daquela passeata infantil com cartazes e faixas, manifestando agora sua desaprovação: __ Não é possível que as crianças continuem entregues a si mesmas, desse modo! Não se pode culpar os pais, pois o ritmo da vida moderna não lhes deixa tempo para cuidar dos filhos. O Estado é que deve fazer alguma coisa! __ Está tudo errado! – diziam outras. __ Crianças sem supervisão corrompem-se e tornam-se criminosas. Devem ser recolhidas pelas autoridades públicas em estabelecimentos adequados, a fim de que sejam mais tarde membros úteis e eficientes da sociedade. __ Elas são a matéria-prima do futuro – argumentavam ainda. __ Esta será a época da propulsão a jato e dos cérebros eletrônicos;

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especialistas e técnicos serão necessários para servir tais máquinas e, em vez de prepararmos nossas crianças para o mundo de amanhã, deixamos que desperdicem anos de seu precioso tempo e, tolas brincadeiras. Isso é uma desgraça para a civilização e um crime contra a humanidade futura! Tais comentários estavam bem de acordo com as idéias dos poupadores de tempo e, como eram numerosos na grande cidade, conseguiram relativamente depressa convencer as autoridades a tomar a iniciativa apropriada. Instalaram-se então os chamados “depósitos de crianças” em todos os bairros: grandes casas, às quais levavam crianças que não tinham quem tomasse conta delas. Era rigorosamente proibido aos pequenos brincar na rua, nos parques ou em qualquer outra parte. Se uma criança era vista brincando num lugar público, conduziam-na logo ao depósito mais próximo e os pais pagavam a multa estabelecida. Os amigos de Manu não escaparam desse regulamento. Foram separados uns dos outros, conforme

distrito a que pertenciam, e

colocados em diversos depósitos. Naturalmente, não lhes era permitido inventar brincadeiras a seu gosto. Um supervisor determinava os brinquedos, com os quais as crianças deviam sempre aprender algo de útil para o futuro. Admitindo que aprendessem coisas interessantes, é preciso reconhecer que, ao mesmo tempo, esqueciam outras – como ser feliz, gostar de tudo, sonhar. Pouco a pouco, tornaram-se miniaturas dos poupadores de tempo: mal-humoradas, aborrecidas, hostis, e, mesmo quando deixadas a si próprias, já não sabiam brincar. A única coisa que lhes restava era fazer barulho. Não um barulho alegre, sadio, mas uma algazarra frenética, agressiva. Os homens cinzentos, porém, nunca se aproximaram das crianças. bastou-lhes tecer em volta da grande cidade uma forte e espessa rede, de forma que nem a mais engenhosa criança pudesse escapar por entre suas malhas. O plano obteve completo sucesso. Tudo estava pronto para

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quando Manu voltasse: o velho anfiteatro fora inteiramente esquecido e abandonado. Manu continuava sentada nos degraus de pedra, esperando por seus amigos. Esperou o dia todo, mas não apareceu ninguém. Ninguém! O sol baixava no horizonte. As sombras alongavam-se e o frio vinha chegando. Afinal,

a

menina

levantou-se.

Sentia

fome,

o

que

jamais

acontecera ante, pois sempre vinha alguém trazer-lhe alguma coisa para comer. Hoje, até Guido e Beppo pareciam ter-se esquecido dela. Tinha sido sem dúvida um pequeno descuido, pensava Manu, decerto amanhã eles viriam. Desceu para junto de Cassiopéia, que já se tinha recolhido na sua carapaça para dormir. Manu aproximou-se e bateu timidamente nas suas costas; a tartaruga pôs a cabeça para fora e olhou para a criança. __ Desculpe, por favor! – disse Manu –, sinto tê-la acordado, mas queria saber por que nenhum de meus amigos veio me ver hoje. Na carapaça da tartaruga apareceu a resposta: “NÃO FICOU NENHUM”. Manu leu as palavras sem compreender o sentido. __ Bem – disse então, cheia de confiança –, amanhã eu saberei, pois meus amigos virão certamente amanhã. “NUNCA MAIS”, foi a resposta de Cassiopéia. A menina fixou por algum tempo as letras fracamente iluminadas e depois perguntou assustada: __ Que quer dizer isso? O que aconteceu com meus amigos? “FORAM TODOS EMBORA” Manu sacudiu a cabeça e disse baixinho: __ Não, não pode ser verdade. Você deve estar enganada, Cassiopéia. Ontem, eles estavam todos aqui para o comício que falhou. “VOCÊ DORMIU MUITO TEMPO” Manu lembrou-se então do que lhe dissera Mestre Hora: ela teria de dormir durante todo um ciclo solar, como a semente dorme na terra.

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Quando concordara, não se dera conta do que isso representava . . . só agora começava a compreender. __ Quanto tempo eu dormi? “UMA ANO E UM DIA” Demorou a assimilar a resposta. Por fim, gaguejou: __ Mas . . . mas Beppo e Guido, tenho certeza de que estão à minha espera! “NÃO FICOU NENHUM”, apareceu na carapaça da tartaruga. Com os lábios trêmulos, Manu sussurrou: __ Como é possível? Não pode ter desaparecido tudo, tudo quanto... Uma única palavra brilhou lentamente na carapaça do animal: “PASSADO”. Pela primeira vez, a menina sentiu a força dessa palavra, e o coração pesado. __ Mas . . . – murmurou, desamparada – eu ainda estou aqui . . . Teve vontade de chorar; as lágrimas, porém, não vieram. Após alguns instantes, percebeu que a tartaruga se esfregava nos seus pés descalços, e na carapaça leu este consolo: “EU ESTOU COM VOCÊ”. __ Sim – respondeu, tentando gentilmente um sorriso –, você está comigo, Cassiopéia, e fico muito contente. Agora, vamos para a cama. Apanhou a tartaruga, e, através do buraco de entrada na parede, carregou-a para seu quarto. À luz do sol poente, Manu verificou que ali estava tal como tinha deixado (Beppo arrumara a desordem feita pelos homens cinzentos), só que teias de aranha pendiam de todo lado e uma grossa camada de poeira cobria o chão e os móveis. Sobre a mesa feita de caixotes, estava uma carta, bem visível, apoiada numa lata, tudo envolvido em teias de aranha. “Para Manu”, dizia o envelope. O coração da menina começou a bater mais depressa, pois até aquele dia nunca recebera uma carta. Abriu-a e leu o seguinte bilhete:

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“Querida Manu, eu me mudei. Se você voltar, me procure logo. Estou muito preocupado por sua causa, e sentindo muita falta de você. Espero que nada de ruim tenha acontecido. Se você tiver fome, vá ter com Nino. Ele me mandará a conta e eu pagarei tudo; como, pois à vontade, sim? Nino contará o resto a você. Continue me querendo bem; eu continuo gostando muito de você. Seu amigo – Guido”. Apesar de Guido ter escrito em letra muito clara e legível, Manu demorou a soletrar a carta. Quando terminou, desapareceu o último clarão do crepúsculo. Sentia-se, porém, confortada. Carregou a tartaruga, colocou-a a seu lado na cama, e, enrolandose no cobertor empoeirado, murmurou baixinho: __ Está vendo, Cassiopéia? Afinal eu não estou sozinha. Mas a tartaruga parecia já ter adormecido. Enquanto lia a carta, Manu via nitidamente Guido na sua lembrança; nunca lhe ocorreu no entanto que o bilhete estava à sua espera há quase um ano. Encostou o rosto na folha de papel e não sentiu mais frio.

14. Refeições demais, informações de menos No dia seguinte Manu tomou a tartaruga debaixo do braço e saiu a caminho do restaurante de Nino. __ Você vai ver, Cassiopéia – dizia ela –, como agora as coisas vão mudar! Nino sabe onde estão Guido e Beppo e poderemos também chamar as crianças. assim estaremos de novo todos juntos. Hoje de noite poderemos até dar uma festinha: falarei a eles das flores, da música, de Mestre Hora, de tudo. Estou louca para ver meus amigos! Mas, antes de mais nada, o que desejo mesmo é um bom almoço, pois a fome é muita, sabe?

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A menina tagarelava alegremente, apalpando a carta de Guido, no bolso do casaco. A tartaruga olhava-a apenas com seus velhos e sábios olhos, sem nada replicar. Manu começou a cantarolar enquanto caminhava e depois pôs-se a cantar: a melodia e as palavras das vozes ecoavam em sua memória tão claramente quanto na véspera. Sabia agora que jamais as esqueceria. Parou de repente, diante do restaurante de Nino, e no começo pensou ter-se enganado. Em vez da velha casa com a pintura descascada, via um longo caixote de concreto com enormes janelas de vidro em todo o comprimento. A rua em frente fora asfaltada e estava cheia de carros. Além disso, grande número de automóveis estavam estacionados do outro lado, e à entrada do novo estabelecimento um anúncio luminoso dizia: LANCHONETE RÁPIDA DE NINO Manu entrou e foi aos poucos distinguindo o que havia no interior, pois o local estava apinhado de gente. Ao longo da parede envidraçada das janelas, estavam mesinhas altas, que mais pareciam cogumelos. Não havia cadeiras. Do lado oposto, via-se extensa barreira de brilhantes varas de metal formando como que um gradil, por trás do qual – a intervalos regulares – destacavam-se as vitrinas contendo sanduíches de queijo, presunto, salsichas, saladas variadas, pudins, bolos e toda espécie de comidas inteiramente desconhecidas da menina. Manu era empurrada de um lado para outro, ou para a frente, pois todos se movimentavam, carregando bandejas com pratos, talheres, garrafa, à procura de uma mesinha onde comer. Os que já tinham começado a refeição comiam-na apressadamente, enquanto outros esperavam que aqueles acabassem para tomar o lugar. Vez por outra, os que comiam e os que esperavam trocavam palavras agressivas. De fato, todos pareciam descontentes, insatisfeitos. Entre o gradil e as vitrinas de comida, imensa fila movimentava-se vagarosamente, cada qual se servindo. Manu estava perplexa: então

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cada um tirava o que queria, sem ter de pagar nada? Talvez fosse tudo de graça. Isso explicaria aquela multidão! Afinal,

depois

de

algum

tempo,

conseguiu

enxergar

Nino!

Escondido por trás daquela gente toda, achava-se ao fim do gradil de metal, diante de uma máquina registradora, e ninguém podia sair sem passar por ele: era o homem a quem se pagava. __ Nino! – gritou Manu, acenando com a carta de Guido e tentando se esgueirar por entre o povo. Mas Nino não podia vê-la nem ouvi-la. A máquina registradora na qual batia incessantemente fazia muito barulho e exigia toda a sua atenção para receber dinheiro e dar troco. Manu tomou coragem, trepou no gradil e conseguiu furar a fila, aproximando-se do caixa, o que suscitou reclamação dos fregueses. Ao ouvir aquele burburinho, Nino levantou os olhos e vendo a menina teve uma alegre exclamação: __ Manu! Que surpresa! Enfim você voltou! Sua fisionomia aborrecida iluminou-se, mas teve de atender à clientela indignada: __ Diga a essa garota malcriada que fique na fila como todos nós! Desaforo! Isso não se faz! O caixa levantou as mãos, pedindo calma e dirigiu-se à menina dizendo-lhe: __ Guido pagará tudo, você come o que quiser, mas, por favor, agora entre na fila e espere sua vez. Empurrada para trás, Manu teve de fazer como os outros: apanhou uma bandeja e, tendo de segurá-la com as duas mãos, sobre ela colocou Cassiopéia, para escândalo dos que a cercavam. Passou em seguida pelas vitrinas, escolheu o que queria, e, vendose afinal de novo diante de Nino, perguntou-lhe acerca de Guido. __ Guido é hoje famoso – respondeu o dono da lanchonete. __ Aparece sempre na TV e fala também no rádio. Nós nos orgulhamos dele, pois é um dos nossos! __ Mas por que não procura mais os amigos? – indagou Manu.

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__ Não tem mais tempo para isso, e ninguém mais vai ao velho anfiteatro – explicou Nino, já meio nervoso com os fregueses que reclamavam: __ A fila não pode parar! Que conversa mole é essa aí na frente? Toca pra diante! __ Onde é que Guido mora? – insistiu a menina. __ Dizem que ele tem uma bela casa no meio de um parque, no Green Hill. Mas agora, Manu, por favor, vá andando! Embora desejasse ficar ali e saber mais coisas, Manu foi levada pela onda de gente até uma mesinha, onde colocou a bandeja para comer. A mesa era muito alta e ela mal enxergava o prato; mesmo assim, faminta como estava, comeu até o último bocado. Ficou farta, mas precisava ainda falar com Nino, e o único jeito era entrar de novo na fila, apanhar outra bandeja e escolher outros pratos. Quando finalmente chegou ao caixa, pediu notícias de Beppo. Nino contou-lhe que Beppo ficara muito inquieto por causa dela e que fora à polícia, pedindo auxílio para procurá-la. __ Vivia falando em homens cinzentos, ou coisa parecida, e foi então internado num hospital – disse Nino –, depois não soube mais nada dele. Os clientes se impacientavam com a conversa que fazia parar a fila: __ Isto aqui é lanchonete rápida ou sal de espera? – perguntou alguém. E novamente Nino pediu à menina que fosse andando. Manu não teve outra coisa a fazer senão acompanhar o movimento, encontrar a custo uma vaga e comer outro almoço, que desta vez não teve o sabor do primeiro . . . não lhe ocorria, porém, a possibilidade de deixar restos no prato. Queria ainda descobrir o que acontecera com as crianças que costumavam visitá-la, e a única maneira de se aproximar de Nino para obter informação era sempre o mesmo caminho; outra fila, outra bandeja, outro almoço, para evitar que o pessoal se zangasse com ela.

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Quando chegou diante do caixa, este começou a suar ao vê-la outra vez, mas Manu não desistiu: __ Onde estão as crianças que vinham brincar no anfiteatro? __ Agora tudo mudou. Os garotos que não têm quem cuide deles são levados para um depósito de crianças, onde estão protegidos e aprendem alguma coisa. __ Meus amigos? – perguntou a menina surpresa. __ Mas é isso que eles queriam? __ Crianças não podem resolver sobre sua vida e não têm de dar opinião. Assim, pelo menos, não ficam pelas ruas, isso é o principal – respondeu Nino, impaciente, batendo ao acaso na máquina registradora. E, como os fregueses já começassem a reclamar da conversa, acrescentou: __ Manu, sempre que quiser, venha aqui para comer, mas seja boazinha porque não posso ficar de prosa com você. Aliás, você também devia ir para um depósito de crianças e ficar vagando sozinha por aí! E é o que vai acontecer, se a pegarem! A menina nada respondeu. Empurrada pela fila, viu-se diante de uma mesinha, sobre a qual colocou a bandeja e teve de comer o terceiro almoço, que tinha gosto de papelão. Ao terminá-lo, sentiu-se enjoada. Carregou Cassiopéia e foi saindo sem olhar para trás. No momento em que deixava a lanchonete, Nino viu-a e ainda gritou: __ Oi, Manu, espere um pouco! Você não disse onde esteve escondida todo este tempo! Os clientes, porém, amontoavam-se à sua frente, e ele pôs-se a bater nervosamente na máquina, recebendo dinheiro, dando troco. O sorriso que tivera ao ver Manu há muito fugira de seu rosto. Chegando ao velho anfiteatro, Manu disse à tartaruga: __ Comi demais, demais mesmo! Apesar disso não me sinto satisfeita! E depois de algum tempo continuou, pensativa: __ Eu não podia falar com Nino nem das flores nem da música . . . Mais tarde, afirmou com segurança:

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__ Amanhã, vamos procurar Guido e tenho certeza de que você vai gostar muito dele, Cassiopéia! Nas costas da tartaruga apareceu apenas um grande ponto de interrogação.

15. Achado e novamente perdido No dia seguinte, Manu levantou cedo e saiu com a tartaruga debaixo do braço para procurar a casa de Guido. Sabia onde era Green Hill, bairro residencial, bem distante do velho anfiteatro, próximo das monótonas casas novas e edifícios de apartamentos construídos do outro lado da grande cidade. Era uma caminhada longa e Manu, embora estivesse habituada a andar descalça, estava com os pés doloridos quando lá chegou. Sentou-se no meio-fio para descansar um pouco. Era realmente um bairro elegante: ruas largas, muito limpas, quase vazias. Nos jardins, por trás dos grandes muros ou de altas grades, erguiam-se as copas de velhas árvores. No meio dos parques, as casas eram principalmente construções baixas e compridas, em concreto e vidro, com telhados planos. Os verdes e macios gramados que se estendiam à sua frente ofereciam tentador convite para virar cambalhotas, mas não se via ninguém passeando ou brincando na relva. Os proprietários talvez nunca tivesse tempo para isso. __ Queria muito saber se vou descobrir onde mora Guido – disse Manu a Cassiopéia. “VAI SABER DAQUI A UM INSTANTE”, foi a resposta na carapaça da tartaruga. __ Você acha? – perguntou a menina, esperançosa. Nisso, ouviu atrás de si uma voz que gritava: __ Que está fazendo aqui, garota maltrapilha?

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Voltou-se e viu um homem vestindo um colete de listras, que lhe apareceu estranho. Ignorava que empregados de gente rica usavam uniforme assim. Manu levantou-se e disse: __ Bom dia! Estou procurando a casa de Guido. Nino me disse que ele mora por aqui. O homem de colete listrado olhou com certa desconfiança para a menina. Por trás dele, o portão ficara entreaberto e Manu pôde ver um casal de galgos saltando pelo gramado, onde jorrava um repuxo de água. Sob uma árvore toda florida, descansavam dois pavões. __ Oh! Que lindos pássaros! – exclamou Manu. Já se aprontava para entrar e vê-los mais de perto, quando o homem a agarrou pela gola do casaco. __ Fique aí! Que audácia, menina! – E largando Manu apressou-se em limpar as mãos no lenço, como se tivesse tocado em algo repugnante. __ Tudo isso é seu? – perguntou ainda Manu, apontando para o parque atrás das grades. __ Não! – respondeu o sujeito num tom mais indignado do que nunca. __ E agora, vá andando! Você não tem nada que fazer aqui! __ Tenho, sim! – disse a criança num tom muito sério. __ Estou à procura de Guido Guia, ele está à minha espera. O senhor não conhece esse nome? __ Por aqui não tem guia nenhum – replicou o homem, voltando-lhe as costas. Entrou no jardim e já ia fechando o portão, quando lhe veio subitamente uma idéia: __ Será do célebre narrador de histórias, Girolamo, que você está falando? __ É ele mesmo! É esse seu verdadeiro nome – exclamou Manu, radiante. __ O senhor sabe onde ele mora? __ Mas ele está mesmo à sua espera? – indagou o empregado. __ Claro que está! Guido é meu amigo e paga tudo quanto eu como na lanchonete de Nino.

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O homem de colete listrado ergueu as sobrancelhas e sacudiu os ombros, resmungando: __ Esses artista! Quanta maluquice têm na cabeça! Enfim, se você acha mesmo que ele dá importância à sua visita, a casa é a última, bem no fim da rua. Dizendo isso, bateu violentamente as grades. “PRETENSIOSO”, apareceu na carapaça de Cassiopéia. A última casa na extremidade da rua era cercada por um alto muro, e o portão da entrada feito de sólido metal, todo fechado, não permitia espiar lá dentro. Não havia placa com indicação de nome, nem campainha. __ Será realmente esta a casa de Guido? – perguntou Manu. __ Não parece . . . “ MAS É ”, foi a resposta da tartaruga. __ Por que está tudo trancado desse jeito? – indagou a pequena. __ Assim, eu não vou poder entrar! “ ESPERE ” __ Está bem – suspirou Manu. __ Mas talvez demore muito tempo . . . __ Ainda que Guido esteja em casa, como vai saber que estou aqui fora esperando? “ ELE VEM LOGO ”, brilhou nas costas do bichinho. A menina sentou-se diante das grades e ficou pacientemente à espera de Guido. Ninguém aparecia; começou a imaginar se Cassiopéia não estaria enganada e perguntou-lhe casualmente: __ Você tem certeza? Mas em lugar da esperada resposta, a palavra que surgiu na carapaça foi esta: “ ADEUS ”. Manu deu um pulo. __ Cassiopéia, que quer dizer isso? Aonde vai? “ ESTAREI À SUA PROCURA ”, foi a réplica ainda mais misteriosa da tartaruga.

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Exatamente nesse momento, escancararam as grades e um belo carro saiu a toda a velocidade. Manu teve tempo de saltar para o lado a fim de não ser atropelada, mas caiu. O automóvel passou voando e logo adiante parou com uma freada tão forte que os pneus rangeram. A porta abriu-se e Guido saltou, dirigindo-se rapidamente, de braços estendidos, ao encontro da menina. __ Manu, minha Manuelinha! É você mesma? A pequena já estava de pé e correu para Guido, que a carregou nos braços, dando-lhe mil beijos, e dançando com ele pela rua. __ Você não se machucou? – perguntou, quase sem fôlego. Em vez de esperar a resposta, falava, muito excitado: __ Desculpe-me ter assustado você, mas é que estou numa pressa louca. Estou de novo atrasado! Onde é que você ficou escondida? Vai me contar tudo direitinho. Já tinha desistido de esperá-la! Recebeu minha carta? Ainda estava lá? Bem! E tem ido comer na lanchonete de Nino? Oh! Manu, temos tanto de conversar! Tanta coisa aconteceu durante esse tempo. E o velho Beppo, onde anda? Há séculos que não o vejo. Mas como é que você está? Agora é sua vez de falar. E as crianças? Ah! Manu, penso tanto naquele tempo, quando estávamos todos juntos e eu costumava contar histórias para você. Aquilo é que era bom tempo! Hoje é tudo diferente, completamente diferente. Manu tentara várias vezes responder às perguntas do amigo, mas, como ele não parava de falar, ficou apenas ouvindo e olhando para Guido. Este mudara bastante: estava muito bem vestido e perfumado, mas de certo modo parecia inteiramente diferente do antigo Guido. Enquanto isso, quatro pessoas tinham descido do carro e juntaram-se a eles: um motorista com uniforme de couro e três moças de fisionomias duras e maquiagem carregada. __ A menina se machucou? – perguntou uma delas, em tom mais de censura que de preocupação. __ Não, nada! – afirmou Guido. __ Foi só o susto. __ Que tinha ela de estar pendurada no portão? – disse a segunda.

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__ Mas é Manu! – explicou Guido, rindo. __ É minha querida amiguinha Manu! __ Ah! Então essa garota existe mesmo? – indagou com surpresa a terceira moça. __ Sempre pensei que fosse invenção sua. Temos de dar logo a notícia para a imprensa: “Reunido afinal com a princesa encantada”, ou qualquer coisa assim. O público vai vibrar! Será o furo do ano! __ Não – declarou Guido –, prefiro que não façam isso. __ Mas você vai gostar de sair nos jornais, não é? – disse a moça a Manu, com um sorriso. __ Não se metam com essa criança – interveio Guido, zangado. __ Se não andarmos depressa, perderemos o avião – avisou uma das secretárias, consultando seu relógio. __ E o senhor sabe o que isso significa! __ Céus! – gritou Guido, exasperado. __ Não posso nem trocar algumas palavras com esta menina, depois de tão longa separação? Mas você está vendo por você mesma, Manu, que estou na mão de feitores de escravos, que nunca me deixam só – nunca! __ Muito bem – falou a outra secretária, aborrecida –, a nós, isso pouco importa. Estamos fazendo nosso serviço, e somos pagas para organizar seus programas e compromissos, meu caro senhor! __ Sim, sim, eu sei . . . – concordou Guido. __ Então vamos embora! Manu vai conosco até o aeroporto; conversaremos no caminho e depois meu motorista a levará de volta para casa. OK? Não esperou que Manu respondesse; agarrou-a pela mão e puxoua até o carro. As três secretárias sentaram-se no banco de trás; Guido ia na frente, ao lado do chofer, levando a pequena no colo. __ Bem , Manu, agora você vai contar tudo que aconteceu a você, direitinho, do princípio ao fim. Como é que você desapareceu tão de repente? Quando Manu se dispunha a falar de Mestre Hora e das maravilhosas flores, uma das moças debruçou-se para a frente:

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__ Com licença, tenho uma idéia maravilhosa: vamos apresentar a menina à Companhia de Filmes para o Público. Ela será a estrela perfeita para a menina de sua história de aventuras, que vai ser filmada agora. Imagine o sucesso: o papel de Manu representado pela própria Manu! __ Não ouviu o que eu disse? – respondeu Guido violentamente. __ Não quero esta criança metida nisso, de leito nenhum! – E voltando-se para Manu: __ Desculpe, Manu, você talvez não compreenda, mas não posso deixar esse bando de hienas meter os dentes em você também! As três secretárias ficaram ofendidas. Guido gemeu, enxugou a testa e tirou do bolso uma caixinha de prata, da qual tirou uma pílula, que engoliu. Durante alguns momentos, reinou o silêncio. Depois, Guido voltou-se para o banco de trás: __ Não me levem a mal, não quis ofendê-las, mas meus nervos estão no fim. __ Não se preocupe, já estamos acostumadas com suas explosões – respondeu uma das moças. __ Dentro de cinco minutos estaremos no aeroporto; antes, não seria possível fazermos uma rápida entrevista com Manu? __ Chega! – berrou Guido com paciência esgotada. __ Serei eu o único a falar com Manu. E ainda mais: vou conversar com ela em particular, o que significa muito para mim. Quantas vezes tenho de repetir isso? __ Perdão – replicou a moça sarcasticamente –, afinal a publicidade é sua e não minha. Pense bem, se o momento atual permite que despreze uma oportunidade dessas! __ Não! – exclamou Guido, desesperado. __ Não consinto que Manu seja envolvida nesse negócio. E agora deixem-nos em paz. As secretárias se calaram. Guido, exausto, esfregava os olhos, e com um riso amargo confessou à menina: __ Veja, Manu, aonde eu cheguei! E, ainda que quisesse, não podia mais voltar atrás. Você se lembra que eu dizia: Guido será sempre Guido. Pois bem, Guido deixou de ser Guido. A coisa mais perigosa do

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mundo é a realização de todos os sonhos da gente . . . pelo menos, foi o que aconteceu comigo. Não restou mais nada para eu sonhar! Mesmo que eu estivesse agora com você e seus amigos, não aprenderia a sonhar de novo. Oh! Estou mortalmente farto disso tudo! Olhou melancolicamente pela janela do carro e concluiu: __ A única coisa que eu devia fazer agora seria calar a boca, não contar mais histórias, talvez até o fim de minha vida. Ou pelo menos até que todos me tivessem esquecido e eu voltasse a ser um pobre-diabo desconhecido. Mas ser pobre e apesar disse ser capaz de sonhar . . . isso seria o inferno, Manu. Por isso é que fico onde estou; aqui é também um inferno, mas pelo menos um inferno confortável. O que adianta no entanto dizer tais coisas? Você não consegue entender isso! Manu apenas olhava para o amigo; compreendia que ele estava doente, terrivelmente doente, e suspeitava que os homens cinzentos tivessem sua parte no caso. Mas como poderia ajudar Guido, se ele não queria auxílio? Nesse instante, o carro parou no aeroporto. Todos desceram e as recepcionistas precipitaram-se para o artista da TV, pedindo que se apressasse, pois o avião já ia levantar vôo. Repórteres ainda tiraram algumas fotos; não havia porém tempo para entrevistas. Guido curvou-se para Manu, contemplou-a longamente e com lágrimas nos olhos falou-lhe tão baixinho que ninguém mais ouviu: __ Escute, Manu, fique comigo! Levarei você nesta viagem e em todas que fizer; você ficará morando na minha bela casa, vestindo roupas de seda e cetim como uma princesinha de verdade. Não terá nada a fazer senão ficar junto de mim e ouvir-me. Talvez então eu volte a ser capaz de inventar de novo histórias como aquelas que eu lhe contava, lembra? Basta você dizer sim, Manu, e tudo dará certo outra vez! Ajude-me! A menina desejava socorrer o amigo e sentia dor no coração de tanta pena dele, ma sabia que não era essa a maneira certa de auxiliálo. Primeiro, ele teria de voltar a ser o verdadeiro Guido, e ela não o ajudaria em nada se deixasse de ser a verdadeira Manu. Seus olhos

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encheram-se

também

de

lágrimas,

mas

sacudiu

a

cabeça

negativamente. Guido

compreendeu.

Despediu-se

com

ar

triste

e

foi

imediatamente arrastado pelas secretárias. De longe, acenou para Manu, e esta respondeu ao adeus dele. Depois, desapareceu no avião. Durante todo o seu encontro com Guido, Manu não conseguiu dizer uma só palavra, e tinha tanto que contar a ele! Parecia-lhe agora que justamente por tê-lo encontrado é que o havia verdadeiramente perdido. Dirigiu-se devagar para a saída do aeroporto, e de repente um choque a abalou: perdera também Cassiopéia!

16. Pobreza em meio à fartura __ Para onde? – perguntou o motorista a Manu, quando esta se sentou ao seu lado, no elegante carro de Guido. A menina ficou olhando ao longe com ar embaraçado. Que poderia dizer? Aonde desejava de fato ir? Tinha de procurar Cassiopéia . . . mas onde? Quando, em que lugar a perdera? Estava certa de que ela não estivera presente durante o encontro com Guido. Então talvez fosse bom procurar diante da casa dele. Lembrou-se das palavras que lera na carapaça da tartaruga: “ADEUS” e “ESTAREI À SUA PROCURA”. É claro que Cassiopéia sabia com antecedência que ficaria perdida e por isso sairia a procura de Manu. Mas onde é que Manu devia procurá-la? __ Então? Que é que resolve? – disse o chofer, tamborilando no volante. __ Tenho mais o que fazer do que levar você passear. __ Para a casa de Guido, faça o favor – pediu Manu. O motorista olhou surpreendido: __ Pensei que devia levar você para casa . . . ou agora você vai ficar morando com a gente? __ Não – respondeu a menina –, mas perdi uma coisa na rua e preciso encontrá-la.

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Isso convinha bem ao chofer, pois de qualquer modo tinha de regressar à mansão de Guido. Quando lá chegaram, Manu saltou logo do carro e começou sua busca por toda parte, chamando baixinho: __ Cassiopéia! Cassiopéia! __ Afinal, que é que você está procurando? – perguntou o motorista, da janela do carro. __ É a tartaruga de Mestre Hora, ela chama-se Cassiopéia, sabe o futuro com meia hora de antecedência, e faz aparecer letras luminosas na sua carapaça. Preciso encontrar a tartaruga, o senhor não quer me ajudar? __ Não tenho tempo para brincadeiras idiotas! – resmungou o chofer, entrando com o carro pelo imponente portão, que se fechou logo em seguida. Manu continuou a procurar sozinha, olhando para todos os lados e cantos da rua, mas em vão. “Talvez Cassiopéia esteja voltando para o anfiteatro”, pensou a menina. Ela própria tomou esse rumo, olhando cuidadosamente para todos os recantos, sem encontrar vestígio da tartaruga. Quando por fim chegou ao velho anfiteatro, era tarde da noite. Apesar da escuridão, investigou todos os escaninhos, sem resultado. Deitou-se na cama e, pela primeira vez, achou-se inteiramente só. Manu passou os dias seguintes vagando pela cidade, na esperança de encontrar Beppo Varredor. Já que ninguém sabia indicar seu paradeiro, confiava na sorte para dar com ele por simples acaso. Acaso tão remoto, numa grande cidade, quanto o de uma carta dentro de uma garrafa que, jogada no mar por um náufrago, seja pescada por um barco de arrastão numa costa distante. No entanto, a menina pensava às vezes: “Quem sabe não estamos muito perto um do outro”. Quem sabe se por vezes ela não chegava a um lugar onde Beppo havia justamente estado uma hora, um minuto, um momento antes.

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Assim, Manu ficava horas seguidas, parada num ponto, para afinal continuar andando. Oh! Como Cassiopéia fazia falta! A tartaruga lhe faria ver com segurança: “ ESPERE ” ou “ VÁ ADIANTE ”. Sozinha porém receava perder Beppo tanto esperando quanto caminhando . . . e não sabia o que fazer. Procurava também encontrar seus pequenos amigos, mas não via crianças em parte alguma, e lembrou-se do que Nino lhe contara sobre os depósitos de crianças. o fato de a própria Manu nunca ter sido levada para lá, pela polícia ou por algum adulto, devia-se à constante vigilância das homens cinzentos, aos quais isso não convinha. Uma vez por dia, costumava comer alguma coisa na lanchonete de Nino, sempre muito ocupado, com muita pressa, como da primeira vez, e com quem não conseguia conversar. As semanas transformaram-se em meses, e Manu continuava só. Certa tarde, ao crepúsculo, encostara-se à balaustrada de uma ponte, quando viu a distância, em outra ponte, um vulto magro e curvado, varrendo, varrendo sem parar, que lhe pareceu ser Beppo. Gritou por ele, acenou com as mãos e pôs-se a correr para encontrá-lo; mas quando chegou ao local, o homem tinha desaparecido. “Não devia ser Beppo”, pensou a menina. Não era desse jeito que ele varria!” Às vezes ficava em casa, sem sair do anfiteatro, numa súbita esperança de que Beppo pudesse de repente passar por lá para saber se ela tinha voltado. E, com medo de um desencontro, escreveu em letras bem grandes nas paredes do seu quarto: “JÁ VOLTEI”. Palavras que ninguém, senão ela mesma, jamais leria. Uma coisa, no entanto, nunca a abandonou – a lembrança viva, sempre presente, da flores, da música, de tudo quanto acontecera com Mestre Hora. Bastava-lhe fechar os olhos e escutar seu coração para rever as brilhantes, magníficas cores, e ouvir a música das esferas. Tão facilmente quanto no primeiro dia, era capaz de dizer as palavras e entoar as melodias, embora estas variassem constantemente e nunca se

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repetissem. Passava horas e horas recitando e cantando para si própria: apenas as árvores, os pássaros, as velhas pedras a escutavam. Há várias formas de solidão, Manu sofria de uma, que poucas pessoas têm experimentado, e pouquíssimas com tal intensidade. Sentia-se como que aprisionada numa gruta cheia de tesouros de inestimável valor, que cresciam continuamente a ponto de sufocá-la. Não havia escapatória. Ninguém podia abrir caminho para alcançá-la e ela

não

conseguia

fazer-se

ouvir,

profundamente

soterrada

sob

montanhas de tempo. Havia momentos em que desejava nunca ter ouvido aquela música e visto aquelas cores. No entanto, se lhe oferecessem a escolha, nada no mundo a faria desistir de suas recordações. Nem mesmo o risco de morte, pois descobriria que existem riquezas portadoras de sementes de destruição quando não podem ser compartilhadas com outros. De vez em quando, ia até a casa de Guido e esperava longamente diante da entrada, na esperança de vê-lo de novo. Estava resolvida a concordar com tudo: a morar com Guido, ouvi-lo e conversar com ele, quer as coisas voltassem a ser como antigamente quer não. Mas as grades nunca mais se abriram. Apenas alguns meses decorreram dessa forma; a Manu, porém, parecia ser esse o tempo mais longo de sua vida, pois o tempo verdadeiro não se calcula por relógios ou calendários. Nem é possível explicar a solidão que experimentava. A única coisa que se pode dizer é que, se encontrasse o caminho para ir ter com Mestre Hora, e ela o tentara muitas vezes, pediria a ele que lhe retirasse o tempo, ou que lhe permitisse ficar para sempre na Mansão de Lugar Nenhum. Mas sem Cassiopéia não conseguia descobrir o caminho para a mansão, e Cassiopéia estava mesmo desaparecida. Certo

dia,

no

entanto,

aconteceu

algo

inesperado:

Manu

encontrou-se de repente com três crianças que costumavam brincar no anfiteatro. Eram Paulo, Franco e Maria, a menina que levava sempre consigo a irmãzinha Dedé. Todos tinham mudado muito. Vestiam uma espécie de uniforme cinzento e seus rostos tinham uma expressão

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estranhamente vazia e inexpressiva. Mesmo diante da alegria com que Manu lhes falou, mal sorriam. __ Há tanto tempo que estou à procura de vocês! – exclamou ela, quase sem fôlego. __ Querem vir agora ao anfiteatro? Os três trocaram olhares desconfiados e sacudiram a cabeça negativamente. __ Bem, então irão amanhã? Ou depois de amanhã? – insistiu Manu. De novo, os três sacudiram a cabeça. __ Oh! Voltem outra vez! – suplicou a menina. __ Vocês antes iam sempre lá! __ Antes, sim – respondeu Paulo –, mas agora tudo mudou. Não temos mais licença de gastar tempo inutilmente. __ Mas não era inutilmente! – disse Manu. __ Bem, era divertido, mas não é isso o que importa – acrescentou Maria. As três crianças puseram-se a andar depressa e Manu correu atrás delas: __ Aonde é que vocês vão? __ À aula de brincar – respondeu Franco. __ Lá aprendemos como brincar. __ Brincar de quê? – indagou ainda Manu. __ Vamos brincar de fichas – disse Paulo. __ É muito útil, mas a gente tem de se concentrar terrivelmente. __ Como é o jogo? __ Faz de conta que cada um de nós é uma ficha, na qual estão escritos vários dados diferentes, como nosso peso, altura, idade e assim por diante; nunca, porém, correspondendo ao que somos realmente, pois seria muito fácil. Às vezes, também, dão-nos apenas um longo número como por exemplo: MUX/763/y. Somos então embaralhados e postos num arquivo; aí um de nós deve tirar determinada ficha e fazer perguntas de modo a eliminar todas as outras e só ficar a ficha exata. Quem o conseguir mais depressa ganha.

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__ E isso é divertido? – perguntou Manu, duvidando. __ Não é isso o importante – disse de novo Maria, meio nervosa. __ Você não deve falar assim. __ Então o que é importante? __ Importante é aquilo que será útil para o nosso futuro – explicou Paulo. Enquanto isso tinham chegado aos portões de uma grande casa cinzenta, à cuja entrada estava escrito: “Depósito de Crianças”. __ Tenho tanta coisa pra contar a vocês – disse Manu. __ Talvez a gente se encontre um outro dia – respondeu Maria tristemente. De todo lado, à volta deles, vinham crianças que entravam, firmes, pelas grades abertas. Em todas, a expressão da fisionomia era idêntica à dos três amigos de Manu. __ Era muito mais alegre com você! – disse Franco de repente. __ Tínhamos sempre um mundo de idéias novas para inventar nossas brincadeiras; mas dizem que assim não aprendemos nada. __ Vocês não podem fugir? – perguntou Manu. Os três sacudiram a cabeça, olhando em torno para ver se ninguém tinha escutado. __ No começo, experimentei algumas vezes – murmurou Franco. __ Mas não adianta; sempre pegam a gente de volta. __ Não diga isso – aconselhou Maria –, afinal agora estão cuidando de nós. Ficaram todos silenciosos, o olhar vago e sombrio. Por fim, Manu tomou coragem e pediu: __ Não podem levar-me com vocês? Estou sempre tão sozinha! Aconteceu então uma coisa muito estranha: antes que uma das crianças pudesse responder, foram todas tragadas para dentro da casa, como se um gigantesco aspirador de pó as tivesse engolido, e as grades fecharam-se violentamente atrás delas. Manu viu a cena, horrorizada. No entanto, após um momento, aproximou-se do portão para tocar a campainha ou bater, a fim de pedir

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novamente para brincar com os seus amigos, porém, ficou gelada de medo: entre ela e o portão estava um dos homens cinzentos. __ É inútil – disse ele com charuto no canto da boca. __ Não adianta experimentar, não é de nosso interesse que você entre aqui. __ Por que não? – perguntou a menina, sentindo de novo um arrepio gélido. __ Porque temos outros planos para você – explicou o homem, soprando a fumaça, que cingiu o pescoço de Manu como um espesso laço, e só aos poucos foi se diluindo. Em volta, muita gente ia e vinha, mas todas com muita pressa. A menina apontou para o homem cinzento e tentou gritar por socorro, mas de sua garganta não saiu nenhum som. __ Desista! – disse ele com um riso opaco, cinzento, sem alegria – Você ainda não nos conhece? Não sabe o quanto somos poderosos? Afastamos de você todos os seus amigos. Não tem mais ninguém capaz de ajudá-la, e podemos fazer com você o que quisermos. Mas até agora, como vê, você foi poupada. __ Por quê? – conseguiu a menina articular com dificuldade. __ Porque queremos que nos preste um servicinho – respondeu o homem. __ Se você tiver juízo, poderá beneficiar-se e também a seus amigos. Não quer? Manu acenou em silêncio e o homem lhe disse: __ À meia-noite nos encontraremos para discutir o assunto. Com essas palavras desapareceu. Apenas volutas de fumaça ficaram pairando no ar. O homem cinzento não mencionara onde seria o encontro.

17. Grande medo e maior coragem Manu estava com medo de voltar ao velho anfiteatro. Tinha certeza de que o homem cinzento iria encontrá-la naquele lugar, à meianoite, e à idéia de se ver lá sozinha com ela a enchia de terror.

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Não, não queria mais vê-lo, nem ali nem em local algum. Qualquer que fosse sua proposta, não beneficiaria realmente nem a ela nem a seus amigos. Mas onde poderia esconder-se dele? O lugar mais seguro parecia-lhe ser no meio da multidão. Já tinha verificado que a gente passando nas ruas não dava atenção nem a ela nem ao homem cinzento. Mas caso ele quisesse agredi-la, ela gritaria e certamente o povo viria em seu socorro. Além disso, dizia consigo mesma, seria mais difícil encontrá-la no meio de muita gente. Durante o resto da tarde e pela noite adentro, Manu juntou-se pois à turba de pedestres nas ruas e praças mais movimentadas. Verificou então que tinha feito um grande círculo: voltara ao ponto de partida. Uma Segunda e uma terceira vez retomou o mesmo caminho, deixandose simplesmente arrastar pela onda do povo apressado. Andara o dia inteiro, e seus pés estavam doendo de cansaço. Fazia-se cada vez mais tarde, e a menina, já quase dormindo, continuava a andar, andar, andar. “Só

um

momento

de

repouso”,

pensou

ela,

afinal,

“um

momentinho apenas, e ficarei mais alerta!” A certa altura, viu junto ao meio-fio uma camioneta para entrega de encomendas, sobre a qual se empilhavam caixas e sacos vazios. Manu instalou-se nela, recostando-se num saco, que lhe pareceu muito fofo. Ergueu os pés doloridos, escondeu-os debaixo da saia e sentiu-se bem! Suspirou de alívio, acomodou-se e antes que o percebesse, exausta, caiu num profundo sono. Foi, porém, perseguida por sonhos aflitivos. Viu o velho Beppo usando sua vassoura como uma longa vara de equilibrista, enquanto andava numa corda que oscilava sobre um abismo sombrio, e cujas extremidades perdiam-se na escuridão. “Onde está a outra ponta? Não consigo encontrar a outra ponta!”, gritava ele. Manu queria ajudá-lo, mas ele não a ouvia: estava muito longe e muito alto. Depois, viu Guido puxando de sua boca uma infindável tira de papel. Por mais que ele puxasse, a tira não tinha fim e também não se rasgava. Guido já se achava cercado por montanhas de papel e olhava

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para Manu com cara de súplica, como se fosse sufocar-se, caso ela não o salvasse. A menina procurou correr em auxílio, mas ficou com os pés enredados nas fitas de papel e quanto mais se esforçava por libertar-se mais se emaranhava. Viu em seguida as crianças. Estavam achatadas como cartas de baralho e cada carta apresentava um padrão de pequenas perfurações. As cartas eram embaralhadas e depois tinham de se ordenar sozinhas para serem outra vez perfuradas com novos orifícios. As criançasbaralhos choravam silenciosamente. Foram porém logo embaralhadas de novo, ciando uma sobre a outra com um ruído de matraca. Manu tentava gritar: “Parem, parem!” Mas o barulho sufocava sua voz débil e tornava-se cada vez mais forte, mais forte, a ponto de acordá-la. No começo, não sabia onde se encontrava, era noite escura: lembrou-se em seguida de que tinha subido na camioneta. Esta se pusera em movimento e o motor é que fazia aquele barulho. Manu enxugou as faces molhadas de lágrimas. Onde estaria? Talvez a camioneta já estivesse em movimento há algum tempo, sem que ela o percebesse. Atravessaram uma parte da cidade inteiramente deserta, àquela hora tardia. Não se via vivalma pelas ruas e os edifícios estavam mergulhados na escuridão. O carro não ia em grande velocidade e, sem refletir, Manu pulou no solo. Queria voltar para as ruas movimentadas, onde se sentiria mais segura contra os homens cinzentos. Mas lembrou-se de seus sonhos, e ficou parada. Recordando-se de tudo que sonhara, renunciou a fugir: até o momento, só havia pensado em si mesma, na sua solidão, nos seus temores, no meio de se salvar. Na realidade, porém, eram seus amigos que precisavam de ajuda e era ela quem os podia auxiliar. Por mais remota que fosse a possibilidade de os homens cinzentos os libertarem, ela devia pelo menos tentar. Quando chegou a essa conclusão, sentiu misteriosa mudança dentro de si. Seu medo, seu desamparo tinham atingido o máximo, e

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agora, numa súbita reviravolta, foi capaz de superá-los: sentiu-se corajosa, confiante como se nenhum poder da terra fosse capaz de ferila. Ou melhor, cessou inteiramente de preocupar-se com o que lhe pudesse acontecer. Daí em diante, queria encontrar os homens cinzentos; queria a todo custo. “Preciso voltar imediatamente para o anfiteatro”, pensou Manu, “talvez não seja tarde demais e ele tenha esperado por mim.” A coisa era mais fácil de dizer do que de fazer: a menina ignorava onde estava e não sabia que direção tomar. Apesar disso, pôs-se a caminho, ao acaso. Percorreu ruas e ruas, sempre desertas e escuras, num silêncio absoluto, pois estando descalça nem o ruído de seus passos ouvia. Chegou por fim a uma vasta praça. Não era uma daquelas praças bonitas dos bairros elegantes com jardins, fontes, árvores, mas apenas um imenso espaço vazio, margeado por casas cujos contornos sombrios se destacavam contra o céu. Quando Manu alcançou o centro da praça, o relógio de alguma igreja na vizinhança bateu horas . . . muitas batidas . . . talvez fosse meia-noite. O som ainda ecoava no silêncio noturno, quando a menina viu surgirem simultaneamente, da extremidade de cada rua que convergia para a praça, luzes que se iam tornando cada vez mais fortes, à medida que se aproximavam. Compreendeu que eram os holofotes de inúmeros carros dirigindo-se lentamente para o centro do grande largo, onde ela se achava. Para qualquer lado que se voltasse, luzes ofuscantes a envolviam, obrigando-a a proteger os olhos com a mão. Eles tinham vindo! A menina não contava com tão grande número de adversários e, por

um

instante,

toda

a

sua

coragem

desapareceu:

estava

completamente cercada, não tinha jeito de fugir e encolheu-se o mais que pôde dentro de seu velho casaco. Lembrou-se então das flores, das horas, das vozes na grande sinfonia e sentiu-se revigorada, com novo ânimo.

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Diminuindo a velocidade, os carros vieram se aproximando, sempre mais, até encostarem os pára-choques um no outro, formando um círculo fechado, em cujo centro estava Manu. Ela não distinguia quantos eram os homens cinzentos, pois tinham descido dos carros mas ficavam no escuro, por trás dos holofotes. Percebia no entanto que eram muitos. E sentiu frio. Durante algum tempo, ninguém, falou; finalmente, uma voz cinzenta disse: __ Então, esta é a menina Manu, que certa vez julgou poder desafiar-nos! Vejam agora seu fracasso: não passa de uma coisinha miserável. Um barulho metálico seguiu-se a essas palavras. Dir-se-ia, a distância, o riso de escárnio de muitas vozes. __ Cuidado! – disse em tom mais baixo um dos homens. __ Sabemos o perigo que essa criança pode ser para nós. Não há jeito de enganá-la. Manu ouvia em silêncio. __ Pois bem – disse a primeira voz saindo da escuridão. __ Vamos tentá-la com a verdade. De novo reinou prolongado silêncio. A menina sentiu que os homens cinzentos tinham medo de falar a verdade. Isso parecia custarlhes imenso esforço, e ela escutou um ruído como que de uma respiração ofegante e sufocada saindo de inúmeras gargantas. Afinal um deles começou de novo a falar. A voz vinha de uma nova direção mas tinha o mesmo tom cinza: __ Vamos ser francos um com o outro. Você está sozinha, pobre criança, e seus amigos fora de seu alcance. Não ficou nenhum com quem possa partilhar seu tempo. Esse foi exatamente o nosso plano, veja como somos poderosos. Não adianta querer opor-se à nossa força. Que significam agora para você suas horas solitárias? Uma desgraça que a arruína, um fardo que a esmaga, um oceano que a submerge, uma tortura que a aflige. Você está isolada de todo o resto da humanidade. Manu ouviu e continuou silenciosa.

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__ Mais cedo ou mais tarde – prosseguiu a voz –, chegará um momento em que você não poderá mais suportar isso; talvez amanhã, daqui a uma semana ou um ano. Não nos importa saber exatamente quando, pois estaremos à espera, certos de que você acabará recorrendo a nós, de joelhos e implorando: “Farei o que quiserem se me livrarem deste fardo”. Ou será que você já chegou a esse ponto? Basta dizer uma palavra. Manu sacudiu a cabeça negativamente. __ Você não quer nossa ajuda? – perguntou a voz num tom gélido. Uma onda de intenso frio, vinda de todos os lados, envolveu a menina. Ela, porém, cerrou os dentes e de novo sacudiu a cabeça. __ Essa criança sabe o que é realmente o tempo – sibilou outra voz. __ Isso prova que ela esteve de fato com . . . aquela pessoa – silvou em resposta a primeira voz. E, mais alto, dirigindo-se a Manu: __ Você conhece Mestre Hora? Desta vez a menina acenou afirmativamente. __ E você esteve mesmo com ele? De novo, Manu fez sinal que sim. __ Então você deve conhecer a floração das horas, não? Pela terceira vez foi afirmativa a resposta. Oh! Como conhecia aquela maravilha! Seguiu-se novamente uma longa pausa. A voz que recomeçou a falar vinha agora de outra direção: __ Você tem amor a seus amigos, não tem? Manu acenou outra vez afirmativamente. __ Pois você pode fazer isso, se quiser. Tremendo dos pés à cabeça, Manu aconchegou o casaco bem junto ao corpo. __ Na realidade, custaria apenas uma ninharia para você libertar seus amigos. Nós ajudamos você, e você nos ajuda. É justo, não é? Manu ficou atenta à direção de onde vinha a voz.

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__ Nós também desejamos um encontro com esse Mestre Hora, mas não sabemos onde ele está. Queremos que você nos guie até lá, só isso. Sim, escute atentamente, de modo a ter certeza de que estamos sendo absolutamente francos e que pretendemos fazer o que propomos. Em troca desse servicinho, você terá seus amigos livres, e poderá levar com eles a mesma vida de antigamente, alegre e contente. Não é uma proposta que vale a pena? Pela primeira vez, Manu abriu a boca; falar custou-lhe imenso esforço, tão gelados estavam seus lábios. __ Que desejam com Mestre Hora? – perguntou lentamente. __ Desejamos conhecê-lo – respondeu asperamente a voz. __ Basta isso para você. O frio aumentava sempre mais. Manu ficou silenciosa e atenta. Notou certo movimento entre os homens cinzentos, que pareciam tornar-se inquietos. __ Não compreendo! – disse a voz. __ Pense em você mesma e em seus amigos! Por que preocupar-se com Mestre Hora? Ele tem idade suficiente para cuidar de si. Aliás, se ele for razoável e cooperar conosco amigavelmente, não tocaremos num só cabelo de sua cabeça. Se não, temos meios de forçá-lo. __ Forçá-lo a quê? – indagou a menina, com os lábios roxos. Subitamente a voz soou estridente e cansada ao declarar: __ Estamos fartos de juntar aos poucos horas, minutos e segundos das pessoas. Queremos de uma vez todo o tempo pertencente à humanidade e é isso que Mestre Hora tem de nos entregar. Horrorizada, Manu fitava a escuridão de onde provinha a voz. __ E que acontecerá então com as pessoas? – perguntou. __ As pessoas? – ganiu a voz. __ Há muito que são supérfluas no mundo. Elas próprias o levaram a um ponto em que não há mais lugar para criaturas de sua espécie. Nós governaremos o mundo! O frio era agora tão terrível que Manu, embora pudesse ainda abrir os lábios, não conseguia emitir som algum.

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__ Mas não se preocupe, Manu – continuou a voz, repentinamente mansa e quase agradável –, você e seus amigos serão uma exceção: serão os únicos remanescentes capazes de brincar e de contar histórias. Não se metam mais em nossos negócios, e nós os deixaremos em paz. Outra voz levantou-se, vinda de outro lado: __ Você sabe que dissemos a verdade. Cumpriremos o prometido; agora leve-nos à morada de Mestre Hora. Manu experimentou falar e a muito custo pôde pronunciar estas palavras: __ Mesmo que eu pudesse, não faria isso! Várias vozes ergueram-se ameaçadoras: __ Como? Que quer dizer você? Claro que pode nos levar lá! Você esteve com Mestre Hora, tem de saber o caminho! __ Não consigo mais achá-lo – murmurou Manu. __ Já tentei . . . só Cassiopéia é que sabe! __ Quem é Cassiopéia? __ É a tartaruga de Mestre Hora. __ Onde está ela? Quase inconsciente de frio, Manu gaguejou: __ Ela . . . voltou comigo . . . mas . . . mas depois se perdeu! Houve um terrível alvoroço de vozes confusas, e a menina escutou esta ordem: __ Declarem caso de emergência extrema! A tartaruga tem de ser encontrada. Toda tartaruga tem de ser examinada. A tal Cassiopéia precisa ser encontrada. A todo custo! Aos poucos, cessaram as vozes. Fez-se completo silêncio e Manu foi voltando a si daquela semi-inconsciência. Estava inteiramente só na enorme praça, sobre a qual soprava agora uma rajada de vento. Um vento cinza, que parecia vir da imensidão do vácuo.

18. Olhando para a frente sem olhar para trás

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Manu não tinha idéia do tempo que passara. O relógio da igreja próxima batia de vez em quando, mas ela mal o ouvia. Só muito devagar o calor voltou a seus membros gelados. Sentia-se paralisada e incapaz de tomar qualquer decisão. Devia voltar para o velho anfiteatro e meter-se na cama, quando toda esperança para si mesma e para os amigos estava para sempre perdida? Agora sabia de fato que as coisas nunca mais seriam como antes, nunca mais . . . Inquietava-se também por Cassiopéia. Imaginem se os homens cinzentos

a

encontrassem!

A

menina

começou

a

censurar-se

amargamente por ter mencionada a tartaruga, mas tinha ficado tão atordoada, que nem avaliara a conseqüência do que poderia dizer. “E talvez”, pensou Manu para se consolar, “Cassiopéia já tenha voltado para junto de Mestre Hora! Espero que não esteja mais à minha procura. Seria melhor para ela e para mim se . . .” Nesse instante, enquanto se atormentava com repressões pelo que dissera, sentiu alguma coisa roçando de leve seus pés descalços. Abaixou-se, viu diante de si a tartaruga, e, aos poucos, começaram a brilhar no escuro estas palavras: “AQUI ESTOU DE NOVO”. Sem refletir, Manu agarrou-a e enfiou-a dentro do seu casaco. Depois, endireitou-se e ficou à escura, espiando no escuro, com medo que os homens cinzentos pudessem ainda estar pela redondeza. Mas tudo permaneceu em silêncio. Cassiopéia debatia-se furiosamente dentro do casaco tentando libertar-se. Apertando-a fortemente de encontro ao peito, Manu espiou para dentro do casaco e sussurrou: __ Fique quieta, por favor. “POR QUE TODO ESSE ALVOROÇO?” __ Você não pode ser vista – murmurou a menina. Agora, na carapaça do bichinho, apareceu esta pergunta: “VOCÊ NÃO ESTÁ CONTENTE?” __ Oh! Muito, muito! – murmurou Manu, quase soluçando. __ Você nem imagina o quanto eu estou alegre!

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Beijava e tornava a beijar o nariz de Cassiopéia. __ Você esteve realmente à minha procura durante todo esse tempo? “DECERTO”, foi a resposta luminosa. __ E como me encontrou exatamente neste lugar e neste momento? “SABIA COM ANTECEDÊNCIA” Teria a tartaruga estado realmente em busca de Manu, sabendo quando e onde a acharia? Então não havia necessidade de procurá-la? Esse era um dos enigmas que Cassiopéia apresentava . . . mas a hora não era oportuna para resolver tal problema. Manu contou-lhe baixinho tudo o que acontecera, perguntando finalmente: __ Que devemos fazer agora? Cassiopéia escutara com atenção e nas suas costas veio a resposta: “VAMOS TER COM MESTRE HORA” __ Neste momento? – gritou Manu, horrorizada. __ Mas os homens cinzentos estão à sua procura por toda a parte! Este é o único lugar onde não há nenhum deles. Não seria mais razoável ficarmos aqui? As letras luminosas insistiram na idéia: “VAMOS, EU SEI” __ Então iremos direto ao encontro deles! – declarou Manu. “NÃO ENCONTRAREMOS NENHUM”, foi a réplica da tartaruga. Bem, se ela estava tão certa disso, podia-se ter confiança, e Manu colocou-a no chão. Depois, pensando na longa e fatigante jornada que teriam de fazer, sentiu que suas forças não agüentariam até o fim, e disse muito pesarosa: __ Vá sozinha Cassiopéia, eu não posso continuar. Vá sozinha e leve minhas saudades a Mestre Hora. “ESTAMOS PERTINHO” Ao ler essas palavras na carapaça de sua protetora, Manu olhou em volta, cheia de espanto. Pouco a pouco, porém, reconheceu ser

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aquela parte deserta e pobre da cidade o lugar de onde tinham passado para o outro bairro, todo de casas brancas, iluminado por aquela estranha luz. Sendo assim, ela talvez pudesse ir até a Alameda do Nunca e chegar à Mansão de Lugar Nenhum. __ Nesse caso, vou também! Mas não posso levar você nos braços para não demorarmos tanto? “INFELIZMENTE, NÃO”. __ Por que você tem de rastejar sempre sozinha? – perguntou ainda a menina, e recebeu da tartaruga esta resposta: “PORQUE O CAMINHO ESTÁ EM MIM!” E com isso, Cassiopéia começou a andar, seguida por Manu, passo a passo. Mal a tartaruga e a menina tinham dobrado uma das estreitas ruas que partiam da praça, vultos escuros começaram a movimentar-se ao longo das casas do largo, e um ruído metálico ressoou, como um gélido e abafado riso de escárnio. Eram homens cinzentos, que ali tinham ficado para espionar a cena e agora vigiavam secretamente o par que se pusera a caminho. A espera tinha sido longa, mas não imaginavam que o resultado fosse tão promissor. __ Lá vão elas! – sussurrou uma voz cinzenta. __ Vamos agarrá-las? __ Claro que não! – murmurou outra. __ Vamos deixar que continuem. __ Por quê? Não tivemos ordem de agarrar a tartaruga a qualquer custo? __ Sim. Mas com que finalidade? __ Para que nos leve à morada de Mestre Hora. __ Exatamente. E é o que ela está fazendo agora, sem que tenhamos de usar a força. A tartaruga nos indica o caminho por sua própria e livre vontade, ainda que não intencionalmente. De novo um gélido riso de zombaria ecoou por entre as escuras sombras ao redor da praça.

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__ Avisem todos os agentes da cidade que a busca está suspensa. Todos os agentes devem vir aqui juntar-se a nós, observando porém o maior cuidado: ninguém deve impedi-las, e o caminho deve estar sempre livre diante delas. E agora vamos tranqüilamente seguir nossos dois guias involuntários. Assim, Manu e Cassiopéia não encontraram de fato um único de seus perseguidores. Quando isso ia acontecer estes de desviavam e sumiam a tempo para em seguida juntarem-se a seus companheiros. Formavam-se fileiras cada vez maiores, sempre escondidas pelas altas paredes ou pelas esquinas das ruas, acompanhando sem barulho as duas fugitivas. Manu nunca estivera tão cansada em sua vida. Parecia-lhe às vezes que ia cair no chão e dormir ali mesmo. Forçava-se porém a mais um passo, depois a mais outro, e ao fim de um ou dois minutos a caminhada tornava-se mais fácil. Se ao menos a tartaruga pudesse rastejar um pouco mais depressa! Mas não havia nada a fazer. Manu não olhava mais para os lados, tinha os olhos fixos nos seus pés e em Cassiopéia. Após um tempo que lhe pareceu uma eternidade, percebeu que o chão sobre o qual pisava estava ficando mais claro. Sentia as pálpebras pesadas como chumbo, mas forçou-as a abrirem-se e, lançando um olhar para os lados, viu que tinham finalmente chegado àquela parte da cidade iluminada por estranha luz – nem aurora nem crepúsculo –, onde todas as sombras caíam em direções diferentes. Ali estavam as casas inacessíveis, com suas janelas escuras, mas ofuscantes de tão brancas. E também o misterioso monumento: um ovo gigantesco sobre um grande bloco de pedra negra. Manu retomou coragem, pois já não podiam estar muito longe de Mestre Hora. __ Por favor, não podemos andar um pouco mais depressa? – perguntou a Cassiopéia.

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“QUANTO MAIOR A PRESSA, MENOR A VELOCIDADE!”, foi a resposta que leu nas costa da tartaruga. E, de fato, como da vez anterior, a menina observou que, andando devagar, adiantavam-se mais. Era como se a rua deslizasse sob seus pés, tanto mais rapidamente quanto mais lentamente caminhavam. Esse era o mistério daquele lugar. Da outra vez, os homens cinzentos o ignoravam, quando em seus velozes carros tentaram, perseguir Manu, ela assim lhes escapou. Agora, porém, o caso era outro: não tencionavam apanhar as fugitivas

e

para

acompanhá-las

puseram-se

em

idêntico

ritmo,

descobrindo o segredo. Aos poucos, as alvas ruas foram se enchendo do batalhão de perseguidores que, diminuindo o passo, mais e mais perto chegavam das duas. Era uma extraordinária corrida às avessas: quanto mais devagar, mais rápido! O caminho através daquelas ruas de sonho dava voltas e mais voltas, até chegar a esquina da Alameda do Nunca. Cassiopéia já entrara na alameda em direção à Mansão de Lugar Nenhum, e Manu, lembrando-se de que só de costas pudera se adiantar naquela estranha rua, virou-se nos pés para agora fazer o mesmo. Qual não foi seu pavor ao ver então, avançando ombro a ombro, em cerradas fileiras, a perder de vista, o exército dos homens cinzentos. De olhos arregalados de medo e fixos nos ladrões do tempo, Manu deu um grito, mas ouviu sua própria voz, e correu para a Alameda do Nunca. Aconteceu nesse momento um fato incrível: Quando a primeira fileira dos perseguidores tentou penetrar na Alameda do Nunca, diante do olhar atônito de Manu, eles se dissolveram em nada. Primeiro, seus braços estendidos se desfizeram, depois seus corpos e pernas se desvaneceram e por último suas faces com um expressão de assombro e terror. Não só a menina presenciara o que tinha acontecido; também os homens que estavam mais próximos o tinham visto. Estacaram imediatamente, firmando-se nos calcanhares para resistir à pressão dos

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que vinham atrás, e houve por momentos verdadeiros choques. Manu pôde ainda ver suas caras furiosas ao erguerem contra ela o punho ameaçador. Não ousaram, porém, persegui-la adiante. Afinal, a menina chegou à Mansão de Lugar Nenhum. As grandes portas de bronze se abriram, Manu entrou, percorreu a galeria com as estátuas de pedra, abriu a pequena porta, esgueirou-se através dela e correu pela grande sala cheia de relógios até a saleta, onde se atirou no sofá, escondendo o rosto nas almofadas, de modo a não ver nem ouvir mais nada.

19. Os sitiados fazem um pacto Finalmente, Manu emergiu das profundezas de um sono sem sonhos. Sentia-se maravilhosamente revigorada. Ouviu então uma voz suave que dizia: __ Não foi culpa da menina, mas você, Cassiopéia, por que agiu desse jeito? Abriu os olhos e viu Mestre Hora sentado à mesinha em frente ao sofá, olhando pesaroso para a tartaruga a seus pés, com quem conversava. __ Como não lhe ocorreu que os homens cinzentos a seguiriam? “SEI COM MEIA HORA DE ANTECEDÊNCIA”, apareceu escrito na carapaça da tartaruga, “MAS NÃO PENSO COM ANTECEDÊNCIA”. Mestre Hora sacudiu a cabeça e suspirou: __ Oh! Cassiopéia, Cassiopéia, você às vezes é um mistério até para mim! Manu sentou-se. __ Ah! Nossa amiguinha acordou – disse gentilmente Mestre Hora. __ Espero que você esteja bem!

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__ Muito bem, obrigada – respondeu a menina. __ Desculpe eu ter caído direto no sono! __ Ora, não se incomode com isso – replicou Mestre Hora –, foi natural, não precisa me explicar nada. Cassiopéia já me contou tudo o que eu não pude ver com os meus óculos universais. __ E os homens cinzentos? – perguntou Manu. Mestre Hora tirou do bolso um grande lenço, assoou o nariz e declarou: __ Eles nos sitiaram. Cercaram a Mansão de Lugar Nenhum por todos os lados, isto é, chegaram tão perto quanto puderam. __ Mas não podem vir aqui dentro, não é? __ Não; você mesma viu: ao chegarem à Alameda do Nunca eles se dissolvem em nada. __ Qual a causa disso? – indagou ela. __ É a ressaca do tempo – explicou Mestre Hora. __ Você sabe que na Alameda do Nunca tudo é feito ao reverso. Ora, ao redor desta mansão o tempo tem seu movimento invertido: normalmente o tempo flui para dentro das pessoas, que envelhecem à medida do tempo que absorvem. Na Alameda do Nunca, porém, o tempo flui para fora delas e você pode dizer que rejuvenesce ao percorrer essa alameda. Não rejuvenesce muito, é claro, mas exatamente o tempo gasto até alcançar o fim dessa rua. __ Não reparei nisso – disse Manu, surpresa. __ Bem – explicou Mestre Hora –, isso não importa tanto para os seres humanos, pois eles usufruem de muito mais tempo do que apenas aquele que possuem dentro de si. Com os homens cinzentos, o caso é diferente: é o tempo roubado que os sustenta, e, quando enfrentam a ressaca do tempo, tudo quanto roubaram flui para fora deles, como o ar foge de uma bola de borracha que estoura. Na bola esvaziada, permanece porém o exterior – o invólucro fica –, enquanto dos homens cinzentos não resta absolutamente nada. Manu pôs-se a refletir e após um momento perguntou:

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__ Não seria possível fazer todo o tempo correr ao contrário? Só por uns instantes? Toda gente ficaria um pouquinho mais jovem, o que não teria importância, mas os homens cinzentos se dissolveriam em nada. __ Seria certamente boa idéia, mas receio que não se possa executar. As duas correntes se equilibram; se cancelarmos uma, a outra também vai parar. E então cessaria o tempo . . . Mestre Hora ficou silencioso, empurrou os óculos universais para a testa e, muito pensativo, começou a andar de um lado para outro, murmurando: __ Isto é . . . quem sabe . . . Manu o acompanhava ansiosamente com o olhar, e também Cassiopéia estava atenta. Afinal, sentou-se e disse para Manu: __ Você deu-me um idéia, mas não depende só de mim que seja praticável. Cassiopéia, minha cara, diga-me: na sua opinião, qual a melhor coisa a fazer para quem está sitiado? “ALMOÇAR”, apareceu em letras luminosas na carapaça. __ Realmente! – concordou Mestre Hora. __ É uma boa coisa. Imediatamente, a mesinha estava posta para a refeição. Ou já estaria ali preparada, sem que Manu o tivesse notado? De qualquer forma, ali se achavam as xicrinhas de ouro, com as demais peças do aparelho, a chocolateira fumegante, o mel, a manteiga, os dourados pãezinhos. Desde sua primeira visita, Manu pensava muitas vezes com saudade naquelas coisas deliciosas, e sentou-se à mesa com grande apetite. Desta vez tudo lhe pareceu ainda mais saboroso e também Mestre Hora comeu com satisfação. Após alguns momentos, Manu, ainda com a boca cheia, perguntou: __ Os homens cinzentos querem que o senhor lhes entregue todo o tempo pertencente à humanidade, mas o senhor não fará tal coisa, não é?

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__ Não, minha menina, nunca o farei – respondeu Mestre Hora. __ O tempo começou certo dia e certo dia acabará, porém só quando a humanidade não tiver mais necessidade dele. Os homens cinzentos não obterão de mim a menor parcela de tempo. __ Eles dizem no entanto que poderão forçá-lo a isso – insistiu Manu. __ Antes de discutirmos mais, eu gostaria que você mesma os observasse – e, tirando seus pequenos óculos de aro de ouro, Mestre Hora os entregou à menina. Como da primeira vez, no começo ela só viu uma confusão de cores e formas que a deixavam tonta; mas agora pôde focalizar a imagem mais depressa e viu o imenso exército de sitiantes. Ombro

a

ombro,

ali

estavam

os

homens

cinzentos,

em

intermináveis fileiras. Não se alinhavam apenas à entrada da Alameda do Nunca, mas espalhavam-se ao longe, formando um grande círculo que se estendia por toda aquela parte da cidade de casa brancas, tendo Mansão de Lugar Nenhum como centro. Não havia uma brecha no cerco. Manu notou então um fato esquisito. A princípio julgou que os vidros dos óculos universais estivessem embaçados, ou que ela não enxergasse com nitidez, pois uma estranha névoa tornara indistintos e nublados os contornos dos homens cinzentos. Verificou depois que a névoa nada tinha a ver com os vidros dos óculos ou com os seus olhos, mas erguia-se das ruas onde eles se encontravam. Em alguns lugares, já havia uma espessa e opaca neblina; em outros, estava apenas começando. Os homens cinzentos permaneciam imóveis. Como de costume, cada um tinha o chapéu-coco na cabeça, a pasta cinzenta na mão e o charuto aceso na boca. As nuvens de fumaça que estes produziam não de dispersavam, porém, como habitualmente: no ar parado, sem a menor brisa, a fumaça flutuava sem se desfazer, formando cortinas viscosas e densas como teias de aranha, depositando-se ao longo das ruas e sobre a fachada das casas brancas como neve, em longos festões.

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Condensaram-se depois numa parede glauca e asquerosa que subia, lenta mas incessantemente, cercando a Mansão de Lugar Nenhum. Manu viu também que de momento a momento maior número de homens chegavam para tomar o posto dos que vinham revezar. Que significava aquilo? Qual seria o plano de ação dos ladrões do tempo? Tirou os óculos e olhou interrogativamente para Mestre Hora, que lhe disse: __ Você já viu bastante? Então dê-me os óculos. Enquanto os colava, continuou: __ Você perguntou se eles poderiam forçar-me a alguma coisa. A mim mesmo, como você sabe, não podem atingir. Poderão, no entanto, infligir à humanidade uma chaga pior do que tudo quanto até agora têm feito. É com tal ameaça que tentarão me coagir. __ Ainda pior? – disse Manu, indignada. Mestre Hora acenou com a cabeça: __ Eu distribuo a cada criatura humana sua porção de tempo e os homens cinzentos não podem impedi-lo nem interceptar o tempo que eu concebo. Mas podem envenená-lo. __ Envenenar o tempo? – perguntou ela, assombrada. __ Sim, com a fumaça de seus charutos – explicou Mestre Hora. __ Repare que eles não largam o charuto cinzento, pois sem ele deixarão de existir. __ De que espécie são esses charutos? – indagou Manu. __ Você se lembra da floração das horas, não é? – perguntou Mestre Hora. __ Eu disse então que toda criatura humana tem em si um templo de ouro do tempo como aquele – é o seu coração. Quando uma pessoa admite a entrada dos homens cinzentos no seu templo, estes podem arrebatar-lhe mais e mais dessas flores. As flores das horas assim roubadas não podem morrer pois não foram vividas; e também não podem viver, pois foram arrancadas a seus verdadeiros proprietários. Anseiam constantemente, com cada fibra de seu ser, por voltar a quem de direito pertencem.

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Manu ouvia, quase sem fôlego. __ Você precisa saber, Manu, que o mal tem seus mistérios – como o bem. Ignoro onde os homens cinzentos guardam as flores das horas roubadas. Só sei que por sua própria frieza eles as congelam, tonando-as sólidas como pequenas taças de cristal, impedindo assim que elas voltem a seus legítimos donos. Em algum ponto, profundamente escondidos sob a terra, deve haver gigantescos depósitos, onde jaz todo tempo congelado. Ainda assim, a floração das horas não morre. As faces de Manu ardiam de indignação. __ Os homens cinzentos vão continuamente abastecer-se nesses depósitos: arrancam as pétalas das flores, deixam-nas murchar até que fiquem completamente secas e cinzentas e com elas enrolam seus charutinhos. Até esse momento, ainda existe um resto de vida nas pétalas e, como os ladrões para fumá-los. É somente nessa fumaça que o tempo morre realmente e é esse tempo dos homens – agora morto – que conserva vivos os homens cinzentos. Manu tinha se levantado e exclamou: __ Oh! Pensar em todo esse tempo morto . . . __ De fato, é impressionante. Aquele muro de fumaça lá fora, cercando a Mansão de Lugar Nenhum, é todo feito de tempo morto. Ainda disponho de bastante céu aberto para enviar aos homens o tempo intato; mas, quando essas densas nuvens de fumaça tiverem formado uma completa abóbada em redor e acima de nós, então uma certa quantidade do tempo espectral dos homens cinzentos vai misturar-se com cada hora que eu mandar à humanidade. E quando as pessoas absorverem

esse

tempo

poluído

ficarão

doentes



mortalmente

enfermas. Cheia de espanto, Manu fitava Mestre Hora sem compreender: __ Que espécie de doença é essa? – perguntou baixinho. __ No começo, mal se percebe. Mas, um dia, o homem não tem disposição para coisa alguma; nada o interessa, ele está profundamente aborrecido. Essa apatia não passa; perdura e cresce sempre mais, tornando-se pior de dia para dia, de semana para semana. Sente-se

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continuamente insatisfeito, interiormente vazio, descontente com tudo. Depois, aos poucos, até esse sentimento desaparece: o homem fica inteiramente insensível, indiferente – como que cinzento –, alienado do mundo, que já não lhe diz nada. Não tem mais cólera nem entusiasmo, é incapaz de regozijar-se ou de lastimar-se: esqueceu o rios e as lágrimas. Torna-se intimamente gélido, e não pode amar a ninguém e a coisa alguma. Quando a doença atinge esse grau é incurável, não há recuperação possível. O homem se agita de um lado para outro, com o rosto inexpressivo, cinzento como o dos homens cinzentos, e na verdade torna-se então um deles. Essa doença chama-se “tédio mortal”. Manu estremeceu: __ Se o senhor recusar entregar-lhes todo o tempo da humanidade, eles vão fazer todas as pessoas ficarem iguais a eles? __ Sim – respondeu Mestre Hora –, e é por isso que tentam me coagir. Levantou-se e continuou: __ Aguardei até agora, na esperança de que os homens se libertassem dessas pestes por seus próprios esforços. Poderiam fazê-lo, pois afinal a humanidade é que os trouxe à existência. Já não posso esperar mais. Tenho de fazer alguma coisa, mas não posso realizá-la sozinho! E olhando para Manu: __ Você quer ajudar-me? __ Quero – sussurrou a menina. __ Terei de expô-la a nem sei que perigos – disse Mestre Hora –, dependerá de você que o mundo pare para sempre ou que recomece a viver de novo. Sente-se bastante corajosa para enfrentar tal risco? __ Sim! – e dessa vez a voz de Manu tinha um tom decidido. __ Muito bem! – declarou Mestre Hora. __ É preciso prestar muita atenção ao que vou explicar, pois terá de resolver tudo sozinha e eu não poderei mais ajudá-la. Nem eu, nem ninguém! Manu acenou com a cabeça, os olhos fitos em Mestre Hora, com atenção concentrada.

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__ Você precisa saber – disse ele – que eu jamais durmo. Se acontecesse eu cair no sono, nesse instante exato, o tempo pararia, e o mundo inteiro ficaria completamente imobilizado. Ora, tendo cessado o tempo, os homens cinzentos não poderiam mais roubá-lo. É verdade que ainda poderiam existir por alguns momentos, pois possuem grandes reservas

de

tempo;

quando

essas

esgotassem,

porém,

eles

se

dissolveriam em nada. __ Então é fácil – declarou a menina. __ Infelizmente, não é absolutamente fácil; se fosse, eu não precisaria de seu auxílio. Quando o tempo cessar, não poderei acordar novamente, e o mundo ficará absolutamente imóvel para toda a eternidade. Mas tenho o poder de dar a você – exclusivamente a você – uma flor das horas. Uma única, é claro, pois só uma floresce de cada vez. Desse modo, mesmo que o tempo pare, você ainda será dona de uma hora. __ Assim, poderei acordá-lo! – exclamou Manu. __ Se fosse só isso . . . – continuou ele – mas numa hora apenas, nada ganharíamos, as reservas de tempo dos homens cinzentos são grandes, não se esgotariam tão depressa, e depois eles continuariam a existir. Não; os problemas que você terá de resolver são bem mais difíceis! Logo que nossos adversários perceberem que o tempo cessou – e eles perceberão muito depressa, porque não terão meios de renovar seu estoque de charutos –, suspenderão o cerco, a fim de se dirigirem a seus depósitos. Aí, é preciso que você os siga, Manu, e descubra esse lugar secreto, pois terá de impedir que alcancem as suas reservas: no momento em que não tiverem mais charutos, perderão a existência. Em seguida, há ainda outra coisa a fazer e talvez seja a mais difícil: logo que o último homem cinzento se extinguir, você terá de libertar todo tempo roubado; somente quando ele voltar a seus legítimos donos é que o mundo sairá da imobilidade e acordará de novo. E, para executar tudo isso, você terá apenas uma única hora. Manu olhou com ar desanimado; não calculara que as dificuldades e perigos fossem tantos.

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__ Quer tentar assim mesmo? – perguntou Mestre Hora. __ É a única chance! Manu ficou silenciosa. Duvidava que fosse capaz de realizar tudo aquilo. De repente, leu nas costas de Cassiopéia: “VOU COM VOCÊ”. Que ajuda poderia lhe dar a tartaruga? Sentiu no entanto um raio de esperança a confortá-la. A idéia de não empreender sozinha a difícil missão

dava-lhe

coragem.

Era

naturalmente

uma

coragem

sem

fundamento razoável, mas que lhe permitiu tomar uma decisão firme: __ Vou tentar – disse resolutamente. Mestre Hora lançou-lhe demorado olhar acompanhado de um sorriso: __ Muita coisa será mais fácil do que parece no momento. Você ouviu a música das esferas; não deve ter medo. Voltando-se para a tartaruga, perguntou: __ E você, Cassiopéia, quer ir também? “NATURALMENTE”, apareceu na sua carapaça. E logo essas letras de dissiparam, e surgiram outras: “ALGUÉM TEM DE OLHAR POR ELA”. Mestre Hora e Manu sorriram um para o outro. __ O senhor vai lhe dar também uma flor das horas? – perguntou Manu. __ Não – explicou ele, coçando carinhosamente o pescoço da tartaruga. __ Cassiopéia não precisa; é uma criatura fora do tempo. Ela carrega em si o seu próprio tempo e continuaria rastejando pelo mundo inteiro, ainda que tudo o mais tivesse parado para sempre. __ Bem – disse Manu tomada por súbito desejo de ação –, qual a primeira coisa a fazer agora? __ É nos despedirmos! – respondeu Mestre Hora. Manu engoliu em seco e murmurou baixinho: __ Será que nunca mais os veremos? __ Sim, havemos de nos encontrar de novo; mas antes disso, cada hora de vida levará a você lembranças minhas, pois continuaremos amigos, não é?

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__ Decerto! – afirmou Manu. __ Agora preciso ir-me; você não deve acompanhar-me nem perguntar para onde vou. Meu sono não é um sono comum e é melhor que você não o presencie. Mais uma recomendação: logo que eu partir daqui, abra imediatamente as duas portas, a pequenina com meu nome e a grande porta de bronze que dá para a Alameda do Nunca, pois, assim que o tempo cessar, tudo ficará completamente imóvel e nenhuma força do mundo poderá abrir essas portas. Você compreendeu bem tudo e será capaz de executar a tarefa? __ Compreendi – respondeu Manu –, mas como saberei o momento em que o tempo parar? __ Não se preocupe, você saberá logo. Mestre Hora levantou-se, acariciou o cabelo despenteado da menina e disse: __ Adeus, Manu, tive muita alegria que você me ouvisse também! __ Mais tarde, hei de falar do senhor a toda gente – replicou ela. Subitamente, Mestre Hora pareceu incrivelmente velho, tal como quando a carregara nos braços para o templo de ouro: velho como as mais antigas árvores ou as rochas primitivas. Saiu rapidamente da saleta, cujas paredes eram formadas pelos grandes relógios, e Manu ouviu seus passos sumindo na distância, tonando-se cada vez mais fracos até confundirem-se com os inúmeros tique-taques que ressoavam no ambiente. Manu

apanhou

Cassiopéia

e

abraçou-a.

Estava

agora

irrevogavelmente engajada na maior aventura de sua vida.

20. Os perseguidores perseguidos A primeira coisa que Manu fez foi abrir a portinha interna com o nome de Mestre Hora. Correu em seguida pela galeria, onde estavam grandes estátuas de pedra, e abriu a enorme porta de bronze; teve de

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empregar toda a sua força, pois os gigantescos batentes eram pesadíssimos. Feito isso, voltou correndo para a grande sala dos relógios e com Cassiopéia debaixo do braço ficou à espera do que pudesse acontecer. De fato, aconteceu algo extraordinário. Subitamente houve uma espécie de terremoto, mas em vez de a terra tremer, foi um tremor do tempo. Não há palavras capazes de descrevê-lo. Um som jamais escutado por nenhum ouvido humano acompanhou esse fenômeno: era como se um imenso gemido subisse das profundezas dos séculos. Depois tudo terminou. No mesmo instante, as inúmeras vozes dos carrilhões, os zunidos e tique-taques na sala dos relógios cessaram repentinamente. Os pêndulos oscilantes pararam no ponto em que se encontravam: nada, absolutamente nada mais tinha movimento. O silêncio estendeu-se por toda a parte: uma quietude completa, total, como nunca acontecera desde o princípio do mundo. O tempo tinha cassado. Manu percebeu que, inesperadamente, segurava uma grande flor das horas, de maravilhosa beleza. Não sabia como a flor viera ter à sua mão, parecia que sempre estivera ali. A menina deu cautelosamente um passo à frente, e verificou que podia andar com a facilidade habitual. Na mesinha tinham ficado as sobras da refeição, e Manu sentou-se numa das pequenas poltronas; agora, porém, as almofadas estavam duras como mármore e muito desconfortáveis. Na sua xícara restava ainda um gole de chocolate, mas não conseguiu levantar a xícara do pires. Experimentou mergulhar o dedo no líquido e viu que se tornara sólido como vidro. Com o mel acontecera o mesmo, e tampouco conseguia apanhar as migalhas de pão. Cessando o tempo, tudo se tornara imóvel e inalterável. Cassiopéia começou a agitar-se e Manu, olhando para ela, leu este aviso: “VOCÊ ESTÁ PERDENDO TEMPO”

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Céus! Era verdade. Correu então pela grande sala, esgueirou-se pela portinha e continuou correndo pela longa galeria. Quando chegou à porta de bronze, espiou para fora e recuou precipitadamente. Seu coração batia descompassado: os homens cinzentos não estavam levantando o cerco! Pelo contrário, avançavam pela Alameda do Nunca, onde o tempo que costumava fluir para trás também havia parado, e dirigiam-se agora para a Mansão de Lugar Nenhum! Isso não fora previsto no plano. Manu voltou em disparada para a grande sala dos relógios e escondeu-se atrás de um deles, sempre com Cassiopéia debaixo do braço. __ Não é um começo muito animador – murmurou assustada. Ouviu em seguida os passos dos homens cinzentos que se aproximavam: um por um, espremeram-se através da estreita portinha e reuniram-se na sala dos relógios. __ Então é esta nossa nova morada! É imponente! – disse um deles. __ Foi Manu quem nos abriu a porta, eu vi! – declarou outra voz cinzenta. __ É uma menina de juízo. Só queria saber como conseguiu persuadir o velho. Uma terceira voz respondeu: __ Na minha opinião, aquela pessoa teve de desistir. O fato de a ressaca do tempo ter cessado na Alameda do Nunca significa que foi ela quem o determinou, pois certamente compreendeu que tinha de submeter-se a nós. Agora vamos liquidá-la de uma vez. Mas onde terá se metido? Os homens cinzentos puseram-se a olhar em volta, quando um deles exclamou, numa voz mais cinzenta do que nunca: __ Alguma coisa está errada! Vejam! Vejam!, os relógios estão todos parados. Todos! Até aquela ampulheta! __ Bem, supondo que o próprio velho os tenha feito parar – disse outra voz, sem muita segurança.

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__ Ninguém pode fazer parar uma ampulheta – gritou o primeiro. __ Reparem, a areia parou a meio caminho: não se pode movê-la e a ampulheta também ficou imóvel. Que significa isso? Estava ainda falando, quando se ouviram passos apressados, e outro homem cinzento se esgueirou pela porta. Entrou gesticulando e disse aos gritos: __ Acabamos de receber notícias de nossos agentes da cidade. Seus carros não andam, tudo parou. O mundo está parado. É impossível arrancarmos a menor parcela de tempo, seja de quem for. Todo o nosso sistema de reservas faliu: não existe mais o tempo. Mestre Hora fez cessar o tempo! Reinou por um momento um silêncio de morte. Depois, um deles perguntou: __ Que é que disseram? Nosso sistema de reservas faliu? Então que será de nós, quando tivermos esgotado os charutos que trouxemos conosco? __ Os senhores sabem perfeitamente o que sucederá – bradou outro –, é uma pavorosa catástrofe! Começaram a gritar todos juntos, num tremendo alvoroço: __ Mestre Hora pretende nos destruir! Temos de levantar o cerco imediatamente! Precisamos chegar ao nosso depósito de reservas de tempo! __ Sem carros? É impossível, meus charutos só vão durar mais vinte e sete minutos. __ Os meus, apenas quarenta e oito. __ Dê-me alguns! __ Está louco? __ É cada qual por si! O bando todo precipitou-se para a pequena porta, tentando sair. De seu esconderijo, Manu observava como lutavam, em pânico, empurrando, puxando uns aos outros, envolvidos em conflitos cada vez mais violentos. Cada um queria passar à frente do companheiro, num tremendo esforço para conservar sua vida cinzenta. Para isso, arrancava

185

o charuto da boca do que estava mais perto, e quando isso acontecia este perdia instantaneamente toda a força: com as mãos estendidas, o rosto cinzento contorcido pelo terror, ia se tornando mais e mais transparente, até desaparecer por completo. Nada restava dele – nem mesmo o chapéu-coco. No final da batalha, só ficaram na sala três homens, que conseguiram sair sem atropelo pela porta estreita. Manu, sempre com a tartaruga debaixo do braço e a flor das horas na outra mão, correu atrás deles. Agora tudo dependia de que não os perdesse de vista. Ao passar pela grande porta de bronze, viu que os ladrões do tempo já tinham chegado ao fim da Alameda do Nunca. Ali se achavam outros grupos, em meio às espirais paradas de fumaça, vociferando em tumulto. Ao verem os três companheiros correndo, fizeram o mesmo. Em breve, outros juntaram-se a eles e daí a pouco todo o imenso exército dos homens cinzentos estava em plena fuga, em direção da grande cidade, perseguido, a distância, por uma menina com uma tartaruga debaixo do braço e uma flor na mão. Mas como era agora estranho o aspecto da grande cidade! Nas ruas e avenidas, viam-se filas e filas de carros com motoristas imóveis, as mãos no volante ou na alavanca de mudanças de marcha; ciclistas imobilizados com o braço estendido, indicando que iam virar a esquina; nas calçadas, todos os pedestres, homens, mulheres e crianças, cães e gatos, todos parados, rígidos. Até a fumaça dos cachimbos estava suspensa no ar. No

cruzamento

das

ruas,

guardas

com

a

apito

na

boca

permaneciam inalteráveis na posição em que estavam dirigindo o trânsito. Acima da praça, pairava um bando de pombos, imobilizados em pleno vôo. E, lá no alto, um avião parecia pintado no céu. A água do chafariz tornara-se sólida como gelo. Folhas que estavam caindo das árvores ficaram suspensas no meio da queda. Um cachorrinho de perna erguida, junto a um poste, parecia um bicho empalhado.

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Os homens cinzentos atravessaram correndo a cidade imóvel, Manu sempre seguindo-os de longe para não ser vista. Aliás, eles não reparavam em coisa alguma, na ânsia da corrida, muito difícil e cansativa; estavam habituados a seus automóveis e não costumavam andar de pé grandes distâncias. Ofegantes, sem fôlego, muitos deixavam cair da boca o imprescindível charuto, desvanecendo-se imediatamente. Além disso, os próprios companheiros eram uma constante ameaça. Em seu desespero, alguns, cujo charuto estava no fim, arrancavam simplesmente o de outro e desse modo diminuía constantemente o número dos ladrões de tempo. Aqueles,

que

levavam

alguma

reserva

em

suas

pastas,

procuravam escondê-la, pois quando os outros a descobriam avançavam sobre eles, formando-se verdadeiras batalhas, durante as quais muitos charutos caíam ao chão, eram pisados no tumulto, e os homens cinzentos desfaziam-se em nada. Outra dificuldade que encontravam era a massa compacta de povo que enchia as ruas do centro se atravessassem densa floresta. Flocos de penugem pairando no ar estavam tão sólidos como pedras, e era preciso muito cuidado para não quebrar a cabeça de encontro a tais obstáculos. Para Manu, pequenina e magrinha, o trajeto era mais fácil; estava atenta à flor das horas que levava na mão, e, vendo que esta começava apenas a abrir-se, achou que não havia motivo para se preocupar: o tempo devia chegar para realizar sua tarefa. Aconteceu então algo que fez Manu esquecer-se de tudo o mais: numa rua transversal viu de repente Beppo Varredor. Alucinada de alegria, correu para ele gritando: __ Beppo, tenho estado à sua procura por toda parte! Onde tem andado? Oh! Meu querido Beppo! E, sem pensar nas conseqüências, atirou-se ao pescoço do amigo, ricocheteando com tal força que se machucou e as lágrimas lhe vieram aos olhos. Beppo pareceu-lhe mais curvado do que antigamente; seu rosto envelhecido

mais

magro

e

muito

pálido,

abatido

pelo

trabalho

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incessante. No queixo, crescera uma barbicha branca, pois ele nunca mais tivera tempo para se barbear. Segurava uma vassoura já muito usada de tanto varrer, e assim estava, imóvel, como que considerando através dos óculos toda a sujeira da rua. Manu o encontrara afinal, mas o encontro de nada adiantava pois ele não podia vê-la, nem ouvi-la. E talvez fosse essa a última vez em que estariam juntos . . . Se as coisas saíssem conforme os planos, o velho Beppo ali ficaria para toda a eternidade. A tartaruga começou a arrancar o braço da menina, e sua carapaça apareceu este conselho: “VÁ ADIANTE!” Manu voltou depressa para a rua principal e levou um susto: não havia nenhum homem cinzento à vista! Correu na direção em que anteriormente se achavam, mas inutilmente. Perdera a pista dos ladrões de tempo! Parou, perplexa. Que fazer agora? Olhou interrogativamente para Cassiopéia e leu esta resposta: “CONTINUE, VOCÊ VAI ACHÁ-LOS!” Ora, Cassiopéia sabia com antecedência que ela os encontraria, não importava qual o rumo a tomar: qualquer caminho daria certo. Pôsse então a correr segundo seu capricho: às vezes virava à direita; outras, à esquerda; ou ia simplesmente em frente. Chegou por fim à parte norte da cidade, ao bairro recémconstruído, com casas todas idênticas e ruas retas que se estendiam a perder de vista. Manu corria e corria, mas, como tudo era perfeitamente igual, tinha a impressão de não sair do lugar. Era sem dúvida um labirinto; porém um labirinto de paralelogramos e monotonia. A menina já estava quase perdendo a coragem, quando avistou de repente um homem cinzento virando uma esquina. Mancava, tinha as calças rasgadas, perdera o chapéu e a pasta, mas entre os lábios apertados ainda havia um toco de charuto aceso. Manu seguiu-o ao longo das infindáveis fileiras de casas até o ponto onde se abria uma brecha: em vez de uma casa, ali se erguia um

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alto tapume de tábuas rústicas em volta de um grande espaço quadrado. No tapume havia uma porta entreaberta, pela qual o homem entrou precipitadamente. Acima da porta destacava-se um aviso, que Manu soletrou até conseguir ler o que dizia: “CUIDADO! ALTAMENTE PERIGOSO EXPRESSAMENTE PROIBIDA A ENTRADA DE PESSOAS NÃO AUTORIZADAS”

21. O fim que é um novo começo Manu demorou a ler a tabuleta de aviso e quando penetrou no interior do tapume não viu vestígio do homem cinzento. Diante dela estendia-se uma imensa e profunda vala. Escavadeiras e outras máquinas para construção ali se enfileiravam. Uma rampa íngreme levava ao fundo da vala e vários caminhões se achavam imobilizados a meio caminho. Aqui e acolá, operários estavam rígidos, parados na posição em que se encontravam no momento em que tempo cessou. Para onde se dirigir agora? A menina não descobria nenhum meio de acesso que o homem cinzento pudesse ter usado. Olhou para Cassiopéia, mas tartaruga também parecia ignorá-lo. Desceu então até o fundo da longa escavação e pôs-se a olhar em volta. Inesperadamente, deu com um rosto conhecido: era Nicolau, o pedreiro que certa vez pintara um bonito quadro de flores na parede de seu quarto. Evidentemente, como todos os outros, ele estava imóvel, porém numa atitude muito curiosa: tinha a mão em concha ao redor da boca, como se estivesse gritando algo a um companheiro, e com a outra mão apontava para a extremidade de um enorme tubo de canalização, que emergia a seu lado, no fundo da vala. Parecia estar olhando para

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Manu, e a menina não hesitou. Tomou aquilo como um sinal e meteu-se dentro do tubo. Mal penetrou nele, começou a escorregar, pois o tubo descia em forte declive e tomava direções diferentes, de modo que Manu parecia estar numa montanha-russa. A rampa era por vezes tão íngreme, que ela era precipitada de cabeça para baixo, mas não largava a tartaruga nem a flor das horas. Quanto mais o tubo se aprofundava na terra, mais frio ia se tornando o ambiente. Houve um momento em que chegou a duvidar se sairia daquele escuro túnel! Contudo, não teve tempo para se preocupar com essa idéia, pois o enorme tubo desembocou de repente numa passagem subterrânea, onde reinava uma luz cinzenta, que parecia emanar das próprias paredes. Manu pôs-se de pé e como estava descalça pôde correr sem fazer o menor barulho. À medida que avançava, começou a ouvir o ruído de passos à sua frente e seguiu o som. A passagem subterrânea ramificava-se em todas as direções, formando como que uma verdadeira rede de artérias e veias sob todo o novo bairro recém-construído. A certa altura, ela escutou um burburinho de vozes; adiantou-se cautelosamente e espiou às escondida. Viu à sua frente uma gigantesca sala, em cujo centro havia uma mesa de conferências extraordinariamente longa, à qual estavam sentados, em duas fileiras, os homens cinzentos. Ou melhor, o pequeno grupo a que estavam reduzidos. Seu aspecto era lamentável: as roupas rasgadas, cortes e galos nas cabeças carecas, as fisionomias alteradas pelo pavor. Seus charutos, porém, continuavam acesos. Manu observou que, na extremidade da sala, havia uma enorme porta entreaberta, como de um cofre-forte. Soprava uma corrente de ar gelado que a fez encolher-se toda e abaixar-se até esconder os pés nus sob a saia. Escutou então um dos homens que se achavam sentados a uma ponta da mesa, em frente à câmara frigorífica, dizer:

190

__ Temos de usar nossas reservas com muita economia, e fazermos um racionamento, pois ignoramos o tempo que deverá durar. __ Mas restaram tão poucos dos nossos! As reservas durarão anos! – exclamou outro. __ Quanto mais cedo começarmos a economizar, tanto melhor! – continuou o primeiro. __ Se apenas alguns sobreviverem a tal desastre já será o suficiente. Temos de considerar os fatos objetivamente: o número dos sobreviventes ainda é muito grande. É preciso reduzi-lo. Para isso, proponho numerar todos os que aqui se acham e tirar-se s sorte para ver os que ficam. Essa é a voz da razão. A cada um dos homens foi dado um número, e o que presidia a sessão tirou do bolso uma moeda: __ Vamos jogar cara ou coroa: cara, serão os números pares, que vão permanecer; coroa, os ímpares, que serão extintos. __ Atirou a moeda para o ar e apanhou-a: __ Cara: ficam os números pares, os outros desaparecerão. Um lamento lúgubre ergueu-se entre os perdedores, que se submeteram, no entanto, sem protesto à ordem dada. Os felizardos ganhadores arrancaram-lhes o charuto, e no mesmo instante eles dissolveram-se em nada. O silêncio que se segui foi interrompido pela voz do presidente: __ Senhores, ainda somos muito numerosos, e vamos repetir esta medida de emergência. Por quatro vezes refez-se o cruel processo, até que em volta da grande mesa de conferências não restassem mais do seis homens, olhando um para o outro com olhar de aço. Manu observava tudo, horrorizada. Notou que, diminuindo o número dos ladrões do tempo, diminuía também o frio reinante na sal, agora já quase suportável. __ Seis é um mau número – disse um deles. __ Chega! – protestou outro. __ Não há necessidade de se reduzir mais o nosso grupo; se seis não conseguirem sobreviver à catástrofe, três também não o conseguirão.

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__ Não concordo – retrucou o primeiro –, mas enfim sempre haverá tempo para se discutir esse ponto mais tarde. Por um momento, reinou completo silêncio, até que um deles comentou: __ É uma sorte que a porta do frigorífico tenha ficado entreaberta, senão nenhuma força deste mundo poderia abri-la, e estaríamos perdidos. __ A sorte não é tanta assim – replicou outro –, pois, enquanto a porta ficar

aberta,

a temperatura

vai

subindo na

câmara

fria;

gradativamente, as flores das horas começarão a degelar e, como sabem, não poderemos mais impedir que voltem a seus legítimos donos. __ Não acha que o nosso próprio frio é suficiente para conservar geladas as reservas? __ Infelizmente somos apenas seis, e o senhor pode avaliar por si mesmo a quantidade de frio que podemos produzir. Parece-me que fomos precipitados, diminuindo nosso grupo de modo tão drástico. Isso não nos trará vantagens. __ Tínhamos de escolher entre uma e outra alternativa, e foi essa que escolhemos – respondeu o primeiro homem cinzento. Caiu novo silêncio. __ Teremos de ficar aqui, talvez durante anos, simplesmente encarando uns aos outros? – perguntou um deles. __ Confesso que a perspectiva não me parece animadora. Manu começou a refletir. Certamente não tinha cabimento permanecer ali, quieta, à espera. Quando não houvesse mais homens cinzentos, as flores das horas degelariam por si, mas no momento eles ainda existiam e continuariam a existir, se ela não tomasse uma iniciativa. Mas que era possível fazer, se os frigoríficos estavam abertos, de modo que os ladrões podiam se abastecer à vontade? Cassiopéia pôs-se a arranhá-la, e Manu leu na sua carapaça: “FECHE A PORTA”. __ É impossível – murmurou a menina – ninguém pode movê-la. “TOQUE COM A FLOR”

192

__ Quer dizer que, se eu tocar a porta com a flor das horas, ela se fechará? – sussurrou Manu. “É O QUE VOCÊ VAI FAZER”, apareceu nas costas da tartaruga. Como Cassiopéia afirmava antecipadamente que Manu o faria, ela podia realmente fazê-lo. Colocou então cuidadosamente a tartaruga no chão, depois enfiou dentro do casaco a flor, que já começava a murchar e perdera várias pétalas. Sem que os homens cinzentos a percebessem, pôs-se a rastejar sob a mesa de conferência, e sempre de gatinhas chegou até sua extremidade. Estava agora entre os pés dos ladrões de tempo, e o coração batia-lhe como se fosse estourar. Delicadamente, tirou a flor do casaco, prendeu a haste entre os dentes e continuou serpenteando entra as cadeiras, até alcançar a porta aberta. Tocou-a com a flor ao mesmo tempo que a empurrava. A porta girou silenciosamente nas dobradiças e fechou-se em seguida com um estrondo de trovão. O som repercutiu repetidamente na grande sala e depois ecoou mil vezes nas passagens subterrâneas. Os homens cinzentos, não supondo nem de longe que alguém mais – fora eles próprios – tivesse escapado à imobilidade universal, continuavam sentados, pasmos, olhando para a menina. Sem perder tempo, Manu passou por eles, precipitando-se para a saída da sala. Logo, porém, os ladrões, recuperados do choque da surpresa, puseram-se a persegui-la aos gritos: __ É aquela abominável menina! É Manu! Ela tem uma flor das horas e temos de tomá-la; é o único meio de nos salvarmos, do contrário será o nosso fim. Enquanto isso, Manu já tinha desaparecido num dos corredores e os homens iam no seu encalço, conhecendo muito melhor do que ela todas as ramificações da grande rede sob a terra. A menina corria ao acaso, e por vezes quase ia de encontro aos adversários, mas sempre conseguia evitá-los no momento exato. Cassiopéia também, a seu modo, tomava parte na batalha, salvando mais de uma vez Manu de ser apanhada. Embora só pudesse

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rastejar lentamente, como conhecia com antecedência o lugar em que eles passariam, dava jeito de colocar-se a tempo no meio do caminho, de maneira a fazer com que os homens cinzentos tropeçassem e caíssem uns por cima dos outros. Naturalmente, ela própria levava pontapés e era chutada de encontro à parede, mas isso não a impedia de continuar a fazer o que sabia com antecedência que faria. No ardor da perseguição, alguns deles, loucos de ganância pela flor das horas, perderam seus charutos e se desfizeram em nada. Finalmente, restaram apenas dois. Manu fugiu

de volta à sala de conferências e os dois últimos

perseguidores tentavam em vão apanhá-la, correndo ao redor da mesa. Vendo que não o conseguiam, separaram-se e resolveram cercar a menina. Já não havia possibilidade de fuga, e Manu parou, de costas para a parede, num canto da sala, olhando aterrorizada para os dois homens que se aproximavam. Segurava a flor das horas apertada contra o peito; apenas três de sua brilhantes pétalas ainda subsistiam. Um dos homens já esticava a mão para se apoderar da flor, quando o outro o empurrou para trás: __ Não! A flor é minha! É minha! Na luta que começou entre ambos, um arrancou o charuto da boca do outro, que com um gemido espectral foi se tornando transparente, até se desfazer em nada. O último dos homens cinzentos, com um toco de charuto nos lábios, avançou para Manu e disse-lhe, ofegante: __ Dê-me a flor! Ao falar, no entanto, o charuto caiu de sua boca e rolou no chão. O homem atirou-se ao solo, de braço estendido para apanhá-lo, mas não o alcançou. Voltou seu rosto cinza para Manu, tentou com esforço soerguer o corpo e, levantando a mão trêmula, murmurou suplicando: __ Por favor, querida menina, dê-me a flor! Manu continuava como que pregada naquele canto da sala. Apertou a flor das horas contra o coração e sacudiu a cabeça negativamente, incapaz de emitir um som.

194

O último dos homens cinzentos acenou devagar e murmurou: __ Está bem, agora tudo acabou, tudo acabou. __ E extinguiu-se. Atordoada, imóvel, Manu tinha os olhos fixos no lugar em que eles estivera deitado no solo. Mas Cassiopéia começou a arranhá-la e na sua carapaça surgiram estas palavras: “VÁ ABRIR A PORTA” Manu tocou a porta com a flor, na qual ainda havia uma última pétala, e abriu-a completamente. Com o desaparecimento do último ladrão de tempo, o frio tinha diminuído.

De

olhos

arregalados

de

espanto,

Manu

entrou

nos

gigantescos depósitos onde se enfileiravam as inúmeras flores das horas, como pequeninas taças de vidro, cada uma mais linda do que a outra – não havendo duas iguais –, que representavam centenas de milhares – talvez milhões – de horas de vida. A atmosfera se tornou mais quente, e agora parecia a de uma estufa. Então, justo no momento em que a última pétala da flor de Manu começou a cair, levantou-se de repente como que uma tempestade. Nuvens de flores das horas rodopiavam em volta da menina e a envolviam. Parecia uma cálida ventania de primavera. Era porém um vendaval que vinha de nuvens de tempo liberado. Como em sonho, Manu olhou em volta e viu Cassiopéia no chão, diante de si. Na carapaça apareceram, luminosas, estas palavras: “VOE PARA CASA, Manu, VOE PARA CASA!” Foi a última vez que Manu viu Cassiopéia. Dali em diante, a tempestade

da

floração

das

horas

tornou-se

indescritivelmente

possante, tão forte, que carregou Manu, levando-a para fora das galerias subterrâneas, voando por cima dos telhados das casas, das torres das igrejas, acima da grande cidade, num imenso turbilhão de flores que crescia sempre mais. Era como se a menina fizesse parte de uma dança triunfal acompanhando uma maravilhosa música, uma dança na qual flutuava para o alto e para baixo, e era impelida numa roda-viva sem fim.

195

Depois, a nuvem da floração das horas baixou suavemente. As flores caíram como flocos de neve sobre o mundo congelado e, como flocos de neve, derretiam-se brandamente, tornando-se de novo invisíveis ao voltarem para seu verdadeiro lugar – o coração dos homens. No mesmo instante, reiniciou-se o tempo: tudo despertou e começou a se mover. Os carros iam para diante, o guarda de trânsito apitou, os pombos voaram, o cachorrinho fez uma pequena poça junto ao poste. Ninguém notou que durante a última hora o mundo tinha parado; e, de fato, entre o momento em que cessou e aquele em que recomeçou, não havia decorrido tempo algum. Tudo se passou num abrir e fechar de olhos. No entanto, algo havia mudado; a diferença é que, de repente, agora, uma a uma, as pessoas possuíam todo o tempo do mundo. Naturalmente, cada qual se sentia radiante, mas ninguém sabia que, na realidade, era o próprio tempo poupado por um e por outro que de certa forma milagrosa lhes era agora devolvido. Quando Manu retomou a consciência, viu-se novamente na grande cidade, naquela rua transversal onde encontrara o velho Beppo. Ali estava ele ainda, exatamente como o tinha deixado, encostado à vassoura, pensativo, o olhar perdido ao longe, segundo seu hábito. Sem saber por quê, Beppo subitamente não tinha mais pressa e ignorava o motivo que o fazia se sentir tão animado e alegre. “Quem sabe se já poupei as cem mil horas para resgatar Manu?”, pensou então. Nesse mesmo instante, alguém o puxou pela manga. Voltou-se e viu Manu a seu lado. Não há palavras que possam descrever a alegria desse encontro! Riam e choravam ao mesmo tempo; falavam juntos, diziam um mundo de tolices, como a gente faz quando está inebriada de júbilo. Abraçavam-se sem parar, e os transeuntes paravam para compartilhar aquela alegria, rindo e chorando com eles, pois agora todos dispunham de tempo suficiente.

196

Afinal, Beppo pôs a vassoura no ombro, encerrando o trabalho naquele dia, e saíram os dois de braço dado, passeando pela grande cidade, a caminho de casa, isto é, do velho anfiteatro. Tinham tanto que contar um ao outro! Seria uma prosa sem fim! Na grande cidade, também, reinava um aspecto que não se via há muito: crianças brincavam no meio da rua, enquanto os motoristas obrigados a esperar as observavam sorrindo ou até desciam do carro para juntar-se às brincadeiras. Em toda parte via-se gente parada, conversando amavelmente, indagando com simpatia da saúde e bemestar uns dos outros. Pessoas que se dirigiam a seu trabalho agora tinham tempo para admirar as flores nas jardineiras das janelas ou para das migalhas aos passarinhos. Médicos agora tinham tempo para se dedicar a seus doentes. Mecânicos e artesãos podiam trabalhar com convicção e orgulho do seu ofício, pois já não se tratava de produzir o máximo no mínimo de tempo possível. Muita gente, porém, nunca descobriu a quem devia agradecer aquela mudança, nem soube o que realmente sucedera durante o tempo que pareceu ter passado num abrir e fechar de olhos. E, mesmo que alguém contasse o que acontecera, a maioria não haveria de acreditar. Os únicos que sabiam e acreditavam eram os amigos de Manu; assim, quando Beppo e a menina chegaram ao anfiteatro, ali estavam todos à espera: Guido Guia, Paulo, Mássimo, Franco, Maria com sua irmãzinha, Dedé, Cláudio e as outras crianças; Nino e Liliane, os donos do bar, com seu bebê; Nicolau, o pedreiro, e as demais pessoas da vizinhança, que costumavam visitar Manu e às quais ela gostava de ouvir. Houve uma alegre festa, que durou até o

pôr-do-sol e o

aparecimento das primeiras estrelas, pois ninguém sabia festejar os acontecimentos como os amigos de Manu. Depois de muito regozijo, muitos abraços, apertos de mão, risadas, burburinho de vozes, sentaram-se todos nos degraus cobertos de capim e o silêncio se fez.

197

Manu levantou-se então e foi para o centro da grande arena. Lembrou-se da música das esferas, da maravilha da floração das horas, e com voz clara começou a cantar. Enquanto isso, na Mansão de Lugar Nenhum, o tempo recomeçado acordou Mestre Hora de seu primeiro e único sono. Sentado numa cadeira junto à mesinha, ele sorria agora ao observar Manu e seus amigos, através de seus óculos universais. Estava ainda muito pálido e parecia convalescer de uma doença grave. Mas seus olhos brilhavam. Nisso, sentiu-se alguma coisa roçando seus pés. Tirou os óculos, abaixou-se e viu a tartaruga a seu lado. __ Cassiopéia – disse carinhosamente, coçando-lhe o pescoço –, vocês duas se saíram muito bem! Vai ter de me contar tudo, pois desta vez eu não pude observá-las. “MAIS TARDE”, apareceu nas costas da tartaruga, que seu um espirro. __ Espero que você não se tenha resfriado – disse Mestre Hora, inquieto. “EXATAMENTE O QUE ACONTECEU!” __ Foi sem dúvida por causa do frio da atmosfera criada pelos homens cinzentos – concluiu Mestre Hora. __ Você deve estar exausta e penso que, antes de mais nada, gostará de um bom repouso; recolha-se pois à sua carapaça. “OBRIGADA!” Cassiopéia saiu rastejando, achou um canto escuro, sossegado, e recolheu a cabeça e os quatro membros sob a carapaça. Nas suas costas, apareceram então, aso poucos, estas letras, visíveis apenas aos que leram esta história: “FIM”

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