Materia 1

  • October 2019
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UM OÁSIS EM MEIO AO CONFLITO Vilma Goulart A juventude é um momento repleto de contradições. Queremos ser adultos, mas a maior parte do tempo agimos como crianças, e nossas dúvidas passam a ser compartilhadas com os amigos e não mais com os pais, que seriam as pessoas mais indicadas para esclarecê-las. Além disso, quebramos regras a todo instante, como que para entender até onde podemos ir. Por ser uma fase extremamente importante para a consolidação de nossos valores e princípios, a juventude merece, portanto, um olhar especial. Afinal, ela é, provavelmente, a última etapa da vida onde é possível formar um cidadão pleno, canalizando a ‘rebeldia sem causa’ para o desenvolvimento de uma consciência crítica. Em relação aos jovens de classes de baixa renda, então, o esforço deve ser redobrado. É o que mostram pesquisas e estudos recentes, que apontam a necessidade de providências urgentes em relação ao futuro de toda uma geração de crianças e adolescentes desprovidas de recursos e oportunidades para lutar em pé de igualdade com os que tiveram chances de estudar, se formar e trabalhar. Um destes estudos, o relatório “Jovens em Situação de Risco no Brasil”, publicado pelo Banco Mundial em 2007, alerta para o fato de que o Brasil perderá até R$ 320 bilhões na próxima década se não investir nestes jovens, e que dificilmente o País terá no futuro um potencial jovem como o de hoje, pois a previsão é que em 2030 os indivíduos com mais de 55 cheguem a 53,2 milhões, compondo uma grande parcela da população. O mais intrigante é que, mesmo sendo a maioria, a população jovem é a que menos recebe investimentos, pois 70% dos gastos sociais no Brasil são destinados ao grupo com idade acima de 61 anos. Com tão pouco investimento nos jovens de menor poder aquisitivo, as conseqüências acabam surgindo. Questões relacionadas à violência e ao tráfico de drogas já não são novidades nos grandes centros urbanos. Niterói: boas práticas Niterói, que já foi capital do estado do Rio de Janeiro, é detentora de um alto Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). E, embora seja objeto de brincadeira por parte de alguns cariocas, que costumam dizer que o melhor de Niterói é a vista do Rio, a cidade é conhecida por ter um bom nível de qualidade de vida. Mesmo assim, Niterói não consegue escapar dos problemas ligados à violência. As principais facções do tráfico de drogas do Rio de Janeiro também estão presentes por lá. Por enfrentar os mesmos desafios que o Rio de Janeiro, mas em menor escala, Niterói foi escolhida como a cidade da América Latina ideal para fazer parte do Coav (sigla em inglês para ‘Crianças e jovens em Violência Armada Organizada’), movimento internacional que visa investigar as causas da violência entre os jovens em situação de vulnerabilidade social e propor políticas públicas para combater o problema. Segundo Caroline Caçador, do Viva Rio, organização não-governamental que coordena o Coav Cidades, a inovação do movimento é conseguir reunir representantes de diversos segmentos da sociedade, inclusive políticos e órgãos do governo, em uma mesma mesa, para discutir e elaborar projetos que possarm vir a se tornar políticas públicas.

Um dos integrantes destes grupos de trabalho do Coav é a Fenase (Federação Evangélica de Assistência Social El-Shadai), localizada no bairro de Piratininga, em Niterói, e cuja experiência, bem sucedida, nós vamos mostrar um pouco nesta matéria. Projeto Viver A semente do Projeto Viver, da Fenase, foi lançada quando uma assistente social e pastora da Igreja ElShadai, observando a situação de pobreza do entorno da Lagoa de Piratininga, bairro de classe média alta da região oceânica de Niterói, resolveu iniciar um trabalho de evangelismo e assistência social com as crianças que lá viviam. Com a finalidade de tirá-las das ruas, a igreja oferecia alimentação e algumas noções de cidadania. Com o tempo, o projeto foi crescendo, e hoje desenvolve atividades recreativas, educacionais e apoio psicosocial para um total de 150 crianças e adolescentes, e também orientação sociofamiliar para os pais. A base do programa apóia-se em três vertentes: a Infância (6 a 14 anos), a Juventude (14 a 18 anos) e a Família. O atendimento às crianças e adolescentes acontece de 2a à 6a feira, em período integral (de 8h às 17h). Além de três refeições, o projeto oferece recreação musical, iniciação esportiva, artes, passeios e reforço escolar. O Jovem Aprendiz é a iniciação profissional dos adolescentes do Projeto Viver, criada quando a Fenase observou que a garotada ficava preocupada ao completar 18 anos, pois não via muitas alternativas profissionais ao sair de lá. A instituição passou, então, a oferecer a oficina de Auxiliar de Recepção e Eventos – pensando nas futuras possibilidades em restaurantes e casas de festas da região – e também as oficinas de Salão de beleza e Confecção em tecido e couro. Família Para os pais, o fato de ter um lugar onde deixar os filhos no período em que estão trabalhando já significa muito. Há cerca de 7 anos, Noemi Alves, hoje mãe de 4 filhos, procurava um lugar assim, quando viu uma placa de divulgação da Fenase perto da sua casa. Por achar que as atividades eram pagas, ela relutou um pouco em bater à porta da Fundação. Mas finalmente tomou coragem. “Quando eles disseram que não precisava pagar nada, eu olhei para a minha cunhada, sem acreditar (risos)”, diz Noemi. O fato da Fundação também ser um ambiente cristão lhe deu a segurança que faltava para inscrever as crianças no projeto. O filho mais velho, Daniel, de 16 anos, atualmente faz o curso de Auxiliar de Eventos, e é remunerado quando trabalha nos eventos nos quais a Fenase é contratada: “Ele fica todo feliz e na maior expectativa de ir trabalhar quando fica sabendo que haverá uma oportunidade”, diz a mãe. A mudança de comportamento dos filhos, segundo ela, foi visível depois do seu ingresso na instituição. Por terem aprendido a força que tem o diálogo, passaram a ouvir a mãe com mais atenção, a lhe dar satisfações sobre seus passos (para onde vão, a que horas vão voltar), tornaram-se mais obedientes e já não brigam tanto entre si. Outro aprendizado importante é o da educação sexual, um assunto ainda considerado tabu por muitas famílias. “Na minha época, meu pai e minha mãe não conversavam essas coisas comigo. Eu aprendia mais com as minhas colegas. E eu, sinceramente, ainda tenho vergonha de falar muitas coisas com meus filhos – confessa Noemi - Então até nisso a Fenase me ajuda”.

A integração da Fenase com a família representa para ela a chave do sucesso da instituição. “Aqui nós somos uma família. Não tem essa de deixar os nossos filhos aqui para eles cuidarem. A gente se comunica o tempo todo”. Os encontros Família e Comunidade compõem o eixo do projeto cujo objetivo principal é promover a reflexão junto aos pais sobre os papéis da família, da sociedade e do Estado na construção do presente e do futuro da infância e da adolescência. A diretora Ana Ribeiro conta que em 2006 eles desenvolveram todo um trabalho com base no “Livro das Famílias”, uma publicação da Fiocruz e da Sociedade Brasileira de Pediatria sobre os vários tipos de violência na família e na comunidade. Ano passado foi a vez de trazer sobreviventes de violências familiares e comunitárias para relatar suas experiências. Também em 2007 foram realizados passeios como culminância de um trabalho de promoção da convivência familiar e comunitária. Para 2008 a meta é oferecer cursos de geração de renda e qualificação profissional para estes pais, também com base nas demandas locais do comércio. Presente e futuro: opiniões A instituição parece ser realmente a segunda casa tanto dos pais quanto dos filhos. Mesmo que não estejam mais freqüentando as atividades do projeto, os jovens voltam para visitar os profissionais da instituição, inclusive os que chegaram a se envolver com o tráfico. “Embora sabendo que o movimento de venda de drogas representa uma concorrência desleal na conquista dos adolescentes, a Fenase oferece carinho, atenção e limites, e eles sentem falta disso”, afirma a psicóloga Sandra Ricardo Silva Carneiro. Ainda que não tenham indicadores formais dos resultados obtidos com os beneficiários do projeto, a Fundação percebeu que os jovens que, eventualmente, debandaram ou voltaram para o tráfico foram aqueles que a instituição não conseguiu atingir a família. Por isso, Sandra é categórica ao afirmar que, como todo o trabalho de prevenção, quanto mais cedo as crianças ingressam no projeto, mais resultados elas obtêm. E resultados não faltam. Desde coisas mais simples, como aprender a comer com garfo e faca, passando pelo bom atendimento aos clientes durante os eventos nos quais trabalham – onde entendem que não podem discriminar, por exemplo, portadores de deficiência física ou homossexuais. A psicóloga chama a atenção para o fato de que o “servir”, hoje, tem uma outra conotação para eles, não mais a de subserviência, mas de algo interessante. Outro aprendizado marcante é o cuidado que passaram a ter com o que se tornou importante e bom na vida deles. O Pastor Luis Roberto Andrade Hildefonso, um dos fundadores da Fenase, abre os portões da Fundação duas vezes por mês, aos sábados, para que a meninada vá lá jogar bola, e permite que eles tragam os colegas. “O curioso - diz o Pastor - é que desde a primeira vez eu reparei que eles não trazem ninguém ligado às atividades ilícitas. Parece que procuram preservar o lugar e também o entrosamento que têm aqui” No bate-papo com a nossa reportagem, ficou claro que eles sabem o peso que as más companhias têm na escolha do caminho a seguir e, por isso mesmo, tentam mantê-las à distância: “Acho que muitos entram nesta vida errada por revolta”, diz Jhonathan, 14 anos. Seu colega – e quase homônimo - Jonathan, de 15 anos, pensa que entra quem quer, porque há outras opções sem ser o tráfico.

Durante a conversa, eles vão, aos poucos, revelando suas opiniões, sonhos e desejos. Maicon, 17 anos, lembra que não há bandidos só nas favelas, mas também em outras esferas: “Tem policial corrupto, tem político corrupto. Tem ‘Mensalão’, tem ‘Cuecão’”. Perguntamos o que eles pensam das notícias divulgadas diariamente pela tv e pelos jornais e, mais uma vez, é Maicon que toma a palavra: “A gente liga a tv, só tem desgraça, só tem morte. Eu acho que o mundo tá ficando mais violento”. Em relação à profissão, poucos ainda sabem o que querem fazer. Natália é filha de Noemi - a mãe que entrevistamos para esta matéria – e diz que nunca pensou no futuro. Argumentamos que todo mundo tem um sonho, e que ela, certamente, deveria ter um. Ainda assim Natália continuou sem saber dizer qual seria. Resolvemos, então, dar-lhe mais um tempo para pensar, contanto que ela revelasse qual é a profissão dos seus sonhos até o final do nosso encontro. Para os rapazes que vivem em comunidades de baixa renda, a carreira militar é uma alternativa muito cogitada. E não é diferente com Thiago, de 16 anos, que vem pensando em fazer esta opção. Já cursar uma faculdade parece ser um sonho mais distante para vários deles. Mas Renan, de 19 anos, conta que está dividido entre ser biólogo marinho e fazer uma graduação na área de informática, pois após ter um contato maior com os computadores, seu interesse pela área tecnológica aumentou. O futuro A família é considerada o bem mais importante para estes jovens, e é ela quem baliza, em boa parte das vezes, as suas escolhas e comportamentos futuros. A família de Jhonathan, por exemplo, lhe ensinou a ter respeito pelos mais velhos e a ter cuidado com determinadas companhias. Para Maicon é com a família que as pessoas podem contar na hora de um aperto. E ele não esquece dos ensinamentos do pai, falecido há dois anos: respeitar os mais velhos, ser alguém na vida e ficar longe do tráfico. O mais surpreendente, no entanto, talvez seja o depoimento de Jonathan, cujo maior desejo nesta vida é ser pai: “Pode até ser careta, mas eu tenho a maior vontade de ser pai. Eu adoro criança, e acho o maior barato poder, um dia, brincar com um filho meu”. São sonhos que só têm coragem de aparecer já no final da conversa, como o de Natália. Talvez envergonhada por ter um sonho aparentemente tão longe da sua realidade, sente-se estimulada pela confissão de Jonathan, e finalmente revela o que quer ser quando crescer: pedagoga. Aprender a sonhar, portanto, parece ser outra meta alcançada pelo Projeto Viver, considerado por seus funcionários, dirigentes e beneficiários um “oásis” de tranqüilidade, conhecimento, diversão e acolhimento. Só nos resta, agora, esperar que “oásis” como este se repliquem Brasil afora, transformando o deserto de possibilidades das estatísticas atuais em um verdadeiro mar de oportunidades para jovens que, como Jonathan, Daniel, Maicon, Jhonathan, Renan e Natália, têm um enorme potencial para se tornarem cidadãos plenos. FONTES: Fenase: (21): 2619-2588 Banco Mundial: www.workbank.org Coav: www.coav.org.br Viva Rio: www.vivario.org.br

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