Livro - Agamben, Giorgio - O Sacramento Da Linguagem.pdf

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( EDIToRAufmg .)

o SACRAMENTO DA LINGUAGEM Arqueologia do juramento

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HUMANITAS

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Giorgio Agamben

GIORGIO

o

SACRAMENTO ARQUEOLOGIA

(HOMO

AGAMBEN

DA

LINGUAGEM

DO JURAMENTO

SACER li, 3)

Tradução SELVINO

JosÉ

ASSMANN

Belo Horizonte Editora UFMG 2011

© 2008, Gius. Laterza & Figli, todos os direitos reservados. Publicado em acordo com Marco Vigevani Agenzia Letteraria. Título orginal : 11sacramento dei linguaggio.

Archeologia dei giuramento. © 2011, Editora UFMG Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido escrita do EclitoL

A259s

Agamben,

Giorgio,

O sacramento

por qualquer meio sem autorização

1942da linguagem.

Arqueologia

sacer lI, 3) / Giorgio Agamben ; tradução: Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.

do juramento

CHomo

Selvino José Assmann.

-

91 p. - CHumanitas) Tradução

de: Il sacramento

dellinguaggio.

Archeologia

dei giuramento

Inclui bibliografia. ISBN: 978-85-7041-885-2 1. Juramentos Selvino José.

- História.

lI. Título.

2. Juramentos

- Filosofia.

r. Assmann,

III. Série. CDD:320.01 CDU:32

Elaborada Biblioteca

pela DITTI - Setor de Tratamento Universitária da UFMG

DIRETORA DA COLEÇÃO

da Informação

Heloisa Maria Murgel Starling

COORDENAÇÃO EDITORIAL Danivia Wolff ASSISTÊNCIA EDITORIAL Eliane Sousa e Euclídia Macedo COORDENAÇÃO

E PREPARAÇÃO DE TEXTOS Maria do Carmo Leite Ribeiro

REVISÃO TÉCNICA Olimar Flores-Júnior REVISÃO DE PROVAS Gláucio Rocha Gabriel, Juliana Santos e Simone Ferreira COORDENAÇÃO GRÁFICA, FORMATAÇÃO E MONTAGEM DE CAPA Cássio Ribeiro PROJETO GRÁFICO

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PRODUÇÃO GRÁFICA Warren Marilac

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Pampulha

Von diesen Vorgangen meldet kein Zeuge; sie zu verstehn bietet unser eignes Bewusstsein keinen Anhalt. Nur eine Urkunde ist uns von ihnen geblieben, so schweigsam dem unkundigen, wie beredt dem kundigen: die Sprache. [A respeito desses processos, nenhuma testemunha nos informa, a nossa consciência não nos fornece pretexto algum. Resta-nos apenas um documento, tão mudo para o ignorante, quão eloquente para o erudito: a linguagem.] Hermann Usener

Der Schematismus der Verstandesbegriffe ist... ein Augenblick in welchem Metaphysik und Psysik beide Ufer zugleich berühren Styx intetjusa. [O esquematismo dos conceitos do intelecto é... um instante no qual metafísica e física juntam as suas margens Styx intetjusa.] Immanuel Kant

SUMÁRIO

o SACRAMENTO

DA LINGUAGEM

9

BIBLIOGRAFIA

85

ÍNDICE ONOMÁSTICO

89

o

SACRAMENTO

DA LINGUAGEM

1. Em 1992, o livro de Paolo Prodi, 11sacramento dei potere, chamou fortemente a atenção para a importância decisiva do juramento na história política do Ocidente. Situado como articulação entre religião e política, o juramento não só testemunha a "dupla pertinência" (Prodi, p. 522) que define, segundo o autor, a especificidade e a vitalidade da cultura ocidental cristã; ele, de fato, foi também - tal é o diagnóstico de que parte o livro (ibid., p. 11) - a "base do pacto político na história do Ocidente", que, enquanto tal, é possível encontrar exercendo um papel importante toda vez que este pacto entra em crise ou volta a ser reatado de maneiras diferentes, do início do cristianismo até a luta pelas investiduras, desde a "sociedade jurada" da Idade Média tardia até a formação do Estado moderno. Coerente com essa sua função central, o declínio irreversível do juramento em nosso tempo tem tudo a ver, segundo Prodi, com uma "crise que investe o próprio ser do homem como animal político" (ibid.). Se atualmente somos "as primeiras gerações que, não obstante a presença de algumas formas e liturgias do passado C ..), vivem a própria vida coletiva sem o juramento como vínculo solene e total, sacralmente ancorado, a um corpo político" (ibid.), isso significa, então, que nos encontramos, sem termos consciência disso, no limiar de "novas formas de associação política", cuja realidade e cujo sentido ainda nos resta degustar. Como está implícito no subtítulo (O juramento político na história constitucional do Ocidente), o livro de Prodi é uma investigação histórica e, como costuma acontecer em tais investigações,

o autor não se põe o problema do que ele mesmo define como o "núcleo a-histórico e imóvel do juramento-acontecimento" Cibid., p. 22). Desse modo, a definição "do ponto de vista antropológico", a que ele brevemente acena na Introdução, repete lugares comuns extraídos das pesquisas dos historiadores do direito, dos historiadores da religião e dos linguistas. Como acontece com frequência, quando um fenômeno ou um instituto se põe no cruzamento entre territórios e disciplinas diferentes, nenhuma delas pode reivindicar integralmente o juramento como seu, e no volume muitas vezes imponente dos estudos específicos não encontramos uma tentativa de síntese que dê conta da sua complexidade, da sua origem e da sua relevância global. Tendo, por outro lado, em consideração que não parece cientificamente recomendável fazer um compêndio eclético dos resultados de cada disciplina, e que o modelo de "uma ciência geral do homem" já não goza, há tempo, de uma boa reputação, o presente estudo propõe-se não tanto investigar a origem, mas sim fazer uma arqueologia filosófica do juramento. Relacionando o que está em jogo numa investigação histórica como a de Prodi - e que, como toda verdadeira inv"estigação histórica, não pode deixar de questionar o presente - com os resultados das pesquisas da linguística, da história do direito e da religião, trata-se, pois, de nos perguntarmos antes de mais nada: o que é o juramento? O que nele está implicado, se ele define e põe em questão o próprio homem como animal político? Se o juramento é o sacramento do poder político, o que, na sua estrutura e na sua história, tornou possível que ele fosse investido de semelhante função? Que plano antropológico, em todo sentido decisivo, nele está implicado, para que o homem todo, na vida e na morte, pudesse, nele e por ele, ser colocado em questão? 2. A função essencial do juramento na constituição política é expressa claramente na passagem de Licurgo que Prodi ressalta no seu livro. "O juramento - lê-se aqui - é o que mantém [to synechon] unida a democracia." Prodi poderia ter citado outra passagem do filósofo neoplatônico Hiérocles, que, no ocaso do helenismo, parece reforçar essa centralidade do juramento transformando-o no princípio complementar da lei: "Mostramosantes 10

que a lei [nomos] é a operação sempre igual por meio da qual Deus traz eterna e imutavelmente todas as coisas à existência. Agora, denominamos juramento [horkos] aquilo que, seguindo tal lei, conserva [diaterousan] todas as coisas no mesmo estado e as torna estáveis, de maneira que, enquanto elas estão contidas na garantia do juramento e mantêm a ordem da lei, a imutável firmeza da ordem da criação é o cumprimento da lei criadora" (Hirzel, p. 74; cf. Aujoulat, pp. 109-110). Convém prestar atenção nos verbos que expressam a função do juramento nas duas passagens. Tanto em Licurgo, quanto em Hiérocles, o juramento não cria, não traz à existência, mas mantém unidos (synechô) e conserva (diatereô) o que algo diferente (em Hiércoles, a lei; em Licurgo, os cidadãos ou o legislador) trouxe à existência. Função análoga parece conferir ao juramento aquilo que Prodi define como o texto fundamental que a cultura jurídica romana nos legou sobre este estatuto, a saber, a passagem do De officiis (III, 29, 10) na qual Cícero define o juramento da seguinte forma: Sed in iure iurando non qui metus sed quae vis sit, debet intellegi; est enim iusiurandum affirmatio religiosa; quod autem affirmate quase deo teste promiseris id tenendum est. Iam enim non ad iram deorum quae nulla est, sed ad iustitiam et ad fidem pertinet.1 Affirmatio não significa simplesmente um proferimento linguístico, mas aquilo que confirma e garante (o sucessivo affirmate promiseris só reforça a mesma ideia: "O que prometeste na forma solene e confirmada do juramento."). E é para essa função de estabilidade e garantia que Cícero chama a atenção, ao escrever no início: "No sacramento é importante compreender não tanto o medo que ele gera, mas a sua eficácia própria [vis]." E aquilo em que consiste tal vis resulta inequivocamente da definição etimológica da fides, que, segundo Cícero, está em questão no juramento: quia fiat quod dictum est appelatam fidem (ibid., I, 23).2 1

No juramento, porém, não deve ser considerado o medo, mas qual é sua eficácia; o juramento é, de fato, uma afirmação religiosa: o que prometeste solenemente, como se Deus fosse testemunha disso, é o que deve ser mantido. Não se trata, realmente, da ira dos deuses, que não existe, mas da justiça e da fé. (N.T.)

2

Por fazer aquilo que é dito chama-se de fé. (N.T.) 11

É na perspectiva dessa vis específica que importa reler as palavras com que Émile Benveniste, no início do seu artigo de 1948, intitulado L 'expression du serment dans Ia Grece ancienne [A expressão do juramento na Grécia antiga], indica a sua função: [O juramento] é uma modalidade particular de asserção, que apoia, garante, demonstra, mas não fundamenta nada. Individual ou coletivo, o juramento só existe em virtude daquilo que reforça e torna solene: pacto, empenho, declaração. Ele prepara ou conclui um ato de palavra que só possui um conteúdo significante, mas por si mesmo não enuncia nada. Na verdade é um rito oral, frequentemente completado por um rito manual, cuja forma é variável. E a sua função não reside na afirmação que produz, mas na relação que institui entre a palavra pronunciada e a potência invocada (Benveniste [1], pp.81-82). O juramento não tem a ver com o enunciado como tal, mas com a garantia da sua eficácia: o que nele está em jogo não é a função semiótica e cognitiva da linguagem como tal, mas sim a garantia da sua veracidade e da sua realização.

3. Tanto as fontes quanto os estudiosos parecem concordar em afirmar que o juramento, nas suas diferentes formas, tem a função precípua de garantir a verdade e a eficácia da linguagem. "Os homens - escreve Fílon - sendo infiéis (apistoumenoi, isentos de pistis, ou seja, de credibilidade), recorrem ao juramento para obter confiança" (De sacro Ab. et Caini 93). Tal função parece ser tão necessária à sociedade humana que, apesar da evidente proibição de qualquer forma de juramento nos Evangelhos (cf. Mt. 5, 33-37 e Tg. 5, 12), ele foi acolhido e codificado pela Igreja, transformando-o em parte essencial do próprio ordenamento jurídico, legitimando assim a sua manutenção e a sua progressiva extensão para o direito e para as práticas do mundo cristão. E quando, em 1672, Samuel Pufendorf acolhe, no seu De jure naturae et gentium, a tradição do direito europeu, é precisamente sobre a sua capacidade de garantir e confirmar não apenas os pactos e os acordos entre os homens, mas, de forma mais geral,

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a própria linguagem, que ele fundamenta legitimidade do juramento:

a necessidade

e a

Através do juramento, a nossa linguagem e todos os atos que se concebem através da linguagem [sermoni eoneipiuntun recebem uma insigne confirmação (jirmamentum]. A respeito destes [atos] poderia ter falado oportunamente mais adiante, na seção em que são abordadas as garantias dos pactos; contudo preferi falar deles nesse lugar, pois com o juramento são confirmados não só os pactos, mas também a nossa simples linguagem [quod iureiurando non paeta solum, sed et simplex sermo soleat eonfirmari] (Pufendorf, p. 326). Poucas páginas depois, Pufendorf reforça o caráter acessório do vínculo do juramento, que, ao mesmo tempo que confirma uma asserção ou uma promessa, pressupõe não somente a linguagem, mas, no caso do juramento promissório, o proferimento de uma obrigação: "Os juramentos em si não produzem uma nova e peculiar obrigação, mas sobrevêm como um vínculo de algum modo acessório [velut accessorium quoddam vinculum] a uma obrigação válida em si" Cibid., p. 333). Portanto, o juramento parece ser um ato linguístico destinado a confirmar uma proposição significante (um dictum), garantindo sua verdade ou sua efetividade. É dessa definição - que estabelece uma distinção entre o juramento e seu conteúdo semântico - que precisamos verificar a correção e as implicações. ~ Sobre a natureza essencialmente verbal do juramento (embora ele possa vir acompanhado por gestos, como o de erguer a mão direita) há uma concordância da maioria dos estudiosos, de Lévy-Bruhl a Benveniste, de Loraux a Torricelli. Com referência à natureza do dietum, costuma-se fazer uma distinção entre juramento assertório, que se refere a um fato passado (confirmando, portanto, uma asserção), e juramento promissório, que se refere a um ato futuro (nesse caso, é confirmada uma promessa). A distinção já aparece claramente enunciada em Sérvio (Aen. XII, 816: Juro tune diei debere eum eonfirmamus aliquid aut promittimus). Contudo, não é sem razão que Hobbes remetia essas duas formas de juramento a uma só figura, essencialmente promissória: Neque obstat, quod iusiurandum

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non solum promissorium, sed aliquando aifirmatorium dici possit: nam qui aifirmationem iuramento confirmat, promittit se vera respondere3 (De cive lI, 20). A diferença tem a ver, de

fato, não com o ato de juramento, idêntico nos dois casos, mas com o conteúdo semântico do dictum. 4. No final da sua reconstrução da ideologia das três funções mediante a epopeia dos povos indo-europeus, Georges Dumézil examina um conjunto de textos (celtas, irânicos e védicos) nos quais parecem estar em jogo os males ou os "flagelos" (fléaux) correspondentes a cada uma dessas funções. Trata-se, por assim dizer, dos "flagelos funcionais" das sociedades indo-europeias, cada uma das quais ameaça uma das três categorias ou funções fundamentais: os sacerdotes, os guerreiros, os agricultores (em termos modernos: a religião, a guerra, a economia). Em um dos dois textos celtas examinados, o flagelo correspondente à função sacerdotal é definido como "a dissolução dos contratos orais", a saber, a renegação e o desconhecimento das obrigações assumidas (cf. Dumézil [1],p. 616). Também os textos irânicos e védicos evocam o flagelo em termos semelhantes: a infidelidade à palavra dada, a mentira ou o erro nas fórmulas rituais. É possível pensar que o juramento seja o remédio contra este "flagelo indo-europeu", que é a violação da palavra dada e, de maneira mais geral, a possibilidade da mentira inerente à linguagem. Contudo, justamente para fugir de tal flagelo, o juramento se revela singularmente inadequado. Nicole Loraux, no seu estudo sobre Giuramento, figlio di Discordia4 [juramento, filho de Discórdia], deteve-se numa passagem de Hesíodo (lbeog., 231232), na qual o juramento é definido negativamente só através da possibilidade do perjúrio, "como se o primeiro não tivesse outro objetivo senão punir o segundo, e tivesse sido criado, a título de flagelo maior, só para os perjúrios que ele próprio produz, pelo simples fato de existir" (Loraux, pp. 121-122).Assim,já na época

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E não tem nenhuma importância se o juramento consiste numa promessa, ou, como certas vezes sucede, numa afirmação; pois quem confirma sua afirmação mediante um juramento está prometendo falar a verdade. (N.T.) Este é o título de uma das partes do livro de N. Loraux, La cité divise. L'oubli dans Ia mémoire d'Athenes. Paris: Payot & Rivages, 1997. (N.T.)

arcaica, quando o vínculo religioso poderia ter sido mais forte, o juramento parece implicar constitutivamente a possibilidade do perjúrio e ser destinado, paradoxalmente, - conforme sugere Loraux - não a impedir a mentira, e sim a combater os perjúrios. Independente de como se entende a etimologia do termo grego usado para o perjúrio (epiorkos), sobre o qual os estudiosos não param de discutir, é certo que na Grécia arcaica e clássica ele é considerado óbvio. Assim, Tucídides, ao descrever as cidades assoladas pela guerra civil, afirma que já não existe "palavra segura nem juramento que incuta temor", mas a inclinação dos gregos (especialmente dos espartanos) para o perjúrio era proverbial mesmo em tempo de paz. Platão, por sua vez, desaconselha o juramento das partes nos processos, pois isso levaria a descobrir que metade dos cidadãos são perjuros (As leis, XII, 948e). É significativo que, por volta do séc. III a.c., os chefes de escola estoicos discutissem se era suficiente, para que houvesse perjúrio, que aquele que prestava juramento tivesse, no instante do proferimento, a intenção de não o manter (era a opinião de Cleanto), ou se era necessário, conforme sustentava Crisipo, que ele não cumprisse de fato o que havia prometido (d. Hirzel, p. 75; Plescia, p. 84). Como garantia de um contrato oral ou de uma promessa, o juramento aparecia, com toda evidência, e desde o início, totalmente inadequado ao objetivo, e uma simples sanção da mentira certamente teria sido mais eficaz. Aliás, o juramento não constitui um remédio contra o "flagelo indo-europeu", mas antes é o próprio flagelo que está presente no seu interior na forma do perjúrio. É possível então que, originalmente, no juramento não estivesse em jogo apenas a garantia de uma promessa ou a veridicidade de uma afirmação, mas que o instituto que hoje conhecemos com este nome contenha a memória de um estágio mais arcaico, no qual ele tinha a ver com a própria consistência da linguagem humana e com a própria natureza dos homens enquanto "animais falantes". O "flagelo" que ele devia impedir não era unicamente a inconfiabilidade dos homens, incapazes de serem fiéis à própria palavra, mas uma fraqueza que tem a ver com a própria linguagem, com a capacidade das palavras de se referirem às coisas, e a dos homens de se darem conta da sua condição de seres que falam. 15

A passagem de Hesíodo a que Loraux se refere aparece em Tbeog. 231-232: "Horkos, que aos homens sobre a terra grande desgraça / traz, quando alguém voluntariamente perjura." Sempre na Teogonia(775-806), a água do Estige é descrita como "o grande juramento dos deuses" (cheõn megan horkon) e, também nesse caso, ela faz o papel de "grande flagelo para os deuses (mega pema theoisin), pois quem dos mortais, espargindo a mesma [água do Estige], jura um perjúrio C ..) até que passe um ano jaz sem alento e sem voz num estendido leito e mau torpor o cobre (...) e quando o mal perfaz um ano, passa de uma a outra prova mais áspera: por nove anos a fio é mantido longe dos deuses sempre vivos, e não frequenta com eles nem conselho nem banquetes". Contudo, desde sua origem, o nexo entre juramento e perjúrio aparece tão essencial que as fontes falam de uma verdadeira "arte do juramento" - em que, segundo Homero (Od., 19, 394), se destacava Autólico - que consistia em proferir juramentos que, graças a artifícios verbais, tomados ao pé da letra, podiam significar algo diferente do que podiam entender as pessoas a quem eram prestados. Nesse sentido, deve ser entendida a observação de Platão segundo a qual "Homero tem grande estima por Autólico, o avô materno de Odisseu, e afirma que ele superava todos os homens na arte de roubar e de jurar" (kleptosynei th'horkõi te) (República, 334b). l'li

5. Como se deve entender a arche que está em questão em uma investigação arqueológica, como aquela que aqui nos propomos? Até a primeira metade do século XX, nas ciências humanas, o paradigma de investigação desse tipo havia sido elaborado pela linguística e pela gramática comparada. A ideia de que fosse possível retomar, através de uma análise puramente linguística, a estados mais arcaicos da história da humanidade, foi entrevista no final do século XIX por Hermann Usener, na sua pesquisa sobre os Nomes dos deuses. Perguntando-se, no início de sua investigação, como pôde acontecer a criação de nomes divinos, ele sugere que, para responder a semelhante pergunta, não temos outros documentos senão os que provêm de uma análise da linguagem (cf. Usener, p. 5). No entanto, já antes dele a gramática comparada havia inspirado as investigações

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dos estudiosos

- como Max Müller e Adalbert

Kuhn, além

de Émile Burnouf - que, nos últimos trinta anos do século XIX, haviam tentado fundamentar a mitologia comparada e a ciência das religiões. Assim como a comparação entre formas linguísticas aparentadas permitia remontar a períodos da língua não atestados historicamente (aquelas formas indo-europeias, por exemplo, *deiwos ou *med, que os linguistas costumam fazer preceder por um asterisco para as distinguir das palavras documentadas nas línguas históricas), assim também era possível remontar, através da etimologia e da análise dos significados, a estágios da história das instituições sociais que, do contrário, seriam inacessíveis. Nesse sentido é que Dumézil pôde definir a sua investigação como obra "não de um filósofo, mas de um historiador da história mais antiga e da franja de ultra-história [de Ia plus vieille histoire et de Ia jrange d'ultra-histoire] que se pode sensatamente tentar alcançar" (Dumézil [2],p. 14), declarando ao mesmo tempo o seu débito com a gramática comparada das línguas indo-europeias. A consistência da "franja de ultra-história" que aqui o historiador busca alcançar está, portanto, associada à existência do indo-europeu e do povo que o falava. Ela existe no mesmo sentido e na mesma medida em que existe uma forma indo-europeia; mas cada uma dessas formas, ao pretendermos ser rigorosos, nada mais é do que um algoritmo que expressa um sistema de correspondências entre as formas existentes nas línguas históricas e, segundo as palavras de Antoine Meillet, o que denominamos indo-europeu nada mais é que "o conjunto desses sistemas de correspondências C ..) que pressupõe uma língua x falada por homens x em um lugar x em um tempo x') em que x equivale simplesmente a "desconhecido" (Meillet, p. 324). A não ser que se queira legitimar o monstrum de uma investigação histórica que produz os seus documentos originais, do indo-europeu nunca poderão ser extrapolados acontecimentos que se supõem historicamente acontecidos. Por isso, o método de Dumézil constituiu um progresso significativo com relação à mitologia comparada do final do século XIX, ao reconhecer, por volta de 1950, que a ideologia das três funções (sacerdotes, guerreiros, pastores, ou,

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em termos modernos, religião, guerra, economia) "não se traduzia necessariamente, na vida de uma sociedade, numa divisão tripartite real dessa sociedade, segundo o modelo indiano", mas que ela representava, isso sim, e precisamente, uma "ideologia", algo parecido com "um ideal, e ao mesmo tempo, um modo de analisar e interpretar as forças que regulam o curso do mundo e a vida dos homens" (Dumézil [I), p. 15). No mesmo sentido, quando Benveniste publica, em 1969, o seu Vocabulário das instituições indo-europeias, declarando na premissa que, nas suas análises, "não entra qualquer pressuposto extralinguístico" (Benveniste [2], I, p. 10), certamente não fica esclarecido de que maneira devem ser entendidos o locus epistemológico e a consistência histórica daquilo que ele chama de "instituição indo-europeia". Convém definir nesse caso, na medida do possível, a natureza e a consistência da "história mais antiga" e da "franja de ultra-história" que uma arqueologia pode alcançar. De fato, é evidente que a arche a que a arqueologia procura remontar não pode ser entendida de algum modo como um dado situável em uma cronologia (mesmo que seja em uma grade espaçosa de tipo pré-histórico) e nem sequer, para além dela, em uma estrutura meta-histórica intemporal (por exemplo - como dizia ironicamente Dumézil- no sistema neuronal de um hominídeo). Ela é, sobretudo, uma força ativa na história, exatamente assim como as palavras indo-europeias expressam, antes de mais nada, um sistema de conexões entre as línguas historicamente acessíveis; assim como a criança, na psicanálise, é uma força que continua agindo na vida psíquica do adulto; e como o big bang, que se supõe ter dado origem ao universo, é algo que não para de mandar para nós a sua radiação fóssil. Contudo, à diferença do big bang, que os astrofísicos procuram datar, embora em termos de milhões de anos, a arche não é um dado, uma substância ou um acontecimento, mas sim um campo de correntes históricas tesas entre a antropogênese e o presente, entre a ultra-história e a história. E, como tal - ou seja, enquanto, assim como a antropogênese, ela é algo que se supõe necessariamente acontecido, mas que não pode ser hipostasiado em um acontecimento na

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cronologia - ela pode, eventualmente, dos fenômenos históricos.

permitir a inteligibilidade

Por conseguinte, investigar arqueologicamente o juramento equivalerá a orientar a análise dos dados históricos, que limitamos, no seu essencial, ao âmbito greco-romano, na direção de uma arche tesa entre a antropogênese e o presente. Por outras palavras, a hipótese consiste em que a enigmática instituição, ao mesmo tempo jurídica e religiosa, que designamos com o termo "juramento", se tornará inteligível unicamente se a situarmos numa perspectiva na qual ela pôe em questão a própria natureza do homem como ser falante e como animal político. É disso que provém a atualidade de uma arqueologia do juramento. A ultra-história, assim como a antropogênese, não é um acontecimento que se possa considerar realizado uma vez por todas; ela sempre está em curso, pois o homo sapiens nunca cessa de se tornar homem; ele talvez ainda não tenha terminado de aceder à língua e de jurar sobre a sua natureza de ser falante.

6. Antes de prosseguir nossa investigação, será necessano limpar o terreno de um equívoco preconceituoso, que impede o acesso à "história mais antiga" ou à "franja de ultra-história" que uma arqueologia pode sensatamente esperar atingir. São exemplares, nesse sentido, as análises que Benveniste dedicou ao juramento, primeiro no artigo, já citado, de 1947 e, depois, no Vocabulário das instituições indo-europeias. Em ambas, é essencial o abandono da etimologia tradicional do termo horkos, que o remetia a herkos, "recinto, barreira, vínculo", e a interpretação da expressão técnica para o juramento - horkon omnymai - como "aferrar com força o objeto sacralizante". Horkos designa, portanto, "não uma palavra ou um ato, mas uma coisa, a matéria investida pela potência maléfica, que confere ao empenho o seu poder obrigante" (Benveniste [1], pp. 85-86). Horkosé a "substância sagrada" Cibid., p. 90), que se encarna, em cada oportunidade, na água do Estige, no cetro do herói ou nas vísceras das vítimas sacrificais. Seguindo os passos de Benveniste, um grande historiador do direito grego, Louis Gernet, lembra, praticamente com os mesmos termos, a "substância sagrada"

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com que se põe em contato aquele que profere o juramento (Gemet [1],p. 270: "Jurar significa ingressar na esfera das forças religiosas, a saber, as mais terríveis"). A ideia segundo a qual explicar um instituto histórico significa necessariamente reconduzi-lo a uma origem e a um contexto sagrado ou mágico-religioso é tão forte nas ciências humanas, a partir do final do século XIX, que, quando Jean Bollack, em 1958,escreve o seu artigo "Styxet serments" a fim de demonstrar, contra Benveniste, que o termo horkos adquire seu verdadeiro sentido unicamente se o remetermos à sua derivação etimológica de herkos, não se dá conta de que, no fundo, mantém o essencial da argumentação que ele tem a pretensão de criticar:

o juramento coloca o jurante, através da força mágica das coisas, numa relação particular com os objetos invocados e com o mundo (...) Muitos objetos invocados, como o lar, pertencem ao campo do sagrado. Contudo, num universo vastamente sacralizado,todo objeto que serve de testemunha podia transformar-se, de garantia e guarda, em potência terrificante. É esta relação específica, que liga o homem aos objetos invocados, que acaba sendo definida pelo termo horkos, que não designa - como pensa Benveniste- o objeto sobre o qual o juramento é proferido, mas o recinto com o qual quem jura se faz circundar CBollack,p. 30-31). A sacralidade desloca-se aqui do objeto para a relação, mas a explicação continua a mesma. Segundo um paradigma insistentemente repetido, a força e a eficácia do juramento devem ser buscadas na esfera das "forças" mágico-religiosas, a que ele pertence em sua origem e que se pressupõe ser a mais arcaica: as "forças" derivam dela e declinam com o declínio da fé religiosa. Nesse caso, tem-se como pressuposto para o homem que nós conhecemos historicamente um homo religiosus, que existe apenas na imaginação dos estudiosos, pois todas as fontes disponíveis nos apresentam sempre, como vimos, um homem religioso e, ao mesmo tempo, irreligioso, fiel aos juramentos e, ao mesmo tempo, também capaz de perjúrio. O que aqui pretendemos questionar é precisamente esse tácito pressuposto de qualquer análise do instituto.

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~ Como sugere o próprio Benveniste, a tese sobre o horkos como "substância sagrada" deriva de um artigo de Elias Bickermann, estudioso da antiguidade clássica, que era também um excelente historiador do judaísmo e do cristianismo. O referido artigo, publicado em 1935, na Revue des Études]uives, refere-se ao juramento só como exemplo de método, no âmbito de uma crítica ao livro de Gerardus van der Leeuw sobre a Fenomenologia da religião, publicado dois anos antes. Os princípios metodológicos que Bickermann expõe parecem ter exercido notável influência em Benveniste, embora reflitam, de fato, uma formação cultural comum (Bickermann que, desde 1933, havia lecionado na École Pratique des Hautes Études de Paris, e até 1942, quando foi obrigado, pela sua origem judaica, a refugiar-se nos Estados Unidos - onde seu nome se tornará Bickerman - havia sido chargé des recherches [encarregado de pesquisas] no Centre National de Ia Recherche Scientifique, se remete explicitamente ao método de Antoine Meillet, que havia sido o mestre de Benveniste). O que acontece é que os quatro princípios metodológicos recomendados por Bickermann (abandono do recurso à psicologia para explicar os fenômenos religiosos; decomposição dos fatos nos seus elementos constitutivos ou "temas"; análise da função de cada elemento na sua particularidade; estudo da função de cada elemento no fenômeno em questão) estão pontualmente presentes em Benveniste. Mais uma vez, contudo, um estudioso tão atento, ao examinar detalhadamente o juramento a fim de exemplificar o seu método, repete acriticamente o paradigma da primordialidade do sagrado, que Benveniste retomará quase nos mesmos termos: "Sempre e em todos os lugares, a ideia consiste em colocar uma afirmação em relação com uma coisa sagrada C ..) o objetivo, contudo, continua sendo o mesmo: colocar a afirmação em relação com a Substância sagrada" (Bickermann, pp. 220-221). 7. A respeito da pretensa ambivalência do termo sacer, mostramos noutro lugar (Agamben, pp. 79-89) as insuficiências e as contradiçôes ligadas à doutrina do "sagrado" elaborada na ciência e pela história das religiões entre o final de século XIX

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e os primeiros decênios do século xx. Basta recordarmos aqui que o momento determinante na constituição desse "mitologema científico", que condicionou negativamente as investigações das ciências humanas num setor especialmente delicado, é o encontro entre a noção latina do sacer e a de mana, que um missionário anglicano, Robert Henry Codrington, havia descrito na sua obra sobre as populações da Melanésia (TheMelanesians, 1891). Catorze anos antes, Codrington já havia comunicado a sua descoberta em carta a Max Müller, que a usou nas Hilbert Lectures, onde o conceito de mana se transforma no modo em que "a ideia do infinito, do invisível, e daquilo que mais tarde será chamado o divino, pode aparecer em forma vaga e nebulosa junto aos povos mais primitivos" (Müller, p. 63). Nos anos seguintes, a noção reaparece sob diferentes nomes nos estudos etnográficos sobre os indígenas norte-americanos (orenda entre os iroqueses; manitou entre os algonquinos; wakan entre os dacotas), até que Robert Marret, no seu Threshold of Religion (909), transforma tal "força" invisível em categoria central da experiência religiosa. Apesar da inconsistência das teorias sobre a religião de autores como Müller (que exerceu uma verdadeira ditadura sobre a nascente "ciência"- ou melhor, como ele preferia chamá-Ia - "história" das religiões) e Marret, a quem se deve a noção de animismo (outro mitologema científico que custa morrer), a ideia de um "poder ou de uma substância sagrada", terrível e ao mesmo tempo ambivalente, vaga e indeterminada, como categoria fundamental do fenômeno religioso, exerceu sua influência não apenas sobre Durkheim, Freud, Rudolf, Otto e Mauss, mas também sobre essa obra-prima da linguística do século XX que é Vocabulário das instituições indo-europeias de Benveniste. Foi preciso esperar pelo ensaio de Lévi-Strauss,de 1950,para que o problema do significado de termos como mana fosse abordado em bases inteiramente novas. Em páginas memoráveis, Lévi-Straussfez aproximações desses termos com expressões comuns da nossa linguagem, como truc (troço) ou machin (negócio), usadas para designar um objeto desconhecido ou cujo uso não se consegue explicar. Mana, orenda, manitou não designam algo parecido com uma substância sagrada nem os sentimentos 22

sociais relativos à religião, mas sim um vazio de sentido ou um valor indeterminado de significação, que tem a ver, sobretudo, com os próprios estudiosos que a eles recorrem: Sempre e em qualquer lugar, esse tipo de noções, como se fossem símbolos algébricos, intervém para representar um valor indeterminado de significação, em si mesmo sem sentido e, portanto, capaz de receber qualquer significado, cuja única função consiste em preencher um vazio entre significante e significado ou, mais exatamente, em assinalar que, numa determinada circunstância, numa determinada ocasião, acaba sendo estabelecida uma relação de inadequação entre significante e significado (Lévi-Strauss, p. XlIV). Se há um lugar - acrescenta Lévi-Strauss - em que a noção de mana de fato apresenta as características de uma potência misteriosa e secreta, esse lugar é, sobretudo, o pensamento dos estudiosos: "Lá realmente o mana é mana" Cibid., p. XLV). No final do século XIX, a religião na Europa havia se tornado, de modo bem evidente, pelo menos para aqueles que pretendiam fazer a sua história ou construir uma ciência a seu respeito, algo tão estranho e indecifrável a ponto de eles precisarem buscar a chave de leitura muito mais entre os povos primitivos do que na própria tradição; tais povos, porém, através dos conceitos como mana, não podiam fazer nada mais do que restituir, como num espelho, a mesma imagem extravagante e contraditória que aqueles estudiosos neles haviam projetado. Falando de uma inevitável desconexão entre significante e significado, Lévi-Strauss retoma e desenvolve de maneira nova a teoria de Max Müller, que vê na mitologia uma espécie de "doença" do conhecimento causada pela linguagem. Segundo Müller, a origem dos conceitos mitológicos e religiosos deve ser buscada, justamente, na influência que a linguagem, em que estão necessariamente presentes paronímias, polissemias e ambiguidades de todo tipo, exerce sobre o pensamento. "Amitologia - escreve ele - é a sombra opaca que a linguagem projeta sobre o pensamento e que nunca poderá desaparecer enquanto língua e pensamento não coincidirem completamente, circunstância que nunca poderá acontecer" (apud Cassirer, p. 13).

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8. Outro aspecto do mitologema que acabamos de descrever (e, de fato, inseparável dele) é a ideia segundo a qual a esfera da sacralidade e da religião - muitas vezes unida à da magia, fazendo com que se fale também, reforçando a confusão, de uma esfera "mágico-religiosa" - coincide com o momento mais arcaico a que a investigação histórica nas ciências humanas, mesmo com prudência, possa chegar. Uma simples análise textual mostra que se trata de uma pressuposição arbitrária, feita pelo estudioso no ponto em que atinge, no próprio âmbito da investigação, um limite ou um umbral documentário, como se a passagem para aquilo que Franz Overbeck denominava Urgeschichte (história das origens) e Dumézil "franja de ultra-história" implicasse necessariamente um salto de olhos fechados para o elemento mágico-religioso, que frequentemente nada mais é do que o nome dado, mais ou menos conscientemente, pelo estudioso, à terra incógnita que se estende para além do âmbito que o paciente trabalho dos historiadores conseguiu definir. Tenha-se em conta, por exemplo, na história do direito, a distinção entre esfera religiosa e esfera profana, cujas marcas distintivas nos aparecem, pelo menos em época histórica, de algum modo definidas. Quando atinge nesse âmbito um estágio mais arcaico, o estudioso tem a impressão que as fronteiras ficam indeterminadas e, por esse motivo, é levado a formular a hipótese de um estágio precedente, no qual a esfera sagrada e a profana (e muitas vezes também a mágica) ainda não se distinguem entre si. Nesse sentido, ao abordar o direito grego mais antigo, Louis Gemet chamou de "pré-direito" Cpre-droit) uma fase originária em que direito e religião aparecem indiscemíveis. Na mesma perspectiva, Paolo Prodi, na sua história política do juramento, evoca um "indistinto primordial", no qual o processo de separação entre religião e política ainda não foi iniciado. Em casos desse tipo, é essencial ter a prudência de não projetar, simples e acriticamente, sobre o pressuposto "indistinto primordial", as características por nós conhecidas que definem a esfera religiosa e a profana, e que são justamente o resultado do paciente trabalho dos historiadores. Do mesmo modo que um composto químico tem propriedades específicas impossíveis de serem reduzidas à soma dos elementos que o compõem, assim

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também aquilo que aparece antes da divisão histórica - admitindo-se que algo semelhante exista - não é necessariamente a soma opaca e indistinta das características que definem os seus fragmentos. O pré-direito não pode ser apenas um direito mais "arcaico", da mesma forma que aquilo que vem antes da religião como a conhecemos historicamente não é apenas uma religião mais primitiva (o manna); aliás, seria aconselhável evitar o uso dos próprios termos religião e direito, e tentar imaginar um x, para cuja definição precisamos nos armar de toda cautela possível, realizando uma espécie de epoche arqueológica, que suspenda, pelo menos provisoriamente, a atribuição dos predicados com que costumamos definir religião e direito. O que, nessa altura, deveria ser questionado é o umbral de indistinção com que se choca a análise de pesquisador. Não é algo que deva ser incautamente projetado sobre a cronologia, como um passado pré-histórico para o qual realmente faltam os documentos, mas ser visto como um limite interno, cuja compreensão, ao serem questionadas as distinções adquiridas, pode levar a uma nova definição do fenômeno. O caso de Mauss constitui um bom exemplo para mostrar como a pressuposição do conjunto sacral age decididamente, embora venha a ser, pelo menos em parte, neutralizada pela atenção especial dada aos fenômenos que define o seu método. A Esquisse de uma teoria geral da magia, de 1902, começa com uma tentativa de distinguir os fenômenos mágicos frente à religião, ao direito e à técnica, com os quais muitas vezes tinham sido confundidos. No entanto, a análise de Mauss se depara todas as vezes com fenômenos (por exemplo, os ritos jurídico-religiosos que contêm uma imprecação, como a devo tio) que não é possível atribuir a uma única esfera. Assim, Mauss é levado a transformar a oposição dicotômica religião - magia numa oposição polar, traçando dessa maneira um campo, definido pelos dois extremos do sacrifício e do malefício, e que apresenta, necessariamente, umbrais de indecidibilidade (cE. Mauss, p. 14). É sobre estes umbrais que ele concentra o seu trabalho. O resultado, conforme observou Dumézil, é que já não haverá para ele fatos mágicos, por um lado, e fatos religiosos, por outro; aliás, "o seu objetivo principal consistiu em ressaltar a complexidade de todos os t'I;

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fenômenos e a tendência da maior parte dos mesmos de irem além de qualquer definição, por se situarem simultaneamente em níveis diversos" (Dumézil [3], p. 49). 9. Venhamos agora ao juramento, que - na única época em que o podemos analisar, a saber, aquela para a qual dispomos de documentos - se apresenta como um instituto jurídico que contém elementos que costumamos associar à esfera religiosa. É totalmente arbitrário distinguir nele uma fase mais arcaica, em que nada mais seria do que um rito religioso, de uma fase mais moderna, a qual pertence plenamente ao direito. De fato, desde os documentos mais antigos de que dispomos, como é o caso, em Roma, da inscrição do vaso de Dvenos, que é datado do final do séc. VI a.c., o juramento se apresenta como uma fórmula promissória de caráter certamente jurídico - no caso específico, como a garantia prestada pelo tutor da mulher ao (futuro) marido no momento do casamento ou do noivado. Contudo, a fórmula, escrita em latim arcaico, menciona os deuses, ou melhor, jura os deuses Ciovesat deiuos quoi me mitat: "quem me manda é o vaso que fala - jura (pelos) os deuses" - Dumézil [3], pp. 14-15). Aqui, de modo algum, precisamos pressupor como mais antiga, na história do juramento, uma fase puramente religiosa que nenhum documento disponível atesta como tal: de fato, na fonte mais antiga que a tradição latina nos permite alcançar, o juramento é um ato verbal destinado a garantir a verdade de uma promessa ou de uma asserção, que apresenta as mesmas características mostradas mais tarde pelas fontes e que, por nenhum motivo, precisamos definir como mais ou menos religioso, mais ou menos jurídico. O mesmo vale para a tradição grega. O juramento que as fontes mais antigas nos apresentam numa vasta casuística implica o testemunho dos deuses, a presença de objetos (o cetro, como acontece no "grande juramento" - megas horkos- de Aquiles, no início da llíada, mas também os cavalos, o carro ou as vísceras do animal sacrificado; são todos elementos encontrados em época histórica) para juramentos que certamente têm natureza jurídica (assim como ocorre nos pactos entre cidades federadas, em que o juramento é definido "legal", horkos nomimos - d. Glotz, p. 749),

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E, conforme verificamos, também os deuses juram, invocando a água do Estige; e, tendo em conta o que Hesíodo nos diz sobre a punição do perjúrio feito por um Deus, também os deuses estão submetidos à autoridade do juramento. Além disso, contamos com um testemunho importante, o de Aristóteles, que nos informa que os filósofos mais antigos, "que por primeiro fizeram especulações em torno do divino [theologesantas]", colocavam entre os primeiros princípios do cosmo, ao lado de Oceano e de Tétis, "o juramento sobre a água que chamam Estige" [Met.) 983b, 32]' e acrescenta: "O mais antigo [presbytaton] é o mais venerável [timiõtaton], e o mais venerável é o juramento [horkos de timiõtaton estin]" (ibid.) 34-35), De acordo com este testemunho, o juramento é o que há de mais antigo, não menos antigo do que os deuses, que, aliás, estão, de algum modo, submetidos a ele. Isso, porém, não significa que ele deva ser pensado como "substância sagrada"; pelo contrário, o contexto da passagem, que é o da reconstrução do pensamento de Tales no interior da breve história da filosofia que abre a Metajísica, nos induz sobretudo a situarmos o juramento entre os "princípios primeiros" [prõtai aitiai] dos filósofos pré-socráticos, como se a origem do cosmo e do pensamento que o compreende implicasse de alguma maneira o juramento. Todo o problema da distinção entre o jurídico e o religioso, especialmente no caso do juramento, está, portanto, mal colocado. Não só não temos motivo para postular uma fase pré-jurídica na qual ele pertenceria apenas à esfera religiosa, mas talvez deva ser revista toda a nossa maneira habitual de representarmos a relação cronológica e conceitual entre o direito e a religião. Talvez o juramento nos apresente um fenômeno que não seja, em si, nem (só) jurídico, nem (só) religioso, mas que, precisamente por isso, possa nos permitir repensarmos desde a sua raiz o que é o direito, o que é a religião. Ao contrapormos direito e religião, importa lembrar que os romanos consideravam a esfera do sagrado como parte integrante do direito. O Digesto começa distinguindo ius publicum, que diz respeito ao status reipublicae, e ius privatum, que tem a ver com a singulorum utilitatem; logo depois, porém, o ius publicum

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é definido como o direito "que consiste nas coisas e nos ritos sagrados, nos sacerdotes e nos magistrados" Ciuspublicum quod in sacris, in sacerdotibus, in magistratibus consistit) (Ulpiano, Dig. I, 1). No mesmo sentido, Gaio (Inst. 11,2) distingue as coisas de acordo com o fato de pertencerem ao ius divinum ou ao ius humanum, esclarecendo que divini iuris sunt veluti res sacrae et religiosae [são, como tais, do direito divino as coisas sagradas e religiosas]; contudo, esta summa divisio das coisas é, obviamente, interna ao direito.

10. Dois textos permitir-nos-ão retomar a análise do juramento em novas bases. O primeiro é uma passagem das Legum allegoriae (204-208) de Fílon, que, a propósito do juramento que Deus fez a Abraão em Gn. 22, 16-17, põe o juramento numa relação constitutiva com a linguagem de Deus: Observa que Deus não jura sobre algum outro - não há ninguém que lhe seja superior -, mas sobre si mesmo, pois ele é o melhor de todos. Alguns dizem, porém, que jurar não tem a ver com ele porque o juramento é feito tendo em vista a confiança [pisteõs heneka], e só Deus é digno de confiança [pistos] C ..) O fato é que as palavras de Deus são juramentos [hoi logoi tou theou eisín horkoi], leis divinas e normas sacrossantas. E a prova da sua força reside no fato de que aquilo que ele diz acontece [an eipei ginetai], o que constitui a característica mais específica do juramento. Consequência disso é que aquilo que ele diz, todas as palavras de Deus são juramentos confirmados pelo fato de se cumprirem nos atos [ergon apotelesmasiJ. Dizem que o juramento é um testemunho [martyria] de Deus sobre as coisas pelas quais se luta. Mas quando é Deus quem jura, ele estaria testemunhando por si mesmo, o que é absurdo, pois quem dá testemunho e aquilo pelo qual se testemunha devem ser diferentes. (...) Se entendermos de maneira correta a expressão "jurei sobre mim mesmo", daremos um ponto final a tais sofismas. Talvez a situação seja a seguinte: ninguém dos que podem dar uma garantia [pistoun dynatai] pode fazê-Io com segurança com respeito a Deus, pois a ninguém ele mostrou sua natureza, mas a manteve escondida a todo o gênero humano (...) Portanto, ele só pode fazer afirmações sobre si mesmo, pois só ele

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conhece exatamente e sem erros a sua própria natureza. Na medida em que só Deus pode, com certeza, comprometer-se consigo e com suas ações, por isso, e com razão, ele jurou sobre si mesmo, tornando-se fiador de si mesmo [õmnye kath 'heautou pistoumenos heauton], e nenhum outro o poderia fazer. Por esse motivo, deveriam ser considerados ímpios os que dizem jurar sobre Deus: ninguém, de fato, jura sobre ele, porque não se pode ter conhecimento da sua natureza. Devemos contentar-nos de poder jurar sobre o seu nome, ou seja, sobre a palavra que dele é intérprete [tou ermeneõs logou]. E este é o Deus para os seres imperfeitos, enquanto o Deus dos perfeitos e dos sábios é o primeiro. Por isso, Moisés, cheio de maravilha pelo excesso do não gerado, disse: "jurarás sobre o seu nome" e não sobre ele. A criatura gerada só pode dar confiança e testemunho da palavra de Deus, enquanto o próprio Deus é a fé [pistis] e o testemunho mais forte de si. Procuremos resumir em cinco teses as implicações breve tratado sobre o juramento:

desse

1. O juramento é definido como a realização das palavras nos fatos (an eipéi ginetai - correspondência pontual entre palavra e realidade). 2. As palavras de Deus são juramentos. 3. O juramento é o lagos de Deus, e só Deus jura verdadeiramente. 4. Os homens não juram sobre Deus, mas sobre o nome dele. 5. Por não sabermos nada de Deus, a única definição certa que podemos dar a respeito dele é que ele é o ser, cujos logo são horkoi, cuja palavra, com absoluta certeza, dá testemunho de si.

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O juramento, definido pela correspondência entre palavras e atos, cumpre nesse caso uma função absolutamente central, e não só no plano teológico, enquanto define Deus e o seu lagos, mas também no plano antropológico, enquanto relaciona a linguagem humana com o paradigma da linguagem divina. Se o juramento é, de fato, a linguagem que sempre se realiza nos fatos, e este é o lagos de Deus (no De saerifieiis [65], Fílon escreverá que "Deus, no mesmo instante em que fala, faz lho theos legõn hama epoiei]"); o juramento dos homens é, então, a tentativa de

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adequar a linguagem humana a este modelo divino, tornando-o, tanto quanto é possível, pistas, crível. No De sacrificiis (93), Fílon insiste nessa função do juramento. Os homens - escreve ele - sendo infiéis, apelam para o juramento a fim de obter credibilidade; Deus, pelo contrário, mesmo quando fala é confiável [pistas],pois seus logoi em nada diferem, quanto à certeza, de um juramento. Nós acrescentamos às afirmações o juramento, enquanto é Deus quem torna confiável o próprio juramento. Deus não é crível por causa [dia] do juramento, mas o juramento é seguro por causa de Deus. Pensemos sobre a recíproca implicação entre Deus e o juramento contida na última frase, que retoma um modelo retórico frequente não apenas no judaísmo, e que age enquanto inverte uma verdade estabelecida (bom exemplo disso é o que consta em Me. 2,27: "o sábado é feito para [dia] o homem e não o homem para o sábado"). Na tradição clássica, pistas é, por excelência, o harkas, assim como, na tradição judaica, pistas [eman] é, por excelência, o atributo de Deus. Desenvolvendo esta analogia, (talvez seguindo os passos do verso de Ésquilo - fr. 369 - no qual se lê que "o juramento não é fiador do homem, mas o homem, do juramento"), Fílon estabelece uma conexão essencial entre Deus e juramento, fazendo deste a própria palavra de Deus. Dessa maneira, porém, não só a linguagem humana, mas também o próprio Deus acaba sendo irresistivelmente remetido para a esfera do juramento. No juramento, a linguagem humana comunica-se com a de Deus; por outro lado, se Deus é o ser cujas palavras são juramentos, será totalmente impossível decidir se ele é confiável por causa do juramento, ou se o juramento é confiável por causa de Deus.

11. O segundo texto é a célebre passagem do De aificiis (HI, 102-107), de que já citamos algumas linhas, e que agora devemos situar no seu devido contexto. Nela se trata do comportamento de Atílio Régulo que, enviado a Roma pelos inimigos de quem era

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prisioneiro com o juramento de que retomaria, decide retomar sabendo que seria levado à morte. A pergunta que Cícero faz tem a ver com a origem do poder obrigante do juramento. "O que acontece - perguntar-se-á - no juramento? O que tememos, realmente, é a ira de ]úpiter?" Em todo caso - responde ele todos os filósofos afirmam que oS deuses não se irritam nem fazem mal aos seres humanos. É nesta altura que ele enuncia a célebre definição do juramento que já citamos: "No juramento não deve ser compreendido o medo que ele gera, mas qual é a sua eficácia [non qui metus sed quae vis sit debet intellegi]. O juramento é uma afirmação religiosa [aifirmatio religiosa]: o que prometeste solenemente, como se Deus fosse testemunha disso, é o que deves manter." É decisiva a argumentação

com a qual Cícero fundamenta, nesse momento, a vis do juramento. Ela não diz respeito à ira dos deuses, que não existe (quae nulla est), mas à confiança (fides). A obrigatoriedade do juramento não deriva, portanto, segundo a opinião demasiadamente repetida pelos estudiosos modernos, dos deuses, que foram chamados apenas como testemunhas, mas do fato de que o mesmo se situa no âmbito de um instituto mais amplo, a fides, que regula tanto as relações entre os seres humanos, quanto aquelas entre os povos e as cidades. "Quem viola um juramento, viola a confiança" (Quis ius igitur iurandum violat, is fidem violat). Na passagem, citada anteriormente, do primeiro livro da obra, a fides, "fundamento da justiça", havia sido definida etimologicamente, assim como aconteceu em Fílon, através da realização do que é dito: quia fiat quod dictum est appellatamfidems Cibid., I, 23). A fé é, pois, essencialmente, a correspondência entre a linguagem e as ações. Régulo - assim pode concluir Cícero - agiu bem observando o seu juramento: se é lícito não observar um juramento com os piratas, com os quais, enquanto hostes omnium [inimigos de todos], não pode existir uma fé comum, seria injusto "perturbar com perjúrio os pactos e os acordos que regulam as guerras e a hostilidade" (condiciones pactionesque bellicas et hostiles perturbare periuro).

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Porque se faz o que é dito chama-se de fé. (N.T.)

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l'; É oportuno esclarecer o significado do termo religiosus na definição ciceroniana do juramento. Res religiosa é, em Roma, o que foi consagrado aos deuses inferiores (religiosae quae diis manibus relictae sunt - Gaio 2, 2); nesse sentido, é religiosus por excelência o sepulcro, o lugar em que foi inumado um cadáver (corpus, que os romanos distinguiam de cadaver, que designa um morto sem sepultura). A res religiosa é subtraída ao uso profano e ao comércio, e não pode ser alienada nem gravada de servidão, não pode ser dada em usufruto ou como penhora, nem sequer pode ser transformada em objeto de qualquer contrato (d. Thomas, p. 74). De maneira mais geral, a coisa religiosa, assim como a coisa sagrada, está sujeita a uma série de prescrições rituais, que a tornam inviolável e que é preciso observar escrupulosamente. Compreende-se assim em que sentido Cícero pôde falar do juramento como aifirmatio religiosa. A "afirmação religiosa" é uma palavra garantida e sustentada por uma religio, que a subtrai ao uso comum e, ao consagrá-Ia aos deuses, a transforma em objeto de uma série de prescrições rituais (a fórmula e o gesto do juramento, a convocação dos deuses como testemunhas, a maldição em caso de perjúrio etc). O duplo sentido do termo religio, que, segundo os léxicos, significa tanto "sacrilégio, maldição", quanto "escrupulosa observância das fórmulas e normas rituais", nesse contexto explica-se sem dificuldades. Em certa passagem do De natura deorum (II, 11), os dois sentidos aparecem, ao mesmo tempo, distintos e justapostos: o cônsul Tibério Graco, que havia se esquecido de pedir a proteção [dos deuses] no momento da designação dos seus sucessores, prefere admitir o seu erro e anular a eleição ocorrida contra a religio, ao invés de deixar que um "sacrilégio" (religio) contamine o Estado: peccatum suum, quod celari posset, confiteri maluit, quam haerere in republica religionem, consules summum imperium statim deponere, quam id tenere punctum temporis contra religionem.6 É nesse sentido que, ao fazer coincidir os dois significados

do termo, tanto Cícero quanto César e Lívio podem falar de uma "religião do juramento" (religia iusiurandi). De maneira 6

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Preferiu confessar o seu pecado, que poderia ter ocultado, ao invés de, na vida pública, ficar devendo ã religião; (preferiu) depor imediatamente os cônsules detentores do sumo poder para não manter o poder, por pouco tempo que fosse, contra a religião. (N.T.)

semelhante, Plínio, referindo-se às prescrições a observar com respeito a determinadas partes do corpo, pode falar de uma religio que tem a ver com os joelhos, com a mão direita e inclusive com a urina (Hominum genibus quaedam et religio inest observatione gentium (...) inest et aliís partibus quaedam religio, sicut in dextera: osculis adversa adpetitur, in fide porrigitur (NH, XI, 250-251). E quando, em texto de caráter mágico, lemos a fórmula contra a dor de garganta: hanc religionem evoco, educo, excanto de istis membris, medullis 7 (Mauss, p. 54), religio vale tanto como "malefício", quanto como conjunto das fórmulas rituais que devem ser observadas a fim de produzir (e eliminar) o feitiço. Quando, ao projetar, anacronisticamente, um conceito moderno sobre o passado, se fala atualmente de uma "religião romana", não se deve esquecer que, segundo a clara definição posta por Cícero nos lábios do pontífice máximo Cota, ela nada mais era do que o conjunto das fórmulas e das práticas rituais a observar no ius divinum: cum omnis populi Romani religio in sacra (as consagrações) et in auspicia (auspícios que devem ser consultados antes de qualquer ato público importante) divisa sit (De nato deorum III, 5), Por esse motivo, ele podia indicar a sua etimologia (aliás, compartilhada pelos estudiosos modernos) no verbo relegere, observar escrupulosamente: qui autem omnia quae ad cultum deorum pertinerent diligente r retractarent et tamquam relegerent, sunt dicti religiosi ex relegendo8 (ibid., II, 72). 12. A proximidade entre fé e juramento não deixou de ser percebida pelos estudiosos e é comprovada pelo fato de que, no grego, pistis é sinônimo de horkos em expressões como: pistin kai horka poieisthai (prestar juramento), pista dounai kai lambanein (fazer troca de juramento). Em Homero, pista (confiáveis) são, por excelência, os juramentos. E, no âmbito 7

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Do interior destes membros, eu chamo, eu faço sair, eu atraio por encanto esta religião. (N.T.) Todas as coisas que pertencem ao culto dos deuses diligentemente retratadas e de algum modo relidas, disso se diz que são religiosas pela releitura. (N.T.)

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latino, Ênio, num verso citado por Cícero, define a fides como "juramento de Júpiter" (ius iurandum !ovis). Além disso, é significativo que sejam apresentadas não só fórmulas de juramento "para a pistis dos deuses", mas também "para a própria pistis' - kata tés heauton pisteãs diomosamenoi (Dion. Hal. XI, 54) - e que, aliás, a "pistis de cada um" Cidia hekastãi pistis) valesse como o megistos horkos Cibid., II, 75; d. Hirzel, p. 136). Dumézil e Benveniste reconstituíram, a partir de dados sobretudo linguísticos, as linhas originais da antiquíssima instituição indo-europeia que os gregos denominavam pistis, e os romanos, fides (em sânscrito, sraddha): a "fidelidade pessoal". A "fé" é o crédito com que se conta junto a alguém, como consequência do fato de que somos abandonados confiavelmente a ele, ligando-nos numa relação de fidelidade. Por isso, a fé é tanto a confiança que depositamos em alguém - a fé que damos - quanto a confiança com que contamos junto a alguém - a fé, o crédito que temos. O velho problema dos dois significados simétricos do termo "fé", ativo e passivo, objetivo e subjetivo, "garantia dada" e "garantia inspirada", para a qual havia chamado a atenção Eduard Frankel em famoso artigo, explica-se, sem dificuldades, sob essa perspectiva: "Aquele que detém a fides nele colocada por um homem mantém tal homem em seu poder. Por isso, fides torna-se quase sinônimo de dicio e potestas. Na sua forma primitiva, tais relações implicavam alguma reciprocidade: depositar a própria fides em alguém merecia, em troca, a sua garantia e a sua ajuda. Mas é precisamente esse fato que marca a desigualdade das condições. Trata-se de uma autoridade que é exercida conjuntamente com a proteção sobre aquele que se submete, em troca da sua submissão e na mesma medida desta" (Benveniste [2]2, pp. 118-119). Dessa forma, torna-se compreensível a forte vinculação entre os dois termos latinos fides e credere, que viria a assumir tanta importância no âmbito cristão. Meillet havia mostrado que o antigo substantivo verbal *kred tinha sido substituído no uso da fides, que expressava noção bem semelhante. Credere justamente significava, na sua origem, "dar o * kred", depositar a própria fé em alguém de quem se espera proteção e, dessa maneira, vincular-se com ele na fé (frequentemente, com o aperto da mão direita: dextrae dextras iungentesfidem

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obstrinximus - LIV. 23, 9, 3).

Além de regulamentar as relações pessoais, a fides cumpria uma função importante no direito público internacional, na relação particular que se instaurava através dela entre as cidades e os povos. Numa guerra, a cidade inimiga podia ser vencida e destruída com a força (kata kratos), enquanto seus habitantes eram mortos ou reduzidos à escravidão. Contudo, também podia acontecer que a cidade mais fraca recorresse ao instituto da deditio in fidem, ou seja, que capitulasse, remetendo-se incondicionadamente à lides do inimigo, comprometendo assim, de algum modo, o vencedor a assumir um comportamento mais benevolente. Também este instituto era chamado, pelos gregos, de pistis (dounai eispistin, peithesthai) e, pelos romanos, de fides (in fidem populi Romani venire ou se tradere)9. Também aqui encontramos a íntima relação entre fé e juramento: as cidades e os povos que se vinculavam mutuamente na deditio in fidem trocavam entre si juramentos para sancionar tal relação. A fides é, portanto, um ato verbal, acompanhado em geral de um juramento, Com o qual alguém se entrega totalmente à "confiança" de outrem, obtendo, em troca, a sua proteção. O objeto da fides é, em todo caso, assim como no juramento, a conformidade entre as palavras e as ações das partes. Dumézil mostrou que, quando em Roma a história do período monárquico foi pouco a pouco construída de maneira retrospectiva e assumiu uma forma definida, a fides, que cumpria papel importante na vida pública e privada, acabou sendo divinizada e associada à figura de Numa, a quem se atribuía a fundação das sacra e das leges (Dumézil [4], p. 184). Fides torna-se, assim, uma deusa, para a qual, por volta do ano 250, foi construído um templo no Capitólio romano; contudo, assim como para Deus Fidius, a respeito do qual se discute se, originalmente, era distinto ou não de Júpiter, e que, assim como Mitra, era uma espécie de "contrato personificado" Cibid.), aqui a religião não precede, mas, se muito, sucede o direito. Portanto, com a fides, exatamente assim como acontece com o juramento, encontramo-nos em uma esfera na qual o problema 9

Render-se ao povo romano ou se entregar. (N.T.)

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da relação genética entre religião e direito deve ser retomado em novas bases. Frente à complexidade desses institutos, que parecem ser ao mesmo tempo morais, religiosos, sociais e jurídicos, de nada serve recorrer, conforme fazem alguns, às categorias do pré-direito (d. Imbert, p. 411). O fato de os institutos em questão não serem sancionados juridicamente (impunidade do perjúrio na época mais antiga, ausência de ação legal para o credor que apelou para a fides do devedor) não significa que eles devam ser considerados mais religiosos do que jurídicos; significa, sim, que a investigação com eles chegou a um limite, que nos obriga a reconsiderarmos as nossas definições do que é jurídico e do que é religioso. É lugar comum da doutrina sobre o juramento afirmar que a ausência de sanção do juramento na época antiga seja o sinal do seu pertencimento à esfera religiosa, enquanto a punição do perjúrio teria sido deixada para os deuses. Os estudiosos continuam citando o dictum de Tácito, deorum iniunas dis cume (Ann. 1, 73), sem se preocuparem com o contexto jurídico-político do qual é tirado. Rubírio foi acusado frente a Tibério de "ter violado, com um perjúrio, o numen de Augusto" (trata-se, pois, de um tipo especial de juramento "pelo gênio do imperador", que se tornará comum na idade imperial). O problema não é se o perjúrio em geral é punível ou não, mas se Rubírio deve ser acusado, por causa do seu perjúrio, de crime de lesa-majestade. Tibério, naquele momento, prefere não se servir de um motivo de acusação de que - conforme nos informa Tácito - mais tarde fará um uso feroz, afirmando sarcasticamente que "no caso daquele juramento se deve considerar que tivesse sido ofendido Júpiter: as ofensas aos deuses são assunto dos deuses [deorum iniunas

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dis cume]". Não se trata, de modo algum, segundo as palavras de um comenta dor leviano, de um "antigo princípio do direito romano", mas do sarcasmo de um imperador cuja escassa piedade religiosa era conhecida (circa deos et religiones negligentior- Suetônio, Tib. 69). Isso acaba sendo confirmado pelo fato de que o outro caso no qual encontramos o mesmo princípio aparece bem mais tarde, referindo-se significativamente ao mesmo problema da aplicabilidade do delito de lesa-majestade a um juramento

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sobre o numen principis (também aqui a resposta do imperador é negativa e, com uma provável remissão ao dictum de Tibério, se sugere que iusiurandi contempta religio satis deorum ultorem habet - Codex iuris 4, 1, 210). É incorreto considerar jurídicas só as disposições para as quais era prevista uma sanção. Pelo contrário, Ulpiano afirma de modo explícito que só deve ser considerada peifecta a lei para a qual não se prevê sanção, enquanto a presença de uma sanção torna a lei impeifecta ou minus quam peifecta (Liber sing. Regularum, prol. 1-2)Y No mesmo sentido, a impunidade da mentira em muitos ordenamentos arcaicos não significa que a sua punição fosse da alçada dos deuses. No máximo, é possível que aqui se tenha a ver com uma esfera da linguagem que está aquém do direito e da religião, e que o juramento representa, justamente, o limiar através do qual a linguagem entra no direito e na religio. Quando, em estudo sobre o juramento na Grécia, podemos ler: - "Em linhas gerais, pode-se afirmar que, até ao final do século VI, a punição divina do perjúrio ainda era uma arma eficaz contra os abusos do juramento. No entanto, a partir do século V, o individualismo e o relativismo do movimento sofista começou a minar a antiga noção de juramento, pelo menos para uma determinada parcela da população, e o temor dos deuses no caso do perjúrio começou a desvanecer" (Plescia, p. 86) - trata-se de afirmações que apenas refletem a opinião do autor, que se baseia no mal-entendido sobre uma passagem de Platão (Leis XII, 948b-d), obviamente irônico, no qual Radamante, a quem se atribui a instituição do processo com juramentos, é louvado por ter compreendido "que os homens de então acreditavam realmente que os deuses existiam, e com razão, porque naquele tempo quase todos descendiam dos deuses, e ele mesmo era, pelo menos segundo o que dizem, um deles". A ironia é ainda mais acentuada pelo fato de Platão, fortemente contrário ao uso do juramento das partes no processo, acrescentar que Radamante, "ao dar aos contendores um juramento sobre toda questão contendida, se livrava dela de maneira rápida e segura". 10

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Jurar com prejuízo da religião receberá um castigo dos deuses - Codex iuris. (N.T.) Imperfeita ou menos que perfeita (Liber sing. Regularum). (N.T.)

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Igualmente irônica e isenta de toda nostalgia para uma suposta devoção antiga é a razão aduzida logo depois para a exclusão do juramento das partes: "Ora, quando, no entanto, dizemos que uma parte dos homens de modo algum acredita nos deuses, e outros pensam que eles não cuidam de nós, enquanto a opinião da maioria e dos piores é que, em troca de pequenos sacrifícios e lisonjas, eles os ajudem a subtrair muitas riquezas e os libertem de grandes penas, a arte de Radamante de maneira alguma seria adequada para os processos dos homens de hoje." A objeção essencial contra o juramento das partes consiste, na verdade, em que - conforme se afirma logo depois - o fato de fazer as partes jurarem no processo equivale a obrigar alguém legalmente ao perjúrio: "Realmente é terrível que, havendo muitos processos numa cidade, se passe a ter a certeza de que, assim, quase metade dos cidadãos são perjuros" (d., sempre em Leis X, 887a, a ironia de Platão ao falar da tentativa de "estabelecer por lei que os deuses existem" [nomothetountes ÕS ontõn theõn]). 13. Outro instituto com que o juramento está intimamente vinculado é a sacratio. Aliás, tanto as fontes antigas quanto a maioria dos estudiosos concordam em ver no juramento uma forma de sacratio (ou de devo tio, outro instituto com que a consagração tende a confundir-se). Em ambos os casos, um homem era transformado em sacer, a saber, consagrado aos deuses e excluído do mundo dos homens (ou espontaneamente, como na devotio, ou porque tinha cometido um maleJicium que tornava lícito que qualquer um o matasse). "Denomina-se sacramentum (um dos dois termos latinos para juramento) - lê-se em Festo (466,2) - aquilo que se realiza com a ajuda da consagração do juramento [iusiurandi sacratione interposita]." "O juramento (sacramentum) - escreve Benveniste (Benveniste [2],2, p. 168) - implica a noção de tornar sacer. Associa-se ao juramento a qualidade do sagrado, a mais terrível entre aquelas que um ser humano pode receber: o juramento aparece como uma operação que consiste em tornar sacer de maneira condicional." Por isso, Pierre Noailles pôde, na mesma perspectiva, escrever a respeito do juramento: "O ator no processo consagrou a si mesmo, se

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tornou saceratravés do juramento" (Noailles [I), p. 282). "Asituação do perjuro - escreve Hirzel - não era diferente daquela do sacerromano, que se havia votado aos Manes e, assim como este C .. ) podia ser excluído de toda comunidade religiosa ou civil" (Hirze1,p. 158). No mesmo sentido, o juramento pode ser visto como uma devo tio: "Basta pronunciar o juramento para alguém se tornar um ser 'votado' (...), pois o juramento é uma devotio e, conforme se constatou, o horkos grego implica que alguém se consagre previamente ao poder de uma divindade vingadora em caso de transgressão da palavra dada" (Benveniste [2), 2, p. 243). De tudo isso, nasce, no juramento, a importância da maldição (ara, imprecatio), que acompanha constitutivamente o seu proferimento. Plutarco, nessa fonte preciosa para o conhecimento das antiguidades latinas que são as Quaestiones romanae, já nos informa que "todos os juramentos são concluídos com uma maldição do perjuro" (eis kataran teleutai tes epiorkias - 44). Aliás, os estudiosos tendem a considerar a maldição como a essência do juramento, e a definir, por isso, o juramento como uma maldição condicional: "Amaldição aparece como a parte essencial no juramento, enquanto os juramentos de imprecação valem como os mais poderosos, porque tal aspecto essencial do juramento se manifesta neles de modo mais puro e mais forte. A maldição é o essencial e o originário" (Hirze1,pp. 138-139); "jurar equivale, sobretudo, a maldizer caso se diga o falso ou não se mantenha aquilo que se prometeu" (Schrader, apud Hirze1,p. 141). Bickermann observou que, no entanto, a maldição pode estar ausente (os exemplos alegados não se referem, contudo, a fontes gregas ou latinas) e que, por outro lado, pode haver imprecações sem juramento (d. Bickermann, p. 220). A opinião de Glotz, segundo o qual a maldição acompanha necessariamente o juramento, mas não se identifica com ele, parece, portanto, ser mais correta, e é nesse sentido que se deve entender a recomendação, contida em documentos oficiais, de "acrescentar a maldição ao juramento" Ctãi horkãi tan aran inemen - Glotz, p. 752). Além disso, convém precisar que o juramento comporta muitas vezes tanto uma expressão de maus presságios, quanto a de bons presságios e que, nas fórmulas mais solenes, a maldição sucede uma bênção: "Àqueles que juram lealmente e continuam 39

sendo fiéis ao próprio juramento, que os filhos deem alegria, a terra conceda abundantemente os seus frutos e o gado seja prolífico; aos perjuros, porém, que nem a terra nem os animais tragam frutos, que pereçam mal, eles e a sua estirpe" (ibid.). No entanto, a bênção pode faltar, enquanto a maldição deve, por norma, estar presente (d. Hirzel, p. 138). Esta é a regra em Homero, segundo o qual a maldição vem acompanhada por gestos e ritos eloquentes, como quando, na cena em que os troianos e os aqueus trocam juramentos entre si antes do duelo entre Páris e Menelau, o Atrida derrama ao chão o vinho de uma cratera, 12 e profere a fórmula: "Esparjam-se pela terra, como este vinho, os miolos daqueles que por primeiro transgrediram os juramentos" (Il. III, 299-300).

O juramento parece, portanto, resultar da conjunção de três elementos: uma afirmação, a invocação dos deuses como testemunhas e uma maldição dirigida para o perjúrio. No mesmo sentido, pode-se afirmar que o juramento é um instituto que une entre si um elemento do tipo da Pistis - a confiabilidade recíproca atribuída às palavras proferidas - e um elemento do tipo da sacratio-devotio (a maldição). Na verdade, porém, os três institutos estão entrelaçados, terminológica e fatualmente, de maneira tão íntima (conforme acontece no termo sacramentum, que é ao mesmo tempo juramento e sacratio) que os estudiosos, mesmo sem tirarem todas as consequências dessa proximidade, tendem a tratá-los como um único instituto. É oportuno não esquecer que a série pistis-horkos-ara, ou a de fides-sacramentum, remetem a um único instituto, certamente arcaico, contemporaneamente jurídico e religioso (ou pré-jurídico e pré-religioso), cujo sentido e cuja função devemos procurar entender. Mas isso significa que, sob essa perspectiva, o juramento parece perder a sua identidade específica, acabando por confundir-se com afides e a maldição, dois institutos cuja natureza - sobretudo no que diz respeito à maldição - não fica totalmente clara e, em todo caso, mereceu relativamente pouca atenção por parte dos estudiosos. Por esse

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Cratera é o nome dado a um vaso antigo, em forma de taça, com duas alças, usado por gregos e romanos para colocar o vinho. (N.T.)

motivo, uma análise do juramento deverá, antes de mais nada, confrontar-se com o problema da sua relação com a maldição. l'; A descrição da cena do juramento no Critias (l19d-120d) mostra bastante bem a vinculação entre pistis, horkos e ara. O ato de prestar o juramento é definido, nesse caso, como um modo de "dar-se a fé" e, por outro lado, é o próprio juramento que profere votivamente (epeuchomenos) "grandes maldições": "Quando os reis estavam prestes a fazer justiça, davam-se, dessa maneira, mutuamente a fé [pisteis allelois toiasde edidosanJ C ..) Sobre a coluna, aparecia, além das leis, um juramento que proferia votivamente grandes maldições para quem violava a fé [horkos en megalas aras epeuchomenos tois apeithousinJ C ..) Depois, tirando uma ampola de sangue da cratera e derramando-a sobre o fogo, juravam fazer justiça segundo as leis escritas sobre a coluna e punir todos aqueles que as houvessem violado por primeiro." 14. De resto, basta examinar com mais cuidado os elementos constitutivos do juramento para nos depararmos com incertezas e confusões terminológicas no mínimo surpreendentes. Uma das características do juramento a cujo respeito todos os autores, tanto antigos quanto modernos, de Cícero a Glotz, de Agostinho a Benveniste, parecem estar de acordo é a invocação dos deuses como testemunhas. Nesse sentido, no seu comentário sobre De inte;pretatione de Aristóteles (4a), Amônio13 faz uma distinção entre o juramento e a asserção (apofansis) através do "testemunho de Deus" (martyria tou theou). O juramento, segundo essa doutrina repetida infinitas vezes, é uma afirmação à qual se acrescenta o testemunho divino. As fórmulas imperativas martys esto (PIND, Pyth IV, 166: karteros horkos martys estõ Zeus, "poderoso juramento seja testemunha Zeus") ou istõ Zeus (It. 7, 411: horkia de Zeus istõ, "veja Zeus os juramentos"), atestadas nas fontes antigas, não parecem deixar dúvidas a respeito. Mas de fato é assim? Observou-se que o testemunho aqui analisado difere essencialmente do testemunho em sentido próprio, como o das testemunhas num processo, pois de forma alguma 13

Amônio Saccas (lat: Ammonius Saccas) (175-242), filósofo grego de Alexandria, é considerado o fundador da escola neoplatônica. (N.T.)

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pode ser contestado ou verificado (Hirzel, p. 25). Não é só o número das divindades invocadas que tende a aumentar bem mais do que o número dos "deuses legais" (nomimoi theoi ou theoi horkioi) a ponto de incluir oito, dezesseis e, por fim, "todos os deuses" (conforme acontece no juramento de Hipócrates), mas, às vezes, são chamados como testemunhas rios, árvores e até mesmo objetos inanimados (o "leito legítimo", lechos kouridion -d. li. 15, 39). Em todo caso, é decisivo que no juramento não se trata de modo algum de um testemunho em sentido técnico, porque, à diferença de qualquer outro testemunho concebível, ele coincide com a chamada e se realiza e acaba nela. As coisas não mudam se, conforme sugerem algumas fontes, entendermos o dos deuses não como um testemunho, mas como outorga de uma garantia. Assim como o testemunho, nem sequer aqui pode ocorrer tecnicamente a fiança, nem no momento do juramento, nem depois; pressupõe-se que ela já tenha sido realizada com a profissão do juramento (Hirzel, p. 27). O juramento é, portanto, um ato verbal que realiza um testemunho - ou uma garantia - independentemente do fato de eles acontecerem ou não. A fórmula acima indicada de Píndaro assume nesse caso todo o seu peso; karteros horkos martys estõ Zeus, "poderoso juramento seja testemunha Zeus": Zeus não é testemunha do juramento, mas juramento; testemunha e Deus coincidem no ato de proferir a fórmula. Assim como acontece em Fílon, o juramento é um logos que necessariamente se realiza, e este é, justamente, o logos de Deus. O testemunho é dado pela própria linguagem, e o Deus nomeia uma potência implícita no próprio ato de palavra. Assim, o testemunho que está em questão no juramento deve ser entendido num sentido que pouco tem a ver com o que costumeiramente entendemos com o termo. Ele tem a ver não tanto com a verificação de um fato ou um evento, mas sim com o próprio poder significante da linguagem. Quando, a propósito do juramento proposto por Heitor a Aquiles (cf. li. 22, 254-255), lemos que "os deuses serão as melhores testemunhas [martyroi] e vigilantes daquilo que mantém unido [episcopoi harmoniaõn]",

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o "encaixe" (tal é o significado original do termo harmonia, que provém do léxico da carpintaria), de que os deuses são testemunhas e vigias, só pode ser aquele que une as palavras e as coisas, ou seja, o lagos como tal. Uma glosa de Hesíquio14 (horkoi: desmoi sphragidos) define os juramentos como "vínculos do sigilo" (ou sigilantes, se preferirmos a forma sphragideis). No mesmo sentido, no fr. 115 de Empédocles, se fala de um "decreto eterno dos deuses, sigilado com grandes juramentos" (plateessi katesphregismenon horkois). O vínculo que nesse caso está em jogo só pode ser aquele que liga o falante à sua palavra e, ao mesmo tempo, as palavras à realidade. Hirzel observa com razão que o testemunho divino é invocado não só para o juramento promissório, mas também para o assertório, no qual ele não parece ter sentido, a não ser que aqui esteja em jogo o próprio sentido, a própria força significante da linguagem (d. Hirzel, p. 26).

l'I;

15. Se deixarmos de lado o problema da intervenção dos deuses como testemunhas, para nos voltarmos para o da sua influência no caso da maldição, a situação não é menos confusa. Que a maldição cumprisse na polis uma função importante, é provado pelo fato de que, em perfeita analogia com as teses de Licurgo sobre o juramento - e por mais que isso nos possa escandalizar -, Demóstenes menciona (20, 107) como guardiões da constituição (politeia) não só o povo e as leis (nomoi), mas também as maldições (arai). No mesmo sentido, ao lembrar os vínculos entre os homens praticamente impossíveis de evitar, Cícero cita ao mesmo tempo maldições e fides (Verr. V, 104: ubi fides, ubi exsecrationes, ubi dexterae complexusque?). O que é, nesse caso, uma maldição e qual pode ser a sua função? Mesmo do ponto de vista terminológico, a situação de modo algum fica clara. Os termos que a designam, tanto no grego como no latim, parecem ter significados opostos: ara (e o verbo correspondente epeuchomai) significa, segundo os léxicos, 14

Hesíquio de Alexandria foi um gramática e lexicógrafo que, provavelmente, viveu no século V, e que fez uma compilação de um rico vocabulário de termos incomuns na língua grega. (N.T.)

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tanto "pedido" (e "pedir") quanto "imprecação, maldição" (e "imprecar, maldizer"). O mesmo pode-se dizer para os termos latinos imprecor e imprecatio, que tanto equivalem a "augurar" e a "maldizer" (também devoveo, que significa "consagrar", no caso de uma devo tio aos deuses infernais equivale a "maldizer" em sentido técnico). Todo o vocabulário da sacratio, como se sabe, é marcado por essa ambiguidade, cujas razões procuramos reconstruir noutro momento. Mais uma vez as interpretações da maldição repetem acriticamente o paradigma da primordialidade do fato mágico-religioso e se limitam a remeter a um impreciso "poder numinoso" (d. verbete Fluch no Reallexicon für Antike und Christentum, p. 1.161) ou a evocar a religião como "auxílio prático para a eficácia do direito" (Ziebarth, p. 57). Nessa perspectiva, Louis Gernet, no seu artigo "Le droit pénal de Ia Grece ancienne", pode escrever que a maldição cumpriu papel importante nas origens do direito. Ela sanciona às vezes as leis ou as substitui, conforme verificamos num catálogo de imprecações públicas do século V na cidade de Theos, onde ela é formulada contra uma série de delitos que dizem respeito à segurança do Estado e à própria subsistência da cidade. Naturalmente, é, sobretudo, na vida religiosa e nas práticas do santuário que o seu uso acabou sendo perpetuado; mas não pode deixar de se tratar de uma tradição muito antiga. A maldição supõe a colaboração das forças religiosas: estas (que, por princípio, nem sequer são representadas de forma pessoal) são de algum modo condensadas pela virtude mágica do rito oral e agem sobre o culpado e sobre o que o circunda, ressequindo neles a fonte de toda vida. A imprecação exerce o seu efeito letal até mesmo sobre a terra, sobre o que nasce dela e dela se nutre. E, ao mesmo tempo e pelo fato de ela ser uma devo tio, a maldição significa uma exclusão da comunidade religiosa constituída pela sociedade: ela se manifesta através de uma interdição em sentido próprio e, na sua aplicação concreta, é um ato de pôr fora da lei (Gemet [2], pp. 11-12). Só o prestígio do paradigma da originariedade do fato mágico-religioso pode explicar que um estudioso atento como Gernet, ao

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repetir as velhas argumentações de Zierbarth, possa contentar-se com uma interpretação tão obviamente insuficiente, em que não só - em contraste evidente com o fato de que a maldição seja plenamente atestada pelo juramento em época histórica - são reconhecidos como óbvios alguns pressupostos míticos, como a "virtude mágica do rito oral", as "forças religiosas" e os seus "efeitos letais", mas nem sequer se torna claro se ela é um instituto em si, ou se identifica, pelo contrário, com a devo tio e, em última instância, com o próprio juramento, que constituiria uma derivação do mesmo. Por isso, será oportuno suspender, pelo menos provisoriamente, as definições tradicionais, que veem na maldição uma invocação dirigida aos deuses para que, a fim de punirem o perjúrio, se transformem de testemunhas em vingadores, perguntando-nos, antes de mais nada, sobre o que nela de fato está em jogo, ou seja, sobre a função imanente que a maldição exerce no juramento. Segundo a opinião corrente, no juramento, os deuses (ou, mais precisamente, os seus nomes) são mencionados duas vezes: uma vez como testemunhas do juramento e outra, na maldição, como os que punem o perjúrio. Pensando bem, e se deixarmos de lado as definições míticas, que buscam a explicação dele fora da linguagem, em ambos os casos é a relação entre as palavras e os fatos (ou as ações) que define o juramento. Num caso, o nome do Deus expressa a força positiva da linguagem, ou seja, a justa relação entre as palavras e as coisas ("poderoso juramento, seja testemunha Zeus"); no outro, uma fraqueza do logos, a saber, uma ruptura dessa relação. A essa dupla possibilidade corresponde a dúplice forma da maldição, que, conforme vimos, se apresenta costumeiramente também como uma bênção: "Se juro bem [euorkounti], a mim muitos bens, se perjuro [epiorkountiJ, muitos males, ao invés de bens" (Glotz, p. 752; Faraone, p. 139).O nome do Deus, que significa e garante o encaixe entre as palavras e as coisas, transforma-se se ele se romper, em maldição. É essencial, em qualquer caso, a cooriginariedade de bênção e maldição, que estão constitutivamente copresentes no juramento.

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É suficiente lermos o bastante extenso verbete Fluch no

Reallexicon für Antike und Christentum (que procura remediar o reduzidíssimo espaço dedicado ao problema no Pauly-Wissowa15e no Daremberg-Saglio,16 nos quais a maldição só é abordada passageiramente no artigo sobre a devo tio, de autoria de Bouché-Leclerq) para nos darmos conta de que a literatura crítica não fez muitos progressos com relação ao artigo citado de Erich Ziebarth ou àquele de George Hendrikson (926). O recente estudo de Christopher Faraone enfatiza a diferença entre juramentos que contêm quer bênçãos quer maldições (em geral destinados à esfera privada) e juramentos acompanhados apenas por maldições (em geral reservados à esfera pública). Em todo caso, para além da explicação tradicional, que vê na maldição um apelo ao poder religioso para garantir a eficácia do direito, o nexo entre juramento e maldição continua inquestionado. 16. Ziebarth provou a consubstancialidade da maldição com a legislação grega por meio de uma vasta documentação. A sua função era tão essencial que as fontes falam de uma verdadeira "maldição política", que sanciona todas as vezes a eficácia da lei. No preâmbulo da Lei de Caronda lê-se o seguinte: "É necessário observar [emmenein] o que foi proclamado: quem transgride é submetido à maldição política [politike ara]" (ibid., p. 60). No mesmo sentido, Dião de Prusa (80.8) nos informa que os atenienses haviam posto (ethento, no sentido forte do termo, como, por exemplo, em nomon tithenai, dar uma lei) nas leis de Sólon uma maldição "política" que se estendia também aos filhos e à descendência (paides kai genos). Ziebarth identificou a presença da maldição "política" nos dispositivos legais de todas as cidades gregas, de Atenas até Esparta, de Lesbos até

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Pauly-Wissowa é o nome comumente usado para a Realencyclopadie der classíschen Altertumswíssenschajt, também conhecida como "enciclopédia alemã", escrita durante vários decênios, a começar por August Pauly (1839), e terminando com Georg Wissowa (1890). O último dos seus 84 volumes foi publicado em 1978. (N.T.) Daremberg-Saglio é o nome do Díctíonnaíre des Antíquítés Grecques et Romaínes, clássico dicionário em francês dedicado à antiga Grécia e a Roma, escrito por Charles Daremberg e Edmond Saglio, publicado em dez volumes entre 1873 e 1919. (N.T.)

Teos e Quios, inclusive até as colônias sicilianas (Tauromenia). Ela também diz respeito a questões que nada tem de "religioso", como acontece com a proibição, em Atenas, de exportar produtos agrícolas diferentes do óleo (d. Ziebarth, p. 64). Além disso, antes de toda assembleia, o keryx, o pregoeiro público, pronunciava solenemente as maldições contra quem houvesse traído o povo ou violado as suas decisões. "Isso significa - comenta Ziebarth - que toda a ordem constituída, segundo a qual o demos é soberano, é garantida através de uma ara" (ibid., p. 61). Não só o juramento, mas também a maldição - nesse sentido, ela é chamada de razão "política" - funciona como um verdadeiro "sacramento do poder". Nessa perspectiva, como já tinha intuído Willian Fowler (d. Fowler, p. 17), é possível considerar como maldição a fórmula saeer esto, que aparece no dispositivo das XII tábuas. Não se trata, porém - conforme assinala Fowler - da produção de um taboo, mas da sanção que define a própria estrutura da lei, o seu modo de referir-se à realidade (talio esto / saeer esto) (d. Agamben, p. 31). Sob essa luz, aparece como contraditória a enigmática figura do homo saeer, sobre a qual ainda se continua discutindo não só entre os historiadores do direito. A saeratio que o atingiu - e que o torna ao mesmo tempo matável e insacrificável - nada mais é do que um desenvolvimento (talvez realizado pela primeira vez pela plebe em tutela do tribuno) da maldição através da qual a lei define o seu âmbito. Por outras palavras, a maldição "política" delimita o loeus em que, somente numa fase sucessiva, se constituirá o direito penal, e é justamente essa singular genealogia que, de alguma maneira, poderá justificar a incrível irracionalidade que caracteriza a história da pena. É na perspectiva dessa consubstancialidade técnica entre lei e maldição (também presente no judaísmo - d. Dt. 21, 23 -, mas bem familiar a um judeu que vivesse em ambiente helênico) que se devem entender as passagens paulinas em que se fala de uma "maldição da lei" (katara tou nomou- Cl. 3,10-13). Aqueles que querem ser salvos mediante as obras (a execução dos preceitos) - é este o argumento de Paulo - "estão sob a maldição [hypo kataran eisinJ, pois está escrito: é maldito quem não observa

tl;

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[emmenei, o mesmo verbo que se encontra na Lei de Caronda] os preceitos escritos no livro da lei". Submetendo-se ele mesmo ao juízo e à maldição da lei, Cristo "nos resgatou da maldição da lei, tornando-se ele mesmo maldição, pois está escrito: é maldito quem está pendurado no madeiro". O argumento paulino - portanto, o próprio sentido da redenção - só pode ser entendido se o situarmos no contexto do recíproco pertencimento, jurídico e não só religioso, de lei e maldição. 17. Como compreender esta dupla validade (bem-dizente e mal-dizente) dos nomes divinos no juramento e no perjúrio? Existe um instituto que vive desde sempre em tão estreita intimidade com o perjúrio e a maldição, a ponto de ser confundido com eles e que talvez nos possa oferecer a chave para uma interpretação correta dos mesmos. Trata-se da blasfêmia. No estudo sobre Ia blasphémie et l'euphémie (originalmente, uma conferência durante um colóquio dedicado, significativamente, ao nome de Deus e à análise da linguagem teológica), Benveniste refere-se insistentemente à proximidade entre a blasfêmia, o perjúrio e o juramento (em francês isso fica evidente na paronímia juron: jurer): Fora do culto, a sociedade exige que o nome de Deus seja invocado numa circunstância solene, que é o juramento. O juramento é, de fato, um sacramentum, um apelo dirigido a Deus, testemunha suprema da verdade, e um acatamento do castigo divino em caso de mentira ou perjúrio. É o compromisso mais pesado que um homem possa assumir e a falta mais grave que ele possa cometer, pois o perjúrio pertence não à justiça dos homens, mas à sanção divina. Por isso, o nome do Deus deve figurar na fórmula do juramento. Também na blasfêmia o nome de Deus deve aparecer porque, assim como o juramento, a blasfêmia toma Deus como testemunha. A blasfêmia Vuron] é um juramento, mas um juramento ofensivo (Benveniste [3], p. 256). Além disso, Benveniste salienta a natureza de interjeição que

é própria da blasfêmia, e que, como tal, não comunica mensagem alguma:

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A fórmula blasfema proferida não se refere a nenhuma situação objetiva particular; a própria blasfêmia é proferida em circunstâncias totalmente diferentes. Expressa apenas a intensidade de uma reação frente às circunstâncias. Nem sequer se refere a uma segunda ou terceira pessoa. Não transmite mensagem alguma, não abre nenhum diálogo, não pede resposta; a presença de um interlocutor não é necessária (ibid.). Por isso é tão surpreendente que, para explicar a blasfêmia, o linguista abandone a análise da linguagem e, num dos raros recursos à tradição hebraica, apele para a "proibição bíblica de pronunciar o nome de Deus" Cibid., p. 254). A blasfêmia é, com certeza, um ato de palavra, mas se trata, justamente, de "substituir o nome de Deus com a ofensa a ele" Cibid., p. 255). A proibição não tem como objeto um conteúdo semântico, mas a simples pronúncia do nome, ou seja, uma "pura articulação vocal" (ibid.). Logo depois, uma citação de Freud introduz uma interpretação da blasfêmia em termos psicológicos: A proibição do uso donome de Deus serve para reprimir um dos desejos mais intensos do ser humano: o de profanar o sagrado. Sabemos que o sagrado inspira condutas ambivalentes. A tradição religiosa quis conservar o sagrado divino e excluir aquele maldito. A blasfêmia procura, a seu modo, restabelecer a totalidade, profanando o próprio nome de Deus. O nome de Deus é blasfemado porque tudo o que possuímos de Deus é o seu nome (ibid.). Por parte de um linguista acostumado a trabalhar exclusivamente com o patrimônio das línguas indo-europeias, é no mínimo singular o recurso a um dado bíblico (assim como o é também a explicação psicológica de um fato histórico). Se é verdade que, na tradição judaico-cristã, a blasfêmia consiste em usar em vão o nome de Deus (conforme acontece com as formas modernas como: nom de Dieul, Sacré nom de dieul, "por Deus!"), a pronúncia blasfema do nome de Deus é muito comum nas línguas clássicas, tão familiares ao linguista, em formas exclamativas como, por exemplo: edepol, ecastor, por Pólux, por Castor (Nai ton Castora, no grego), edi medi (por Dius Fidius), mehercules, mehercle. É significativo que, em todos esses casos, a fórmula

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da imprecação seja idêntica à do juramento: nai, ma, em grego, introduzem o juramento; edepol e ecastortambém são, no latim, fórmulas de juramento, exatamente como o italiano per dio [por Deus] (Festo [112, 10] aparece, de resto, perfeitamente consciente da derivação dessas exclamações do juramento: Mecastor et mehercules ius iurandum erat, quasi diceretur: ita me Castor, ita me Hercules, ut subaudiatur iuvet)Y Assim, a blasfêmia nos apresenta um fenômeno perfeitamente simétrico ao juramento, e para entendê-Io não há nenhuma necessidade de apelar para a proibição bíblica e a ambiguidade do sagrado. A blasfêmia é um juramento no qual o nome de Deus é tirado do contexto assertório ou promissório, e é proferido em si, no vazio, independentemente de um conteúdo semântico. O nome, que no juramento expressava e garantia a conexão entre palavras e coisas, e que define a veridicidade e a força do logos, na blasfêmia expressa a ruptura desse nexo e o fato de ser vã a linguagem humana. O nome de Deus, isolado e pronunciado "em vão", corresponde simetricamente ao perjúrio, que separa as palavras das coisas; juramento e blasfêmia, como bem-dição e mal-dição, cooriginariamente estão implícitos no mesmo evento de linguagem. l'i No judaísmo e no cristianismo, a blasfêmia está ligada ao mandamento de "não usar o nome de Deus em vão" (que, em Êx. 20, significativamente aparece depois do mandamento que proíbe fabricar ídolos). A tradução da Septuaginta (ou lempsei to onoma kyriou tou theou sou epi mataiõi - "não tomarás o nome do Senhor Deus em vão") sublinha a ideia da vacuidade e da vaidade (d. o início do Ec!esiastes: mataiotes mataiotetõn - "vaidade de vaidades"). A forma originária da blasfêmia não é, portanto, a injúria feita a Deus, mas a pronúncia vã do seu nome (cf. mataioomai - "devaneio, falo às tontas"). Isso fica evidente nos eufemismos, que se usam para corrigir a pronúncia blasfema do nome, mudando uma letra ou substituindo-o com um termo semelhante e sem sentido (assim, no francês par Dieu se torna

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Por Castor e por Hércules se jurava, como se disséssemos: assim Castor, assim Hércules - subentenda-se - me ajude. (N.T.)

pardi ou parbleu [por Deus!]; d. o italiano "diamine' [que diacho!] e similares). Contrariamente à opinião comum, também no paganismo existe, embora por razões diferentes, a proibição de proferir o nome dos deuses, que encontra a sua forma extrema no costume de manter cuidadosamente escondido o verdadeiro nome do Deus protetor de uma cidade a fim de evitar a sua evocatio (cf. infra, capo 20). Platão informa-nos assim que os gregos preferiam chamar Hades com o nome de Plutão "pois tinham medo do nome [phoboumenoi to onoma]" (Crátilo, 403a). À medida que se perde a consciência da eficácia da pronúncia do nome divino, a forma originária da blasfêmia, que consiste em proferi-l o em vão, passa a ser secundária em relação ao proferimento de injúrias ou falsidades sobre Deus. De male dicere de Deo [falar mal de Deus], a blasfêmia se transforma, assim, em mala dicere de Deo [dizer coisas más de Deus]. Em Agostinho, que, de modo significativo, aborda a blasfêmia nos seus tratados sobre a mentira, já se percebe tal evolução. Se a originária proximidade ao juramento e ao perjúrio ainda está presente, a blasfêmia agora passa a ser definida como o dizer coisas falsas de Deus: peius est blasphemare quam perierare, quoniam perierando falsae res adhibetur testis Deus, blasphemando autem de ipso Deo falsa dicuntur (Contra mendacium XVIII, 39); de forma ainda mais clara: Itaque iam vulgo blasphemia non accipitur, nisi mala verba de Deo dicere (De moro Manich XI, 20).18 É disso que surge o embaraço dos dicionários teológicos mo-

dernos quando se acham confrontados com a forma originária da blasfêmia, que agora aparece como culpa em todo caso venial:

o mais suspeito

dessesjurons, a expressão francesa 's...n ...de

D...' é considerada por alguns moralistas como uma verdadeira blasfêmia e, consequentemente, como culpada (...) tanto por causa do sentido injurioso que contém, ou, pelo menos, parece conter, quanto pelo horror que inspira em qualquer

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É pior blasfemar do que perjurar, pois ao perjurar atribuem-se coisas falsas sob o testemunho de Deus, enquanto ao blasfemar se dizem coisas más do próprio Deus (Contra mendacium XVIII, 39); de forma ainda mais clara: Portanto o vulgo já não toma a blasfêmia a não ser como o dizer palavras más sobre Deus. (N.T.)

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consciência um pouco delicada c...) Outros, pelo contrário, sustentamque só a intençãopode transformá-Iaem blasfêmia" (Dictionnaire de théologie catholique, verbete Blaspheme). A proibição evangélica do juramento em Mt. 5, 33-37 (d. também Tg. 5,12) deve ser situada neste contexto. Nesse caso, é essencial que Jesus contrapõe ao juramento um lagos que tem a forma nai nai, ou ou, que se costuma traduzir por sim sim, não não (estõ de ho lagos hymõn nai nai, ou ou). A expressão assume todo o seu sentido quando se lembra que a fórmula grega do juramento era nai dia (ou, no negativo, ou ma dia). Extraindo a partícula nai da fórmula e tirando o nome sagrado que a seguia, Jesus contrapõe uma parte do juramento ao todo. Trata-se, portanto, de um gesto simetricamente oposto ao da blasfêmia, que, por sua vez, extrai o nome de Deus do contexto do juramento. 18. Com base nisso, torna-se mais fácil entendermos a função da imprecação no juramento e, ao mesmo tempo, a estreita relação que a vincula à blasfêmia. O que a maldição sanciona é o fato de não ocorrer a correspondência entre as palavras e as coisas que estão em jogo no juramento. Quando se rompe o nexo que une a linguagem e o mundo, o nome de Deus, que expressava e garantia essa conexão "bem-dizente", torna-se o nome da "mal-dição", a saber, de uma palavra que rompe a sua relação verídica com as coisas. Na esfera mítica, isso significa que a mal-dição dirige contra o perjúrio a mesma força maléfica que o seu abuso da linguagem liberou. O nome de Deus, separado do nexo significante, torna-se blasfêmia, palavra vã e insensata, que justamente através desse divórcio com relação ao significado fica disponível para usos impróprios e maléficos. Isso explica por que razão os papiros mágicos muitas vezes são apenas elencos de nomes divinos tornados incompreensíveis: na magia, os nomes dos deuses pronunciados em vão, especialmente se forem bárbaros e ininteligíveis, se transformam em agentes da operação mágica. A magia é o nome de Deus - ou seja, o poder significante do lagos - esvaziado do seu sentido, e reduzido, como acontece nas fórmulas mágicas conhecidas por Ephesia Gramnata, a um abracadabra. Por isso, "a magia

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fala sânscrito na Índia dos prakrit, egípcio e hebraico no mundo grego, grego no mundo latino, e latino entre nós: em todo lugar, ela busca o arcaísmo, os termos estranhos e incompreensíveis" (Mauss, p. SI). É do juramento - ou melhor, do perjúrio - que nasceram a

magia e os encantamentos: a fórmula da verdade, ao romper-se, transforma-se em maldição eficaz, e o nome de Deus, separado do juramento e da sua conexão com as coisas, converte-se em murmúrio satânico. A opinião comum que faz derivar o juramento da esfera mágico-religiosa deve ser, nesse caso, pontualmente invertida. O juramento nos apresenta, pelo contrário, em uma unidade ainda indivisa, aquilo que estamos acostumados a denominar de magia, religião e direito, que dele resultam como se fossem as suas frações. Se quem se arriscou no ato de palavra sabia que estava, por isso, cooriginariamente, exposto tanto à verdade quanto à mentira, tanto ao ato de ser bem-dito quanto ao de ser mal-dito, a gravis religio (Lucrécio, 1, 63) e o direito nascem como a tentativa de assegurar a fé, separando e tecnicizando como institutos específicos bênção e sacratio, juramento e perjúrio. A maldição torna-se assim algo que se acrescenta ao juramento a fim de garantir aquilo que no início era confiado unicamente à fides na palavra, enquanto o juramento pode assim ser apresentado, nos versos de Hesíodo que já citamos antes, como aquilo que foi inventado para punir o perjúrio. O juramento não é uma maldição condicional; pelo contrário, a maldição e aquele seu simétrico pendant, que é a bênção, nascem como institutos específicos da cisão da experiência da palavra que nele estava em jogo. A glosa de Sérvio em Aen. 2, 154 (exsecratio autem est adversorum deprecatio, ius iurandum vero optare prospera)l9 mostra claramente não só a distinção entre maldição e juramento, mas também o fato de se constituírem como os dois epifenômenos simétricos de uma única experiência de linguagem. E só se conseguirmos compreender a natureza e a validade, por assim dizer, antropogenética dessa experiência (que Tales, segundo o testemunho de Aristóteles, considerava "a coisa mais antiga" e "mais venerável"), também 19

A maldição é uma ofensa aos adversários, enquanto o juramento é certamente uma opção pelas coisas benéficas. (N.T.)

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poderemos, talvez, projetar uma nova luz sobre a relação entre aqueles seus restos históricos que magia, religião e direito nos apresentam divididos. l'\ Nessa perspectiva, é possível retomar o problema do significado etimológico do termo epiorkos, que deu tanto trabalho aos estudiosos. Luther (e Benveniste, num primeiro momento) interpreta o termo como o fato de estar submetido a um horkos (nesse caso, o juramento torna-se sinônimo de maldição - cL Loraux, p. 126). Leumann (e Benveniste, num segundo momento) interpreta por sua vez o termo como o fato de acrescentar (epi) um juramento (horkos) a uma palavra ou a uma promessa que se sabe serem falsas. Desenvolvendo a última hipótese, poder-se-ia ver no epiorkos um juramento acrescido ao juramento, ou seja, a maldição que atinge quem transgride a fides. Nesse sentido, toda palavra que se acrescenta à declaração inicial é uma mal-dição, e implica um perjúrio. Tal é o sentido da prescrição evangélica de ater-se ao nai e ao ou: o sim e o não são as únicas coisas que podem ser acrescidas ao próprio ato de confiar na palavra dada.

19. É nessa perspectiva que devemos perguntar pelo sentido e pela função originária do nome do Deus no juramento e, de maneira mais geral, pela própria centralidade dos nomes divinos nos dispositivos que costumamos chamar de religiosos. O grande filólogo - e, de seu modo, teólogo - Hermann Usener dedicou ao problema da gênese dos nomes divinos uma monografia, e é significativo que desde a data de sua publicação (1896) até hoje não tenham surgido a respeito contribuições tão relevantes quanto a mesma. Pense-se, por exemplo, na já famosa reconstrução da formação dos nomes dos núcleos germinais da divindade, que Usener denomina "deuses especiais" CSondergotter). Trata-se de divindades a cujo respeito nada dizem nem as fontes literárias nem as artísticas, e que nos são conhecidas apenas através das citações dos indigitamenta, a saber, os livros litúrgicos dos pontífices que traziam o elenco dos nomes divinos que deveriam ser pronunciados nas circunstâncias cultuais apropriadas. Os Sondergotter nos são conhecidos apenas por seu nome e, tendo em conta o silêncio das fontes, viviam unicamente no seu

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nome toda vez que o sacerdote os invocasse ritualmente (indigitabat). Basta uma competência etimológica elementar para conseguirmos reconstruir o sentido desses nomes e a função dos "deuses especiais" que eles nomeavam: Veroactortem a ver com a primeira lavragem do pousio (veroactum); Reparator diz respeito à segunda lavragem; Inporcitor tem a ver com a última lavragem que traça as porcae, ou seja, os pequenos relevos de terra entre sulco e sulco; Occator, com o trabalho da terra usando a grade aplanadora (occa); Subruncinator diz respeito à extirpação do inço com o sacho (runco); Messor, à operação de semear (messis); Sterculinius, ao adubamento com o esterco. Para cada atividade e situação que podia ser importante para os homens de então - escreve Usener - eram criados e nomeados deuses especiais com uma apropriada cunhagem verbal (Wortprdgung); dessa maneira, não só acabavam divinizadas atividades e situações na sua integridade, mas também partes, atos específicos e momentos das mesmas (p. 75). Usener mostra que também divindades que ingressaram na mitologia, como Proserpina e Pomona, eram originariamente "divindades especiais" que nomeavam respectivamente o aparecimento dos brotos (prosero) e a maturação dos frutos (poma). Todos os nomes dos deuses - é esta, aliás, a tese do livro - são inicialmente nomes de ações ou eventos momentâneos, Sondergotterque, através de um lento processo histórico-linguístico, perdem a sua relação com o vocabulário vivo e, ao se tornarem gradativamente ininteligíveis, se transformam em nomes próprios. Nessa altura, quando já se vinculou estavelmente a um nome próprio, "o conceito divino [GottesbegrijJJ assume a capacidade de receber uma forma pessoal mediante o mito e o culto, a poesia e a arte" Cibid.) p. 316). Isso, porém, significa - como se evidencia com os Sondergotter - que no seu núcleo originário o Deus que preside a cada atividade e a cada situação nada mais é do que o próprio nome dessa atividade e situação. O que acaba divinizado, no Sondergott, é o próprio evento do nome; a própria nomeação, que isola e torna reconhecível um gesto, um ato, uma coisa,

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cria um "Deus especial", é uma "divindade do momento" (Augenblicksgott). O nomen é imediatamente numen, e o numen é imediatamente nomen. Temos aqui algo semelhante ao fundamento ou ao núcleo originário da função de testemunho e de garantia da linguagem que, segundo a interpretação tradicional, o Deus acaba assumindo no juramento. Assim como o Sondergott, o Deus invocado no juramento não é propriamente a testemunha da asserção ou da imprecação, mas ele representa, ele é o próprio evento de linguagem no qual palavras e coisas se conectam indissoluvelmente. Cada nomeação, cada ato de palavra é, nesse sentido, um juramento, no qual o lagos (quem fala no lagos) se compromete a cumprir a sua palavra, jura sobre a sua veridicidade, sobre a correspondência entre palavras e coisas que nele se realiza. E o nome do Deus nada mais é do que o sigilo dessa força do lagos - ou, no caso em que ela deixa de existir no perjúrio, da mal-dição que assim foi efetivada. A tese de Usener implica de alguma maneira que "a origem da linguagem é sempre um evento mítico-religioso" (Kraus, p. 407). Isso não equivale, porém, a um primado do elemento teológico: evento do Deus e evento do nome, mito e linguagem coincidem porque, conforme Usener esclarece desde o início, o nome não é algo já disponível e posteriormente aplicado à coisa a ser nomeada. "Não se forma um plexo de sons para depois usá-l o como signo de uma coisa determinada como se fosse uma ficha. A excitação espiritual, que evoca um ser que lhe vem ao encontro no mundo exterior, é ao mesmo tempo ocasião e meio do ato de nomear [der Anstoss und das Mittel des Benennens]" (Usener, p. 3). Isso significa que, no evento de linguagem, nome próprio e nome apelativo são indiscerníveis e, conforme observamos no caso dos Sondergotter, o nome próprio do Deus e o predicado que descreve uma determinada ação (o ato de aplainar com grade, o ato de adubar etc.) ainda não estão divididos. Nomeação e denotação (ou, conforme verificaremos, aspecto assertório e aspecto veridicional da linguagem) são inseparáveis na sua origem.

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20. Como já vimos, no estudo sobre La blasphémie et l'euphémie, Benveniste sublinha o caráter interjetivo que define a blasfêmia. "A blasfêmia - escreve ele - manifesta-se como uma

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exclamação e tem a sintaxe das interjeições, de que constitui a variedade mais típica" (Benveniste [3],p. 256). Assim como toda exclamação, também a blasfêmia é "uma palavra que deixamos escapar sob o impulso de um sentimento vivo e improviso" (ibid.) e, como toda interjeição, mesmo que ela sempre se sirva (diversamente do que acontece nas interjeições onomatopaicas como "ai!","oh!") de termos significantes em si, não tem caráter comunicativo, mas é essencialmente não semântica. É singular que, abordando expressões de que se servem os primitivos para significar o divino (como mulungu para os bantos, vakanda ou manitu para os indígenas norte-americanos), Cassirer observe que, para entendê-Ias, devemos "retroceder até ao estrato linguístico originário das interjeições. O manitu dos algonquianos, assim como o mulungu dos bantos, são usados justamente dessa maneira: como uma exclamação, que designa menos uma coisa que uma determinada impressão, que se produz frente a tudo aquilo que é insólito, surpreendente, capaz de suscitar admiração ou temor" (Cassirer,pp. 82-83).A mesma coisa pode ser dita a respeito dos nomes dos deuses do politeísmo, que representam segundo Cassirer a primeira forma na qual a consciência mítico-religiosa expressa o seu sentimento de terror ou de veneração (cE.ibid., p. 83). Assim como a blasfêmia, que é sua outra face, o nome divino parece ter constitutivamente a forma de uma interjeição. No mesmo sentido, a nomeação adamítica em Gn. 2, 19 não podia ser um discurso, mas apenas uma série de interjeições. De acordo com a dualidade entre nomes e discurso, que, conforme os linguistas, caracteriza a linguagem humana, os nomes, no seu estatuto originário, constituem um elemento não semântico, mas sim, puramente semiótico. Eles são as relíquias da interjeição originária, que o rio da linguagem carrega dentro de si no seu devir histórico. Nessa sua natureza essencialmente não semântica, mas exclamativa, a blasfêmia mostra sua proximidade a um fenômeno linguístico que não é fácil de analisar, a saber, o insulto. Os linguistas definem os insultos como termos performativos de tipo particular que, apesar da aparente semelhança, se opõem ponto

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a ponto aos termos classificatórios normais, que inscrevem o ser de que são predicados em uma determinada categoria. A frase "és um idiota" só aparentemente é simétrica àquela "és um arquiteto", pois, à diferença desta, não está destinada a inscrever um sujeito em uma classificação cognitiva, mas a produzir, através da sua simples pronúncia, efeitos pragmáticos particulares (Milner, p. 295). Os insultos funcionam, portanto, mais como exclamações ou nomes próprios do que como termos predicativos e, com isso, mostram sua semelhança com a blasfêmia (blasphemia em grego significa tanto insulto quanto blasfêmia). Por isso, não causa surpresa que a blasfêmia, através de um processo que já acontece em Agostinho, passe de vã nomeação do nome de Deus à forma de um insulto (mala dicere de Deo), ou seja, de termo injurioso aposto em exclamação ao nome de Deus. Enquanto termo só aparentemente semântico, o insulto reforça o caráter "vão" da blasfêmia, e o nome de Deus é, dessa maneira, duplamente proferido em vão. ~ O poder especial do nome divino é evidente no instituto do direito bélico romano (já deveria estar claro o motivo pelo qual preferimos evitar a expressão "direito sagrado" a que, a partir de Danz e Wissowa, nesse caso se faz referência) conhecido como evocatia. Durante o assédio a uma cidade, imediatamente antes do ataque decisivo, o comandante "evocava", ou seja, chamava pelo nome as divindades tutelares dos inimigos para que abandonassem a cidade e se transferissem para Roma, onde teriam recebido um culto mais adequado. A fórmula do carmen evacatianisusada para Cartago nos foi conservada por Macróbio, sem menção do nome próprio do Deus (III, 7-9): "Seja um Deus ou uma deusa [si Deus est, si dea es~ que está tutelando o povo e a cidade de Cartago, invoco solenemente sobretudo a ti e imploro [precar venerorque] e peço a vós que abandoneis o povo e a cidade de Cartago e deixeis os sagrados templos e as suas cidades C ..) e venhais propícios até Roma, junto a mim e aos meus, e que a nossa cidade, os lugares e os templos sagrados vos sejam mais agradáveis e aceitos, e sejais favoráveis a mim, ao povo romano e aos meus soldados. Se fizerdes assim, de acordo com o que sabemos e compreendemos, consagro-vos [voveo vabis]templos e prometo-vos celebrar jogos."

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Que de fato não se tratava de um convite, mas sim de um verdadeiro poder obrigante ligado à pronúncia do nome, resulta do fato de sabermos (Plínio, 28, 18) que, a fim de evitar o perigo de uma evocação por parte do inimigo, Roma tinha um nome secreto (o palíndromo Amor ou, segundo Lydo [De mens. IV, 25], Flora). E assim como Roma, também os deuses tinham um nome secreto, só conhecido pelo sacerdote (ou pelo mago), que garantia a eficácia da evocação: dessa maneira, Dioniso era chamado, nos mistérios, Pyrigenes; Lucina, com o nome estrangeiro de Ilithya, Proserpina, com o de Furva, enquanto o verdadeiro nome da Bana dea, a quem as matronas romanas dedicavam um culto mistérico, deveria continuar desconhecido para os homens (Güntert, p. 8). O poder mágico do nome que encontramos nas fórmulas e nos amuletos de muitas culturas, em que não apenas o nome evoca a potência nomeada, mas também pode, através do seu progressivo cancelamento, cassá-Ia ou destruí-Ia (como acontece na fórmula akrakanarba kanarba anarba narba arba rba ba a - Wessely, p. 28), encontra aqui o seu fundamento. Assim como no juramento (a proximidade entre fórmula mágica e juramento é atestada pelo verbo horkizõ, evocar, conjurar: horkizõ se to hagion onoma, com o acusativo do nome divino, exatamente como acontece no juramento - Güntert, p. 10), a pronúncia do nome realiza imediatamente a correspondência entre palavras e coisas. Juramento e conjuro são as duas faces da "evocação" do ser.

21. Compreende-se assim o primado essencial do nome de Deus nas religiões monoteístas, o seu identificar-se e quase substituir-se ao Deus que nomeia. Se no politeísmo o nome do Deus nomeava este ou aquele evento de linguagem, esta ou aquela nomeação específica, este ou aquele Sondergott, no monoteísmo, o nome de Deus nomeia a própria linguagem. A disseminação potencialmente infinita de cada evento divino de nomeação dá lugar à divinização do lagos como tal, ao nome de Deus como arquievento da linguagem nos nomes. A linguagem é o verbo de Deus, e o verbo de Deus é, de acordo com as palavras de Fílon, um juramento; é Deus enquanto se revela no lagos como o "fiel" (pistas) por excelência. Deus é o jurante na

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língua da qual o homem é apenas o falante, mas no juramento sobre o nome de Deus, a língua dos homens entra em comunicação com a língua divina. Daí surge, em Maimônides e no judaísmo rabínico, a obstinação com o estatuto do nome próprio de Deus, o Tetragrama, que é mantido - como sem ha-meforas, "nome distintamente pronunciado", mas também "separado, secreto" - distinto dos simples nomes apelativos (kinnui), que expressam esta ou aquela ação de Deus, este ou aquele atributo divino. "Os outros nomes - escreve Maimônides - como Dayyan (juiz), Tzaddik (justo), Hannoun (clemente), Ra'houm (misericordioso), Elohim, são evidentemente nomes comuns, derivados das ações. Mas o nome que se escreve yod, hé, waw, hé não tem uma etimologia conhecida e não se aplica a algum outro ser" (Maimônides, 1, 61). Ao comentar uma passagem do Pirke De-Rabbi Eliezer, no qual se lê que "antes da criação do mundo, não existia senão o Altíssimo e o seu nome", Maimônides acrescenta que dessa maneira "se diz claramente que os nomes derivados nasceram depois da criação do mundo; e é assim por se tratar de nomes estabelecidos com relação às ações [de Deus] que têm lugar no mundo; mas se considerarmos a sua essência nua e despojada de toda ação, ele não tem nenhum nome derivado, mas apenas um nome próprio que indica a sua essência" Cibid., p. 148). O próprio deste nome (o sem ha-meforas), segundo Maimônides, consiste em que, à diferença dos outros nomes que "não exprimem apenas uma essência, mas uma essência com atributos", ele designa "a ideia de uma existência necessária", ou seja, uma essência que coincide com a sua existência (d. ibid., p. 147). O "nome" (o termo sem na Bíblia muitas vezes é usado como sinônimo de Deus) é o ser de Deus, e Deus é o ser que coincide com o seu nome. ~ No seu estudo sobre o Nome de Deus e a teoria cabalística da linguagem, Gershom Scholem mostrou a função especial que o nome de Deus exerce na cabala, na qual ele constitui "a origem metafísica de toda língua" (Scholem, p. 10). O nome de Deus, sobre o qual os seres humanos juram, é, segundo os cabalistas, aquilo que produz e sustenta a linguagem humana,

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que nada mais é senão uma decomposição, uma recombinação e um desdobramento das letras que compõem tal nome. Especialmente a Torá "é inteiramente construída sobre um tetragrama e tecida a partir dos nomes apelativos de Deus que dele podem ser derivados, e enquanto cada um deles salienta um aspecto específico do divino C ..) A Torá é, portanto, um tecido vivo, um entrelaçamento e um textus na mais própria acepção do termo, em que a trama é composta pelo Tetragrama, que constitui, de maneira escondida ou manifesta, o motivo de fundo e o fio condutor, que retorna em todas as metamorfoses e variações possíveis" Cibid., p. 50). Os teólogos cristãos falam de communicatio idiomatum para definir a comunicação entre as propriedades da natureza divina e as da natureza humana que são unidas hipostaticamente em Cristo. Poderíamos falar, em sentido análogo, de uma communicatio entre a língua de Deus e a língua dos homens, que acontece, segundo os cabalistas, no nome de Deus. Em Fílon (d. supra, p. 18), a comunicação entre as línguas acontece no juramento, no qual Deus jura sobre si, eOs homens sobre o nome de Deus. No ensaio de Benjamin sobre a "Língua em geral e a língua dos homens", de que o citado estudo de Scholem é uma retomada e um desenvolvimento, o lugar da communicatio idiomatum está no nome próprio, através do qual a língua dos homens se comunica com a palavra criadora de Deus (cf. Benjamin, p. 150). ~ Em Êx. 3,13, ]avé responde a Moisés, que lhe pergunta como deverá responder aos hebreus que o interrogam sobre o nome de Deus: ehyé aser ehyé - "sou aquele que sou". A Septuaginta, elaborada em ambiente helenístico, portanto, em contato com a filosofia grega, traduz este nome com egõ eimi ho õn, ou seja, com o termo técnico usado para o ser (ho õn). Maimônides, ao comentar tal passagem, mostra-se totalmente consciente das implicações filosóficas desse nome de Deus: "Deus lhes concedeu então um conhecimento que lhes devia comunicar para afirmar a existência de Deus, ou seja, ehyé aser ehyé. Trata-se de um nome derivado de haya, que designa a existência, pois haya significa "tem sido" e a língua hebraica não distingue entre "ser" e "existir". Todo o mistério reside na repetição, em forma de

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atributo, desse termo que significa a existência, pois a palavra aser (quem), sendo um nome incompleto C .. ) exige que se expresse o atributo que lhe é acrescido. Ao expressar o primeiro termo, que é o sujeito, com ehyé, e o segundo termo, que lhe serve como atributo, com o mesmo nome ehyé, afirma-se que o sujeito é idêntico ao atributo. Esta é uma explicação da ideia de que "Deus existe, mas não por acrescentar a existência", o que se interpreta da seguinte maneira: "O ser que é o ser", a saber, o ser necessário" (Maimônides, 1, 63),

22. A vinculação do tema teológico do nome de Deus com aquele filosófico, o do ser absoluto, no qual essência e existência coincidem, ocorre de maneira definitiva na teologia católica, especialmente na forma do argumento que, a partir de Kant, se costuma definir como ontológico. Assim como foi esclarecido pelos intérpretes, a força da célebre argumentação de Anselmo no Proslogion não consiste numa dedução lógica da existência a partir da noção de ser perfeitíssimo ou "aquilo de que não se pode pensar nada maior"; trata-se, isso sim, da compreensão de id quo maius cogitari non potest 20 como nome próprio de Deus. Pronunciar o nome de Deus significa, por conseguinte, compreendê-Ia como a experiência de linguagem na qual é impossível separar o nome e o ser, as palavras e a coisa. Como escreve Anselmo, no final do Liber apologeticus contra Gaunilonem (o único em que ele fala de uma prova, ou melhor, de uma vis probationis), "o que é dito [hoc ipsum quod dicitur], pelo fato mesmo que é entendido e pensado [eo ipso quod intelligitur vel cogitatur] é provado existir necessariamente". Trata-se, pois, sobretudo de uma experiência de linguagem (de um "dizer": hoc ipsum quod dicitur), e tal experiência é a da fé. Por isso, Anselmo faz questão de nos informar que o título original do tratado era fides quaerens intellectum, e que ele tinha sido escrito sub persona C ..) quaerentis intelligere quod credit (em nome de alguém que quer compreender o que crê). Compreender o objeto da fé significa compreender uma experiência de linguagem em que, assim como no juramento,

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Aquilo do qual não se pode pensar algo maior. (N.T.)

o que se diz é necessariamente verdadeiro e existe. O nome de Deus expressa, portanto, o estatuto do logos na dimensão da fides-juramento, em que o ato de nomear realiza imediatamente a existência daquilo que nomeia. Cinquenta anos mais tarde, Alão de Lille, nas suas Regulae theologieae(P.L. 210, 621-684),leva ainda mais longe este estatuto especial do nome divino, escrevendo que todo nome, mesmo aquele que expressa um atributo, como iustus ou bonus, quando referido ao ser de Deus se transforma em pronome (pronominatur), ou seja, deixa de indicar, como todo nome, uma substância e um atributo e, esvaziando-se do seu significado, designa agora, assim como ocorre com os pronomes ou com os nomes próprios, uma pura existência (substantia sine qualitate, na tradição do pensamento gramatical clássico). E mais ainda: também o pronome, sendo predicado de Deus, deixa de ser a demonstração sensível ou intelectual que o define (eadit a demonstratione) para realizar uma paradoxal demonstra tio adfidem, ou seja, para ser um puro ato de palavra como tal (apudDeum, demonstratiofitadfidem). Por esse motivo, Tomás, ao retomar a tese de Maimônides sobre o nome qui est, chega a escrever que ele "diz o ser absoluto e não determinado através de alguma especificação acrescida (...) não significa o que é Deus [quid est Deus], mas, por assim dizer, o mar infinito e quase indeterminado da existência (...), ficando então em nosso intelecto apenas o fato de que ele é [quia est] e nada mais, numa espécie de estupefação [sieut in quadam eonfusione]" (super 1 Sent., d. 8, q.1, a.I). O significado do nome de Deus não tem, pois, nenhum conteúdo semântico, ou melhor, suspende e põe entre parênteses todo significado, a fim de afirmar, através de uma pura experiência de palavra, uma pura e nua existência. Podemos agora precisar melhor o sentido e a função do nome de Deus no juramento. Todo juramento jura sobre o nome por excelência, a saber, sobre o nome de Deus, porque o juramento é a experiência de linguagem que trata toda língua como um nome próprio. A pura existência - a existência do nome - não é nem o resultado de uma constatação, nem sequer uma dedução

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lógica, mas é algo que não pode ser significado, mas unicamente jurado, ou seja, afirmado como um nome. A certeza da fé é a certeza do nome (de Deus). ~ Ao final das anotações publicadas em 1969 sob o título Da certeza, a fim de esclarecer o que é aquilo que chamamos de certeza e que com frequência trocamos por um "saber", Wittgenstein recorre ao exemplo do nome próprio e pergunta: "Sei que me chamo Ludwig Wittgenstein ou apenas o creio?" (Wittgenstein, n. 491). Assim, ele questiona a "segurança" particular que está ligada ao plano dos nomes. Trata-se de uma certeza, ou melhor, de uma "confiança" (Worauf kann ich mich verlassen? - "Em que posso depositar minha confiança?" - ibid., n. 508), da qual não podemos duvidar sem renunciar a toda possibilidade de juízo e de raciocínio (d. ibid., n. 494). "Se o meu nome não for L.W., como poderei confiar naquilo que se deve entender por 'verdadeiro' ou 'falso'?" (ibid., n. 515). A segurança que diz respeito à propriedade dos nomes condiciona qualquer outra certeza. Se alguém põe em questão, na linguagem, o próprio momento da nomeação sobre o qual se fundamenta todo jogo linguístico (se não estiver seguro que eu me chamo L.W, e que "cão" significa cão), então se torna impossível falar e julgar. Contudo, Wittgenstein mostra que aqui não se trata de uma certeza de tipo lógico ou empírico (como a certeza de nunca ter estado sobre a lua - d. ibid., n. 662), e sim de algo parecido com uma "regra" do jogo que é a linguagem. É uma certeza, ou melhor, uma "fé", desse gênero que está em

jogo no juramento e no nome de Deus. O nome de Deus nomeia o nome que é sempre e só verdadeiro, a saber, a experiência da linguagem de que não podemos duvidar. Esta experiência é, para o ser humano, o juramento. Nesse sentido, todo nome é um juramento; em todo nome está em questão uma "fé", porque a certeza do nome não é do tipo empírico-constatativo, nem lógico-epistêmico, mas cada vez põe em jogo o empenho e a prática dos seres humanos. Falar é, antes de mais nada, jurar, crer no nome.

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23. É sob essa perspectiva que convém reler a teoria dos performativos ou dos speech acts que, no pensamento do século XX, representa uma espécie de enigma, como se filósofos e linguistas se confrontassem aqui com a sobrevivência de um estágio mágico da língua. O performativo é um enunciado linguístico que não descreve um estado de coisas, mas produz imediatamente um fato, realiza o seu significado. "Eu juro" é, nesse sentido, o paradigma perfeito de um speech act, e chama a atenção o fato de que Benveniste, que o cita como tal no seu estudo sobre os performativos CI, p. 270), nem mencione essa sua particular natureza no capítulo sobre o juramento no Vocabulaire. É precisamente o estatuto do juramento, que até aqui procuramos reconstruir, que nos permite compreender sob uma nova luz a teoria dos performativos. Eles representam na língua o resíduo de um estágio (ou, então, a cooriginariedade de uma estrutura) no qual o nexo entre as palavras e as coisas não é do tipo semântico-denotativo, mas performativo, enquanto, assim como no juramento, o ato verbal efetiva o ser. Não se trata, conforme vimos, de um estádio mágico-religioso, porém de uma estrutura antecedente (ou contemporânea) à distinção entre sentido e denotação, que talvez não seja, como estamos acostumados a pensar, um caráter original e eterno da língua humana, mas uma produção histórica (que, como tal, nem sempre existiu e poderia um dia deixar de existir). Como funciona realmente o performativo? O que permite que um determinado sintagma adquira, através da sua simples pronúncia, a eficácia do ato, desmentindo a antiga máxima que sustenta que as palavras e as coisas estão separadas por um abismo? Nesse caso, é certamente essencial o caráter autorreferencial da expressão performativa. Tal autorreferencialidade não se esgota simplesmente no fato de o performativo - conforme observa Benveniste (ibid., p. 274) - tomar a si mesmo como referente, na medida em que remete a uma realidade que ele próprio constitui. O que importa salientar é que a autorreferencialidade do performativo sempre se constitui através de uma suspensão do caráter denotativo normal da linguagem. O verbo performativo

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constrói-se necessariamente com um dictum que, considerado em si, tem natureza puramente denotativa, e sem o qual ele continuaria vazio ou ineficaz ("eu juro" não terá valor se não for seguido - ou precedido - por um dictum que o preenche). É tal caráter denotativo do dictum que acaba sendo suspenso e revogado no mesmo momento em que se torna objeto de um sintagma performativo. Dessa maneira, as expressões denotativas "ontem me encontrava em Atenas" ou "não combaterei contra os troianos" deixam de ser tais se forem precedidas do performativo "eu juro". Assim, o performativo substitui a relação denotativa entre palavra e coisa por uma relação autorreferencial que, excluindo a primeira, põe a si mesma como o fato decisivo. O modelo da verdade não é, nesse caso, o da adequação entre as palavras e as coisas, mas sim aquele performativo, no qual a palavra realiza inevitavelmente o seu significado. Assim como, no estado de exceção, a lei suspende a própria aplicação unicamente para fundar, desse modo, a sua vigência, assim também, no performativo, a linguagem suspende a sua denotação precisamente e apenas para fundar o seu nexo existentivo com as coisas. Considerado nessa perspectiva, o argumento ontológico (ou onto-teo-Iógico) diz simplesmente que se existe a língua, então Deus existe, e o nome de Deus é a expressão dessa peiformance metafísica. Nela, sentido e denotação, essência e existência coincidem, e a existência de Deus e sua essência são uma coisa única e idêntica. Existe pura e simplesmente (on haplõs) aquilo que resulta performativamente do puro dar-se da língua. (Parafraseando uma tese de Wittgenstein, poderíamos afirmar que a existência da linguagem é a expressão performativa da existência do mundo). A ontoteologia é, portanto, uma prestação performativa da linguagem e está unida a uma certa experiência da língua (aquela que está em jogo no juramento), no sentido de que sua validez e seu declínio coincidem com o fato de valer ou declinar esta experiência. A metafísica, a ciência do ser puro é, em tal sentido, ela própria histórica, coincidindo com a experiência do evento de linguagem ao qual o ser humano se entregou com o juramento. Se o juramento declina, se o nome de Deus

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se retira da língua - é isso que aconteceu a partir do evento que foi chamado de "morte de Deus" ou, como se deveria dizer mais corretamente, de morte "do nome de Deus" - então também a metafísica chega ao seu cumprimento. Em todo caso, continua existindo a possibilidade do perjúrio e da blasfêmia, em que aquilo que é dito não é realmente entendido e o nome de Deus é pronunciado em vão. A cooriginariedade entre estrutura performativa e estrutura denotativa da língua faz com que o "flagelo indo-europeu" fique inscrito no próprio ato de palavra, isto é, seja consubstancial com a própria condição de ser falante. Com o logos dão-se ao mesmo tempo - cooriginariamente, mas de maneira tal que nunca possam coincidir perfeitamente - nomes e discurso, verdade e mentira, juramento e perjúrio, bem-dição e mal-dição, existência e não existência do mundo, ser e nada. ~ Esse poder performativo do nome de Deus explica o fato, à primeira vista surpreendente para nós, de que a polêmica dos apologistas cristãos contra os deuses pagãos não diz respeito à existência ou não existência dos mesmos, mas somente ao seu ser, nas palavras que Dante põe nos lábios de Virgílio, "falsos e mentirosos" CInj. 1, 72). Os deuses pagãos existem, mas não são verdadeiros deuses; são demõnios (segundo Taciano) ou seres humanos (para Tertuliano). Em correspondência à multiplicação potencialmente infinita dos seus nomes, os deuses pagãos equivalem a juramentos falsos, sendo constitutivamente perjúrios. Pelo contrário, a invocação do nome do verdadeiro Deus é a própria garantia de toda verdade mundana (Agostinho escreve: "Te invoco, Deus veritas, in quo et a quo etper quem vera sunt quae vera sunt omnia"), Quando o poder performativo da linguagem estiver concentrado no nome do único Deus (que se tornou, por isso, mais ou menos impronunciável), cada um dos nomes divinos perde toda eficácia, ficando reduzido ao rol de escombro linguístico, em que só continua perceptível o significado denotativo (nesse sentido, Tertuliano pode falar sarcasticamente de Sterculus cum indigitamentis suis - Apol. XXV, 10).

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24. Nessa perspectiva, a seca distinção entre juramento assertório e juramento promissório corresponde ao definhamento da experiência da palavra que está em jogo no juramento. Esta não é uma asserção nem uma promessa, mas algo que, ao retomar um termo foucaultiano, podemos chamar de "veridiçã021" e que encontra na relação com o sujeito que a pronuncia o critério único de sua eficácia performativa. Asserção e veridição definem assim os dois aspectos cooriginários do lagos. Enquanto a asserção tem um valor essencialmente denotativo, cuja verdade, no momento de sua formulação, é independente do sujeito e se mede com parâmetros lógicos e objetivos (condições de verdade, não contradição, adequação entre palavras e realidade), na veridição o sujeito se constitui e se põe em jogo como tal, vinculando-se performativamente à verdade da própria afirmação. Por isso, a verdade e a consistência do juramento coincidem com a sua prestação; por isso, a chamada para ser testemunha do Deus não implica um testemunho efetivo, mas é realizada performativamente pela própria pronúncia do nome. O que chamamos hoje de performativo em sentido restrito (os speech acts "eu juro", "eu prometo", "eu declaro" etc., que devem, significativamente, ser proferidos sempre em primeira pessoa) é, na linguagem, a relíquia dessa experiência constitutiva da palavra - a veridição - que se esgota com a sua pronúncia, porque o sujeito locutor não preexiste nem se vincula sucessivamente a ela, mas coincide integralmente com o ato de palavra. Nesse caso, o juramento mostra a sua proximidade performativa com a profissão de fé (homologia, que em grego designa também o juramento). Quando Paulo, em Rm. 10,6-10, define a "palavrada fé" (to rema tespisteõs) não através da correspondência entre palavra e realidade, mas pela vizinhança entre "boca" e "coração", ele tem em mente a experiência performativa da veridição. "Perto de ti está a palavra, na tua boca e no teu coração; esta é a palavra da fé que anunciamos. Se professares [homologeseis] na tua boca o senhor Jesus e creres [pisteuseis] no teu coração que Deus o ressuscitou dos mortos, serás salvo."

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Preferimos traduzir diretamente o neologismo italiano usado pelo autor (veridizione) com um neologismo em português (veridiçào). (N.T.)

Se quisermos formular como asserção uma veridição, como expressão denotativa um juramento, e (conforme a Igreja começa a fazer a partir do século IV através dos símbolos conciliares) como dogma uma profissão de fé, então a experiência da palavra se cinde e surgem irredutivelmente perjúrio e mentira. E é na tentativa de refrear tal cisão da experiência da linguagem que nascem o direito e a religião, que procuram ligar a palavra à coisa e vincular, através de maldições e anátemas, o sujeito falante ao poder veritativo da sua palavra, ao seu "juramento" e à sua declaração de fé. A antiga fórmula das XII tábuas, que exprime a potência performativa que no direito compete à palavra uti lingua nuncupassit, ita ius esto (assim com a língua disse - tomou o nome, nomen capere - assim também seja o direito), não significa que aquilo que é dito seja constatativamente verdadeiro, mas apenas que o dictum é o próprio factum e que, como tal, obriga a pessoa que o proferiu. Nesse sentido, importa inverter mais uma vez a opinião comum que explica a eficácia do juramento remetendo-a às potências da religião e ao direito sagrado arcaico. Religião e direito não preexistem à experiência performativa da linguagem que está em jogo no juramento; no entanto, eles é que foram inventados a fim de garantir a verdade e a confiabilidade do logos através de uma série de dispositivos, entre os quais a tecnicização do juramento em um "sacramentum" específico - o "sacramento do poder" - ocupa um lugar central. A falta de compreensão do caráter performativo da experiência de linguagem que está em jogo no juramento fica evidente nas análises filosóficas do perjúrio, de que já temos testemunho em Aristóteles. A propósito do juramento dos troianos, em li. 3, 276 ss, Aristóteles observava que é necessário distinguir entre romper o juramento (blapsai ton horkon), que pode dizer respeito apenas a um juramento promissório, e epiorkesai, perjurar, que pode referir-se apenas a um juramento assertório (d. Arist., fr. 143). No mesmo sentido, Crisipo faz uma distinção entre alethorkein / pseudorkein, jurar o verdadeiro / jurar o falso, que estão em questão no juramento assertório, dependendo do fato de que a afirmação de quem jura seja verdadeira ou falsa, e euorkein / epiorkein, que se aplicam ao cumprimento ou ao descumprimento de um juramento promissório (Diog. Laert, 7,

t-li

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65-66; d. Hirzel, pp. 77-78; Plescia, p. 84-85). Aqui se vê como o modelo da verdade lógica fundado sobre a adequação objetiva entre palavras e coisas não pode dar conta da experiência de linguagem implícita no juramento. Enquanto o juramento realiza performativamente o dito, o epiorkos não é simplesmente um juramento falso, mas implica o abandono da experiência performativa, que é própria do horkos. A lógica, que se preocupa com o uso correto da linguagem enquanto asserção, nasce quando a verdade do juramento já acabou. E se do cuidado com o aspecto assertório do logos nascem a lógica e as ciências, da veridição provêm - mesmo que seja através de cruzamentos e sobreposições de todo tipo (que encontram precisamente no juramento o seu lugar mais importante) - o direito, a religião, a poesia e a literatura. O seu meio é a filosofia, que, mantendo-se unida na verdade e no erro, procura salvaguardar a experiência performativa da palavra sem renunciar à possibilidade da mentira e, em todo discurso assertório, antes de mais nada faz a experiência da veridição que nele tem lugar.

25. A eficácia performativa do juramento fica evidente no processo arcaico que, tanto na Grécia quanto em Roma, tinha a forma de um conflito entre dois juramentos. O processo civil iniciava com o juramento das partes em causa: o juramento com que o autor afirmava a verdade das suas reivindicações chamava-se proõmosia (etimologicamente, juramento pronunciado por primeiro), enquanto o do citado se chamava antõmosia (a saber, juramento proferido em oposição ao primeiro) e a troca do juramento se denominava amphiorkia. De maneira análoga, no direito penal, "o acusador jura que o seu adversário cometeu o crime, e o acusado, que não o cometeu" (Lisia, Con. Sim. 46; d. Glotz, p. 762). O código de Gortina mostra que os gregos procuravam limitar o juramento aos casos em que a prova testemunhal era impossível, e estabelecer, consequentemente, qual das duas partes (em geral, o acusado) tinha o direito preferencial ao juramento. Em todo caso, o juiz decidia quem havia "jurado bem" (poteros euorkei) (Plescia, p. 49), Com razão, Glotz observou, contra a opinião de Rohde, que o juramento

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declaratório que está em questão no processo grego, "longe de constringir ao perjúrio e de provar que o povo ateniense não era um Rechtsvolk [povo de direito], e longe de ser uma instituição puramente religiosa destinada a substituir a justiça dos deuses por aquela falível dos homens" (Glotz, p. 761), era um procedimento propriamente jurídico no qual o juramento declarativo do litígio era claramente distinto daquele exigido como prova. Semelhante ao mesmo, no processo romano, era o procedimento chamado legis actio sacra menti, que Gaio descreve no livro IV das suas lnstitutiones. Cada uma das duas partes afirmava o seu direito - no caso, exemplificado por Gaio, a vindicatio da propriedade de um escravo, com a fórmula: Hunc ego hominem ex iure Quiritium meum esse aio, secundum suam causam sicut dixi ecce tibi vindictam imposui,22 acompanhada pela imposição de uma varinha (vindicta) sobre a cabeça do

escravo contendido. Depois, aquele que tinha pronunciado a primeira declaração provocava o outro para o sacramentum de uma certa quantia de dinheiro (quando tu iniuria vindicavisti, D aeris sacramento te provoco 23). Ao comentar, na passagem apenas citada, a palavra sacramentum, Festo explica tratar-se de um verdadeiro juramento que implica uma sacratio: sacramentum dicitur quod iusiurandi sacratione intelposita factum est(denomina-se sacramentum aquilo que é realizado através da

consagração de um juramento). Só nessa altura, o juiz proferia a sua decisão: "O sacramentum era o ponto central, o nó do processo, que dá seu nome a todo o procedimento. A função do juiz limita-se, assim, após ter examinado a causa, a declarar qual é o sacramentum iustum e qual o iniustum" (Noailles [1], p. 276). Mais uma vez, os historiadores do direito, embora se dando conta de que aqui está em jogo uma eficácia genuinamente performativa, tendem a explicar a função do juramento no processo recorrendo ao paradigma sacral: "É evidente que as formas 22

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Eu digo que este homem é meu por direito dos Quirites, segundo sua situação jurídica. Assim como disse, vê, tu, toquei-o com a varinha. [Os Quirites representam o conjunto dos cidadãos, enquanto o «direito dos Quirites" representa, em última instância, os direitos fundamentais, não as obrigações, (propriedade, poder paterno, liberdade, herança, tutela etc.). (N.T.) Visto teres vindicado injustamente, desafio-te a um sacramentum de quinhentos asses. (N.T.)

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mais antigas do empenho realizam o empenho: elas provocam uma mudança de estado nas partes em causa, e criam entre elas algo que as transcende. Para o fazer, põem em jogo forças C .. ); trata-se das forças que chamamos religiosas" (Gernet, p. 61). O que, assim, é pressuposto na forma da religiosidade nada mais é senão a experiência da linguagem, que se efetua na veridição. Nesse sentido, a contraposição entre fé e razão, tão importante na cultura moderna, na realidade corresponde pontualmente à oposição entre as duas características cooriginárias do lagos, que são a veridição (de que provêm o direito e a religião positiva) e a asserção (de que derivam a lógica e a ciência).

26. Procuremos compreender, na perspectiva da nossa investigação, quais as "forças" que nesse caso estão realmente em jogo. Um dos termos sobre cujo significado os historiadores não param de discutir é vindicta (e os termos conexos, como vindex, vindicere), que, no processo, parece designar a varinha com que as partes tocavam o objeto reivindicado. Cabe a Pierre Noailles o mérito de ter esclarecido o significado original desse termo. Ele provém, segundo a etimologia tradicional, de vim dicere, literalmente "dizer ou mostrar a força". Mas de que "força" se trata? Entre os estudiosos - observa Noailles - reina a esse propósito a maior confusão. Eles oscilam sem parar entre os dois sentidos possíveis da palavra: força ou violência, a saber, a força posta materialmente em ato. Na realidade, eles não escolhem, mas cada vez propõem um ou outro significado. As vindicationes do sacramentum são apresentadas ora como manifestações de força, ora como atos de violência simbólicos ou simulados. A confusão é ainda maior quando se trata do vindex. De fato, não é claro se a força ou a violência expressa por ele é a sua própria, posta a serviço do direito, ou a violência do adversário, denunciada como contrária à justiça (Noailles [2], p. 57). Contra tal confusão, Noailles mostra que a vis [força] em questão não pode ser uma força ou uma violência material, mas unicamente a força do rito, ou seja, uma "força que obriga, mas que não precisa ser aplicada materialmente em um ato de violência,

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mesmo que seja simulada" (ibid., p. 59). Noailles cita a esse propósito uma passagem de Aulo Gélio, em que a vis civilis(. ..) quae verbo diceretur [a força civil, que se diz com a palavra] é oposta à vis quae manu fieret, cum vi bellica et cruenta [forçafeita com a mão, com força bélica e cruenta]. Desenvolvendo a tese de Noailles, podemos usar como hipótese que a "força dita com a palavra", que está em jogo tanto na ação do vindex quanto no juramento, seja a força da palavra eficaz, como força originária do direito. A esfera do direito é, assim, a de uma palavra eficaz, de um "dizer" que é sempre indicere (proclamar, declarar solenemente), ius dicere (dizer aquilo que é conforme ao direito) e vim dicere (dizer a palavra eficaz). A força da palavra que aqui está em questão é, segundo Noailles, a mesma que é expressa na fórmula das XII Tábuas: uti lingua nuncupassit, ita ius esto (assim como disse a língua, assim seja o direito). Nuncupare explica-se etimologicamente como nomen capere, tomar o nome:

o caráter geral de todas as nuncupationes,

tanto de direito divino, como de direito civil, consistia em circunscrever e delimitar(...); o objetivo essencial do formulário consiste em determinar o objeto, em captá-Io. Dessa maneira percebe-se a relação profunda existente entre o gesto e a palavra, a estreita correlação que os une. Rem manu capere, nomen verbis capere: estas são as duas pedras angulares dessa tomada total. É conhecida a importância mística que os romanos atribuíamao nomen a fim de adquirirem o domínio sobre a coisa designada. A primeira condição para agir com eficácia sobre uma das forças misteriosas da natureza, sobre uma potência divina, era a de poder pronunciar o seu nome (Noailles [1],p. 306). Basta pôr de lado o recurso às "potências divinas", que já se tornou bem familiar, para que fiquem evidentes a natureza e a função do juramento no processo. O "juramento justo" é aquele do qual o iudex, que no processo se põe no lugar do vindex arcaico, "diz e reconhece a força" (vim dicit); ou melhor, é aquele que cumpriu da maneira mais correta e eficaz a perfomance implícita no juramento. O ato da contraparte não é por isso, necessariamente, um epiorkos, um perjúrio, mas é simplesmente

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um ato cuja vis performativa é menos perfeita do que a do vencedor. A "força" que está em jogo é aquela quae verbo diceretur, é a força da palavra. Deve-se, portanto, pressupor que no sacramentum, assim como em todo juramento, estivesse implícita uma experiência performativa da linguagem, na qual a pronúncia da fórmula, o nomen capere da nuncupatio, tinha a força de realizar o que dizia. Para explicar tal força, não há nenhuma necessidade de apelar para a religião, para o mito ou a magia; trata-se de algo que ainda hoje se verifica toda vez que se pronuncia a fórmula de um ato jurídico verbal. Não é por efeito de um poder sagrado que os esposos, ao pronunciarem o seu sim frente ao oficial civil, resultam efetivamente unidos em matrimônio; nem é por magia que a estipulação verbal de um ato de compra e venda transfere imediatamente a propriedade de um bem móvel. O uti lingua nuncupassit, ita ius esto não é uma fórmula mágico-sacral, mas é, antes, a expressão performativa do nomen capere que o direito conservou no seu centro, extraindo-a da experiência original do ato de palavra que ocorre no juramento. Magdelain demonstrou que o modo verbal próprio do direito, tanto sagrado quanto civil, é o imperativo. Quer nas leges regiae, quer nas XII Tábuas, a fórmula imperativa (sacer esto, paricidas esto, aetema auctoritas esta etc. 24) constitui a norma. O mesmo vale para os negócios jurídicos: emptar[comprador] esta na mancipatio [contrato], heres [herdeiro] esta nos testamentos, tutar esta etc., assim como nas fórmulas dos livros pontificais: piaculum data, exta parriciunta25 (Magdelain, pp. 33-35). O mesmo modo verbal encontra-se, como vimos antes (cf. supra, p. 45), nas fórmulas do juramento.

l-li

Observe-se a fórmula imperativa das XII Tábuas acima referida: uti lingua nuncupassit, ita ius esto. Festo, que nos transmitiu o texto, explica o termo nuncupata como nominata, certa, nominibus propriis pronuntiata [nomeada, certa, pronunciada com os nomes apropriados] (Riccobono, p. 43; Festo, 176, 3-4). A fórmula expressa a correspondência entre o ato de nomear corretamente

24 25

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Seja sagrado, seja parricida, seja autoridade eterna. (N.T.) Dado o sacrifício, sejam jogadas fora as vísceras. (N.T.)

proferido e o efeito jurídico. O mesmo deduz-se da fórmula da inauguratio dos templos sobre a arx capitolina: tempIa tescaque me ita sunto, quoad ego ea rite lingua nuncupavero [os templos e os lugares sagrados sejam para mim assim como os tiver nomeado com a língua segundo o rito - Varrão, De ling. lato 7,8]; também aqui, o imperativo expressa a conformidade entre palavras e coisas, que deriva da correta nomeação. A nuncupatio, a tomada do nome, é nesse sentido o ato jurídico originário, e o imperativo, que Meillet define como a fórmula primitiva do verbo, é o modo verbal da nomeação no seu efeito jurídico performativo. Nomear, dar nome, é a forma originária do comando. A partir das fontes, sabemos que, no processo romano, o termo sacramentum não designava imediatamente o juramento, mas a quantia de dinheiro (de 50 ou de 500 asses) que, de certa maneira, estava em jogo através do juramento. Quem não conseguisse provar o seu direito perdia o dinheiro, que era depositado no tesouro público. "A soma de dinheiro" - escreve Varrão - "que está em juízo nos processos é denominada sacramentum por aquilo que é consagrado [sacro].O autor e o citado depositavam, cada um, junto à ponte [ou, segundo alguns editores, junto ao pontífice] para certas causas 500 asses, para outras, uma quantia fixada pela lei; quem vencia a causa retomava o seu sacramentum pela consagração, o perdedor ficava com o erário" (De ling. lat., V, 180). A mesma etimologia encontra-se em Festo (468, 16-17): Sacramentum aes significat quod poenae nomine pendetur [sacramentum designa o dinheiro pago a título de pena]. O objeto da sacra tio que ocorria no processo era, portanto, o dinheiro. Sacer, consagrado aos deuses, nesse caso não era, assim como nas sanções das XII Tábuas, um ser vivo, mas uma quantia de dinheiro. Cícero informa-nos de que, na sua origem, não era o dinheiro o objeto da sacratioprocessual, mas o gado (d. Noailles, p. 280). Nasce daí a hipótese de alguns historiadores do direito, segundo a qual era a parte que proferia o juramento que, dessa maneira, se tomava sacer, ou seja, matável e insacrificável. Em todo caso, é essencial aqui que a sacralidade era inerente, para além de qualquer dúvida, ao dinheiro, que o dinheiro era literal e não metaforicamente "sacro". A aura sacral que envolve o dinheiro

l-li

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na nossa cultura encontra assim, segundo toda verossimilhança, a sua origem nessa consagração vicária de uma quantia de dinheiro em lugar de um ser vivo; como sacramentum, o dinheiro equivale realmente à vida.

27. Façamos a tentativa de fixar numa série de teses a nova situação do juramento que resulta das análises desenvolvidas até aqui. 1. Os estudiosos frequentemente explicaram, de maneira mais ou menos explícita, o instituto do juramento remetendo-se à esfera mágico-religiosa, a um poder divino ou a "forças religiosas" que intervêm para garantir a sua eficácia punindo o perjuro. Assim, com uma curiosa circularidade, o juramento era de fato interpretado, como ocorre em Hesíodo, como aquilo que serve para impedir o perjúrio. Nossa hipótese é exatamente inversa: a esfera mágico-religiosa não preexiste logicamente ao juramento, mas é o juramento, na qualidade de experiência performativa originária da palavra, que pode explicar a religião (e o direito, que está estreitamente vinculado a ela). Por esse motivo, Horkos é, no mundo clássico, o ser mais antigo, a única potência a que os deuses estão penalmente submetidos. Por isso, no monoteísmo, Deus identifica-se com o juramento (é o ser cuja palavra é um juramento ou que coincide com a situação da palavra verdadeira e eficaz in principio). 2. O contexto próprio do juramento reside, por conseguinte, naqueles institutos, como, por exemplo, aJides, cuja função consiste em afirmar performativamente a verdade e a credibilidade da palavra. Os horkia são, por excelência, pista, confiáveis, e os deuses, no paganismo, são convocados performativamente no juramento com o objetivo de, em última instância, darem testemunho dessa confiabilidade. As religiões monoteístas, sobretudo o cristianismo, herdam do juramento a centralidade da fé na palavra como conteúdo essencial da experiência religiosa. O cristianismo é, no sentido próprio do termo, uma religião e uma divinização do Logos. A tentativa de conciliar a fé (como experiência performativa de uma veridição) com a crença em uma série de dogmas de tipo assertório é a contribuição e, ao mesmo tempo, a contradição central da Igreja,

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que a obriga, contra o nítido ditado evangélico, a tecnicizar juramento e maldições em institutos jurídicos específicos. Por isso, a filosofia - que não procura fixar a veridição em um sistema de verdades codificadas, mas, em cada evento de linguagem, traz à palavra e explicita a veridição que o fundamenta - deve necessariamente colocar-se como vera religio. 3. É no mesmo sentido que deve ser entendida a proximidade essencial entre juramento e sacratio (ou devotio). A interpretação da sacertas como contribuição originária do poder através da produção de uma vida nua matável e insacrificável deve ser integrada no sentido de que, antes mesmo de ser sacramento do poder, o juramento é consagração do ser vivo à palavra através da palavra. O juramento pode servir como sacramento do poder na medida em que é, antes de mais nada, o sacramento da linguagem. Esta sacratio original que ocorre no juramento assume a forma técnica da maldição, da politike ara que acompanha a proclamação de uma lei. Nessa perspectiva, o direito está, constitutivamente, vinculado à maldição, e só uma política que tenha rompido esse nexo original com a maldição poderá um dia, eventualmente, permitir outro uso da palavra e do direito.

28. Chegamos assim ao momento de situar arqueologicamente o juramento na sua relação com a antropogênese. No decurso de nossa investigação, algumas vezes olhamos para o juramento como se fosse o testemunho histórico da experiência de linguagem através da qual o ser humano se constituiu como ser que fala. É com referência a tal evento que Lévi-Strauss, no estudo sobre Mauss que citamos antes, falou de uma inadequação fundamental entre significante e significado que se produziu no momento em que, para o ser humano falante, o universo se tornou improvisamente significativo. Quando, improvisamente, o universo se tornou significativo, ele não passou por isso a ser conhecido melhor, embora seja verdade que o aparecimento da linguagem devia acelerar o ritmo do desenvolvimento do conhecimento. Há, pois, na história do espírito humano, uma oposição fundamental entre o simbolismo, que apresenta um caráter de descontinuidade, 77

e o conhecimento, marcado pela continuidade. Disso resulta que as duas categorias do significante e do significado se constituíram simultânea e solidamente, como dois blocos complementares; mas que o conhecimento, a saber, o processo intelectual que permite a identificação, uns com respeito aos outros, de determinados aspectos do significante e determinados aspectos do significado C..), se pôs em movimento com muita lentidão C. .. ) O universo tem significado muito antes que se começasse a saber o que ele significava (Lévi-Strauss, p. XLVII). A consequência deste frustrado equilíbrio é que o homem "se encontrou dispondo, desde a origem, de uma integralidade de significante que não é para ele cômodo atribuir a um significado, dado como tal, sem, por isso, ser conhecido. Sempre há entre os dois uma inadequação, a que só o intelecto divino pode suprir, e que resulta da existência de um excesso de significante com relação aos significados aos quais pode estar vinculado. Em seu esforço de conhecer o mundo, o ser humano, portanto, sempre dispõe de uma sobra de significação (que é repartida entre as coisas segundo as leis do pensamento simbólico, cuja análise cabe aos etnólogos e aos linguistas" (ibid.) p. XLIX). Vimos que é precisamente tal inadequação que, segundo Lévi-Strauss, explica as noções mágico-religiosas de tipo mana, que representam o significante "flutuante" ou excedente e, em última instância, vazio, que constitui "a escravidão de todo pensamento finito" (ibid.). Assim como acontece em Max Müller com a mitologia, assim também para Lévi-Strauss, embora em sentido certamente diverso, as noções mágico-religiosas representem de alguma maneira uma doença da linguagem, a "sombra opaca" que a linguagem projeta sobre o pensamento e que impede duradouramente a junção entre significação e conhecimento, entre língua e pensamento. O predomínio do paradigma cognitivo faz com que, em Lévi-Strauss, o evento da antropogênese seja visto apenas nos seus aspectos gnosiológicos, como se, ao tornar-se humano o homem, não estivessem necessariamente, e nem sobretudo, em questão implicações éticas (e, talvez, também políticas). O que gostaríamos de sugerir nesse momento é que quando, após

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uma transformação cujo estudo não cabe às ciências humanas, a linguagem apareceu no ser humano, o que causou problema não pode ter sido apenas, segundo a hipótese de Lévi-Strauss,o aspecto cognitivo da inadequação entre significante e significado que constitui o limite do conhecimento humano. Além disso, e, talvez, mais decisivo para o ser vivo que se descobriu falante, deve ter sido o problema da eficácia e da veridicidade da sua palavra, ou seja, do que poderia garantir o nexo original entre os nomes e as coisas e entre o sujeito que se tornou falante - portanto, capaz de asserir e de prometer - e as suas ações. Devido a um persistente preconceito, talvez ligado à sua profissão, os cientistas sempre consideraram a antropogênese um problema de ordem exclusivamente cognitiva,como se o tomar-se humano do homem fosse apenas uma questão de inteligência e de volume cerebral, e não também de ethos; como se inteligência e linguagem não provocassem também e sobretudo problemas de ordem ética e política; como se o homo sapiens não fosse, também, e talvez precisamente por isso, um homo iustus. Os linguistas procuraram definir muitas vezes a diferença entre a linguagem humana e a animal. Nesse sentido, Benveniste opôs a linguagem das abelhas, código de sinais fixos e cujo conteúdo é definido de uma vez para sempre, à língua humana, que se deixa analisar em morfemas e fonemas cuja combinação permite uma potencialidade de comunicação virtualmente infinita (d. Benveniste [3], p. 62). Contudo, mais uma vez a especificidade da linguagem humana em relação àquela animal não pode residir apenas nas peculiaridades do instrumento, que análises posteriores poderiam reencontrar - e, de fato, continuamente reencontrados - nessa ou naquela linguagem animal; ela consiste, isso sim, e em medida certamente não menos decisiva, no fato de que, único entre os seres vivos, o homem não se limitou a adquirir a linguagem como uma capacidade entre outras de que é dotado, mas fez dela a sua potência específica, ou seja, na linguagem ele pôs em jogo a sua própria natureza. Assim como, nas palavras de Foucault, o homem "é um animal em cuja política está em questão sua vida de ser vivo", ele é também o ser vivo em cuja língua está em questão a sua vida. Estas duas definições, aliás, são inseparáveis, e dependem constitutivamente uma da

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outra. No cruzamento de ambas situa-se o juramento, entendido como o operador antropogenético através do qual o ser vivo, que se descobriu falante, decidiu responder pelas suas palavras e, consagrando-se ao lagos, constituir-se como o "ser vivo que tem a linguagem". Para que algo como um juramento possa ter lugar, é necessário, justamente, sobretudo poder distinguir e, ao mesmo tempo, articular de algum modo vida e linguagem, ações e palavras - e é isso precisamente o que o animal, para quem a linguagem é ainda parte integrante da sua prática vital, não pode fazer. A primeira promessa, a primeira - e, por assim dizer, transcendental - sacratio produz-se através desta cisão, na qual o homem, opondo a sua língua às suas ações, pode pôr-se em questão, pode comprometer-se com o lagos. De fato, algo como uma língua humana pôde ser produzido só no momento em que o ser vivo, que se encontrou cooriginariamente exposto tanto à possibilidade da verdade quanto à da mentira, se empenhou em responder pelas suas palavras com sua vida, em testemunhar por elas na primeira pessoa. Assim como, segundo Lévi-Strauss,o mana expressa a inadequação fundamental entre significante e significado, que constitui" a escravidão de todo pensamento finito", assim também o juramento expressa a exigência, em todos os sentidos decisiva para o animal falante, de pôr em jogo na linguagem a sua natureza e de vincular entre si, ao mesmo tempo, em um nexo ético e político, as palavras, as coisas e as ações. Só por isso pôde ser produzido algo como uma história, distinta da natureza e, no entanto, inseparavelmente entrelaçada com ela. 29. É nos rastros desta decisão, na fidelidade a este juramento, que a espécie humana, tanto pela sua desventura quanto pela sua ventura, ainda vive de alguma maneira. Toda nomeação é dupla: é bênção [bem-diçãoJ ou maldição [mal-diçãol. Bênção, se a palavra for plena, se houver correspondência entre o significante e o significado, entre as palavras e as coisas; maldição, se a palavra for vã, se continuarem existindo, entre o semiótico e o semântico, um vazio e uma separação. Juramento e perjúrio, bem-dição e mal-dição correspondem a essa dupla possibilidade

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inscrita no lagos, na experiência mediante a qual o ser vivo se constituiu como ser que fala. Religião e direito tecnicizam esta experiência antropogenética da palavra no juramento e na maldição como instituições históricas, separando e opondo, ponto por ponto, verdade e mentira, nome verdadeiro e nome falso, fórmula eficaz e fórmula incorreta. O que era "dito mal" torna-se, dessa maneira, maldição em sentido técnico, a fidelidade à palavra, cuidado obsessivo e escrupuloso com as fórmulas e com os ritos apropriados, ou seja, religio e ius. Assim, a experiência performativa da palavra constitui-se e separa-se em um "sacramento da linguagem", e este, em um "sacramento do poder". A "força da lei" que rege as sociedades humanas, a ideia de enunciados linguísticos que impõem estavelmente obrigações aos seres vivos, que podem ser observadas ou transgredidas, derivam dessa tentativa de fixar a originária força performativa da experiência antropogenética, sendo, nesse sentido, um epifenômeno do juramento e da maldição que a acompanhava. Prodi abria a sua história do "sacramento do poder" com a constatação de que somos hoje as primeiras gerações que vivem a própria vida coletiva sem o vínculo do juramento, e que tal mudança não pode deixar de acarretar uma transformação das modalidades de associação política. Se, de alguma maneira, tal diagnóstico for correto, isso significa que a humanidade se encontra hoje frente a uma disjunção ou, pelo menos, frente a um afrouxamento do vínculo que, através do juramento, unia o ser vivo à sua língua. Por um lado, o ser vivo agora está, cada vez mais reduzido a uma realidade puramente biológica e à vida nua, e, por outro, o ser que fala, separado artificiosamente dele, por uma multiplicidade de dispositivos técnico-midiáticos, em uma experiência da palavra cada vez mais vã, pela qual é impossível responder e na qual algo parecido com uma experiência política se torna cada vez mais precário. Quando o nexo ético - e não simplesmente cognitivo - que une as palavras, as coisas e as ações humanas se rompe, assiste-se realmente a uma proliferação espetacular, sem precedentes, de palavras vãs de um lado, e, de outro, de dispositivos legislativos que procuram obstinadamente legiferar sobre todos os aspectos daquela vida sobre a qual já não parecem ter nenhuma possibilidade de conquista. A idade do

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eclipse do juramento é também a idade da blasfêmia, em que o nome de Deus foge da sua vinculação viva com a língua e pode apenas ser proferido "em vão". Talvez tenha chegado a hora de questionar o prestígio de que a linguagem usufruiu e usufrui em nossa cultura, enquanto instrumento de potência, eficácia e beleza incomparáveis. No entanto, considerado em si mesmo, ele não é mais belo que o canto dos pássaros, nem é mais eficaz que os sinais trocados entre si pelos insetos, nem sequer é mais poderoso que o rugido com que o leão afirma o seu senhorio. O elemento decisivo que confere à linguagem humana as suas virtudes peculiares não reside no instrumento em si mesmo, mas sim no lugar que ele confere ao ser que fala, enquanto disponibiliza dentro de si uma forma de vazio que o locutor toda vez deve assumir para falar. Por outras palavras, na relação ética que se estabelece entre o falante e a sua língua. O homem é o ser vivo que, para falar, deve dizer "eu ", ou seja, deve "tomar a palavra ", assumi-Ia e torná-Ia própria. A reflexão ocidental sobre a linguagem precisou de quase dois milênios para isolar, no aparato formal da língua, a função enunciativa, o conjunto dos indicadores ou shifters ("eu", "tu", "aqui", "agora" etc.), através dos quais quem fala assume a língua em um ato concreto de discurso. Contudo, o que a linguística certamente não é capaz de descrever é o ethos que se produz neste gesto e que define a implicação especialíssima do sujeito na sua palavra. É nessa relação ética, cujo significado antropogenético tentamos definir, que acontece o "sacramento da linguagem". Exatamente porque, diversamente dos outros seres vivos, o homem, para falar, deve pôr-se em jogo na sua palavra, ele pode bendizer e maldizer, jurar e perjurar. Nas origens da cultura ocidental, num pequeno território nos confins orientais da Europa, havia surgido uma experiência de palavra que, ao manter o risco tanto da verdade quanto do erro, havia pronunciado com força, sem jurar nem maldizer, o seu sim à língua, ao homem como animal falante e político. A filosofia começa no momento em que o falante, contra a religio da fórmula, coloca resolutamente em questão o primado dos nomes, quando Heráclito opõe lagos a epea, o discurso às palavras incertas e contraditórias que o constituem, ou quando Platão, no Crátilo, 82

renuncia à ideia de uma correspondência exata entre o nome e a coisa nomeada e, ao mesmo tempo, aproxima onomástica e legislação, experiência do logos e política. Nessa perspectiva, a filosofia é constitutivamente crítica do juramento: ela põe em questão o vínculo sacramental que liga o ser humano à linguagem, sem por isso, simplesmente, falar às tontas, e sem tornar vã a palavra. Quando todas as línguas europeias parecem estar condenadas a jurar em vão e quando a política não pode senão assumir a forma de uma oikonomia, ou seja, de um governo da palavra vazia sobre a vida nua, ainda é da filosofia que pode provir - com a sóbria consciência da situação extrema que o ser vivo que tem a linguagem atingiu na sua história - a indicação de uma linha de resistência e de inversão de rota. No Opus postumum, Kant usa a imagem mítica do juramento dos deuses para explicar um dos pontos mais árduos da sua doutrina, o esquematismo transcendental, que os intérpretes modernos, ao desenvolverem uma intuição de Schelling, tendem a vincular ao problema da linguagem. Kant escreve: "O esque~ matismo dos conceitos do intelecto C ..) é um instante no qual metafísica e física juntam suas margens Styx inteifusa" (XXII, p. 487). A citação latina provém de uma passagem das Geórgicas (IV, 480), na qual Virgílio evoca, em termos foscos, a água do pântano do Estige, que remetem à sua função de "grande e terrível juramento dos deuses": tardaque palus inamabilis unda/ aUigat et novies Styx inteifusa coercet.26 O esquematismo (a linguagem) une por um instante, em uma espécie de juramento, dois reinos que parecem ter de ficar para sempre divididos.

l'I\

26

E o odioso pântano com suas águas estagnantes, além do Estige que os refreia por nove vezes com sua sinuosidade. (N.T.)

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íNDICE

A

ONOMÁSTICO

Codrington, Robert Henry - 22 Cota - 33

Agamben, Giorgio - 21,47

Crisipo - 15, 69

Agostinho - 51, 58, 67 Alão de Lille - 63 Alighieri, Dante - 67 Amônio - 41 Anselmo de Aosta - 62 Aristóteles - 27, 41, 53, 69 Aujoulat, Noel - 11

B

D Danz, Heinrich - 58 Daremberg, Charles - 46 Demóstenes

- 43

Dião de Prusa - 46 Dumézil, Georges - 14,17,18, 24-26, 34-35 Durkheim, Émile - 22

Benjamin, Walter - 61 Benveniste, Émile - 12-13, 18-22, 34, 38-39, 41, 48, 54, 56, 57, 65, 79

Bickermann, Elias - 21, 39 Bollack, Jean - 20 Bouché-Leclerq, Auguste - 46 Burnouf, Émile - 17

c Caronda - 46, 48 Cassirer, Erns - 57 César, Caio Júlio - 32 Cícero, Marco Túlio - 11, 31-34, 41,43,75 Cleanto - 15

E Empédocles - 43 Ênio, Quinto - 34 Ésquilo - 30

F Faraone, Christopher - 45, 46 Festo - 38, 50, 71, 74-75 Fílon- 12, 28-31, 42, 59, 61 Foucault, Michel - 79 Fowler, Willian - 47 Frankel, Eduard - 34 Freud, Sigmund - 22, 49

G

Licurgo - 10-11, 43

Gélio, Aulo - 73 Gemet, Louis - 19-20, 24, 44, 72

Lívio, Tito - 32 Loraux, Nicole - 13-16

Glotz, Gustave - 26, 39, 41, 45, 70-71

Luerécio Caro, Tito - 53

Graeo, Tibério - 32

Lydo, A. - 59

Güntert, Hermann - 59

M

H

Luther, Jorg - 54

Maeróbio - 58 Hendrikson,

George - 46

Herác1ito - 82

Magdelain, André - 74 Maimônides - 60-63

Hesíodo - 14, 16, 27, 53, 76 Hesíquio - 43

Marret, Robert - 22

Hiéroc1es - 10-11

Mauss, MareeI - 22, 25, 33, 53, 77

Hipóerates - 42

Meillet, Antoine - 17, 21, 34, 75

Hirzel, Rudolf - 11, 15, 34, 39-40, 42-43,70

Milner, Jean-Claude - 58

Hobbes, Thomas - 13 Homero - 16, 33

I

Müller, Max - 17, 22-23, 78

N Noailles, Pierre - 38-39, 71-73, 75

Imbert, Jean - 36

o

K

Otto, Rudolf - 22

Kant, ImmanueI - 5, 62, 83 Kraus, Cyprian - 56 Kuhn, Adalbert - 17

L Leeuw, Gerardus van der - 21

Overbeek, Franz - 24

p Paulo - 47, 68 Pauly, August Friedrich - 46 Píndaro - 42

Leumann, Manu - 54

Platão - 15-16, 37-38,51,82

Lévi-Strauss, Claude - 22-23, 77-80

Plescia, Joseph - 15, 37, 70

Lévy-Bruhl, Lucien - 13

90

Plínio o Velho - 33, 59 Plutareo - 39

Prodi, Paolo - 9-11, 24,81 Pufendorf, Samuel - 12-13

v Varrão, Marco Terêncio - 75

R

Virgílio Marão, Públio - 67, 83

RéguIo, Atílio - 30-31

w

Riccobono, SaIvatore - 74 Rohde, Erwin - 70 Rubírio - 36 Rudolf, Otto - 22

s

WesseIy, Karl - 59 Wissowa, Georg - 58 Wittgenstein, Ludwig - 64, 66

z Ziebarth, Erich - 44, 46-47

Saglio, Edmond - 46 Schelling, Friedrich - 83 Scholem, Gershom - 60-61 Schrader, Eduard - 39 Sérvio - 13, 53 SóIon - 46 Suetônio Tranquilo, Caio - 36

T Taciano - 67 Tácito, Públio Comélio - 36 TaIes - 27, 53 Tertuliano, Quinto Séptímio FIorêncio - 67 Thomas, Yan - 32 Tibério, imperador - 36-37 Tomás de Aquino - 63 Torricelli, P. - 13 Tucídides - 15

u Ulpiano, E. Domício - 28, 37 Usener, Hermann - 5, 16, 54-56

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