UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
Relatório consubstanciado do período como professor adjunto Memorial, dezembro de 1997 – maio de 2008
Bruno Pinheiro Wanderley Reis FAFICH, Departamento de Ciência Política
Belo Horizonte, 2008
M
inha vida como professor adjunto da UFMG começou com uma reunião do Colegiado do que era então apenas o Curso de Mestrado em Ciência Política,
realizada em 17 de dezembro de 1997. Naquela manhã eu chegara de volta do Rio de Janeiro, onde havia, na véspera, defendido minha tese de doutorado no Iuperj, intitulada Modernização, Mercado e Democracia: política e economia em sociedades complexas. Naquela tarde, antes de completar quatro anos de docência, e menos de 24 horas depois de receber o título de doutor, eu fui eleito coordenador do mestrado por meus pares no Colegiado. Minha esposa estava no sexto mês de gravidez, e nossa primeira filha, Laura, nasceria em 2 de abril do ano seguinte. Eu não sabia antevê-lo àquela altura, mas aquela reunião e aquela eleição permaneceriam emblemáticas de minha carreira como adjunto. Pelos dez anos subseqüentes, eu me debateria insoluvelmente entre imperativos e impulsos contraditórios, dividido penosamente entre minha auto-percepção como intelectual pelo menos potencialmente produtivo, os deveres administrativos junto à instituição que – afinal – me pagava os salários, e a absorção instintiva e irresistível da paternidade. Eu, que havia sido até ali acima de tudo um estudante, precocemente admitido na carreira docente aos 28 anos enquanto finalizava os créditos de meu doutorado, chegava enfim – tardiamente – à vida adulta. A história do meu período como adjunto é, sob vários aspectos, a história do meu amadurecimento. Amadurecimento profissional, sem dúvida; mas, acima de tudo, amadurecimento pessoal. Meu querido colega Juarez Guimarães costuma dizer – meio jocosamente, meio a sério – que a idade da maturidade são os 37 anos. Tendo-me tornado adjunto aos 32, e encontrando-me agora às portas dos 43, o meu trigésimo-sétimo aniversário situa-se quase exatamente no meio desse decênio (e, veremos adiante, divide-o de fato em dois períodos bastante distintos). Durante os quase quatro anos letivos transcorridos desde a minha admissão como professor assistente, em fevereiro de 1994, eu havia acima de tudo me ocupado em terminar a tese (escrita entre janeiro de 1996 e agosto de 1997), e me absorvido em ganhar confiança na sala de aula. Hoje vejo como um luxo inimaginável deixar-me absorver quase inteiramente, como de fato o fiz em 1994 e 1995, com as aulas que dava. Mas, nesses primeiros anos, de fato não conseguia me permitir entrar em sala de aula
sem hiperprepará-la antes, detalhando por escrito o roteiro de cada exposição e mergulhando em pesquisa bibliográfica sobre o tema de cada sessão. Era de fato um prazer, e aprendi muito nesse período. Aprendi pelo investimento exploratório feito, é claro, mas também pela cristalização de idéias que o mero esforço de verbalização sistemática em sala de aula propicia ao professor. O aprendizado desse período encontra-se exposto na minha tese de doutorado: embora ela tivesse sido concebida inicialmente como um estudo empírico, transformou-se irresistivelmente num esforço de exposição sistemática de idéias por um jovem professor em busca de sua própria identidade intelectual. Mas, tese de doutorado à parte, minha produção intelectual, nessa época, conheceu o início de um longo período de paralisia. Até ser admitido na carreira docente da UFMG, na virada de 1993 para 1994, eu era um doutorando precocemente produtivo, para os padrões da época. Pelas boas graças de Luiz Werneck Vianna (cujo seminário sobre estudos marxistas contemporâneos eu passara a freqüentar em meados de meu primeiro ano no Iuperj) eu vi pela primeira vez meu nome impresso como autor de um texto acadêmico, publicado na “Série Estudos”, interna ao Instituto, no início de 1990 – apenas um ano depois de minha admissão como mestrando em ciência política. No mesmo ano, Werneck me solicitou também um comentário a ser publicado na revista Presença, que ele então editava. No ano seguinte, aos 26 anos, eu estreava na revista Dados, com um artigo sobre classes sociais e ação coletiva que foi recentemente, mais de quinze anos depois, foi (mal) traduzido para o espanhol e publicado no México. Também em 1991 publiquei uma resenha de um livro de Claus Offe na revista Pesquisa e Planejamento Econômico, do IPEA – igualmente traduzida para o espanhol e publicada, ainda em 1993, por um veículo de divulgação científica do governo alemão. Quando fui admitido no quadro docente da UFMG, já tinha submetido dois novos artigos, afinal publicados, um em 1994, pela revista Nova Economia, do Cedeplar/UFMG, e outro em 1995, novamente pela revista Dados, do Iuperj. Ainda em 1994, em meu primeiro ano como docente, tive outro trabalho aceito como capítulo de um livro que o DCP fez publicar, organizado por Antonio Mitre, em memória de nosso saudoso Carlos Eduardo Baesse. Embora eu jamais tenha me acostumado inteiramente com a idéia de textos publicados, materializados de forma vinculada a meu próprio nome (há algo de mistificador nisso...), a verdade é que a publicação rotineira começava a parecer natural. Apesar da necessidade que então se impunha de me retrair um pouco para mergulhar na tese, eu não podia imaginar que
minha admissão à Universidade inauguraria um interregno de novas publicações que duraria até 2001, e que a produção acumulada até ali constituiria, até hoje, metade de minha produção publicada. Mas foi o que se deu, de fato. Meu perfil de estudante tido por talentoso, capaz de absorver, processar e, digamos, regurgitar inteligentemente algumas considerações sobre a literatura a que eu era eventualmente exposto favoreceu, num primeiro momento, minha produtividade – mas mostrou-se pateticamente insuficiente para lidar de maneira eficiente com as exigências cotidianas das responsabilidades administrativas que a universidade pública nos impõe, particularmente quando sobrepostas às responsabilidades familiares da paternidade. Esse novo contexto exigia de mim uma condução muito mais ativa e seletiva de minha agenda e meus compromissos, e portanto uma maturidade profissional que eu simplesmente não tinha – e penosamente venho construindo nesses anos. Até o fim de 1997, quando fui eleito coordenador, eu estava lecionando apenas a terceira disciplina, todas optativas, no Mestrado, e havia me ocupado rotineiramente de uma ou duas turmas semestrais de Política I no Ciclo Básico de Ciências Humanas – além de uma turma de Introdução à Teoria Política no curso noturno de História no segundo semestre de 1996. Não havia ainda lecionado na graduação em Ciências Sociais – o que só faria, pela primeira vez, no primeiro semestre de 1998, com uma disciplina optativa baseada em minha tese. Desde março de 1995, era representante titular dos professores assistentes na Câmara Departamental do DCP, então ainda existente. De fato, membro nato, pois – se não me falha a memória – éramos apenas dois assistentes no Departamento, e a Câmara tinha duas vagas para a representação dos assistentes. Entre abril de 1995 e abril de 1997, havia exercido uma suplência também na representação dos professores assistentes junto à Congregação da Fafich, e assistido a uma ou duas reuniões, sob a direção de Magda Neves. Era também suplente, desde maio de 1995, da representação do DCP no Colegiado do Curso de Graduação em Ciências Sociais, onde permaneceria – com participação ocasional – até maio de 1999, após uma recondução, sob as coordenações sucessivas de Stael Rocha de Santana, Vera Alice Cardoso Silva e Geraldo Élvio Magalhães. Desde novembro de 1995, havia sido feito titular do Colegiado do Curso de Mestrado em Ciência Política, sob a coordenação de Leonardo Avritzer, a quem eu agora sucederia. Havia orientado duas monografias de graduação, ambas logo em 1994 (e, sugestivamente, ambas em Economia, onde eu
mesmo havia me formado apenas sete anos antes); uma bolsa de iniciação científica, que consistiu apenas num roteiro de leituras em teoria política, feito em 1995, com Geraldo Márcio Timóteo; e duas monografia PET: uma no curso de Ciências Sociais, de Maria Abadia Silva, em 1995, e a outra novamente na FACE, agora no curso de Administração, de Alexandre Mendes Cunha, que terminou, para minha alegria, premiado na Semana de Iniciação Científica em 1996. Havia participado de três bancas em defesas de tese de mestrado (a primeira delas, novamente, na Economia, em 1996, a convite de Afonso Henriques Borges Ferreira); de igualmente três bancas de monografias de graduação (quase ocioso esclarecer, a primeira delas também na Economia, em 1994, a convite de William Ricardo de Sá); de uma banca para seleção de bolsistas PET em 1994, duas bancas para professor substituto no DCP e, um mês antes de minha eleição como coordenador, da primeira de minhas muitas participações em bancas de seleção de candidatos a admissão no mestrado (em companhia de Vera Alice Cardoso e Juarez Guimarães). Houve também uma malograda candidatura a subchefe do Departamento em 1995, em chapa encabeçada por Mônica Mata Machado, derrotada por Margarida Vieira e Michel Le Ven na única disputa pela chefia do DCP que testemunhei até hoje. Ao encerrar-se o meu período como assistente, eu apenas havia falado em público fora da sala de aula uma única vez, certa noite de 1994, para um plenário quase vazio na Câmara Municipal de Caeté, a convite de Gustavo Gazzinelli, a quem conhecera no comando do DCE em meus tempos de graduação, numa mesa redonda dedicada às perspectivas políticas do Plano Real, em companhia de Hugo Cerqueira, meu contemporâneo no curso de Economia, hoje professor da FACE. Em suma, o perfil exato de um membro júnior, recém-admitido ao departamento: aulas no Básico, encargos ocasionais junto a órgãos colegiados (preferencialmente suplências),
orientações
também
bastante
circunstanciais,
e
invariavelmente
subordinadas a prioridades e agendas dos próprios orientandos. Essa paisagem mudou drasticamente quando, tendo completado e defendido minha tese de doutorado em 16 de dezembro de 1997, me vi guindado à Coordenação do Mestrado no dia seguinte. É na crônica deste processo de amadurecimento – ainda em curso, e certamente incompleto e errático – que este memorial quer constituir-se. Para tanto, procurará mesclar a exposição do percurso intelectual cumprido com a narrativa do meu engajamento institucional com o ensino, a extensão e a administração da Universidade.
Dezembro de 1997: o estado da arte, na cabeça de um recém-doutor Se houve algum tema que, sob variados enquadramentos, me acompanhou de maneira relativamente constante nesses 25 anos transcorridos desde que iniciei minha graduação em Economia, foi o problema usualmente descrito como a conexão micro-macro. O problema da identificação dos nexos entre as ações cotidianas, tantas vezes irrefletidas, das pessoas tentando viver suas vidas, e os efeitos emergentes delas decorrentes em larga escala, visíveis quando se contempla a sociedade em plano agregado. De fato, hoje penso nessa questão menos como nexos propriamente ditos, entre “planos” ontologicamente distinguíveis, e antes como níveis de análise alternativos para um mesmo objeto, enquadramentos ou recortes analíticos facultados ao analista, e que devem em princípio se completar reciprocamente. Seja como for, desde bastante cedo, quando eu apenas começava a graduação, e tratava de acompanhar o noticiário econômico (totalmente absorvido pelo problema da inflação naqueles meados dos anos 1980), espantava-me na macroeconomia a sua pretensão de não apenas compreender, mas sobretudo lidar com o universo econômico a partir de grandes números que representavam agregações em larga escala de uma infinidade de pequenas ações cotidianas cumpridas rotineiramente, muitas vezes distraidamente, por cada um de nós. Convivendo com um processo já antigo de inflação crônica que apenas começava então a se tornar agudo, eu ficava perplexo não com os sucessivos reveses da política econômica daquele tempo, como talvez se possa imaginar, mas, ao contrário, com o fato de que, bem ou mal, o governo pudesse de fato influir nos acontecimentos (e, muito particularmente, na velocidade em que subiria o índice de preços) a partir do manejo de alguns – relativamente poucos – instrumentos de política econômica: tarifas, juros, câmbio, emissão de moeda, gastos diretos, para não mencionar a pura e simples coerção estatal através da qual se impõem diversos mecanismos de controle de preços, inclusive a política salarial e os direitos sociais e trabalhistas. Particularmente o problema da inflação sempre me pareceu o mais interessante: constituído por oscilações variadas dos preços de uma infinidade de minúsculas transações cotidianas empreendidas por virtualmente todos os habitantes do país, o índice no entanto aparecia como um dado para quase todos os agentes tomados individualmente – e apenas o governo, por uma complexa pilotagem de uns poucos agregados macroeconômicos, parecia ser (embora cada vez menos) capaz de influir em seu comportamento.
Estimulado por um rápido curso de metodologia das ciências sociais, lecionado em 1986 por Renan Springer de Freitas para alunos da Graduação em Economia, obtive junto ao CNPq, ao final de minha graduação, uma bolsa de aperfeiçoamento para o desenvolvimento de um projeto pomposamente denominado “Racionalidade Individual, Contexto Institucional e Capitalismo: um plano de estudos”, em que eu pretendia justamente atacar minhas perplexidades básicas sobre essa interação micro-macro, debruçando-me sobre a apropriação feita pela ciência política e pela sociologia do arsenal metodológico típico da ciência econômica, consubstanciada na lógica da ação coletiva à Olson, no uso da teoria dos jogos – enfim, na “teoria” da escolha racional.1 Cheguei ao Iuperj em 1989, armado dos rudimentos dessa literatura, e prossegui nessa linha de estudos durante o Mestrado em Ciência Política, integrando-me ao Laboratório de Estudos Marxistas Contemporâneos (constituído sob a coordenação de Werneck Vianna a partir da leitura de Making Sense of Marx, publicado por Jon Elster em 1985) e freqüentando uma disciplina de introdução à teoria dos jogos oferecida por Maria Regina Soares de Lima no primeiro semestre de 1990. Dessas duas atividades resultou um trabalho sobre classes sociais e ação coletiva que – concluído no início de 1991 – foi publicado na Dados e teve papel importante na definição dos rumos tomados por meu doutorado.2 A aproximação com o tema das classes sociais a partir de Olson – e da caracterização das classes como “grupos latentes” típicos – propiciou-me um retorno à antiga curiosidade em relação ao fenômeno da inflação, agora associado ao tema do conflito distributivo e dos efeitos supra-intencionais (“macro”) da dinâmica da agregação de interesses individuais infinitesimais (“micro”), no enquadramento típico da rational choice. Enquadrando, numa abordagem inicial, a estrutura de preferências dos atores envolvidos no conflito distributivo sob inflação crônica como um “dilema do prisioneiro”, minha tese de doutorado nasceu da constatação da afinidade lógica existente entre o problema da estabilização e o da própria instauração de uma ordem normativa a partir do “estado de natureza” definido por Hobbes no Leviatã.3 Tomando 1
2 3
O relatório final entregue ao CNPq correspondeu grosso modo ao texto mais tarde publicado na “Série Estudos”, pelo Iuperj, graças à acolhida generosa que obteve de Werneck Vianna. Nessa ocasião ele já aparecia sob um título mais compatível com seus modestos resultados finais: “Reflexões sobre a Epistemologia de Popper e o Individualismo Metodológico”. Trata-se de B. P. W. Reis, “O Conceito de Classes Sociais e a Lógica da Ação Coletiva”. O projeto, defendido em dezembro de 1991, foi posteriormente adaptado e publicado como um artigo na revista Nova Economia, sob o título “O Conflito Distributivo em Sociedades Pretorianas” (1994).
as “sociedades pretorianas” tal como descritas por Huntington (1968) como “uma proxy moderna do estado de natureza hobbesiano”, esse projeto inicial analisava as condições da emergência de cooperação “espontânea” (isto é, endógena) num dilema do prisioneiro tal como estipuladas pela literatura relevante (Axelrod 1984; Taylor 1976, 1987), para constatar a improbabilidade da obtenção dessas condições nos contextos de fragilidade institucional que caracterizam as sociedades pretorianas.4 Genericamente, postulava-se que o baixo “grau de governo” (ou, mais de acordo com o jargão contemporâneo, a falta de “governança”) dessas sociedades tornava seus governos comparativamente menos capazes de arbitrar uma solução cooperativa para o dilema do prisioneiro que caracteriza o conflito distributivo, e que o equilíbrio subótimo dominante resultava na reafirmação continuada de pretensões de renda mutuamente incompatíveis, com resultado inflacionário. A solução teria de envolver, em alguma medida, a institucionalização estável do sistema político, de maneira a prover a necessária instância coordenadora a um encaminhamento negociado do conflito distributivo. Ainda hoje entendo que esse argumento é basicamente correto (e ele se manteve presente na tese), mas entre a defesa do projeto e a redação da tese operou-se um progressivo deslocamento de ênfase. Preliminarmente, é preciso salientar que o argumento incorpora dois níveis de análise: o primeiro – digamos, o plano “econômicoformal” da análise – reside na especificação da estrutura lógica da situação típica dos atores individuais imersos no conflito distributivo a partir da utilização de certas estruturas de interação bastante elementares da teoria dos jogos (assim, afirma-se que o conflito distributivo poderia ser genericamente descrito como um dilema do prisioneiro, uma solução cooperativa estável deveria envolver sua transformação num stag hunt etc.); o segundo plano – digamos, “socio-histórico” – está incorporado no recurso a Huntington, e todo o substrato sociológico implicitamente presente em seu argumento sobre as raízes da fragilidade institucional de países submetidos a processos acelerados de modernização. Em sua forma original, o projeto defendido ao final de 1991 conferia clara ênfase à composição do plano econômico do argumento, e o recurso a Huntington servia apenas para fornecer – um tanto impressionisticamente – certas características
4
A partir do trabalho de Robert Putnam, Making Democracy Work, de 1993, que vincula o bom desempenho institucional à existência de redes estáveis de cooperação no interior da sociedade, essa relação ganhou fundamentação empírica muito mais sólida.
básicas do contexto nacional dentro do qual a inflação havia prosperado, e que tornava sua remoção particularmente penosa. Nos anos imediatamente seguintes, todavia, foi bastante fácil perceber que vários colegas tinham tido a mesma idéia que eu, e a configuração do problema inflacionário como um dilema do prisioneiro típico, com equilíbrio subótimo, começou a se tornar um lugar comum – e, o que é “pior”, eventualmente configurado de maneira formalmente mais rigorosa ou empiricamente mais fundamentada do que eu seria capaz de fazer.5 Por outro lado, os aspectos do argumento até ali deixados em segundo plano começavam a dar sinais de que mereceriam mais atenção. Contemplando a literatura, às voltas com a redação da tese, era forte a sensação de estarmos todos basicamente perdidos, tateando no escuro diante do objeto constituído pelas relações entre o sistema político e o sistema econômico; ou entre democracia e mercados; ou, ainda, mais especificamente, entre o processo de democratização e o desafio do ajuste estrutural das economias. O “núcleo duro” dos argumentos residia quase sempre nos aspectos econômicos, apoiando-se no recurso à teoria econômica – e foi inevitável a sensação de que nossas principais lacunas estavam a demandar reflexão em teoria política. Fundamentalmente, a literatura me parecia estar às voltas com o problema huntingtoniano básico da instabilidade política crônica e – mais especificamente – do déficit de autoridade (ou, como é mais comum se referir a ele nos dias de hoje, de legitimidade) do estado em sociedades sob processo de modernização acelerada. Mas raramente isso era formulado com clareza. O mérito do trabalho de Huntington para o tema residia em tratar precisamente dos efeitos ambíguos que processos de modernização acelerada produzem nos sistemas políticos de sociedades tradicionais. Ambíguos porque ao mesmo tempo que estes processos costumam – ao diluir distinções estamentais tradicionais – engendrar algum tipo de democratização política, eles também invariavelmente produzem grave instabilidade político-institucional, ao 5
O trabalho foi levado a cabo também por economistas, mas não só. Gustavo Franco, “Inércia e Coordenação”, talvez seja até hoje o mais freqüentemente citado, mas Edward Amadeo, “O Desafio da Estabilização no Brasil”, pp. 1-2, também classificou a nossa inflação como um “problema de ação coletiva”. Para mencionar um não-economista, William Smith, “Reestruturação Neoliberal e Cenários de Consolidação Democrática na América Latina”, pp. 211-6, também incluiu o comportamento free-rider em políticas de estabilização em sua interpretação da lógica macroeconômica na América Latina. Mesmo melhorias e refinamentos não tardaram a surgir: Leslie Elliott Armijo, “Inflation and Insouciance”, contesta diretamente a caracterização de Franco da inflação como um problema de ação coletiva, e destaca as conseqüências perversas do fato de que nem todos os atores importantes desejam a estabilização; e William Ricardo de Sá, “Jogos Inflacionários e Jogos de Estabilização”, mostra que os problemas relacionados à estabilização vão muito além da presença de “caronas”.
deslocar sistemas de dominação vigentes, em alguns casos, há vários séculos. Em termos clássicos, os novos sistemas políticos, criados às vezes de maneira um tanto abrupta, se vêem em dificuldades para lograr o reconhecimento de sua autoridade por todos os cidadãos – assim, a crise política deflagrada pelo processo de modernização não encontra solução automática na mera instauração de novas regras. Pareceu-me claro que a questão decisiva era compreender as razões porque alguns estados conseguiam reunir a autoridade necessária para governar e outros não. Compreender a lógica que prendia alguns países no interior do ciclo perverso de instabilidade institucional crônica, violência cotidiana e espasmos periódicos de franco autoritarismo, sob estados que pareciam ser simultaneamente hiperdimensionados e débeis, centralizadores e ineficazes. Identificar condições favoráveis à operação eficaz de normas democráticas impessoalmente formuladas. Compreender os mecanismos pelos quais as mesmas instituições podem funcionar melhor em alguns lugares que em outros. Em suma, compreender alguns mecanismos condicionantes da carência daquilo que à época se convencionou chamar de “governança”, para em seguida identificar algumas conseqüências econômicas presumíveis dessa falta. Traduzindo para o jargão de quarenta anos atrás, perseguir as conseqüências econômicas do “pretorianismo de massas” definido por Huntington. Era impossível perseguir seriamente essas questões sem referência ao macroprocesso comum com que têm tido de lidar todas as nações do globo nos últimos séculos, e que se tornou conhecida na literatura sociológica como “modernização”. Claro, um processo dessa magnitude tem sido experimentado com características próprias em cada caso, condicionado por prioridades e ritmos variados, sem dúvida, mas obedecendo em toda parte a padrões universalmente identificáveis e produzindo problemas bastante análogos – tanto que é notório o processo de padronização e uniformização de costumes e hábitos (e problemas) por que tem passado o mundo sobretudo a partir do século XX. A modernização, na tese, foi entendida em seu sentido mais lato – de inspiração weberiana – como um processo macro-histórico de racionalização das diversas esferas da vida social, deflagrado com a dinamização da vida econômica nos aglomerados urbanos a partir da Baixa Idade Média, que teria trazido consigo simultaneamente os processos correlatos e muitas vezes contraditórios de diferenciação (e especialização) estrutural e diluição estamental, incorporação política e burocratização. Este tema havia ocupado
posição central na produção da análise política comparada nos anos 1960, mas havia curiosamente “saído de moda” nos vinte anos subseqüentes.6 Não que a abordagem feita então estivesse isenta de contaminações etnocêntricas e simplificações que às vezes – embora nem tão freqüentemente quanto lhe foi posteriormente imputado – atribuíam linearidade excessiva a certos processos bastante mais complexos e imprevisíveis; mas aquele enquadramento tinha o mérito de pelo menos propiciar ao estudioso uma visão macro-histórica que lhe permitiria analisar os problemas sob um prisma mais ambicioso do que o acompanhamento um tanto míope do noticiário. Com efeito, talvez algumas das principais limitações da ciência política recente derivem, em certa medida, da ambição um tanto exagerada de prover respostas e “soluções” imediatas à agenda dos políticos, mediante uma teorização ad hoc que acaba fazendo com que, após termos passado a década de setenta debruçados sobre o colapso das democracias e a emergência de regimes autoritários, passemos a década seguinte escrevendo livros e mais livros sobre a transição para a democracia – em ambos os casos deixando de situar na devida perspectiva o fenômeno geral da instabilidade política de determinadas sociedades (tão claramente relacionado a nossas preocupações dos anos 1990 com a “capacidade de governo”), que faz com que pareçam se alternar indefinidamente regimes autoritários com interregnos democráticos.7 Ainda que talvez perseguindo ênfases próprias, o ânimo da tese compartilhava integralmente a rejeição da “idiofrenia” etnocêntrica manifestada por Wanderley Guilherme dos Santos alguns anos antes. Também ali se partiu da presunção de que “todas as sociedades modernas enfrentam ciclicamente vários problemas comuns: o do alargamento da participação e o da institucionalização da competição política, o da formação de identidades sociais [...], o da superação dos obstáculos à ação coletiva, o da integração institucional e o do planejamento autônomo em um mundo cada vez mais interdependente.”8 Se é verdade que “todas as sociedades modernas enfrentam ciclicamente vários problemas comuns”, então é em princípio admissível a pretensão de se caracterizar uma específica coleção de problemas que se manifeste de modos 6
Hoje fala-se muito menos em “modernização” que em “modernidade”, menos num processo do que num projeto, e o deslocamento da ênfase não deixou de se refletir no tipo de literatura que se ocupa do tema: trabalhos de orientação mais empírica passaram a se referir muito menos ao tema, que tendeu a ficar confinado à discussão de natureza mais filosófica em que, por exemplo, Jürgen Habermas tem se batido com os arautos de uma suposta “pós-modernidade” precipitadamente anunciada. Ver, a respeito, Habermas, “La Modernidad: Un Proyecto Inacabado”.
7
Para a formulação original dessa observação, ver Fábio W. Reis, “Para Pensar Transições”, pp. 76-7.
8
W. G. dos Santos, Razões da Desordem, pp. 9-10.
semelhantes em todas elas mediante um único conceito “guarda-chuva” – como terá sido o caso com o processo de transformação social em larguíssima escala que a ciência social habituou-se a chamar de “modernização” (o que, de fato, é apenas um truísmo: se todas aquelas sociedades podem ser chamadas “sociedades modernas”, é porque elas compartilham características comuns expressas pelo adjetivo comum – “modernas”). O relevante aqui é constatar que este processo básico comum, ao compartilhar características semelhantes, razoavelmente generalizáveis, em toda parte (ainda que revestido de formatos os mais variados, e caminhos próprios a cada coletividade que o tenha enfrentado), produziu universalmente algumas implicações específicas sobre a operação da política e da economia em todas as sociedades a ele submetidas. As implicações do macroprocesso observado no plano material (ou econômico) sobre a política acabaram por tornar-se, em grandes linhas, o tema central da primeira parte da tese. Procedimento “invertido” na segunda parte, em que se exploram – de maneira um pouco mais contextualizada – as implicações do sistema político (condicionado pela modernização) sobre a operação do sistema econômico. Assim, para alcançar o tema das relações entre a política e a inflação no Brasil, minha tese buscou explorar como problema teórico-analítico central os desafios que a modernização impõe sobre as condições de exercício do poder político e, reciprocamente, os efeitos que os sistemas políticos tipicamente engendrados ao longo do processo produzem sobre a operação da economia. De objeto específico do estudo empírico prometido no projeto de 1991, o Brasil apareceu, na tese afinal escrita, em 1997, caracterizado como um caso que ilustrava algumas vicissitudes a que estariam sujeitos países precariamente institucionalizados, em processo de modernização acelerada. A tese ficou afinal dividida em quatro capítulos, acrescidos de uma breve conclusão. O primeiro realizava o esforço de caracterizar de maneira tão clara e simples quanto me foi possível o processo de modernização, evitando os equívocos mais comumente apontados em seu uso, de modo a me propiciar uma “entrada” segura para o desenvolvimento posterior do argumento. O segundo capítulo prosseguiu averiguando as implicações da simples existência da modernização para as condições de exercício do poder político. Fundamentalmente, sua tendência à centralização burocrática em estados nacionais (e posterior internacionalização), bem como a paralela e paradoxal tendência à democratização do exercício desse mesmo poder, que teve sua capacidade de coagir
enormemente ampliada ao longo do processo. Esses dois primeiros capítulos compuseram a primeira parte do trabalho, que tomava a dimensão econômica – ou, mais propriamente, material – do processo como variável independente e se perguntava sobre seus impactos na organização institucional da sociedade, principalmente no que toca às instituições políticas. Na segunda parte, invertia-se o sentido da causalidade, e eram analisados os impactos que a ordem política engendrada pela modernização, discutida no capítulo 2, tendia a produzir sobre a economia – ou seja, os efeitos das instituições políticas sobre o “substrato” material e social. O terceiro capítulo debruçou-se sobre o momentoso problema das relações entre o estado e o mercado, entre a democracia e o desenvolvimento, procurando destacar como a plena operação de uma economia de mercado requer a existência de um estado fortemente institucionalizado para assegurar a operação impessoal das normas vigentes, e também atuar distributivamente de maneira a minimizar as inevitáveis externalidades provocadas pela intensificação dos laços de interdependência humana que a própria expansão do mercado favorece.9 O último capítulo voltava-se sobre o caso brasileiro, buscando detectar a maneira como os temas discutidos no restante do trabalho se manifestavam em nosso contexto, certas vicissitudes características do nosso próprio processo de modernização, e os principais desafios que se podiam previsivelmente divisar para os desdobramentos desse processo num futuro próximo. Em linhas gerais, parecia-me que as restrições à operação de critérios mercantis de alocação de recursos, em nosso caso, prendiam-se menos a cuidados igualitários ou redistributivos, e mais a uma organização ainda um tanto aristocrática, semi-estamental da sociedade brasileira – o que tornava o estado antes veículo de perpetuação de desigualdades e privilégios que promotor de mecanismos compensatórios às falhas de mercado. Eu me esforçava por evitar os termos ideologicamente correntes dessa matéria, que presume um trade-off entre estado e mercado, e tratava de postular que – ao contrário – a dependência recíproca entre ambos no longo prazo tornava a expansão da competição no mercado e a impessoalização institucional da operação do estado mutuamente dependentes, ao fim e ao cabo.10 9
Acrescido de uma valiosa (pelo menos para mim...) nota preliminar sobre o tratamento dado por Weber ao conceito de “mercado”, esse capítulo foi depois publicado em artigo de certa repercussão na Revista Brasileira de Ciências Sociais (anexo 1.3).
10
Com algumas pequenas reformulações, o capítulo dedicado ao Brasil foi mais tarde (em 2001) encaminhado para publicação em nossa revista Teoria & Sociedade (anexo 1.1).
Acredito que este diagnóstico se mantém, e que mesmo a ascensão e sucesso de Lula o corroboram, proselitismos ideológicos à parte. Uma política como o Bolsa-Família, por exemplo, é perfeitamente consistente com uma concepção mercantilizadora das relações sociais (o chamado “imposto de renda negativo” costuma ser endossado pelos economistas mais liberais), menos tutelar, aristocrática, caritativa que a idéia de dar comida aos pobres. Mais do que qualquer transformação da organização “estrutural” da economia, Lula é um presidente empenhado em aumentar o padrão de consumo dos mais pobres.11 De todo modo, embora tivesse me ocupado apenas marginalmente de questões metodológicas, o plano da confluência entre teoria e método sempre ocupou o centro de minhas preocupações, e eu certamente desejava que a tese pudesse ser vista como uma ilustração da possibilidade de se utilizarem paralelamente recursos tanto “macro” quanto “micro”; tanto “sociológicos” como “econômicos”. Houve sim, de minha parte, uma tentativa deliberada de mostrar como categorias próprias à sociologia política e aos recursos metodológicos da “escolha racional” podiam ser perfeitamente utilizadas em conjunto em benefício da análise efetuada. Retrospectivamente eu podia constatar já naquela época que havia sido permanentemente compelido por esta ambição, e o próprio objeto geral da tese situava-se precisamente na confluência entre o plano das interações pessoais observadas entre agentes privados “infinitesimais”, de um lado, e o plano da busca de uma ordenação normativa dessa interação no contexto da modernização, do outro. Mais do que olhar para objetos temáticos distintos, hoje me parece que essa última problemática envolve um enquadramento distinto, com nível de análise mais abrangente e escala temporal mais ampla que aquela adotada pela literatura então ocupada em estudar os processos de transição política e econômica observados na época – mais próximo à abordagem dada pelos clássicos fundadores de nossa tradição sociológica. A mim, contudo, interessa menos deslocar o exame, simplesmente, rumo a esse outro plano mais largo, do que perguntar sobre os nexos entre fenômenos observáveis em um e outro plano. A própria tese deixou entrever isso, ao dedicar diferentes capítulos a diferentes enquadramentos da análise. Mas, em que pese o fato de o primeiro capítulo da tese ter sido parcialmente dedicado a discussões de natureza teórico-metodológica (em busca de uma caracterização defensável do conceito de 11
Minha apreensão geral do governo Lula ainda encontra sua melhor exposição em texto que escrevi em junho de 2004, a pedido de Juarez Guimarães, e que infelizmente permaneceu inédito (anexo 8.1). Muita água passou debaixo daquela ponte desde então, mas minha percepção não foi fundamentalmente alterada.
modernização), muitas ramificações metodológicas dessa questão, que hoje me ocupam, só viriam a se cristalizar depois: primeiro num artigo sobre história e ciências sociais escrito em 2000 (anexo 1.2), e depois no meu envolvimento com técnicas de simulação computacional de sistemas adaptativos complexos (a partir de 2002) e algumas ramificações conceituais da análise de redes (a partir de 2005).
1998-1999: desventuras de um coordenador neófito Após um primeiro semestre isento de encargos didáticos que o DCP me concedera para que concluísse a tese de doutorado, minha indicação para a coordenação do mestrado em dezembro, em sucessão a Leo Avritzer, já estava acertada desde a metade de 1997. Com menos de quatro anos de casa, esse era um cenário que me atemorizava um pouco, mas entendi o chamado como uma compensação justa pela dispensa de encargos que o DCP me havia proporcionado. E decidi encarar o desafio com a lealdade que eu entendo dever à instituição em que trabalho. De fato, já em novembro eu aceitei convites para me vincular a duas iniciativas de natureza distinta das que me haviam ocupado até ali. Primeiro, Solange Simões me convidou para, em nome do DCP, juntar-me a ela e a Leonardo Fígoli para, sob a coordenação deste último, integrar a coordenação do Laboratório de Metodologia de Ciências Sociais, criado poucos anos antes. Interessado em metodologia, aceitei alegremente, vendo abrir-se uma porta para intensificar meu contato com o Departamento de Sociologia e Antropologia (SOA), com que compartilhamos a responsabilidade pelo Curso de Graduação em Ciências Sociais. Com o tempo, a rotina do LMCS foi assumida basicamente por Leo Fígoli, mas a convivência e o trabalho durante os primeiros tempos foi intensa, e propiciou-me com Solange um contato que me tem rendido até hoje colaboração intermitente e distante, porém estimulante e promissora. Poucos dias depois, recebi em casa um telefonema de Leo Avritzer, convidando-me gentilmente a colaborar numa pesquisa sobre associativismo empresarial que ele estava acertando com a FIEMG, sob a égide de um convênio a ser firmado entre o DCP e a Federação. Leo me explicou que a pesquisa se dividiria em dois módulos, um coordenado por ele mesmo, e outro por Renato Boschi (então no DCP), ao qual nos juntaríamos Fátima Anastasia e eu. Como eu tinha acabado de concluir minha tese, e estava naquele limbo profissional do imediato “pós-parto”, aceitei sem titubear. Estava, afinal, disponível, e achei que seria adequado colaborar com o Departamento nessa
empreitada. Foi de fato o primeiro precedente de uma postura colaborativa, porém passiva, que tem pautado em larga medida minha atuação em pesquisa até hoje. Hoje estou propenso a reexaminar meus critérios de engajamento, e avalio que talvez não tenha feito a melhor escolha naquela ocasião. Provavelmente eu teria feito melhor em manter-me concentrado em explorar na forma de publicações os resultados da tese – que tem trechos e teses que permanecem ainda inéditos, a despeito das enfáticas recomendações de amigos (lembro-me especialmente de Antonio Mitre) para que a publicasse. A pesquisa da FIEMG durou apenas até agosto de 1998, e obviamente não pode ser responsabilizada por esse efeito. Mas acredito que naquele momento estabeleci um critério para meu engajamento em pesquisa que me deixou à deriva por muitos anos, e que apenas recentemente tenho começado a superar. De fato, porém, é claro que o exercício do mandato de Coordenador do Mestrado foi, de longe, o principal fator a definir a minha vida profissional nos primeiros anos como adjunto. Foi um desastre. Meses antes de eu assumir a coordenação, Silvana Dornas de Azevedo, que exercia eficientemente a função de secretária do Mestrado já havia alguns anos, aderiu a um programa de demissão voluntária e deixou a Universidade. Meu antecessor deixou o país para um pós-doutorado no MIT, nos Estados Unidos. A Secretaria do Mestrado, que eu saiba, nunca teve mais de um funcionário, e – na falta de substituto disponível para a Silvana dentro dos quadros administrativos da Fafich – exerceu a função, durante quase todo o meu mandato, Gisele Alves de Oliveira, estagiária do Curso de Secretariado Executivo da Newton Paiva (e ainda houve interregnos em que problemas eventuais com seu contrato nos deixavam simplesmente sem secretária alguma, como em novembro e dezembro de 1998). É preciso que se diga: Gisele conduziu-se exemplarmente durante todo o período, e não tenho queixa alguma sobre ela. Muito pelo contrário: tenho certeza de que o zelo dela minorou o desastre, e, tivesse ela tido a sorte de ser chefiada por um coordenador experimentado, estou certo de que teria sido uma excelente secretária. Assim como mesmo eu talvez tivesse até tido alguma chance de ser um bom coordenador, se tivesse contado com uma secretária que conhecesse o serviço. Nas circunstâncias em que tudo se deu, porém, éramos duas crianças administrando o Curso de Mestrado. Para se ter uma idéia do quadro, durante o
mandato, como é natural, fiz aprovar junto ao Colegiado uma série de modificações no Regulamento do Curso. Mas nem eu nem Gisele sabíamos – óbvio ululante! – que essas modificações deveriam passar pela sanção da Câmara de Pós-Graduação, e portanto nenhuma delas foi jamais encaminhada à PRPG. Somente depois do fim de meu mandato tomei conhecimento disso. E, pior ainda: foi somente depois do fim do meu mandato que soube também que, desde o início, eu havia trabalhado a partir de uma versão do Regimento que – simplesmente – não estava em vigor! Quando tomei posse, havia um documento chamado “regulamento.doc”, ou coisa parecida, no computador da Secretaria. De maneira imperdoavelmente ingênua, tomei-o pelo Regulamento do Curso, e usei-o como referência durante todo o meu mandato. Dois anos depois, meu sucessor (novamente Leonardo Avritzer) descobriu, para meu imenso espanto, que ele não guardava correspondência com o Regulamento registrado na PRPG... E, no entanto, por incrível que pareça, a verdade é que o exercício da Coordenação absorveu uma parcela imensa de minha energia profissional, me exauriu física e mentalmente, muito mais do que o exercício bem posterior, muito mais bem-sucedido, da Coordenação da Graduação em Ciências Sociais (de março de 2004 a fevereiro de 2006). Para além da rotina do Curso, coordenações de pós-graduação comandam despesas, tanto de bolsas quanto de custeio, e eram, àquela época, uma fonte indispensável para despesas operacionais rotineiras da Faculdade. Os coordenadores constituíam um colégio informal que ajudava a Diretoria da Fafich a custear várias atividades, que incluíam, por exemplo, equipamento de segurança da Biblioteca. Nesses esforços, sobressai em minha memória a seriedade e empenho de Maria Efigênia Lage de Resende, que à época coordenava o Programa de História. Só que esse “colégio” era estritamente informal, voluntário, e a coordenação mútua entre seus membros virtualmente impraticável. Acabávamos (pelo menos, eu acabava) objeto de pressões com as quais eu não sabia lidar, deixando-me ir à deriva conforme a disponibilidade de recursos e as rubricas existentes, que limitavam e disciplinavam as possibilidades de colaboração. Não houve problemas de fato quanto a prestações de conta, que sempre se deram tranqüilamente. Mas a gestão me exasperava – tanto mais quanto mais eu me sentia inepto para a tarefa. E via meus interesses intelectuais cada vez mais distantes. Na defesa de minha tese de doutorado, naquela tarde de 16 de dezembro de 1997 no Rio de Janeiro, minha banca me recomendara empenho na validação empírica das
conjecturas de natureza teórica ali presentes. Hoje não acredito que fosse esse o melhor desdobramento a ser dado às inquietações que me orientaram na tese. Mais amadurecido, percebo que há exploração a ser feita mesmo no plano teórico – ainda que talvez por outros procedimentos metodológicos. A condução autônoma de um projeto de pesquisa empírica é algo de que ainda hoje duvido ser capaz – prefiro inserir minhas preocupações em projetos institucionais coletivamente perseguidos. Mas eu esperava dar seqüência à publicação de subprodutos da tese, a começar pela transformação da própria tese em livro. Contudo, minha rotina mudaria drasticamente a partir dali, e o fato é que – com boas ou más razões – eu não fui capaz, naquele momento, de manter o comando sobre minha vida profissional. Para além das agruras da coordenação, e do sentimento de vazio intelectual experimentado após o intenso esforço de conclusão da tese, somados à expectativa da inédita paternidade após oito anos de casamento, afinal consumada em abril com a chegada da Laurinha, na mesma semana em que a deflagração de uma longa greve me propiciou uma pouco usual (mas intensamente aproveitada) licençapaternidade – tudo isso conduziu-me para longe das atividades intelectuais que haviam ocupado quase exclusivamente a minha vida até os 32 anos de idade. Se nos primeiros meses essa mesma inédita responsabilidade institucional, paralela à paternidade, me propiciava certa euforia – ainda que desajeitada – com a chegada da “vida adulta”, mais tarde, à medida que o tempo avançava, eu me sentia apenas oprimido, frustrado, e crescentemente melancólico – e o segundo semestre de 1999 foi certamente, e até hoje, o período mais penoso de minha vida profissional. Contribuiu muito fortemente para isso meu fracasso em completar uma proposta de paper que submeti à ABCP em meados de 1998, com vistas a apresentação em seu primeiro encontro, que se realizaria no Rio de Janeiro, entre 17 e 20 de dezembro daquele ano. Ambiciosamente intitulado (pra variar) “Interdependência, expectativas, mercado: anotações para uma teoria do desempenho institucional em sociedades complexas”, o paper pretendia retomar, agora num enquadramento mais sintético e abstrato, o argumento geral da tese (que ali restara ocasionalmente implícito, ou então enunciado de modo disperso ao longo de duzentas páginas) num enunciado direto e parcimonioso, estritamente teórico. Desnecessário dizer, o paper nunca foi escrito. Lembro-me com nitidez do sentimento de frustração, de fracasso e derrota pessoal que eu sentia enquanto
escrevia ao Renato Lessa, do Iuperj, à época Secretário-Executivo da ABCP, um e-mail anunciando minha desistência. Foi uma frustração pessoal bastante forte, que me fez sentir esmagado, e um desânimo profundo se abateu sobre mim. Cheguei a decidir pela renúncia à Coordenação, e comuniquei a alguns colegas que apenas aguardaria a virada do semestre letivo (que, por causa da greve daquele ano, apenas se daria por volta de fevereiro). Sentia-me simplesmente inepto para a tarefa, incapaz a um ponto que começava a comprometer minha própria autoconfiança profissional. Compeliam-me nessa direção também as dificuldades para se encontrar uma solução permanente para a Secretaria do Curso (que passou o mês de novembro sem secretária alguma), e chegamos a cogitar brevemente a unificação administrativa com o Doutorado – na época
coordenado
por
Fátima
Anastasia,
que
eventualmente
acumularia
temporariamente as duas funções. Por uma série de dificuldades, porém, essa alternativa nunca se materializou, e terminei por concluir o meu mandato, para o bem ou para o mal. De fato, é preciso admitir que, mais do que a uma efetiva sobrecarga de trabalho, meus males se deviam antes à minha habitual dispersão, com a qual eu apenas começava a aprender a conviver sob uma rotina mais exigente. Aprendizado que segue, penosamente, até os dias de hoje – mas, que tem sido sim, não obstante, um aprendizado. Desapontado com a Coordenação, naquela época terminei por achar uma válvula de escape temporária no lançamento, em novembro de 1998, de nosso Boletim de Análise de Conjuntura Política, idealizado por José Eisenberg. Claro, nem tudo foram problemas. Os anos de minha coordenação coincidiram com a chegada de José Eisenberg ao DCP. Polêmico, irreverente, arrogante às vezes, autoconfiante – e imaturo também, à sua maneira –, José Eisenberg agitou o Departamento enquanto esteve por aqui. Foi meu subcoordenador durante a maior parte do mandato, e hoje não estou bem certo se ele me ajudava ou se criava ainda mais problemas. Mas era onipresente, e, empreendedor, assumiu rapidamente liderança institucional que foi positiva enquanto durou, embora tendesse com demasiada freqüência a incompatibilizar-se com colegas – e já estava em rota de colisão com vários deles quando deixou o DCP, pouco depois da virada da década. Concebeu e geriu o CEVEP (Centro Virtual de Estudos Políticos), que rapidamente disponibilizou no site do DCP uma série bastante impressionante de produtos – particularmente se
considerarmos que àquela época a internet apenas engatinhava. O CEVEP morreu assim que Eisenberg deixou o Departamento, mas o Conjuntura Política teve ainda uma sobrevida sob o comando de Carlos Ranulfo Melo, e – mais do que qualquer outra atividade do Centro – foi bem-sucedido em ampliar expressivamente a exposição nacional do DCP. Contrariando meu cacoete abstrato, engajei-me no Conjuntura – até porque meus amigos na época mais próximos estavam todos lá, principalmente Eisenberg e Marco Cepik. Tenho dúvidas sobre o saldo pessoal em termos de crescimento acadêmico, mas foi uma experiência estimulante, enquanto durou. Uma reunião mensal de pauta, onde se discutiam temas a serem abordados e nomes dos possíveis colaboradores. Seguiam-se telefonemas e/ou e-mails para todo o país, e batia-se o martelo sobre a edição seguinte. Recebidos os artigos, uma equipe de três estagiários se encarregava de publicar o novo número no site do boletim. Eu costumava ser o advogado do diabo, a defender o ponto de vista do governo, cético perante o ânimo exaltado com que tão freqüentemente os intelectuais gostam de vergastar o poder constituído. Divertia-me, embora nunca tivesse me abandonado a impressão – talvez até equivocada – de que, intelectualmente, aquilo não me levava a lugar algum. Escrevi para o Conjuntura um total de cinco artigos, entre novembro de 1998 (o primeiro número do BACP) e setembro de 2001 (o número 30, edição especial sobre os atentados de 11 de setembro daquele ano). Fui certamente o editor que menos escreveu – mas por isso não me penitencio. Nunca pensei no Conjuntura como veículo para meu estilo intelectual, e resistia mesmo a escrever – embora, quando era o caso, o artigo costumasse sair rapidamente, em uma ou duas horas. Gosto pessoalmente de dois deles: o segundo, escrito durante nossa crise cambial em janeiro de 1999 (“O Círculo Vicioso da Crise Fiscal, e alguns de nossos dilemas”, BACP n. 3, anexo 6.2), e o último, que me consumiu vários dias, sob o choque do 11 de Setembro (“A Velha Democracia e o Novo Terrorismo: notas em torno de uma tese e de alguns cenários”, BACP n. 30, anexo 6.5). Acredito ter conseguido fazer uma apreensão lucidamente sombria dos desdobramentos esperáveis dos ataques – e lamento constatar que talvez o cenário afinal materializado tenha ficado próximo demais do quadro mais pessimista que esbocei ali. Não obstante as alegrias propiciadas por meu envolvimento com o Conjuntura, o principal aspecto positivo desses anos foi a intensificação da minha vinculação à Fafich
– para além do DCP – e mesmo o início de meu envolvimento formal com a gestão da UFMG. Com a presença de minha colega Vera Alice na diretoria da Fafich, e a condição de membro nato da Congregação que a Coordenação do Mestrado me impunha, eu saí – pela primeira vez – da redoma de meu Departamento para começar a contemplar a vida universitária sob uma perspectiva um pouco mais abrangente. A Congregação sob Vera Alice era, para o bem ou para o mal, uma experiência envolvente. Cada liderança tem um estilo, que se manifesta de várias formas – mas em poucas arenas esse estilo é tão visível quanto na forma como essa liderança conduz um órgão colegiado. Sob a direção de Vera Alice, as reuniões da Congregação da Fafich eram longas – e, em certas épocas do ano, chegavam a ter periodicidade semanal. Embora isto certamente ajudasse a agravar minhas agruras daquela época, por outro lado aumentava a exposição mútua dos membros da Congregação, e intensificou de maneira positiva meus laços com a comunidade da Fafich. Como um docente outsider, oriundo da FACE, até ali eu me identificava estritamente como professor do DCP, e a Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas era pouco mais que o lugar onde por acaso ficava o meu Departamento. Isso começou a mudar naqueles anos, na Congregação e – em escala menor – no colegiado informal de coordenadores de pós-graduação que vez por outra tentava atuar concertadamente em prol da Faculdade, a que me referi antes. Em contraste com meu próprio juízo sobre meu desempenho no exercício da Coordenação do Mestrado, eu avaliava positivamente minha atuação na Congregação. Assíduo, pontual, atento e mentalmente disponível para a pauta que se apresentasse, eu atuava de maneira que me parecia construtiva – e percebia nos colegas certo reconhecimento quanto a isso. Curiosamente, talvez os mesmos traços que me fazem um mau “executivo” me tornem um bom “conselheiro”. Como dirigente, minha dispersão intelectual e disponibilidade afetiva me fazem perder o foco continuamente, e tornam tremendamente penosas as tarefas de follow up a respeito de providências diversas, cobrança de resultados, perseguição sistemática de metas a serem atingidas por intermédio de uma série de pequenas providências tempestivamente concatenadas dia após dia. Já como membro de um órgão colegiado, essas mesmíssimas características me fazem esquecer imediatamente quaisquer tarefas profissionais pendentes a partir do instante em que a reunião começa. Salvo ocasionais necessidades de buscar crianças na escola, esqueço o relógio, e me entrego compenetradamente à pauta do dia. Talvez seja
mesmo uma espécie de refúgio, uma desculpa prêt-à-porter para minhas dificuldades em administrar minha agenda. Não me dilacero em cogitações sobre se deveria ou não comparecer a essa ou aquela reunião. Se aceitei um encargo, e ele me torna membro nato de um órgão colegiado, então o comparecimento assíduo é uma obrigação comezinha de lealdade com a instituição que me paga os salários – mais ainda, se me paga gratificação pelo exercício da função. Essas características, somadas à curiosidade a partir dali despertada por contemplar a vida universitária a partir de variados locais, me fizeram aceitar três indicações que Vera Alice achou por bem fazer de meu nome para o exercício de funções de representação da Fafich junto a outros órgãos da Universidade. Pela ordem cronológica, aceitei, em setembro de 1998, ser titular do comitê assessor da Pró-Reitoria de Pesquisa para a área de Ciências Humanas; a suplência, em outubro de 2000, no Conselho Diretor da Biblioteca Universitária (que ironicamente se tornou – com a renúncia do titular – o mais longo mandato de titular que já cheguei a exercer, com seis anos de duração); por fim, em dezembro de 2001, no finzinho do mandato da Vera Alice, hesitante como sempre, não aceitei mais que uma suplência também no CEPE, com vaga alocada na Câmara de Graduação. É quase desnecessário dizer que, como de fato costuma acontecer com todo mundo, eu mal sabia o que eram essas coisas. A função no comitê assessor da PRPq, que exerci de setembro de 1998 a setembro de 2000, foi uma decepção. Talvez o único mérito da experiência tenha sido a ocasião de travar contato com Paulo Sérgio Lacerda Beirão, na época Pró-Reitor de Pesquisa. Estive com ele poucas vezes durante aquele período, mas desde então guardo por ele uma simpatia gratuita, que seria inexplicável não fosse o Beirão, até onde percebo, de fato querido por todos. Hoje é um colega no Conselho Universitário, a quem sempre escuto com atenção, e cuja fala aguardo com expectativa. Quanto ao trabalho no comitê assessor, consistia apenas em ir semestralmente à Reitoria, apanhar uma pilha de projetos de bolsas de iniciação científica (PIBIC e PROBIC), verificar – no mérito – a admissibilidade de cada um, e depois pontuar, segundo uma tabela de pontuação pronta, os currículos dos orientadores proponentes. Com base na pontuação de cada um, os projetos eram ranqueados – e ponto final. Desconheço se o procedimento continua o mesmo (acredito que não), mas de fato sentia-me um robô, pontuando currículos de colegas, e ficava imaginando se não
haveria um jeito de um programa de computador fazer aquilo sozinho. Ainda mais que a pontuação de quase todos aqueles colegas era bem superior à minha... Isso ficou demonstrado de maneira prática quando resolvi eu mesmo, em março de 2000, submeter um projeto. Recém-saído da Coordenação do Mestrado, relativamente desconectado da agenda de pesquisa de minha tese de doutorado e portanto sem pauta própria, eu estava interessado em fazer alguma coisa “útil” e – estimulado pelo “sucesso editorial” do Conjuntura – bolei em colaboração com Marco Cepik o “Projeto Civitas” (anexo 9.1). Tratava-se, no fim das contas, de um projeto editorial, com o propósito de disponibilizar, em português, traduções de textos relevantes recentes em diversas áreas da ciência política. Cada volume cobriria uma área disciplinar específica (como por exemplo teoria política, política comparada, movimentos sociais, políticas públicas, relações internacionais, sistemas eleitorais e partidários, sociologia política etc.), e os livros consistiriam de coletâneas de textos comumente adotados na pós-graduação e ainda não traduzidos, com vistas à intensificação de seu uso na graduação. Paralelamente à coleção (que, naturalmente, ainda teria de ser viabilizada junto a alguma editora, possivelmente a da própria UFMG – e contávamos com o Eisenberg para eventualmente ajudar nessa parte), seria disponibilizado na internet, na página do CEVEP/DCP, um extenso banco de dados bibliográfico, contendo não apenas os textos eventualmente incluídos nos volumes, mas também informação detalhada sobre um amplo espectro da produção recente em cada uma das áreas cobertas pelos volumes da coleção. Era para a viabilização dessa pesquisa que solicitávamos uma bolsa de iniciação científica – atípica que fosse. Cheguei a temer que o projeto fosse desqualificado no mérito, como inadequado para a iniciação científica, mas não foi o caso. Meu currículo é que não alcançou pontuação suficiente para ser contemplado com uma bolsa. Como eu era do comitê e conhecia os critérios, isso não chegou a ser uma surpresa – mas foi a ducha de água fria que bastou para desmobilizar o time. Quase um ano depois, recebi um telefonema da PRPq me informando que alguém havia desistido da bolsa, e que meu projeto era o primeiro excedente. Porém, naquela época os projetos seguiam com o nome do bolsista já designado – e, àquela altura, minha querida Valéria Paiva, a quem a bolsa se destinava, já havia sido contemplada com alguma outra bolsa na Universidade. Como Cepik e eu
estávamos ambos no início de 2001 já com as cabeças em outros assuntos, agradeci a atenção da PRPq e passei a bolsa adiante. Provavelmente terá sido melhor assim. Valéria havia entrado na Graduação em Ciências Sociais no início de 1999, e pertencia à primeira turma para quem lecionei uma disciplina obrigatória no curso. Eu os encontrei na Política II, no segundo semestre letivo de 1999, que coincidiu com meu último semestre como Coordenador do Mestrado. Com o perdão pela imagem batidérrima, eles foram, literalmente, a luz no fim do túnel. É provável, dado o meu estado de espírito na época, que eu estivesse particularmente receptivo ao calor e à agitação próprios de uma turma de graduandos ao final de seu primeiro ano na Universidade. Mas acredito que os méritos deles foram inegáveis: irrequietos, heterogêneos, alguns deles brilhantes, constituíam uma turma em permanente ebulição e constante estado de tensão interna – e acredito que isso os impulsionava academicamente, pelo menos naqueles primeiros anos do curso. Lembro-me de que, designado para lecionar pela primeira vez uma obrigatória na Graduação, numa época em que a Política I ainda era parte do Ciclo Básico, resisti em seguir a rotina da época e começar por Maquiavel. Até por causa de uma disciplina sobre a República de Platão que eu freqüentara com César Guimarães no Iuperj em 1990, eu me sentia incapaz de enquadrar devidamente a disciplina sem recuar até Platão e Aristóteles – mesmo ao preço de efetuar depois um salto de quase dois mil anos diretamente até Maquiavel. Não faltou quem me advertisse que os meninos não iam entender nada, não iam gostar, que não ia dar tempo etc. Mas sempre achei, e continuo achando, que o tempo, numa disciplina, é moldado pelo professor, e que um mesmo conteúdo pode, em princípio, tanto ser exposto em duas horas quanto ocupar um semestre inteiro. Não está escrito em pedra que você tem que levar x aulas para ensinar sobre determinado autor. É sempre uma questão de se fazerem as inevitáveis escolhas entre cobertura e profundidade, escolher seu enquadramento, a narrativa que irá constituir a sua disciplina, e viver com as conseqüências, assumindo responsabilidade pelas opções feitas. O resto é o costume, e nossas inércias. (Essa a grande importância de professores jovens – e já percebo que estou deixando de sê-lo.) Pois bem. Comecei a disciplina com duas semanas de Platão, recomendei que lessem alguns livros selecionados da República, e o resultado, para minha surpresa, foi espetacular. Muitos liam bem mais do que eu havia sugerido, e perguntavam por coisas
de que nem mesmo eu me lembrava mais. Diverti-me muito naquelas aulas, acredito que eles também, e mantivemos o vínculo posteriormente, até mesmo na forma de um roteiro de leituras sobre teoria e método que persegui no ano seguinte com um grupo deles (anexo 10.2). Qualquer que tenha sido a razão, o fato é que eu estabeleci um vínculo forte e imediato com aqueles estudantes, que até hoje se manifesta num carinho muito particular pela Graduação em Ciências Sociais. De maneira particular, Jorge Roque, Fernando Cardoso e – muito especialmente – Valéria Paiva se tornaram, cada um à sua maneira, amigos, camaradas, interlocutores mais ou menos regulares, com os quais até hoje mantenho – dadas as restrições da correria habitual – contato afetuoso, ainda que menos regular do que gostaria. Valéria cursou várias disciplinas comigo, tornou-se interlocutora habitual, e veio mesmo, bem mais tarde, perto de sua formatura, a receber uma bolsa de iniciação científica sob a minha orientação – agora para um projeto de pesquisa propriamente dito, no âmbito do “Hubble Social”. Tentei também orientar-lhe algumas leituras de textos metodológicos de Weber, mas suas leituras rapidamente superaram as minhas, e eu me esforçava simplesmente por ser-lhe um interlocutor interessante. Assim ocorreu também no que toca à sua monografia de graduação, defendida em fevereiro de 2003. Mas a essa altura, o período da coordenação do Mestrado já ia longe, e eu começava a reencontrar uma identidade e uma agenda intelectual, que se haviam perdido em algum ponto do biênio 1998/1999.
2000/2001: em busca de rumo, líder sindical às avessas O período compreendido entre 2000 e 2001 constitui uma espécie de limbo profissional. Já livre das exigências da coordenação de um curso de pós-graduação, convencido de que eu não servia mesmo pra isso, mas ainda – no rescaldo da experiência – desprovido de uma agenda específica de pesquisas que me motivasse, deixei-me, serenamente, absorver por minhas atividades didáticas. Diferentemente dos primeiros anos de docência, contudo, desta vez a absorção dizia respeito menos às aulas, e sobretudo às orientações. Dão-se nessa época as defesas das primeiras dissertações orientadas por mim: Eduardo Carvalho de Castro e Juliana Estrella Valladares (ambos oriundos de
graduações na FACE...) inauguraram a fila, em maio e dezembro de 2000, respectivamente. Houve nessa época uma personagem memorável, que ocupou parcela considerável de minha vida acadêmica durante o período que vai do início de 2000 até dezembro de 2002. Rosmália Ferreira Santos foi peculiar em múltiplos sentidos. Conhecemo-nos durante uma disciplina que lecionei num curso de especialização da Unimontes, em dois fins de semana em Montes Claros, em março e abril de 1999. Talentosa, inteligente como poucos, atrevida como ninguém mais (ainda que ocasionalmente confusa, sobretudo no início do processo), candidatou-se ao nosso mestrado no fim do ano e, provavelmente para surpresa dela mesma, passou (a banca foi a minha segunda, e teve ainda Fátima Anastasia e José Eisenberg). Daí por diante me elegeu como orientador e passou a exigir de mim orientação de fato, muito além da mera elaboração da dissertação – que, por sinal, desenvolveu com grande autonomia, sem poupar de críticas o próprio orientador, como observou meu ex-professor João Antônio de Paula, admirado, durante a defesa. Cedi, meio divertido e meio intimidado, e discutimos detalhadamente cada texto que ela produziu durante seu primeiro ano no mestrado. Foi oneroso, num sentido mais superficial, quanto ao tempo empenhado. Mas preciso admitir que a convivência com ela, severamente exigente e vigilantemente crítica, foi um aprendizado também para o mestre, que foi forçado a aprimorar seu próprio autoconhecimento, para estar à altura da tarefa de tentar instruir aquela pupila ao mesmo tempo tão interessada em exibir suas próprias qualidades intelectuais, tão sedenta por aprender, e tão refratária a qualquer mistificação. Houve choques, e não foram poucos, nem pequenos (ela permanece sendo a única estudante que já me fez perder a paciência em sala de aula...). Mas acredito que se cimentaram com o tempo, para além de idealizações recíprocas, a compreensão e o respeito mútuos num plano bastante horizontal e fraterno. E os textos, sem dúvida, eram bons. As orientações têm ocupado um lugar importante na reconstrução paulatina de minha agenda de pesquisa. Embora, curiosamente, isto não se tenha dado no caso de Rosmália, preciso admitir que em mais de uma ocasião me aproximei de temas que hoje me ocupam recorrentemente a partir do interesse manifestado por orientandos, e da especulação livre que trato de construir com eles no esforço de conceber a dissertação. Esse foi o caso, muito claramente, no que se refere a meu envolvimento – tardio – com
o tema da participação política. Vários fatores se entrecruzaram e voltaremos a eles adiante. Mas, para além das preocupações mais estritamente acadêmicas, não posso descartar a possibilidade de que parte de meu interesse na matéria tenha advindo de meu inadvertido mas intenso engajamento na oposição à greve de 2001 – quando me vi tragado para o centro de uma polêmica nacional via internet, e tive ocasião de, por duas vezes, desfrutar do duvidoso privilégio de, dentro de um lotado auditório da Reitoria, ser a única pessoa a levantar a mão em favor do fim imediato da greve quando a mesa punha a matéria em votação. Habituado a pensar em mim como um cara tímido e hesitante, não podia deixar de admirar-me comigo mesmo a cada dia. Na verdade, tudo se deu de maneira bastante casual. Quando a greve foi decretada, preocupava-me – mais que a greve – o relativo esvaziamento do processo de sucessão na diretoria da Fafich, que teria lugar nos meses seguintes. Com a notícia do início da greve, temi pelo pior, já que era bastante provável que tivéssemos de eleger o diretor ainda durante a greve – e nada estava encaminhado. Durante a complicada assembléia que decidiu pela adesão da Fafich à greve (embora reservando-se expressamente o direito de retirar-se dela se uma assembléia de professores da Fafich assim decidisse – e com a exceção da Filosofia, que já havia decidido em assembléia departamental ficar de fora da greve), pedi a palavra para falar também deste outro assunto, e convoquei uma reunião das pessoas interessadas em discutir a sucessão na diretoria. A iniciativa era bem ingênua, e foi, provavelmente, bastante inócua. Houve, de fato, um par de reuniões, com uma dúzia de pessoas cada, e lembro que nelas teve certo protagonismo meu antigo mestre Ricardo Fenati, da Filosofia, ex-vice-diretor da casa – e também João Pinto Furtado, da História, que dali a alguns meses terminaria eleito, ele mesmo, para o primeiro de seus dois mandatos consecutivos como Diretor da Fafich. Seja como for, o detalhe relevante dessa história foi que, como puxador dessas reuniões, fiquei como o “proprietário” de uma lista de endereços de e-mail. Quando, ao cabo de umas duas semanas de greve, eu soube – como era previsível – que a última assembléia semanal da Fafich não acontecera por ninguém comparecera, nem pensei duas vezes antes de usar a lista para anunciar que eu proporia a saída unilateral da Fafich da greve na assembléia da semana seguinte. Houve um certo rebuliço, e à assembléia seguinte de fato compareceram algumas dezenas de professores. Perdi, mas talvez a proposta tivesse ganho, se os professores da Filosofia não se tivessem declarado impedidos de votar.
Mas deixei claro que, de minha parte, estaria lá todas as semanas, e que recolocaria em cada uma delas a minha proposta. Fui sistematicamente derrotado até o início de novembro, mas consegui de fato fazer com que uma assembléia de professores da Faculdade se reunisse, bem ou mal, quase toda semana. Em um par de ocasiões, fui mesmo compelido pelos colegas e pelas circunstâncias a comparecer a contragosto a duas assembléias gerais da UFMG, no auditório da Reitoria, cuja legitimidade eu denunciava – e que me propiciaram, em seu costume da unanimidade, o teste do voto solitário. Encorajado por Otávio Dulci, a certa altura tentei romper o isolamento em que se encontravam os que compartilhavam a minha opinião na Fafich reproduzindo para colegas Brasil afora o teor de algumas das mensagens que havia trocado na polêmica interna. Minha caixa de correio explodiu de mensagens, e eu me senti na responsabilidade de não deixar a peteca cair. Escrevi dezenas de páginas, presumo. Minha opinião sobre o ciclo de greves que começou no início da década de 1980 é muito enfaticamente negativa. Independentemente dos detalhes que configuravam as circunstâncias em que se deflagraram cada uma delas, e do drama específico dos acontecimentos que se desdobraram no interior de cada uma, elas me pareciam muito claramente autodestrutivas no longo prazo, no que toca ao alegado objetivo de defesa da universidade
pública.
Muito
fundamentalmente,
parecia-me
completamente
esquizofrênico o caldo de cultura vigente nas universidades públicas durante o círculo vicioso grevista que prevaleceu durante vinte anos (menos mal que, pelo menos por enquanto, deixou de prevalecer na UFMG depois de 2001): a universidade tinha de ser pública, tinha de ser gratuita, tinha de ter qualidade, tinha de ampliar vagas, e ao mesmo tempo fazíamos questão de viver às turras com todos os governos eleitos neste país – encarregados, naturalmente, de manter a universidade funcionando... Suicida, não? Junte-se a isso a condução errática e amadorística das greves, ao sabor de assembléias espalhadas pelo país, conduzidas por lideranças cujas principais prioridades só por acaso coincidiam com os interesses institucionais da universidade, e a cena do desastre me parecia armada: a total desorganização da vida de todos nós era apenas o menor dos males. Felizmente, o que tínhamos por parte dos governos era apenas desinteresse, muito mais que hostilidade. Se alguma vez tivéssemos de fato enfrentado um governo interessado (como o movimento invariavelmente alegava) na destruição da universidade
pública, acredito que ele dificilmente teria deixado passar a oportunidade que as greves lhe propiciavam. (Eu sempre me lembrava do que fez Margaret Thatcher com as greves dos operários das minas de carvão...) Empenhei-me on-line a um ponto que achei que teria uma úlcera (foi quase com desapontamento que eu ouvi do meu médico, no fim do ano, a informação de que minha saúde estava perfeita). Virei noites, e passei por períodos de uma ansiedade medonha – que ainda foi agravada com o choque do 11 de Setembro, no meio da greve. Mas preciso dizer que fui tratado com cortesia por todos aqueles com quem cheguei a debater, e fui tremendamente encorajado por muitos que se reconheciam nos meus pontos de vista. Ao fim, a empreitada foi sem dúvida pessoalmente compensadora, ainda que politicamente inócua. Provavelmente teria sido mais fácil furar (ou ignorar) a greve, ficando em casa e aproveitando o tempo pra outra finalidade, preparando-me minimamente para os semestres posteriores, quando adviria fatalmente a completa desorganização de nossos calendários. Desde a greve anterior, em 1998, já havia, de fato, prometido a mim mesmo adotar mais ou menos essa postura quando viesse a greve seguinte. Mas meu temperamento torna difícil deixar de cumprir à risca o preceito de perfilar-me com uma decisão coletiva, mesmo tendo sido voto vencido na deliberação. No caso de 2001 (assim como em 1998), eu já havia denunciado as assembléias gerais, e anunciei várias vezes que não me constrangia desobedecê-las. Mas até para legitimar essa postura, havia também declarado que me pautaria pelas decisões das assembléias da Fafich. E me obriguei, assim, a mantê-las funcionando... Para além de qualquer ônus, porém, a greve de 2001 me propiciou alguma têmpera para controvérsias públicas, e confiança em minhas posições. Teoria & Sociedade De fato, coisas parecidas acontecem comigo de tempos em tempos. O exemplo mais nítido foi o meu envolvimento com a revista Teoria & Sociedade, publicada conjuntamente por DCP e SOA. Em 1997, quando a revista foi criada, fui voto vencido – embora talvez tenha chegado a influenciar a escolha do seu nome (lembro-me de chegar a cogitar do nome afinal adotado junto a algum colega, influenciado pela revista Theory & Society, que em 1982 publicara um número dedicado a “Marxism, Functionalism, and Game Theory”, de Jon Elster – com grande impacto em minha própria formação). Eu discordava do lançamento da revista, porque achava que qualquer
finalidade legítima a que ela se prestasse poderia ser melhor atendida por um esforço de nossa parte na publicação não de uma revista própria, mas de nossos artigos nas revistas, já existentes, que todo mundo lia – como Dados e RBCS, e, num grau menor, Novos Estudos e Lua Nova. Infelizmente, porém, parece que naquela época a Capes valorizava positivamente em suas avaliações os programas de pós-graduação que mantinham publicações periódicas próprias. De fato, ao longo dos anos 1990, operou-se uma expansão sensível dos veículos de publicação acadêmica no Brasil. Tenho dúvidas quanto ao proveito disso para a área: se é verdade que favorece a viabilização da publicação de textos que de outra forma permaneceriam inéditos, por outro lado dispersa a produção relevante, reduzindo sua visibilidade. De nossa parte, acredito que dispúnhamos de suficiente visibilidade própria para nos concentrarmos em publicar nos veículos então existentes, em vez de dispersarmos parcos recursos na viabilização editorial de uma revista própria, que não poderia deixar de receber uma administração amadora. Com efeito, menos de dois anos depois de sua criação, a revista encontrava-se abandonada pelos departamentos, e foi salva da extinção imediata pelo empenho pessoal de Tânia Quintaneiro e Antonio Mitre, que literalmente levaram a revista para a casa deles e por aproximadamente dois anos se encarregaram eles mesmos de trabalhos de revisão, obtenção de pareceres, ocasionais traduções, articulação de uma rede em torno de seu conselho editorial, contatos com gráficas etc. etc. Em meados de 2001, esgotados por dois anos de trabalho ininterrupto, eles passaram a bola de volta para os departamentos, em busca de quem os substituísse. O Departamento de Sociologia e Antropologia designou Eduardo Vargas. Procurado, como sempre vacilei, e interpus como condição para aceitar o encargo que meu amigo Marco Cepik compartilhasse comigo a representação do DCP nessa tarefa, no mínimo como uma espécie de adjunto meu. De longe o meu amigo mais próximo na época, vizinho de porta e igualmente assíduo na rotina departamental, Marco Cepik era meu cúmplice fundamental, parceiro e encorajador incorrigível para todas as horas. Eu estava habituado à companhia dele, e a perspectiva de dividir com ele esse encargo deve ter feito a coisa toda tornar-se mais palatável. Infelizmente, um ano depois Cepik já estava de malas prontas para voltar para Porto Alegre, e eu – comprometido com Eduardo Vargas – permaneceria co-editor da Teoria & Sociedade até 2005.
Hoje eu me inclino por acreditar que foi de fato um erro aceitar a função de co-editor, em vez de simplesmente deixar a revista extinguir-se, se fosse o caso. Acredito que foi sobretudo a consideração pelo esforço de Mitre e Tânia que me fez inclinar-me por aceitar. Queridos amigos, dos raros entre nós que preservam a rotina de receber os colegas em casa, ambos fazem muito – bem mais do que imaginam – pela qualidade da vida social e profissional em seus respectivos departamentos. Depois do empenho deles, eu não poderia simplesmente me recusar a colaborar. Mas, desta vez pelo menos, de fato fizemos um bom trabalho. Se Mitre e Tânia haviam salvo a revista da extinção, conferindo um fluxo rotineiro mínimo à sua operação, Eduardo e eu a levamos à frente, obtendo financiamento do CNPq, e realizando uma reforma gráfica que enquadrou a revista mais apropriadamente nos parâmetros habituais das publicações profissionais existentes. Mudamos o serviço gráfico para uma editora do Rio de Janeiro que nos produzia maior tiragem a um preço menor, e nos propiciava maior circulação fora de Belo Horizonte. Ampliamos a abrangência profissional e geográfica de seus colaboradores, tanto autores quanto pareceristas. E iniciamos a publicação de alguns números especiais – que a certa altura ameaçaram engolir os números regulares, mas que logramos manter dentro de certos parâmetros minimamente objetivos. Eduardo era de fato o editor-chefe, encarregando-se do plano administrativo: contato com editora, CNPq, financiamento etc. E eu atuava principalmente na cozinha mais estritamente acadêmica: pareceristas, cartas, recusas, comunicação com autores etc. Podemos nos orgulhar de haver-se evitado que a revista se tornasse apenas um veículo para publicações da casa. Foi um prazer colaborar com Eduardo Vargas, tanto por seu empenho quanto por sua isenção e correção pessoal durante todo o período. Uma vez decidido que encaminharíamos determinada contribuição a parecer (em vez de simplesmente agradecer e devolvê-la, delicadamente, ao autor), quebrávamos as cabeças para escolher pareceristas cujas opiniões não conseguíssemos prever inteiramente – evitando a todo custo que uma missão institucional viesse a ser apropriada por nós mediante influência indevida sobre o perfil dos trabalhos publicados. Mas falhamos em dar à revista a periodicidade necessária à sua admissão na Scielo. Acredito que a razão para isso é simples: a edição da revista permaneceu o tempo todo – e permanece até hoje – estritamente amadora. Durante a maior parte do tempo em que estive lá, a revista era constituída por Eduardo Vargas, eu e um estagiário da Graduação em Ciências
Sociais, cujo pagamento era precariamente viabilizado por grupos de pesquisa ligados aos departamentos – principalmente pelo CRISP, sob a condução de Cláudio Beato. Recaía sobre os ombros desse estagiário a viabilização da rotina propriamente dita da revista. Receber e acusar recebimento de contribuições, manter a correspondência em dia, notificar em tempo hábil os editores a respeito de providências pendentes são exemplos de tarefas que recaíram invariavelmente sobre os ombros de estudantes da Graduação. Talvez se possa alegar que a exposição aos bastidores de uma publicação acadêmica faça parte da formação desejável de um cientista social, mas por outro lado certamente nossos estudantes deveriam, em princípio, ser poupados de tarefas administrativas em seus estágios discentes – quando nada, a bem do próprio sigilo que o trabalho de avaliação das contribuições envolve. Seja como for, estudantes como Cecília Chaves, Ruth Beirigo e Guilherme Rodrigues não apenas mantiveram, sucessivamente, a Teoria & Sociedade funcionando, mas jamais protagonizaram qualquer incidente relevante no delicado mundo anônimo dos pareceres que se desenrola nos bastidores das revistas, e eu jamais tomei conhecimento de qualquer vazamento nessa matéria em nossa revista. É a eles, mais do que a quaisquer outros, que a revista deve a sua existência. BU e ProGrad Os últimos meses do mandato de Vera Alice Cardoso na Diretoria da Fafich me reservavam ainda as duas missões que terminariam por propiciar-me – após o desapontamento com o comitê assessor junto à PRPq – os primeiros contatos regulares com a gestão da Universidade, para além dos limites da própria Fafich. Primeiro, em outubro de 2000, Vera Alice me perguntou se eu aceitaria ser designado a preencher uma suplência no Conselho Diretor da Biblioteca Universitária da UFMG. Francamente, eu não sabia o que era a Biblioteca Universitária da UFMG. Mas estava profundamente envolvido à época – muito mais que hoje – com a Biblioteca da Fafich. Nos meus primeiros anos de docência, ainda como assistente, uma das atividades de que me ocupava rotineiramente era a pesquisa bibliográfica sistemática para compras por nossa Biblioteca. Comprador compulsivo de livros até então, transferi esse fetiche para as listas de compras, e – entre 1995 e 2004 – recomendei pessoalmente a compra de mais de 6.500 livros pela Biblioteca. Em setembro de 1999, as bibliotecas da UFMG
foram instadas a compor comissões que apoiassem as chefias com a participação de docentes e discentes, e o DCP indicou o meu nome para representá-lo na Comissão da Biblioteca da Fafich. Acredito que essa designação ainda esteja em vigor até hoje, mas a verdade é que a comissão se reuniu apenas uma única vez, provavelmente não muito tempo depois disso. Talvez isso soe desabonador para a Chefe da Biblioteca – mas nada poderia estar mais longe da minha intenção. Pois Vilma Carvalho de Souza é a mais competente e abnegada servidora (docentes incluídos) que eu encontrei nos quatorze anos de carreira vividos desde a minha admissão em 1994. Nunca convivi com outra chefe na Biblioteca da Fafich, mas vi a qualidade dos serviços da Biblioteca da minha faculdade melhorar a cada ano ao longo de todo este período. Em mais de uma ocasião, soube que Vilma comprara, com dinheiro do próprio bolso, livros que continham textos indicados em editais de concursos internos da Fafich, apenas para não expor a Biblioteca ao embaraço de não contar em seu acervo com obras indicadas por editais da própria casa. Pelo menos uma vez, tratava-se de livro publicado pela própria UFMG. Marco Cepik pode testemunhar que – em meus primeiros anos na UFMG, em meio a devaneios sobre minhas aptidões (principalmente quando pensava a respeito do que é que eu poderia, afinal, fazer de “útil”) – eventualmente cultivei a fantasia borgeana de vir a ser, um dia, diretor de biblioteca. O contato com a atuação da Vilma, contudo, rapidamente me persuadiu de que eu nunca poderia estar à altura dela. Tratei de me comprazer, portanto, em tratar de ser útil a ela – isso foi certamente parte do cenário de minhas atribuições enquanto eu exercia meu malfadado mandato como Coordenador do Mestrado em Ciência Política. Assim, diferentemente das hesitações habituais, reagi com naturalidade, quase com alegria, quando Vera Alice me consultou sobre o lugar de suplente no Conselho Diretor da Biblioteca Universitária. Levei um bom tempo, no entanto, para entender do que se tratava. A princípio, achei que se tratava de algum órgão responsável pela gestão da Biblioteca Central. Precisei ir à internet pra me informar sobre o organograma, e assim descobrir que as bibliotecas das diversas unidades da UFMG subordinavam-se tecnicamente a um órgão suplementar chamado Biblioteca Universitária, órgão este que contava, à época, com um Conselho Técnico composto por pessoal do sistema de bibliotecas, e um Conselho Diretor, enxuto, composto por quatro docentes e um
representante do pessoal técnico-administrativo do sistema – ambos presididos pelo Diretor (habitualmente, pela Diretora) da Biblioteca Universitária. Foi para uma suplência desse último Conselho que o meu nome foi indicado. E, nessa condição, acredito que participei de apenas uma única reunião, se não me engano uma reunião conjunta dos dois Conselhos, cuja pauta girava em torno da elaboração – solicitada pelo Reitor, Francisco César de Sá Barreto – de um novo regimento para a Biblioteca Universitária. Eu deveria ter imaginado que aquela pauta era premonitória. Pois, meses depois, meu titular (realmente não sei quem era, acho apenas que era alguém da FAE) teve de se afastar para uma temporada no exterior, e eu fui efetivado como titular em setembro de 2001. Durante quase seis anos a partir dali, me vi mais ou menos permanentemente às voltas com a tarefa de conceber, elaborar e depois tentar implementar um novo regimento para o Sistema de Bibliotecas da UFMG. Antes, porém, fui confrontado com uma das maiores ironias de minha história na UFMG até aqui. Pois quando assumi meu posto como titular do Conselho Diretor, a Biblioteca Universitária andava às voltas com a eleição de seu diretor. Após a publicação de um primeiro edital, nenhuma chapa havia sido inscrita. Havia preocupação no sistema quanto às repercussões de um eventual fiasco na eleição, com certo temor difuso de eventual reversão da prerrogativa de eleição do diretor pelo pessoal da Biblioteca. E nova chamada foi feita. Eu era exatamente o sujeito que sempre foi cético a respeito das virtudes do sistema de eleição direta para o preenchimento de cargos na Universidade – Reitor inclusive. Confrontado com a crise na B.U., na condição de co-responsável por sua gestão, numa situação em que eu apenas precariamente compreendia o que eu estava fazendo ali, e ainda por cima identificado pelos demais como o professor de ciência política de plantão, percebi rapidamente que eu era o cara que deveria dizer alguma coisa ali. Em condições ideais, eu estaria longe de dizer que a diretoria da B.U. deveria necessariamente ser preenchida por uma eleição realizada junto às pessoas que trabalhavam na B.U. Por outro lado, não achava, absolutamente, essa eleição menos justificável do que aquelas que realizamos – hoje, rotineiramente – para reitor ou para diretores de unidades (ver anexo 6.6 para uma exposição sucinta de meu ponto de vista
sobre essas eleições). Compreendendo que tinha a obrigação de propiciar a melhor eleição possível sob a norma vigente, engajei-me completamente. Participei – embora silenciosamente – de reuniões do pessoal da B.U. sobre o Sistema. Acompanhei militantemente os debates produzidos depois da inscrição de chapas que teve lugar na “segunda chamada”, tomando notas, conscienciosamente. E conheci a Biblioteca Universitária. Essa, digamos, “campanha” propiciou-me uma entrada para o funcionamento do sistema que nada poderia ter substituído. Ouvi ponderações, críticas, reclamações, ataques ao modus operandi em vigor, defesas, propostas, idéias, divagações, devaneios etc. E, ao fim de tudo, era irresistível a impressão de que eu havia testemunhado a campanha tecnicamente mais informada que eu já havia assistido até então na Universidade. Eram corriqueiramente debatidos, em minúcia, assuntos de que eu nunca havia ouvido falar: compras, licitações, atendimento, política para o acervo, rotina de catalogação, recuperação etc. Havia ali um corpo de profissionais bastante especializado, experimentado nas mazelas do métier, ao qual cabia ouvir com respeito no esforço de contribuirmos, todos juntos, para o bom funcionamento do Sistema de Bibliotecas da UFMG – na medida do possível. Tratei de não atrapalhar os profissionais com devaneios de neófito, e compenetrei-me em ajudar modestamente a causa da Biblioteca com sugestões de encaminhamentos que me pareciam institucionalmente adequados para as eventuais matérias sensíveis com que nos defrontávamos. Ao longo dos meus seis anos de envolvimento formal com o Sistema de Bibliotecas, ocasionalmente tive a impressão de que as pessoas de fora guardam certa desconfiança em relação à Biblioteca Universitária, de um ponto de vista administrativo, como um foco relativamente mais propenso a certo corporativismo estreito. Acredito que isso guarde relação com o fato de a B.U. ser um órgão peculiar na UFMG, desprovido de discentes ou docentes próprios, e assim ter o seu quadro profissional composto exclusivamente por servidores técnico-administrativos. Devo dizer que, de minha parte, não identifiquei ali nem mais nem menos corporativismo do que em qualquer outro lugar da Universidade. Pelo contrário, encontrei um corpo técnico bastante especializado,
com
grande
conhecimento
de
causa
e
dedicação
às
suas
responsabilidades. Como qualquer outro lugar, é afetado por certa inércia burocrática
que tende a eternizar o status quo. Mas isso – como é fácil constatar – afeta igualmente a todos nós, em todas as partes. O sentido em que a ausência de docentes afeta a B.U. faz-se de fato sentir em aspecto bastante distinto. E deriva do fato de que, até onde consegui perceber, a direção da B.U. tende a sentir-se relativamente intimidada em instâncias como um Conselho de Diretores, por exemplo, ao ter de operar num fórum constituído quase exclusivamente de docentes. Infelizmente, a natureza bastante estamental da Universidade se revela em uma lastimável presunção tácita, desprovida de fundamento formal, de que docentes são hierarquicamente superiores aos demais. E isso, de fato, corrói o peso político que a Biblioteca Universitária poderia (e deveria) ter. A saliência dessa segmentação da Universidade em docentes, discentes e técnicoadministrativos onera a operação da instituição em vários sentidos, e eu pude observá-lo na própria Biblioteca Universitária em pelo menos mais uma de suas manifestações. Menos de um ano depois de minha efetivação como titular do Conselho, pouco tempo depois de voltar de três meses que eu mesmo passei no exterior, soube que os conselhos da B.U. haviam sido dissolvidos pela nova Reitora, Ana Lúcia Gazzolla, e os membros do Conselho Diretor renomeados, agora como membros pro tempore de um Conselho Diretor significativamente mais ampliado, constituído com o propósito de propor um novo regimento a Biblioteca Universitária. Embora o novo regimento ainda devesse ser redigido, a ampliação do Conselho se impôs em decorrência do novo Estatuto da UFMG, então recentemente aprovado, que (na esteira das controvérsias sobre eleições de dirigentes) determinava que todo órgão deliberativo da Universidade deveria contar com pelo menos 70% de docentes em sua composição. Um dispositivo defensivo, concebido – acredito – fundamentalmente como justificação preventiva, ex post facto, para o controvertido peso que a LDB determinava que se conferisse aos docentes nas eleições de dirigentes universitários. E que, em sua singeleza generalizante, fatalmente produziria impropriedades em alguns redutos dessa tão heterogênea instituição que é a UFMG. Foi o que se deu, no modesto caso do Conselho Diretor da Biblioteca Universitária. Para um órgão suplementar que afinal não conta com docentes em seus quadros, a exigência dos 70% é não apenas estapafúrdia, mas cria problemas bastante concretos, independentemente da qualidade dos docentes designados. Inchado, o Conselho passa, de saída, a ter agravados os problemas relativos
ao quórum de suas reuniões. Mas, mais fundamentalmente, perde organicidade, ao impedir-se de abrigar pessoas que desempenham funções relevantes no Sistema, tais como, por exemplo, a vice-diretora da B.U. e a chefe da Biblioteca Central. Se essas pessoas tivessem assento formal no Conselho, o número de docentes a serem designados tornaria o Conselho inviável. Até por preocupação com esse aspecto, o Conselho pro tempore, ao redigir o novo regimento, teve o cuidado de prever nas disposições transitórias que, a cada ano, o Conselho renovaria apenas metade de sua representação docente. Mas como, cumprida sua missão de redigir o novo regimento, o Conselho Diretor pro tempore foi integralmente dissolvido em maio de 2007, desconheço a forma como se dará a implementação desse dispositivo. Um desafio mais exigente apareceu quando, cerca de um ano depois, já no final de 2001, Vera Alice me propôs uma indicação para o CEPE, a ser alocada junto à Câmara de Graduação. Titubeei. Já sabia àquela altura, por minha convivência com Geraldo Élvio Magalhães, da duríssima rotina na ProGrad, com reuniões rotineiras duas vezes por semana. Alguns dias depois, Vera voltou ao assunto, agora propondo uma suplência, porque Francisco Vinhosa, da História, havia aceitado o encargo. Desta vez, aceitei. Foi pela porta da Pró-Reitoria de Graduação que iniciei de fato minha vivência da Reitoria. Nosso mandato iniciou-se ainda sob a gestão de Nagib Cotrim Árabe, no mandato de César Sá Barreto, mas – exceto por minha atuação como parecerista ad hoc para as bolsas de graduação no início de 2002 – transcorreu, em sua maior parte, sob Cristina Augustin, no mandato da Reitora Ana Lúcia Gazzolla. Se a rotina da Câmara de Graduação de fato é duríssima (e em seu ritmo de então, com duas reuniões por semana, parecia ter algo de ineficiente no que toca aos procedimentos adotados para lidar com ela), por outro lado ela surpreendeu-me positivamente pelo zelo com que a agenda era encarada, a começar pelo próprio processo de alocação das bolsas da graduação (PAD, PID e PAE, à época). Acostumado ao processo bem mais “automático” das bolsas PIBIC e PROBIC, fiquei surpreso em encontrar o Pró-Reitor Nagib e a Pró-Reitora adjunta, Adriana Valadão, em reunião permanente com toda a Câmara de Graduação durante uma semana inteira salvo por ocasionais compromissos incontornáveis, sabatinando cada parecer emitido, e insistindo em que todos os consultores ad hoc comparecessem a tantas sessões quantas fosse possível, em busca da padronização de critérios e de uma consolidação justa da alocação das bolsas em toda a
Universidade. Era estafante, mas também um processo intensivo de aprendizagem sobre a graduação na UFMG. Desde minha estréia, em 2002, até hoje, o processo se mantém basicamente o mesmo, embora eu tenha podido perceber que a insistência na presença de todos foi gradativamente diminuindo, e hoje se reúnem apenas os pareceristas do turno, com o Pró-Reitor e sua adjunta. Talvez seja de fato mais razoável, do ponto de vista da relação custo-benefício – e, pessoalmente, eu agradeço por esta mudança. Mas, retrospectivamente, considero um privilégio ter podido participar do processo na forma como ele se dava em 2002. Foi igualmente um privilégio ter podido ser suplente de Francisco Vinhosa. Zelosamente responsável, e extremamente gentil, Vinhosa empenhou-se o quanto pôde para poupar o seu suplente de trabalho. Apenas por motivo de força maior recorria a mim, e não sem antes desculpar-se detalhadamente, e passar com cuidado a pauta da convocação, se havia algo fora da rotina. Dada a intensidade do ritmo de trabalho na Câmara, estive lá várias vezes em virtude dos impedimentos ocasionais de meu titular, e rapidamente me senti em casa. Já no que toca ao CEPE, não compareci a mais do que duas ou três reuniões ao longo de todo o período de nosso mandato, sempre sob Ana Lúcia Gazzolla, e jamais cheguei a me sentir um membro de fato. Menos mal que o zelo de meu colega Vinhosa me tenha poupado dessa experiência: a Câmara de Graduação, por si só, já preenchia fortemente as atribuições mesmo de um suplente, e a atuação ali se ramificaria em várias outras direções ao longo dos anos seguintes. A mais emblemática dessas ramificações foi o Comitê Acadêmico da Copeve, onde fui parar como representante da ProGrad, designado pela Pró-Reitora, Cristina Augustin. No dia em que fui designado, tinha lugar na Fafich, à mesma hora, um seminário sobre o projeto de pesquisa a que até hoje me esforço por me vincular de maneira mais intensiva, o “Hubble Social” (ver adiante), com a presença de várias pessoas de fora da Universidade. Foi a única vez em que, solicitado pelo Vinhosa, cogitei seriamente enforcar a reunião. Afinal prevaleceu o peso do dever funcional, mas lembro-me de partir inconformado rumo à Reitoria, por perder evento tão importante para a pesquisa em que estava envolvido de tantas maneiras, àquela altura. Pois bem, como se não bastasse, por mal dos meus pecados naquele dia constava da pauta da Câmara a designação do representante da ProGrad na Copeve, que estava vaga já havia anos. Quando chegamos a esse ponto, a Pró-Reitora perguntou à Câmara se alguém se
habilitava. Ante o silêncio, ela virou-se pra mim e disparou (eu estava bem à sua direita): “Bruno! Você não quer ir para a Copeve, não?” Eu até tentei me evadir: “Bem, professora, eu nunca mexi com vestibular...” “Ótimo!”, ela encerrou, naquele estilo meio irresistível, anotou alguma coisa, e chamou o próximo ponto da pauta. Como minha designação só foi confirmada pelo Conselho Universitário (ou CEPE, não sei mais) quase um ano depois, meu mandato de três anos acabou sendo de quatro. De fato, não foi particularmente oneroso, e serviu para enxergar por dentro uma máquina tão sui generis quanto a Copeve. Mas a verdade é que, proveniente de um Departamento desprovido de envolvimento direto com o Vestibular, eu freqüentemente me sentia um peixe fora d’água, com pouca utilidade no Conselho. Talvez a melhor coisa de ter atuado na Copeve terá sido ter podido conhecer Antônio Emílio Angueth, então o chefe ali.
2002 em diante: Annus Mirabilis, e um retorno parcialmente abortado Cada um tem o annus mirabilis que merece. Para Einstein, 1905 foi o ano em que, em um par de artigos, ele realizou a fantasia egocêntrica juvenil, comum a tantos de nós, de resolver uma série de problemas, formular outros, chamar a atenção do mundo e dividir a história entre antes e depois de si. Para mim, 2002 foi o ano em que meu precário engajamento num projeto institucional de pesquisa em minha faculdade me levou a um período de três meses em Ann Arbor, na Universidade de Michigan, e em que dois amigos, José Eisenberg e Fernando LattmanWeltman, tiveram a mesma idéia: convidar-me a participar do Encontro Anual da ANPOCS – onde, pelo canal menos previsível, criei vínculos que duram até hoje. Seja como for, foi o bastante para dividir pelo menos minha própria vida profissional entre antes e depois de 2002. Justamente o ano em que eu completei meus 37 anos, para corroboração do Juarez. BH e Hubble
O projeto de pesquisa que me levou a Michigan foi o chamado “Hubble Social”, conduzido na Fafich sob a liderança e a iniciativa de Neuma Aguiar, do Departamento de Sociologia e Antropologia. Admitida na UFMG em fins de 1996, em concurso para uma vaga de professora titular, Neuma (a quem eu conhecera superficialmente no Iuperj, anos antes) chegou com a proposta de que a Fafich abrigasse um programa de treinamento intensivo em metodologia quantitativa para ciências sociais, nos moldes (ainda que em menor escala) do programa internacional de referência na área, mantido desde os anos 1950 na Universidade de Michigan, nos Estados Unidos. A idéia foi recebida com um misto de surpresa, ceticismo e entusiasmo, mas a maior parte dos colegas foi receptiva, e Neuma – com sua admirável capacidade de ação – foi em frente. Apenas dois anos depois, um programa de seis semanas de duração (nosso querido “MQ”) já recebia inscrições para sua primeira edição, que teve lugar na Fafich, da última semana de junho à primeira semana de agosto de 1999. (Não me acostumo à idéia de que já nos aproximamos de sua décima edição...) Assim como já havia acontecido 30 anos antes, na própria criação do DCP, o apoio da Fundação Ford, então chefiada no Brasil por Eddie Telles, foi decisivo. Nos primeiros anos, tentei engajar-me nele como estudante: freqüentei disciplinas de matemática, amostragem, regressão linear e logística, análise espacial etc. Contudo, assim como médicos são maus pacientes, aprendi rapidamente que professores são péssimos alunos – pelo menos quando são alunos na mesma casa em que lecionam. Requisitado para múltiplos compromissos ao mesmo tempo em que tentava acompanhar as disciplinas, abandonei a maior parte delas antes do fim, e aproveitei apenas parcialmente o privilégio do acesso a um programa dessa natureza em casa. Mais ou menos à mesma época, a Universidade de Michigan procurava parceiros em universidades mundo afora para colaboração num projeto de dar comparabilidade, pelo menos parcial, aos dados produzidos já há várias décadas por seus Detroit Area Studies (DAS). Tínhamos lá nossa colega Solange Simões que em 1997 deixara o Departamento de Sociologia e Antropologia da UFMG para fixar-se de vez (pelo menos por enquanto...) em Ann Arbor, onde colaborava com o Instituto de Pesquisa Social (Institute for Social Research – ISR) da Universidade de Michigan. Solange e Neuma juntaram os fios, e acoplaram uma iniciativa à outra. Em junho de 1999, o ISR estava presente à abertura do primeiro MQ, nas pessoas de David Lam e de
David Featherman, então seu diretor. O endosso deles ao nosso programa foi enfático. Pude ouvir de Featherman, numa reunião de que participava o diretor de programas da CAPES, com a presença de Neuma, Solange, Eddie Telles e David Lam (não me lembro mais a que títulos eu terei ido parar nessa reunião...), que o nosso programa era a mais ambiciosa tentativa de replicação do Summer Program de Michigan que ele já vira em todo o mundo. Ele tentava endossar um possível apoio da CAPES ao MQ, que todavia nunca veio. Na mesma reunião, lembro-me também de Featherman nos perguntar se conseguíamos imaginar a constituição de um instituto, nos moldes do ISR, para conduzir na UFMG iniciativas como o MQ e nossa versão local do DAS, a Pesquisa da Região Metropolitana de Belo Horizonte (PRMBH, ocasionalmente BHAS em alguns documentos). Não sei por que tomei a liberdade de arriscar uma resposta: disse que, se a pergunta era exatamente aquela, se nós conseguíamos imaginar uma instituição como aquela, então a resposta era sim, nós conseguíamos imaginar. Ele sorriu, e pareceu darse por satisfeito: “That’s exactly what I want to know.” De fato, hoje temos operando entre nós o Centro de Pesquisas Quantitativas em Ciências Sociais (CEPEQCS), agora às vésperas de sua primeira troca de comando, com a iminente aposentadoria compulsória de sua fundadora Neuma Aguiar. Contudo, eu faltaria com a verdade se não admitisse certo sentimento de frustração: nove anos depois daquela reunião, o CEPEQCS ainda é apenas uma sala no terceiro andar da Fafich, e muitos desafios se antepõem à idéia de transformá-lo no instituto que então almejávamos. Em junho de 2000, Featherman e Lam estavam novamente de volta à UFMG. Agora, não para endossar o MQ, mas para implementar a outra ponta da cooperação institucional: a colaboração de universidades de cinco continentes no esforço de elaboração conjunta de pesquisa comparativa nos moldes do DAS. O “Hubble Social”, integrado por pesquisas a serem conduzidas paralelamente em Detroit, Belo Horizonte, Cidade do Cabo, Varsóvia e Pequim. A Fafich abrigou um extenso seminário, com a participação de vários pesquisadores de todas as cinco universidades envolvidas. A atmosfera e as perspectivas eram excitantes. Mas, como sempre, pude aprender que a distância entre intenção e gesto é tanto maior quanto mais bela é a idéia envolvida: Pequim logo ficou pelo caminho; Varsóvia manteve-se por perto durante a primeira rodada-piloto que todos os centros levaram a cabo, mas nunca chegamos a trabalhar com seus dados; mesmo Detroit, para surpresa de todos, teve problemas, que aparentemente diziam respeito também às relações institucionais entre o ISR e o
Departamento de Sociologia da Universidade de Michigan. Apesar da aproximação posterior de uma equipe da Universidade de São Petersburgo, que pretendia conduzir a pesquisa na cidade, próxima, de Petrozavodsk, o Hubble Social tem, de fato, em que pese sua ambiciosa dimensão comparativa inicial, consistido acima de tudo numa pesquisa comparativa bilateral entre Belo Horizonte e a Cidade do Cabo – como de fato insistia desde cedo Jeremy Seekings, da Universidade de Cape Town, quando os problemas começaram (pude vê-lo argumentar reiteradamente nessa direção desde uma reunião feita em Durban, na África do Sul, durante o encontro da Associação Internacional de Ciência Política – IPSA, em 2003). Há, é claro, o interesse intrínseco das pesquisas conduzidas em cada lugar. A PRMBH já foi a campo duas vezes, em 2002 e em 2005, e agora se prepara uma nova rodada ainda em 2008. Constituiu, nesse ínterim, um acervo de dados extremamente valioso, e que seguramente permitirá apropriação frutuosa por muitos anos ainda – seja pelo próprio valor de face das estatísticas produzidas, seja pela excelente ocasião de treinamento metodológico já a esta altura propiciado a mais de uma geração de estudantes. No primeiro semestre de 2000, quando se preparava o lançamento do Hubble Social, Neuma disparou convites a todos os colegas, sobretudo do SOA e do DCP, para que contribuíssem com projetos a serem contemplados como módulos do questionário da primeira rodada da PRMBH. Desprovido de agenda própria que eu já perseguisse naquele exato momento, poucos meses após deixar a coordenação do Mestrado em dezembro de 1999, aceitei alegremente – depois de algumas inseguras cogitações de vôo próprio – o convite de Solange Simões para cuidar, in loco, do módulo sobre valores que ela havia encaminhado à Neuma em colaboração com Ronald Inglehart (da Universidade de Michigan). Tratava-se, basicamente, de uma replicação de onze variáveis-chave dos World Values Surveys (WVS) que o próprio Inglehart coordenava desde Michigan, e que já haviam sido conduzidos àquela altura em quase sessenta países (para o subprojeto, ver anexo 9.2). Inglehart veio, ele mesmo, em julho de 2000, conduzir um workshop sobre suas pesquisas no âmbito das atividades da segunda edição do MQ. Quando Solange me convidou, gostei da idéia de, modestamente, me inserir como colaborador de um subprojeto conduzido por pessoal sênior, em vez de improvisar-me como pesquisador autônomo de algum projeto ainda não amadurecido.
Formalmente engajado afinal, pela primeira vez, em projeto institucional de pesquisa, com recorte ambicioso, mais de um departamento, colaboração internacional etc., tomei a sério a tarefa, e coloquei o Hubble no centro de minha vida acadêmica: respondi diligentemente a todas as demandas de Solange, ofereci disciplina optativa no doutorado baseada nos trabalhos de Inglehart (anexo 10.3), busquei uma apropriação pessoal do quadro conceitual pertinente em variadas aplicações – inclusive um modesto artiguinho feito em setembro de 2000 para o Conjuntura Política (anexo 6.4). No que concerne à PRMBH, o ano de 2001 foi consumido na montagem do primeiro questionário, com todos os seus vários módulos. Os colegas do Departamento de Sociologia e Antropologia compareceram com várias iniciativas individuais, enquanto o DCP aderira à pesquisa por intermédio de um subprojeto “guarda-chuva”, patrocinado por Leo Avritzer e Fátima Anastasia, sobre associativismo. Como a bateria de questões relativas a “meu” próprio subprojeto, sobre valores, sendo apenas a replicação de parte de um questionário maior, já havia nascido pronta, lembro-me de haver auxiliado a Solange no trabalho de consolidação geral do questionário, e na discussão de vários módulos. Eu já havia trabalhado antes, entre 1991 e 1992, numa elaboração de questionário, como assistente da pesquisa “Pacto Social e Democracia no Brasil”, coordenada por meu próprio pai. Mas, afora essa experiência, não dispunha de treinamento formal em elaboração de questionários. Não obstante, sentia-me à vontade com Solange, que parecia apreciar as discussões comigo. Quando, no âmbito da colaboração com Michigan, apresentou-se ocasião para minha ida para treinamento no programa de verão (deles) em 2002, privilegiei as disciplinas dedicadas à montagem do questionário, mais que à análise dos dados: “Desenho de Questionário”, “Cognição, Comunicação e Análise de Survey” e “Avaliação de Desenho de Pesquisa” foram as minhas escolhidas para o Summer Institute, entre junho e julho de 2002. Complementarmente, tratei de viabilizar
também
minha
inscrição
no
Summer
Program
mantido
quase
simultaneamente na mesma Universidade, entre julho e agosto, pelo Consórcio InterUniversitário de Pesquisa Política e Social (ICPSR). Se o Institute, mantido pelo ISR, concentrava-se fundalmentalmente em técnicas empíricas (principalmente survey), o programa do ICPSR ampliava sua atuação rumo a qualquer treinamento metodológico – para teorização inclusive. Aproveitei para ir em
busca de treinamento em técnicas formais de análise teórica: teoria dos jogos, escolha racional e – grande novidade, sobre a qual eu tinha informação apenas perfunctória – simulações computacionais, baseadas em agentes, de sistemas adaptativos complexos. Em 2003, desempenhei temporariamente na PRMBH um papel diferente. Instruído por minha atuação na Câmara de Graduação, estava determinado a tentar explorar mais plenamente as possibilidades de bolsas existentes, e o edital do PAD, agora que eu o conhecia melhor, parecia-me feito por encomenda para um projeto como a PRMBH: guarda-chuva com vários módulos, abrigava vários subprojetos que permitiriam natural alocação dos bolsistas, sem risco de especialização precoce. Submeti em 2002 o projeto, e reservei para mim o papel de coordenador (anexo 9.3). Ganhamos as nove bolsas pedidas, e assim foi possível alocar um bolsista para cada módulo do questionário que tinha ido a campo em 2002. Retrospectivamente, a inciativa de constituir aquele grupo PAD é uma das coisas de que mais me orgulho em minha vida na Universidade. Mas foi penoso. Zelar para que cada um dos nove bolsistas se acertasse minimamente numa rotina satisfatória com o seu orientador não foi fácil, e ocasionalmente exigiu de mim alguma criatividade na sintonia fina. E a sala para os bolsistas, com que eu cheguei a sonhar no início, logo se mostrou totalmente impossível. Com a aproximação do fim do ano, confesso que eu me preocupava com o relatório que seríamos capazes de produzir. Sem motivo: marquei um seminário final para o início de dezembro, em que cada bolsista deveria apresentar um trabalho. Cuidei de aplacar a ansiedade deles, dizendo que bastava alinhavar umas dez páginas de análise do respectivo módulo e estaria ótimo. O reultado foi um relatório de cerca de duzentas páginas, de qualidade bem superior à que eu esperava, e que dava um testemunho bastante impressionante do rendimento do projeto na formação daqueles estudantes. Ao acertar-se que eu assumiria, em março de 2004, a coordenação da graduação, passei de bom grado, com a sensação do dever cumprido, a coordenação do grupo para Jorge Alexandre Neves, do SOA. O PAD completaria o triênio que o edital lhe permitia e funcionou ainda em 2004 e 2005. A maior parte daqueles bolsistas foi depois absorvida com sucesso em programas de pós-graduação Brasil afora. Paralelamente à montagem do projeto do PAD, também no final de 2002, Solange Simões me encomendou a confecção de uma rationale específica para dar um fio condutor ao Hubble, sobre desigualdade política, a ser levada ao Encontro da IPSA que
teria lugar em 2003, em Durban, África do Sul. Penei para escrever meia dúzia de páginas originariamente em inglês, mas acabei aprontando um exerciciozinho satisfatório, que mais de uma pessoa me disse haver gostado. Foi muito bom ter podido participar de reuniões do Hubble com a presença de colaboradores de todos os lugares envolvidos com o projeto. Mas o Congresso propriamente dito foi uma decepção: fiquei com a impressão de que essas associações internacionais são talvez grandes demais, com gente demais falando, e pouca gente assistindo. Quanto à África do Sul, é claro, vale a visita, com sobras – especialmente para um sociólogo. CNPq, ABCP, Anpocs... Na volta, uma semana em Buenos Aires com a esposa, e a escala em Porto Alegre: Cepik me convence a pedir bolsa ao CNPq, na forma de um projeto guarda-chuva para minhas múltiplas atividades: assim, acrescentei a rationale de Durban a um artigo sobre capital social e confiança escrito no início do ano sob inspiração dos debates em torno da PRMBH, recém-publicado. E tinha ali de fato um roteiro decente de prospecção científica – cujo preenchimento, claro, fica sempre aquém do esperado quando o concebemos. Naqueles meados de 2003, quando decidi encaminhar ao CNPq o projeto “Capital Social, Confiança Interpessoal e Desigualdade Política: questões de teoria e método” com vistas a uma bolsa de produtividade, eu era um professor de ciência política, de perfil discreto, cuja rotina apenas começava muito lentamente a extravasar os limites de seu departamento. Docente desde 1994, mas doutor havia apenas cinco anos, e com a atenção dispersa que dificultava (e, de fato, ainda dificulta) minha “especialização” em algum campo específico da disciplina, eu pretendia apenas, com o projeto, orientar meu próprio trabalho, impor-me uma pauta de investigação que me permitisse tocar, de forma mais produtiva, basicamente a mesma rotina acadêmica discreta que vivera até ali. Nos quatro anos subseqüentes, porém, eu concluí um mandato de coordenador do curso de graduação em ciências sociais e iniciei outro, de subcoordenador; passei a atuar regularmente em algumas comissões e conselhos no âmbito da Reitoria da UFMG; mantive colaboração ocasional (mais intermitente do que eu gostaria, é verdade) com um colega da área de ciência da computação, sediado no Rio de Janeiro; exerci por dois anos, juntamente com dois outros colegas, a coordenação de um grupo de trabalho na ANPOCS – e, com um terceiro colega, um seminário temático e uma nova proposta de GT,
assim como coordenei uma mesa redonda em 2007; passei a integrar o comitê editorial de duas revistas científicas de fora do meu estado (incluindo a Revista Brasileira de Ciências Sociais, da ANPOCS); e tornei-me o coordenador da área de teoria política no âmbito da Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) – talvez a principal surpresa, já que tenho dificuldade em especializar-me num tema, e demorei a identificar-me, a meus próprios olhos, como pertencente a alguma área específica. Tudo isso se deu de forma não planejada, não solicitada, como conseqüências talvez impreditíveis de laços anteriores de colaboração ocasional e camaradagem profissional. Talvez a rede de amigos produzida ao longo de quinze anos de atividade na área de ciência política no Brasil tivesse chegado a um ponto de maturação e adensamento que, insuspeitadamente, tornava esses desdobramentos prováveis. Tudo isso terá certamente produzido efeitos sobre os rumos do projeto por mim proposto ao CNPq. Para o bem e para o mal, presumo. O certo é que, embora eu descortine hoje um horizonte de trabalho e de produção intelectual para os próximos anos com muito mais clareza e maturidade do que era capaz em 2003, essas novas circunstâncias fizeram o projeto concebido então tomar rumos imprevisíveis, com prejuízo para a rapidez da produção de resultados – ainda que, vá lá, não necessariamente para a sua qualidade. Os efeitos dessa roda-viva teriam sido, porém, muito mais graves, não fosse o excepcional trabalho dos bolsistas que tive o privilégio de orientar durante o triênio, contemplados sucessivamente com bolsas de iniciação científica pelo CNPq. Fabrício Mendes Fialho, André Drumond Mello Silva, Natália Salgado Bueno e, mais recentemente, Tatiana Marcelino Goulart têm sido muito mais que auxiliares: são colaboradores sem cujo concurso todo o meu trabalho dos últimos anos apresentaria resultado ainda mais precário. Embora tenham sido sucessivamente contemplados com a única bolsa disponível (Natália era, afinal, bolsista PET durante a maior parte do tempo), de fato os três primeiros colaboraram comigo durante todo o período, e seu entusiasmo, competência e seriedade profissional permitiram-me funcionar a maior parte do tempo simplesmente como o parceiro “sênior” de uma equipe de pesquisa cujos integrantes possuíam interesses profissionais complementares, porém autônomos, e contribuíam de moto próprio para os rumos da pesquisa desenvolvida sob a rubrica da minha bolsa de produtividade em pesquisa junto ao CNPq.
Trilhando as pegadas de meu artigo “Capital Social e Confiança: questões de teoria e método”, publicado em novembro de 2003 pela Revista de Sociologia e Política, da UFPR (no 21), Fabrício Fialho – originário da primeira leva de bolsistas do PAD, em 2003 – apropriou-se com autoridade do tema do capital social, dedicando-lhe uma monografia de graduação que se ocupa de modo abrangente e arguto em discutir a forma como aparece o tema na literatura corrente. Sociólogo de rara qualidade, tem sido, também, um auxiliar direto imprescindível e incansável, que inúmeras vezes socorreu-me de apuros diversos. Mais recentemente, já após sua admissão ao mestrado em 2006, Fabrício tornou-se colaborador direto também em trabalhos cuja autoria dividimos com Mario Fuks, buscando firmar parceria em assuntos de participação política e opinião pública que – devido sobretudo a meus embaraços de agenda – ainda não produziu os frutos esperados (ver anexo 3.2). Prepara-se, agora, para defender sua dissertação de mestrado, sobre problemas relativos à operacionalização empírica do conceito de participação política, ao mesmo tempo em que tenta viabilizar um estágio de alguns meses na Universidade da Cidade do Cabo, com Jeremy Seekings, com o propósito de estreitar os laços que unem os participantes do Hubble Social. André Drumond trouxe à consideração do grupo o tema da raça como objeto empírico pertinente para a investigação dos temas contemplados no projeto, e desde então temos a ele dedicado boa parte do trabalho produzido, mesmo depois que ele já tinha se distanciado do grupo, rumo a outros trabalhos. Natália Bueno simplesmente tomou para si a agenda de pesquisa parcimoniosamente esboçada na rationale que fiz para Durban a pedido de Solange (“The Assessment of Political Inequality in a Comparative Survey: Some Preliminary Notes”). Traduzidas e aproveitadas logo depois em meu projeto submetido ao CNPq, essas notas tornaram-se – para minha surpresa – referência constante das preocupações acadêmicas de Natália, o que muito ajudou o grupo a amadurecer teórica e empiricamente a problemática ali esboçada. Neste momento, não obstante sua partida para mestrado em ciência política na USP sob a orientação de Adrián Gurza Lavalle, Natália e eu ainda temos nos encontrado regularmente para fazermos os últimos ajustes num paper escrito em co-autoria (“Deliberação, Representação e Desigualdade Política”) que, apresentado no Congresso da ALACIP em 2006, será brevemente submetido por nós para publicação na RBCS (ver anexo 3.1). É impossível exagerar a importância da constituição desse pequeno grupo para o destino do projeto. Pois, tendo-me visto compelido – de maneira totalmente fora de minhas
cogitações iniciais – a assumir a coordenação do curso de graduação em ciências sociais da UFMG mais ou menos simultaneamente à implementação de minha bolsa de produtividade, a rotina administrativa teria absorvido todas as minhas energias se eu não tivesse podido contar com a interlocução de um grupo tão coeso e talentoso. Mas nem eles foram capazes de me salvar completamente de mim mesmo: depois de passar dois de meus três anos de bolsa como coordenador de curso, lancei-me em 2006 (depois de passar a coordenação a Eduardo Vargas e assumir a subcoordenação a seu pedido) a uma furiosa busca do tempo perdido: espalhei resumos em congressos, prometi trabalhos variados, e tratei de ir à luta. Fiquei tão empenhado em produzir um relatório decente no devido tempo, que me esqueci de conferir a deadline do pedido de renovação. Foi só já próximo do fim do ano (novembro ou dezembro) que, advertido pelo Mario Fuks, fui verificar: o prazo já havia expirado desde agosto. Foi, de longe, meu pior e mais doloroso fiasco pessoal: como é que se explica uma coisa dessas em casa? Quase mil reais mensais pela janela, por causa de um protocolo bobo, fácil de ser feito a qualquer momento... Foi Danielle Fernandes, generosa, quem me ofereceu a solução. Renarde Nobre estava se afastando da tutoria do nosso programa PET do curso de ciências sociais, e ainda não havia um substituto. Ela insistia para que eu me oferecesse, e eu realmente não tinha alternativa. Confessei aos bolsistas, depois, que era pela grana que eu estava indo... Porém, de fato, tenho afeição especial pelo PET (fui eu mesmo bolsista na FACE em 1984), e a tutoria tem sido um prazer, à parte os inevitáveis pequenos aborrecimentos burocráticos. Assumi em maio de 2007, e pretendo cumprir aproximadamente três anos, antes de me candidatar novamente a alguma bolsa de produtividade junto ao CNPq: nem tão rápido que pareça estar fugindo, nem tão devagar que pareça provocação... Coordenador, de novo... A história de minha designação como coordenador do curso de ciências sociais tem lá também sua graça. Lembro-me de estar presente a uma Assembléia do DCP (não temos mais Câmara), em fins de 2003, e aparecer o ponto de que, findo o mandato do Élvio (e já havia de fato terminado há muito tempo), pelo princípio do rodízio entre as áreas, era a vez de o DCP assumir a coordenação. Se bem me lembro, o SOA nos perguntava se tínhamos a intenção de exercer a prerrogativa ou não. Obteve-se rápido consenso à mesa de que sim, já estava passando da hora de voltarmos a ocupar a coordenação etc.
Concorri para a decisão e a endossei com naturalidade – sem nem mesmo por um instante sequer passar pela minha cabeça a possibilidade que eu pudesse vir a ser o indicado. Naquele momento, a idéia de exercer eu mesmo a coordenação teria me parecido completamente surrealista. Na minha cabeça, havia no DCP um nome “natural” para o cargo: Vera Alice. Ex-diretora, ex-coordenadora, experiente, meticulosa, defendeu com clareza na reunião a importância de o DCP voltar a exercer a coordenação. Acredito que o nome dela estava na cabeça de todos naquele dia. (Dá o que pensar sobre a maneira leviana com que tomamos certas decisões, presumindo que alguém mais vá arcar com o ônus que estamos criando.) No dia seguinte, Vera Alice bateu à porta do meu gabinete. Falou-me de ótimas razões particulares para não assumir. E me deu ótimas razões, bem objetivas, pelas quais deveria ser eu o coordenador: eu era suplente da Câmara de Graduação já havia mais de dois anos, e tinha trânsito e acesso próprio junto à ProGrad; era o professor do DCP com melhor trânsito e inserção no SOA; e era, ao mesmo tempo, popular e respeitado entre os alunos da graduação, tanto como professor quanto por iniciativas quanto o PAD. Foi nocaute no primeiro assalto. Eu percebi instantaneamente que não tinha nada a alegar em contrário. Eu poderia, é claro, simplesmente bater o pé. Dizer não quero e pronto. Dane-se. Procurem outro. Não quero nem saber. Quero agora é ser pesquisador do CNPq, a Universidade que se vire. Em suma, alguma criancice dessas. Mas esse não sou eu. Diante do pedido da Vera, ou eu dava a ela de volta, com razões tão objetivas quanto as dela, algum outro nome do DCP, ou então eu estava obrigado a aceitar. Tive de admitir a possibilidade, falei que ia pensar, que íamos esperar um pouco pra ver o que acontecia etc., mas intimamente eu estava tratando de me preparar para aceitar o fato, inconcebível 24 horas antes, de que eu seria no ano seguinte o novo coordenador de nossa graduação em ciências sociais. Foi um contrapé. Eu tinha acabado de voltar à “ativa”, com dois artigos publicados em periódicos naquele ano de 2003, e me via de novo sugado para uma responsabilidade para a qual me sentia apenas precariamente preparado, e que certamente me drenaria as energias durante o biênio seguinte. Quando o meu nome circulou, Fátima Anastasia – num gesto pelo qual lhe agradeço – me procurou, disse que eu não tinha jeito pra essas coisas, todos sabemos, e que eu não deveria aceitar. Agradeci, mas disse a ela que simplesmente recusar não era uma opção: precisávamos encontrar um nome alternativo.
Fora isso, não tinha alegria com a perspectiva da coordenação, mas encarava como uma responsabilidade que alguém tinha de exercer, e a Vera tinha levantado razões que me tornavam opção natural. Desde então, adotei pra mim o seguinte critério: a Universidade me paga os salários, e funções administrativas têm de ser exercidas, segundo a regra atual, por nós, da carreira docente. Então, não posso em princípio rejeitar liminarmente a idéia de nenhum encargo específico. Mas estabeleci que não aceitarei reconduções, e nunca mais voltarei a exercer alguma função que já tenha exercido antes, salvo alguma atuação em órgão colegiado de que a minha eventual função venha a me fazer membro nato. Assim eu me tornei avaliador institucional do INEP em 2006, e assim eu aceitei integrar a Comissão de Sistematização do PDI na Diretoria de Avaliação Institucional de Reitoria em 2007. Segundo o mesmo critério, aceitei a minha indicação por minha chefe Marlise Matos para ser suplente de Paulo Henrique Ozório Coelho na representação da Fafich junto ao Conselho Universitário. Da mesma forma, aceitei ser conduzido a titular pela Congregação, e assim pleiteei assento na própria Congregação para melhor representála. Mas não tenho qualquer intenção aceitar reconduções ou indicações futuras para o Conselho Universitário. Élvio, encarregado oficial e ad aeternum da Sociologia para uma série de encargos, se diverte com esse critério, e fica apostando comigo por quanto tempo será que eu conseguirei sustentá-lo. De minha parte, tenho tratado de observá-lo, e já renunciei por causa disso a uma indicação apressadamente consumada. No fim das contas, de fato, um encargo como uma coordenação de curso é algo que compromete inequivocamente a produtividade de pesquisa de um docente. Mas tenho de admitir que o biênio 2004/2005 na graduação me foi bem mais leve que 1998/1999 no mestrado. Bem entendido, eu diria que a rotina cotidiana é mais pesada na graduação; se o coordenador deixar de despachar de modo praticamente diário, o serviço se acumula rapidamente, com conseqüências desastrosas. Mas eu me atreveria a dizer que você tem menos dor de cabeça, menos dissabores, que na pós-graduação. Parte disso se deve a uma maior padronização rotineira do fluxo de serviços da secretaria: com quatrocentos alunos, não poderia mesmo ser diferente. Mas acredito também que o fato de não comandar despesas (ou apenas despesas muito reduzidas) alivia enormemente a pressão sobre o coordenador: os aborrecimentos em torno de
autorização e planejamentos de gastos estão entre as minhas piores lembranças da época do mestrado. Para minha surpresa, até logrei organizar um pouco algumas coisas, reduzindo consideravelmente, com a ajuda da Cida e principalmente da Mônica, a confusão em torno do acerto da matrícula a cada semestre. Contribuiu para isso minha inclinação por fazer valer, de maneira um pouco mais estrita, as Normas Gerais da Graduação quanto às matrículas, restringindo bastante os casos em havia disposição para flexibilizar as regras e abrir exceções: adiar obrigatórias deixou de ser uma possibilidade rotineiramente aberta para os alunos, e modificar a matrícula já feita, só por motivo de força maior. Achei que haveria choro, ranger de dentes e imprecações, mas nem tanto. Só é preciso paciência por parte do coordenador. Com cinco minutos de audiência e explicações educadas, os estudantes invariavelmente se sentiam atendidos, mesmo que o pleito em questão tivesse de ser negado. Alguns dos meus alunos mais antigos, mais próximos, ocasionalmente se queixaram de que talvez eu tivesse sendo um tanto burocrático, não? Mas quando eu retrucava que alguém tinha de ficar sem almoçar para que lhes fosse facultado matricular-se e rematricular-se várias vezes durante o período do acerto, eles tendiam a concordar – e pediam então que a oferta das optativas viesse acompanhada de maiores informações, e eu procurava atendê-los, por minha vez, pedindo aos colegas detalhamento crescente das disciplinas. Em suma, foi até trabalhoso, sem dúvida, mas foi tranqüilo. E me deu uma visão operacional da gestão de um curso de graduação que melhorou muito a qualidade da apreensão que eu tinha dos temas da Câmara de Graduação. Na virada de 2004 para 2005, quando Cristina Augustin intensificou os trabalhos em busca de um fecho para a atualização das Normas Gerais da Graduação, eu acabei sendo um dos mais falantes nas reuniões, principalmente quando o tema era flexibilização curricular e formação complementar. A flexibilização Sou um entusiasta da flexibilização desde que essa era uma idéia vaga sobre a qual conversava com o Élvio nos corredores da Fafich, em meados dos anos 1990, recémadmitido à carreira docente. Considero primorosa a resolução do CEPE que em 1998 disciplinou a matéria. Mas a implementação é crítica para o sucesso da iniciativa, e a
ProGrad nunca chegou a ter uma estratégia amadurecida para isso. Pior, diferentes lugares da universidade entenderam coisas diferentes sob a designação da flexibilização. Pior ainda: essas coisas diferentes ocasionalmente eram contraditórias entre si, e as diversas iniciativas não raro sabotavam-se mutuamente. O melhor exemplo veio das Engenharias. Naquela época, começou a generalizar-se por lá (até por determinação de novas diretrizes curriculares vindas de Brasília) a presença de certa “carga de humanas”, obrigatória, nas matrizes curriculares. O pessoal de lá começou a chamar essa iniciativa de flexibilização, e a tal carga de humanas de formação complementar. E a ProGrad sancionou a interpretação, sem dar-se conta de que essas diretrizes eram não apenas distintas, mas eram mesmo (como se diz no futebol) uma “bola nas costas” da política de flexibilização que a UFMG tentava implementar. Pelo simples fato de que em vez de favorecer a adoção de currículos enxutos no que concerne a atividades obrigatórias e propriamente flexíveis, aumentava a rigidez curricular com uma exigência a mais, de natureza obrigatória. (E isso apenas no que toca ao aspecto formal, pra não entrar no mérito de que – a meu juízo – a diretriz é profundamente equivocada por imaginar que uma carga horária cursada em ciências humanas torna alguém um cidadão melhor ou algo parecido. Essa é uma ilusão freqüente, que eu lamento constatar ser bastante disseminada na universidade, mas faz uma caricatura lastimável da formação em ciências humanas.) Insisti nesse ponto inúmeras vezes, com uma veemência que estava a ponto de me tornar uma espécie de desafeto do coordenador da Engenharia Civil, Roberto Márcio, até que um dia a gente se encontrasse só os dois no saguão da Reitoria, por acaso, e aí pudesse conversar um pouco com calma. Não tenho dúvida de que a intenção por trás da “carga de humanas” é a melhor possível, mas tenho a convicção de que ela recorre ao instrumento errado. No que toca aos propósitos por eles buscados, muito mais eficaz do que forçar os estudantes de engenharia a assistir aulas de sociologia em que não estão interessados seria, a meu juízo, instituir séries de conferências sobre temas variados, valendo créditos mediante algum tipo de avaliação de aproveitamento. Caberia aos colegiados dos cursos decidir se isso deveria ser obrigatório ou não, mas em todo caso é muito melhor que matriculá-los em disciplinas de humanas que, afinal, querem formar profissionais da área de humanas, e não – por favor – “bons cidadãos”. O estudante de Engenharia deverá ser sempre perfeitamente bem-vindo em qualquer disciplina da Universidade, no âmbito de uma política de flexibilização – mas somente quando ele
optar livremente por isso, em busca de uma genuína formação complementar por ele escolhida. O caso da Engenharia, porém, é apenas um exemplo – ainda que talvez o mais evidente. A impressão que eu tenho é que, no entusiasmo pela flexibilização, por um tempo a Câmara de Graduação pareceu acreditar que qualquer forma de “flexibilização” era bem-vinda, e essa falta de clareza conceitual comprometeu, infelizmente, uma implementação expedita da política. Isso ficou claríssimo quando Cristina Augustin começou a reunir a Câmara toda sucessivamente (titulares e suplentes), para reuniões de dia inteiro em locais como a Estação Ecológica do Campus ou o Museu de História Natural no Horto (chegamos mesmo a nos deslocar todos para Diamantina e Tiradentes em dois fins de semana), com o propósito de finalizar a adaptação das Normas Gerais da Graduação ao novo marco. As primeiras reuniões foram penosíssimas, pois havia várias compreensões diferentes, em cada ponto que dizia respeito à flexibilização. Chegamos a passar um dia inteiro no Horto às voltas com um único artigo (longo, é verdade), que dispunha justamente sobre a formação complementar. Ao fim do processo, por volta de maio de 2005, às vésperas da campanha para a sucessão da Reitora Ana Lúcia Gazzolla, considerável consenso já havia sido alcançado, e o documento estava bastante maduro. Mas persistíamos discutindo artigo por artigo, em dispositivos periféricos, que ademais acabariam podendo ser modificados nos colegiados superiores. Lembro-me de concordar com Antônio Emílio (meu interlocutor favorito nessas conversas) em que o documento tinha de sair já, ainda no primeiro semestre, ou seria atropelado pela campanha. Infelizmente, estávamos corretos. Eleições: com Jacyntho, e na Congregação da Fafich Além de Antônio Emílio, Jacyntho Lins Brandão foi outra pessoa que conheci e aprendi a admirar na Câmara de Graduação, e nessas reuniões sobre as Normas. Eu sempre tinha votado “à direita” (que me perdoem meus candidatos...) nas eleições da Universidade, e muito confortavelmente. Votara em Sá Barreto em 1997, e em Ana Lúcia em 2001. Quando Jacyntho se lançou candidato e me convidou a aparecer nas reuniões pra conversar, em questão de dias eu tinha um candidato a Reitor, e me vi pela primeira vez (e talvez a última) engajado nos bastidores de uma campanha na Universidade. Digo talvez a última porque, Jacyntho que me perdoe, mas realmente detesto o nosso
procedimento, desde 1985. Recentemente, até escrevi um pequeno mas veemente artigo sobre isso em nosso Boletim da UFMG (anexo 6.6). Ironicamente, na mesma época em que eu acompanhava Jacyntho pelo campus como candidato a Reitor, fiz uma confusão na Congregação da Fafich a propósito da eleição do nosso Diretor. Na primeira reunião da Congregação dedicada a isso, manifestei, como sempre, minha opinião divergente quanto ao processo. Só que, dada a apatia que costuma predominar em colegiados, o fato de eu ter-me pronunciado, ainda que para atacar o processo, foi razão suficiente para me pedirem que presidisse a Comissão Eleitoral. Avisei que eu não poderia fazer isso sem dar consideração séria às possibilidades de mudar o procedimento. Ou nunca mais poderia defender a mudança. Não sei se não acreditaram, mas provavelmente não se importaram e mantiveram minha indicação. E fiz a confusão. Propus, nos limites estreitos das brechas que o Estatuto e o Regimento da UFMG permitiam, uma eleição pela Congregação, antecedida por uma consulta prévia (prevista nas normas da UFMG) realizada independentemente do registro de candidaturas (anexo 10.15). Meu propósito, como sempre, era levar a coisa tão próxima quanto possível da idéia de uma eleição por escrutínios sucessivos, com quorum qualificado, sem candidaturas prévias. Já na Comissão, eu só prevaleci por meu próprio voto de desempate. Na Congregação, fui devidamente derrotado, com um padrão de votação muito simples: Filosofia, História, Ciência Política e Sociologia e Antropologia votaram contra; Comunicação e Psicologia votaram a favor. Sem exceção (fora eu). O curioso é que eu praticamente não tinha contatos rotineiros com ninguém da Comunicação ou da Psicologia, ao contrário dos outros departamentos, onde eu conheço muito mais gente, e interajo com maior freqüência. Talvez isso queira dizer alguma coisa. Seja como for, foi uma sessão memorável, que eu apreciei imensamente que tivesse ocorrido. Na saída, minha querida Patrícia Kauark, da Filosofia, veio me cumprimentar pela elegância com que eu conduzira tudo. Ganhei o meu dia. Apesar de minhas reservas quanto ao procedimento adotado, era o procedimento adotado, e acompanhar o Jacyntho durante a campanha foi um prazer. Ás vésperas da eleição fiz circular uma mensagem (Nagib me fez amigavelmente compreender que a fiz circular mais do que deveria, de fato...) em que comparava a campanha do Jacyntho ao exército de Brancaleone, do famoso filme de Mario Monicelli. Foi um aprendizado intenso, e eleições são sempre excitantes, mesmo quando tranqüilas como a última.
Aprecio os méritos do estilo, digamos, mais “executivo” de gestão, discernível na postura tanto de Sá Barreto quanto de Ana Lúcia. Quando Sá Barreto apareceu, saudei a postura mais propositiva da Reitoria. Mas aprecio também as virtudes da “circulação de elites”. Depois de dois mandatos, parecia-me que uma gestão com Jacyntho poderia constituir-se em bem-vindo “freio de arrumação”, provavelmente a ser superado um ou dois mandatos depois, por nova pisada no acelerador. Mas, seja como for, a natureza “brancaleônica” da empreitada do Jacyntho fica clara quando se pensa que ele se deixou ficar, na véspera da eleição, mais de uma hora reunido com um pequeno punhado de estudantes do curso de ciências sociais, quando cada voto de professor equivalia ao de oitenta alunos. Naquela sala não devia haver nem o equivalente ao voto de um terço de um professor... Na noite da apuração, após a vitória do Ronaldo Pena, eu cumprimentava o Ricardo Takahashi (meu conhecido desde os nossos tempos de DCE, lá pra 1985...), e ele me contava que as projeções que eles tinham não estavam conseguindo dar a eles uma pista segura sobre se haveria ou não segundo turno (até aí, eu estava concordando, porque as nossas também não), pois a projeção sempre dava algo como 49%, 51%, por aí, conforme algumas estimativas adotadas. E aí eu caí das nuvens. Acho que eu disfarcei bem, mas cheguei a me sentir ridículo, porque as nossas projeções não passavam nem perto desse grau de precisão... Também, quem chega a gastar tempo com os meninos do CACS na véspera da eleição não pode mesmo estar se importando com cálculos eleitorais. Acredito que o próprio Jacyntho também sabia disso. ABCP Complementarmente, muitas outras circunstâncias imprevistas dessa época vieram reorientar o foco de minhas preocupações. A primeira delas foi meu envolvimento com a ANPOCS. Mas o desdobramento mais inesperado dentre todos os eventos que tiveram lugar na minha vida profissional nos últimos anos foi a minha vinculação à ABCP, na qualidade de coordenador da área de Teoria Política da Associação. O convite da presidente, Maria Hermínia Tavares de Almeida, veio reforçar minha vinculação pessoal à área de teoria, que era na melhor das hipóteses hesitante até então. Mas, feito já em 2005, após seis anos de ensino de metodologia e três anos de atuação no interior de meu grupo na ANPOCS, permitiu-me enquadrar devidamente essa identidade profissional. De fato, me incomoda a reputação um tanto livresca ou erudita de que goza o trabalho
teórico entre nós: o teórico como alguém metido entre livros (e quase que apenas entre livros), a divagar sobre coisas abstratas, de obscuros vínculos com a realidade – ou “acima” de miudezas empíricas de “médio alcance”. Prefiro conceber a prática da teorização de maneira empiricamente informada, numa divisão de trabalho bem entendida – voltada não para a delimitação de territórios que mal se comunicam, mas acima de tudo para uma especialização de funções no interior de um mesmo “processo de produção”, em que resultados empíricos e reenquadramentos teórico-conceituais se realimentam mutuamente. De fato, esta seria uma postulação banal, não fosse o fato de que, efetivamente, o trabalho teórico e a investigação empírica em ciências sociais enfrentam problemas graves de comunicação. Alguma reflexão sobre este tema tive ocasião de amadurecer em 2005 na colaboração com Cícero Araújo (anexo 2.1) que resultou num capítulo do livro Para onde vai a Pós-graduação em Ciências Sociais no Brasil (org. Carlos Benedito Martins) publicado pela ANPOCS. Esse esforço de diagnóstico empírico orientado não só por teoria normativa, mas também por enquadramento sociológico, poderá (espero) encontrar ilustração num texto (de alguma repercussão) que acabei produzindo em dezembro de 2006, a propósito do projeto de reforma política que então tramitava na Câmara dos Deputados (anexo 1.7), que deriva tanto de uma participação em seminário da Câmara em 2004 quanto de minha experiência recente na graduação com as disciplinas “Política IV” e “Política Brasileira II” (anexos 10.13 e 10.14), ambas de natureza mais empírico-comparativa do que as aulas de teoria ou metodologia que eu estou mais acostumado a dar. Metodologia Desde o primeiro semestre de 2000, eu havia sido encarregado da disciplina de Metodologia, obrigatória no Mestrado em Ciência Política. E lá me encontro até hoje, tendo já lecionado a disciplina em nove anos consecutivos. De fato, desde 1995, com a aposentaria de Mônica Mata Machado, a disciplina havia se tornado um problema, e recorríamos invariavelmente aos serviços da mesma Mônica, que gentilmente colaborava
voluntariamente
conosco,
como
solução
provisória
enquanto
encaminhávamos algo mais definitivo. José Eisenberg foi quem me convenceu que deveria eu mesmo assumir a disciplina. Aparentemente, se entendi bem, credenciavamme para isso o fato de ser formado em Economia (o que me dava mais quilometragem em estudo de estatística que à maioria de meus colegas – o que não tem relação
necessária com competência na matéria) e, fundamentalmente, ter mais gosto por ciência, de um modo geral, que por política especificamente: eu havia realizado um investimento pessoal em filosofia da ciência ao final da graduação – e posso afirmar muito tranqüilamente que nunca em minha experiência como estudante universitário, de graduação ou pós, eu fui tão bom estudante quanto nas quatro disciplinas que cursei com Ricardo Fenati e Carlos Drawin em 1987 e 1988, entre a minha graduação em Economia e o início de meu mestrado em Ciência Política no IUPERJ. (Lembro-me de conversar com Drawin sobre uma eventual mudança de planos, com um mestrado em Filosofia. Ele, sabiamente, ponderou que, vindo da Economia, um mestrado em Ciência Política me deixaria abertas mais possibilidades profissionais que em Filosofia – que me retringiria à opção acadêmica...) Assim, assumi em 2000 a Metodologia, de maneira quase simultânea à criação do MQ e ao lançamento do Hubble. Sabia pouco sobre o que eu queria exatamente fazer na disciplina; sabia mais sobre o que não queria fazer. Ironicamente, o que eu não queria fazer era justamente replicar as credenciais básicas que me haviam levado até ela: eu não queria lecionar nem um curso de estatística (como eu tivera, por exemplo, no IUPERJ, onde tive o privilégio de ser aluno de Nélson do Valle Silva), nem um de filosofia da ciência (bastante comum nas pós-graduações Brasil afora, pelo que se pode depreender dos programas disponíveis). Rudimentos de filosofia da ciência me parecem ser elemento indispensável de boa formação acadêmica (sobretudo quando se trata de formar cientistas), mas de fato me parece excessivamente genérico restringir os alunos a um nível de análise tão abstrato quando se trata de habilitá-los a produzir uma dissertação em 24 meses. No outro extremo, estatística é ingrediente operacional a qualquer cientista, mas simplesmente me faltava a competência específica necessária para ser um bom professor de estatística – e ainda me preocupava a lacuna que fatalmente se abre em outros temas metodológicos relevantes (especialmente desenho de pesquisa e lógica da validação) quando nos dedicamos a simplesmente tentar recuperar certo prejuízo em estatística, por mais importante que esta seja.12 De fato, a presença do MQ me dispensou desde o início de preocupações maiores com introduções operacionais a qualquer técnica específica, ou à própria estatística – já que esse objetivo 12
Uma elaboração mais extensa das minhas opiniões sobre o treinamento metodológico na formação pósgraduada em ciência política pode ser encontrada em Araujo & Reis (2005), “A Formação do PósGraduando em Ciência Política”, que apareceu em coletânea preparada pela ANPOCS sobre a pósgraduação em ciências sociais no Brasil.
seria atendido por nosso programa intensivo, muito melhor do que qualquer disciplina obrigatória seria capaz de fazer. Pois bem. Tateei um bocado em busca da forma exata desse meio-termo. Comecei por ir em busca de uma série de temas teórico-metodológicos que me pareceram salientes: após a aula preliminar sobre filosofia da ciência (que ainda está lá, afinal), vinham, por exemplo, análise multivariada (no contexto de uma discussão sobre surveys), a discussão de aspectos lógicos relevantes para a validação ou invalidação de resultados em nosso trabalho, elementos (rudimentares, é claro) de estatística, problemas metodológicos associados à escala temporal envolvida (“médio alcance” x “macrohistória”) etc. Tudo isso seguido por uma série de temas de natureza, digamos, metateórica: a discussão da validação da explicação funcional, elementos da controvérsia em torno da técnica da escolha racional em particular e da teorização formal de maneira geral; e, mais rapidamente, discussões de método sobre análise comparativa e comportamento eleitoral. Depois de uns dois anos lecionando 60 horas-aula, a redução da carga horária para 45 horas (na prática, sua redução pela metade, já que nessa passagem ela caiu de 30 para 15 sessões) me fez ter que me virar pra acomodar minha montagem no novo formato. Algumas coisas acabaram indo ao mar (aulas específicas sobre análise comparativa e sobre aspectos técnicos do modelo espacial, por exemplo), mas a feição geral do curso continuou fundamentalmente a mesma: um curso, afinal, sobre a lógica da validação científica – e cada vez mais centrado na discussão do desenho da pesquisa, sobretudo após a incorporação mais explícita, nos últimos anos, da discussão sobre desenho quasiexperimental de pesquisa, tipos de validação e ameaças à validade. No afã de montar algo realmente útil para os alunos submetidos à pressão de redigir uma dissertação de mestrado, procurei sempre montar uma disciplina que se mantivesse equidistante dos extremos, e perseguisse ao mesmo tempo os temas metodológicos que me pareciam mais relevantes e/ou aqueles que eu me sentisse mais apto a enfrentar com alguma qualidade (anexo 10.4, para uma versão recente do programa). O grande problema era a avaliação. Eu tentava convencer os alunos a produzirem um texto que fosse não um projeto (que é uma peça sempre “defensiva”, sempre uma defesa de uma dada estratégia pré-escolhida), mas uma discussão sobre prós e contras de diferentes projetos possíveis, diferentes possibilidades de perseguição da problemática escolhida
numa dissertação de mestrado. Afinal, eles estavam no primeiro semestre do mestrado, e, pelo cronograma oficial, tinham ainda mais de seis meses para submeterem um projeto a homologação pelo Colegiado. Mas não adiantava: por mais que eu me esmerasse em explicar o que queria, o que eu recebia era, sempre, uma primeira versão do projeto da dissertação. De fato, no primeiro semestre de 2002, quando tive de comprimir duas disciplinas da pós-graduação (Metodologia incluída) em dois meses, para poder partir para os Estados Unidos no final de maio (por causa da greve de 2001, o semestre começara apenas no início de abril), eu já começava a me cansar da disciplina depois de apenas três anos, incapaz de me renovar nela e, comigo, renovar o valor da experiência para os seus alunos. Foi a ida a Michigan – mais especificamente, a disciplina sobre desenho de pesquisa lá cursada com Bill Yeaton – que me deu as pistas para a renovação da disciplina e que, pelo menos para mim, tornou-a um desafio que permanece interessante até hoje. Essas pistas consistiam menos em conteúdo lecionado que na forma de avaliação. Bill Yeaton passava exercícios sucessivos que, em poucas semanas, transformavam problemas de pesquisa brevemente (e superficialmente) formulados em agendas densas que se desdobravam com considerável clareza conceitual e analítica ante nossos olhos. Em relação a o que eu fazia antes, tratava-se fundamentalmente de chamar para mim o enunciado preciso dos parâmetros analíticos do trabalho crítico que eu pedia os alunos para fazerem sobre os seus próprios projetos. Depois de algumas variações experimentadas nos primeiros anos, hoje o trabalho tomou a forma de um longo exercício de 18 questões que os alunos recebem no primeiro dia de aula, respondem (numa primeira versão) nas primeiras semanas da disciplina, trocam as respostas entre si, comentam por escrito o trabalho de um dos colegas, e depois entregam, ao fim do semestre, a versão final do próprio trabalho (para o exercício em sua forma atual, ver anexo 10.5). O formato e o roteiro do exercício derivaram em grande medida da estrutura da disciplina, além das lições aprendidas com Yeaton. Hoje, porém, é a disciplina que gira em torno do exercício, embora eu ainda não tenha enfrentado, a sério, o trabalho de reestruturação do programa que poderia ser induzido por esse novo enquadramento. É um exercício difícil, sem dúvida, mas sua qualidade como instrumento de avaliação depende da apreensão que o professor faça dele. Se for em busca de uma apropriação
plenamente satisfatória de cada questão pelos alunos, ele certamente estará cortejando o desastre, já que acredito mesmo que qualquer um de nós, docentes, teria reais dificuldades em responder a um questionário como aquele sobre nossas próprias pesquisas. Mas se se comparam as duas versões dos trabalhos que os alunos fazem, com freqüência se encontram progressos consideráveis. E o objetivo da disciplina, de propiciar o maior amadurecimento possível do trabalho dos estudantes no esforço de redigir suas dissertações, acaba relativamente alcançado. Eles sofrem, sem dúvida. Mas acredito, até pelo retorno deles mesmos, que aprendem algo, ao cabo, sobre matéria altamente abstrata e valorativa – e com um enquadramento bem prático durante a execução da tarefa. Tenho sido instado (principalmente por Raquel Novais, que fez a disciplina há quatro anos) a transformar esse roteiro num livro. Vista sob a perspectiva de minha atual (falta de) rotina, a empreitada me parece um tanto irrealista. Mas eu gostaria muito de realizá-la, sem dúvida. Na Anpocs, pelo direito à apatia política... Eu me encontrava às vésperas daquele “semestre” vertiginoso de dois meses entre abril e maio de 2002, preparando o embarque para Michigan, quando, pela primeira vez na vida, recebi convites para participar do encontro anual da Anpocs, em outubro daquele ano. Desde 1994, eu havia adotado a rotina de, salvo circunstâncias excepcionais, comparecer regularmente à Anpocs. Assim, eu havia comparecido por conta própria, como espectador, a cinco dos oito encontros anteriores. Não foi de fato uma estratégia deliberada com vista a propósito algum, mas apenas intenção de manter-me informado e familiarizado com a paisagem de minha área profissional. É provável, contudo, que a insistência em simplesmente integrar a cena do Encontro, pelo menos no plano social, tenha produzido no devido tempo os efeitos profissionais que se seguiram. O primeiro convite veio de José Eisenberg. Ele havia deixado o DCP rumo ao Iuperj poucos anos antes (em 2000, creio), e antes disso éramos interlocutores habituais, freqüentes e bastante amigáveis, ainda que com opiniões quase sempre divergentes. Tínhamos a saudável disposição mútua de concordarmos em discordar sobre quase tudo. E comprazíamo-nos com isso. Após sua ida para o Iuperj, Eisenberg tornou-se, junto com Cícero Araújo, da USP (que se tornaria um de meus mais queridos parceiros nos anos subseqüentes), coordenador de um GT na Anpocs sobre “República e Cidadania”, que operou no biênio 2002/2003. Antes, porém, em 2001, teve lugar um
seminário temático com o mesmo título, que – como costuma acontecer – antecipou e preparou o terreno para o GT subseqüente. No esquema comparativamente mais informal (leia-se, menos informatizado) em que esses GTs operavam na época, coubeme em 2001 a coordenação de uma das mesas do GT pelo simples fato de que eu estava por ali para assistir à sessão, conversando, antes do início, com meu amigo coordenador. Na mesa, debatida por Wanderley Guilherme dos Santos (coordenador pára-quedista, fiquei aflito, mas não consegui me atrever a interrompê-lo quando estourou o seu tempo...), o próprio Eisenberg apresentou um trabalho, intitulado “Para além dos interesses: notas republicanas sobre a ética das virtudes”, cujo argumento me pareceu ter implicações francamente autoritárias. Pois (como ainda hoje se pode recuperar do seu
resumo,
em
http://www.anpocs.org.br/encontro/2001/01st18.htm#12)
ele
condicionava “a legitimidade de uma ordem política que se pretenda democrática” ao “esclarecimento e articulação de virtudes cívicas que resultem em modelos de caráter para o cidadão”, subordinando assim a legitimidade política dos interesses a um inespecificado grau de virtude cívica, presumo, do interessado. Talvez eu seja convencional demais, mas a tese simplesmente chocava minhas intuições mais básicas sobre a política. Quando abriu-se o debate, não resisti à tentação de polemizar um pouco (embora atendo-me ao teor de sua exposição, e evitando, de fato, pautar o debate pelos adjetivos aqui utilizados), e alinhei reservas. Depois de alguma troca de ponderações, a certa altura Eisenberg concluiu, enfático, com algo mais ou menos nesses termos: “a ênfase específica na liberdade e nos direitos é algo que retarda, mais que favorece, a emancipação humana”. Dei-me por satisfeito. Tínhamos concordado, mais uma vez, em discordar. Durante o mesmo segundo semestre de 2001 (não posso dizer na mesma época, porque estávamos em greve no momento da Anpocs...), eu lecionava no mestrado uma disciplina optativa sobre “Participação Política e Democracia Deliberativa” (anexo 10.6), que me havia sensibilizado para alguns riscos da desqualificação dos interesses. Ouvir o Eisenberg reforçou essa cautela e cristalizou uma posição geral, digamos, conservadora quanto a isso. Concebi naquele momento um artigo sobre democracia deliberativa que procuraria apontar como ela tampouco se livra de problemas de representação, produz tensões com o ideal participativo e – na falta da presunção da unanimidade em algum ponto – absorve consigo todos os mesmos paradoxos que a social choice aponta na decisão por voto. Depois de ouvir o Eisenberg, porém,
preocupava-me, sobretudo, a relativa desqualificação da legitimidade política do interesse pessoal, que aparecia com clareza, por exemplo, também em textos de Joshua Cohen. Provocado por essas teses, propus, no final de 2001, um paper sobre o tema, mas enunciado em termos bem vagos, ao Marcelo Jasmin, então coordenador da área de teoria na ABCP (eu nunca poderia imaginar então que eu viria a sucedê-lo dali a quatro anos). Felizmente, a viagem para os EUA abortou o paper (seu resumo me parece hoje patentemente imaturo), e foi somente a colaboração com Natália Bueno por ocasião de um Encontro da ALACIP em 2006(!) que me fez afinal escrevê-lo. Neste momento, ele ainda(!!) se encontra sob revisão (interrompida para a redação deste memorial), com vistas a submissão para publicação na Revista Brasileira de Ciências Sociais, embora a versão inicial incluída no CD do Encontro da Alacip já circule há algum tempo por aí. Realmente, eu exagero. Retomando o fio: em março de 2002, fui surpreendido por um telefonema do próprio Zé Eisenberg, convidando-me a submeter um paper ao GT dele e do Cícero, para apresentação no Encontro da Anpocs daquele ano, em outubro de 2002. Ele me explicou que o GT pretendia concentrar-se naquele ano nas relações entre bem comum e apatia, e que ele gostaria de me convidar para mesa intitulada “Justiça, Virtudes e o Bem Comum”. Perguntava-se se seria possível justiça na ausência de virtudes, e – como sabia que eu já havia lecionado teoria da justiça enquanto ele estava aqui13 – ele achava que eu seria o nome ideal. Farejei encrenca. Era bastante óbvio que, como bom amigo, o meu caro Zé me armava uma arapuca. Mas era também o tipo de arapuca que deveríamos ter a obrigação de armar uns para os outros como acadêmicos. Eu tinha, afinal, objetado publicamente ao paper dele no ano anterior; manifestado explícitas reservas quanto à ênfase em virtudes; e ele, conseqüentemente, me oferecia o desafio de pensar não apenas sobre democracia, mas mais especificamente sobre justiça, com todas as suas ressonâncias normativas mais óbvias, sem conferir protagonismo teórico e conceitual a virtudes. Eu não tinha mais como tergiversar, pois a própria dinâmica do debate implicitamente em curso (por debaixo de todas as cordiais e sinceras amabilidades) durante o telefonema me empurravam rumo a uma afirmação enfática do meu ponto. E, ademais, eu nunca tinha ido a trabalho na Anpocs: não estava, portanto, em condições de me esconder, nem se quisesse. 13
2º semestre de 1998 no mestrado (anexo 10.7), 1º de 1999 na graduação (anexo 10.8).
De fato, não queria. Fiquei felicíssimo com o convite. Após certo desconcerto inicial, naquela noite mesmo (18 de março) escrevi a ele falando em “tentar brincar com as virtudes da apatia, ou, num registro mais prudente, pelo menos com o ‘direito à apatia’ como conquista inalienável da civilização... ”. Imaginando amadurecer mais o resumo antes de enviar (a matéria, afinal, era delicada sob múltiplos aspectos), procrastinei como sempre. Próximo do prazo dado (15 de abril), enviei-lhe afinal um resumo: “Ir para casa em paz: a economia das virtudes, e a apatia como direito” (anexo 1.6). Apatia política, embora pouco estudada, era um tema sobre o qual eu tivera ocasião de refletir, ainda que indiretamente, no esforço de orientação de Gildene Cristina Tomé, que acabara de defender sua dissertação de mestrado, em dezembro de 2001. No início da orientação, interessada genericamente em participação política, Gildene me fizera ver como o campo era fundamente cindido entre estudos de comportamento eleitoral e a literatura sobre movimentos sociais – com prejuízo para ambos que me pareceu então evidente. Com a evolução da dissertação, sua curiosidade também sobre o reverso da participação, a apatia (poder-se-ia dizer, mais precisamente, a abstenção) me levou a algumas cogitações vagas na matéria. Casualmente, portanto, eu estava com algumas idéias na cabeça sobre apatia: fundamentalmente, eu havia aprendido a respeitar a tese de S. M. Lipset, segundo a qual certo grau de apatia política, mesmo não tendo de ser vista como um bem em si mesma (e o sistema deve estar apto a processar devidamente todas as pressões que surgirem), podia ser vista, dentro de certos limites, como sintoma de que as coisas “vão bem”, e que as pessoas estão podendo ocupar-se mais ou menos tranqüilamente de suas vidas no plano privado, interpelando assim com menor intensidade, ou menor freqüência, o sistema político. Exatamente nos dias em que concluí meu resumo, teve lugar um seminário, na Fafich, promovido pelo grupo dos então chamados “repúblicos”. Preso a outros compromissos (eis a rotina universitária...), não pude acompanhar senão uma interessante (como de costume) exposição de Cícero Araújo, que se perguntava se a idéia do estabelecimento de uma relação de clientela entre atores políticos não comportaria considerável poder de vilificação da ordem política, pelo menos do ponto de vista de “um ideal republicano elevado”. Como eu já andava fermentando coisas sobre o assunto, e minha própria tese associava o mercado à democracia (embora não necessariamente à “república”), isso me provocou, e escrevi ao Cícero depois, abrindo uma camaradagem que prospera até hoje:
“Não posso responder pelo ideal republicano elevado, mas parece-me que o clientelismo constituirá um problema se operar de forma a caracterizar uma instrumentalização unidirecional de uma parcela da população por outra, ou mesmo por uma pessoa (o ‘adulador da multidão’). Certamente, não podemos fechar os olhos para o fato de que freqüentemente a relação se estabelecerá nestes termos. Mas nem por isso me parece que o problema resida na relação de clientela em si mesma. Se, alternativamente, ela se configura como genuína troca (horizontal, digamos) de ‘serviços’ entre atores ou setores sociais distintos, não vejo porque seria ela necessariamente nefasta. Pelo contrário: se houver motivos para ceticismo quanto às perspectivas de elevado envolvimento pessoal recíproco entre os membros de uma politeia, então a troca de natureza mercantil (a barganha em torno de interesses próprios, desconectada de qualquer confraternização entre os participantes) tenderá a se constituir em elemento irrecusável de integração da ordem política. Se acompanhamos Weber na caracterização da comunidade de mercado como a forma por excelência de ‘socialização entre estranhos’, então faz perfeito sentido pensar numa centralidade crescente da troca (portanto, de relações, em alguma medida, clientelísticas) na estruturação da vida política, à medida que ‘crescem os números’ e passamos a uma sociedade cada vez mais impessoal.” Nas semanas seguintes troquei idéias sobre o republicanismo em geral e esse tópico particular em reiteradas ocasiões, sobretudo com minha colega Marta Assumpção Rodrigues, então no DCP. O debate com Eisenberg no ano anterior já me havia cristalizado algumas reservas em relação pelo menos a algumas ramificações possíveis do ponto de vista dito “republicano”, mas o esforço de desovar o resumo reforçara ainda mais um ceticismo que eu já cultivava desde antes. Nas conversas com Marta, pude elaborar e amadurecer um pouco mais ainda minhas próprias razões e detalhar – sob forte encorajamento dela – a primeira parte, batizada de “histórico-sociológica”, do argumento do paper. Embora eu não tenha ido para estudar teoria política, os três meses passados em Ann Arbor, logo em seguida, me propiciaram o estímulo intelectual necessário para decantar o argumento – e, sobretudo, me ofereceram (no curso de teoria dos jogos dado por Mark Fey) notícia do teorema do “Swing Voter Curse”. Após o espanto com a pertinência do resultado para o argumento que eu então ruminava, decidi – não obstante as ponderações céticas de James Johnson, quanto ao impacto potencial de um argumento formal junto a republicanos – que o incorporaria ao texto, na forma de uma seção adicional, que expôs o que eu chamei o “argumento analítico-filosófico”.
Voltei de Ann Arbor, na segunda quinzena de agosto, com o artigo não redigido, mas formalmente estruturado, pronto na cabeça. Tanto que, muito embora a série de compromissos pendentes em decorrência de minha ausência do Brasil (incluída minha estréia como professor de teoria dos jogos no MQ) tenha-me impedido de mergulhar imediatamente nele, pude escrevê-lo num único fôlego, em dez dias, no início de outubro – bem a tempo de levá-lo para ser lido na Anpocs. Lido, sim. Dada a heterodoxia da construção e do argumento, percebi rapidamente que me perderia completamente se tentasse expô-lo livremente sem um roteiro rígido. E percebi que esse roteiro rígido deveria ser o próprio texto, que assim terminou – de maneira apenas parcialmente consciente – redigido num estilo bem mais oral do que normalmente acontece. Embora o debate tenha sido frustrante (sempre o relógio, e também a impaciência das pessoas por prosseguir a conversa com cerveja na piscina – agravada num grupo formado por tantos amigos), pude perceber que o impacto foi grande. Durante dias, pessoas que eu não conhecia me cumprimentavam, menos pelo mérito intrínseco do argumento que pela quebra da rotina, a novidade etc. E embora (pra variar...) o artigo fosse permanecer inédito ainda por cinco anos,14 ele circulou mais que qualquer outro trabalho meu, até onde consigo estimar. Não que isso queira dizer qualquer coisa – mas pelo menos Marcus André Melo, presente à leitura, teve a generosidade de adotá-lo regularmente na UFPE, e agora ele apareceu “linkado” com certo destaque no prestigioso
site
Bookforum
(http://www.bookforum.com/online/2319),
dando
testemunho da pertinência da estratégia da ABCP de publicar a revista em inglês. Foi uma grande ironia. Após anos atormentado com a necessidade de eleger – entre muitos interesses dispersos – um objeto em que eu me especializasse de modo a um dia poder comparecer como igual em debates profissionais, acabei jogado no meio de certa ribalta – conquanto modesta – de maneira totalmente fortuita, à revelia de qualquer plano, escrevendo sobre tema de que jamais havia cogitado seriamente até meses antes. A ironia se completa com o fato de que a leitura do artigo naquela tarde foi o último contato intelectual formal que tive com José Eisenberg especificamente, ou com a agenda de trabalho do grupo dos “republicanos” de um modo geral. A exceção 14
E ainda permanece inédito em português. Em 2007, ele acabou publicado em inglês (“Going Home in Peace”), no primeiro número da revista eletrônica Brazilian Political Science Review, publicada pela ABCP.
importante é minha ligação sempre mais forte, profissional e afetiva, com Cícero Araújo – mas com ele colaborei no malfadado comitê da Capes para a avaliação dos programas de pós-graduação em ciência política em 2004, no artigo sobre a formação do pósgraduando em ciência política escrito sob os auspícios da Anpocs em 2005 (anexo 2), e como uma espécie de “adjunto” por mim designado (e a quem recorro em todos os apertos) para o exercício da coordenação da área de teoria política na ABCP, pela qual respondo desde 2005. Quase sempre assuntos institucionais, portanto, bem mais que interlocução intelectual genuína. Já na tarde seguinte à leitura de “Ir para Casa em Paz” no GT República e Cidadania, eu tinha compromisso como debatedor dos papers de uma mesa de outro GT, sobre “Cidadania e Controles Democráticos”, atendendo ao convite de um dos coordenadores, Fernando Lattman-Weltman, da FGV-RJ, feito apenas poucos dias depois do convite de Eisenberg para que eu escrevesse o paper. E, contra todas as minhas expectativas, nunca mais voltei. Controles Democráticos Fernando e eu havíamos nos conhecido superficialmente no Iuperj, no segundo semestre de 1989, onde freqüentamos juntos, se não me engano, uma disciplina optativa, dada por Luiz Eduardo Soares, sobre – mais uma ironia? – teorias da justiça: foi ali que aprendi boa parte do pouco que sei sobre Rawls, Nozick, Dworkin, Habermas. E acabou sendo pouco mesmo, por coincidência, por causa de outra campanha eleitoral: depois de certa altura do semestre, ninguém mais conseguia se concentrar em teoria política com Lula e Brizola se engalfinhando pela vaga no segundo turno para enfrentar Collor de Mello. Ainda mais no Rio de Janeiro. Seja como for, aquele certo Fernando LattmanWeltman, do doutorado, estava lá, e eu, à época mestrando, lembrei-me dele doze anos depois, quando nos vimos hospedados no mesmo Hotel Palace, de Caxambu, tomando juntos o café da manhã durante o Encontro de 2001. Conversamos, o habitual: trabalho, greves, política, Anpocs, e seis meses depois ele me telefonava: estava coordenando, junto com o Cláudio Couto, da PUC-SP, um GT na Anpocs, e me convidava a debater uma mesa onde estaria um paper dele mesmo, intitulado “Mídia e cidadania: o mercado de discursos públicos e o aparelhamento societário de intervenção discursiva”, sobre o qual ele gostaria muito de poder ouvir minha opinião, já que o paper era sobre teoria
política mas se imiscuía em argumentos de natureza econômica, e ele achava que o meu background favoreceria uma apreensão produtiva do trabalho. Aceitei, claro (como eu já disse, não estava em posição de ficar recusando convites dessa natureza), e acreditei, satisfeito, que estava assim cumprindo uma obrigação profissional e, além disso, travando contato ligeiro com pessoas que eu veria apenas muito ocasionalmente. E continuava pensando assim quando, na saída da sessão onde li o meu artigo, dizia ao pessoal do GT República que infelizmente não poderia aparecer no dia seguinte porque atuaria como debatedor num outro grupo na tarde seguinte. Naquele momento, em contraste com o sentimento de satisfação pessoal que eu experimentava em relação a meu texto, eu estava inseguro e um pouco ansioso quanto à minha atuação como debatedor no dia seguinte: os papers me pareceram muito variados entre si, eu não conhecia ninguém a não ser o próprio Fernando, eu não encontrava senão tenuemente um fio da meada para minha própria intervenção, e – sobretudo – me exasperava perder a tarde seguinte do GT República (onde eu poderia enfim saborear um pouquinho os presumíveis ecos do meu próprio trabalho), para desempenhar um papel precário, com forte sensação de improvisação, junto a um grupo de pessoas que eu não conhecia, e que apenas raramente voltaria a me encontrar. Como se dizia antigamente, ledo engano. Fui acolhido com uma generosidade desconcertante. Encontrei entre aquelas pessoas uma camaradagem cordial, calorosa, mais desarmada, espontânea e receptiva ao debate – e à crítica – que em qualquer outro ambiente que eu já tivesse freqüentado. Ali, naquele dia, travei ou intensifiquei contato com o próprio Fernando Lattman-Weltman; com o outro coordenador, Cláudio Couto; com a outra debatedora da sessão, Inês Patrício; e com Paulo D’Ávila, autor de um dos papers debatidos, que veio a se revelar – para minha grande supresa – o meu primeiro leitor, ao me falar da importância que tivera em sua tese um artigo meu, publicado na Dados em 1995, pelo qual eu tinha na época (e tenho até hoje) sentimentos ambivalentes. Era um grupo incomparavelmente mais obscuro que o primeiro, liderado que era não por Iuperj e USP, mas por CPDOC, PUC-SP, PUC-RJ e UFF. Mas fui imediatamente seduzido e absorvido, e dele não me livrei até hoje. Convidado, compareci a uma reunião do grupo no CPDOC (FGV-RJ), já em março do ano seguinte, a propósito de uma visita de Adam Przeworski. Apresentei trabalho no Encontro de 2003, debatido por Rogério Arantes (então na PUC-SP, hoje de malas prontas para a
USP: desde o ano passado coordena comigo o grupo, e é um dos mais queridos amigos e colaboradores que tenho na profissão). Eu havia prometido alguma análise sobre dados da PRMBH, mas acabei levando à sessão um paper apoiado no projeto que eu submetera ao CNPq naqueles dias, com vistas a uma bolsa de produtividade em pesquisa (anexo 1.4). Em 2004 apareceu Fernando Abrucio (FGV-SP), no seminário “Qualidade da Democracia”, ainda sob a coordenação de Cláudio Couto e Fernando Lattman-Weltman. Ao final desse seminário, com o anúncio da ausência de Cláudio Couto em 2005 (pósdoc em Columbia), escolheu-se nova coordenação e fui apontado, à revelia (estava numa reunião de editores de revistas, em nome da nossa Teoria & Sociedade), membro de um triunvirato com os dois Fernandos, Abrucio e Weltman, na coordenação de uma proposta de GT para o biênio seguinte. Por minha sugestão, mudamos o nome do GT para “Poder Político e Controles Democráticos” (ninguém estava realmente falando de cidadania...). Em 2005 fui novamente debatedor, e apareceu Adrián Gurza Lavalle (então na PUC-SP, hoje na USP), de quem eu nunca havia ouvido falar, e cujo enquadramento da questão das relações entre associativismo civil e representação política mudou para sempre a minha maneira de ver a matéria. Nunca mais deixamos que ele se afastasse, leguei a ele minha querida orientanda e colaboradora Natália Bueno quando ela partiu para seu mestrado ao final de 2007 e, no que depender de mim, me sucederá como um dos coordenadores do grupo em 2010. Ao final de 2006, os Fernandos entregaram o posto e me pediram que permanecesse na coordenação, que eu deveria dividir em 2007 com Rogério Arantes e Paulo D’Ávila, na condução de um seminário que eu temerariamente induzi o grupo a batizar como “Controvérsias Conceituais da Democracia Contemporânea: teoria e empiria”, para perseguirmos
mais
explicitamente
alguns
problemas
de
natureza
conceitual/metodológica de que nos ocupávamos – mas não frontalmente – desde o início. Infelizmente, a partir de 2007 a Anpocs passou a limitar a dois o número de coordenadores por seminário ou GT, e decidiu-se que ficaríamos Rogério e eu. Na condição de “teórico” do grupo, meus colegas me pediram que preparasse uma síntese conceitual do percurso até ali, para aproveitamento num livro futuro que temos nos prometido mutuamente já desde há uns três anos. Acabei preparando um resumo bem mais pessoal do que o planejado, sob o título “Valores e Estratégia na Política da
Inovação Institucional: anotações para uma teoria geral das instituições políticas”. Nele, encorajado pelo estímulo irresponsável dos amigos, fui para a estratosfera: partindo da caracterização das instituições políticas como um conceito sociológico, o trabalho pretendia repassar teses associadas a variadas tradições de estudos sobre instituições políticas, em busca de alguma síntese. Mobilizando tanto a tradição sociológica clássica quanto alguma literatura recente associada à escolha racional, busco ali identificar padrões dinâmicos mínimos que possam balizar alguma teorização geral sobre instituições: o equilíbrio delicado entre automatismos e valores, a dinâmica entre o jogo bruto do poder e o imperativo de eficiência a longo prazo são alguns dos problemas pertinentes. Independentemente, porém, de seus ideais justificatórios, procuro sustentar que todo arranjo institucional se presta, com o tempo, a um processo de esclerose, não só pela mudança estrutural no substrato social subjacente, mas sobretudo em virtude da apropriação estratégica dos dispositivos institucionais por atores interessados que controlem volumes desiguais de recursos. Um último ponto emerge em contraponto a essa hipótese do esclerosamento institucional, e envolve uma ambição de adaptabilidade infinita do sistema democrático. Pretendo, ao final do trabalho, mapear os requisitos metodológicos pelos quais essa hipótese poderia, em tese, ser abordada com algum rigor. Dessa empreitada enlouquecida, apresentei uma versão inacabada no Encontro de 2007, e o trabalho ainda é um rascunho em processo de maturação. A estrutura dele hoje é a seguinte. 1) Instituições políticas, um conceito sociológico: necessidade de compreender a dinâmica de sua emergência independentemente da sua classificação política (democrática ou não) e de submeter a compreensão de sua evolução a restrições análogas. Ou seja, instituições de tipo distinto podem até ser dotadas de diferentes atributos quanto à dinâmica esperada de sua evolução, mas deve-se supor que operem sob as mesmas restrições, do ponto de vista metodológico. (a) Parsons e a função das instituições como “cimento” entre o sistema cultural e o sistema social. (b) Institucionalização: delicada tensão entre adesão valorativa racional e automatização inconsciente (Fábio W. Reis – dialética entre solidariedade e interesse). 2) Choque de interesses, eficiência e poder: o aporte dos economistas. A visão “econômica” das instituições e suas relações com o enquadramento sociológico esboçado antes: programas de pesquisa dedicados ao mesmo objeto, mas em níveis de
análise distintos – devem resultar em um corpo de proposições passível de síntese consistente, e não na prevalência de um programa sobre outro. (a) North e a eficiência, Knight e o poder: longo prazo e curto prazo? (b) Miller e Hammond: a regressão infinita do controle externo do árbitro (por que a política é mais fundamental que a economia). 3) O caso da sociedade moderna e a democracia: estratificação social e o problema da igualdade política. Poder político e poder econômico: o viés habitual das disputas e a ambição igualitária da democracia. Também aqui se impõe uma lógica de emergência e inovação institucional que é induzida por disputas (O’Donnell e as instituições existentes como as “cicatrizes” de conflitos passados). Naturalmente, essas soluções se prestam a justificação doutrinária à luz de valores e ideais normativos – mas a justificação desses próprios ideais subordina-se sociologicamente a seus desdobramentos pragmáticos supra-intencionais, de modo que sua utilização na explicação dos arranjos institucionais expõe-se ao risco de petição de princípio. Além disso, independentemente de seus ideais iniciais, todo arranjo institucional se presta, com o tempo, a um processo de esclerose, não só pela mudança estrutural no substrato social subjacente, mas também – e sobretudo – em virtude da mera apropriação estratégica dos dispositivos institucionais por atores interessados, que controlam volumes desiguais de recursos e, ao aprenderem a se apropriar do funcionamento das instituições, enviesam o sistema a seu favor. 4) O futuro da democracia: adaptabilidade e não-linearidades. Há, porém, acima e para além da ambição politicamente igualitária (sempre obstada pelas vicissitudes da competição econômica) uma ambição de adaptabilidade infinita do sistema democrático:
administração
burocrática,
processo
decisório
impessoalmente
encaminhado, realimentação eleitoral sucessiva – que, se não evitariam, pelo menos se habilitariam em tese a remediar continuamente o processo de esclerosamento institucional acima sugerido. Por outro lado, e para além de Max Weber, a dinâmica não-linear teoricamente esperável de processos adaptativos retroalimentados que caracterizam as sociedades humanas somente autorizaria ceticismo quanto a tais esperanças. No espaço do trabalho aqui referido, porém, ao invés de tentar oferecer uma resposta a essa questão, trata-se antes de mapear os requisitos metodológicos pelos quais semelhante questão poderia, em tese, ser abordada com algum rigor.
Ainda na Anpocs 2007, coordenei – também por delegação do grupo – uma mesa redonda intitulada “Democracia em 3D: sociologia, economia, direito”, que foi integrada por Adrián Gurza Lavalle, André Marenco e Elisa Reis. Esta mesa, cuja proposição foi decidida pelo grupo ao final do encontro anterior, pretendeu balizar as discussões do ST em 2007, ao propor parâmetros disciplinares para uma discussão conceitual que se esperava proveitosa. Parecia-nos que a reflexão sobre a democracia, que hoje ocupa de maneira quase exclusiva a ciência política, ainda sofre de considerável instabilidade conceitual, presa ao maniqueísmo de usar palavras diferentes para designar a mesma coisa, conforme olhemos para seus aspectos positivos ou não. Cabe, portanto, o recuo até as perguntas fundamentais, para refletir sobre conteúdos taxonômicos e opções metodológicas que presidem o trabalho de análise sobre a democracia contemporânea. Tal esforço, porém, nos induz à reflexão sobre as matrizes teórico-conceituais que a ciência política absorve (e reelabora) a partir de variadas tradições intelectuais – notadamente a sociologia, a economia e o direito. O propósito do grupo, àquela altura, era refletir sobre os desafios e dilemas da ciência política contemporânea, à luz dos enquadramentos propiciados pelas matrizes intelectuais que tradicionalmente alimentam a disciplina. Ao longo dos anos anteriores, o grupo vinha abrigando variadíssimas contribuições, que exploravam as conexões da ciência política com todas essas matrizes vizinhas, por intermédio da colaboração de profissionais oriundos das diversas áreas. O foco dessas contribuições, todavia, tende a ser predominante empírico – o que faz com que a problemática teórico-conceitual subjacente permaneça implícita. Daí o nosso esforço de recuar, em 2007, até algumas matrizes disciplinares que conformam nossa própria tradição disciplinar para reunir elementos necessários a essa reflexão: a sociologia conforma originariamente a própria identidade da ciência política acadêmica que se plasmou ao longo do século vinte; a economia, contudo, tem-se configurado nas últimas décadas uma formidável desafiante, aspirante inequívoca a um protagonismo conceitual relevante; e o direito, por sua vez, conforma a materialização última do incontornável plano normativo de toda reflexão conseqüente sobre política. Se nos incomoda o que nos parece ser uma contaminação normativa excessiva do quadro conceitual da área, isso não se deve, absolutamente, a uma rejeição da legitimidade ou da centralidade desse plano na análise. Pelo contrário, é a própria
reflexão normativa que se prejudica caso o esforço de diagnóstico empírico fique obscurecido por imprecisões conceituais. Nosso propósito com a mesa, portanto, foi ocasionar reflexão conceitual sobre os desafios e dilemas da ciência política contemporânea, à luz dos diferentes enquadramentos propiciados pelas matrizes intelectuais que tradicionalmente alimentam a disciplina. Pois a tendência eufemística do jargão corrente da disciplina nos reforça uma imprecisão conceitual que termina por mascarar similitudes ou mesmo obscurecer distinções relevantes. Não é difícil exemplificar. Nossa disposição desfavorável diante da expressão “corporativismo” nos induz a uma artificial contraposição sua à expressão “pluralismo”, que de fato mascara paralelismos importantes que tornam problemática a distinção precisa entre os dois conceitos quando entendidos como estruturas institucionais de intermediação de interesses (B. Reis, 1995). “Clientelismo” é outro termo com fortes ressonâncias negativas, contudo difícil de caracterizar analiticamente em contraste com qualquer relação de representação ou barganha, inerentes à própria atividade política, mesmo virtuosa (o tema, central para as atividades do grupo, foi apropriado em 2007 no âmbito do grupo por Paulo D’Ávila, em seu paper “Assimetrias Políticas, Clientelismo e Democracia: uma discussão conceitual”). Os exemplos poderiam prosseguir bem longamente, e de fato temos recorrentemente “tropeçado” neles a cada paper discutido em nossos GTs e STs ao longo dos últimos cinco anos. Forçados, pela própria ementa do GT que operou no biênio 2005-2006, a buscar uma apropriação minimamente sistemática do problema geral do exercício do poder político e seu controle, freqüentemente nos surpreendemos em meio a um esforço de reconstrução do enquadramento conceitual de bons trabalhos trazidos ao grupo, com o propósito de buscar, por detrás de conceitos de ressonâncias normativas relativamente compartilhadas, os significados empíricos precisos – não raro obscuros. Encorajados também por minha inflexão rumo a uma apropriação explícita do tema das instituições, o grupo decidiu que já era tempo de assumir que o problema dos controles democráticos, afinal, resolve-se em larga medida no âmbito das instituições políticas, e incorporá-las a seu título para o biênio 2008/2009, quando o grupo – caso aprovado pelo Comitê Acadêmico da Anpocs – se chamará “Controles Democráticos e Instituições Políticas”, ainda sob a coordenação conjunta de Rogério Arantes e eu.
Como
se
pode
facilmente
constatar,
o
engajamento
na
ANPOCS
alargou
consideravelmente o foco de minhas preocupações, numa direção mais abstrata e conceitual que o diapasão vazado no meu projeto de 2003. Esse é um efeito curioso, já que o grupo tem um claro viés empírico. Talvez isso tenha decorrido de certa divisão de trabalho interna, onde eu tendi a desempenhar o papel de “teórico” da turma. Além de minhas possíveis aptidões, este efeito foi favorecido também por duas razões circunstancias: minha designação como coordenador da área temática de teoria política pela ABCP e minha atuação, desde 2000, como responsável pela disciplina obrigatória de Metodologia no mestrado em ciência política da UFMG. O Brasil visto de longe: Ann Arbor Mas antes de estar em Caxambu no memorável (para mim) outubro de 2002, cumpri meu trimestre em Ann Arbor, no programa de verão da Universidade de Michigan. Lá, paradoxalmente, vivi “de perto” a desvalorização cambial brasileira. Partindo do Brasil no final de maio para ficar fora até a segunda quinzena de agosto, planejávamos que em julho minha esposa e filha fossem se juntar a mim para umas férias diferentes. Fomos derrubados pelo câmbio, contudo: em quarenta dias, o preço da viagem em reais havia dobrado, e minha filha de quatro anos tirou um passaporte que nunca chegou a usar. É possível, porém, que minha ansiedade com essa história tenha intensificado meu interesse por tudo que cercava a eleição presidencial de 2002. De fato, durante meus únicos três meses de experiência profissional no exterior, o Brasil esteve
onipresente
no
horizonte
de
minhas
preocupações
pessoais,
tanto
profissionalmente quanto em meus parcos momentos de socialização pessoal com os colegas que lá estavam. De saída, a campanha presidencial despertava ocasional interesse ou curiosidade de interlocutores. Pude perceber que a imagem que a maioria dos estrangeiros tinha da eventual ascensão do Lula era a de um governo situado em algum ponto entre o Chile de Allende e a Nicarágua sandinista, e eu me esforçava por explicar-lhes que, em matéria de esquerdismo, Lula e o petismo assemelhavam-se, no máximo, aos socialistas franceses na época da ascensão de Mitterrand – e olhe lá... Além disso, deu-se a coincidência de que meu desembarque no aeroporto de Chicago aconteceu no exato momento em que a França era derrotada por Senegal no jogo de abertura da Copa do Mundo de 2002. E aí, era fatal: todos aqueles a quem eu era apresentado me perguntavam imediatamente sobre a Copa do Mundo, sobre Ronaldo,
Rivaldo, Romário e (os mais bem informados) Ronaldinho – e juravam que, à falta do próprio país de origem, torciam “sempre” pelo Brasil. So kind. Foi gozado acompanhar uma Copa do Mundo de fora do Brasil – e foi, sobretudo, estranho ganhar a Copa do Mundo fora do Brasil: depois do fiasco de Oliver Kahn, da consagração de Ronaldo, taça, volta olímpica etc., lembro-me de sair pra caminhar por um parque próximo na boa companhia de um colega sul-africano (que, naturalmente, torcera pelo Brasil), conversando sobre política, desigualdade, Apartheid, Mandela, Lula, e poder admirarme do silêncio e do sossego impecável de uma radiosa manhã de verão em Ann Arbor, imaginando (meio aliviado, meio ressentido) a bagunça, a barulheira e a alegria que deveriam estar percorrendo, naquele exato instante, o Brasil inteiro com um domingo inteiro de comemorações pela frente. Copa do Mundo, campanha eleitoral e especulação cambial foram motivos mais do que suficientes para me deixar plugado no Brasil diariamente, pela internet. Mas é preciso admitir que a perspectiva bastante concreta da vitória de Lula naquela eleição ajudou a tornar a campanha ainda mais interessante. Essa perspectiva se havia delineado com bastante clareza ainda no primeiro semestre de 2002, quando uma ação da Polícia Federal contra Roseana Sarney, até ali bem posicionada nas pesquisas, gerou uma cizânia nas hostes governistas, a partir da suspeita de que José Serra estivesse envolvido no episódio, com o propósito deliberado de expor e enfraquecer Roseana. Passei a brincar com meus colegas que aquele Serra era um celerado, e que, como bom conservador, eu teria que votar no Lula, em nome da governabilidade. Brincadeiras à parte, era claro que a fragmentação da coalizão de apoio ao governo de Fernando Henrique abria um flanco por onde Lula não apenas poderia ganhar, mas começava mesmo a pintar como favorito. Em outubro de 2002, surpreendendo a muitos, o PT não apenas elege o presidente, mas conquista o status de maior bancada da Câmara dos Deputados, e de maior partido do país também nas Assembléias Legislativas estaduais. Obviamente, o petismo nunca mais seria o mesmo. De fato, porém, ele nunca mais poderia ser o mesmo, nem mesmo se quisesse. Com origem externa ao sistema político formal estritamente considerado, o PT havia passado os seus primeiros vinte anos de existência interpelando o sistema político em nome da sociedade – principalmente da sociedade organizada. Mesmo com as suas prefeituras e seus governos estaduais, o PT falava sempre “de fora pra dentro”
do sistema. Naquele momento, esse jogo acabou: era impossível manter-se um “outsider” sendo ao mesmo tempo, sob certos parâmetros, o maior jogador do sistema. Dali em diante, o PT falava em nome do estado, oficialmente, e passaria a interpelar a sociedade em nome do estado. O desafio residia em consumar com a devida delicadeza esse giro de 180 graus, de modo que sua vasta “cauda” organizacional não se fraturasse gravemente. O certo, contudo, era que o caldo de cultura petista dos anos 80 seria, dali em diante, uma terna lembrança. Mas, nos meses seguintes, eu me perguntava ocasionalmente: como juntar as pontas, senão de minha análise, pelo menos de meus juízos? O que é que concilia a resignação conservadora quanto aos limites da atuação de um governo reformista eleito, de um lado, e a expectativa de uma mudança que esse mesmo governo encarna, de outro? Além da mera inconsistência e da inevitável dose de wishful thinking com que sempre acompanhamos a breve parcela da história que se desenrola enquanto duram nossas vidas, quero crer que minha recepção da história política brasileira recente encontra respaldo numa visão da política e da história que olha com relativo ceticismo para o que se passa na ribalta dos acontecimentos políticos mais visíveis, necessariamente menos previsíveis e mais sujeitos a micro-oscilações derivadas dos humores ocasionais da opinião pública, para conceder maior atenção a processos de longa maturação, mais resistentes às oscilações da conjuntura, mas ao mesmo tempo mais relevantes na determinação dos destinos das populações. A presunção tácita é que o círculo vicioso das “revoluções” sucessivas, guerras civis, rebeliões, sublevações e golpes de estado são, ao cabo, menos conducentes a mudanças profundas na estrutura social do que lentos processos relativamente menos visíveis, que têm lugar ao longo de gerações sucessivas. Sob esta perspectiva, a vitória de Lula tinha menos significado em si mesma (ele havia ganho aquela eleição, mas ele e seu partido perderiam outras) do que como culminação provisória de um secular processo de incorporação sucessiva de novas camadas da população ao processo político brasileiro. Going Hi-Tech Mas eu havia ido a Michigan não para pensar sobre o Brasil, decerto. Tinha ido, fundamentalmente, treinar-me como pesquisador de survey. De fato, cursei disciplinas sobre desenho de questionários (Pamela Campanelli) e aspectos cognitivos e comunicacionais da dinâmica da entrevista e da interpretação dos seus resultados
(Norbert Schwarz e Michael Schober), que procurei utilizar aqui não apenas na minha colaboração regular junto à própria PRMBH, mas também lecionando disciplina específica, na graduação, sobre desenho de questionários, já no segundo semestre de 2002 (anexo 10.9). Mas o que de fato me rendeu crescimento profissional foi a “esticada” que dei rumo às disciplinas de técnicas formais de teorização, no programa do ICPSR: teoria dos jogos (Mark Fey), escolha racional (James Johnson) e sistemas complexos (Rick Riolo, Scott E. Page, Ken Kollman) – além, é claro, da disciplina sobre desenhos de pesquisa, com Bill Yeaton. De saída, as 80 horas de aula que assisti sobre teoria dos jogos e escolha racional em Michigan foram imediatamente condensadas em 10 horas de um curso introdutório sobre o tema (sobretudo teoria dos jogos) que comecei a lecionar no MQ uma semana depois da minha volta (anexo 10.10). Felizmente, o enquadramento conceitual que eu dava ao objeto sobreviveu à viagem, não obstante o grande aprendizado técnico e intensiva exposição a literatura bem mais abundante e diversificada. Assim, relativamente à disciplina optativa que eu havia lecionado na graduação sobre a mesma matéria no segundo semestre de 2000 (anexo 10.11), o programa foi dramaticamente modificado, mas minhas opiniões e idéias básicas, não. Fui tremendamente ajudado também pelas duas monitoras que tive no período: Luciana Farias Santana (2002 a 2004) e Natália Bueno (2006 e 2007). Cada uma a seu estilo, ambas me possibilitaram manter o ritmo, próprio de um curso intensivo, de um trabalho a ser avaliado por dia, evitando que eu me perdesse irremediavelmente em minha confusão habitual, soterrado por uma pilha de trabalhos não corrigidos ao fim da semana. Induzido, pela natureza mesma do MQ (além, é claro, da apertada carga horária), a concentrar-me em aspectos técnicos de teoria dos jogos, em vez de expandir-me rumo às ramificações teóricas centrais do programa de pesquisa da escolha racional, quis forjar outra ocasião para cristalizar e compartilhar os conteúdos estudados com James Johnson em Michigan. E ofereci como optativa, ao programa de Doutorado em Sociologia e Política no primeiro semestre de 2003, uma disciplina que era uma réplica assumida e declarada, com pouquíssimas modificações, da disciplina de James Johnson, que havia cursado, como aluno, no ano anterior (anexo 10.12). Era a primeira vez que eu fazia isso – ou mesmo que ouvia falar disso: lecionar uma disciplina que eu havia cursado, no mesmíssimo formato daquela que eu cursara. Mas eu queria mesmo fixar
aqueles conteúdos, experimentá-los “do outro lado”, e ainda forjar uma comparação clara com a disciplina que eu lecionara em 2000, antes de viagem. Por fim, mas de modo não menos importante, havia também a intenção de compartilhar com os alunos o conteúdo da disciplina que eu estudara, menos de um ano antes, num programa que era referência internacional em metodologia das ciências sociais. Certamente, não terá sido coincidência: acredito que esta tenha sido a mais bemsucedida disciplina que já dei na vida... Talvez isto se deva, em parte, também à rarefação do debate metodologicamente orientado sobre essa matéria no Brasil, mas julguei – sinceramente – que todos os trabalhos que recebi estavam aptos a serem publicados. Há muitos mal-entendidos graves sobre o tema que prosperam em literatura publicada entre nós nessa área, e constatei que eu havia sido bem-sucedido em pelo menos fazer com que os meus alunos evitassem esses. Cada um a seu estilo, acredito que todos os trabalhos (não eram muitos: uns sete, se não me engano...) traziam contribuições interessantes – e, mesmo quando modestas, poderiam ser trazidas para o conhecimento do público e poderiam ser úteis em adensar a rarefeita literatura disponível em português. Muito contente, escrevi um e-mail coletivo, saudando-os e dizendo que estavam todos obrigados a pelo menos tentar publicar o trabalho. Simplesmente, porém, não acreditaram: que eu saiba, nenhum deles tomou providências. Quando, muitos meses depois, reclamei com um deles, ouvi de volta: “Uai, era sério?...” Talvez em decorrência dos ecos de minha disciplina no MQ, em 2004 Gláucio Soares, então presidente da ABCP, convidou-me a dar uma aula sobre escolha racional no âmbito de um curso sobre “Teorias Políticas Contemporâneas e as Pesquisas que elas Orientaram” que teria lugar no Rio de Janeiro como parte das atividades do Encontro da ABCP que teve lugar na PUC-Rio em julho daquele ano. Devo ter agradado, porque dois meses depois recebi em casa um telefonema da secretária-executiva da Anpocs, Maria Arminda Arruda, convidando-me a repetir no Encontro de Caxambu, em outubro, a aula da ABCP, no mini-curso que a Anpocs abrigaria, com aulas das três áreas que integram a Associação. Tratava-se de uma substituição, em virtude de impedimento de Maria Teresa Sadek, que falaria sobre Maquiavel. Só posso especular o que terá passado pela cabeça dos estudantes – que, após pagarem inscrição para ouvirem sobre
Maquiavel, encontraram uma aula mais metodológica que teórica, sobre uma técnica formal meio exótica, dada por um desconhecido... Mas eles foram gentis. Por fim, animado por pedidos de alunos, no primeiro semestre de 2006 criei coragem e levei novamente a disciplina para a graduação – só que agora com o perfil mais técnico que conferi ao meu ensino da matéria depois de 2002, e que hesitava em empregar com graduandos: bibliografia quase toda em inglês, expressões matemáticas freqüentando assiduamente o quadro negro... Eu temia um desastre: ou procura insuficiente, ou debandada geral. Com a insistência de alguns deles, porém, percebi que tudo o que eu precisava fazer era evitar intimidá-los. A matéria, com esse perfil, era (ou é), que eu saiba, praticamente inexistente na graduação brasileira em ciências sociais. Se é assim, qualquer exposição dos estudantes a ela já é uma vantagem comparativamente à paisagem profissional em que eles estão se formando. A escolha era clara: eu poderia pôr a perder esta oportunidade atemorizando os alunos com provas cheias de cálculos difíceis, ou então eu tratar de ser criativo na avaliação, induzindo-os a praticarem a técnica em exercícios mais ou menos regulares, e convidando-os a modelarem algum problema de interesse teórico para eles, a ser apresentado em seminário interno da turma ao final do semestre. Ao final, como aliás tem-se dado sistematicamente desde meu batismo na graduação na Política II de 1999, os estudantes corresponderam: não obstante a flagrante falta de prática da maioria deles com cálculo, a sala esteve sempre cheia, e pude atestar um elevado interesse da turma, assim como um nível de aprendizado que me pareceu bastante satisfatório. Por fim, o último objeto de estudo em Ann Arbor foi o que mais me despertou o interesse, aquele sobre o qual eu estive mais excitado, o que me parece o mais promissor a longo prazo. Mas, também (como aliás costuma acontecer), aquele que mais me produziu frustrações e exasperação pela dificuldade em tocar adiante, de maneira rotineiramente sustentada, alguma iniciativa conseqüente – não obstante a abertura de contatos novos e colaborações extremamente gratificantes, ainda que intermitentes. Trata-se do estudo, aplicado às ciências sociais, de sistemas adaptativos não-lineares (ou sistemas complexos) por intermédio de simulações computadorizadas baseadas em agentes. Quando falamos em simulações, o interlocutor típico logo presume que estamos pensando em prever o valor de ações na bolsa de valores daqui a seis meses, ou então
quem vai ganhar a próxima eleição. Mas é preciso dizer, logo de saída, que se trata de experimentos teóricos, e não da replicação projetada de eventos empíricos. De fato, o estudo de sistemas adaptativos complexos mediante simulações computadorizadas, embora seja uma empreitada intrinsecamente transdisciplinar, é imensamente promissora para a teorização em ciências sociais especificamente. O programa da disciplina do ICPSR fazia o ponto, bastante claramente: “As dinâmicas não-lineares exibidas por sistemas sociais complexos freqüentemente põem problemas difíceis para modeladores desses sistemas. Particularmente quando se quer capturar a maneira pela qual os atores se adaptam a seu ambiente, que normalmente inclui outros agentes de comportamento adaptativo. Admite-se usualmente que seres humanos adaptam seu comportamento à luz de feedbacks de outros indivíduos ou de ações coletivas, mas até recentemente era difícil modelar formalmente esta espécie de comportamento adaptativo. Avanços recentes no estudo de sistemas complexos, assim como a crescente disponibilidade e capacidade dos computadores, têm levado a uma proliferação recente de modelos de sistemas adaptativos complexos aplicados às ciências sociais construídos “de baixo para cima” – isto é, baseados em regras simples de comportamento de agentes individuais. Estes modelos consistem em certo número de agentes que interagem entre si. O comportamento de cada agente é governado por um pequeno conjunto de regras simples, embora seja tipicamente suposto que os agentes não conhecem, nem são capazes de calcular, os padrões agregados que resultam das ações de todos eles. Executa-se uma mesma simulação várias vezes, procurando aleatoriedade em alguns parâmetros, controlando valores de alguns outros, e eventualmente emergem padrões discerníveis (e teoricamente sugestivos, se os parâmetros se mantiverem suficientemente simples, ou pelo menos inteligíveis). Apesar das limitadas habilidades cognitivas e comportamentais presumidas dos agentes individuais, sua interação pode produzir estruturas emergentes complexas e padrões de comportamentos individuais e grupais altamente dinâmicos.”
Tentativas de teorização formal em ciências sociais tendem a padecer da dificuldade decorrente do fato de que, diferentemente das ciências naturais, sua “partícula” (cada pessoa) é dotada de livre-arbítrio. O próprio Scott Page, com quem tive algumas das mais interessantes e desafiadoras aulas da disciplina, costuma atribuir ao físico Murray Gell-Mann, ganhador do Nobel, a tirada: “Imagine o quanto a Física seria mais difícil se um átomo pudesse pensar.” Os feedbacks causais endógenos a qualquer modelo que tome a sério essa dificuldade produzem não-linearidades que tradicionalmente forçavam o cientista social a uma de duas atitudes polares, ambas problemáticas: ou “forçar a mão” com uma padronização heróica dos modelos de comportamento, de maneira patentemente irrealista, mas necessária para preservar sua tratabilidade dedutiva, ou então negar liminarmente a utilidade do recurso a teorização formal em ciência social. Quem quer que tenha tido vaga familiaridade com a ciência econômica, por exemplo (mas não apenas com ela), sabe o quanto esta controvérsia pode contaminar a atmosfera
do debate metodológico em uma disciplina. Os modelos computacionais de simulação do comportamento de sistemas adaptativos não-lineares podem oferecer uma porta de saída para este impasse. Eles permitem à análise relaxar certas premissas mais claramente irrealistas, e nem por isso abdicar do controle rigoroso do experimento em tela. Hoje, o estudo de sistemas complexos ocupa lugar de vanguarda na agenda científica. Depois da enxurrada de literatura de divulgação científica em torno do “caos” que teve lugar nos anos 1990, o termo começa a ser rejeitado como enganoso, uma vez que se trata precisamente de identificar padrões preditíveis no interior de processos apenas aparentemente caóticos. O Instituto Santa Fé, no Novo México, congrega em seu quadro de colaboradores os principais nomes envolvidos neste programa de pesquisa – o que inclui pesquisadores de numerosas universidades e centros de pesquisa (recentemente, recebeu uma breve visita de Virgílio Almeida, titular do DCC/UFMG). Segundo as informações que consegui em 2002 obter junto ao Instituto Santa Fé por intermédio de Scott Page, havia pesquisadores brasileiros trabalhando com sistemas complexos – mas, aparentemente, não na área de modelagem “agent-based” de temas de ciências sociais. Há colegas na UFMG que já trabalham isoladamente com a técnica (por exemplo, Ricardo Ruiz, do Cedeplar), mas aparentemente estes esforços encontram-se bastante dispersos. Pareceu-me, na época, que a alocação de uma cátedra IEAT, ou a implementação de qualquer programa análogo dedicado a este programa de pesquisa, permitiria à UFMG liderar a disseminação no Brasil de uma técnica extraordinariamente promissora, e de caráter intensamente transdisciplinar. Escrevi ao IEAT uma carta nesses termos. Obtive de volta uma sinalização muito receptiva, mas infelizmente os contatos com Scott Page para sua possível vinda não prosperaram, por motivos familiares. Muito gentilmente, ele se prontificou a identificar entre colegas algum que pudesse vir, e algum tempo depois me trouxe um nome. Só que era o nome de um físico, Mark Newman, seu colega no Centro para o Estudo de Sistemas Complexos (CSCS), na Universidade de Michigan. Como as cátedras do IEAT eram divididas entre as três grandes áreas, seria impraticável convencer a área de humanas que a sua cátedra IEAT deveria ser dada a um físico. Já tínhamos chegado até à transdisciplinaridade, mas descobri que precisaríamos da “transgrandeariedade”, e essa ainda não havia se instalado entre nós.
Cogitei, também, de uma disciplina. Num primeiro momento, pareceu-me imprescindível que ela fosse compartilhada com um professor do Departamento de Ciência da Computação, do ICEX. Por intermédio de um primo que andava por lá e fez a conexão, procurei Henrique Pacca, que havia acabado de deixar a coordenação da Pós-Graduação em Computação. (Voltei a encontrá-lo em 2006, no Rio, em reunião na Finep para avaliação de projetos do CT-INFRA. Soube então que ele estava na Universidade Federal de Alagoas, para onde tinha-se mudado depois de aposentar-se na UFMG.) Pacca foi extremamente gentil e receptivo, mas foi também franco: não acreditava que se pudesse viabilizar a oferta de uma disciplina no curso de ciências sociais com designação de professor do DCC para carga horária parcial fora das obrigações regulares do Departamento. Mas devo a ele a indicação que ele fez aquele dia mesmo: que eu procurasse seu amigo Milton Corrêa Filho, pesquisador do LNCC, que se interessava fortemente por modelagem baseada em agentes. Milton foi uma das melhores “coisas” desses últimos anos. Generoso, sereno, receptivo às especulações de um cientista político confuso vinte anos mais jovem, Milton foi de fato a principal sede e o foco dinâmico da maioria das coisas parecidas com trabalho produtivo que eu tenha chegado a desovar nessa matéria. Convidou-me a visitá-lo no LNCC, em Petrópolis, e viabilizou nossa ida (minha e de Ricardo Ruiz, a quem eu tinha posto na jogada) em mais de uma ocasião. Emplacou um workshop de três dias, dividido entre nós três, no curso de verão do LNCC, em janeiro de 2004. Durante esses três dias, convenceu-nos a pôr o carro na frente dos bois e arriscarmos um paper para um seminário em Lisboa, apenas exploratório, conceitual (“Multi-Agent Computational Modeling of Interpersonal Trust and Cooperation: a conceptual exploration”, anexo 3.3), em torno de uma apropriação, num algoritmo computacional teoricamente interpretável e operacional, do conceito de confiança interpessoal tal como utilizado por Robert Putnam em seu célebre Making Democracy Work, de 1993 – agenda que eu tinha proposto desde o início. O esforço derivava sobretudo da forte suspeita de que a principal fragilidade teórica do argumento de Putnam em sobre o caso italiano decorria de uma excessiva linearidade do modelo, que faz suas generalizações a partir de tipos polares empiricamente implausíveis (confiança disseminada ou a falta dela) – donde a pertinência de uma conceituação computável de “confiança”, apta a servir como base de testes de uma modelagem não-linear do problema. A empreitada revelou-se imatura àquela altura, e fomos recusados. Mas o paper serviu ao propósito de certo auto-
esclarecimento a que se destinava, e depois recebeu publicação como trabalho de circulação interna no LNCC. Sobretudo, ele ainda não desdobrou-se como esperávamos em detalhamento e operacionalização experimental subseqüente. Não por inviabilidade intrínseca, pois a literatura é hoje abundante e crescente (veja-se, por exemplo, a produção publicada no Journal of Artificial Societies and Social Simulation – JASSS, acessível na internet). Mas de fato a roda-viva em que me meti (coordenação de curso de graduação na UFMG, de GT na ANPOCS, e de área temática na ABCP) cobrou seu preço na inviabilização da pesquisa de formato mais ambicioso, com colaboração ao mesmo tempo multidisciplinar, inter-institucional e interestadual. Milton Corrêa acolheu minha agenda com enorme generosidade, e tem sido um fantástico interlocutor. Mas – exceto por surtos esporádicos – de fato tem sido difícil incorporar esta pauta a uma rotina de trabalho sustentável. Na mesma época em que escrevíamos o artigo pensando no workshop de Lisboa, resolvi cadastrar-nos no diretório dos grupos de pesquisa do CNPq. Ainda estamos lá, mas tudo tem acontecido a conta-gotas. Felizmente, tem havido estudantes desprendidos (talvez temerários) que têm me ajudado a manter viva a chama: em novembro de 2007 e em março de 2008, as primeiras orientações deram frutos, respectivamente, com as defesas da dissertação de mestrado de Marco Paulo Soares Gomes e da tese de doutorado de Jakson Alves de Aquino. Marco Paulo levou a cabo uma exploração dos usos potenciais da técnica em política intenacional; Jakson concebeu e montou integralmente um modelo com o propósito de simular a emergência da cooperação. Um de meus principais planos para o próximo semestre é redigir com eles um artigo de divulgação da técnica e da literatura dos sistemas complexos, a ser encaminhado para publicação no BIB, provavelmente. E houve também o Grupo Redes – minha segunda experiência com o IEAT. Em janeiro de 2005, corrigindo provas de História (questão sobre Bismarck e a unificação de Alemanha...) para o vestibular da UFMG, encontrei no cafezinho uma professora da Faculdade de Letras que sustentou comigo uma conversa que guardava muitas afinidades com os meus interesses em sistemas complexos, embora tratasse, aparentemente, de outra coisa. Era Antonieta Pereira, coordenadora do grupo “Redes”, que se reunia regularmente já havia alguns anos, sob os auspícios do IEAT, então dirigido por Alfredo Gontijo, do Departamento de Física (ICEX). Foi com Antonieta que aprendi as afinidades entre análise de redes e os sistemas complexos, cujas
simulações capturam, afinal, algo que, dado seu caráter descentralizado baseado em interações espacialmente configuradas, pode ser descrito como “dinâmica de redes”, em contraste com a natureza topológica da análise habitualmente encontrada nos manuais sobre análise de redes. Como legado, minha sensibilização para a análise de redes (e a leitura de Linked, de Albert-Laszló Barabási) já seria o bastante para fazer meu envolvimento com o grupo Redes valer a pena. Não menos relevante, porém, foi ter, ao longo de um ano e meio, freqüentado regularmente uma nova turma de amigos: além de Antonieta e Alfredo, conheci Beth Fleury, aproximei-me muito da Lena, do Departamento de História, vice-diretora da Fafich durante o mandato de Vera Alice, e descobri a existência de um visionário tão diferente e ao mesmo tempo tão parecido comigo quanto Chico Marinho, da Belas Artes (cultuador, como eu, de Gödel, Escher, Bach, de Douglas Hofstadter). Muitas outras pessoas compunham, de maneira mais ou menos permanente, mais ou menos flutuante, o grupo – mas a enumeração destas basta para dar uma idéia da diversidade da nossa fauna. Lena chegou a dizer, em certa reunião, que o principal traço comum àquelas pessoas era que todas precisavam de interlocução fora de seus próprios departamentos. Havia mais que isso, mas de fato as prioridades e enquadramentos eram muito variados – e, sobretudo, incomoda-me na paisagem em torno do assunto “redes” certa ênfase numa ressonância normativa associada a uma idealização da rede como algo intrinsecamente horizontal, ou descentralizado, ou anti-hierárquico. Tecnicamente, parece-me que uma rede pode ser isso tudo e também seu contrário, e pessoalmente estou mais interessado nas possbilidades teóricas da análise de rede, que só me parecem obscurecer-se com essa associação tantas vezes implícita. Seja como for, e apesar de o grupo ter-se dissolvido irreversivelmente em junho de 2006 (Antonieta se afastara no início do ano, e os demais cometeram o grave erro de me pedir que assumisse a coordenação do grupo, não obstante minhas advertências...), a convivência durante aqueles meses me permitiu amadurecer bastante minha apreensão dos sistemas complexos. Alfredo me encarregou de uma exposição interna ao grupo, uma segunda apresentação, pública, de minhas preocupações em um seminário promovido pelo IEAT (onde pude ser debatido por meu caro José Guilherme Moreira, também da Física, que eu conhecera nos meus tempos da ProGrad), e também me escalou como debatedor de um conferencista visitante, num evento em que tive o prazer de travar contato pessoal com Virgílio Almeida. Desde então ensaiamos alguma
colaboração, que infelizmente ainda não se pôde concretizar. Nessa época, cheguei a esboçar dois artigos que almejavam realizar algum exercício conceitual relacionado a este tema para apresentar em colóquios internacionais, mas nunca logrei obter financiamento para comparecer, e os trabalhos ainda restam inacabados. O primeiro foi concebido e aceito para apresentação no XVII encontro anual da Society for the Advancement of Socio-Economics (SASE), realizado em Budapeste em junho de 2005. O tema do encontro (“What Counts? Calculation, Association, Representation”) sugeria apropriação metodológica do tema da associação, e encorajou-me a buscar uma aproximação do tema da “confiança” orientada por categorias sociais próprias da análise de sistemas complexos. Inspirado também por uma disciplina lecionada em 2004 junto ao programa de doutorado em Sociologia e Política, o resultado foi uma proposta de trabalho intitulada “Cultural Calculations: some circularities about interpersonal trust and political participation in complex societies”. Partindo da caracterização weberiana do mercado como uma forma de “socialização entre estranhos” (B. Reis 2003a: 56-8), busco questionar a pertinência de se postular a relevância teórica de comportamento culturalmente orientado, concebido por oposição a cálculos racionais estrategicamente orientados. Para tanto, recorro à impessoalidade requerida para a operação das redes de larga escala tão típicas das sociedades complexas para constituir um argumento em favor da necessidade de mecanismos de incentivos individuais de tipo mercantil para promover coordenação em grande escala. Isto posto, contudo, as coisas deixam de parecer tão simples quando passamos a considerar a base normativa da operação do próprio mercado. Longe de serem algo como uma “ordem espontânea”, mercados requerem orientações normativas específicas para operarem rotineiramente. O problema reside em que a consideração simultânea desses dois pontos usualmente nos conduz a circularidades entre os dois níveis de análise, a meu juízo eloqüentemente ilustradas pelo trabalho de Putnam sobre a Itália. Em termos práticos, ao estudarmos participação política (ou qualquer outro objeto empírico de análise política) devemos conferir inequívoca ênfase às estruturas de incentivos com que se defrontam os atores, e concebê-los sim como estrategicamente orientados – mas por outro lado constitui um reducionismo grave presumir que esses incentivos podem ser adequadamente compreendidos sem remissão a condicionantes simbólicos de toda ordem. Pois os incentivos certamente não se reduzem a interesses materiais – e mesmo estes encontram condicionamentos culturais. Assim, elementos “culturais” podem reter sua relevância
teórica se não forem concebidos como opostos a cálculos estratégicos, mas como parte integrante deles. E neste ponto, novamente, talvez devêssemos refletir com maior vagar sobre as potencialidades da técnica da simulação computacional de sistemas adaptativos baseada em agentes, na medida em que ela poderia em princípio lidar de maneira controlável com as não-linearidades que emergem quando tentamos manipular os dois níveis de análise simultaneamente. O CNPq, porém, não pôde atender meu pedido de financiamento para ir a Budapeste, e o trabalho permanece em stand-by. O tema desdobrou-se também num segundo esboço, intitulado “Calculus, Networks, and Culture: a conceptual exploration on the dynamics of trust”, agora de escopo mais especificamente sociológico, que – feito em co-autoria com Fabrício Fialho – foi aprovado pelo comitê de pesquisa em escolha racional da ISA para apresentação em sessão sobre racionalidade e confiança, coordenada por Kazuto Misumi, no Congresso Mundial de Sociologia que teve lugar em Durban, África do Sul, em janeiro de 2006. Novamente, porém, não conseguimos financiamento, e assim outras atividades se interpuseram ao projeto. Sob a perspectiva esboçada nesses trabalhos, a distinção usual entre (1) regras de natureza normativa, concebidas como relativamente estáveis, internalizadas de algum modo, e tipicamente portadoras de alguma noção de justiça e bem comum; e (2) cálculos estratégicos, adaptativos, responsivos a circunstâncias cambiantes, e orientados para a realização de objetivos auto-centrados – comporta pelo menos dois problemas importantes. O primeiro é teórico-conceitual, e se refere à associação arbitrária do bem comum com normas coletivas estáveis, relativamente fixas, e de estratégia e cálculo com o auto-interesse. Pode-se pensar facilmente em normas compartilhadas que operam em prejuízo do interesse coletivo, e assim postular a necessidade de minuciosa consideração estratégica no esforço de modificar o status quo. Talvez não seja exagero dizer mesmo que toda mudança social deliberadamente induzida por ação política envolva situação análoga – ou mesmo, num registro mais corriqueiro, qualquer esforço de se minorarem os danos de um estado de coisas socialmente dado. O segundo é metodológico, e decorre forçosamente da admissão do primeiro problema. Ele se refere à existência de regras de segunda ordem, já que há regras que dizem ao agente quando aplicar tal ou qual regra (de primeira ordem), ou – talvez mais precisamente – regras que orientam o agente quanto a exceções à aplicação de regras de primeira ordem. Se
isto faz sentido, impõe-se imediatamente a conclusão de que não há razão em princípio para mantermos o modelo estritamente confinado a dois níveis, e pode-se naturalmente pensar em regras de terceira ordem (sobre exceções à aplicação de exceções...), regras de quarta ordem, e assim por diante. Sob tal enquadramento, considerações estratégicas estão profundamente imbricadas com normas. A razão pela qual uma abordagem como essa pareceria pouco frutífera ao longo da maior parte do século XX é bastante clara: ela rapidamente levaria a análise a uma grande confusão de regras e meta-regras e metameta-regras, sem clara distinção conceitual entre elas, ou qualquer resultado demonstrável ao final. Hoje, porém, a difusão dos computadores aumenta dramaticamente a nossa capacidade de manipulação (tanto experimental quanto dedutiva) de silogismos complexos, e expressões praticamente não formalizáveis até há pouco são hoje exprimíveis em algoritmos simples. O que torna bastante praticável a modelagem do comportamento adaptativo sugerido pelo enquadramento conceitual aqui esboçado, com um largo espectro de combinações concretas de regras operacionais derivadas da operação de um conjunto limitado de regras e meta-regras (e meta-metaregras... mas, ainda assim, limitado). O alcance dessa nova agenda de pesquisa é bastante concreto, e pode ser brevemente ilustrado pelos resultados encontráveis em Skyrms (1996; 2004). Pois bem. Aonde isso nos levaria? No que tange aos propósitos de inquirição conceitual presentes
naquele
resumo
de
Budapeste,
algumas
implicações
podem
ser
preliminarmente levantadas – particularmente no que toca ao propósito, sempre fugidio, de caracterização operacionalmente apropriável do conceito de cultura. De saída, o presente enquadramento endossa a crítica feita por James Johnson (em artigo traduzido pela Teoria & Sociedade em 2004) à maneira como a literatura sobre “cultura política” tem se apropriado do tema ao longo dos últimos quarenta anos. Para Johnson, em vez de uma coleção relativamente volátil de opiniões capturáveis num questionário de survey, a cultura exprimiria antes – à maneira de Clifford Geertz – as “lentes” interpretativas pelas quais diferentes povos examinariam e compreenderiam o mundo à sua volta. Aqui, também, ao adotarmos uma montagem mais complexa do problema, parece conceitualmente problemática a aproximação entre “cultura” e “opinião”. Uma noção relevante de cultura para o arcabouço adotado aqui não será redutível a opiniões coletáveis num survey, uma vez que seria tipicamente impossível, dentre as respostas coletadas, discriminar entre a adesão verbal a uma regra corriqueira (que os
metodólogos chamam de efeito de “desejabilidade social”) e sua operação efetiva na vida cotidiana. Ela se constituiria pela cristalização, em um nível agregado de análise, de diferentes dinâmicas identificáveis de regras operando ou não ao nível dos indivíduos. Importa dizer, neste ponto, que não é relevante o nível de análise de onde se parte aqui: se do plano agregado, de onde se contempla uma cultura “dada” e se indaga sobre seus efeitos na conduta das pessoas, ou se das regras adotadas no plano individual, de onde se infeririam padrões agregados específicos, em princípios definíveis e tipificáveis. Trata-se apenas de dois níveis de análise possíveis do mesmo objeto empírico, e que portanto devem ser mutuamente consistentes. Idealmente, deveríamos ser capazes de alcançar um conjunto de padrões culturais identificáveis que viriam a compor uma taxonomia passível de análise – mas é claro que estamos muito aquém desse desiderato. Caso se logrem avanços nessa agenda, contudo, é de se esperar que se propiciem condições bastante mais favoráveis à compreensão de processos complexos referentes à dinâmica da participação e da apatia política, com seus conteúdos cognitivos e valorativos subjacentes. Meus planos? Primeiro, permanecer disponível para o que puder aparecer, e tratar de aproveitar, em vez de reclamar. Depois, segurar um pouquinho mais firme o timão no que toca à agenda dos sistemas complexos. Concluído o mandato à frente do PET em 2010, cogito uma temporada como pesquisador associado no IEAT e, por volta de 2012, talvez, enfim, um pós-doutorado – até porque minha esposa agora está com planos de um doutorado, o que poderia viabilizar uma saída conjunta mais facilmente, com família toda: Laurinha, hoje já com 10, que nasceu com meu doutorado; e André, hoje com 4. Gosto de imaginar levá-los pra ver alguma parte do mundo (nem que seja Ann Arbor...) com eles aos 14 e 8, respectivamente, minha senhora ao lado...
Ao longo desses anos, tenho malhado em ferro frio para conciliar, num equilíbrio razoável, predicados conflitantes que me constituem. Um intelecto propenso à abstração, confiante na capacidade de apropriação e formulação pessoal de objetos teóricos, com capacidade de síntese que se exprime de maneira bem-sucedida nas salas
de aula e nos congressos; porém com atenção dispersiva, hesitante em especializar-se, e continuamente – infantilmente – migrando a cada dia entre tópicos variados. Uma personalidade confiante nas próprias opiniões, mas com uma dependência quase patológica, senão da aprovação, seguramente da afeição de terceiros. Um Professor Pardal, aéreo, absorto em abstrações, que suspira (talvez hipocritamente) por uma vida sossegada, mas que, por sua própria dispersão, sente curiosidade irresistível quanto a outras vidas, outros lugares da universidade, e aceita novos encargos mesmo com sua imensa dificuldade em lidar diligentemente com múltiplas tarefas paralelas. Agora, a hora é de juntar tantos fragmentos dispersos, oxalá semeados, ao longo destes anos, e conferir-lhes um sentido. Retomar o fio, ou antes, construí-lo, afinal, rumo a uma identidade pessoal e profissional, uma cidadania plena no mundo dos adultos, das pessoas sérias, de onde sempre me senti patologicamente distante. Crescer, enfim. Virar gente grande... talvez.
26 de abril a 16 de maio de 2008.