Desafios para a Estratégia Introdução Apresentaremos os principais obstáculos a enfrentar e os mais freqüentes desafios a vencer na implantação da gestão estratégica em uma organização. Entretanto, esses desafios não devem, de maneira nenhuma, desanimar ou assustar os nossos leitores quanto às dificuldades que poderão encontrar. Pelo contrário, pretende-se que eles sirvam apenas de alerta, para que não se desanime ao enfrentar os obstáculos que certamente se colocarão no caminho da estratégia. O primeiro obstáculo descrito constitui-se nas dificuldades de visualização do horizonte futuro para a organização, tanto em relação às oportunidades quanto às ameaças. Serão abordadas também as dificuldades de percepção das principais fontes de mudanças - tendências e descontinuidades - que poderão gerar impactos positivos ou negativos para a organização: novas tecnologias, mudanças no estilo de vida, nas leis e regulamentações, demográficas, geopolíticas, dentre outras. Finalmente, são apresentadas as três principais categorias de obstáculos à reflexão estratégica nas empresas e entidades: os obstáculos culturais - cultura centenária e de sucesso garantido no passado -, os organizacionais organizações burocráticas e em feudos - e os gerenciais - administração espasmódica e ambiente de aversão a riscos. A implantação de uma nova metodologia de trabalho numa organização vai esbarrar, quase sempre, em alguns obstáculos e dificuldades a serem vencidos com sabedoria, pertinácia e habilidade, principalmente se essas organizações se depararem com mudanças que envolvam transformações culturais, de postura, atitudes ou estrutura organizacional.
Dificuldades de Percepção Quando queremos implantar um processo de pensamento estratégico nas organizações, um dos grandes obstáculos a enfrentar é a dificuldade de percepção. Ou seja, bloqueios de toda espécie impedem a visualização de riscos, de um lado, e de oportunidades, do outro. Muitas vezes, surpreendemo-nos com situações do cotidiano. Por exemplo, quando procuramos numa prateleira de supermercado algum produto e não o encontramos, pois ele não está exatamente no lugar que esperávamos que estivesse, ou não está naquela embalagem à qual estamos acostumados. São os bloqueios da percepção que nos impedem de ver o novo, o diferente. Olhamos, mas não vemos. Alguns obstáculos, porém, vão além do olhar e não ver: estão relacionados com as dificuldades do processo de "pensar o impensável". Temos dificuldade em visualizar o que nunca foi imaginado antes. Os chamados modelos mentais são muito úteis para o aprendizado, a consolidação, a estruturação e a exposição de conceitos sobre determinado assunto, sistema ou fenômenol. Por outro lado, eles acabam se transformando em barreiras mentais para a percepção de indícios, sinais ou informações que não se enquadrem nos modelos mentais preexistentes2• Um freqüente tipo de dificuldade de percepção é a falta de visão sistêmica, mais uma idéia defendida por Senge: deixamos de perceber muita coisa por não conhecer suas inter-relações sistêmicas. Vemos algo num ponto e não notamos suas causas ou efeitos no restante da cadeia associada ao negócio ou à atividade da organização. Mas, infelizmente, o fato de termos dificuldades em pensar o que nunca foi pensado não quer dizer que aquilo que não pensamos não possa, efetivamente, acontecer.
Dificuldades de Percepção de Oportunidades Diariamente vivemos situações em que as oportunidades passam na nossa frente, mas não somos capazes de vê-las, pois não se vê aquilo que não se espera ver. Por exemplo, quantas vezes paramos numa esquina esperando por um táxi livre, mas ele não vem. Entretanto, se virássemos os olhos em outra direção, estaríamos em condições de ver que há vários táxis livres passando na rua transversal. As oportunidades não esperam pelas nossas percepções. Elas simplesmente passam como o táxi livre da rua transversal. Mas o fato de nós não as percebermos não quer dizer que nossos concorrentes, eventualmente mais atentos e perspicazes, não se aproveitem disso, em detrimento de nossa organização.
Dificuldades na Percepção de Riscos e Ameaças Outra dificuldade consiste na percepção de riscos e ameaças. Todos já nos deparamos com situações em que a maioria das pessoas à nossa volta vê um risco iminente, que para nós não existe. Por que isso ocorre? Talvez por não acreditarmos que aquilo seja realmente possível, não querermos que ocorra, porque nunca aconteceu com ninguém até hoje ou, ainda, por uma falsa sensação de segurança. Todos têm um pouco do complexo de avestruz, que enfia a cabeça na areia para não ver o perigo à sua volta. E o pior é que essa postura, se não tomarmos cuidado, acaba se reforçando com o avançar da idade. A dificuldade de perceber as coisas pode estar relacionada ao medo do desconhecido ou à forma corriqueira de raciocinar: "isso nunca vai acontecer conosco".
As Mudanças Estratégicas Segundo Hamel e Prahalad, há cinco formas de transformações. Elas devem ser continuamente monitoradas, a fim de identificar possíveis mudanças que possam impactar as organizações3• Entretanto, as verdadeiras oportunidades e ameaças tendem a ocorrer, primordialmente, nas intersecções de duas ou mais mudanças simultâneas. E aí está a dificuldade de percebê-las claramente. Por exemplo, uma mudança tecnológica, como a disseminação cada vez maior da Internet, combinada com a alteração nos hábitos e estilo de vida nas grandes cidades, como a maior preocupação com a segurança ou com a busca de facilidades, pode criar oportunidades de novos negócios na área de comércio eletrônico, educação a distância (cursos via Internet) e serviços bancários (home banking). As cinco áreas de mudanças são mudanças tecnológicas; mudanças no estilo de vida das pessoas; mudanças nas leis e regulamentações; mudanças demográficas e mudanças geopolíticas. Assim, na busca de oportunidades e ameaças para as organizações deve-se investigar primeiro os cruzamentos ou intersecções de duas ou mais mudanças simultâneas Existem outros tipos de mudanças, de natureza mais profunda, porém mais sutis, que devem também ser consideradas, como as mudanças significativas na composição da pirâmide etária; as mudanças drásticas da opinião pública; as mudanças no papel das mulheres e de minorias na sociedade; as mudanças nas atitudes e pressões em relação ao meio ambiente; e as mudanças climáticas e suas conseqüências. Assim, a simultaneidade de duas ou mais dessas formas de mudança, combinadas ainda com as cinco citadas anteriormente, pode gerar grandes oportunidades ou grandes ameaças para as organizações.
Obstáculos Culturais O que chamamos de cultura, em uma organização, pode ser representado por um conjunto de verdades perenes e práticas consagradas, que ninguém questiona. É a maneira pela qual a organização vê o mundo e a si própria. É o modo como se resolvem os problemas naquela organização. Ela tem também um conjunto de regras de sucessos: coisas que deram certo no passado e que, por isso, acredita-se que devam ser mantidas como padrão. Ou, ao contrário, que deram errado e que, por isso, devem ser proibidas ou
desincentivadas. São os tabus. Cultura, em muitas empresas, é aquilo que se chama "a nossa maneira de fazer as coisas". Alguns autores denominam essas verdades e crenças paradigmas da organização. São esses elementos que, embora muito úteis no passado, podem se tornar obstáculos para o pensamento e para a ação estratégica voltada para o futuro.
Cultura Centenária As organizações antigas, de duas a três gerações familiares ou de tradição e cultura muito fortes, tendem a estabelecer políticas, práticas, crenças, estratégias e estruturas rígidas que dificultam visão crítica e objetiva com relação ao futuro. Nelas, tudo está voltado para o passado: símbolos históricos, monumentos, biografias, medalhas, placas, comemorações, museus e relíquias, entre outros. Embora tenham o seu valor específico, muitas vezes eles bloqueiam as inovações e, conseqüentemente, a atenção, interesse e dedicação dos dirigentes da alta e média gerência, impedindo o surgimento de idéias novas. Falar em visão compartilhada do futuro nessas empresas soa como algo distante e completamente fora de foco e de propósito. Não há clima para assuntos sobre o futuro, pois todos estão com a atenção voltada para o passado.
Cultura de Sucesso Garantido no Passado Seguindo a mesma linha de pensamento, porém com muito mais profundidade, há organizações que foram, durante muito tempo - e talvez continuem sendo até os dias de hoje -, líderes incontestes do mercado e reconhecidas por todos entre as melhores do setor. Vários fatores podem ter originado tal liderança, como lançamento bem-sucedido de um produto ou de um serviço pioneiro; domínio ou monopólio de fontes de fornecimento de recursos escassos; posição geográfica privilegiada; parcerias privilegiadas especiais; aproveitamento de leis de reserva de mercado; regulamentações rígidas que impediram a entrada de novos concorrentes; domínio de tecnologia específica essencial ao sucesso do negócio; genialidade de uma pessoa ou do grupo que formou a equipe fundadora; e recursos financeiros abundantes, provindos de outros negócios do grupo controlador. Sejam quais forem os fatores de sucesso no passado, ninguém pode garantir que continuarão atuantes no futuro ou, pior, que continuarão sendo os diferenciadores que garantem a posição de pioneirismo e liderança da organização. O sucesso do passado e, talvez, o do presente podem provocar o fracasso no futuro, caso não haja mudanças na mentalidade e no comportamento dos dirigentes. Mas por que isso ocorre? As explicações óbvias para a pergunta podem ser que os fatores de sucesso do passado não são, provavelmente, os mesmos fatores de sucesso para o futuro ou, então, que o sucesso garantido no passado acaba criando uma atitude de complacência, de condescendência e de acomodação, inibindo as iniciativas para a busca de alternativas necessárias à construção de um futuro de sucesso. Ilustrativamente, a figura do dinossauro serve para alertar que muitas das conhecidas empresas e entidades de sucesso absoluto no passado já não existem mais.
Obstáculos Organizacionais Outros obstáculos à estratégia decorrem da maneira pela qual a empresa ou entidade se organizou e cristalizou ao longo do tempo. De modo geral, as organizações, quando fundadas e estruturadas, têm um propósito básico e bastante claro. Com o passar do tempo, entretanto, com as mudanças contínuas no ambiente externo ou mesmo interno, as antigas estruturas organizacionais tornam-se inadequadas ao negócio e até entraves ao desenvolvimento. A estrutura tão bem organizada, que pode ter sido o ingrediente de sucesso no passado, tende a tornar-se, ela mesma, o fator-chave do imobilismo e do fracasso futuro, conforme veremos a seguir.
Organizações Burocráticas A burocracia não é, fundamentalmente, um mal em si. Baseada na formalização, divisão do trabalho, hierarquia e impessoalidade, a teoria da burocracia transformou as organizações caóticas em estruturas estabilizadas, com
práticas, processos e políticas bem definidos e formalizados. Entretanto, quando o status que a empresa (isto é, sua forma de ser, cristalizada em políticas, procedimentos, papéis, rotinas, cópias, assinaturas, carimbos, arquivos, várias instâncias decisórias) passa a ser a preocupação dominante, cria-se a falsa impressão de conforto do caminho conhecido, em oposição à busca de novos rumos para o futuro da organização. Nas organizações burocráticas, o como fazer as coisas é mais importante do que a atividade em si, pois a burocracia coloca a forma acima do conteúdo. Nessas empresas, nada acontece nem pode acontecer, mesmo em situações de emergência, se não houver um papel impresso em várias vias, uma norma, um regulamento, um procedimento formal, um formulário com várias assinaturas e carimbos, uma reunião do Conselho ou da diretoria, o que só acontece uma vez por mês ... Nelas, ninguém tem coragem de fazer algo que não esteja estabelecido nos manuais. As organizações excessivamente burocratizadas têm grandes dificuldades de visualizar o futuro, pois isso não consta nos manuais ou procedimentos.
Organizações em Feudos Depois de muitos anos de funcionamento eficiente, algumas organizações acabaram caminhando para uma situação muito parecida com a do regime político vivenciado pela humanidade, principalmente na Europa Medieval: o feudalismo. O regime feudal resultou do progressivo enfraquecimento do grande poder central, estabelecendo-se uma nova relação entre os soberanos e os poderosos locais, ou vice-reis, e entre estes, de um lado, e o povo, os vassalos, do outro, numa complexa relação de interdependência. Esse modelo pode ser usado para representar certas empresas ou entidades familiares, por exemplo, em que pais ou fundadores foram envelhecendo, desinteressando-se e desligando-se progressivamente do negócio ou das atividades da empresa. Com isso, os poderosos locais, chefes de departamentos ou de unidades operacionais ou regionais, os gerentes de fábricas e os superintendentes de serviços centrais, entre outros, vão assumindo cada vez mais o poder, sobre pessoas, processos, equipamentos e instalações que lhes são diretamente subordinados. Nessa situação, nada se faz sem a concordância dos "vice-reis" de cada um dos feudos organizacionais. Isso também ocorre em organizações de grande porte ou muito dispersas, como as empresas multinacionais, em que o poder central, por opção ou ineficiência dos meios de controle, acaba na prática permitindo que cada responsável por divisão crie seu "pequeno império". Nas organizações do tipo feudal, ouvem-se com freqüência expressões do tipo: "aqui, neste setor, ninguém mexe" ou "neste departamento, tudo é feito do nosso jeito, diferente da matriz", ou, ainda, "esse assunto só é tratado com o chefe do chefe ... ". Organizações com esse perfil estão próximas à secessão. Muitas vezes, só não se rompem de vez, explicitamente, por tradição ou porque cada setor não tem condições reais de sobreviver de forma autônoma. Os funcionários de dois feudos vizinhos não se comunicam, pois os respectivos chefes tratam-se como concorrentes e adversários e não como se estivessem na mesma empresa. Eles permanecem numa guerra surda ou declarada para ver quem substituirá os que se aposentam ou saem da organização. Seria inútil e desgastante, nessa situação, proceder a um exercício de raciocínio estratégico na tentativa de construir uma visão compartilhada e unificada da organização. Não existe motivação nem ambiente para isso.
Obstáculos Gerenciais Outros tipos de obstáculos estão ligados mais ao estilo gerencial da empresa do que à sua cultura ou estrutura organizacional. São as formas de agir, decidir, fixar prioridades, dar ordens, acompanhar resultados, avaliar, remunerar, promover ou premiar o desempenho dos funcionários e colaboradores.
Administração Espasmódica
Com muita freqüência, deparamos com dirigentes de empresas que estão perambulando de um lado para outro, de novidade em novidade, de um modismo para outro. Cada conferência ou palestra a que assistem, cada artigo ou livro que um deles lê, gera novos programas, movimentos ou campanhas na organização. E os colaboradores têm de se adaptar a eles, correndo contra o tempo, sem saber exatamente onde concentrar suas prioridades. O nome desse estilo gerencial - administração espasmódica - foi emprestado da medicina, que define certas doenças que provocam momentos de desconforto, em espasmos, levando o paciente a se contorcer de dor durante alguns minutos. Passado o desconforto da dor aguda, o doente volta à vida normal... até o próximo espasmo. Empresas assim têm grandes dificuldades em pensar o seu futuro de forma estruturada e disciplinada, pois a mania de modismos é um obstáculo difícil de transpor para um caminhar firme, persistente e pertinaz em relação ao futuro desejado.
Ambiente de Aversão a Riscos É costume dizer que "não se pode falar de corda em casa de enforcado". E é isso que acaba acontecendo em muitas de nossas empresas: algumas experiências malsucedidas no passado, prejuízos, dores de cabeça, desencontros, experiências e inovações que não deram certo criaram os traumas organizacionais Essas experiências, que não foram devidamente digeridas pela direção da empresa, acabam criando um ambiente no qual as iniciativas criativas e inovadoras passam a ser olhadas com desdém, desconfiança ou até medo. Nessas organizações, as pessoas mais criativas, que tentam atalhos diferentes e novas formas de agir, passam a ser olhadas com desconfiança ou de modo negativo e depreciativo. Elas acabam sendo estigmatizadas e até mesmo terminam saindo da empresa. Não que se deva correr o risco somente pelo risco. Aliás, viver perigosamente não é o padrão de comportamento gerencial típico recomendado. Porém, há situações em que é preciso assumir riscos. Nesses casos, eles devem ser avaliados e comparados com os benefícios potenciais que a ação arriscada poderia gerar. Ambientes de aversão a risco, em geral, são contrários ao pensamento estratégico, pois muitas das ações estratégicas implicam situações de risco calculado. Neste capítulo, vimos que, geralmente, existem obstáculos a enfrentar e desafios a vencer na implantação da gestão estratégica em uma organização. Embora haja tropeços no caminho da estratégia, não se deve desanimar, pois o resultado final compensa em muito o esforço e a persistência despendida. Um dos grandes obstáculos para a estratégia está nas dificuldades de percepção do horizonte futuro para uma organização, tanto das oportunidades quanto das ameaças. Existem também dificuldades para perceber as principais fontes de mudanças - tendências e descontinuidades - que poderão gerar impactos tanto positivos como negativos para a organização. São as novas tecnologias, as mudanças no estilo de vida, nas leis e regulamentações, demográficas e geopolíticas, dentre outras. As três principais categorias de obstáculos à reflexão estratégica nas empresas descritas neste capítulo foram os obstáculos culturais - cultura centenária e de sucesso garantido no passado -, os organizacionais - empresas burocráticas e feudais - e os gerenciais - administração espasmódica e ambiente de aversão a riscos.
Fonte: Eliezer Arantes da Costa; Gestão Estratégica; Editora Saraiva 2005