LUCAS DE CASTRO LAMONICA
FILOMENA BORGES: ROMANCE, IMPRENSA E POLÍTICA
CAMPINAS, 2015
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE ESTUDOS DA LINGUAGEM
LUCAS DE CASTRO LAMONICA
FILOMENA BORGES: ROMANCE, IMPRENSA E POLÍTICA
Dissertação de mestrado apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas para obtenção do título de Mestre em Teoria e História Literária na área de História e Historiografia Literária
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Orna Messer Levin
CAMPINAS, 2015 iii
Ficha catalográfica Universidade Estadual de Campinas Biblioteca do Instituto de Estudos da Linguagem Crisllene Queiroz Custódio - CRB 8/8624
L191f
Lamonica, Lucas de Castro, 1986LamFilomena Borges : romance, imprensa e política / Lucas de Castro Lamonica. – Campinas, SP : [s.n.], 2015. LamOrientador: Orna Messer Levin. LamDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem. Lam1. Azevedo, Aluísio, 1857-1913. Filomena Borges - Crítica e interpretação. 2. Gazeta de notícias (Jornal : RJ). 3. Ficção brasileira. 4. Imprensa. 5. Jornalismo e literatura. 6. Política na literatura. I. Levin, Orna Messer,1960-. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem. III. Título.
Informações para Biblioteca Digital Título em outro idioma: Filomena Borges : novel, press and politics Palavras-chave em inglês: Azevedo, Aluísio, 1857-1913. Filomena Borges - Criticism and interpretation Gazeta de notícias (Jornal : RJ) Brazilian fiction Press Journalism and literature Politics in literature Área de concentração: História e Historiografia Literária Titulação: Mestre em Teoria e História Literária Banca examinadora: Orna Messer Levin [Orientador] Silvia Maria Azevedo Ana Gomes Porto Data de defesa: 30-01-2015 Programa de Pós-Graduação: Teoria e História Literária
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RESUMO
Filomena Borges é um romance de Aluísio Azevedo, publicado em folhetim pela Gazeta de Noticias entre 18 de dezembro de 1883 e 13 de janeiro de 1884. Esta dissertação resulta do estudo desse romance em seu contexto de produção e circulação, recorrendo à leitura de periódicos coetâneos e de obras literárias relacionadas. Através das fontes primárias, descobrimos que esse romance foi constituído em íntima relação com a imprensa. Ao invés de seguir o caminho convencional, de obra literária que usa o jornal como veículo de publicação, Filomena Borges surgiu a partir do jornal; a imprensa foi mais para esse romance que um suporte – foi uma matriz da qual ele tirou recursos de conteúdo e forma. Por seu caráter folhetinesco, ele foi desconsiderado pela história literária, tendo sido tratado como um romance menor dentro do conjunto da obra de Azevedo. Sua única função seria, então, o divertimento. No entanto, recuperando a crítica coetânea do romance e suas repercussões, descobrimos que ele tinha outro sentido, que se perdeu com o tempo: o político. Por incluir D. Pedro II como personagem e colocá-lo em situação indecorosa, Aluísio Azevedo dividiu a crítica coetânea entre detratores e defensores do imperador. Revelou-se, assim, o caráter político da obra, que serviu como intervenção no debate político. As críticas do romance puderam ser compreendidas através da comparação com outras obras do período e com outros aspectos da atuação do autor e da Gazeta. A partir dessa reconstituição, os temas do romance, como o casamento, as viagens e a política, puderam ser explicados de maneira mais adequada, levando em consideração os critérios de sua época.
Palavras-chave: Literatura brasileira; imprensa; Aluísio Azevedo; Filomena Borges; Gazeta de Noticias.
ABSTRACT
Filomena Borges is a novel by Aluísio Azevedo published in a feuilleton by Gazeta de Noticias between December 18th 1883 and January 13th 1884. The study of this novel results on this dissertation and it consider its context of production and circulation, recurring to the reading of coeval periodics and related literary works.
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Through primary sources we have discovered that this novel was conceived within an intimate relation with the press. Instead of following a traditional path, a literary work that uses a newspaper as a publication vehicle, Filomena Borges arose from the newspaper itself; the press had more than a supporting role - it was a source from which the novel gathered form and content. Because it had a feuilletonistic character it was disregarded by literary history, being considered only as a minor book within Azevedo’s work. Its only function would be, therefore, entertainment. Nonetheless by recovering the novel coeval critic and the repercussions, we have found out that it had another meaning that was lost in time: political. Since it included D. Pedro II as a character, and by putting him in an unseemly situation, Aluísio Azevedo has divided the contemporary critics within the emperor’s detractors and defenders. It was thus revealed the novel political feature, which has been used as an intervention on the political debate. The criticism around the novel could be understood throughout the comparison with other works of the period and other aspects of the author’s procedure as well as the procedure of Gazeta. From this reconstitution, the themes presented in the novel, such as marriage, travels and politics were able to be explained in a more adequate matter regarding the criteria of its time.
Keywords: Brazilian literature; press; Aluísio Azevedo; Filomena Borges; Gazeta de Noticias.
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SUMÁRIO Introdução ..................................................................................................................................... 1 Capítulo 1 - Preparação ............................................................................................................... 11 1.1.a Os primeiros estalos ....................................................................................................... 11 1.2.a As aparições ................................................................................................................... 21 1.2.b Filomena sai das “Balas” e vai para as folhas: “Um encontro, um leque, um cartão” ... 26 1.2.c Filomena, mulher de imprensa ....................................................................................... 28 1.2.d Filomena nas páginas policiais....................................................................................... 32 1.2.e Filomena no Maranhão ................................................................................................... 33 1.3.a Adiamentos ..................................................................................................................... 34 1.3.b Os últimos estalos .......................................................................................................... 36 1.3.c Anúncios......................................................................................................................... 40 1.3.d Prefácio .......................................................................................................................... 41 Capítulo 2 – Circulação, recepção, repercussão .......................................................................... 45 2.1 Circulação ......................................................................................................................... 45 2.1.a O folhetim................................................................................................................... 45 2.1.b Edições em livro ......................................................................................................... 47 2.2 Recepção ........................................................................................................................... 55 2.2.a A polêmica.................................................................................................................. 55 2.2.b A. de B. F. no Brazil................................................................................................... 63 2.2.c Outras críticas ............................................................................................................. 69 2.3 Repercussão....................................................................................................................... 75 2.3.a Anúncios ..................................................................................................................... 75 2.3.b Carnaval ..................................................................................................................... 80 2.3.c Filomena vai aos teatros ............................................................................................. 82 2.4 Uma hipótese de fechamento ............................................................................................ 93 Capítulo 3 – Crítica do romance Filomena Borges ..................................................................... 99 3.1 Crítica recente ................................................................................................................... 99 3.1.a Prefácios ..................................................................................................................... 99 3.1.b Crítica acadêmica ..................................................................................................... 107 3.2 O casamento .................................................................................................................... 108 3.3 Aventuras e sensações ..................................................................................................... 125 3.4 Cenas políticas ................................................................................................................ 140 3.5 O fim de Filomena .......................................................................................................... 155 Conclusão .................................................................................................................................. 157 Referências ................................................................................................................................ 163 Fontes primárias .................................................................................................................... 165 Sítios consultados .................................................................................................................. 165
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AGRADECIMENTOS
À CAPES, pelo auxílio financeiro. À Orna, pela oportunidade e pelo direcionamento da minha transformação em pesquisador. À Márcia, pela ajuda na orientação e pela liderança de nosso grupo de pesquisa. Aos professores: Sílvia Azevedo, pelas contribuições na banca de qualificação e no SEL; Jefferson Cano e Ana Porto, que, muito antes das contribuições nas bancas, me conquistaram para o estudo das letras; sem deixar de lado as dicas preciosas de Pedro Paulo Catharina – eu li os romances, e parece ter funcionado. Aos colegas pesquisadores, em ordem aleatória: Leandro, pelo ceticismo e pela amizade; Maria e Daniel, por serem os meninos do Rio; Clara, pela força e pelo carinho; infalibilidade da Izenete, afabilidade da Ana Laura e determinação da Valéria; Renata pelo compartilhamento; Dodô pela fofura; Bruna, pela parceria (sem ironia); Alexandro pela palmada e Anderson pelo afago; Atilio, incomparável editor e professor; Janaína, agregada, porém fiel; Raquel pela Juanita e Bia pela encheção, do além-mar ou daqui mesmo; Priscila, pelo modelo; Rafa, pela alegria; sem esquecer do suspiro de juventude trazido por Ligia, Julio e William. Aos funcionários da Rádio e TV Unicamp, sobretudo Narcilene e Kátia, por terem me ensinado a trabalhar. Aos funcionários do IEL, do IFCH e do AEL. À minha família, velhinho, velhinha, La, Dani, Andreza, Fe, Duda, Ale, tios, tias, avós e avôs. À Gica, minha companheira e substância mesma da minha liberdade. Ao IURE, Caio e Ribas pelos cruzamentos, cabeceios e trancamentos de Cthulhu, Dé pelo domínio da língua da rainha, Josh pela citação de Senhor dos Anéis. Aos colegas e alunos do Cursinho Avante, principalmente Nícolas, Kutuvelo, Josimar, Sílvia, Cláudia, Keven, Vagner, Aleda, Sté, Clara, Oshiro, Luan, Douglas, Vitor, Susana, Amanda, Jéssica, Alessandra, Mariazinha. Às colegas do Colégio PoliBrasil, Samara e Dona Gina.
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Aos capiais, por viverem o sonho: Miguel, Renan, Rodrigão e Bussunda. Xerife, Sandro e Pupi pelas risadas. E ao Thomaz por nos receber anualmente em sua casa. Ao Caconde, pela referência, e à Letícia pela chefia. Aos eventos: ESPEA, SETA, SEL, Semana de História, Colóquio PPLB. Ao basquete da LHU. Dá-lhe dá-lhe!
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Introdução
Parte I
Aluísio Azevedo – o cânone
Aluísio Azevedo é atualmente conhecido como maior representante do Naturalismo na literatura brasileira. Este “título”, se assim podemos chamá-lo, lhe foi atribuído pelas histórias literárias e calcificado pelo ensino escolar. O autor, nascido no Maranhão, tem, no entanto, uma obra muito diversificada. Escreveu, além dos romances mais famosos, integrantes do “episódio” naturalista brasileiro, como O cortiço e O mulato, muitos outros romances, tão variados em estilo e temática que geraram opiniões conflitantes sobre sua produção. Da história literária e crítica do fim do século XIX e virada do XX, ficou a imagem de autor naturalista, pintor de quadros realistas através de seu grande poder de observação;1 no correr do século XX, somou-se a esta primeira imagem outro tipo de apreciação, focada em criticar o autor, argumentando que sua produção seria conservadora e retrógrada, despreocupada com os problemas do país.2 Recentemente, outros estudiosos do naturalismo têm resgatado sua obra em toda sua amplitude, além da de outros naturalistas “menores”, procurando reescrever essa história3 – e, em certo sentido, defendendo Azevedo e seus contemporâneos, senão em sentido geral, ao menos da acusação de alienados.
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Cf. ARARIPE JÚNIOR, T. A. Araripe Júnior: Teoria, crítica e história literária. (org. Alfredo Bosi). Rio de Janeiro: LTC; São Paulo: Edusp, 1978; CÂNDIDO, A. Sílvio Romero: teoria, crítica e história literária. Rio de Janeiro: LTC; São Paulo: Edusp, 1978; VERÍSSIMO, J. José Veríssimo: Teoria, crítica e história literária. (org. João Alexandre Barbosa). Rio de Janeiro: LTC; São Paulo: Edusp, 1977. 2 PEREIRA, L. M. História da literatura brasileira: prosa de ficção: de 1870 a 1920. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1988; SUSSEKIND, F. Tal Brasil, qual Romance? Rio de Janeiro: Achiamé, 1984. 3 Cf. ALMEIDA, L. T. Literatura Naturalista, Moralidade e Natureza. 2013. Tese (Doutorado em Teoria e História Literária) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2013; FANINI, A. M. R. Os romances-folhetins de Aluísio Azevedo: Aventuras periféricas. 2003. Tese (Doutorado em Teoria Literária) – Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2003; MENDES, Leonardo. O retrato do imperador: Negociação, sexualidade e romance naturalista no Brasil. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000; PORTO, A. G. Novelas sangrentas: literatura de crime no Brasil (1870-1920). 2009. Tese (Doutorado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2009.
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A “alienação” proviria tanto da maneira conservadora como os temas teriam sido tratados nas obras, como da preferência pelo “modelo francês”. Essa questão é de suma importância, primeiro porque a ideia de “importação” se baseia numa visão dualista, que contrapõe nacional e estrangeiro como se contrapõem subdesenvolvido e desenvolvido, nesta ordem respectiva, relacionando um termo a outro: nacionalsubdesenvolvido, estrangeiro-desenvolvido.4 É uma visão que relega ao Brasil a condição de atrasado e, por extensão, à literatura brasileira a condição de influenciada por literaturas centrais, no caso do século XIX, principalmente a francesa. Um segundo ponto de importância é o do possível sentido político da obra de Azevedo. Aos olhos de alguns pesquisadores do século XX, pautados também por essa visão de subdesenvolvimento, os romances do maranhense seriam conservadores e atuariam no sentido de manutenção do status quo. Neste trabalho, procuramos tratar sua obra como filiada à geração 1870, pois tem um sentido de crítica às bases do Império, seguindo os passos do grupo heterogêneo, mas combativo, daquela geração.5 Cabe dizer que não esperamos fazer de Aluísio Azevedo um revolucionário, muito menos um “homem à frente de seu tempo” – o que tencionamos é tratar de maneira adequada sua atuação política através da literatura. Costuma-se fazer uma divisão na obra do autor: de um lado ficam os romances considerados naturalistas; de outro, o restante. Dá-se um peso muito maior à porção naturalista, que acabou sendo responsável pela canonização; a “não naturalista” ficou fadada ao esquecimento. Geralmente essa divisão acompanha uma marca qualitativa: as primeiras seriam boas, ou no mínimo aceitáveis; as últimas, ruins, indignas de história literária. O interesse em “resgatar” estas últimas é recente e acompanha o estudo menos pejorativo que se faz do naturalismo atualmente. Nesse ponto, adotamos, a partir de Mérian, a visão de que não há cisão clara na obra de Azevedo.6 De fato, há uma continuidade, que é política, e um projeto estético que vai se alterando aos poucos até culminar nas obras mais bem acabadas, como O
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OLIVEIRA, Francisco. A economia brasileira: crítica à razão dualista. Estudos Cebrap, São Paulo, v. 2, p. 3-82, 1972. 5 ALONSO, Angela. Idéias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002. 6 MÉRIAN, Jean-Yves. Aluísio Azevedo: Vida e Obra (1857-1913). 2ª ed. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional; Garamond, 2013.
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cortiço. Há estudos que mostram como as primeiras obras preparam as últimas.7 É importante ponderar que o projeto declarado pelo escritor maranhense, de adequar o público nacional ao romance naturalista em pequenas doses, liga-se à sua tentativa de constituir uma imagem pública como grande autor naturalista, quando, na realidade, ele foi um autor muito híbrido. Sobre a ideia de que a primeira metade da obra é primordialmente romântica e a segunda primordialmente naturalista, talvez o problema seja outro: a primeira parte está mais ligada à imprensa, a segunda menos, publicada diretamente em livro numa época em que o autor já se distanciara da atividade jornalística. Ainda assim, o caráter combativo e mesmo paródico das obras persiste. O que dá unidade à obra é, portanto, seu caráter polêmico e combativo. E é justamente a parte “esquecida” da obra que está muito ligada à imprensa, do modo como apresentaremos a seguir.
Aluísio Azevedo – a amplitude
Um aspecto constantemente negligenciado na apreciação da obra do maranhense é o importante papel que nela têm a imprensa e o teatro. Como um dos primeiros escritores profissionais no Rio de Janeiro, Aluísio Azevedo apoiou sua atividade em jornais e revistas, nos quais publicou romances em folhetim e alguns contos. Para um jovem literato que buscava se firmar, essa participação era interessante econômica e profissionalmente, já que garantia uma divulgação mais ampla de seu nome e de sua obra. Também não se deve desconsiderar que ele trabalhou em diversos periódicos. Essa atividade, além da importância pelos motivos acima apontados, também garantia a participação em um grupo, que vai se formando e fortalecendo no correr da década de 1880. Aluísio, seu irmão Artur, Valentim Magalhães, Raul Pompeia, entre outros, frequentam redações, cafés e teatros do Rio, e, para além da boêmia que geralmente se sugere aqui de maneira anedótica, conformam um grupo de literatos que tem sua importância para a luta pelos direitos dos escritores.
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MARQUES JÚNIOR, Milton. Da ilha de São Luís aos refolhos de Botafogo. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2000.
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Em sua primeira passagem pelo Rio, no final da década de 1870, Azevedo atuou principalmente como caricaturista, participando de periódicos ilustrados como O Mequetrefe. Sua intenção, naquele momento, era conseguir estudar pintura na Europa, sonho que nunca veio a realizar. A morte do pai o forçaria a voltar a São Luís, onde passaria a atuar na imprensa como cronista e polemista, participando ativamente das discussões da época na Pacotilha e em outros periódicos. Depois da publicação de Uma lágrima de mulher e de O mulato, obra muito polêmica, ele regressou ao Rio, onde ficaria até que sua carreira diplomática o fizesse viajar pelo mundo, já no final do século. De volta à capital, o maranhense passou a viver das letras. O período de 1881 a 1885 marcou o auge da sua produção folhetinesca e de sua participação na imprensa. Seria uma obviedade afirmar que uma coisa está ligada à outra, mas a relação é mais íntima do que parece. A importância da imprensa para esses romances é central: ela não foi só veículo, foi também matriz.8 É muito famosa a relação entre Casa de pensão e o “caso Capistrano”, ocorrido alguns anos antes no Rio de Janeiro. A pesquisa sobre Filomena Borges revelou que existem relações ainda mais íntimas. Ao contrário de Casa de pensão, Filomena Borges não se inspirou em um “caso real”: para promover este romance, Aluísio Azevedo e a Gazeta de Noticias criaram a história de uma mulher que teria distribuído cartões de visita a boa parte do Rio de Janeiro. A partir da discussão sobre quem seria essa mulher, retratada como se fosse real, criou-se grande expectativa no público. Azevedo prometeria, então, contar a “história real” daquela mulher misteriosa em folhetins, publicados pela Gazeta entre dezembro de 1883 e janeiro de 1884. Nesse processo de composição diária e coletiva, há trocas entre o romance e seu suporte, a imprensa, que afetaram determinantemente não só seu conteúdo, mas também sua forma. Os romances publicados de maneira seriada foram intimamente afetados pela porosidade entre imprensa e literatura.9
Para além da atividade periódica, Aluísio Azevedo foi homem de teatro. Com seus conhecimentos de pintura, preparou alguns cenários de peças. Também foi 8
THÉRENTY, Marie-Ève. La Littérature au Quotidien: Poétiques journalistiques au XIXe siècle. Paris: Éditions du Seuil, 2007. 9 Ibidem.
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comediógrafo e, apesar de não ter obtido destacado sucesso no ramo, participou ativamente da vida teatral da capital. Essa atividade, aliada à de jornalista e folhetinista, garantiu ao maranhense o sustento e uma série de relações pessoais muito importantes: as amizades e parcerias com atores e atrizes, empresários e dramaturgos. Ele adaptou dois de seus romances para os palcos, O mulato e Filomena Borges, e escreveu uma dezena de peças, muitas delas em colaboração com o irmão Artur ou com Emílio Rouède. Seu teatro também tem a marca da polêmica. Além do escândalo de A florde-lis, foram feitas apropriações abolicionistas de outras peças, como O mulato e mesmo Filomena Borges, que a princípio não teria uma relação explícita.10
Essa atuação cultural ampla deve ser levada em conta no estudo do autor. Ele foi um homem bastante inserido no seu meio cultural, que por sua vez não era isolado: a literatura, o teatro, a imprensa brasileira estavam inseridos no âmbito transnacional. É levando em conta esse mundo de relações diversificadas e de atuação política pronunciada que estudamos a obra deste autor. Mas o que é, afinal, a época ou o meio cultural em que se insere Aluísio Azevedo? É, como sugere a história literária, tempo da voga realista/naturalista? Ou, como sugerem as pesquisas mais recentes, um tempo de convivência entre aquela literatura moderna que se ensaiava fazer no Brasil e uma grande quantidade de romances franceses, publicados e lidos nos periódicos, muito vendidos em livros e acessíveis nos gabinetes de leitura e bibliotecas? O que estava sendo encenado nos teatros? Estas questões são fundamentais para o modo como esta pesquisa foi realizada. É através delas que esperamos dar a Filomena Borges uma história e uma interpretação mais afinadas com os critérios e preocupações de seu próprio tempo, levando em conta a relação essencial desse romance com a imprensa. O principal meio de circulação literária no século XIX foi a imprensa.11 A afirmação, ainda que destinada a dar conta da França, mais propriamente de Paris, adequa-se ao Brasil, mais propriamente ao Rio de Janeiro. 10
V. Capítulo 2 da dissetação. KALIFA, Dominique; RÉGNIER, Philippe; THÉRENTY, Marie-Ève; VAILLANT, Alain. (orgs.) La civilisation du journal: Une histoire de la presse française au XIXe siècle. Paris: Nouveau Monde, 2011. 11
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Trajetória da pesquisa
O presente trabalho foi desenvolvido dentro do grupo “Circulação Transatlântica dos Impressos”. Ele se constituiu, portanto, sobre uma base coletiva, contando com a ajuda de muitos outros pesquisadores, que oportunamente serão indicados. Dentre a bibliografia do grupo, optamos pela prioridade à relação entre literatura e imprensa, melhor estudada, a nosso ver, pelo grupo de Marie-Ève Thérenty e Dominique Kalifa. Contribuíram muito para a discussão desenvolvida nos capítulos o livro La littérature au quotidien de Thérenty, e alguns artigos de Civilisation du journal.
Este trabalho se baseou na pesquisa em periódicos conciliada à leitura de romances, contos e peças. A primeira parte foi realizada principalmente na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional Digital. Pesquisamos, através da ferramenta de busca do sítio, pelas palavras-chave “Aluizio”, “Aluizio Azevedo”, “Philomena”, “Philomena Borges”; a partir daí, fizemos a leitura dos periódicos com maior número de ocorrências através da mesma ferramenta. Também foi consultado o Jornal do Commercio no Arquivo Edgard Leuenroth da Unicamp e O provinciano na sessão de periódicos raros da Biblioteca Nacional. Os romances franceses foram lidos graças ao sítio Internet Archive, que compila diversas obras digitalizadas. Também foi essencial a contribuição da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, para a consulta às primeiras edições das obras de Aluísio Azevedo, e do Real Gabinete Português de Leitura, sem o qual não teríamos acesso à primeira edição de Filomena Borges.12
A matriz midiática e a matriz literária
O romance Filomena Borges mobilizará todos os recursos da matriz midiática antes mesmo de ser publicado. A sua publicidade deve ter sido a grande
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Ela está muito bem conservada, consideradas a idade e a qualidade da edição popular.
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responsável por isso. O fato de a obra nascer do próprio jornal em que será publicada faz com que ela já venha carregada de características desse suporte. Sua produção é periódica, aparecendo de tempo em tempo até se tornar romance-folhetim; coletiva, pois envolve um grande número de escritores e colunas dentro da Gazeta e mesmo outros periódicos em contribuição polifônica;13 baseia-se na rubricité,14 por seu envolvimento íntimo com a série “Balas de estalo”, filiando-se a um público e o fidelizando; e é atual, articulando assuntos políticos e culturais coetâneos e vendendo a história de uma mulher “real”, de “carne e osso”, contemporânea dos leitores. Ao mesmo passo, o jornal que lhe serve de suporte conta com traços do ficcional, fazendo questionar o que é real ou não; é irônico, contestando as fronteiras do que é sério e do que é satírico num jornal de grande circulação e tom pretensamente neutro; e baseia-se na conversação e na escrita íntima, tomando muitas vezes o tom anedótico para se aproximar dos leitores. Partindo das teses de Thérenty, tomamos como uma das hipóteses do trabalho, portanto, que o jornal é meio, fonte e modelo de Aluísio Azevedo ao compor Filomena Borges. Defenderemos que, através da obra, o autor debate o seu contexto social e o cotidiano carioca, posicionando-se politicamente em articulação com o periódico que serve ao romance de suporte e matriz.
A divisão dos capítulos
No primeiro capítulo, recuperamos os fragmentos iniciais que irão compor o romance. Demonstramos o processo de criação e anúncio do romance, dentro do qual a personagem Filomena Borges é composta coletivamente, criando a expectativa para a recepção do romance. No segundo capítulo, recuperamos mais fragmentos que se desdobraram a partir da publicação, como a crítica coetânea, a adaptação em espetáculos, a transformação em mercadorias. Discutimos, então, a 1) forma como o romance foi 13
Polifonia é usada, aqui, de acordo com Thérenty. THÉRENTY, Marie-Ève. op. cit.p. 62-70. Termo para o qual não encontramos tradução. Refere-se às colunas dos periódicos e das características decorrentes dessa organização de conteúdo: “la rubrique, c’est-à-dire l’espace régulièrement assigne à l’intérieur du quotidien à un certain type de nouvelle ou d’écriture, est l’instrument clé de ce système”. Ibidem. p. 78. 14
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publicado, demonstrando que não fez sucesso; 2) a recepção crítica coetânea, revelando diversos pontos além do literário, como o comércio e a política; por fim, demonstramos que, 3) apesar da falta de sucesso comercial e literário da obra, ela repercutiu com força considerável no seu contexto. Discutimos também a apropriação comercial e política do romance. No terceiro capítulo, discutimos, através de críticas acadêmicas e prefácios, como o romance tem sido visto recentemente, para comparar essa apreciação com a do passado e apresentar uma nova possibilidade de interpretação, pautada nas referências do próprio período. Para tanto, relacionamos os romances e referências levantados nos capítulos anteriores com o romance Filomena Borges. Parte II
A mãe: Gazeta de Noticias
A Gazeta de Noticias, criada em 1875, viria a se tornar um dos jornais mais importantes do país na década de 1880. Fundada por Ferreira de Araújo, Henrique Chaves, Manoel Carneiro e Elísio Mendes, a folha inaugurava na capital imperial aquilo que se chamaria de “jornalismo moderno”: um veículo de imprensa “neutro”, como ela se reivindicava, e “comercial”, de que ela era acusada. Esse novo caráter jornalístico é um dos segredos de seu sucesso. A Gazeta era vendida em edições avulsas por apenas dois vinténs (40 réis), um preço bastante acessível, numa época em que os periódicos funcionavam por assinaturas.15 Já pelo preço e pela forma de comercialização, a folha se populariza. O processo é intensificado, por outro lado, pelo próprio conteúdo do jornal, com a marca predominante da leveza e do humor. Apesar de sua postura “apartidária”, a Gazeta foi reconhecidamente um jornal abolicionista e republicano. Num período em que as folhas partidárias rareavam, o apoio financeiro deveria vir dos anúncios e “a pedidos”, daí a grande importância que a publicidade vai tomando na imprensa do fim do século XIX. 15
A inovação é mais a venda avulsa que o preço. Em 1875, a assinatura do Diario do Rio de Janeiro para a Corte custava 6$000 a cada três meses (24$000 anual), resultando num preço por edição de aproximadamente 60 réis ou três vinténs. Diario do Rio de Janeiro, 01/01/1875. p. 1. ed. 1. A assinatura mensal da Gazeta de Noticias custava, no mesmo ano, 1$000, metade do preço da assinatura mensal do Diario do Rio de Janeiro (que nem era possível, sendo que o tempo mínimo era de três meses). Gazeta de Noticias, 01/01/1875. p. 1. ed. 1.
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“Balas de estalo”: paternidade coletiva
Dentro da Gazeta de Noticias, destacou-se uma série - de crônicas - muito estudada devido à participação de Machado de Assis: as “Balas de Estalo”. Tendo como assunto os acontecimentos cotidianos mais variados, e como tom um humor ácido, a série foi um grande sucesso durante o período de sua existência, de 1883 a 1886. Dela participaram diversos autores, todos sob pseudônimos, alguns deles reconhecidos atualmente, outros desconhecidos. Destacamos os que serão mais importantes para este trabalho: Lulu Sênior, Décio, Zig-Zag e Lélio. Cada um desses pseudônimos envolve, mais que a ocultação de um nome, a construção de uma personagem com características bem definidas. Ana Flávia Cernic Ramos liga o humor e a leveza da Gazeta à busca por um público amplo, processo que abre espaço para “Balas de estalo” em suas colunas. Nossa hipótese se aproveita da tese da autora: se humor e crítica política são as propostas de “Balas” e da Gazeta, seriam também a proposta de Filomena Borges, o romancefolhetim daquele jornal? Acreditamos que sim, e que esta obra integra o questionamento das grandes instituições, linha política do jornal de Ferreira de Araújo. Citando Ramos, estudiosa das “Balas”:
Assim era vista a política imperial pelos cronistas da série. Ao longo de seus três anos e meio de publicação, comentou sistematicamente o cotidiano da política imperial. Alegre, bem humorada e disposta a preencher os requisitos da Gazeta de Notícias em atingir popularidade e cativar o público leitor, esta série discutiu diariamente as principais tensões políticas e sociais pelas quais passava o Brasil naquele momento. Fosse como “doces guloseimas”, “estalinhos de criança” ou “balas de artilharia”, a série lia e interpretava o jornal para o leitor. As atividades das Câmaras, do Gabinete de Ministros, as ações do imperador nada escapava aos atentos e perspicazes narradores de “Balas de Estalo”. Através destes textos brincalhões, cada um dos narradores colaborava na construção de um projeto político bastante definido: a falência das principais instituições do país, tais como a monarquia, a igreja e a escravidão eram denunciadas como forma de proselitismo do novo projeto político, republicano e liberal. A modernidade era dissociada da monarquia católica e escravagista, a separação entre igreja e estado era pressuposto da então chamada modernidade. Os literatos se valiam então do velho “ridendo castigat mores” para propor as inovações. E foi este conjunto de críticas às instituições do período que a série cuidadosamente tratou de inserir
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nas páginas daquele que se tornou um dos maiores e mais populares jornais da corte, a Gazeta de Notícias. Contando com a assídua colaboração do dono deste jornal, a série tratou de muitos assuntos polêmicos e importantes para o período. Crítico ferrenho do poder da igreja naquela sociedade, Ferreira de Araújo definiu os parâmetros gerais da série a partir das críticas e discussões que já travara anos antes no jornal O Mosquito. A diferença era que em seu novo jornal ele decide fazer isso em grupo, e assim nasce “Balas de Estalo”.16
Acreditamos que o caráter popular, comercial e humorístico da Gazeta, além de sua atuação política, reflete-se não só em “Balas”, mas em Filomena Borges, o romance-folhetim que provavelmente foi encomendado a Aluísio Azevedo por Ferreira de Araújo. Vale destacar que as primeiras edições de Filomena Borges continham uma dedicatória a Ferreira de Araújo, mais um argumento em favor de que é o romance de seu periódico. Como será demonstrado a seguir, Filomena Borges se constituirá a partir das “Balas de Estalo” como o romance da Gazeta. A partir disso, articulará literatura, imprensa e política num contexto de crise e decadência do Império.
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RAMOS, Ana Flávia Cernic. Política e humor nos últimos anos da monarquia: A série “Balas de Estalo” (1883-1884). 2005. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2005. p. 27.
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Capítulo 1 - Preparação
1.1.a Os primeiros estalos
A primeira referência a Filomena Borges na imprensa encontra-se na Gazeta de Noticias de 07 de outubro de 1883, dentro da série “Balas de estalo”.17 No texto, o cronista Lulu Sênior, pseudônimo usado por Ferreira de Araújo,18 conta, de maneira cômica, que recebeu dois cartões de visita, em dias consecutivos, com o seguinte nome: Filomena Borges. Ao receber o primeiro cartão ele acreditou “modestamente” que a motivação seria a admiração ao seu talento, por suas “Balas” recentes.19 Quando chegou o segundo cartão o colunista concluiu, “ainda mais modestamente”, que o motivo de tais envios seria a admiração aos seus “encantos físicos” – sempre lembrados por um amigo. O que o espanta, portanto, não é a “violenta paixão” da senhora, mas sua timidez – ela teria tão somente mandado o cartão, sem se declarar (“nem ao menos me faz versos”). Lulu Sênior então incentiva que a autora dos cartões se revele, sem medo de ser desprezada, já que seu coração é “uma casa de diversos andares, e em um deles estabeleci uma série de quartos, dos que se alugam por hora” em que “sempre posso acomodar mais uma”.20 Caso Filomena seja apenas uma admiradora do talento, talvez pela publicação de “Por conta”,21 ele a convida para ler belos serões em sua casa: “a minha casa é perto de um convento, et plus on est de fous, plus on s’amuse.”22 O texto constrói sua comicidade através da malícia e da imodéstia do autor. A primeira está nas referências ao sexo e à prostituição;23 a segunda, está nas partes acima descritas, melhor ilustrada pelo próprio autor no penúltimo parágrafo:
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Lulu Sênior, “Balas de Estalo”, Gazeta de Noticias, 07/10/1883. p. 2. ed. 280. Para a identificação dos pseudônimos, seguimos o trabalho de Ana Flávia Ramos (eles são identificados na nota 21 de sua dissertação). RAMOS, Ana Flávia Cernic. Política e humor nos últimos anos da monarquia: A série “Balas de Estalo” (1883-1884). Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2005. 19 Os autores da coluna se referem a seus textos como balas, como se eles fossem balas de estalo. 20 Aqui começam as referências à prostituição, que só seria proibida para estrangeiros. A ironia do cronista sobre o assunto é bastante grande. 21 Conto publicado pelo pseudônimo na Gazeta de Noticias alguns dias antes. “Por conta”, Gazeta de Noticias, 05/10/1883. p. 1. ed. 278. 22 Provérbio francês que significa algo como “quanto mais, melhor”. 23 Como exemplo, transcrevemos o trecho em que Lulu Sênior cita parte de um poema de Tomas Ribeiro: “... a propria camisa, / Ficando risonho e nú”. 18
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Eu estou resignado com a minha sorte, e ha muito me convenci de que n’esta terra um homem não póde ser bonito, bem feito, elegante, espirituoso, intelligente e illustrado como eu, sem fazer estalar de raiva os outros homens e arder em brazas as mulheres.
Existem, no entanto, sentidos mais profundos sob o pano cômico. O flerte de Lulu Sênior revela sua posição sobre a prostituição no país. A discussão sobre o tema pode ser encontrada na imprensa da época e se repetirá algumas vezes nas referências a Filomena. Também a discussão sobre a mulher, em geral, está presente de alguma maneira, e acompanhará as tentativas de definição da senhora dos cartões. Esse texto, publicado no domingo, despertará as conjeturas sobre quem seria esta misteriosa mulher, que continuarão durante a semana, dentro da série.
No dia seguinte, na mesma série do mesmo jornal, Décio, pseudônimo de Demerval da Fonseca (ou Montaury),24 contradiz Lulu Sênior.25 Este estaria enganado, já que não foi o único a receber o cartão de Filomena: ela distribuiu uma profusão de cartões pela cidade, “cumprimentando a torto e a direito”. Décio também teria recebido o seu, e também se sentiu intrigado. Segundo ele, várias pessoas estão procurando saber quem é Filomena Borges e apresentando suas versões.26 O Dr. Furquim Werneck27 acredita que ela seja uma parteira; seu colega Pedro Paulo28 diz que se trata de uma senhora portuguesa,
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Não há consenso sobre o pseudônimo Décio: ele poderia ser usado tanto por Demerval da Fonseca como por Montaury, um repórter da Gazeta. BERGAMINI JUNIOR, Atilio; TATIM, Janaína. Machado de Assis no tabuleiro das Balas de Estalo. Organon, Porto Alegre, v. 28, n. 55, p. 33-53, jul./dez. 2013. 25 Décio, “Balas de Estalo”, Gazeta de Noticias, 08/10/1883. p. 2. ed. 281. 26 Neste trabalho, para a identificação das pessoas referidas nos periódicos, cruzamos os dados encontrados na Gazeta de Noticias e de seu Almanak com os dados dos sítios da Câmara dos Deputados e do Senado Federal (para os políticos) e do sítio Literatura Digital (projeto do Núcleo de Pesquisa em Informática, Literatura e Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina), que contém um catálogo com dados biobibliográficos. 27 Dr. Furquim Werneck, médico. Na época da discussão, pudemos encontrar algumas referências a ele nos jornais: era associado ao Sr. Aguiar num estabelecimento farmacêutico que vendia “líquidos milagrosos”; era presidente do Club Internacional de Tiro ao Alvo; anunciava um livro de sua autoria, em colaboração com o Dr. Feijó Filho: “Questão médico-legal; Defloramento, documentos oficiais e sua análise”. O que parece mais interessante na perspectiva deste trabalho, no entanto, é a tentativa de se fundar uma instituição, o Asilo Furquim. O Dr. Caetano Furquim de Almeida, pai de Furquim Werneck, morreu e deixou um prédio em Vassouras para que se fundasse a instituição. Participaram da coleta de doações tanto o filho quanto Ferreira de Araújo. 28 Dr. Pedro Paulo, médico, “operador e parteiro”. Décio aproveita as opiniões dos doutores para alfinetar Maciel e Penna: Francisco Antunes Maciel, ministro dos negócios, e Affonso Penna, ministro da agricultura, comércio e obras públicas. Eles são apresentados como “inimigos das acumulações”.
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lavadeira, criada e moça de recados, que conheceu em Viena.29 Já Lopes Cardoso30 afirma que Filomena “é uma filante de mais”. Belarmino,31 o chefe de polícia da corte, especula que ela possa ser uma “futura proprietaria de casa de alugar quartos!” e que possua nomes tão sibilinos quanto provocantes.32 Faro & Lino33 consideram a “possibilidade de uma litterata que os tomará por editores”; Cotegipe34 acredita que ela é a “chave do mysterio em que se envolveu durante todo o anno uma desconhecida que assistiu imperturbavel a todas as sessões do senado – ou do Sr. Corrêa35 – com um pesado véo sobre o rosto”. O chefe da Igreja Positivista, Miguel Lemos36 “cuida ter descoberto a unica competencia para o papado – ou a papança – do positivismo”; o médico Freire37 avista uma “estrangeira recem-chegada, que se prestará facilmente a deixal-o inocular n’ella o seu microbio” e o Club Beethoven38 “pensa em requerer uma verificação de sexo, afim de certificar-se de que esta mulher não é realmente algum homem, e de que não seja capaz de tocar alguma cousa no seu primeiro concerto classico”. 29
A acumulação de funções da senhora portuguesa de Viena é uma brincadeira com os decretos dos ministros citados, que vetavam a acumulação de cargos públicos – outro assunto muito discutido na imprensa. 30 Antonio Lopes Cardoso. No ano de 1883, lutava pela patente do querosene inexplosivo. Tinha um irmão, Manuel Lopes Cardoso, redator e proprietário do Diario de Noticias da Bahia. Tinham mãe portuguesa. Algum dos dois escreveu uma comédia representada no teatro Novidades, Russinho (referência no jornal simplesmente a Lopes Cardoso; o que nos leva a crer que é Antonio na referência de Décio é que ele morava na corte e era uma das pessoas que figurava nos jornais). 31 Belarmino Peregrino da Gama e Mello merece mesmo um artigo. Ele se envolveu em várias polêmicas no ano de 1883. Era mal visto pela Gazeta de Noticias, que começa o ano criticando a censura ao carnaval, por conta dos carros representando D. Pedro II e o ministro da guerra. Um pouco depois, ele pede recursos para melhoria das cadeias, em resposta à cobrança do presidente da comissão sanitária. Pelo visto, era também um dos responsáveis por liberar as peças para encenação, e Lulu Sênior o repreendeu pela demora em aprovar O nihilista (que passaria a se chamar A vigança à um nihilista). Já próximos da citação por Décio, dois textos chamam bastante atenção: no dia 30 de setembro, uma aparente notícia com formato de narrativa policial retrata a ineficiência de Belarmino no caso de Loquin, antigo traficante de notas falsas e agente de polícia que se prostitui no Rio; no dia 5 de outubro, vários textos contam casos de corrupção policial. Então aparece a referência a ele no meio da discussão de Filomena, que liga a figura da mulher à cafetinagem, prostituição e corrupção (novamente). Em outubro, ele será demitido em razão do caso Apulco de Castro. 32 A referência aos nomes Filomena e Borges vem do cronista: Filomena é indecifrável e provocante. No caso, o recurso às palavras é um duplo chiste, tratando da ineficiência da polícia em decifrar os casos e da prostituição. 33 Faro & Lino, livreiros e editores. Publicarão a primeira edição de Casa de Pensão, de Aluísio Azevedo, em 1884. 34 João Maurício Wanderley, o Barão de Cotegipe, senador. 35 Manoel Francisco Correa, senador. 36 Miguel Lemos, chefe da Igreja positivista do Brasil. 37 Dr. Domingos José Freire, médico. Elabora uma vacina para febre amarela, segundo ele causada unicamente pelo micróbio cryptococco xanthogenico (sic). 38 Club Beethoven. Clube musical fundado por Roberto Kinsman Benjamin, funcionou de 1882 a 1889. Aparentemente o clube não aceitava mulheres.
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Todas as referências mencionadas acima têm duplo sentido: enquanto discutem a definição de Filomena, provocam diversas celebridades da época. Esse procedimento é recorrente na série: o tema principal, Filomena Borges, é usado para comentar vários temas secundários. Da mesma forma que Lulu Sênior incluiu no texto inicial uma crítica à prostituição, aqui são incluídas discussões sobre diversos tópicos que ocupavam os jornais da época. Critica-se, sob tom de descrença e descrédito, a medicina e a ciência (médicos, positivismo); o Estado, o governo e a polícia (senadores, ministros, Belarmino); a mulher, a prostituição, o estrangeiro. Seguindo o texto, o cronista Décio afirma ser o único a ter opinião formada sobre Filomena: “é um D. Juan de saias, uma mulher perigosa”,39 afinal, “diante da nevrose amorosa de Filomena, deste seu hysterismo sem limites, não ha feio possivel”. As senhoras, portanto, deveriam suspeitar de seus maridos, “por mais conselheirohenriques40 que elles sejam”; os chefes de família deveriam proibir os filhos de 16 a 21 anos de sair à rua desacompanhados de uma (ou mesmo duas) amas secas. Ora, essa mulher, “insaciavel”, “caprichosa e voluvel”, quer conhecer tudo, acumular experiências, estando, consequentemente, “fadada a promover o escandalo n’esta capital”. As provocações também se direcionam para as letras: Ella ha de possuir o Sr. Taunay,41 que dizem ser o moço mais bonito da nossa litteratura; e no dia seguinte terá o prazer extravagante de ser possuida pelo Sr. Hudson,42 que não passa por ser o Apollo de Belvedere da nossa poesia.
Taunay e Hudson, além de literatos, eram colunistas do Jornal do Commercio, concorrente direto da Gazeta de Noticias. Eles são constantemente atacados nas “Balas”, junto com Carlos de Laet, muitas vezes respondendo do outro lado. Essa “inimizade” tem tanto viés jornalístico, marcado pelas posições dos jornais, 39
O tom da afirmação é cômico, mas interessante, porque vai construindo a personagem. Henrique Francisco D’Avila, conselheiro do Império e ministro da Agricultura. No período, era senador. Infelizmente não há informação suficiente para entendermos totalmente a piada. 41 Alfredo Maria Adriano d’Escragnolle Taunay, então deputado por Santa Catarina, político, militar, romancista. Usava o pseudônimo Sílvio Dinarte. Sua família era muito ligada a D. Pedro II. DEL PRIORE, Mary. Visconde de Taunay: cadeira 13, ocupante 1 (fundador). Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2011. 42 Otaviano Hudson, poeta, responsável pela coluna de poesia satírica “Musa do povo” no Jornal do Commercio. 40
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quanto literário: os colunistas do Jornal são associados a um grupo mais antigo da literatura nacional, ligado ao Império, ao passo que a Gazeta se pretende mais moderna. Para um leitor atual, essas disputas podem parecer pessoais, mas elas devem ser matizadas, já que as polêmicas eram um recurso comum na imprensa da época.43 Para finalizar sua crônica, Décio faz uma provocação bem-humorada: ele conjetura que Filomena não fará muito sucesso entre os membros da série, e a desafia a abraçar Lulu Sênior em menos de três dias (que seriam necessários para dar-lhe a volta). As falsas polêmicas e as provocações eram comuns entre os autores das “Balas”, e é justamente através delas que se vai construindo a imagem pública de Filomena Borges, até então uma misteriosa senhora sobre a qual muito pouco se sabia.
No dia 9 de outubro, aparecem duas referências ao caso, que já devia despertar ampla curiosidade, ao menos nos assinantes da Gazeta e nos profissionais da imprensa, que tinham o costume de ler diversos periódicos. Nas “Balas de estalo”, Henrique Chaves, assinando com o pseudônimo Zig-Zag, conta ter também recebido o bilhete, reafirmando e complementando a opinião de Décio: Filomena estaria invadindo os lares para arruiná-los através dos ciúmes.44 Essa “mulher, que, como a Morgadinha de Val-Flôr,45 póde ser um diabo, segundo a opinião do Leonardo, ou um anjo, segundo o Sr. Furtado Coelho, na edição Luiz Fernandes”, e “confia mais no serviço do Sr. Betim Paes Leme46 do que na sua belleza”, com seus nomes “tão vulgares, [...] tão burguezes, tão insignificantes”,47 incomoda o cronista, cuja preocupação está resumida na passagem seguinte:
Se eu fosse o unico a receber o cartãosinho, pouco me importaria que n’elle estivessem escriptos estes detestaveis nomes de Philomena e de Borges. Creio mesmo que ficaria lisongeado. Mas a tal mulhersinha
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Mais adiante, veremos que Taunay frequentava a livraria de Faro & Lino com os “inimigos” da Gazeta. Hudson já havia contribuído com a Gazeta na década anterior. 44 Zig-Zag, “Balas de Estalo”, Gazeta de Noticias, 09/10/1883. p. 2. ed. 282. 45 Peça de Manuel Pinheiro Chagas. É um grande sucesso de público e crítica desde a década de 1870. Henrique Chaves foi um dos primeiros a criticar a peça quando da sua primeira representação. Henrique Chaves, “Comunicado”, Diario do Rio de Janeiro, 10/01/1870. p. 1. ed. 10. 46 Betim Paes Leme: chefe dos correios. É muito citado na imprensa, sendo retratado como uma espécie de herói. 47 Repete preocupação com os nomes que teve Décio. Lá, eles eram sibilinos e provocantes e teriam motivado a opinião de Belarmino.
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não é de miudezas. Quando trata de expedir cartões, fal-o aos milhares.48
Ela, que apenas com o nome já seria tão conhecida quanto o Hudson, deveria, para o cronista, revelar mais informações para se tornar tão conhecida quanto a “Musa do povo”,49 por mais que ela não fosse uma musa; se ela fosse parteira, “como affiança Mme. Durocher”,50 far-se-ia necessário também revelar o número do telefone. O tom do texto é de revolta e mau humor. O autor começa por dizer que não escreverá sobre Filomena, que não se importa em saber quem é ela – e ainda assim gasta uma boa parte da coluna tratando do assunto. Isso pode ser explicado pelo perfil do pseudônimo, que faz o papel de mal-humorado na série.
A discussão, até aqui, figura-se como a luta de um bando de rapazes por uma pretendente em comum. Eles disputam a melhor versão de Filomena como se disputassem sua atenção ou seu amor - como se a disputassem. Por mais que Décio seja um pouco cético, ele entra nessa disputa, e Zig-Zag contraria a previsão do primeiro, de que Filomena não teria muito sucesso com os membros da coluna. Mas não são todos que pretendem investir sobre o “D. Juan de saias”.
A segunda referência do dia 9 de outubro pode ser encontrada no Corsario, dentro da “Seção humorística”, sob o título “É a tal cousa”.51 O artigo faz pilhéria com Lulu Sênior e aconselha a senhora dos cartões a não aceitar os convites que recebeu do cronista:
Não caias nessa, Philomena. A barriga prejudica o desenvolvimento da tal cousa, e, em vez de teres alguma coisa por conta, terias de fazer de conta, porque lá diz um dictado franco-brazileiro: Plus on est gordo, moins on s’amuse à l’amourette.52
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O problema parece ser o D. Juan ser mulher. “Musa do povo”. Coluna de poesia satírica assinada por Hudson no Jornal do Commercio. 50 Madame Durocher, célebre parteira. 51 “É a tal cousa”, Corsario, 09/10/1883. p. 3. ed. 4. A coluna “Seção humorística” era anônima, mas possivelmente escrita pelo redator, Apulco de Castro. Acreditamos que sua função fosse polemizar comicamente com outros jornais e colunas. 52 Brincadeira com a passagem francesa do texto de Lulu Sênior. Aqui, em tom aportuguesado, temos: quanto mais gordos, menos nos divertimos no amor. 49
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A brincadeira se dá em torno de “Por conta”, conto de Lulu Sênior publicado na Gazeta um pouco antes do fenômeno Filomena. O tom do texto anônimo, polêmico e agressivo, não surpreendente muito se consideramos o seu veículo de publicação, o Corsario, pasquim provocativo a ponto de custar a vida de seu redator dentro de alguns dias.53
Até aqui, três dentre os quatro principais cronistas das “Balas”, e um adversário, no Corsario, apresentaram suas opiniões sobre Filomena. Restava o quarto cronista, que dá seu parecer nas “Balas” seguintes, do dia 10 de outubro: Lélio, pseudônimo de Machado de Assis.54 O autor relata em seu texto que acordou com “o desejo de desfalcar alguem ou alguma instituição” e começa a coluna com um plano de roubo arquitetado a partir de uma notícia de que um agente do correio teria sido flagrado com 14 contos de réis. 55 Após a voz de prisão, aconteceu a intervenção de dois “cavalheiros de superior posição”, que prometeram acompanhar o carteiro à cadeia, dispensando o oficial de justiça. Lélio apresenta então sua ideia: copiar o acontecido, mas, ao invés do que ocorre com o carteiro, ser acompanhado até o cais por dois amigos disfarçados de “pessoas sérias”. O trecho, primordialmente cômico, é interrompido por um travessão, depois do qual começa uma narrativa:
....Interrompo o que ia dizendo, para contar o que me aconteceu agora. Vieram dizer-me que uma senhora queria fallar commigo, e estava na outra sala. Vou à outra sala, e acho uma graciosa dama, vestida de preto, olhos grandes, apaixonados, rendas pretas na cabeça e no collo.
Quem seria essa senhora? Filomena Borges, obviamente. Note-se que é a primeira vez que a heroína é apresentada em carne e osso; ela seria, então, uma mulher real. Segue no texto um diálogo, acompanhado de narração, entre a mulher e o cronista. Lélio conta que Filomena o procurou para esclarecer a situação: ela mandou imprimir dois mil cartões, mas, ao recusar-se a pagar por achá-los ruins, desentendeu-se com o litógrafo, que os distribuiu em retaliação. Filomena seria, na verdade, uma mãe de família, viúva do coronel Graça Borges, residente na rua de Santo Antônio, número 53
Cf. SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. 4ª ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1999. Lélio, “Balas de Estalo”, Gazeta de Noticias, 10/10/1883. p. 2. ed. 283. 55 Não encontramos a notícia, descrita assim: “em um municipio do sul o agente do correio foi achado em alcance do valor de 14:000$.” 54
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96,56 e pede ao colunista que interceda em favor dela, para que seu nome pare de ser comentado. Lélio afirma não poder garantir isso, dada a paixão de Lulu Sênior. Notamos aqui que uma nova versão de Filomena surge nas páginas das “Balas de estalo”. Se a primeira, de Lulu Sênior, Décio e Zig-Zag, caracteriza-a como uma mulher sedutora, misteriosa, portanto atraente e perigosa, a versão de Lélio distingue-a como uma mãe de família, viúva,57 sincera, aberta, incomodada e ofendida com a notoriedade que alcançava seu nome. A primeira é disputada pelos três cronistas; a segunda é por Lélio protegida. Apesar da discordância entre os quatro, há um ponto em comum: a visão da extravagância feminina. Se nos três primeiros ela está explícita nos textos e no diálogo que estabelecem entre si, no texto de Lélio ela é marcada pelo primeiro parágrafo da coluna, que anuncia o primeiro assunto:
Acordei hoje com o desejo de desfalcar alguem ou alguma instituição. Se eu fosse mulher - Lelia, por exemplo, - explicava-se a extravagancia; era signal de que andava alguma cousa no ar. Mas, homem! Emfim, são segredos da natura.
Segredos? Se não se conhece a natureza do problema, ou se ela não é apresentada, os seus efeitos estão muito bem caracterizados. As três primeiras crônicas perguntam: quem é Filomena? Nas formulações dos três primeiros cronistas, há uma ideia de mulher ainda abstrata, nebulosa. Lélio, porém, procura tornar a discussão mais material, desvendando questões que punham em xeque a existência de Filomena. A personagem mora em determinado endereço, é mãe e viúva e, dessa forma, aquela figura de mulher torna-se concreta. Possivelmente nascida de uma fofoca das ruas ou de uma brincadeira entre os jornalistas, a mulher, antes misteriosa, ao cabo de uma semana está bem definida e conhecida. Todavia, a real natureza da criação desta personagem só será esclarecida nos próximos meses, em que se vai revelando o viés comercial que o nome ganha.
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A título de curiosidade, procuramos pelo nome do suposto marido e pela rua na Hemeroteca Digital, concentrando a busca nos Almanaques, mas nada encontramos – o que já era esperado. Resta saber se o local significa alguma coisa socialmente ou se é referência a algo ou alguém. 57 Na XIX Semana de História, realizada entre 10 e 12 de setembro de 2013 no campus de Franca da Unesp, a prof.ª Daniela Magalhães da Silveira nos chamou atenção para a possibilidade de que ser viúva moça, na época, poderia conter sentido negativo: virar cocotte.
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A personagem Filomena Borges vai sendo construída coletivamente, dentro de uma discussão periódica e atual que se dá no interior de uma coluna. Ela nasce, portanto, como personagem midiática, nos termos de Marie-Ève Thérenty.58 Sua formação segue o movimento comum das “Balas de Estalo”: Lulu Sênior, o chefe, lança a pauta, que será comentada pelos outros cronistas; Décio, o médico, apresenta o problema dentro da ciência; Zig-Zag, o cético, desconfia; Lélio, o empulhador, define, ao mesmo tempo em que dissimula, com seu desejo de desfalcar.59
Restava, porém, explicar de onde a personagem viera, para que, por quais motivos – os determinantes de seu caráter. Tal papel coube a Aluísio Azevedo, que entrou na discussão no dia 11 de outubro.60 Na primeira página da Gazeta de Noticias foi publicada uma carta de sua autoria, datada do dia 4 do mesmo mês. O título, “Philomena Borges”, marca a primeira vez em que o nome aparece com destaque, em caixa alta, justamente na primeira página do jornal (é inclusive o primeiro texto da edição, logo abaixo de “Expediente”). A carta foi precedida por uma pequena apresentação, que enfatiza a ansiedade geral do público por desvendar quem seria a dona daquele nome:
De ha alguns dias conheciamos parte do romance – se romance podemos chamar a uma historia tristemente verdadeira – de que é heroina, protagonista, victima, e não sabemos que mais, aquella mulher que é hoje celebre por andar o seu nome por toda esta população, repetido de bocca em bocca.
O jornal afirma ter tomado conhecimento de sua história, aqui comparada a um romance, através de Azevedo, que colheu informações pessoalmente e que começa, na carta, a contar brevemente a história de Filomena. O escritor teria ido à casa de Filomena, da qual voltou impressionado com o relato da mulher, questionando-se se ela,
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THÉRENTY, Marie-Ève. La Littérature au Quotidien: Poétiques journalistiques au XIXe siècle. Paris: Éditions du Seuil, 2007. 59 Essa interpretação foi auxiliada pela prof.ª Ana Flávia Cernic Ramos, também na XIX Semana de História. Coincidentemente, apresentamos neste evento comunicações com títulos e resumos muito semelhantes. Ela publicou, nos anais, um artigo que reconstituiu o processo de que ora tratamos. Cf. RAMOS, Ana Flávia Cernic. Philomena Borges: uma leitora de folhetins sob o olhar de Aluísio Azevedo. In: XIX SEMANA DE HISTÓRIA DA UNESP HISTÓRIA, LEITURA E CULTURA MIDIÁTICA, 2014. Franca. Anais... p. 346-355. 60 Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 11/10/1883. p. 1. ed. 284.
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de fato, seria a maior culpada pelas fortunas que destruiu. A explicação se dá também como uma espécie de defesa de Filomena Borges: Bem sei que Philomena não é um modelo de virtudes domesticas; bem sei que na febre de suas paixões mais de um futuro se tem estiolado; bem sei que muito coração ainda hoje sangra a ferida de seus osculos vermelhos. Mas será ella porventura a maior culpada de tudo isso, será ella a unica responsavel pelo mal que fez, e pelas fortunas que destruiu?! Não caberá alguma parte d’essa culpa à nossa sociedade, aos nossos costumes, à nossa educação, e finalmente ao triste meio onde cresceu e palpitou essa desventurada e formosa creatura?! As mulheres são fatalmente aquillo que os homens decretam que ellas sejam. Philomena Borges é um producto legitimo dos vicios e da covardia de seus pais. Se não a educassem no falso luxo; se não lhe ensinassem todas as miserias de uma pobreza sem coragem e sem dignidade; se não a vendessem ao primeiro noivo rico e brutal que a desejou; Philomena Borges seria talvez n’este instante o melhor modelo das mãis de familia.
A citação é longa, mas essencial. Aqui já estão apresentados alguns dos temas que serão desenvolvidos no romance, a tal “verdadeira história”: os costumes, o casamento, a educação da mulher. O romance aparecerá como mais um relato, desta vez completo e isento, que dará aos leitores a condição de formar a própria opinião sobre Filomena:
E, no fim de contas, qual é o motivo de tanta guerra?! De que lado está a razão?! Isso só o público decidirá, depois de ler o apanhado de todos os factos, o extracto de todos os documentos, que me foi permittido descobrir a respeito de Philomena Borges. Não hei de inventar, nem esconder cousa alguma; a verdade apparecerá nua e limpa, ainda que tenha de arcar com o resentimento de algumas pessoas. Rio, 4 de outubro. – Aluizio Azevedo...
A carta, portanto, trata-se de um texto em defesa de Filomena Borges. Sua datação, anterior às “Balas” que iniciam a discussão, dá a ela uma marca de precedência, que atesta a autenticidade do relato de Aluísio Azevedo frente ao público. Nela, planta-se a ideia do romance no terreno preparado pelas “Balas de Estalo”. O caráter da personagem já estava bem formulado pela coluna; restava a Azevedo definir
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as determinações desse caráter, que já começaram a ser por ele descritas. Há que se destacar ainda que Filomena, na versão do autor, não é o melhor modelo de mãe de família, o que, de certa forma, rebate a versão de Lélio.61 Assim, Azevedo resume e concentra as definições anteriores: a mulher é concreta, mas se une à sua abstração, mantendo a marca de mistério e sedução; ao mesmo tempo, ela também é detestada e temida. Note-se, na continuação do capítulo, como a caracterização das “Balas” se repetirá em outros textos, que apresentaremos a seguir. Todos eles são desdobramentos dessa discussão inicial, agora acrescida fortemente do caráter comercial que esse romance toma.
1.2.a As aparições
A partir do dia 11 de outubro, podem ser encontradas diversas referências a Filomena nos mais diversos espaços dos jornais. Em um artigo, por exemplo, o nome serve como pseudônimo para uma elegante senhora brasileira, frequentadora da “primeira sociedade parisiense”;62 em outro momento, surge como pseudônimo para uma cafetina húngara que importava suas compatriotas com promessas de casamento e as prostituía.63 Mas, afinal, o que une essas outras aparições, além do uso do mesmo pseudônimo? Em primeiro lugar, a excentricidade: ambas se vestem de homem, a primeira para explorar um prazer desconhecido (que acaba virando moda), a segunda para fugir da polícia; em segundo, o impacto comercial: ambas estão ligadas a estabelecimentos de vestuário, “Au Boulevard” e alfaiataria Estrela do Brasil, respectivamente. Por fim, ambas são apresentadas em textos de jornal com formato de notícia que, aproveitando-se da celebridade crescente do nome, dele se utilizam como título e assunto para chamar atenção para outras coisas.64 61
Apesar de se poder considerar que a referência à viúva ironize o “mãe de família”. “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 11/10/1883. p. 2. ed. 284. O texto aparece nas “Publicações a pedido”. A toilette que descreve “acha-se à venda no grande armazém de fazendas, modas, confecções e armarinho ‘Au Boulevard’, largo de S. Francisco de Paula”. 63 “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 14/10/1883. p. 2. ed. 287. Importante notar que a cafetina “mudou de sexo” na Alfaiataria Estrela do Brasil para escapar da polícia. 64 O vestir-se de homem, e sua possível relação com o teatro (D. Juanita, Morgadinha...) e com o romance, ficará por ser discutido mais a fundo. 62
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Nossa hipótese é que não passam de propagandas para as vendas de roupas citadas, exemplos ótimos do caráter comercial que o nome vai ganhando. Essa hipótese se fortalece quando encontramos outras referências a Filomena, que se tornam cada vez mais comuns até a publicação do folhetim. Aproveita-se a curiosidade e o mistério em torno do nome para chamar atenção para diversos eventos. No anúncio abaixo, há uma possível relação entre o nome e a excentricidade que passa a acompanha-lo, ainda mais se o leitor teve acesso à versão de que Filomena seria uma mulher da alta sociedade, bem vista em Paris. À mulher perigosa das “Balas”, soma-se a mulher chic dos boatos e anúncios:
Figura 1 – Paradis des Dames
Gazeta de Noticias, 12/10/1883. p. 1. ed. 285.65
Em outro anúncio, Filomena está para debutar frente à sociedade do Rio de Janeiro, contribuindo para a composição do clima de mistério:
Figura 2 – Esquina do Ouvidor com Uruguaiana
65
Esta notinha foi publicada na primeira página, entre notícias.
22
Gazeta de Noticias, 13/10/1883. p. 3. ed. 286.66
Outros anúncios não possuem aparentemente relação alguma com a personagem das “Balas de estalo”. A seguir, um exemplo em que se utiliza o nome apenas como chamada para anunciar uma polca, possivelmente inspirada pela opereta “Dona Juanita”,67 que estava sendo encenada no período, mas que aparentemente não tem nenhuma relação com a “D. Juan de saias”,68 Filomena:
Figura 3 – Polca Dona Juanita
Gazeta de Noticias, 18/10/1883. p. 6. ed. 291.
O anúncio da polca tem um formato tão absurdo que motiva a correção, que aparece dias mais tarde, duas vezes na mesma página:
Figura 4 – Não é polca
66
Não encontramos o que haveria nesta esquina. Possivelmente seria uma loja com uma vitrine bastante atrativa, aproveitando-se da situação. A nota encontra-se na sessão de anúncios. 67 Donna Juanita, opereta com música de F. Suppé e libreto de F. Zell e R. Genée. 68 Pretendemos, futuramente, estudar com maior profundidade uma possível relação entre a opereta, a personagem midiática, Filomena Borges, e o romance Filomena Borges. Isto não foi possível aqui pela dificuldade de acesso ao texto da tradução portuguesa de Eduardo Garrido.
23
Gazeta de Noticias, 02/12/1883. p. 4. ed. 336.69
Uma nota neste estilo tem a óbvia função de informar, mas também pode ajudar a preencher espaços vazios na página de anúncios. Seja como for, a Gazeta de Noticias já era um jornal sustentado pelos anúncios e pelas publicações a pedido, o que torna ainda mais intrigante a presença relevante de Filomena Borges nos dois espaços. A misteriosa senhora serve para vender roupas, partituras, e também para chamar atenção para festas:
Figura 5 – Festa do oitavário de Nossa Senhora da Penha
Gazeta de Noticias, 27/10/1883. p. 4. ed. 300.70
Mais tarde, será publicado, também na sessão dedicada aos anúncios, o tão falado cartão:
Figura 6 – Cartão de visitas
Gazeta de Noticias, 04/12/1883. p. 4. ed. 338.71
69
Há duas notinhas iguais na mesma página. Elas poderiam cumprir uma dupla função: informar e ajudar a preencher o jornal. 70 Filomena poderia, afinal, não ser uma mulher tão perigosa, frequentando festas religiosas. 71 O cartão é repetido em várias edições, nos anúncios.
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Para manter cativados os leitores, os seguintes “Avisos” foram publicados em diversas edições:
Figura 7 - Aviso
Gazeta de Noticias, 05/12/1883. p. 2. ed. 399.72
A repetição desse tipo de nota, que promete que ela estará em tal evento, ou que aparecerá em tal momento, dá a entender que ela nunca apareceu em nenhum.73 O que, por sua vez, não impediu que seu nome circulasse também por outros meios, como na homenagem que lhe prestam os Tenentes do diabo:74
Figura 8 – Tenentes do Diabo
72
Aviso repetido em diversas edições. Só nos jornais, conforme defendemos a seguir. 74 Uma das três grandes sociedades carnavalescas do período. Cf. PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. O carnaval das letras: literatura e folia no Rio de Janeiro do século XIX. Campinas: Editora da UNICAMP, 2004. 73
25
Gazeta de Noticias, 09/12/1883. p. 3. ed. 381.75
Note-se que “em virtude da decisão tomada em assembleia geral, não se dará convites a pessoa alguma.” Ou seja, nem Filomena debutará, nem o baile acontecerá. O nome Filomena Borges, que já vinha ocupando as primeiras páginas da Gazeta, passa a ocupar as últimas. Ele vai sendo associado a festas, bailes, espetáculos, peças de vestuário, casas comerciais, sempre contribuindo para a marca principal da personagem: a extravagância.76
1.2.b Filomena sai das “Balas” e vai para as folhas: “Um encontro, um leque, um cartão” O folhetinista J.A.77 do Brazil publicou, em 14 de outubro de 1883, uma carta sob o título de “Um encontro, um leque [e] um cartão”, que ele teria recebido pelo 75
Anúncio repetido em várias edições. Geralmente relacionada ao vestir-se de homem, como na Morgadinha. 77 Pseudônimo não identificado. 76
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correio.78 Na narrativa, um marido conta três eventos em que o ciúme de sua esposa é despertado. No primeiro ela se ressente pelo encontro dele com um amor do passado durante um baile; no segundo, por achar um leque na sua gaveta, que ela supõe ser de outra; no terceiro, por achar um cartão, também na sua gaveta, com o nome: Filomena Borges. Para se livrar dessa situação, o marido lhe mostra a Gazeta de Noticias:
Adda comprehendeu então que eu não fôra o unico marido a quem Philomena Borges se dirigira, embora sem dar o seu adresse. Tratava[-]se de uma mulher mysteriosa e ella promette ler com a maior curiosidade o romance que se annuncia do fecundo litterato Aluizio de Azevedo.
O comentário final do folhetinista é também significativo: “não é uma pagina realista, no entanto descreve com muita naturalidade a mulher pelo seu lado mais fraco e feminil, - o ceume”.
O marido resistiu à conquista, mas, como já vimos, não são todos os homens que resistem ao charme da moça. Dentre os conquistados, destaca-se um, que resolve se declarar por meio da imprensa, coincidentemente o lugar onde ela é mais facilmente encontrada:
Figura 9 – M.
78
J.A., “Um encontro, um leque [e] um cartão”, Brazil, 14/10/1883. p. 1-2. ed. 78. O mesmo folhetim será reproduzido dois dias mais tarde na Gazeta de Noticias. J.A., “Um encontro, um leque e um cartão”, Gazeta de Noticias, 16/10/1883. p. 1-2. ed. 289.
27
Gazeta de Noticias, 18/10/1883. p. 3. ed. 291.79
Filomena, a mulher misteriosa que é ao mesmo tempo cafetina e socialite, sai do jornal para circular nas ruas e chegar às casas de família. Não há como supor que o relato que J.A. transcreve seja verdadeiro – ele mesmo dá razões para que se não acredite nisso; nem que M. seja um amante fisgado – seria, muito mais facilmente, só um texto para preencher espaços vazios no jornal. Mas é justamente nessa linha tênue entre o que, dentro do jornal, é fato ou ficção, que Filomena vai sendo construída e, provavelmente, concebida. Suas aparições são recorrentemente marcadas para qualquer dia, no evento tal ou qual, mas elas acontecerão apenas nos periódicos.
1.2.c Filomena, mulher de imprensa
79
O trecho, encontrado nas “Publicações a pedido”, lembra os galanteios de Lulu Sênior, apesar de não ter o tom irônico daqueles.
28
Estranhamente, na mesma época em que Lulu Sênior, principal responsável pelo fenômeno na imprensa, se diz cansado de Filomena Borges em uma de suas “Balas de Estalo”, ela passa a aparecer “pessoalmente”, assinando publicações. É importante citar esse trecho, pois ele será retomado quando formos tratar da crítica:
O assumpto Philomena Borges tambem já não dá panno para mangas, porque o Aluizio tomou conta d’elle, e vai dizer a respeito cousas do arco da velha. Até agora anda callado como um peixe, e não quer dizer o que sabe da heroina. O Montaury,80 que como reporter é o que se chama um alho, disse-me que a referida Philomena é uma sogra,81 que tendo perdido o ultimo genro que lhe restava, diverte-se a atormentar os genros das outras, unicamente por amor [à] arte.82
O amor à arte desta “sogra” se estende do tormento dos genros à poesia. A 30 de outubro ela assina um poema n’O Mequetrefe:
O mandarim Tong-King-Sing I Estudar o que ha por cá Vem da China o mandarim; Antes de ir para Pekim; Ninguem sabe onde elle irá. Vem da China o mandarim; Estudar o que ha por cá. II É bom letrado e faz versos, Tem diversos pergaminhos; Cita às vezes pedacinhos, De Bellegarde e diversos. Tem diversos pergaminhos, É bom letrado e faz versos. III Não guarda nada no buxo! Diplomata de rabicho, A palavra n’um esguicho Vem-lhe aos labios, de um repucho!... Diplomata de rabicho, Não guarda nada no bucho. IV 80
Montaury, repórter da Gazeta de Noticias. Possível responsável pelo pseudônimo Décio das “Balas de Estalo”. 81 Um dos temas favoritos de Lulu são a sogras: ele adora fazer piadas com elas. RAMOS, A. F. C. op. cit. p. 39. 82 Lulu Sênior, “Balas de estalo”, Gazeta de Noticias, 19/10/1883. p. 2. ed. 292.
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No bello idioma chinez Não se entende o que elle diz; O Lafayette já quiz, Dizer-lhe a coisa em francez. Não se entende o que elle diz, No bello idioma chinez. V Hei de dar ao chim um chá, Se a missão levar ao fim. Antes de ir para Pekim Relatar o que ha por cá, Se a missão levar ao fim... Hei de dar ao chim um chá.83
O poema homenageia o mandarim que estava no Rio, que é o outro grande acontecimento do período, também muito comentado nas “Balas” e nos outros periódicos.84 A importância dos dois assuntos é evidenciada pela sua presença na Revista de ano de Artur Azevedo e Moreira Sampaio, intitulada O Mandarim. Na peça, a Gazeta de Noticias e o Mandarim travam um diálogo:
FOLHA NOVA – Oh, que cabeça minha! É a tal coisa! Senhor Mandarim, consinta que lhe apresente minha amiga, Dona Gazeta de Notícias... MANDARIM – Oh! minha senhora! Tenho muito prazer em travar relações com Vossa Excelência... Já de há muito a conhecia, mas não ligava o nome à pessoa. Como passa Dona Filomena Borges, essa interessante senhora que se acha atualmente alojada no pavimento térreo da casa de Vossa Excelência? GAZETA DE NOTÍCIAS – Perfeitamente, obrigada. (Oferecendo-lhe um rebuçado, que tira do bolso.) Há de permitir que lhe ofereça uma bala... MANDARIM (Recuando.) - Uma bala? GAZETA DE NOTÍCIAS – De estalo. São inofensivas. BARÃO (À parte.) – Conforme. MANDARIM – Aceito. (Chupando a bala e fazendo uma careta, à parte.) Pode ser que seja feita de açúcar, mas amarga como fel!85
Tornando-se autora, Filomena Borges também assinará dois textos de resposta ao Jornal do Commercio, apresentados a seguir:
83
Filomena Borges, “O mandarim Tong-King-Sing”, O Mequetrefe, 30/10/1883. p. 7. ed. 325. Chegamos a imaginar que a Filomena pudesse ser, de algum modo, uma representação do próprio Mandarim – ideia que abandonamos. Há uma ampla discussão, na época, sobre a imigração chinesa e a visita do mandarim aquece e acentua os debates. 85 AZEVEDO, Artur. O Mandarim. In: Teatro de Artur Azevedo II. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Artes Cênicas, 1985. p. 265. 84
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Figura 10 – Lucros e perdas
Gazeta de Noticias, 18/10/1883. p. 3. ed. 291.
Figura 11 – Mme. Philomena Borges
Gazeta de Noticias, 19/10/1883. p. 2. ed. 292.
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Ela toma, assim, parte de sua mãe, a Gazeta de Noticias, nas polêmicas com Carlos de Laet e o jornal rival.86
1.2.d Filomena nas páginas policiais
Não é só de conquistas, moda e literatura que vive a heroína:
Figura 12 - Cadáver
Gazeta de Noticias, 11/11/1883. p. 3. ed. 315.87
Ou morre! Seria mais uma propaganda da Estrela do Brasil se utilizando da fama e do interesse pelo nome? Possivelmente. Mas Filomena entrará mais contundentemente no mundo das narrativas criminais. Na mesma Gazeta de Noticias, foi publicada em 4 de dezembro uma notícia instigante.88 Sob o título de “Caso singular”, conta-se que uma possível ladra, ricamente vestida, estuda as portas e fechaduras na madrugada, e é pega pela polícia. “Na estação, diante do respectivo commandante, a illustre desconhecida levantou o veu e... caso singular: Não era Philomena Borges!” Essa incursão pelo mundo do crime liga duas facetas de Filomena que já vinham circulando: 1) perigosa e 2) ricamente vestida. Anteriormente, ela serviu de
86
Esses dois textos foram publicados na sessão “Publicações a pedido”. Encontramos o folhetim “Microcosmo” assinado por C. de L., Carlos de Laet, mas não achamos referência ao nome Philomena (nem nos “Avisos” ou “Publicações a pedido”). A crítica a Lucros e perdas não foi encontrada, como a “Musa do povo”, que não vimos como coluna nesses meses (outubro, novembro e dezembro de 1883). 87 Texto encontrado em “Publicações a pedido”. 88 “Caso singular”, Gazeta de Noticias, 04/12/1883. p. 1. ed. 338. A mesma notícia é reproduzida no Correio Paulistano, 06/12/1883, agora com o título “Não era Filomena Borges!”, p. 1, ed. 8193.
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pseudônimo para uma cafetina húngara; no futuro, servirá como apelido para um rapaz preso pela polícia.89 O nome da célebre mulher é usado como chamada em anúncios, como pseudônimo em poema e polêmica, como personagem em uma suposta notícia. Participa, assim, de diversos processos de ficcionalização do cotidiano que acontecem simultaneamente no jornal.
1.2.e Filomena no Maranhão
Filomena também aparecerá na Pacotilha, jornal maranhense que já havia contado com a contribuição de Aluísio Azevedo no começo da carreira. Duas pequenas notas levam notícias do novo romance ao norte:
Figura 13 – Anúncio na Pacotilha
“Telegramas”, Pacotilha, 30/10/1883. p. 3. ed. 294.
Figura 14 - Petrópolis
Eloy, o heroe (Artur Azevedo), “Cartas Fluminenses”, Pacotilha, 03/12/1883. p. 2. ed. 327. 89
“Augusto Cordeiro é conhecido no mundo de suas relações por ‘Philomena Borges’ e da policia como notavel vagabundo. Por possuir estes predicados foi preso ante-hontem.” Diario Portuguez, 09/07/1885. p. 2. ed. 238.
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É importante destacar que essa nota de Artur Azevedo terá um efeito na análise do final do romance. Não sabemos se Aluísio Azevedo realmente foi a Petrópolis, mas isso revela duas coisas: o desejo de levar os personagens do romance até lá; e a construção do escritor-jornalista, cara aos naturalistas, que vai atrás dos fatos para retratá-los fielmente. Além disso, a grandeza de “occupa [...] a attenção de meio Rio” é marcante: seria só retórica ou realidade? Se considerarmos que o jornal “constrói” a realidade em certa instância, faz pouca diferença; para todos os efeitos, Filomena já prende a atenção de meio Rio.
1.3.a Adiamentos
A viagem ao Maranhão, sua morte, sua perseguição pela polícia, sua carreira de poetisa, devem ter deixado Filomena Borges um pouco cansada. Na virada de novembro para dezembro, a heroína passa por momentos de enfermidade e vaidade. A questão é que o romance que ocupa o pé de página da Gazeta, “O grilheta”, está acabando. Resolvem então os editores do jornal usar seus últimos recursos de publicidade, ganhando também algum tempo para Aluísio Azevedo, possivelmente atrasado na escrita do romance original. A culpa cairá sempre em Filomena, sua vaidade e fraqueza feminis, como em texto da Gazeta de 30 de novembro: “A heroina do romance de Aluizio Azevedo, se romance se póde chamar a veridica historia de uma vida cheia de accidentes, obrigounos a adiar por algum tempo a publicação do folhetim.” 90 Ela teria ocultado algumas coisas, mas agora “confessou tudo e mais alguma cousa”. É um anúncio de atraso que ao mesmo passo ganha tempo para o autor e aumenta a curiosidade do leitor. Em seguida, uma pequena notícia, que contribui com a curiosidade e com o retrato de uma mulher de carne e osso, além de, possivelmente, completar um espaço em branco do jornal:
Figura 15 – Enfermidade 90
“Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 30/11/1883. p. 1. ed. 334.
34
Gazeta de Noticias, 02/12/1883. p. 1. ed. 336.
Em texto publicado no dia 8 de dezembro, também na Gazeta, Filomena voltará a ter um acesso de vaidade, pedindo para adiar a publicação do romance até a virada do ano, pois assim o jornal ganharia novos assinantes “unicamente pela curiosidade de conhecer a sua vida aventurosa”.91 As senhoras poderiam, então, acompanhar o romance para ver se as cenas parecem com as escapatórias dos maridos que receberam os cartões. O jornal concorda com Filomena, mas tenta conciliar os interesses dos novos e dos atuais assinantes da seguinte maneira: no intervalo entre o folhetim “O grilheta”, que havia terminado no dia anterior, e o folhetim “Philomena Borges”, eles publicarão no rodapé dois contos traduzidos do francês pela própria Filomena; os novos assinantes passarão a receber a Gazeta a partir do início da publicação do romance de Aluísio Azevedo (dezembro), pagando a mesma quantia das assinaturas que começariam em janeiro. Os dois contos, de fato, saem entre 8 e 17 de dezembro, tomando cinco folhetins cada um, com os títulos “O vampiro” e “Minha prima Laura – História autêntica – Versão”.92
Figura 16 – Tradução dos contos
91
“Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 08/12/1883. p. 1. ed. 342. Os originais franceses foram publicados no Journal pour tous, periódico francês que circulou no Brasil, chegando a ter versão nacional. Uma das pesquisadoras do grupo, Izenete Nobre Garcia, estuda os chamados jornais-romance, definição na qual se encaixa o Journal. Infelizmente, não pudemos descobrir ainda se a versão em português dos contos foi feita para essa edição nacional do jornal ou se poderia ter sido feita especialmente para a Gazeta. Na versão em português, trocou-se o título “Le but de ma vie” por “Minha prima Laura – versão”. Charles Narrey, “Le but de ma vie”, Journal pour tous, 10/07/1867; 13/07/1867; 17/07/1867. ed. 1020, 1021, 1022. Louis Bailleux [?], “Le vampire”, Journal pour tous, 17/07/1867; 20/07/1867. ed. 1022, 1023.
92
35
Gazeta de Noticias, 13/12/1883. p. 1. ed. 347.
1.3.b Os últimos estalos
Depois de passear por todos os espaços dos mais variados periódicos, Filomena Borges voltará às “Balas de estalo” para, finalmente, ser encaminhada ao romance em folhetim. Nas “Balas” de 8 de dezembro, Lulu Sênior faz uma espécie de história da publicação do romance. O colunista começa reclamando de que muitos têm insinuado que a distribuição de cartões partiu da Gazeta, na tentativa de fazer “réclame à americana”.93 “A verdade” é que os cartões foram distribuídos por alguém que queria fazer mal a Filomena; como a sua circulação fez “barulho na cidade”, os reporters da Gazeta foram atrás da senhora, mas quem a descobriu foi Aluísio Azevedo. Este, então, teria proposto a “publicação da veridica historia de Philomena”. Lulu aproveita o final do texto para propagandear a “promoção” das assinaturas, ainda que escreva: “da Philomena, do Aluizio, digo eu que não precisa de réclame, porque se recommenda por si.” Dois dias depois, o mesmo cronista publica, em suas “Balas”, uma carta de Aluísio Azevedo a ele endereçada, supostamente particular.94 O romancista pede que o cronista acabe com as brincadeiras a respeito de Filomena, que anda muito sobressaltada e se sente perseguida pela Gazeta. Ao invés de procurar um médico ou um advogado, Filomena sempre recorreria ao romancista, o que traz diversos incômodos. 93
Lulu Sênior, “Balas de Estalo”, Gazeta de Noticias, 08/12/1883. p. 2. ed. 342. Seria “réclame à americana” o puff de que tratam os franceses? THÉRENTY, Marie-Ève. Médiatisation et création littéraire. In: KALIFA, Dominique; RÉGNIER, Philippe; THÉRENTY, Marie-Ève; VAILLANT, Alain. (orgs.) La civilisation du journal: Une histoire de la presse française au XIXe siècle. Paris: Nouveau Monde, 2011. p. 1507. 94 Lulu Sênior, “Balas de Estalo”, Gazeta de Noticias, 10/12/1883. p. 2. ed. 344.
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Ele narra um exemplo que sucedeu “ainda hontem”: enquanto tomava um café na Faro & Lino95 saboreando “pacificamente a bella prosa do Joaquim Serra96”, Filomena aparece e aponta Azevedo como o culpado por tudo, por ter prometido o romance de sua vida. O autor argumenta que o romance vem a favor dela, em sua defesa, e que ele não o escreveria se o nome dela “não estivesse espalhado por todo o Rio de Janeiro!” A discussão deflagra uma crise histérica, sob a qual Filomena agarra Lino e obriga-o a dançar uma valsa! Segue uma cena cômica em que o Faro cai no Veríssimo,97 que se assusta e esbarra no Alencar Araripe,98 pisa no calo de Silvio Dinarte99 e cai nos braços de Lopes Cardoso. Como no texto de Décio, Azevedo faz referências a diversas personalidades do Rio em meio a essa narrativa: além dos diretamente envolvidos, algumas pessoas apareceram para ver a confusão e outras são citadas na conversa com Filomena. Os curiosos são: Luiz de Andrade,100 Clapp,101 Victor Meirelles,102 Vasques,103 Pacheco fotógrafo,104 Valentim Magalhães,105 Emílio Rouède,106 padre Antonio Manuel,107 Salustiano Sebrão,108 “a bella romancista” D. Adelia,109 Urbano Duarte,110 Duque-Estrada,111 Artur Azevedo, Silvestre de Lima,112 Heller do Sant’anna,113 Manuel Carneiro,114 Navarro da rosa,115 França Junior,116 Casella – sujeito
95
Livraria contemporânea de Faro & Lino. Joaquim Serra, literato maranhense. 97 Verissimo do Bom-sucesso, descrito lendo um almanaque Antonio Maria, era poeta e jornalista. 98 Alencar Araripe, possivelmente o pai de Tristão de Alencar Araripe Júnior. 99 Sílvio Dinarte, pseudônimo do Visconde de Taunay. 100 Luiz de Andrade, escritor. 101 João Clapp, fundador da Confederação Abolicionista. 102 Victor Meirelles, pintor. 103 Francisco Vasques, ator. 104 Pacheco, fotógrafo. 105 Valentim Magalhães, advogado e colunista da Gazeta de Noticias. No período, é responsável pela coluna “Notas à margem”, assinando como V. 106 Emílio Rouède, artista polivalente. Escreveria, em parceria com Aluísio Azevedo, duas peças: Venenos que curam e O caboclo. 107 Padre Antonio Manuel. 108 Salustiano Sebrão, jornalista. 109 Adélia Josefina de Castro Fonseca, poeta, ou Adélia Camargo, romancista. 110 Urbano Duarte, dramaturgo e jornalista. 111 Pela idade, provavelmente se refere a Gonzaga Duque, o autor de Mocidade Morta. 112 Silvestre de Lima, poeta, jornalista (Gazeta da Tarde), abolicionista. Mais tarde, coronel. 113 Jacinto Heller, então empresário do Theatro Sant’Anna. 114 Poderia se tratar de Manuel Carneiro de Sousa Bandeira, pai de Manuel Bandeira, irmão mais velho do acadêmico Souza Bandeira. 115 Navarro da rosa, possível apelido de Joaquim Navarro. 116 França Junior, dramaturgo. 96
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de suíças ruivas da Camisaria Especial,117 Madame Durocher, “emfim quasi todo o Rio de Janeiro”.118 Depois de todo esse alvoroço, finalmente aparecem os socorristas: Dr. Pedro Paulo acode, Montaury chama um carro e se dispõe a acompanhá-la mais o Dr. Josino de Brito.119 Nas justificativas de Azevedo para Filomena, são citados: “Dr. Antonio Cardoso de Menezes,120 que me falou da vida privada de V. Ex.”; “Filinto d’Almeida,121 que a conhece muito bem”; “Dr. Macedo de Azevedo,122 que a tratou de uma pneumonia”; “Alberto de Oliveira,123 que já lhe offereceu versos”. Seriam estes responsáveis, também, por compor a personagem? Antonio Cardoso de Menezes e Filinto de Almeida parecem conhecê-la bem; Macedo de Azevedo teria sido seu médico, possivelmente cuidando de suas enfermidades recentes; Alberto de Oliveira teria sido fisgado, como Lulu Sênior e M., ou seria ele o autor do poema publicado com a assinatura de Filomena Borges?124 Azevedo pretende que a carta demonstre a Lulu Sênior as consequências de suas pilhérias. No fim, provoca, desafiando o interlocutor a fazer da carta uma “Bala de estalo”: seria o cúmulo da maldade.
Passada uma semana, acaba a paciência de Lulu: “já estou cheio de Philomena Borges”.125 Ele estaria recebendo muitas cartas e bilhetes sobre o assunto, dentre as quais uma o ofende em sua virtude, o que o motiva a esclarecer:
Respondo, pois, ao detractor, que não tenho o prazer de conhecer a Sra. Philomena Borges, que nunca a vi mais gorda, que não sei de que freguezia é, e que só terei conhecimento d’essa importante 117
A camisaria especial parece ter sido um estabelecimento importante e conhecido – há muitos anúncios nos jornais que a utilizam como ponto de referência: “ao lado da Camisaria especial”. 118 Note-se que “quasi todo o Rio de Janeiro” inclui quase exclusivamente homens, à exceção de D. Adelia, definida como “bella”, e Mme. Durocher, parteira. 119 Dr. Josino de Brito, médico. 120 Dr. Antonio Cardoso de Menezes. Formado em direito em S. Paulo, compunha música para o teatro, tendo se apresentado no Club Beethoven entre 1882 e 1889. 121 Filinto de Almeida, jornalista e poeta, futuro marido de Júlia Lopes de Almeida. 122 Dr. Macedo de Azevedo, médico. 123 Alberto de Oliveira, poeta. 124 Mais importante que descobrir quem era ou como se relacionava cada um dos citados, é notar que eles povoavam a imprensa da época, aparecendo em anúncios e crônicas variadas, sendo, portanto, conhecidos do público. 125 Lulu Sênior, “Balas de Estalo”, Gazeta de Noticias, 17/12/1883. p. 2. ed. 351.
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personalidade amanhã, quando o Aluizio começar a publicar a veridica historia da heroina.
O texto é, mais uma vez, primordialmente cômico, utilizando-se de uma historinha da infância do autor, quando se vestiu de anjinho numa procissão, para provocar um dos “inimigos” clássicos das “Balas” e do autor, O Apostolo. Para que se não diga que é propaganda da Filomena, ele muda de assunto. Apresenta a reclamação de um colega do Diario do Brazil, que se incomoda pelo livro do Dr. Moncorvo126 sobre a coqueluche ser escrito em francês. A justificativa, que Lulu foi colher com autores brasileiros, é que há poucos leitores em português “e que, escrevendo em francês, se não tiverem muito maior proveito, pelo menos terão mais um pouquinho de glória.” No entanto, não era essa a preocupação do cronista. Ela vem na passagem a seguir, os dois parágrafos finais do texto:
E ahi está por que escrevem em francez os auctores brazileiros que querem ser lidos; e eu, para prestar culto à verdade, roubei o espaço d’estas linhas, ao unico assumpto momentoso do dia: - a publicação do grande romance Philomena Borges, original de Aluizio Azevedo, que começa amanhã n’esta folha. Se, depois d’isto, os auctores brazileiros de livros em francez não me mandarem a preta dos pasteis, e se os patrões não me augmentarem o ordenado, sempre são muito pingas!
Ou seja, toda a pretensão do cronista era tratar do romance, que começará a ser publicado no dia seguinte. A discussão em torno dos livros publicados em francês nem chega a ser um desvio: ela encaminha a grande expectativa presente no fim do texto. Pelo visto, Ferreira de Araújo apostava alto no sucesso do romance. Contando com a ajuda de Aluísio Azevedo, ele mobilizou outros periódicos e outros escritores na discussão, definição e difusão daquela mulher misteriosa que se tornará romance. Às “Balas” coube a discussão inicial, a Azevedo, a definição final; aos outros periódicos, restou a difusão do nome e, consequente e indiretamente, do romance, que contou portanto com uma grande publicidade. Tanto Aluísio Azevedo quanto Lulu Sênior relataram receber numerosas cartas e bilhetes sobre o caso, num esforço de engrandecer o assunto. Acompanhando os 126
Dr. Moncorvo, médico.
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textos e os periódicos que lhe servem de veículo, percebe-se a tentativa de fazer parecer que, como dito na Pacotilha, a mulher ocupava a “attenção de meio Rio”.
1.3.c Anúncios
É nesse contexto que aparecerá o folhetim “Philomena Borges”, assunto dos próximos capítulos. A publicação é precedida, na Gazeta, por alguns anúncios, que se repetem algumas vezes:
Figura 17 – Anúncio da publicação
Gazeta de Noticias, 15/12/1883. p. 1. ed. 349.
Figura 18 – Anúncio da publicação datado
Gazeta de Noticias, 16/12/1883. p. 3-5,127 ed. 350.
Dado o esforço mercadológico narrado até aqui, esses anúncios não têm muita elaboração – aparentemente nem seriam mais necessários. Aquele que contém a data foi publicado diversas vezes, podendo exercer a função acessória de preencher a página, já destacada anteriormente.
127
Há alguns anúncios iguais espalhados pelas páginas.
40
Se nos parece que Filomena Borges ocupou a atenção de muitos dos leitores de periódicos, entretendo-os e provocando-os, criando uma ansiedade pelo romance, não foram todos que se divertiram com a brincadeira do réclame:
Figura 19 - Cacetação
Julio Dast, “Crônicas fluminenses”, Revista Illustrada, 16/12/1883. p. 2. ed. 364.
O aspecto comercial da literatura já era mal visto no campo literário, como ficará claro nas críticas ao romance, tratadas no capítulo seguinte.
1.3.d Prefácio
No dia 17 de dezembro, véspera do primeiro folhetim “Philomena Borges”, Aluísio Azevedo publicou na Gazeta uma espécie de prefácio ao romance.128 Intitulado “Filomena Borges – antes de principiar”, o texto procura preparar o leitor e antecipar algumas reações, negativas ou positivas, que o romance poderia receber.129 Apresenta-se o diálogo entre dois leitores, discutindo suas opiniões sobre “Philomena Borges”. Um deles aponta alguns defeitos; o outro, mais favorável, faz objeções às opiniões do primeiro. O primeiro problema levantado é o da verossimilhança, logo no início do diálogo:
- Pouco enredo... pouca fórma... e, com franqueza, achei tudo aquilo falso. - Falso? Não! Isso tem paciencia. Tudo aquillo é vasado na observação e na verdade! 128
Aluísio Azevedo, “Philomena Borges – antes de principiar”, Gazeta de Noticias, 17/12/1883. p. 1-2. ed. 351. 129 E, note-se, receberá. V. Capítulo 2.
41
- Talvez seja por isso mesmo! N’esse caso ha excesso de fidelidade e a cousa parece falsa. Às vezes um retrato a oleo é mais verdadeiro do que uma photographia. - Ora essa!... - Parece-te uma asneira o que acabas de ouvir, mas não é, acredita! Nada é tão inverossimil como a propria verdade, quando ella se apresenta com toda a brutalidade de seu peso. - Estás metaphysico, homem!
O leitor mais cético parece ligado à visão estética antiga – o assunto da arte é o belo. A questão se coloca dentro do debate da arte moderna: ela deve ser baseada na observação e na verdade, trazendo à tona tudo aquilo que se vê. O cético teria uma visão conservadora ou estetizante.
Em seguida, o problema volta a ser a réclame:
- Não sei se estou metaphysico, o que te afianço, é que não gostei da tal Philomena Borges, tão apregoada, tão anciosamente esperada. Confesso, achei-a fraca, desengraçada, inutil. Póde ser, se o romance não fosse tão annunciado, que eu achasse bom, porém pucharam tanto pela minha curiosidade, tanto mexeram commigo, que, palavra d’honra, esperava outra cousa! - Ora! Isso não é critica!
O que, para o defensor, não vale como critério de crítica. A expectativa e o comércio não tem nada a ver com o livro, como já defendido por Azevedo anteriormente: isso é assunto para os editores da obra. Segue uma breve discussão em torno das personagens. O cético questiona sua composição e verossimilhança, o defensor aponta que aquelas situações são cotidianas e que já foram vividas pelo próprio interlocutor. Isso puxa a discussão sobre a função da obra:
- Não! Não cites! Já vejo que não chegaremos a um accordo; quanto mais citares, é peior! Eu, por mim, digo-te ingenuamente: não desgostei de Philomena Borges. Achei-a fóra do commum, despretenciosa e divertida. - São opiniões! Eu não lhe descobri nenhuma d’essas qualidades! Não sei qual seja o fundo filosófico d’aquella obra, não sei o que ella prove, o que ella affirme! - Nem eu, mas fico satisfeito em saber que ella me divertiu, que ella me prendeu a attenção por muitos dias! E, digo-te agora: certas scenas
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que encontrei alli fizeram-me pensar... Acredito que em tudo aquillo ha uma intenção muito accentuada, ha a intenção de... - É inutil continuares! Já sei do que me vais fallar, e a esse respeito temos conversado!
Qual seria sua tese? Divertir basta? Quando eles vão chegar a discutir a intenção, há um corte muito sugestivo na conversa: provocação ou suspensão? Finalmente, a ideia central do texto aparece:
- O que eu vejo, é que é muito difficil escrever romances no Brazil!... O pobre escriptor tem a lutar com dois terriveis elementos – o publico e o critico. O publico que sustenta a obra, e o critico que a julga e às vezes a inutilisa; o publico que compra um livro para aprender, e o critico que exige que o livro sustente as suas idéas e pense justamente com elle – critico. - E d’ahi? - D’ahi é que tudo isso seria muito razoavel, se o publico caminhasse ao lado do critico; mas assim não succede – aquele navega ainda no romantismo de 1820, e este não admite litteratura que não esteja sujeita às regras de 1883. A difficuldade está em agradar a ambos, ou, pelo menos, não desagradar totalmente a nenhum dos dous. Isso, quero crer, é a grande preocupação de Philomena Borges. Ella tanto pertence ao publico como pertence ao critico!
Discorda-se sobre a função que o romance deveria ter, não sabemos ao certo sua intenção; mas sua pretensão é clara: não desagradar. O autor quer, ao mesmo tempo, vender e se firmar como literato, evitando se indispor com público ou crítica. É por isso que ele escreve um prefácio na defensiva, finalizado da seguinte maneira:
Será este o dialogo que se travará depois do ultimo folhetim de Philomena Borges? Pode ser. Em todo o caso, a obra principiará a sair de amanhã em diante no rodapé d’esta folha, e o leitor que a julgue à vontade, que diga o que entender, que a condemne ou que a proteja, porque eu cá tenho as minhas razões para não a ter feito melhor nem peior. Boa ou má, esta é a unica Philomena Borges, legitima, verdadeira, a Philomena Borges da Gazeta de Noticias, aquella que mandou o seu cartão a varios cavalheiros d’esta cidade e aquella de quem até hoje se tem occupado a nossa imprensa e o nosso publico. Sirva isso de resposta às cartas dos Srs. A. P. Ramos de Almeida, Niemeyer L... O. Borgea, P. de Oliveira130 e tantos outros que me honraram com as suas letras; como igualmente sirva de réplica ao Sr.
130
Mesmo que tivéssemos descoberto quem eram, não teríamos tido acesso à correspondência para explicar a referência.
43
Julio Alberto Machado131, que não teve o menor escrupulo em aproveitar aquelle nome para título de um romance de sua folha, e, outrosim, ao velhaco que publicou ha pouco tempo um detestavel fasciculo intitulado: Philomena Borges, a mulher demonio. O publico que evite as contrafacções e desconfie das Philomenas que não trouxerem o seguinte carimbo: Aluizio Azevedo.
O texto defende esteticamente e comercialmente um romance sobre o qual se criou grande expectativa. No aspecto estético, procura articular duas perspectivas teoricamente muito distantes. De um lado, ele cede às esperanças de um público ainda pouco erudito, buscando divertimento e, quem sabe, uma lição de moral, o público das senhoras leitoras de folhetim, a quem se destina abertamente a promoção da Gazeta. De outro, procura atender critérios tidos como modernos, a escrita pautada pela observação e pela verossimilhança. E se, por essa razão, o autor pode parecer titubeante, no aspecto comercial ele é enfático: “Philomena Borges” é da Gazeta de Noticias e traz a minha assinatura.
Filomena Borges nasce, como personagem, do burburinho das ruas e das folhas, agregando valores e concepções que se faziam das mulheres naquele exato contexto. Como romance, estaria entre o romantismo de 1820 e a modernidade de 1883, tentando, na medida do possível, transitar entre os dois mundos. De que maneira isso é realizado e se é bem sucedido é assunto para os próximos capítulos.
131
Pesquisamos o jornal Provinciano: jornal agricola, commercial, litterario e noticioso na sessão de periódicos raros da Biblioteca Nacional. Ele era publicado em Paraíba do Sul, RJ, sendo propriedade de F. X. Paes Leme e Julio Alberto Machado. Em 1883, mudou o subtítulo para órgão conservador. A escassez de edições conservadas não permitiu que constatássemos a publicação de um plágio.
44
Capítulo 2 – Circulação, recepção, repercussão
2.1 Circulação
2.1.a O folhetim
Finalmente, Filomena Borges começou a ser publicado em 18 de dezembro de 1883. O romance foi lançado em 27 folhetins numerados, terminando em 13 de janeiro de 1884. Há um problema na numeração dos folhetins e dos capítulos, provavelmente devido a erros tipográficos, que não eram incomuns. O folhetim 16 é de 2 de janeiro; o número 16 é repetido equivocadamente em 3 de janeiro. O 17 e o 18, de 4 e 5 de janeiro, estão, portanto, com numeração errada, que será corrigida pelo número 20, em 6 de janeiro. O capítulo XVIII, “Celebridades”, iniciado em 7 de janeiro de 1884, é continuado no dia seguinte como capítulo XIX, ocasionando uma sequência de erros na numeração dos capítulos finais: o capítulo “Petrópolis” seria o décimo nono, mas aparece sob o número XX, e assim sucessivamente. O segundo e o terceiro folhetins, de 19 e 20 de dezembro, contêm uma nota que reivindica os direitos autorais da obra, resgatando a cobrança feita pelo autor no “prefácio”: “o autor e os editores deste romance reservam-se os direitos de propriedade litteraria e protestam contra as reproduções.”132 Não sabemos se ele chegou a ser reproduzido por outros periódicos, mas o aviso marca mais uma vez o compartilhamento da propriedade da obra entre autor e editores, no caso, a própria Gazeta de Noticias. Seguindo a descrição inicial, o segundo folhetim tem outra peculiaridade: é o único a contar com uma errata, que corrige alguns erros de tipografia. A maior parte dos folhetins está no rodapé da primeira página, mas algumas vezes eles foram colocados na terceira página: em 20 de dezembro, 3, quinta; em 23 de dezembro, 6, domingo; em 30 de dezembro, 13, domingo; em 01 de janeiro, 15, terça; em 10 de janeiro, 24, quinta; em 13 de janeiro, 27, domingo. O seu desfecho, portanto, está na terceira página do jornal. Deve-se ponderar que a maioria dos folhetins da terceira página aparece no domingo, tradicionalmente o dia nobre do jornal, de mais 132
“Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 19/12/1883. p. 1. ed. 353. “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 20/12/1883. p. 3. ed. 354.
45
conteúdo, então não parece defensável uma hipótese de destaque menor – talvez, pelo contrário, haja um destaque maior por se tratar de uma edição de domingo. Há duas edições da Gazeta do final de 1883 que estão ausentes tanto na Hemeroteca Digital Brasileira da Biblioteca Nacional Digital quanto no Arquivo Edgard Leuenroth da Unicamp, portanto não pudemos consultá-las: edições 361 e 362, de 27 e 28 de dezembro de 1883 – folhetins 10 e 11, respectivamente. Quanto ao conteúdo dos folhetins, os cortes não respeitam necessariamente os capítulos, ou vice-versa. A princípio, eles seguem uma lógica de terminar em “(Continua)” apenas se quebram um capítulo; no fim da publicação, todos terminam desta maneira. Era um modo de reforçar a continuidade do romance e pode ter sido uma forma de manter ainda mais cativados os leitores, que poderiam se desesperançar com a ausência da nota. Além do corte por edições, o autor usava um espaço maior entre alguns parágrafos, fazendo divisões dentro do mesmo capítulo. O primeiro capítulo apareceu completo no primeiro folhetim. Depois disso, os cortes não coincidem mais com os capítulos, necessariamente. Um dos pontos levantados pela crítica coetânea, como veremos a seguir, é o do fim do romance. As críticas apontam que Aluísio Azevedo teria cortado a história, interrompendo-a de maneira brusca, especulando alguns motivos. Para os leitores atuais, talvez o corte não fique claro, mas para os leitores corriqueiros de folhetins do século XIX a questão surgiu com clareza. Para iniciar uma discussão sobre esse ponto, situemos Filomena Borges dentro do histórico da sessão Folhetim da Gazeta de Noticias, conforme a tabela a seguir:
Tabela 1 - Folhetins da Gazeta de Noticias (dez.1882 - fev.1885)
Autor
Início
Término
70
26/12/1882
05/03/1883
João Fera
188
06/03/1883
11/09/1883
G. Pradel
O Grilheta
84
12/09/1883
07/12/1883
*
O Vampiro
5
08/12/1883
12/12/1883
Eugène Moret
Título
N. edições
O Segredo do Jesuíta
Emilio Richebourg
46
Minha Prima
*
5
13/12/1883
17/12/1883
27
18/12/1883
13/01/1884
A Brazileira
56
14/01/1884
09/03/1884
Margot
90
10/03/1884
08/06/1884
O Filho de
85
09/06/1884
01/09/1884
52
02/09/1884
23/10/1884
108
24/10/1884
08/02/1885
Laura Philomena
Aluizio
Borges
Azevedo A. Mathey F. du Boisgobey Alexis Bouvier
Antony Alexis Bouvier
O caminho do crime
Eugenio
O Paio em Pé
Chavette NOTA: recuperamos apenas os folhetins publicados entre o final de 1882 e o início de 1885, dando conta dos dois anos da publicação de “Philomena Borges”.133
De fato, Filomena Borges é um romance muito curto. A média dos romances publicados no período aproxima-se de 90 edições, com a maior parte em torno de 80. Outro dado interessante é que o romance de Azevedo é o único nacional em dois anos de jornal, portanto ele se insere em uma sessão acostumada a receber romances franceses traduzidos.
2.1.b Edições em livro
Pode-se considerar que a publicação em livro é um dos caminhos da consagração ou um dos indicadores do sucesso de um folhetim. No caso de Filomena Borges, talvez esse argumento não se aplique. Duas semanas após o seu término na Gazeta, a folha o lança em formato de livro, e passa a anunciá-lo:
133
A listagem dos folhetins da Gazeta de 1875 a 1940 pode ser consultada no livro Rodapé das miscelâneas, de Yasmin Nadaf. A lista, apesar de excluir obras que não estão no rodapé, como O Ateneu, mostra uma prevalência grande dos franceses sobre os brasileiros, sobretudo no século XIX. NADAF, Yasmin Jamil. Rodapé das miscelâneas. O folhetim nos jornais do Mato Grosso (séculos XIX e XX). Rio de Janeiro: 7Letras, 2002. p. 397-402.
47
Figura 20 – Anúncio de venda do livro
Gazeta de Noticias, 27/01/1884. p. 2. ed. 27.134
Os anúncios nesse formato se repetem por alguns dias, e sempre aparecem entre as colunas “Theatros e...”, responsável pelas notícias e críticas teatrais, e “Gazetilha”, responsável por avisos e notícias diversos. Note-se que o título é destacado, chamando a atenção com a referência a esse nome já bastante conhecido pelos leitores da Gazeta. Depois dessa série de anúncios que destacam o livro de forma solitária, ele volta a ser ostensivamente anunciado como integrante da “Bibliotheca da Gazeta de Noticias”: Figura 21 – Biblioteca da Gazeta de Noticias A
134
Repetido em 31 de janeiro, 01 e 02 de fevereiro, todos na segunda página.
48
Gazeta de Noticias, 25/06/1884. p. 3. ed. 177.135
Esta coleção organiza e publica os romances-folhetins da Gazeta de Noticias. Há outra parte do mesmo anúncio:
Figura 22 – Biblioteca da Gazeta de Noticias B
135
Repetido em 19 de julho de 1884, 17 de agosto de 1884.
49
Gazeta de Noticias, 25/06/1884. p. 3, ed. 177.
O Grilheta, romance-folhetim anterior a Filomena Borges, integra a lista, ao lado de outras publicações que, se não têm o peso de obras consagradas, têm na popularidade o seu forte: João Féra, Sua Alteza o Amor (com o nome do autor Xavier de Montépin em destaque, o único literato a merecer referência). Em 14 de julho de 1886, também na Gazeta de Noticias, há um anúncio de liquidação da livraria de João Martins Ribeiro. O romance de Aluísio Azevedo está entre os anunciados, encaixado na categoria geral “Florestal sortimento de romances”;
50
as outras categorias são: “leitura de gabinete particular” (que inclui Naná e O artigo 47), “romances de Camillo Castello Branco” e “varietas delectat”.136 No final de 1884, o livro estará entre as opções de prêmio de assinatura. Caso o assinante optasse pelo pacote de seis meses, receberia como brinde somente o Almanak da Gazeta de Noticias; caso comprasse um ano, ganharia o Almanak e mais um dos romances de uma lista que continha a maior parte daqueles títulos da “Bibliotheca da Gazeta de Noticias”.137 A “Bibliotheca...” já havia crescido, incluindo as novas publicações do jornal, Margot e O filho de Antony:
Figura 23 – Biblioteca da Gazeta de Noticias C
136 137
Gazeta de Noticias, 14/07/1886. p. 6. ed. 195. Gazeta de Noticias, 18/11/1884. p. 1. ed. 323.
51
Gazeta de Noticias, 25/11/1884. p. 6. ed. 330.
Filomena Borges continua à venda no escritório do jornal até 1885, como mostra o anúncio a seguir:
Figura 24 – Biblioteca da Gazeta de Noticias D
52
Gazeta de Noticias, 11/10/1885. p. 5. ed. 283.
Alguns meses antes, a 31 de agosto de 1885, há na Gazeta outro anúncio, agora entre os “Livros baratissimos” da Livraria do Povo: “Philomena Borges, por Aluizio de Azevedo, 1 vol. 800rs.” As categorias, neste anúncio como no da liquidação, estão divididas, apesar dos critérios diferentes: livros em português, que inclui o romance estudado; “engenharia”; e livros em francês.138
138
Gazeta de Noticias, 31/08/1885. p. 3. ed. 242.
53
O livro Filomena Borges não foi um sucesso de vendas. Não fica claro se há mais de uma impressão nesse período, mas o título está disponível desde o seu lançamento até dois anos e meio mais tarde. A falta de sucesso comercial do livro também pode ser defendida pelo seu padrão de edições seguintes. Filomena Borges não tem vida própria; sua sobrevivência dependeu das outras obras de Aluísio Azevedo, com suas publicações integrando as obras completas do autor, salvo raras exceções. Vejamos na tabela a seguir a lista das primeiras edições:
Tabela 2 - Primeiras edições de Filomena Borges
Edição
Editora
1ª Edição
Tipografia da
Ano
Obras completas 1884
Gazeta de Noticias 2ª Edição
Garnier
3ª Edição
F. Briguiet & Cia.
1895-7
X
1938
X
Editores 4ª Edição
“
1943
X
5ª Edição
“
1952
X
5ª Edição
Livraria Martins
1954
X
Editora 6ª Edição
Clube do Livro
1955
7ª Edição
Livraria Martins
1960
X
Editora
A tabela demonstra que, após a primeira edição, em 1884, o romance só foi republicado como parte das Obras Completas, já na década de 1890.139 A terceira edição só será publicada décadas mais tarde, em outra compilação de obras completas. A 139
Não encontramos a segunda edição do romance. Pela consulta às obras disponíveis no sítio da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, constatamos que ela dataria do período de 1895 a 1897. A edição de 1895 de Livro de uma sogra, editada por Domingos de Magalhães, anunciava Philomena Borges como “Edição esgotada”. A edição de 1897 de Pégadas pela editora Garnier traz uma listagem das obras de Aluísio Azevedo, incluindo uma nova edição de Philomena Borges. Garnier deve ter publicado a nova edição entre 1895 e 1897, portanto. AZEVEDO, Aluísio. Livro de uma sogra. Rio de Janeiro: Domingos de Magalhães, 1895; Idem. Pégadas. Paris; Rio de Janeiro: H. Garnier, LivreiroEditor, 1897.
54
lacuna, apesar de explicável pela perda de interesse no naturalismo, não deixa de demonstrar a falta de interesse nesse romance em específico.
2.2 Recepção
Sob o aspecto comercial, o livro Filomena Borges não foi bem sucedido. Teria ele sido bem recebido?
2.2.a A polêmica Para um romance que gerou tantos comentários,140 a publicação do folhetim foi relativamente calma. Algumas referências141 são encontradas, mas as atenções pareciam estar voltadas para a leitura da história de Filomena Borges. Esse silêncio não é, no entanto, fenômeno peculiar. Era comum que os folhetins não fossem comentados durante a sua publicação.
Passados alguns dias do último folhetim, o Diario do Brazil inaugura as críticas ao romance. Czr Ony (anteriormente, Czz Ony), na coluna “Às quintas-feiras”, apresenta as razões possíveis para o fim de Filomena Borges:
Philomena Borges já não existe. Sobre sua morte levantou-se uma nuvem de opiniões como da pelle arroxeada do cadaver os vapores da putrefacção. Dizem os patriotas que tendo Sua Magestade o Imperador sido irreverentemente introduzido nas columnas de um roda-pé, S. Ex. o mordomo, sabendo que se tratava da reproducção de um facto palacial, ordenou a retirada do romance da via circulatória ou, em caso contrario a ordem, o processo por injuria á seu autor. Dizem outros que a Gazeta, que recebia ás rações o folhetim, entendeu que a obra não valia a paga e suspendeu-a: que o autor então, em vinganca, fez como o Visgueiro: não quer?... resiste?... pois, morre. Ainda outros apregoam que o folego com que era feita a narração faltou ao narrador, precipitando-o do alto de uma expectativa envergonhada ao chão funebremente lastimavel daquelas tres lettrar fataes: -“Fim”.142 140
V. Capítulo 1. Chapéu na Folha Nova, notícia no Publicador maranhense, menção no folhetim de Ony no Diario do Brazil, notícia por Eloy na Pacotilha. O anúncio e o folhetim serão comentados ainda neste capítulo. 142 Czr Ony, “Às quintas-feiras”, Diario do Brazil, 17/01/1884. p. 3. ed. 14. 141
55
Especula-se, portanto, três razões para o fim do romance, que se supõe adiantado. Teria ele sido interrompido por censura imperial, problemas comerciais ou falta de talento? A condução do texto não deixa dúvidas de que trata o romance em termos negativos. O autor sugere que “a Bohemia do vintem está de luto” pela morte de Filomena Borges, assassinato este “cometido em plena sociedade, à face da literatura, acobertado pela policia do elogio proprio.” Ele liga o romance a dois grupos: a “Bohemia do vintem”143 e o “elogio proprio”.144 O ataque, então, direciona-se menos à obra literária que aos grupos a ela associados. O próprio Ony, uma semana antes, destacou a presença do imperador no romance, escrevendo em seu folhetim “Às quintas-feiras”: “me acompanheis em um – viva – enthusiastico áquele que até já entrou sorrateiramente, como bom padrinho burguez e sahio colleccionador de botocudos, pelas alamedas typographicas da – PHILOMENA BORGES: Viva o Imperador!”145 Surgem, nos textos do Diario, dois problemas que acompanharão a recepção crítica do romance: a questão política, pautada pela presença do imperador e marcada pelas posições dos periódicos; e, a partir destas posições, a questão literária, dividindo dois grupos distintos pelas opiniões estéticas e pelas posições midiáticas – elogio mútuo e lira de Apolo. Acompanhando paralelamente as duas pautas, sempre aparecerá a questão do dinheiro e da literatura comercial, já destacada por Ony na expressão “Bohemia do vintem”.
Diario do Brazil e Gazeta de Noticias contra Brazil – F.F. x A.A.
Na sessão anônima “Bibliographia” do periódico Brazil, Filomena Borges foi comentado ao lado de Helena, de Oscar do Amaral. Esse tipo de coluna era muito comum nos periódicos, responsável por relatar as novidades bibliográficas e, por vezes, comentá-las.
143
Boêmia do vintém provavelmente se refere aos grupos da Gazeta da Tarde e da Gazetinha, jornais dos quais participaram Artur e Aluísio Azevedo. 144 Na realidade, como veremos a seguir, esses dois grupos são praticamente um só. 145 Czz Ony, “Às quinta-feiras”, Diario do Brazil, 10/01/1884. p. 2. ed. 8.
56
Após elogiar ambos os autores e fazer a ressalva de que estes trabalhos não representam o melhor dos jovens escritores, o texto se debruça sobre cada um dos livros. Sobre Aluísio Azevedo, diz ainda que tem o mérito de “ser um operario activo das lettras que à custa de seus proprios exforços conseguiu vencer a indifferença publica”. Sobre Filomena Borges, cujo primeiro capítulo considera bom, acrescenta que tem boa linguagem, por mais que não prenda o leitor “senão por uma curiosidade vaga de saber-se onde irá parar tudo isso: - uma mulher doida casada com um imbecil, a percorrerem ambos séca e méca, ella sem saber onde irá e elle sem saber afinal o que ella quer.” O crítico destaca que as cenas são desconexas e sem objetivo, culminando na morte da mulher antes do marido, o que para ele constituiu um erro: “sem se lembrar que a Philomena pouco tempo antes tinha escripto uma carta que foi publicada na Gazeta e o proprio Sr. Aluizio o dissera tambem pela mesma Gazeta, que ella era viuva e ainda viva, muito apoquentada da curiosidade publica desde que uns indiscretos cartões de visita andavam a propalar-lhe a existencia.” Por fim, destaca como pontos positivos a imaginação, a vontade e o talento do jovem escritor, que deve perseverar e triunfar.146 Os destaques do Brazil demonstram, primeiro, que a saga de Filomena na Gazeta foi acompanhada, tornando-se um ponto de referência e comparação para o romance. O bibliógrafo cobra que a história da heroína no romance acompanhe os traços publicados anteriormente no jornal; seu resumo, muito coeso, mostra a sua compilação e leitura daquelas diversas versões, misturando Aluísio Azevedo e Lélio. Por outro lado, o romance, como as versões midiáticas da vida de Filomena, teria falhas e incoerências internas que incomodam o bibliógrafo e não seguem, segundo ele, o sucesso do primeiro capítulo. O final é criticado tanto na incoerência externa quanto interna. Alguns dias mais tarde, talvez incomodado pelo dito sucesso de crítica, talvez pressionado pelo seu jornal, o mesmo crítico anônimo assinou sob o pseudônimo F.F. um folhetim intitulado “A proposito de Philomena Borges”.147 O folhetinista começa depreciando o romance, que, contando com muitos anúncios e promessas, não teria alcançado o resultado esperado: “afinal tudo se
146
“Bibliographia”, Brazil, 23/01/1884. p. 2. ed. 19. É o próprio autor que permite a identificação: “Já em outro logar desta folha disse o mais que pensava da Philomena Borges e de seu autor...”. F.F., “A proposito de Philomena Borges”, Brazil, 27/01/1884. p. 1. ed. 23. 147
57
converteu em muita fumaça e nenhum effeito”. Para rebuscar o estilo, usa em seguida a expressão latina “mons parturiens, mus”, traduzível como “a montanha gemeu, mas pariu um rato”. Segundo o crítico, o réclame não bastaria para obter mérito, nem o “côro de louvores a modo de ouverture ruidosa de peça magica” que teria acompanhado a obra. Faltaria para Aluísio Azevedo tanto bom gosto quanto bom senso, termos muito sugestivos que começam a revelar a motivação do texto.148 O folhetinista argumenta que criticar Azevedo é expor-se à inimizade de seu grupo e à acusação de integrar a “Nova Lyra de Apollo”, associação literária que o próprio crítico liga ao imperador. Ele contrapõe, então, dois grupos literários rivais: a “Nova Lyra de Apollo” e o “elogio mutuo”. Segundo ele, a fama de Filomena Borges e o silêncio e a complacência dos críticos mais ferozes sobre o romance de Aluísio Azevedo se deveram ao pertencimento do escritor ao grupo do “elogio mutuo”. Exposto o problema dos grupos, da filiação literária e da propaganda, todos intimamente ligados, F.F. chega ao cerne de seu texto. O problema central de Filomena Borges, para ele, é o ataque que se faz ao imperador. Azevedo teria atacado o monarca “por ser moda, para não sahir fóra do tom”. Incomoda-o tanto o reclame do romance quanto o retrato que Azevedo fez do imperador. O que motiva a crítica, segundo o modo como o texto se desenvolve, é a presença do imperador – caso contrário, escreve o crítico, ele a deixaria no silêncio como fizeram os elogiadores mútuos, para que não tivessem que falar mal. F.F. faz a ressalva de que nunca recebeu “de Sua Magestade o menor favor, o mais banal cumprimento, nada lhe pedi e nada lhe devo”... A preocupação em demonstrar a falta de comprometimento com D. Pedro II faz coro com o aspecto político do texto, elucidado nos próximos argumentos. Incomoda o crítico que D. Pedro II tenha sido retratado como um conquistador maniqueísta:
[...] sabe bem que Sua Magestade não é o Lovelace que pintou em seu romance, nem cynico a ponto de requestar a propria afilhada: sabe bem que Sua Magestade nunca fez intervir na politica do paiz a influencia das alcovas; outros o terão feito e o diz a voz publica, mas d’elle ainda não ousou tanto nem o Corsario; porque pois assim o 148
Bom gosto e bom senso nos termos de uma brochura que circularia na época. Possivelmente, refere-se à questão do realismo em Portugal. Em todo caso, os sentidos tomam outras formas na discussão que apresentamos.
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disse e descreveu o autor da Philomena e descreveu o chefe da nação, que além de outros titulos ao nosso respeito é quasi um sexagenario, e sexagenario que não ridicularisa a velhice procurando occultar os estragos da idade?
Não seria ato de coragem criticar um sexagenário indefeso; não seria ato de coragem criticar o imperador; segundo a moda dos tempos, seria ato de coragem defendê-lo. Esta defesa se dá em dois campos: o pessoal, que nega a possibilidade de atitudes indecorosas por parte do “bom velhinho”; e o político, que nega a prática do apadrinhamento. Defender o imperador, aqui, não é meramente ato de coragem, como quer fazer parecer F.F., mas é ato político, que revela uma posição favorável ao monarca e, por conseguinte, a seu governo. Interessante notar também que o crítico não descarta o gosto pelo escândalo, um dos possíveis fatores do sucesso do romance: “si tivesse levado mais longe as scenas do Imperador, não faltará quem lh’o repita, o successo seria mais estrondoso.” Incomoda tanto pela postura indecorosa, desrespeitosa, quanto pela postura política de apadrinhamento decorrente de sedução. As duas posições, moralistas, são também políticas, pois vêm em defesa da pessoa Pedro de Alcântara e do monarca D. Pedro II.
F.F. tinha razão em se preocupar com a inimizade do “elogio mutuo”. Seu folhetim recebe duas réplicas, uma de Quincas Junior no Diario do Brazil, outra do próprio Aluísio Azevedo na Gazeta de Noticias. A primeira concentra-se no ataque à forma do texto e no desmerecimento retórico de seus argumentos. Através de jogos bem humorados, Quincas Junior questiona o critério do bom gosto e do bom senso e faz piada com a citação latina:
Ora, o bom senso, é realmente uma individualidade muito conhecida neste imperio... de nome! !... Deixemol a, portanto, in pace, porque, à força de vender-se carissima, aquelles poucos que a consomem chegam parecer que a desconhecem. Isto, sem a menor aluzão ao critico alludido... Quanto ao bom gosto, o Sr. F. F. não é o mais competente para ditar regras aceitaveis. Quem como S. S. à despeito de pertencer à ‘Nova Lyra de Apollo’, tão pouco se importa de castigar o proprio estylo, não tem o direito de invectivar a calvice do proximo... Isso, na hypothese de ser o proximo... careca !... [...]
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S. S. disse que: ‘Mons parturiens, mus... E, eu pergunto: - Então... onde está... o ‘rato’? Porque, ha muita gente que o suppõe... encruado !... E, obrigado a S. S. pela resposta que se dignar mandar-me. 149
Mais importante é a réplica de Aluísio Azevedo. A resposta é redigida de maneira feroz, atacando diversos pontos da crítica e do crítico. A primeira ofensiva é direcionada ao jornal:
A demora de chegar-me ás mãos o [fol]hetim do Sr. F. F. fica de sobra ex[pli]cada se considerarmos que elle foi imp[pre]sso em uma triste folha politica, [esc]ripta lentamente por meia duzia de [con]servadores, que esperam alguma [coi]sa do governo, e lida por outra meia [duz]ia, que já não espera nada, nem do [gov]erno, nem d’esta vida. [...] jornal[zin]ho sujo, silencioso, sorrateiro, [...] tropego e gago.150
Ele retorna ao texto da “Bibliographia” para reclamar da comparação feita com Oscar de [do] Amaral, “um pobre rapaz, que [...] cometera a levian[dad]e de publicar dous volumes, dous vo[lum]es de má prosa e de maus versos.” Azevedo apura que o jovem literato é filho do barão de Canindé, proprietário do Brazil, e questiona portanto a validade dos comentários feitos nesse jornal. Depois, concentra-se em rebater os argumentos do folhetim:
[Se] Fidelis entendesse um pouco, muito [pouc]o, de literatura, não diria que [Phil]omena Borges é realista. Fidelis é [pulha???], porque diz que o romance não [agrad???]a e não expõe a razão por que não [agrad???]a; pulha, porque se mette a criti[car li]vros, sem dispor pra isso de cri[tério,] nem fórma, nem estudo; pulha, [porqu]e em vez de analysar a obra, per[de-se?] em commentarios sobre os recla[mes] sem se lembrar de que o autor de [qualq]uer livro nada tem que ver com [re]clames promovidos pelos editores [d]a obra; pulha, porque Fidelis, que [nunc]a produziu cousa alguma, que nunca [deu??? à] luz o menor produto de sua con[???], Fidelis, que não existe, Fidelis, [... n]ão ha, quer ser juiz dos trabalhos [alhei???]os.151
Em seguida, critica os paradoxos de sua argumentação, que ao mesmo tempo: descreve o autor como inteligente e talentoso, mas sem bom-senso e sem bom149
Quincas Junior, “Apanhados”, Diario do Brazil, 30/01/1884. p. 2. ed. 25. Aluísio Azevedo, “A proposito de Philomena Borges”, Gazeta de Noticias. 30/01/1884. p. 3. ed. 30. 151 Tentamos completar o texto para permitir a leitura. 150
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gosto; afirma que a crítica fez silêncio e grande estrondo; e defende que é honesto e covarde. Enquanto alguns críticos liam Filomena Borges como parte da Gazeta e de seus propósitos políticos, Aluísio Azevedo tentou se esquivar, reivindicando que lessem o romance como uma unidade em si e considerassem-no um autor independente dos editores. Assim, além do campo de lutas políticas, há um campo de lutas para definir qual o papel do escritor (e do crítico) em meio a editores e jornalistas. Deve ser marcada a jogada dupla: na escrita, Azevedo defendia a separação; mas na prática, participara da divulgação.152 De maneira indecorosa, Azevedo finaliza o texto desafiando F.F. para um duelo, depois de acusá-lo de ser pretensioso: “pretende arvorar-se campeão de Sua Magestade”. A ferocidade da réplica motiva uma tréplica curta em que F. F., agora assinando como Felix Ferreira, recusa-se a acompanhar Aluísio Azevedo no “terreno da injuria”, mas aceita o duelo.153 Este é prontamente dissuadido pelo adversário num curto quarto texto.154 A brutalidade que os ataques foram ganhando pode hoje parecer banal, porém, relevando-se o exagero, ela demonstra a tensão política e literária em que o romance se inseriu.155 A discussão travada pelos três escritores envolve mais que um simples joguete de lógica e argumentação. Os periódicos a que eles recorrem influem decisivamente no curso da polêmica, e suas posições conflitantes em outros campos se estendem para a literatura. O Brazil era declaradamente o jornal conservador; o Diario era tido como jornal liberal; a Gazeta como jornal crítico ao Império. O Brazil – Orgão do partido conservador iniciou suas atividades em 16 de julho de 1883, encerrando-as em 06 de junho de 1885. Reivindicava-se abertamente como defensor das causas do partido conservador, criticando o governo liberal e os
152
O autor já havia se armado contra as acusações de publicitário no texto que serviu de prefácio ao folhetim. Cobrar um romance pela sua publicidade não seria válido como crítica. V. Capítulo 1. 153 Felix Ferreira, “A proposito de Philomena Borges”, Brazil, 31/01/1884. p. 2. ed. 26. 154 Aluísio Azevedo, “A proposito de Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 01/02/1884. p. 2. ed. 32. 155 Também, em parte, a boêmia “juvenil” em que viviam os escritores?
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outros periódicos do Rio de Janeiro, principalmente o Diario do Brazil e a Gazeta de Noticias. O Diario do Brazil surgiu em 1881. Como não tivemos acesso à primeira edição, recorremos então à primeira de 1882. Nela, repetem-se trechos do programa de 1881. Um deles declara a opinião política do jornal:
Nos negocios politicos, como em todos os outros, não nos prende espirito partidario, nem laço ou preconceito de especie alguma. Nossa penna é livre como o nosso pensamento: como o pensamento de qualquer brasileiro, de qualquer europeu ou americano, que quiser estudar as questões e reflectir sobre ellas.156
No entanto, o jornal era tido pelos seus pares como ligado ao partido liberal. O Brazil serve de exemplo, escrevendo no começo de 1884: “diz o governo que o partido liberal tencionou fundar um jornal politico (o pobre do Diario do Brazil não vale nada!) que defendesse a causa do partido”.157 A provocação junta-se a muitos outros textos criticando o rival, no início do mesmo ano.158 A Gazeta de Noticias, por sua vez, foi ainda mais radical na defesa de sua imparcialidade. Em seu primeiro número, de 2 de agosto de 1875, lê-se: “Não sendo a Gazeta de Noticias folha de partido, apenas tratará de questões de interesse geral, acceitando n’esse terreno o concurso de todas as intelligencias que quizerem utilisar-se das suas columnas.”159 Ela tenta passar a imagem de jornal neutro e, mais importante, de “interesse geral”. Este aspecto é essencial para as intenções comerciais da folha que então surgia, e que, segundo a literatura acadêmica, modernizará o periodismo brasileiro.160 156
Diario do Brazil, 01/01/1882. p.1. ed. 1. “Corrupção”, Brazil, 11/01/1884. p. 1. ed. 9. 158 Há pouca informação bibliográfica sobre esses dois jornais. O Brazil começou com tiragem de 5000 exemplares; no início de 1884, ela já havia subido para 8000; no início de 1885, imprimem-se 10000 exemplares. O jornal conservador era vendido de maneira avulsa por 40 réis; no início de 1883, sua assinatura anual custava 16$000, semestral 8$000; no início de 1885, a edição avulsa tem o mesmo preço, mas as assinaturas foram barateadas: 3$000 pelo trimestre, 6$000 pelo semestre. O Diario do Brazil praticava preços semelhantes: 40 réis avulso, 10$000 anual, 6$000 semestral (1881); em 1884, a assinatura anual passa a 12$000. Informações mais precisas sobre os proprietários e redatores dos dois jornais políticos estão por pesquisar. 159 Gazeta de Noticias, 02/08/1875. p. 1. ed. 1. 160 SODRÉ, Nelson Werneck. História da Imprensa no Brasil. 4ª ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1999. As primeiras edições da Gazeta fazem piada dos programas de jornais e de partidos. O folhetim da primeira edição, assinado por Bob, foi iniciado de maneira bastante enfática: “Ha uma cousa muito tola em todos os jornaes que começam: o programma.” Bob, “Folhetim”, Gazeta de Noticias, 02/08/1875. p. 1. ed. 1. 157
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Não acreditamos que tenha havido qualquer tipo de neutralidade por parte de qualquer um dos periódicos. Havia, dentre os responsáveis pela redação e composição, heterogeneidade considerável, mas há um sentido político por trás da atuação de cada uma das folhas. Esse quadro é composto e, simultaneamente, ajuda a compor a discussão sobre Filomena Borges. As folhas mais conservadoras, ligadas ao Império, atacaram o romance de Aluísio Azevedo, enquanto as folhas críticas ao Império apoiaram. Ou seja, as diferentes opiniões sobre o romance demonstram a polarização política entre os periódicos; e a apreciação do romance depende e é composta por esse posicionamento político, que não deve ser desconsiderado na análise. Nossa hipótese, portanto, é que há uma estreita relação entre literatura e política. A crítica literária e a crítica à ordem política estão articuladas, sendo que a posição do periódico repercute a sua posição no jogo político.
2.2.b A. de B. F. no Brazil
Passada a polêmica, acalmados os ânimos, Filomena Borges volta a ser assunto no Brazil. Desta vez, uma crítica bem estruturada, repartida por diversas edições, dará conta de outros aspectos ainda não discutidos do romance. Assinados por A. de B. F161, os textos partem da comparação entre Oscar de Amaral e Aluísio Azevedo, como na polêmica, mas tomam um caminho diferente. A série intitula-se “Horacio e Philomena Borges”. A primeira crítica surge em 2 de fevereiro de 1884. No geral, ela faz um elogio ao romance Horacio, de Oscar de Amaral, destacando seu “modo especial de ser brilhante e fluente” e as qualidades de seu autor. O livro teria surgido sem muito alarde, pois “não quiz fazer o reclame vergonhoso das mercadorias falsificadas.” O crítico então acusa a “sociedade do elogio mutuo” de ter silenciado sobre o romance, que apesar de “condemnado ao esquecimento, [...] correu de mão em mão, despertando enthusiasmo e interesse.”162 Tivesse respondido essa série crítica, Aluísio Azevedo apontaria mais uma vez a argumentação contraditória e sorriria cinicamente ao comentar os elogios direcionados ao outro escritor, cujas relações com o periódico ele já 161
Pseudônimo ainda não identificado. A dificuldade é grande, por só termos as iniciais e pela assinatura não se repetir no periódico, ao menos nos meses que cercam esse conjunto de críticas. 162 A. de B. F., “Horacio e Philomena Borges I”, Brazil, 02/02/1884. p. 3. ed. 28.
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havia revelado. O livro pode ter corrido de “mão em mão”, mas ainda assim foi relegado ao esquecimento, provável destino de seu concorrente Filomena Borges, não tivesse Azevedo logrado sucesso com outros romances e alcançado o cânone da literatura nacional. A segunda crítica é publicada na edição seguinte do jornal. Ela faz coro aos comentários de Felix Ferreira, aproveitando-se da imagem que ele usara: a montanha pariu um rato. Incomoda o crítico o “barulho infernal” que transformou Filomena em “assumpto de conversas, de anedoctas e de debiques”. Volta a aparecer, portanto, a crítica ao reclame, bem resumida no parágrafo seguinte:
A Gazeta de Noticias tratava d’ella como de um verdadeiro acontecimento, nos annuncios, nos a pedidos no noticiario e nos artigos edictoriaes. Obrigava[-]se a attenção publica á aquelle nome e por fim a montanha pario e um romance do Sr. Aluizio arrebenta do meio d’este cortejo de chalaças, de annuncios e de reclames.163
O texto continua, agora tratando especificamente do romance, nos dois parágrafos seguintes:
A anciedade foi geral e todos querião ler, mais que decepção!... Foi uma ouzadia avivar d’este modo a curiosidade litteraria para um livro que como Philomena não tem escola nem arte e quando muito representa uma collecção de palavras sem grammatica e de idéas sem nexo. Nota[-]se em Philomena a falta completa de espirito o mais vulgar. Seus personagens são verdadeiros monstros. Philomena é um impossivel; Borges é uma mentira; não ha na creação uma Philomena nem um Borges e João Touro... Touro é quem o descreveu. E demais, onde se permitiu apparecer nas paginas de um romance personagens com os proprios nomes, que eles vivos na nossa contemporaneidade trazem? Pois o autor de Philomena não achou uma alusão qualquer, e para fazer imaginar este ou aquelle individuo, foi preciso trazel-o com o nome por extenso?
A análise se fundamenta em dois pilares: o estilo e a verossimilhança, passando pelo bom senso e pelo bom gosto em ambos. Cobra-se que Filomena e o marido tenham correlatos materiais, e a aparição do imperador com o nome próprio incomoda novamente.
163
A. de B. F., “Horacio e Philomena Borges II”, Brazil, 03/02/1884. p. 2. ed. 29.
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O texto é finalizado com um ataque ao próprio escritor, taxado de romancista medíocre e presunçoso por ter criticado Oscar de Amaral. A. de B. F. também recomenda que Aluísio Azevedo arranje outra profissão, porque se fosse viver de literatura, morreria de fome ou abandonaria a atividade. É importante notar que o escritor maranhense pode ter sido o primeiro romancista profissional da literatura brasileira, apesar de ter mantido a profissão por pouco tempo, vindo a se tornar funcionário público depois de menos de duas décadas de escrita. O terceiro texto torna ainda mais interessante esse descompasso entre o Aluísio Azevedo canônico e o escritor jovem de 1884. Apesar de não lhe negar inteligência, A. de B. F. nega tendência literária ao maranhense por uma razão que hoje soa impossível, de acordo com as características sacramentadas pelas histórias literárias: “Falta-lhe absolutamente a qualidade essencial ao romancista; o Sr. Aluizio não é observador e si tem pretenções a isto não faz estudos necessarios.”164 Neste trecho, o autor se concentra em acusar Azevedo de presunção por querer “esmagar [...] um moço que modestamente apresentou-se com dous livros na mão” pelas críticas que fez na Gazeta. Faz então um elogio a Helena, livro de versos de Oscar de Amaral, ponderando sua pouca idade e a dificuldade em se fazer poeta, processo que levaria tempo e estudo. O livro seria incorreto, mas demonstraria o talento do jovem escritor. Em seguida, elogia brevemente Horacio e o texto termina.
Dois dias mais tarde, vem a público a quarta parte da crítica. É um texto com mais voltas, mas segue a tônica dos últimos – o ataque a Aluísio Azevedo e a defesa de Oscar de Amaral. Sua linha parte do que seria o axioma de crítica, “a litteratura deve dar a medida de uma época”, para recomendar ao maranhense o estudo de seu meio e a leitura de Zola e Daudet: “Zola, diz-nos De Amicis, não inventa seus personagens, vai buscal-os no mundo real.” Outra interessante citação que marca a grande diferença entre a visão atual de Azevedo e a visão da época sobre ele, motivada por Filomena, além de outras literaturas. Oscar de Amaral, por sua vez, seria um grande estudioso e leitor de literaturas as mais afastadas, como a inglesa e a alemã.165 É importante destacar que A. de B. F. segue o padrão naturalista de crítica, mostrando que 164 165
A. de B. F., “Horacio e Philomena Borges III”, Brazil, 05/02/1884. p. 2-3. ed. 30. A. de B. F., “Horacio e Philomena Borges IV”, Brazil, 07/02/1884. p. 2. ed. 32.
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a diferença entre os grupos pode ser mais política que propriamente estética, adicionando complexidade à discussão: não haveria, assim, correspondência direta entre opiniões políticas, econômicas e estéticas, compondo grande heterogeneidade.166 O texto seguinte seguirá nessa linha, e A. de B. F. mostrará toda sua erudição. Citando escritores da Polônia, Finlândia, Rússia, Boêmia, que formariam uma “brilhante constellação litteraria”, o crítico dá ao autor brasileiro mais opções de leitura e estudo, esperando ouvir futuramente: “a minha Philomella, digo a minha Philomena é um romance impossivel, é uma ulcera litteraria que precisa do ferro em brasa da critica e de desinfecção immediata.”167
Na sexta parte, A. de B. F. entra na discussão da composição do romance propriamente dito. Ele aponta diversos pontos de semelhança, para ele plágio, entre Filomena Borges e outros folhetins franceses célebres, como Mlle. Giraud, de Belot, Sr. Dupont de Paul de Kock, e Moicanos de Paris de Dumas Pai. Deste, o romancista brasileiro teria copiado João Touro, com o mesmo nome e as mesmas características físicas, “forte, redondo, cheio de uma força descommunal”, além de descrever a mesma cena que exemplifica esses traços, “aparando do mesmo modo um homem que cahe de um andaime”. Os traços psicológicos, no entanto, teriam sido melhor trabalhados no francês, já que “Dumas era incapaz de produzir aquelle aborto”. Dos outros, o escritor brasileiro teria retirado a cena do ferrolho (Mlle. Giraud): “pois ella fez o mesmo exactamente o mesmo”.168 Mais uma vez, o crítico cobra realismo na obra:
Eu, já não exigia que o Sr. Aluizio fosse um creador, mas ao menos que fosse um photographo, que nos désse photographias parecidas, mas que agarrasse em producções alheias para engastal-as n’um livro seu, oh! não é decente!
166
A ideia da heterogeneidade está presente em Angela Alonso, apesar da autora não entrar na discussão estética, que sugerimos a partir dela. Cf. ALONSO, A. Idéias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo: Paz e Terra, 2002. 167 A. de B. F., “Horacio e Philomena Borges V”, Brazil, 08/02/1884. p. 3. ed. 33. 168 A. de B. F., “Horacio e Philomena Borges VI”, Brazil, 09/02/1884. p. 2-3. ed. 34.
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Há um intervalo maior entre a sexta e a sétima partes. Esta foi publicada em 13 de fevereiro, voltando à discussão do reclame. Depois de acusar os literatos brasileiros de conhecer pouco e mal a literatura, A. de B. F. conta uma anedota:
Um francez para dizer “j’ai mon livre”, escreveu um romance “L’homme barbu”, e muito tempo antes do apparecimento do livro, os annuncios mais extraordinarios despertavam a curiosidade publica. Via-se “L’homme barbu” escripto nas esquinas, nos theatros, nos carros, e até nas costas de quem passava. Quando a curiosidade chegara ao auge um cabellereiro mandou annunciar que “L’homme barbu” era o melhor tonico para os cabelos, e que se vendia a cinco frs. o frasco na rua tal n. tal. O homem vendeu tudo e enriqueceu, e o romancista quiz processar o cabellereiro por ter abusado de sua toleima e tel-o-hia feito se aquelle não lhe offerecesse dous vidros do dito tonico, afiançando em voz baixa que o curaria da calvice. Ahi está um perigo do reclame comercial aplicado ás lettras.169
A conclusão é enfática e contém uma pitada de previsão, que será discutida em breve no presente capítulo.
O oitavo e conclusivo trecho sai no dia seguinte. A. de B. F. retorna aos comentários sobre o romance, comparando-o novamente a Horacio. Os comentários resumem o que vinha sendo dito negativamente sobre o romance:
Philomena é um livro sem originalidade, uma verdadeira colxa de pedaços dde chita, a laia destas que cobrem os garotos e as velhas indigentes. Traz o máo cheiro das roupas enxovalhadas. Não tem espirito: as graças que n’elle se encontram são destas que ouvimos pelas esquinas e com as quaes até nos desgostamos. Não tem moralidade. As pessoas mais dadas ás leituras indecentes muitas vezes o tem [?] de deixar para levar o lenço á cara. Não é conveniente. O chefe da nação nos é apresentado como um libertino que mercadeja com a honra de sua afilhada. Digam o que quizerem os inimigos do Imperador; será, porém, profundamente injusto aos olhos de todo o homem honesto, o papel que lhe dá o Sr. Aluizio naquellas scenas de vil e acanalhada torpeza. Continuando, Philomena não tem estylo, não tem absolutamente por onde se o pegue, é um cadaver litterario, que deixamos em paz para dizer algumas palavras sobre o livro que Oscar do Amaral acaba de nos offerecer.170
169 170
A. de B. F., “Horacio e Philomena Borges VII”, Brazil, 13/02/1884. p. 3. ed. 37. A. de B. F., “Horacio e Philomena Borges VIII”, Brazil, 14/02/1884. p. 3. ed. 38.
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Em oposição, os comentários sobre Horacio têm tom positivo:
Horacio é um livro brazileiro inspirado em nosso meio social. O autor mostra a sua enorme repugnancia pela escravatura e aponta-nos um desgraçado escravo de nascimento abandonado na lama das ruas apanhado por especulações e que tendo resistido a todos os golpes da sociedade, mata[-]se por não poder se unir á idéa de que ia ser privado de sua liberdade por um horror da lei. Este infeliz ama uma mulher branca a quem salvou a vida e tem um rival que vai ser justamente o seu senhor. Apezar da simplicidade do enredo, as lutas são perfeitamente descriptas transpirando mesmo o livro em que de combate. Tem uma lenda que é um verdadeiro trabalho de arte, onde o autor reune os tres elementos que constituem a nossa nacionalidade: Supy [tupi?], africano e portuguez. Este livro desperta-nos portanto enthusiasmo e raiva. Faz-nos firmes as crenças, crenças que são boas; logo este livro é bom. Faz sectarios á uma causa santa, logo é util. Póde ser lido pela mais recatada das mulhers, é um livro decente. Não injuria ninguém, não é um sacco de odios! Tem grande estylo e os defeitos que n’elle se encontram desaparecem ao peso das grandes qualidades. Leiam[-]no sem prevenções, desculpando pequenas lacunas que possão ter escapo á quem se inicia n’este genero de trabalhos e concordarão commigo em felicitar ao talentoso mancebo.
De todos os elogios a Oscar feitos até aqui, este é o mais aprofundado. Comparando a avaliação feita para um e para outro, desvenda-se a posição do crítico e as expectativas que se tinha em relação à literatura. Como eram cobrados os escritores? Um dos critérios baseia-se na nacionalidade: a obra é um “livro brazileiro”, como Horacio, ou um plágio francês, como Filomena Borges? Outro, num “pacto de verdade”: a obra trata da realidade ou é “um romance impossivel”? Para Filomena Borges, está reservada a segunda apreciação, negativa; para Horacio, a primeira, positiva e relacionada ao abolicionismo, realidade nacional que discute diretamente. O abolicionismo, como veremos no final deste capítulo, já era bem aceito no período, e poderia facilitar a recepção de uma obra.171 A moralidade, a verossimilhança e o apelo comercial são os pontos de ataque ao romance de Aluísio Azevedo, critérios que ele já previra na defesa prévia que fez no texto que serviu de prefácio ao folhetim na Gazeta de Noticias. 171
Ao menos entre os críticos. Mais uma adição à heterogeneidade: o crítico parece ser monarquista e abolicionista, defendendo o naturalismo na literatura. Para a visão tradicional de história literária, isto seria contraditório; este trabalho, em conformidade com o de Alonso, mostra que não. Cf. ALONSO, A. op. cit.
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Por fim, surge novamente o boato sobre o cancelamento do romance:
Eu vou deixar o livro do Sr. Aluizio. Não sei se perdi meu latim; só tive, porém, em mira mostrar que elle era o menos competente de todos os escrevinhadores para dar um golpe em qualquer produção litteraria. É bom ser-se conhecido, e o Sr. Aluizio hoje o é; dou-lhe os parabens. Já não é pouco! Falla-se que a Gazeta de Noticias foi quem lhe apressou o terminar o seu Philomena; a Gazeta fez bem, aquillo devia acabar o mais depressa possivel. O autor de Philomena deve estar envergonhado de sua notoriedade, é por isso que cala-se depois de ter atacado; comprehendi que não gosta que se falle mais em si e satisfaço-lhe fazendo hoje estas ultimas considerações.
A seguir, trataremos de outras críticas, mais positivas, e poderemos comparar os critérios anteriormente apresentados com os de Alfredo de Paiva, Mequetrefe, para, no terceiro capítulo, discutir as críticas mais recentes, dos séculos XX e XXI.
2.2.c Outras críticas
Alfredo de Paiva – “nem tanto, nem tão pouco”
Outra série de críticas tratará de Filomena Borges, de sua polêmica e da recepção crítica que vinha recebendo. No periódico O Mercantil, Alfredo de Paiva vinha de fundar uma nova coluna sob o título “Litteratura”. Com o subtítulo “Notas da actualidade”, este novo crítico, que se apresentava ao público como “um desconhecido nas lettras”, procura fazer na coluna um balanço do estado da literatura em sua época. Obviamente, não escaparia a uma série de textos com esse propósito o assunto Filomena Borges, que já havia despertado a oposição do Brazil, o apoio da Gazeta e a posição ambígua do Diario. Voltando à apresentação de Alfredo de Paiva:
Sou um desconhecido nas lettras, é verdade; mas por isso não deixo de ser um de seus cultores e um admirador constante das bellezas da arte e dos que a sabem cultivar com talento e aproveitamento. Não faço parte do elogio mutuo, se é que elle exite.
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Atarefado no magisterio particular, não disponho de tempo senão para empregal-o na cultura da arte e das lettras. Vivo, portanto, arredado do grande centro onde a mocidade congrega suas forças para as guerras da actualidade. O campo de batalha, vastissimo, perdendo-se ao longe, sem limites, vae infelizmente absorvendo os grandes espiritos.172
Com a apresentação, o crítico pretende posicionar-se no “campo de batalha” em lugar neutro, não fazendo parte do “elogio mutuo”. Seu primeiro texto lamenta as polêmicas literárias, que, por se darem no domínio das paixões, não da razão, prejudicam o progresso das letras no país. Ele cobra maior fraternidade entre os escritores. Alfredo de Paiva cita, como “nova geração litteraria, feita nos moldes dos principios modernos”: “Valentim Magalhães, Luiz Murat, Aluizio de Azevedo, Silvestre de Lima, Raul Pompéa, Filinto de Almeida, Mucio Teixeira, Theophilo Dias, Raymundo Corrêa, Arthur de Azevedo”, que no romance, na imprensa e na poesia se mostravam grandes cultores do espírito. Como exemplo de polêmicas, cita a do folhetinista do Brazil contra Aluísio Azevedo, a de Carlos de Laet contra Artur Azevedo e Moreira Sampaio, e a de Valentim Magalhães contra Sílvio Romero. No dia 16 de fevereiro de 1884, o segundo texto de Alfredo de Paiva se subdivide em alguns itens que dão conta dos acontecimentos literários recentes. É neste texto que o crítico se detém em Filomena Borges. Ele supõe Aluísio Azevedo como um dos redatores da Gazeta de Noticias. Seu parecer pode ser resumido nos seguintes parágrafos:
Palavra de honra que muitos trechos [de Filomena Borges] fizerão-me agua na bocca. Certos caprichos de Philomena erão mesmo para estonteiar! Esse romance é trabalho de um moço; de um moço naturalmente ardente e de um temperamento violento. Educado na escola dos principios modernos, observando os costumes do actual viver social, morando-se no espelho das diversas escolas litterarias e principalmente na que actualmente está em voga, não podia deixar de apresentar como produto intellectual trabalho senão na ordem da Philomena Borges. Em sua confecção, afastou-se o escritor da róta commum seguida pelos escriptores desse genero.
172
Alfredo de Paiva, “Notas da actualidade”, O Mercantil, 09/02/1884. p. 3. ed. 11. O texto tem assinatura datada de 01/02/1884.
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Dando nova feição ao romance, descreveu scenas com bastante naturalidade, com primor e elegancia. Foi bastante correcto e accentuou perfeitamente sua individualidade litteraria. Está visto que o Sr. Aluizio é talhado para o romance.173
Em muitos aspectos, o colunista discorda dos críticos do Brazil, repreendendo de maneira geral as críticas que só veem negatividade.
Em 20 de fevereiro, O Mercantil publicou o último texto sobre Filomena Borges na coluna. Alfredo de Paiva aponta que a crítica literária caminha para a decadência com a rivalidade de egos, a inveja, as críticas pelo nome do autor ou pelo título da obra. Ele defende que a crítica deve seguir a finalidade de “apontar as bellezas e os defeitos dos trabalhos”, conforme os exemplos do visconde de Chateaubriand, de Jules Janin e de Gustave Planche.174 Como exemplos negativos, ele cita novamente Sílvio Romero e Valentim Magalhães. O gancho é aproveitado para voltar a Filomena Borges. A crítica de A. de B. F. (citado como “Sr. A. B. de F.”) é tachada de injusta:
Dizer que o romancista da Gazeta de Noticias não tem em absoluto a comprehensão do romance é tanta injustiça quanta a do Sr. Aluizio ao se exprimir sobre as producções do Sr. Oscar do Amaral. O Sr. Aluizio Azevedo de ha muito revelou o seu talento no romance. É facto incontestavel. O Sr. Amaral, que apenas estréa, apresentou um romance medíocre, é verdade, mas não deixou de se revelar e póde ser que não mui longe virá honrar a litteratura romantica do paiz. E no entanto do Sr. A. B. de F. desconhece inteiramente a competencia do Sr. Aluizio, emquanto eleva e engrandece o Sr. Amaral. Nem tanto, nem tão pouco.175
173
Alfredo de Paiva, “Notas da actualidade”, O Mercantil, 16/02/1884. p. 3. ed. 13. O texto tem assinatura datada de 10/02/1884. Outro subitem desse texto trata da educação feminina. 174 Literatos e críticos franceses célebres. Janin, o “príncipe da crítica”, e Planche são mais conhecidos pelo trabalho crítico; Chateaubriand é mais conhecido pelo trabalho literário. Sobre a crítica nos periódicos franceses, ver: MELMOUX-MONTAUBIN, Marie-Françoise. La critique littéraire. In: KALIFA, Dominique; RÉGNIER, Philippe; THÉRENTY, Marie-Ève; VAILLANT, Alain. (orgs.) La civilisation du journal: Une histoire de la presse française au XIXe siècle. Paris: Nouveau Monde, 2011. p. 937-952. 175 Alfredo de Paiva, “Notas da actualidade”, O Mercantil, 20/02/1884. p. 2-3. ed. 14. O texto tem assinatura datada de 12/02/1884.
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A “verdadeira critica, [a justa,] desprendida de todas as paixões, de todos os interesses e rivalidades, é que póde fazer realçar tanto o merito como os defeitos das alheias producções”, portanto, seria aquela que deveria ser perseguida. Por mais que Alfredo de Paiva fizesse uma avaliação positiva do romance, ele também cobrava mais decoro: “Philomena Borges é um bom romance com alguns defeitos, taes como os de haver o autor introduzido a pessoa do chefe do estado na sua obra sob seu verdadeiro nome.” E, por fim, invocava os escritores “á união de classe!” e “á fraternidade litteraria!”.
Alter – “acabou mal” Na Revista Illustrada de 9 de fevereiro, na coluna “Livros a Ler”, Alter176 criticou tanto Horacio, de Oscar de Amaral, quanto Filomena Borges. Sobre esta, escreveu o seguinte:
Não se póde applicar ao ultimo romance do Sr. Aluizio Azevedo a maxima: Tudo está bem – que bem acaba. Justamente acabou mal a pobre Philomena Borges; o nosso intelligente romancista, tão humano, tão promettedor no Mulato, foi entretanto cruel demais com a Borges, foi sobretudo apressado em desembaraçar-se da sua heroina, matando-a quando menos se esperava. Foi caipoira, confessemos, essa Philomena, a segunda obra apenas do romancista,, que tão bem se estreou; os puffs desordenados etc... mataram-n’a antes mesmo de nascida. Eu, que o predisse com o pesar, verifico agora com magoa.177 Entretanto, que o Sr. Aluizio não esmoreça; ha na sua obra a idéa d’um romance, como ha um romance no Mulato; continúe, lucte, tem ainda muito tempo diante de si; é joven, inteligente; trabalhe, que vencerá. E eu aplaudi-lo-ei com prazer, creia.”178
Novamente aparece o problema do fim do romance e dos puffs, que aqui são também responsabilizados pelo insucesso do romance.
Mequetrefe – “desillusão” 176
Pseudônimo provável de Julio Dast. V. próxima nota. Se Alter o predisse, ele provavelmente é o mesmo autor da “cacetação antes do parto”, Julio Dast. V. Capítulo 1. 178 Alter, “Livros a ler”, Revista Illustrada, 09/02/1884. p. 7. ed. 371. 177
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N’O Mequetrefe de 20 de fevereiro de 1884 foi publicada uma crítica bastante diversa das outras apresentadas. Sob o título “Philomena Borges” em negrito há uma ressalva entre parêntesis, em letras menores: “(Não é critica)”. No entanto, o texto é uma das críticas mais interessantes do romance, colocando-se ao lado de Alfredo de Paiva como pareceres positivos. Assinado por “O mequetrefe”,179 o texto elogia o escritor maranhense e destaca dois aspectos: a educação da protagonista e o paralelo possível entre Filomena Borges e Dom Quixote. Quanto ao primeiro tema, “o mequetrefe” escreveu:
A educação de Philomena é um traço de costumes nacionaes; aquelle caracter que, pela charge do genero a’ que se filiou a obra, a muitos parecerá exagerado, mas que é filho de uma observação muito rigorosa, aquelle caracter, diziamos, é o produto logico, fatal, do systema de educação adoptado por D. Clementina, a mãe de Philomena.”180
A crítica propõe o seguinte paralelo: Filomena Borges seria o D. Quixote do romantismo, enquanto João Borges seria seu “marido-escudeiro cheio de bom senso e de passividade”, seu Sancho-Pança. Nápoles, para Filomena, teria sido sua versão dos moinhos de vento. Para Borges, a “jaula do urso” e a fantasia de botocudo, a ilha da Barataria de Sancho. O asno deste seria comparável ao urso. O episódio da Espanha, a caça de aventuras românticas, tudo se assemelharia a D. Quixote buscando aventuras de cavalaria. O mais interessante na comparação é a razão que a crítica encontra para a tão comentada morte de Filomena, que aqui é engrandecida pela comparação:
A muitos ouvi perguntar de que molestia falleceu Philomena Borges. A esses poderá responder o autor com uma phraze em que envolverá todo o seu orgulho: - Matou-o [sic] a mesma doença que matou D. Quixote. [...] Tanto um como outra morreram desta molestia terrivel – a desillusão.
A revista O Mequetrefe contou com a participação de Aluísio Azevedo em sua primeira passagem pelo Rio de Janeiro, no final da década de 1870. O maranhense 179 180
Pseudônimo não identificado. O mequetrefe, “Philomena Borges: não é crítica”, O Mequetrefe, 20/02/1884. p. 3-6. ed. 335.
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ainda tinha contato e amizade com os responsáveis por aquela folha, o que nos faz conjecturar que as opiniões expostas por ela possam ter sido sugeridas por ele ou ter recebido o seu aval, se não escritas por ele. Daí surge uma questão interessante: seria possível estender a comparação, relacionando a desilusão de Azevedo como folhetinista malsucedido, possivelmente censurado, e a de sua personagem?
Considerações
Ora, é de mau gosto e mau senso a representação do imperador dentro do romance. Da forma como é posta por F.F., pode parecer mesmo uma questão de mera etiqueta, mas não é – é questão estética e política. Em termos estéticos, volta-se à linha sempre forçada pelo naturalismo, uma discussão muito importante para a literatura: o que deve e o que pode ser representado? Por outro lado, em termos políticos, ridicularizar o imperador não é apenas desrespeitar um sexagenário que não dá razões para tal, ou incorrer em moda – é ato político de protesto, este sim em certa moda na época dentro dos periódicos que acompanharam e contribuíram para a formação de Filomena Borges. Esse problema revela uma separação entre dois grupos literários, que são também dois grupos políticos, a Nova Lyra de Apollo e o “elogio mutuo”, um ligado ao monarquismo, o outro ligado ao republicanismo – por mais que haja heterogeneidade, o sentido da atuação dos grupos é polarizado e polarizável desta maneira. Seguindo a divisão desses dois grupos, chegamos na divisão entre os próprios periódicos, alguns alinhados com a monarquia, outros dela críticos. Todo o processo de desenvolvimento, criação, publicação e recepção de Filomena Borges vai “desmascarando” e revelando essas oposições, separando, entre seus apoiadores e detratores, antimonarquistas (por assim dizer) e monarquistas, respectivamente. O romance, portanto, não envolve tão somente o aspecto literário. Ele envolve toda a luta política que se travava nos periódicos da época, e toma posição dentro dessa luta, uma posição eminentemente antimonarquista.
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2.3 Repercussão
Filomena Borges, nome que passou a ser conhecido por todo o Rio de Janeiro, tornou-se romance, desdobrou-se em crítica política e revelou um grande aparato comercial e uma grande polarização política, tinha peso demais para morrer de desilusão. A montanha preparada pela Gazeta de Noticias não pariu apenas um rato, o romance; pariu mesmo uma ninhada: anúncios, adaptações, menções. O romance pode não ter tido muito sucesso como folhetim nem como livro, mas o reclame da Gazeta, este sim teve muitos efeitos. É deles que trataremos aqui. Filomena Borges repercutiu de maneira intensa e abrangente nos meses posteriores ao seu lançamento, tornando-se peça, teatro, chapéu, tecido; para generalizar através de um termo caro ao comércio, tornou-se mercadoria. O nome, o livro e o folhetim se desdobraram em outras mercadorias; ao contrário do que gostariam de imaginar os críticos da época, a literatura também era mercadoria.
2.3.a Anúncios
Era de se esperar que uma obra tão antecipada quanto Filomena Borges mantivesse o ritmo da publicidade após seu lançamento em folhetim e consequente publicação em livro. Montanha que foram os anúncios, o rato que deles sai parece ter se multiplicado com velocidade: para um romance medíocre, mesmo ruim, com possível pouca aceitação do público, Filomena Borges repercute com bastante força em diversas áreas. Em processo semelhante àquele da criação da personagem na imprensa, em que ela saiu das crônicas e apareceu por todos os espaços do jornal, o romance sairá do folhetim e romperá a barreira literária, demonstrando relações íntimas entre literatura, imprensa, teatro e a comercialização de todos eles.
Música/moda
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Uma das primeiras apropriações comerciais de Filomena Borges, após o término do folhetim, é musical. A Lyra do Povo anuncia a “polka Aluizio, Philomena e o Borges”:
Figura 25 – Polca Aluizio, Philomena e o Borges A
Gazeta de Noticias, 19/01/1884. p. 4. ed. 19.
A composição foi bem recebida na Gazeta da Tarde, que identifica seu autor como Antonio Francisco Braga:
Figura 26 – Polca Aluizio, Philomena e o Borges B
76
“Tangões e gambiarras”, Gazeta da Tarde, 23/01/1884. p. 2. ed. 19.
A autoria é confirmada pela Gazeta de Noticias, alguns dias mais tarde:
Figura 27 – Polca Aluizio, Philomena e o Borges C
“Recebemos”, Gazeta de Noticias, 25/01/1884. p. 1. ed. 25.
Há, no entanto, outra polca inspirada por Filomena Borges circulando no período. Intitulada simplesmente “Philomena Borges”, ela foi composta por Alfredo Augusto Correa, tido como autor prolífero por seus contemporâneos. Essa outra composição pode ter feito algum sucesso, já que é usada para anunciar outro tango do autor, “Se eu pedisse”:
Figura 28 – Polca Philomena Borges
77
O Programma-Avisador, 29/05/1885. p. 2. ed. 297.
Encontramos, no sítio da Biblioteca Nacional, a partitura da polca “Philomena Borges” por Alfredo Augusto Corrêa.181 O documento, no entanto, pode quebrar o argumento de sucesso da polca da heroína da Gazeta de Noticias e de Aluísio Azevedo: nela constam, como exemplos, outras composições do mesmo autor. Aparentemente, era comum identificar os autores musicais relacionando seu nome a outros títulos de sua autoria e, quando da publicação da partitura, aproveitar o espaço para anunciar outras partituras. Tornar-se título de pequenas composições para piano parece ter pouco efeito, ainda que tenha existido mais de uma versão. É muito mais significativo o outro tipo de apropriação comercial que Filomena recebeu: a da moda. Exemplo interessante é o seguinte:
Figura 29 – Fazenda Philomena Borges 181
Nesse ponto, agradecemos o auxílio da pesquisadora Renata Romero Geraldes. CORRÊA, Alfredo Augusto. Philomena Borges. Polka Lundu. 1 partitura. Piano. Disponível em: http://objdigital.bn.br/acervo_digital/div_musica/mas194667/mas194667.pdf. Acesso: 05 jan. 2015.
78
Gazeta de Noticias, 05/05/1884. p. 3. ed. 127.
Este é um anúncio de uma loja na Rua da Assembleia, 111, que vende fazendas, miudezas, porcelanas, cristais, vidros, louças, ferragens, metais, “christofle” e variedades. É um tecido caro comparado aos outros do anúncio, a 1$500. Não parece haver razão para dar ao tecido esse nome senão se aproveitar da publicidade do nome da personagem e do romance, como em outros casos. No entanto, este tem uma particularidade: o nome é ligado a um dos melhores produtos da loja, tentando se aproveitar, possivelmente, de uma ideia de luxo e bom gosto que a personagem pode ter passado ao público. Pode haver uma dupla determinação: o romance dá esse sentido ao anúncio e o anúncio reforça esse sentido no romance. A personagem ainda era usada como uma referência de estilo, mesmo algum tempo depois da publicação. Lembremos que, durante a discussão sobre quem seria Filomena Borges na Gazeta de Noticias e em outros periódicos, seu nome já havia sido
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usado em referências de vestuário.182 Também durante a publicação do folhetim, há um anúncio na Folha Nova, 23 de dezembro de 1883, que vende “ditos de palha, a Philomena Borges..................
1$200”. A prática de usar nomes de personalidades
para comercializar mercadorias, parece ter sido comum, já que encontramos também chapéus a Lafayette.183
2.3.b Carnaval
As relações entre Filomena Borges e as outras personalidades e acontecimentos de seu tempo não se resumiu às investidas e apropriações comerciais. No primeiro capítulo, vimos que alguns anúncios já utilizavam o nome da senhora misteriosa para divulgar e valorizar eventos sociais. Os Tenentes do Diabo chegaram a anunciar um baile dedicado a ela, que nunca deve ter ocorrido.184 Outra agremiação carnavalesca, no entanto, levará finalmente Filomena Borges às ruas. O Clube dos Fenianos, no carnaval de 1884, anuncia um grande desfile para a terça-feira, destacando em seus carros alegóricos alguns dos acontecimentos mais marcantes do ano anterior. Filomena Borges é um deles:
Figura 30 – Carro Philomena Borges
Gazeta de Noticias, 26/02/1884. p. 3. ed. 57.
A Folha Nova, no dia seguinte, descreveu o desfile dos Fenianos. O 7º carro foi descrito da seguinte maneira: “Philomena Borges, que surgia de repente, e, quando o espectador ia a affirmar-se para lhe vêr as graciosas fórmas, desapparecia para ceder o logar a um enorme cacete.”185 Outros assuntos artísticos notáveis de 1883 também
182
Estrela do Brasil, Au Boulevard. Gazeta de Noticias, 31/12/1883. p. 3. ed. 365. Anúncio da Chapelaria Aristocrata, que também vende chapéus Victor Hugo, Maciel, Abolicionista. 184 V. Capítulo 1. 185 “A terça-feira de carnaval”, A Folha Nova, 27/02/1884. p. 1. ed. 460. 183
80
foram transformados em carros alegóricos: D. Juanita e O Mandarim, conforme os trechos seguintes do mesmo anúncio:
Figura 31 – Carro Juanita
Nota: recorte do anúncio anterior. Gazeta de Noticias, 26/02/1884. p. 3. ed. 57.
Figura 32 – Carro Mandarim
Nota: recorte do anúncio anterior. Gazeta de Noticias, 26/02/1884. p. 3. ed. 57.
O relato d’A Folha Nova “confirma” o desfile – agora não estamos mais no campo das suposições e puffs. Outros assuntos, como a greve dos urbanos e a vacina da febre amarela, também foram incorporados ao desfile. A Terça-Feira Gorda, como era chamada, era o dia de carnaval mais aguardado por aqueles que acompanhavam as grandes sociedades carnavalescas, e seus desfiles contavam com carros de ideias que faziam referência aos grandes acontecimentos recentes. Tais desfiles também se inseriam no contexto das lutas políticas, incluindo um esforço civilizador que, de acordo com Leonardo Pereira, agradava aos literatos do grupo de Aluísio Azevedo. Nesse sentido, os carros não só comentavam os temas relevantes do cotidiano, mas tinham intenção de instruir, levando uma mensagem civilizadora que condizia com as opiniões políticas daquele grupo:
Os carros de crítica, que na maior parte das vezes faziam alusões aos principais acontecimentos políticos do período, ironizando acidamente
81
a polícia da Corte e as grandes figuras dos gabinetes imperiais, tinham ainda outros alvos freqüentes: as práticas e costumes difundidos entre os grupos iletrados da Corte, que são condenados e satirizados nos préstitos das grandes sociedades. Ao criticar e atacar tais práticas, lançavam sobre o público mensagens pretensamente civilizadoras – que, tendo por fim o extermínio de determinadas tradições, eram em geral apoiadas com entusiasmo pelos literatos do período.186
Esses desfiles tinham, portanto, caráter político eminente. Isso era festejado, por exemplo, por Valentim Magalhães, integrante do grupo de literatos identificado por Pereira; e criticado por Carlos de Laet, segundo o historiador um dos poucos literatos “infelizes” com o uso político do desfile. Dentre os temas, destacavam-se o abolicionismo, sempre presente da década de 1880.187
2.3.c Filomena vai aos teatros
O teatro exerce um papel importante no romance Filomena Borges. A fundação e falência do teatrinho particular e as excursões de Filomena e João Borges com o circo, culminando em turnê europeia e regresso bombástico à pátria marcam dois momentos do romance que discutiremos de maneira mais aprofundada no terceiro capítulo. O que interessa agora é saber que o romance e a personagem emprestaram sua fama e sua “montanha” de publicidade a alguns empreendimentos teatrais de que trataremos a seguir. Não é novidade que o teatro teve papel importantíssimo na vida cultural do período, dividindo com o circo, opção mais popular, a responsabilidade de entreter e, quando possível, educar as gentes na noite carioca. Essa importância já foi revelada na apresentação da publicidade de Filomena Borges, em que diversas referências teatrais podem ser identificadas. Algumas delas se repetirão na repercussão teatral da heroína azevediana.
A comédia Philomena Borges
186
PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. O carnaval das letras: literatura e folia no Rio de Janeiro do século XIX. Campinas: Editora da UNICAMP, 2004. p. 127. 187 Ibidem.
82
Romances eram convertidos em peças. Este fato nada incomum no século XIX, exemplificado de maneira célebre por A dama das camélias, de Alexandre Dumas Filho, permite à literatura uma sobrevida nos palcos, representação após representação. Um romance de sucesso pode vir a ampliá-lo; um romance sem sucesso pode vir a obtêlo. A adaptação teatral é especialmente relevante se considerarmos que o público do teatro é mais abrangente que o público do romance: os espetáculos não eram caros e não exigiam leitura. Filomena Borges, romance comercial por excelência, não escapará a essa lógica. A mercadoria folhetim, convertida em mercadoria livro, é também transformada em mercadoria espetáculo. A celebridade do nome da personagem e do título do romance foi, deste modo, aproveitada. No dia 27 de janeiro de 1884, uma nota na Gazeta de Noticias anuncia o início dos ensaios de uma “nova comedia em um acto, sob o titulo de Philomena Borges, que é o mesmo do ultimo romance de Aluizio Azevedo.” Ainda segundo a nota, que apresenta as notícias do Teatro Príncipe Imperial, “é uma peça de actualidade, e, se fôr boa como nos affirmam, fará sem duvida carreira longa.”188 A “carreira longa” é menos uma aposta e mais um chamariz para a peça, que estreará no teatro onde a revista O Mandarim causava grande estardalhaço. A revista de Artur Azevedo e Moreira Sampaio contribuía, ela mesma, para a publicidade de Filomena Borges, romance e peça. Pelas relações pessoais, não é de se estranhar que a comédia em um ato tenha conquistado espaço no palco desse teatro. A autoria, hoje reconhecida como de Aluísio Azevedo, era considerada anônima pelo periódico O Mequetrefe:
Serve de lever de rideau ao Jovem Telemaco uma espirituosa comedia intitulada Philomena Borges, escripta por auctor anonymo a proposito do lindo romance de Aluizio Azevedo. Herminia, Martins e Peixoto dão-se as deixas valentemente.189
188
Gazeta de Noticias, 27/01/1884. p. 3. ed. 27. “Os theatros”, O Mequetrefe, 10/03/1884. p. 7. ed. 337. As edições de O homem (1887), O Coruja (1889), O cortiço (1890), A mortalha de Alzira (1894), Livro de uma sogra (1895) e Pégadas (1897) disponíveis na Brasiliana apresentam a peça como parte da obra do autor. Considerando-se que são edições em vida, achamos confiável a atribuição da autoria a Aluísio Azevedo, vista por exemplo em João Roberto Faria. FARIA, João Roberto. Teatro de Aluísio Azevedo e Emílio Rouède. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. XIII, nota 2. 189
83
Este comentário é de 10 de março, posterior, portanto, à primeira representação da peça, ocorrida em 18 de fevereiro. O anúncio do Teatro Príncipe Imperial dá mais detalhes:
Figura 33 – Philomena Borges no Príncipe Imperial
Gazeta de Noticias, 18/02/1884. p. 4. ed. 49.
Philomena Borges encabeçava um programa de comédias, com seu título em destaque. Pouco tempo depois, ela passará a ser usada como abertura para O jovem Telemaco, conforme o anúncio a seguir:
Figura 34 – O jovem Telemaco no Príncipe Imperial A
84
Gazeta da Tarde, 08/03/1884. p. 4. ed. 56.
Eduardo Garrido era um autor português de bastante prestígio e evidência na época e aparece pela segunda vez neste trabalho.190 Ele foi o tradutor de D. Juanita, ópera cômica que estava em cartaz em mais de um teatro durante o período. Seu nome é destacado no anúncio da segunda representação, n’A Folha Nova:
Figura 35 – O jovem Telemaco no Príncipe Imperial B
190
Raquel Pereira Leite desenvolve atualmente uma pesquisa de iniciação científica sobre Eduardo Garrido como mediador cultural entre França, Portugal e Brasil.
85
A Folha Nova, 07/03/1884. p. 4. ed. 469.
A pequena comédia Philomena Borges emprestava, então, publicidade do nome do romance e da personagem de Aluísio Azevedo e da Gazeta e do renome do escritor português. Isso, no entanto, não bastou para que ela sobrevivesse por muito tempo. A adaptação não foi muito bem recebida, como ilustra o comentário crítico do colunista do Brazil:
86
Hontem fui assistir no Principe à primeira representação de uma comedia que tem por titulo o nome da heroina do ultimo romance do Sr. Aluizio Borges. Detestavel!...191
Já foi demonstrado na discussão sobre a crítica ao romance que o Brazil não foi um dos periódicos que se deixou conquistar por Filomena Borges; ao contrário, ele foi o periódico que mais combateu a obra do maranhense. O comentário de Rorbas Folaca pode conter má vontade, mas o próprio folhetinista e crítico teatral da Gazeta, escrevendo no periódico que mais apoiou Filomena Borges, mede as palavras para falar sobre a peça:
Representou-se, ante-hontem, pela primeira vez, no theatro Principe Imperial, uma comedia intitulada D. Philomena Borges. Entram n’esta comedia a actriz Herminia e os actores Martins e Peixoto. O enredo é simples e ha algumas scenas bastante engraçadas, das quaes se depreende que a paz do lar depende muitas vezes de algumas bordoadas entre os conjuges. A comedia agradou, embora um pouco longa.192
Nem tanto, nem tão pouco. O comentário publicado na coluna “Theatros e...” dá um indício interessante do que poderia ser a conversão do romance em peça, com o foco no casamento e o uso de cenas de pancadaria para a comicidade. A peça pode não ter sido um grande sucesso,193 mas foi levada para uma excursão pelo estado de São Paulo, com representações na capital e em Campinas, ao menos:
Figura 36 – Cia. Braga Junior em SP
191
Rorbas Folaca, “Chispas”, Brazil, 20/02/1884. p. 3. ed. 43. “Theatros e...”, Gazeta de Noticias, 20/02/1884. p. 2. ed. 51. 193 Uma crítica do Diario do Brazil diz, por exemplo, que a peça tem “pouco merecimento”. “Salões e bastidores”, Diario do Brazil, 20/02/1884. p. 3. ed. 40. 192
87
Correio Paulistano, 18/04/1884. p.2. ed. 8299.
A troupe continuou em São Paulo por mais algum tempo.194 No outro anúncio encontrado, de volta à capital, Philomena Borges seria representada juntamente com Os apuros de um noivo, A viuva das camelias, Um marido nas palminhas e Provas publicas, compondo um programa cômico e musicado. Note-se, pelos títulos, a grande presença de peças com temática de casamento e família: Conferencia sobre o casamento, Os apuros de um noivo, Um marido nas palminhas. O anúncio afirma que Philomena Borges fora incluída a pedidos:
Figura 37 – Philomena Borges em SP
194
Sobre a Companhia de Braga Júnior, acompanhar o trabalho de Renata Romero Geraldes (até a revisão final deste trabalho, sua monografia não estava disponível).
88
Correio Paulistano, 13/05/1884. p. 3. ed. 8320.
Este anúncio também revela outro indício importante, a relação de atores e personagens. Como não temos o texto da peça,195 só podemos imaginar como ela foi composta. Quais elementos do romance ela teria selecionado? Pelo texto da Gazeta e por esse anúncio do Correio, cremos que o cerne é a relação entre marido e esposa, na qual devem-se ter destacado momentos e cenas cômicas, talvez transportadas do próprio romance. A presença de Guterres, no entanto, sugere que a parte final do romance, mais pronunciadamente política, pode ter encontrado algum espaço no palco.
O Theatro automático Philomena Borges
Outro empreendimento teatral emprestaria o nome da heroína azevediana. Desta vez, no entanto, não se tratou de uma adaptação cênica, mas de um teatro. A primeira referência encontrada na imprensa é um anúncio da segunda representação de Fausto:
Figura 38 – Theatro Philomena Borges
195
O texto da peça não foi encontrado durante esta pesquisa.
89
Gazeta de Noticias, 31/01/1884. p. 4. ed. 31.
O teatro, situado na Rua Formosa, n. 176, por vezes referida como Rua General Caldwell, abrigava uma empresa de bonecos automáticos com repertório variado: Fausto, Salteadores da Floresta Negra, Um marquez por meia hora, Uma vespera de reis,196 D. Juanita, O filho do Inferno,197 A sogra. Seu preço bastante acessível sugere um divertimento popular, frequentado por famílias, como afirmava O Espectador: “o theatro automatico Philomena Borges continua a ser ponto de distracção ás[?] famílias.” 196 197
Comédia de Artur Azevedo. Haveria relação com Eduardo Garrido e sua A filha do Inferno? Possível paródia?
90
Artur Azevedo alertava, no entanto, contra os “perigos” do teatro automático no Rio de Janeiro. O crítico e dramaturgo não frequentava o Theatro automático Philomena Borges, mas descreveu da seguinte maneira um espetáculo que acompanhou no outro Theatro automático:
Levado pela curiosidade... da minha pequena, dirigi-me uma das noites passadas ao tal Automatico. [...] Representava-se, porém, a Festa da Gloria, e eu fui obrigado a retirarme, com a pequena, ao fim do 1º acto, como SS. Magestades quando pela primeira vez se representou no Sant’Anna a Flor de Liz. Imaginem que na Festa da Gloria ha, entre outras coisas, um dialogo de amor entre um frade e uma preta, dialogo constantemente interrompido por beijos, abraços e desaforos quejandos!198
O comentário é uma entrada para a discussão da censura de Escravocrata, de Urbano Duarte, e da crítica do Jornal do Commercio a O Mandarim. A questão é: o Conservatório Dramático permite que um espetáculo de bonecos, pretensamente destinado a famílias e crianças, tenha diálogos e ações indecorosas, mas persegue outras peças feitas para adultos.199
O Pavilhão Americano
No romance, Filomena Borges e o marido entram para uma companhia circense. Um dos momentos mais significativos da narrativa, ele marca uma fase de paixão recíproca entre os cônjuges e a erotização do corpo de Filomena, que passa a estar em evidência. Na vida “real”, Filomena Borges também encantará os homens em uma apresentação circense. O Pavilhão americano se apropria da ideia do romance e leva aos palcos a dança de Filomena:
Figura 39 – Pavilhão Sul-Americano
198 199
Artur Azevedo, “A festa da Glória”, Gazeta da Tarde, 06/06/1884. p. 2. ed. 131. Como perseguira A flor-de-lis, referida no texto, que será tratada no próximo capítulo.
91
Gazeta de Noticias, 08/03/1884. p. 6. ed. 68.
Figura 40 – Philomena Borges: A linda vênus sul-americana
92
Gazeta de Noticias, 22/03/1884. p. 4. ed. 82.
O espetáculo teve sucesso de acordo com o relato da coluna “Theatros e...”: “Todos os artistas foram muito applaudidos, sendo chama á scena tres vezes a sympathica artista que desempenhou o papel de Philomena Borges.”200
2.4 Uma hipótese de fechamento
Apesar de não haver aparente relação entre as repercussões teatrais do romance, elas se envolvem com o movimento abolicionista. O Pavilhão realizou um 200
“Theatros e...”, Gazeta de Noticias, 01/04/1884. p. 2. ed. 92.
93
espetáculo em benefício do diretor da companhia, “que generosamente concedeu metade dos lucros para a liberdade de um escravo, d’entre os sete apresentados n’aquella occasião”.201 Os atores e atrizes do Theatro Philomena Borges participaram da festa nacional de 25 de março, doando prendas;202 e o mesmo teatro montou representação em homenagem à emancipação no Ceará:
Figura 41 – Theatro Philomena Borges festeja abolição no Ceará
Gazeta de Noticias, 25/03/1884. p. 4. ed. 85. 201 202
“Theatros e...”, Gazeta de Noticias, 01/04/1884. p. 2. ed. 92. “A festa nacional de 25 de março”, Gazeta da Tarde, 26/03/1884. p. 2. ed. 71.
94
Os autores e artistas teatrais também integravam aquela geração que, além de trazer novas propostas jornalísticas e estéticas, lutava por uma renovação política. Apesar de não haver necessariamente correspondência direta entre ideias politicamente “progressistas” e “modernidade” estética e jornalística, muitos deles se envolveram diretamente na luta abolicionista, articulando a atividade nos jornais e teatros, espaços coletivos por excelência. Há íntima relação entre os jornalistas, os artistas teatrais e as mais diversas organizações abolicionistas, como a Confederação Abolicionista. Na época da repercussão de Filomena Borges, as conferências abolicionistas vinham sendo substituídas por matinées, e a frequência dos espetáculos que libertavam escravos era grande e crescente. Andrea Marzano, ao discutir a relação entre o ator Vasques e o abolicionismo, levanta:
Humberto Machado também aponta a estreita relação entre a atividade teatral, a imprensa e o abolicionismo parlamentar, bem como a importância das festas beneficentes, meetings e quermesses, que buscavam não apenas angariar fundos para a compra de alforrias, mas também conquistar a simpatia popular para a causa.203
Os benefícios em favor de escravos e a apropriação abolicionista das peças fazem parte da carreira de Aluísio Azevedo, que adaptou O mulato para os palcos justamente nesse período (primeira representação em 17 de outubro de 1884).204 A respeito desta adaptação, João Roberto Faria escreveu:
Aluísio enfrentou o desafio e, segundo alguns comentários da época, não se saiu mau [sic]. O mulato resultou num drama forte, fiel ao espírito do romance, agitando no palco a questão da escravidão e do preconceito racial num momento em que a sociedade brasileira estava dividida entre o abolicionismo e a conservação do sistema escravista. Alguns folhetinistas, porém, não gostaram da adaptação, exatamente porque trazia para a cena alguns aspectos desagradáveis da vida cotidiana, reproduzidos com a exatidão desejável num espetáculo naturalista.205
203
MARZANO, Andrea. Cidade em cena: o ator Vasques, o teatro e o Rio de Janeiro (1839-1892). Rio de Janeiro: Folha Seca: FAPERJ, 2008. p. 76. 204 Gazeta de Noticias, 17/10/1884. p. 6. ed. 322. 205 FARIA, João Roberto. op. cit. p. XIV.
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O maranhense, que também marcava presença em outros eventos abolicionistas, agradava a parte do público favorável à libertação. No entanto, não foram só alguns folhetinistas que não gostaram da adaptação. O leitor deve estar se perguntando qual a postura do próprio monarca, D. Pedro II, frente às repercussões do romance e da personagem de Aluísio Azevedo e da Gazeta de Noticias. Até agora, neste trabalho, ele sempre apareceu como objeto, nunca como sujeito. Uma fofoca, publicada na Gazeta da Tarde um pouco antes da estreia cênica de O mulato, permitirá conjecturas:
Ainda ha poucos dias a Sra. Helena Cavallier, que se beneficia no dia 15 com a primeira do Mulato de Aluizio Azevedo, foi pedir à sua majestade que honrasse esse espectaculo com a sua presença, ao que o imperador se recusou. Foi assaz commentada essa recusa à uma conhecida actriz, de um favor que o imperador concede quasi que constantemente à quem o pede. Uns attribuiram-n’a à reminiscencias da Flôr de Liz e da Philomena Borges. Disseram outros ter havido imperial confusão e sua magestade ter julgado que o Mulato de Aluizio Azevedo era o mesmo Mulato, já não me lembro de quem, que aqui foi representado ha tempos e que... Seja como for, está sua magestade no direito de recusar-se à assistir a um espectaculo e suponho que bem fortes foram as razões que actuaram no espirito do imperador.206
O texto é assinado por D. Quixote, um pseudônimo que parece se referir à crítica d’O Mequetrefe à Filomena Borges, sugerindo que fosse alguma pessoa próxima de Azevedo. Com esse boato, o romance-folhetim recente é vinculado a um desentendimento entre os irmãos Azevedo e a família real, por conta da representação de A flor de lis. 207 A família real teria abandonado o espetáculo, tido como indecoroso, antes do fim, gerando comentários e curiosidade pública.208
Os efeitos de Filomena Borges são impressionantes para um romance pouco conhecido e estudado, mas não podem ser exagerados. Não se pode, também, ser ingênuo a respeito do abolicionismo, que não era necessariamente causa humanitária. 206
D. Quixote, “Atravéz da semana”, Gazeta da Tarde, 13/10/1884. p. 1. ed. 239. A flor-de-lis era uma adaptação de Droit du Seigneur, de Burani e Boucheron. LEVIN, Orna Messer. Aluísio Azevedo: cadeira 4, ocupante 1(fundador). Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2013. p. 19. 208 FARIA, João Roberto. op. cit. p. XII. 207
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Ele era antes causa política e, como fazem parecer as relações entre Filomena e os teatros, pode ter tido sentido comercial. Há alguns anúncios que se aproveitam da emancipação cearense, como se aproveitaram da celebridade do romance de Aluísio Azevedo. Emília Viotti da Costa dá à questão um tratamento que nos parece bastante adequado. Ainda que trate de uma elite, composta por Joaquim Nabuco e Luiz Gama, entre outros, ela faz uma reflexão que pode ser estendida aos artistas boêmios:
Todos pertenceram mais ou menos à mesma geração, tendo iniciado sua vida pública na década de 1870, durante o período de ostracismo do Partido Liberal, quando o movimento reformista tomou ímpeto. Todos, de uma forma ou de outra, foram afetados pelo discurso reformista que se constituiu nessa época em resposta às transformações econômicas e sociais ocorridas na segunda metade do século e em razão da crise política desencadeada em 1868 com a queda do Gabinete Zacarias. Todos foram vítimas dos altos e baixos da política. Seu sucesso ou insucesso dependeu do apadrinhamento que receberam ou deixaram de receber, por parte das oligarquias no poder. Todos mantiveram com as oligarquias uma relação ambígua, encontraram no abolicionismo não só uma forma de identificação como uma arma de ataque às oligarquias. Para uns, o abolicionismo foi tema de inspiração; para outros, instrumento político. Para uns o abolicionismo deu um público; para outros, um eleitorado. Para todos foi um modo de condenar o ‘atraso e a ignorância’ da sociedade brasileira e de se identificarem com a causa do ‘progresso e da civilização’ européia. Fazendo-se abolicionistas, eles se faziam arautos do ‘progresso’ no Brasil. Se seu papel foi importante no movimento abolicionista talvez mais importante foi aquele desempenhado por um sem-número de indivíduos brancos, negros e mulatos, livres e escravos que lutaram anonimamente pela abolição.209
A análise, aplicada a Aluísio Azevedo em específico, sugere questões importantes: 1) a queda do gabinete Zacarias, que aparece no encaminhamento final de Filomena Borges, tem função além de marca temporal? 2) Até que ponto o posicionamento político pode ter rendido a Azevedo um público? 3) Ele começou sua produção (como caricaturista) justamente na década de 1870. Seus temas são reformistas? Seus objetivos são de fazer progredir e moralizar? Parece-nos que sim. Quanto ao posicionamento político garantir um público, é difícil afirmar, mas ele certamente influenciou a recepção crítica da obra, como demonstramos neste capítulo.
209
COSTA, Emília Viotti da. A abolição. 8ª ed. São Paulo: Editora UNESP, 2008. p. 109-110.
97
A questão do modo como a queda do gabinete Zacarias é tratado no romance fica para o próximo capítulo. Nele, pretendemos articular o contexto literário, midiático e político que traçamos nos dois primeiros capítulos para melhor entender a obra no seu contexto de produção e circulação. Também discutiremos as críticas mais recentes, que se distanciaram da análise histórica que aqui propomos.
98
Capítulo 3 – Crítica do romance Filomena Borges Depois de tratar da circulação, produção e recepção coetânea do romance Filomena Borges, resta apresentar e discutir as críticas recentes que a obra recebeu. Trataríamos também da sua apreciação nas histórias literárias, mas a ausência quase completa de referências ao romance nesse tipo de trabalhos nos fez dar preferência aos prefácios e aos trabalhos acadêmicos. Separamos os prefácios do que chamamos “crítica acadêmica”. Estes são textos maiores, mais desenvolvidos, teses e artigos científicos; aqueles são textos menores, mais focados na apresentação da obra quando das edições em livro.
3.1 Crítica recente
3.1.a Prefácios A primeira edição de Filomena Borges foi publicada sem prefácio ou qualquer nota explicativa. Entre a folha de rosto e o início da narrativa, há apenas uma dedicatória a Ferreira de Araújo.210 Não tivemos acesso à segunda edição da obra, produzida pela Editora Garnier no final do século XIX quando da compra dos direitos da obra completa de Aluísio Azevedo.211 A terceira edição, de 1938, pela editora F. Briguiet & Cia., será considerada a primeira a conter um prefácio. A distância de 45 anos entre esta edição e os folhetins da Gazeta de Noticias justifica a necessidade de explicar o texto para os leitores de então. O 6º volume das obras completas, que ainda mantinha a grafia antiga no título, Philomena Borges, conta com o prefácio do responsável pela edição, M. Nogueira da Silva, membro da Academia Carioca de Letras. Nogueira da Silva considera que a circunstância dos primeiros romances de Aluísio Azevedo terem sido publicados em folhetins levou a um julgamento severo, o qual ele contesta:
210
AZEVEDO, Aluísio. Philomena Borges. 1ª ed. Rio de Janeiro: Typ. Gazeta de Noticias, 1884. A partir da consulta às obras digitalizadas na Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, apuramos que esta edição foi publicada entre 1895 e 1897. V. nota da Tabela 2. 211
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Há em todos os seus livros, se excluirmos Uma lágrima de mulher, porque pensado e escrito sob o domínio da escola romântica, um traço invulgar de técnica, de originalidade, de ‘savoir faire’, qualidades essas que raramente encontramos reunidas em qualquer dos outros nossos romancistas.212
O autor exclui, portanto, Filomena Borges do domínio romântico, destacando aspectos que considera positivos e raros. Nogueira da Silva cita outro crítico, Artur Mota, para reforçar sua opinião: “Mas êsses próprios romances, destituídos de valor compatível com os méritos do autor, representam algum interêsse, pois são escritos com certa arte, propriedade de composição e enrêdo atraente”.213 É notável o cuidado na escolha das palavras: “destituídos de valor”, “algum”, “certa”. É como se, para elogiar um romance como o daquela edição, fosse necessário um grande esforço do crítico. Nogueira da Silva, ao optar pela citação deste texto, não percebeu o cuidado que cercava os elogios, ou não encontrou, entre seus contemporâneos, outros que permitissem uma análise positiva. Apesar dessa inconsistência, esse prefácio já apresenta um dos pontos de polêmica em torno de Filomena Borges, o romantismo. As análises que prevaleceram no século XX, baseadas nas histórias literárias, costumavam dividir a obra de Aluísio Azevedo em má e boa de acordo com a filiação literária, romântica ou naturalista, ou de acordo com a forma de publicação, em folhetim ou em livro. Geralmente a porção considerada boa era naturalista, moderna, publicada diretamente em livro, enquanto a porção ruim se associava aos folhetins de inspiração romântica. Nogueira da Silva “positiva” os folhetins excluindo-os do “domínio da escola romântica”. Seu prefácio destaca o caráter cômico do romance, que seria uma “deliciosa comédia, entrecortada de cenas hilariantes pelo ridículo e fina ironia como representava ao vivo alguns traços da sociedade de então.”214 Segundo suas informações, tanto o romance quanto a adaptação cênica teriam obtido êxito, o que nosso trabalho já demonstrou ser bastante discutível.215 É muito relevante, entretanto, que o autor comente a peça homônima, já que a originalidade de sua crítica reside justamente no fato de comparar o romance ao teatro: “é o mais teatral de seus romances – só lhe 212
NOGUEIRA DA SILVA, M. (s/ título) In: Philomena Borges. 3ª ed. Rio de Janeiro: F. Briguiet & Cia., 1938. p. 5-6. 213 MOTA, Artur apud NOGUEIRA DA SILVA, M. op. cit. p. 6. 214 Ibidem. p. 5. 215 V. Capítulo 2.
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preocupa o homem: a paisagem [...] quase não existe nas páginas de Philomena Borges.”216 Aluísio Azevedo, que seria um “doublé de comediógrafo”, fez “um romance para rir, para distrair, para matar as horas de tédio. Um romance que pode estar nas mãos de toda a gente. Desde os ‘vieux-garçons’ até as ‘jeunes-filles’. Todos encontrarão nas suas páginas motivos de prazer.”217 Além de cômico, o romance seria popular.218 Essa visão é muito justa, consideradas as condições de publicação do original na Gazeta de Noticias. O romancista buscou agradar um público amplo, um público de grande jornal diário, usando para tanto recursos cômicos. Ainda de acordo com N.S., Filomena Borges seria uma fantasia “feita com trechos da vida real”, desfilando tipos característicos da corte do segundo reinado e mostrando com humor os defeitos do mundo político. Portanto, o romance não seria tão somente fruto da imaginação do autor; ele teria se baseado, também, em tipos da época por meio da observação. O texto nos faz refletir: seria defensável levantar a hipótese de um jogo duplo por parte de Aluísio Azevedo, em que, de um lado, o autor escreveria segundo o gosto do público e, de outro lado, “tiraria sarro” desse gosto? Também é significativa a pergunta com que Nogueira da Silva conclui seu texto: “o que significa o romance na obra de Aluízio”?219 A sétima edição,220 publicada pela Livraria Martins Editora em 1960, acompanha o célebre prefácio de Antonio Candido (intitulado “Introdução”). O crítico começa o texto relacionando Filomena Borges à sua concepção geral sobre a obra de Aluísio Azevedo, situando esse romance como uma “queda” em relação ao “primeiro grande livro”, Casa de Pensão. A personalidade literária do escritor maranhense estaria em desajuste permanente, o que teria resultado numa instabilidade criadora. Sua obra teria, portanto, “oscilações” constantes, ora apresentando um romance bom, ora um 216
Ibidem. p. 6. Ibidem. p. 6. 218 Popular no sentido de amplo, geral, como em Páginas de sensação. A ser discutido abaixo. EL FAR, Alessandra. Páginas de sensação – Literatura popular e pornográfica no Rio de Janeiro (1870-1924). São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 219 Ibidem. p. 7. 220 A quarta e a quinta edições mantêm o prefácio de Nogueira da Silva. A sexta edição contém uma nota explicativa muito reduzida, que se foca na vida de Aluísio Azevedo e nada diz sobre Filomena Borges. AZEVEDO, Aluísio. Philomena Borges. 4ª ed. Rio de Janeiro: F. Briguiet & Cia., 1943. Idem. Philomena Borges. 5ª ed. Rio de Janeiro: F. Briguiet & Cia., 1952. Idem. Philomena Borges. 5ª ed. São Paulo: Livraria Martins Editora S.A., 1954. Idem. Philomena Borges. 6ª ed. São Paulo: Clube do Livro, 1955. 217
101
ruim. Entre os pontos altos estariam O homem, O Coruja, O cortiço, enquanto os baixos seriam A condessa Vésper, Girândola de amores, Livro de uma sogra, entre outros. Jean-Yves Mérian contesta essa visão, já pela inconsistência editorial: Candido se utiliza da ordem de edição em livros, confundindo as datas de publicação dos romances.221 Nosso trabalho segue a linha de Mérian: considerando o contexto de publicação e circulação de Filomena Borges, sabemos que ele foi provavelmente encomendado pela Gazeta de Noticias, e era folhetinesco por visar a agradar a um grande público; pode-se dizer que o autor falhou nesse sentido, mas daí a dizer que havia desajuste em sua personalidade já é um exagero.222 O mais adequado parece ser defender o plano da obra, também a partir de Mérian: Aluísio Azevedo procura adequar o público ao romance moderno, tornando seu nome conhecido enquanto se mantém e se estabelece como escritor. É importante destacar que a visão que se tem da obra de Aluísio Azevedo em geral influencia as leituras e análises dos romances em particular. Nos prefácios, encontramos duas visões distintas: Nogueira da Silva iguala, procura continuidade223; Antonio Candido busca rupturas, vê instabilidade. Neste sentido, Filomena Borges seria queda; no outro, não necessariamente – faria parte de um todo, de um plano, de um projeto literário. Nossa pesquisa aponta para esta última visão, apesar de aproveitar ideias da análise de Antonio Candido. Prefácios geralmente enaltecem os romances dos quais tratam. Nesse sentido, Candido passa a buscar os pontos positivos do romance. Como Artur Mota, ele rebaixa o padrão para encontrar essa positividade: “Abordado com intuitos modestos, revela-se leitura bastante divertida. Um divertimento vertiginoso, que se sustenta quase sempre, ou pelo menos quase até o fim, graças ao ritmo vivaz da composição e à
221
MÉRIAN, Jean-Yves. Aluísio Azevedo: Vida e obra (1857-1913). 2ª ed. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional: Garamond, 2013. p. 431. 222 É notável a comparação feita com Balzac e Dostoiévski: “Não me impressiona a alegação de que os escrevia [os romances] por motivos não-literários; por necessidade financeira, por exemplo. Esta é quando muito um favor, mas não se pode erigir uma explicação de mecanismo tão complexo; por necessidade Balzac e Dostoievski foram levados a concretizar algumas das suas obras-primas.” CANDIDO, Antonio. Introdução. In: AZEVEDO, Aluísio. Filomena Borges. 7ª ed. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1960. p. 1. 223 Depois dele, mais recentemente, Mérian, Marques Júnior e Fanini. MÉRIAN, Jean-Yves. op. cit. MARQUES JÚNIOR, Milton. Da ilha de São Luís aos refolhos de Botafogo. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2000. FANINI, Angela Maria Rubel. Os romances-folhetins de Aluísio Azevedo: Aventuras Periféricas. 2003. Tese (Doutorado em Teoria Literária) - Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2003.
102
concentração em tôrno dos dois personagens centrais.”224 Um foco importante da análise são os tipos diferentes das personagens centrais: João Borges e Filomena, o primeiro num “movimento incessante” para agradar a mulher, a última vivendo uma “fantasia delirante”. A “espinha do romance” seria a “curva das duas vidas”. O caráter sonhador e fantasioso de Filomena recebe grande destaque, e ela é comparada à Madame Bovary e a Dom Quixote. A última comparação já foi vista em crítica d’O Mequetrefe,225 mas a primeira é nova. Ora, não seria Filomena Borges um resquício romântico? Aproximar a protagonista a uma personagem feminina forte e realista é significativo. No entanto, a protagonista de Aluísio Azevedo parece ter decepcionado Candido, pois o personagem “poderia ter resultado bastante rico e profundo”.226 O Coruja seria, em contraposição, exemplo de boa construção de personagens. Outro aspecto muito relevante na análise de Candido é a defesa da falta de coerência técnica que marcaria o romance. Não obstante a predominância cômica, o autor oitocentista teria misturado diversos tipos de texto, enumerados na tabela a seguir:
Tabela 3 - Tipos de texto presentes em Filomena Borges, de acordo com Candido
Fonte
Trecho
Romance de costumes
Parte inicial
Conto anedótico
Ferrolho
Aventura folhetinesca
Espanha
Burleta
Festas, circo
Comédia
Criados
Chanchadas
Barroso e sua mulher
Dramalhão
Urso, desfecho
CANDIDO, Antonio. “Introdução”. In: Filomena Borges. 7ª ed. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1960. p. 4-5.
Essa mistura não seria um problema em si, mas a falta de articulação prejudicaria muito o romance:
224
CANDIDO, Antonio. op. cit. p. 2. V. Capítulo 2. 226 Ibidem. p. 4. 225
103
Não que seja inviável um livro coerente a partir dessa variedade, que se encontra noutros de alta qualidade e equivale à própria vida. [...] Em Philomena Borges, porém, isto se tornou impossível pela ausência de integração. Daí parecer, o tempo todo, hesitante entre a pantomima e o drama, entre o sério e o verdadeiro cômico. A estas lacunas, devemos somar o eventual provincianismo de concepção e de expressão, que nos aproxima muitas vêzes da literatura barata, - com a piada vulgar, a tinta facilmente empastada, o descuido no alinhavo de episódios que se amontoam.227
Concordamos com a falta de integração apresentada, e ela constituirá uma das bases de nossa interpretação do romance, apresentada mais adiante. Ela é, também, uma boa hipótese para a falta de sucesso do livro: sendo variada, mas desarticulada, a narrativa não consegue agradar nem aos leitores sérios do romance moderno, nem aos leitores frívolos do romance folhetim, para ficarmos nos termos de Brás Cubas. Lembremos que o próprio romancista já havia publicado uma espécie de prefácio na Gazeta, no qual revelava sua intenção de agradar tanto ao público romântico de 1820 quando à crítica moderna de 1884.228 Afirmar que o romance muitas vezes se aproxima da literatura barata é muito acertado, já que a composição e publicação o aproximam muito dos romances populares, de sensação, para homens etc.229 Também é possível conjecturar que Aluísio Azevedo tratasse de forma preconceituosa o público para quem escrevia, respondendo em parte à dúvida suscitada pelo primeiro prefácio: seria o romance, ao mesmo tempo, humor e paródia? Finalmente, a função da obra é discutida por Candido: “a leitura de Philomena Borges não deve ter outro intuito que o divertimento”.230 Essa consideração pode ser muito válida para um leitor do presente, mas o passado pode ter outras possibilidades de leitura a acrescentar. Como Mérian defendeu231 e como nosso trabalho reitera e expande, o romance foi recebido em sua época de forma política, polêmica.232 Afirmar que a leitura deve ter apenas a intenção do divertimento marca certa miopia, um descompasso entre passado e presente na apreciação desta obra literária. Em seu tempo, ela concentrava mais significados, que agora se perderam ou se diluíram. Os 227
Ibidem. p. 5. V. Capítulo 1. Aluísio Azevedo. “Philomena Borges”. Gazeta de Noticias, 17-12-1883. p. 1-2. ed. 351. 229 Neste trabalho, ao contrário do texto de Candido, “barato” não tem sentido pejorativo. Cf. EL FAR, Alessandra. op. cit. 230 CANDIDO, Antonio. op. cit. p. 5. 231 MÉRIAN, Jean-Yves. op. cit. p. 439. 232 V. Capítulo 2. 228
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dois primeiros capítulos desta dissertação permitiram recuperá-los em parte, para que possamos analisar o romance levando em conta esse descompasso. Quanto à função da leitura do romance, Candido prossegue, defendendo que ela deva ser o:
Divertimento sem refolhos, de quem deseja passar o tempo. Para isto, o romancista oferece estrada livre, pois é de fato notável a rapidez dos acontecimentos, entrecruzados, quase todos elevados a peripécia e, embora tratados com facilidade jornalística, mostrando que quem as arquitetou sabia escrever.233
No entanto, antecipando o que defendemos acima, o crítico concebe outra função para o estudo da mesma obra:
Para o estudioso de literatura, o livro tem outros atrativos, pois é possível averiguar nêle, certas componentes recessivas de melodrama e vulgaridade, de bom humor e melancolia, que integram a personalidade literária de Aluísio de Azevedo e aparecem, nos seus melhores livros, domadas e devidamente polidas. Isto, porém, seria pano para outra manga.234
É possível que Candido não negasse de todo a tese de Mérian;235 afinal, ele percebe que os interesses em Filomena podem ser vários e que os temas trabalhados ali estão presentes nos outros romances, ainda que a escolha das palavras “domadas” ou “polidas” dê um sentido que nos parece pejorativo. Também parece negativa, no texto de Candido, a presença do “germe” naturalista no romance. É um sentido invertido: para Mérian, presença do germe naturalista nos folhetins mostra continuidade, portanto, é positiva; para Candido, a presença da personalidade de Aluísio nos naturalistas também mostra continuidade, mas negativada: ele deve domá-las para que o romance seja bom. A divergência entre Candido e Mérian a respeito das características da obra de Aluísio Azevedo desdobra-se em questões específicas para Filomena Borges: o brasileiro dá mais ênfase ao cômico, na composição multifacetada do romance e na sua função
de
divertimento;
o
francês
foca
233
CANDIDO, Antonio. op. cit. p. 5-6. Ibidem. p. 6. 235 Ou de Milton Marques Jr. 234
105
na
crítica,
no
caráter
híbrido
(naturalista/folhetinesco) e na sua função de crítica social e política. A posição de Mérian fica clara na seguinte passagem:
Os folhetins não eram escritos unicamente com a finalidade de divertir o leitor; as críticas sociais e políticas, explícitas ou implícitas, foram na maioria das vezes esquecidas pelos críticos literários. Estes geralmente explicaram a obra romanesca de Aluísio partindo de um princípio de dualidade em sua concepção. Na introdução ao romance Filomena Borges, Antônio Cândido tentou estabelecer uma classificação simples, baseada no princípio da alternância...236
O francês classifica a visão que Candido tem da obra de Aluísio Azevedo como “cartesiana” e “mecanicista”, mostrando que Wilson Martins compartilha com o crítico brasileiro a visão de personalidade literária; Martins, conforme destaca Mérian, defende que o “folhetim melodramático [... era] o tipo de literatura que realmente lhe instigava a inspiração e as tendências”.237 Mérian destaca, contra esse tipo de visão, a importância dos textos dirigidos aos leitores, veiculados nos periódicos e nas primeiras edições, posteriormente excluídas dos livros,238 e lembra que a publicação dependia de “condições do mercado e da relação com os editores”239, o que viemos defendendo durante todo este trabalho. A tese de Mérian para os folhetins de Aluísio Azevedo está concentrada na seguinte passagem:
Os romances folhetins não se opunham de modo absoluto aos romances naturalistas, mas, segundo o romancista, deviam contribuir para o progressivo sucesso destes. A relação entre esses dois tipos de romance era de ordem dialética, sendo o objetivo final a ‘aclimatação’ do naturalismo no Brasil240
Filomena Borges está no meio desse projeto de “aclimatação” e de conquista de um público leitor. A oportunidade de escrever na Gazeta foi interessantíssima para Azevedo nesse sentido. Concordamos com Mérian contra 236
MÉRIAN, Jean-Yves. op. cit. p. 429-30. MARTINS apud MÉRIAN, Jean-Yves. op. cit. p. 430. 238 Vimos que o “prefácio” de Aluísio à Filomena Borges não foi incluído nas edições em livro do romance, constando apenas em O Touro Negro. AZEVEDO, Aluísio. O Touro Negro. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1961. Sobre o assunto, ver também Milton Marques Júnior e a exclusão ou atenuação dessas discussões nas edições revisadas. MARQUES JÚNIOR, Milton. op. cit. 239 MÉRIAN, Jean-Yves. op. cit. p. 431. 240 Ibidem. p. 431. 237
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Candido quanto ao quadro geral da obra de Azevedo, mas a crítica do último ao romance é muito relevante e bastante adequada ao entendimento da obra, da maneira como vamos expandir e articular. Acreditamos que o adequado seja considerar o humor e o divertimento, e a crítica e a política como dois lados da mesma moeda, compondo o mesmo romance, que tentava agradar simultaneamente críticos modernos e leitores sedentos por folhetins românticos.241 Só assim entenderemos o romance Filomena Borges levando em conta seu contexto de publicação e circulação. 3.1.b Crítica acadêmica As críticas acadêmicas, de modo geral, concordam em destacar a dimensão política, combativa e crítica do romance. Elas enaltecem esse lado do romance, já o peso dado ao humor é variável. Prosseguindo com Mérian: “É conveniente levarmos em consideração o papel que Aluísio Azevedo reservava a essa produção em relação ao conjunto de sua obra. [...] recebidos como obras polêmicas em que a crítica social era mais importante que a vontade de distrair.”242 O francês, portanto, defende que a crítica era, destacamos, mais importante. Angela Fanini, apesar de seguir na esteira de Mérian, discordaria dele neste ponto. Em sua tese de doutorado, Fanini fez a crítica dos romances-folhetins de Aluísio Azevedo. Seu trabalho, como o de Mérian, tem a grande vantagem de tratar de todos os folhetins, o que permite a ambos uma visão geral da obra – que, como já foi referido, vai no mesmo sentido. No entanto, a análise de Fanini traz para o centro da discussão a comicidade, que, segundo ela, seria o grande mérito de Filomena Borges:
Acreditamos que nessa diferença se localize um componente qualitativo importante, pois o riso é usado para polemizar, criticar e dessacralizar. Aluísio Azevedo se utiliza de uma outra linguagem para fazer a crítica exigida pela linguagem realista. Em vez da linguagem séria, comportada, cientificamente legitimada, ele se utiliza do riso, do jocoso, do cômico para denunciar. Talvez essa linguagem seja mais poderosa que a outra porque não está dentro do mesmo sistema que denuncia, ou seja, não é canonizada pela crítica ou pela Academia Brasileira de Letras daquele momento. Acha-se nos rodapés dos jornais, servindo pretensamente de diversão pura e simples a uma 241 242
V. Capítulo 1, prefácio de Aluísio Azevedo na Gazeta. MÉRIAN, Jean-Yves. op. cit. p. 439.
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audiência leiga, não especialista. Essa diversão, no entanto, é crítica, pois o próprio discurso do cômico é sempre um discurso indireto, ou seja, ridiculariza um outro. O que está entronizado, oficializado, convencionalizado é mostrado em suas dimensões históricas e isso o dessacraliza como discurso natural, estável, sempre igual a si mesmo. O riso irrompe de dentro do sério, mostrando-lhe as fraturas. Aluísio Azevedo se utiliza do romantismo dos heróis e de suas situações, exacerbando, inflacionando e esse exagero se apresenta como caricatural, revelando-se crítico243
Neste caso, divertir não vem separado de criticar. Fanini concebe o cômico como fator próprio de crítica em Filomena Borges. Esta tendência estava presente no jornal em que o romance circulou inicialmente, a Gazeta de Noticias, e nas séries a que esteve ligado, mais propriamente as “Balas de Estalo”. Ana Flávia Ramos destacou, em sua dissertação de mestrado, como a série “Balas” articula humor e crítica política, seguindo o que seria a linha editorial da Gazeta de Noticias.244 Este novo jornal, moderno, procurava veicular suas críticas aliadas à comicidade para comunicar-se com um público maior, mais amplo. Se for possível concordar com as teses de Mérian e de Fanini, de que o romance de Aluísio Azevedo é híbrido no sentido de mobilizar romantismo folhetinesco e naturalismo na mesma narrativa, é possível afirmar que também poderia hibridizar humor e crítica, coisa muito comum nos jornais da época, principalmente na Gazeta de Noticias, jornal no qual foi publicado e para o qual foi escrito o romance Filomena Borges. 3.2 O casamento Situada a apreciação da obra, podemos começar a discutir seus temas específicos. Os críticos acadêmicos já apontaram a centralidade do casamento e do temperamento antagônico das personagens principais no romance.245 Concordamos que esta seja uma temática central no romance.
243
FANINI, Angela. op. Cit. p. 125. RAMOS, Ana Flávia Cernic. Política e humor nos últimos anos da monarquia: a série “Balas de estalo” (1883-1884). 2005. Dissertação (Mestrado em História) - Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2005. 245 MÉRIAN, Jean-Yves. op. cit. RIBEIRO, Luís Filipe. O Sexo e o Poder no Império: “Philomena Borges”. Luso-Brazilian Review, vol. 30, n. 1, “Changing Images of the Brazilian Woman: Studies of 244
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Filomena, a personagem que empresta o nome ao título do romance, é filha de D. Clementina e um conselheiro do Império. Seu pai, já falecido no começo do romance, deixou a família em dificuldades financeiras por sua mania de grandeza. Daí decorre o primeiro problema: casar Filomena. O casamento salvaria a família da ruína e deixaria sossegada D. Clementina. Em busca de um noivo, elas devem frequentar os salões e organizar recepções em sua casa, sempre ocultando as dificuldades por que estavam passando. A empreitada é facilitada e possibilitada pela ajuda do padrinho de Filomena, D. Pedro II. Note-se que, já no início do romance, o autor nos apresenta a relação de proteção entre o imperador e a família de Filomena. Dotada de um pragmatismo extremo, D. Clementina educa a filha sobre que maridos procurar e como se portar com eles, rendendo trechos muito significativos, como o seguinte:
A mãi cahia-lhe em cima, a ralhar, a aconselhar “Philomena” que se deixasse de bobagens, que os tempos não davam para isso!” E dizialhe tim-tim por tim-tim o que lhe convinha fazer, como devia se conduzir. Ensinava-lhe os segredinhos de agradar a todos, de prender, de “prometer sem dar, de negar sem desistir.”246
D. Clementina lança, no início do romance, duas diretrizes que, aliadas ao temperamento excêntrico de Filomena, conduzirão a atuação da personagem. Os ensinamentos não se limitarão à busca por maridos, estendendo-se às ações da personagem de modo geral. Seguem as considerações da mãe sobre como conduzir o casamento:
- Parece-te agora, verás depois que é justamente o contrario!... Em questões de casamenfo [sic], minha filha, as apparencias quasi sempre enganam muito! Em geral, os maridos, que nos parecem mais faceis de tragar, são justamente os mais amargos: ao passo que os outros, os typos, os “Borges”, esses são os bons, os doces! Cá por mim, nunca aconselharia mulher alguma a unir-se a um homem, que julgasse o seu espirito superior ao d’ella. Nada! Para haver perfeito equilibrio n’um casal, é indispensavel que o marido sempre reconheça alguma superioridade na mulher; seja essa superioridade de fortuna, de intelligencia, de educação ou mesmo de força physica. Desgraçada da
Female Sexuality in Literature, Mass Media, and Criminal Trials, 1884-1992” (Summer, 1993), p. 7-20. University of Wisconsin Press. 246 Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 18/12/1883. p. 1. ed. 352.
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tola que não pense sobre isso antes do casamento – não será uma esposa, será uma escrava!247
Aparece, oportunamente, um “noivo ‘dos bons’”: João Borges. Filho de um português que lhe deixou posses imobiliárias, dotado de um espírito prático e pacato, Borges é perfeito para os planos de D. Clementina, mas insosso para as fantasias da jovem Filomena. Um golpe do destino, o falecimento da mãe, força Filomena a optar rapidamente. Ela segue os desejos da mãe e se casa com Borges. Este é, basicamente, o primeiro capítulo da narrativa. Ele foi elogiado pelos críticos coetâneos,248 e é um capítulo muito seguro. Nele já está apresentado o motor da maior parte dos problemas que serão desenvolvidos no correr do romance: a fantasia de Filomena confrontará o caráter prático e simples de João Borges. O destino de dois temperamentos tão diferentes, opostos, unidos pelo casamento, servirá como motor para o restante da narrativa. O capítulo aproxima sobremaneira Filomena Borges de um dos romances citados pelo crítico do Brazil249 como possível fonte de plágio de Aluísio Azevedo: Mlle. Giraud.250 Os bailes na busca de consortes ocupam boa parte do começo daquela narrativa, com a diferença de que, naquele caso, quem busca o casamento é o homem, Adrien. As semelhanças não param por aí. Em seguida ao casamento, esperar-se-iam as núpcias entre o casal, que não acontecem em nenhum dos dois romances. Seguindo a descrição de Filomena Borges:
- Podemos fugir.... São horas.... não acha?... Ella ergueu os olhos, sorriu, depois levantou-se, deu-lhe o braço, e ambos desappareceram pelos fundos da sala de jantar. A madrinha já estava à espera da noiva, para a ceremonia do despojamento das roupas. Mas o Borges, quando atravessava a sala contigua à alcova nupcial, ficou muito sorprendido com a mudança brusca, que acabava de se operar na desposada: o tal arzinho de santa fora substituído por uma expressão dura de má vontade. E a sorpreza de João Touro cresceu 247
Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 18/12/1883. p. 1. ed. 352. V. Capítulo 2, crítica da sessão “Bibliographia”. 249 V. Capítulo 2, críticas de A. de B. F.. 250 Romance de Adolphe Belot publicado originalmente no folhetim do Le Figaro em 1869. Foi um grande sucesso, com diversas edições em livro. No Brasil, será traduzido em 1878 sob o título Espoza e virgem, enaltecendo o caráter escandaloso da narrativa. Em Portugal, Pinheiro Chagas traduziu o mesmo romance, intitulando-o Amigas e peccadoras. 248
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mais na occasião em que, tentando segurar Philomena pela cintura para lhe dar o primeiro beijo, ouviu-lhe dizer com um repellão energico: - Deixe-se d’isso, homem! E ainda cresceu, muito mais, quando, depois que a madrinha a deixou só no quarto, elle – o noivo – querendo recolher-se ahi, levou com a porta no nariz e ouviu ranger um forrolho [sic] que a fechava por dentro. - Ora esta! resmungou o Borges, sem saber o que devia fazer. E bateu, a principio devagarinho, depois mais forte, mais forte ainda. Só resolveu abandonar o posto, quando Philomena lhe gritou da cama: - Com effeito! O senhor não tenciona acabar com isso?! Vá dormir, creatura, e deixe-se de imprudencias! Se espera que eu lhe abra a porta, perde o seu tempo... Boa noite! - Bonito! disse o pobre noivo, cruzando os braços.251
Este é o último trecho do primeiro capítulo e do primeiro folhetim. Ele quebra uma expectativa, a das núpcias, criando duas outras: 1) de que o problema que se estenderá pelo próximo folhetim, e 2) de que o romance seguirá como os romances de “ferrolho”. A seguir, citamos o final do capítulo do casamento entre Adrien e Paule em Mlle. Giraud. É notável o estilo mais enxuto de Belot, que concentra aquela ação em um só parágrafo, deixando ao narrador toda a responsabilidade. Há de se considerar, apesar disso, as propostas diferentes: o narrador de Belot é o próprio marido, que discute sua situação com o leitor à proporção que a descreve.
On appartient à tout le monde excepté à sa femme. Enfin, l'heure du berger sonne; on oublie les tribulations, les ennuis qu'on vient d'éprouver, la fatigue qui vous accable, car le bonheur vous attend à votre nouveau logis, on y court, on s'élance vers la chambre nuptiale. Hélas! elle reste obstinément fermée.252
O “ferrolho” estava presente de maneira muito marcante neste romance francês, bem como em outro, citado pelo crítico do Brazil, M. Dupont.253 Enquanto as cenas de Mlle. Giraud e de Filomena Borges são muito semelhantes, M. Dupont e Mlle. Giraud apresentam motivos muito distintos para o uso do ferrolho: nos casos franceses, é o interesse por outra pessoa que faz com que as esposas se neguem a seus maridos. No caso brasileiro, Filomena se negará a Borges enquanto ele não se aproximar de seus 251
Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 18/12/1883. p. 1. ed. 352. BELOT, Adolphe. Mademoiselle Giraud ma femme. 53ª ed. Paris: E. Dentu, Éditeur, 1878. p. 53. 253 Romance de Paul de Kock publicado originalmente em 1826, com numerosas edições até a década de 1880. Apesar de não termos encontrado na imprensa muitas referências a este romance, o autor era amplamente conhecido pelo público. 252
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sonhos e fantasias. Em M. Dupont, a mocinha, Eugénie, ama e jura fidelidade ao jovem Adolphe, embora seja casada com o velho Dupont, que repugna. Em Mlle. Giraud, a mocinha, Paule, tem um relacionamento secreto com sua melhor amiga, Mme. de Blangy, que a impede de se entregar ao marido. As núpcias aparecem como um costume bárbaro na voz de Filomena, na voz do narrador-personagem de Mlle. Giraud, conjeturando a opinião da esposa, e na voz do narrador de M. Dupont:
- Não comprehendo como ainda se conservam na sociedade moderna certos costumes verdadeiramente barbaros. As ceremonias do casamento estão n’esse caso. Nada ha mais grotesco, mais ridiculo, do que essa especie de festim pagão em que se celebra o sacrificio de uma virgem. Horrorisa-me, faz-me nojo, toda essa formalidade que usamos no casamento – a exposição do leito nupcial, os classicos conselhos da madrinha, o acto formalista de despir a noiva, e, no dia seguinte, os commentarios, as costumadas pilherias dos parentes e dos amigos... Oh! É indecente! Mas, agora reparo, o senhor não come!...254 Je me trouvai à mon réveil plus calme que je ne pouvais l'espérer, moins mécontent de ma femme, plus disposé à l'excuser. Après avoir réfléchi le plus froidement possible à nos conversations de la veille, et malgré certains détails qui m'avaient frappé, je crus pouvoir tirer cette conclusion, que Paule, loin d'être une ingénue ignorante de ses devoirs, avait au contraire sur le mariage les idées les plus arrêtées: elle pensait sans doute qu'un mari pouvait se donner la peine de mériter sa femme, et qu'il était délicat à lui de paraître oublier ses droits. Dans l'intérêt de notre amour, elle voulait se faire désirer et m'appartenir comme amante, avant de devenir ma femme. Elle trouvait, en un mot, qu'il y avait quelque chose d'injuste et d'illogique à exiger qu'à jour fixe, en sortant de la mairie, une jeune fille se jetât dans les bras d'um homme qu'elle connaissait à peine, et elle avait résolu de se soutraire à cette coutume barbare.255 Mais, pour Eugénie et son mari, que ce moment est différent!... La jeune femme commence à redouter alors l’approche d’un danger auquel elle n’a point songé depuis le matin, parce qu’elle a cru que rien ne pouvait augmenter son malheur. Mais la jeune fille la plus sage, la plus innocente, sait fort bien, em se mariant, qu’um époux a des droits sur elle; l’instant où elle doit se donner à ce nouveau maître fait battre avec crainte le coeur de la jeune vierge, même lorsqu’elle
254 255
Aluísio Azevedo, Gazeta de Noticias, 19/12/1883. p. 1. ed. 353. BELOT, Adolphe. op. cit. p. 66-7.
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aime celui auquel elle vient de s’engager; quelle doit donc être la situation de celle qui se voit livrée à um homme qu’elle deteste!256
Este “sacrificio de uma virgem”, “costume verdadeiramente barbaro”, integra a crítica ao casamento forçado presente nos três romances. M. Dupont é, possivelmente, o mais enfático nessa censura, com intervenções do narrador e títulos de capítulos que sugerem uma moral: não se deve casar as moças apesar de sua vontade.257 Em todas as histórias, por mais que haja diferenças entre as motivações das moças, está posta em questão a relação de poder no casamento. Todas têm um caráter bastante cômico, apesar de tratarem de um assunto bastante sério, o direito dos maridos sobre as esposas. M. Dupont é o romance que se pronuncia mais explicitamente sobre isso, contendo um capítulo em que o marido reclama às autoridades a falta de suas núpcias e da obediência da esposa. Antes, o marido tentara, sem sucesso, reclamar com a sogra, tornando-se motivo de piada em ambos os casos:
- Vous voulez!... vous voulez!... je vous trouve bien plaisant, monsieur mon gendre; est-ce que vous voudriez faire le tyran chez vous?... – Comment? le tyran! belle-maman. – Je veux que ma fille m’imite, je veux qu’elle soit maîtresse chez elle, c’est tout simple; vous me l’avez demandée, je vous l’ai donnée: vous voilà marié, le reste ne nous regarde plus. Tant qu’Eugénie a été sous ma dépendance, elle a dù m’obéir; la voilà mariée, elle doit commander chez elle, c’est tout naturel; et quand une jeune personne a reçu l’éducation que ma fille a reçue, quand elle a puisé des príncipes et des exemples de sagesse et de vertu, elle ne peut pas se conduire mal; souvenez-vous de cela, monsieur Dupont. – Mais cependant, belle-maman... – Non, mon gendre, non, um mari ne doit jamais se plaindre de sa femme: si Eugénie ne veut pas descendre à votre comptoir, elle a sans doute de bonnes raisons pour cela... – Elle ne peut pas eu avoir, belle-maman. – Vous n’em savez rien, mon gendre; les femmes ne doivent pas rendre compte de tout à leurs maris. C’est à ceux-ci à se’em rapporter à la perspicacité de leurs femmes. – Cependant, belle-maman... – En voilà assez, monsieur Dupont, je vous dis que vous avez tort; que ceci vous serve de leçon à l’avenir, et rappelez-vous que je vous ai donné um trésor.258
256
KOCK, Paul de. M. Dupont ou la jeune fille et sa bonne. Paris: Gustave Barba, Éditeur, 1842. p. 2689. Há, no mesmo romance, duas outras cenas significativas: a do casamento forçado (p. 241) e a fala de Eugénie sobre o direito do marido (p. 276). 257 Há um capítulo justamente com este título: “XXI Qui fait voir qu’il ne faut pas épouser une fille malgré elle”. KOCK, Paul de. op. cit. p. 272. 258 KOCK, Paul de. op. cit. p. 285-6.
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A reclamação com a sogra não funciona, já que ela quer que sua filha comande a própria casa, seguindo seus passos e a educação que recebeu.259 Não obtendo sucesso junto à família da esposa, Dupont recorre às autoridades, envolvendo-se em mais uma cena cômica. Depois de ter de esperar pelas reclamações dos outros, o senhor tenta formular sua queixa ao comissário. A conversa se conduz por mal-entendidos, que levam o comissário a citar o código civil. Dupont se interessa por este, principalmente na parte que diz que as mulheres devem obediência aos maridos. Por mais que a queixa de Dupont não tenha efeito prático no romance e não solucione seu problema, ela é possível. Não é o que acontece em Mlle. Giraud, em que M. de Blangy, marido da amiga e amante de Paule, Mme. de Blangy, afirma não poder recorrer às autoridades:
La justice, me dit-il, m'aurait évidemment refusé son concours; le législateur n'a pas prévu certaines fautes et l'impunité leur est acquise. C'est à peine si j'aurais obtenu des tribunaux une séparation : les torts de Mme de Blangy, envers moi, étaient d'une telle nature que les juges se refusent souvent à les admettre, pour n'avoir pas à les flétrir.260
A natureza da transgressão de Mme. de Blangy não pode ser socialmente aceita, portanto o marido não pode fazer valer seu direito nos tribunais. Ainda assim, na relação do outro casal, Paule não nega o direito do marido sobre ela. Quando este propõe a viagem que separará as amantes, a mocinha responde: “— Nous voyagerons, soit ! Vous l'exigez, et la loi vous donne des droits sur moi. Mais je ne saurais m'éloigner ce soir. J'ai des adieux à faire."261 Deve-se ponderar que, nesta cena, a esposa está sob ameaça de vexação pública, mas ela parece entender, durante todo o romance, que quem concentra o poder na relação é o marido. Há, então, uma discussão sobre o direito dos maridos. Por mais que seja tratado de maneira cômica, esse direito sempre está presente, sempre se mantém e se manifesta. A resistência das esposas tem um espaço muito pequeno. A solução para o problema de Eugénie virá somente com a morte de Dupont, que lhe possibilitará casarse com seu amor verdadeiro, Adolphe. A solução para o problema de Paule é mais violenta: o marido tenta corrigi-la, afastando-a de sua amante, Berthe; ele conta com a 259
O que aproxima muito D. Clementina de Madame Moutonnet, a mãe de Eugénie. BELOT, Adolphe. op. cit. p. 202. 261 Ibidem. p. 215. 260
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ajuda do marido desta, que também a leva para longe. A viagem dos casais não é bem sucedida, pois termina com a fuga das amantes, que se reencontram e vão morar juntas num lugar isolado. Desse modo, a resistência de Filomena Borges é a mais destacada, porque altera o marido, apesar de não poder romper com o casamento forçado ou com o direito do marido sobre ela, imposições externas maiores e mais fortes que não têm possibilidade de serem rompidas no romance. Ribeiro foi o crítico que mais destacou o tema do casamento em Filomena Borges, que ele apresenta também como relação de poder. Já no seu título fica clara a discussão que ele faz: o sexo como poder. Ele compara Filomena Borges a Senhora, defendendo que haveria inversão de papéis em ambos, ponderadas as diferenças:
Voltando ao paralelo com Alencar, em Senhora existe também uma tal inversão [entre marido “feminino” e esposa “masculina”]. Mas ali está fundada na posse do capital, no poder do dinheiro. É coerente com o sistema, afirma a precedência do econômico sobre o ideológico. Aqui, em Philomena Borges, há uma inversão do quadro ideológico dominante: o econômico submete-se ao ideológico. O sexo comanda e destitui o capital: é a supremacia absoluta do princípio do prazer. Que proposta mais revolucionária se poderia pedir a um escritor do século XIX, saído das fraldas do Romantismo, numa sociedade retardatária, conservadora e imperial?262
Se for o sexo que destitui o capital, não é ao ideológico que se submente o econômico, mas à carne. Os preconceitos de Ribeiro vão se revelando aos poucos, mostrando como ele ainda está colado às interpretações canônicas: romantismo, sociedade retardatária. Como estamos tentando demonstrar, a proposta de Aluísio Azevedo não é revolucionária; é extremamente mediada, com a sujeição ao sexo tirada dos folhetins franceses, que o crítico
certamente não
reconheceria como
revolucionários. Não sabemos se é defensável, para Filomena ou para os romances franceses, a inversão de papéis. A comicidade dos romances é construída justamente sobre isso: o marido, que tem o direito sobre as esposas, não consegue fazer valer de fato sua vontade. Mas ele nunca deixa de ter o direito. É importante, no entanto, a distinção que Ribeiro faz: em Senhora há amor verdadeiro, e a relação é mediada pelo dinheiro; em Filomena não haveria amor verdadeiro, somente interesse econômico e social. 262
RIBEIRO, Luís Filipe. op. cit. p. 17.
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Discordamos que não haja amor verdadeiro entre Filomena e Borges, já que ele vai se intensificando no miolo do romance, resultando na entrega completa da mulher ao marido no capítulo XII, “Amor de Philomena”. Aqui a comparação com Mlle. Giraud também auxilia o entendimento. Neste romance, Paule não está no comando. Ela acata as decisões do marido, como visto acima, mas nunca se entrega: sua resistência é complexa. Filomena, por sua vez, tem uma resistência mais ativa, agressiva, transformadora. Outros romances que foram comparados a Filomena são Madame Bovary e O primo Basílio.263 É realmente muito interessante a comparação entre eles, pelas proximidades e distâncias. As três mocinhas têm educação parecida, são sonhadoras, fantasiosas:
O sonho romântico de Philomena encontra, claramente, suas raízes em Madame Bovary, aparecido em 1857. A personagem identifica-se com a Luísa de O Primo Basílio, de 1877. As três, mergulhadas no imaginário construído pela literatura romântica, não conseguem aceitar a mesmice da cotidiana realidade da vida. Vivem no imaginário e para ele. A vida deverá ser, necessariamente, uma imitação da arte. Fora daí, apenas a infelicidade...264
A única que tem uma educação pragmática, no entanto, é Filomena, que também é a única que tenta usar seu poder para alterar seu marido a seu jeito; as outras, pelo contrário, preferem a via do adultério. Esta solução nunca chega a passar pela cabeça de Filomena, por mais que o romance brinque, por vezes, com a possibilidade (Barradinhas, D. Luís de Portugal, D. Pedro II). Filomena Borges utiliza sempre a sedução como forma de poder, nunca como forma de obtenção de prazer pessoal.265 Na narrativa de Aluísio Azevedo, ao casamento seguem-se as tentativas de Filomena de alterar Borges, que Ribeiro reputa como “novidade absoluta” desse romance. Interessa menos saber se é inédito, e mais qual a função e quais os resultados
263
Madame Bovary já apareceu. O primo Basílio é inédito. É Ribeiro que afirma que eles são raízes do problema centra de Filomena Borges. Ibidem. 264 Ibidem. p. 10. 265 O grande sucesso que o romance de Eça de Queirós obteve no Brasil devia estar ainda fresco na memória dos leitores de Filomena Borges. Também existe uma relação, passível de sugestão, entre o romance português, o romance brasileiro e Mlle. Giraud: todos causaram escândalo. Há de se notar, entretanto, que o escândalo dentro de Filomena Borges é mais leve. Talvez seja esta uma das razões do pouco sucesso do romance; ou o fato do escândalo envolver a figura do monarca, o que, conforme visto no capítulo 2, gerou bastante discórdia.
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para o romance: o que permitiria à personagem tal atuação? A possibilidade já está concebida em M. Dupont, em que a mãe diz que fez o marido a seu jeito; mas não foi praticada por aquela mocinha, que já tinha um amor anterior e não tinha interesse em fazer funcionar seu casamento. Filomena é quem colocará em curso tal plano:
Será Philomena a primeira personagem feminina em nosso romance a usar, explícita, e conscientemente, o sexo como instrumento de poder. Todo o desenvolvimento posterior da narrativa estará centrado nessa equação. O importante nessa teoria é a colocação do casamento como um contrato jurídico desvinculado da relação amorosa266
Filomena Borges, através desse esforço, é a única das esposas citadas a trabalhar em favor do próprio casamento. Sem dúvida, o casamento é um tema fundamental no romance. Ao juntar os temperamentos antagônicos de Filomena e João, Aluísio Azevedo soube conduzir sua narrativa através dessas duas personagens, o que ele já havia feito em Memórias de um condenado e faria em seguida em O Coruja.267
Também é muito significativo que, dentro do próprio romance, outros dois casamentos estejam presentes, para que o leitor pudesse compará-los com o casamento central. Barroso, melhor amigo de João Borges, desfaz a amizade quando tem certeza do casamento deste com Filomena, por acreditá-lo insensato.268 Aluísio Azevedo insiste, para contrastar, em apresentar a situação do casamento do próprio Barroso. Há um capítulo (XI) cujo título se refere a essa comparação: “Qual dos dous maridos será o mais infeliz?...”.269 Nele, é desmascarada a hipocrisia de Barroso, apresentada a princípio num diálogo com Borges:
[Borges] – Com que então és feliz!... E suspirou.
266
Ibidem. p. 15. MÉRIAN, Jean-Yves. op. cit. p. 435. 268 “- Tu enlouqueceste, homem de Deus?! Não vês que vais fazer uma reverendíssima asneira?! Não vês que aquillo não é mulher que te convenha?! Não desconfias, pedaço d’asno, que aquella sirigaita e mais a raposa da mãi estão a farejar-te os cobres?!... Não comprehendes que ellas te querem porque tens para mais de quinhentos contos de réis?! Ora vai por um caustico n’essa nunca! [sic]”. Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 18/12/1883. p. 1. ed. 352. 269 Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 29/12/1883. p. 1. ed. 363. 267
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[Barroso] – Sou, graças a Deus! sou! respondeu o Barroso estirandose na cadeira. Lá a minha Eva não é nenhuma senhora que metta vista, lá isso não é!... Ao contrario, coitada! não serve para se haver com etiquetas e ceremonias; porém, no que se diz – arranjo de casa, doçura de genio, tratamento do filho e mimos cá com o nhô-nhô... n’isso não quero que haja segunda! Meiguice alli! Ella é incapaz de uma rezinga! Sempre a mesma! Sempre! Além d’isso muito asseiada, muito amiga de arrumar e activa, activa que faz gosto! Ainda ha pouco tempo ficámos tres dias sem criada. Pois, filho! acredita que a Sabina arregaçou as mangas, metteu-se na cozinha, agarrou-se a uma vassoura, e, tantas voltas deu, tanto virou, que a criada não fez falta! Foi preciso que eu ralhasse para a ver socegar um instante! Não! como dona de casa não quero que haja outra!... mas também pódes ver de que maneira a trato!...270
Com Barroso, temos a perspectiva do marido que põe a mulher a seu jeito: “- Mas por que não a pões a teu geito, filho?” pergunta Barroso a Borges. “- Pol-a a meu geito!... ella foi quem me poz ao seu. Foi ella que me torceu a seu bel prazer!”, responde Borges, marido vencido e torcido pelo amor que tinha pela mulher.271 O mesmo amor não pode ser visto na relação de Barroso, que elogia na esposa justamente a condição de mulher-escrava da qual tentaram fugir Filomena e Eugénie. Mas o casamento de Barroso não foge à tensão. O diálogo entre os amigos ocorre antes do baile de fantasias que os Borges oferecem quando do primeiro retorno ao Brasil. Barroso aceita o convite para o baile, onde ele encontra um João Borges totalmente diferente: o amigo que procurara seu ombro para chorar e questionar seu casamento, perto da mulher, no ambiente de sua casa e de seus amores, era um homem feliz. Quando Barroso volta para sua casa, extremamente incomodado com a postura de Borges (“A mulher faz d’elle o que quer.”272), ele discute com a mulher. O assunto, a princípio o casamento dos Borges, se desdobra em uma discussão sobre as relações de poder entre marido e mulher. A cena se precipita com o desmascaramento de Barroso e de seu casamento:
- Uma mulherzinha como a d’elle é que você precisava para o ensinar, seu unhas de fome! Não devia ser uma toleirona, como eu, que levo aqui a matar-me, às vezes até fazendo o despejo! e, quando quero ir a qualquer divertimento, quando appeteço um theatro, um passeio, uma
270
Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 30/12/1883. p. 5. ed. 364. Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 29/12/1883. p. 1. ed. 363. 272 Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 31/12/1883. p. 1. ed. 365. 271
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visita, ou quando preciso de um vestidinho mais assim ou de um chapeu mais assado, você nunca está pela cousa! - Porque não sou doudo! respondeu o Barroso com máu modo. – Estaria bem servido se te fosse a fazer todas as vontades! – a estas horas não teria onde cahir morto! [...] Empurrando-a: - Vai-te, peste! Vocês são todas a mesma sucia! E ainda ha quem dê os homens como culpados das patifarias das mulheres!...273 - E são! respondeu Sabina. E são! E fazem ellas muito bem! Era do que você precisava para não ser bruto! [...] - Não mates a criança! rugiu o Barroso, puxando a mulher pelo braço e fazendo-a cahir por terra. Ella não tem culpa que a accordasses tu com os teus berros! - Dou! posso dar! retorquiu Sabina, esganiçando-se. É meu filho! não é seu! - Não é meu, cachorra?! [...] Algumas horas depois dormiam profundamente nos braços um do outro. - Vivemos como Deus com os anjos!... balbuciava elle sonhando a conversa que tivera com o Borges no Passeio Publico. – Meiguice alli!... Mas tambem podes vêr que maneira a trato!... Ah! hypocritas! hypocritas!274
O casamento de Barroso serve como um contraponto, em que o marido põe a mulher a seu gosto. Não é um contraponto positivo, no entanto. Esse modelo de casamento também não é apontado, dentro do romance, como correto ou feliz. A resposta à questão do capítulo, “qual dos dous maridos será mais infeliz?” parece certa: Barroso. Esse outro exemplo deveria ser apresentado como positivo, se a questão fosse pura e simplesmente “punir” os modos de Filomena, mas não é. Barroso é hipócrita, violento, com um casamento tão ou mais problemático que o do amigo – e, claro, menos feliz. Ao contrário do que possa parecer para o leitor, o casamento de Filomena e Borges aparece como “feliz” dentro do romance.
Ainda na primeira parte do romance, há outra união discutida, a de Cecília e Roberto. Novos criados contratados para satisfazer os caprichos de Filomena, que implicara com os antigos, eles se envolvem no plano de Borges para invadir o quarto 273 274
Justamente o que fez Aluísio Azevedo na carta à Gazeta sobre Filomena Borges. V. Capítulo 1. Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 31/12/1883. p. 1. ed. 365.
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trancado de sua mulher. Cecília aceita ajudá-lo quando o patrão promete arranjar-lhe o casamento com Roberto. Os planos vão mal, os criados são demitidos e o patrão deixa Cecília desamparada.275 A diferença de classe fica evidente; para classes diferentes, possibilidades de casamento diferentes. Também há certo moralismo, que se vai revelando aos poucos. Cecília se entregou ao parceiro antes do casamento, ficando entregue às vontades dele. O sexo é mesmo instrumento de poder neste romance:
- Não tencionas desembuchar, creatura?! - É que se dou com a lingua nos dentes, vai tudo por agua a baixo!... - Ora, deixa-te de tolices e conta lá o que houve! Bem sabes que entre nós não ha segredos! - E antes houvesse! Mal fiz eu em permittir umas certas cousas antes do casamento!... Se não fôsse isso, você com certeza não me trataria d’esse modo, e já me teria levado à igreja! O Roberto sacudiu os hombros - É! fez Cecilia, muito queixosa. Até aqui toda a difficuldade era o enxoval; venho dizer-lhe que o patrão se encarrega d’isso, e você, em logar de despachar-se por uma vez, ainda me dá muchochos e põe-se a desconfiar de mim! Tola fui eu em ir atraz de cantigas! Diabo do traste! - Deixa-se tu de cantigas, e vamos ao que interessa!... Despeja pr’ahi o que houve! - Não despejo nada! Você não merece cousa nenhuma, é um velhaco; emquanto eu me fiz tesa, não lhe faltaram maneiras; agora é isto que se vê!... E começou a chorar: - É preciso não possuir um bocado de consciencia para enganar d’esta fórma uma pobre rapariga, que nunca teve pecha que lhe botassem. - Guarda as lamurias para outra occasião, filha! - Pois, se é como eu digo!... Ingrato! Se eu não o quizesse tanto, não estava agora aqui me arreliando! - Deixa-te de asneiras... fez o criado, passando-lhe por condescendencia a mão na cabeça. Não te pódes queixar – eu tambem gosto de ti! - Sim, sim; mas o casamento não se ata, nem desata! dizia ella soluçando. - Ora! E o que teriamos lucrado nós em nos termos já casado?... - O que teriamos lucrado?! Olha o disparate! Você talvez não lucrasse nada, mas eu?! Penso nisso todos os dias! Até estou mais magra! Lembrar-me só de que você é muito capaz de deixar-me n’este estado... dá-me venetas de acabar com a vida! - Não digas asneiras, toleirona! O que tem de ser teu, às mãos te chegará! E depois de beijal-a, sem carinho:
275
Borges, que até então não apresentava traços viciosos, é bastante impiedoso nas demissões.
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- Mas vamos lá. Conta o que houve entre vocês, tu e o basbaque do patrão!...276
Qual a lição da cena para as leitoras? Não se entregar antes do casamento. Os diálogos citados acima permitem recuperar a opinião de Nogueira da Silva: Filomena Borges é um romance bastante teatral.
Além das contribuições de comparar o romance aos folhetins franceses que circulavam na época, há outro aspecto de nosso trabalho que auxilia na compreensão do romance de Aluísio Azevedo, o tema da mulher e de sua educação. Mérian defende que o escritor maranhense utiliza, nos folhetins, os mesmos meios de explicação e determinação que nos romances naturalistas: “À primeira vista, Aluísio Azevedo utilizou em seus romances-folhetim sistemas de explicação idênticos àqueles empregados nos romances naturalistas: o jogo dos determinismos que devem orientar o destino dos heróis.”277 Lembremos o grande debate sobre Filomena Borges na imprensa antes da publicação do romance. Aquelas discussões criam, entre os leitores coetâneos, expectativas e opiniões sobre a personagem, que ganhará finalmente uma “compilação” no romance de Aluísio Azevedo. Na carta em que anunciava a escrita do romance, Azevedo já antecipava as explicações que daria para o comportamento de sua personagem excêntrica, a educação. Isso é muito importante para o romance e para a obra de Azevedo como um todo. A educação de Filomena fá-la ser como é; a “educação sentimental” de João Borges fá-lo deixar de ser como era. A megera domada, aqui invertida, marca a determinação e a alteração das pessoas pelo esforço das outras. 278 O crítico francês já havia destacado a importância da educação nos folhetins do escritor maranhense:
É, porém, no nível da influência da educação que encontramos a argumentação mais sistemática. [a influência do meio também estaria presente, mas seria menor] Todos os heróis, homens ou mulheres, têm o caráter cunhado pela educação que receberam. A educação romântica exacerba as tendências naturais do temperamento das 276
Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 23/12/1883. p. 3. ed. 357. MÉRIAN, Jean-Yves. op. cit. p. 441. 278 Ribeiro identifica, nos diálogos entre D. Clementina e Filomena, “a possibilidade de modificação de uma pessoa pelo trabalho, consciente e sistemático, de outra”. RIBEIRO, Luís Filipe. op. cit. p. 13. 277
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personagens. Ambrosina (Memórias de um condenado), Olímpia (Mistérios da Tijuca) e Filomena Borges foram educadas da mesma forma, leram os mesmos escritores românticos, sonharam com as mesmas aventuras. Aluísio insiste longamente sobre as consequências dessa educação, que não prepara as mulheres para assumirem os papéis de esposas e mães que ele via para seus personagens femininos.279
O trecho é revelador. Primeiro, reforça que Azevedo não seria, hoje, considerado feminista, pois defendia a preparação das mulheres como esposas e mães, não como livres. Segundo, demonstra que a educação das mulheres é um tema comum em sua obra. E, apesar da recorrência do tema, ele se desdobra de diferentes maneiras nas narrativas: dependendo do temperamento das personagens, a educação romântica ocasiona
efeitos
diferentes.
Em
Ambrosina,
resultará
em
libertinagem
e
homossexualidade; em Olímpia, levará à histeria; em Filomena, destacará a ambição e a megalomania.280 Dialogando com as referências midiáticas que tentaram apurar ou criar quem seria a misteriosa Filomena Borges,281 o autor incorporou em sua narrativa aqueles elementos, discutidos no primeiro capítulo desta dissertação. Para os leitores da época, principalmente aqueles que assinavam ou acompanhavam a Gazeta de Noticias diariamente, os sentidos da personagem eram múltiplos. Da Filomena Borges dos periódicos, a Filomena Borges do romance manteve a excentricidade e a sedução. Os motivos da sedução não estavam aparentes naqueles trechos periódicos, resumindo-se a uma excentricidade geral. Eles seriam sistematizados no romance de Aluísio Azevedo, articulados pela educação pragmática Filomena seduz para transformar ou para não se deixar dominar. Paralelamente, sua excentricidade, aliada à educação romântica, constituirá o motor da narrativa. Essa característica ganha, então, nova acepção, mais prática e política. O diálogo com a imprensa vai mais longe. Mérian identifica, no romance de Azevedo, relações com a discussão mais ampla que se fazia sobre a educação:
Aluísio Azevedo não se limitou a questionar a educação e as leituras das jovens burguesas, ele denunciou o conservadorismo e o atraso da instrução pública no Brasil. O tema da educação era um dos mais 279
MÉRIAN, Jean-Yves. op. cit. p. 444. Ibidem. p. 444-445. 281 V. Capítulo 1. 280
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polêmicos no começo dos anos 1880. Os mais progressistas queriam obter do governo a instauração de um sistema de educação inspirado pelo que se fazia na França. A inspiração vinha de Jules Ferry e Ferdinand Buisson, os apóstolos da educação laica, obrigatória e gratuita. Os primeiros decretos nesse sentido foram assinados pelo imperador em 1879, mas o grande debate só começou em 1882. Os pareceres do jovem deputado da Bahia, Rui Barbosa, provocaram debates apaixonados no Parlamento. Para ele como para o imperador, a questão do ensino era um problema político tão primordial como a abolição da escravidão. Rui Barbosa considerava que “a ignorância popular, mãe da servilidade e da miséria”, era a responsável principal das desgraças do país. Ele chamava os parlamentares a assumir a responsabilidade de instaurar no país um “grande serviço de defesa nacional contra a ignorância.”282
O desejo de modernização da educação certamente era compartilhado por Aluísio Azevedo, que incluiu em O Coruja a luta de André pela reforma educacional.283 Ele se insere nesse debate, caro à sua época, através dos romances. Sua intervenção se concretiza por intermédio da explicação sistemática sobre a função e o efeito da educação, e sobre a atuação desta no comportamento humano. Essa intenção já havia sido anunciada no texto anterior ao primeiro folhetim, na Gazeta de Noticias:
Mas será ella porventura a maior culpada de tudo isso, será ella a unica responsavel pelo mal que fez, e pelas fortunas que destruiu?! Não caberá alguma parte d’essa culpa à nossa sociedade, aos nossos costumes, à nossa educação, e finalmente ao triste meio onde cresceu e palpitou essa desventurada e formosa creatura?! As mulheres são fatalmente aquillo que os homens decretam que ellas sejam.284 Philomena Borges é um produto legitimo dos vicios e da covardia de seus pais. Se não a educassem no falso luxo; se não lhe ensinassem todas as miserias de uma pobreza sem coragem e sem dignidade; se não a vendessem ao primeiro noivo rico e brutal que a desejou; Philomena Borges seria talvez n’este instante o melhor modelo das mãis de família.285
282
Ibidem. p. 458. Sobre modernização e moralização em Aluísio Azevedo, ver Mérian. Ibidem. p. 460-2. 284 Esta opinião será debatida pelas personagens do romance, Barroso e Sabina, durante sua violenta discussão: “- Vai-te, peste! Vocês são todas a mesma sucia! E ainda ha quem dê os homens como culpados das patifarias das mulheres!... - E são! respondeu Sabina. E são! E fazem ellas muito bem! Era do que você precisava para não ser bruto!”. Gazeta de Noticias, 31/12/1883. p. 1. ed. 365. A opinião do autor e da personagem feminina contrasta de maneira interessante com a seguinte passagem de Mlle. Giraud, na voz de Paule: “Le plus souvent, j'en suis persuadée, ce ne sont pas les hommes qui perdent les femmes; ce sont les femmes qui se perdent entre elles.” BELOT, Adolphe. op. cit. p. 242. 285 Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 11/10/1883. p. 1. ed. 284. 283
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Mãe de família que ela nunca chegará a ser, ao contrário de Sabina. O que a impede? Sua educação. É esta educação que faz crescer seu temperamento sonhador e excêntrico, mas também é ela que permite que Filomena, de novo ao contrário de Sabina, não seja criada de seu marido, uma mulher-escrava.
Tabela 4 - primeira parte do romance – Casamento Folhetim Capítulo(s) Título(s) I Flores de Laranjeira 1 II O ferrolho 2 II, III O ferrolho (cont.), Começam as provações 3 III Começam as provações (cont.) 4 III, IV Começam as provações (cont.), 5 Veremos quem vence IV Veremos quem vence (cont.) 6 V Luta aberta 7
Data 18/12/1883 19/12/1883 20/12/1883 21/12/1883 22/12/1883 23/12/1883 24/12/1883
Na organização do romance, há um pequeno clímax no capítulo V, “Luta aberta”, quando o marido tenta, sem sucesso, invadir o quarto da esposa. Esta ação desencadeará a primeira virada na narrativa, fazendo o casal partir em viagem para a Europa. Apesar da relevância do tema do casamento, este se concentra quase que totalmente, como um problema, nesta primeira parte. Nos capítulos seguintes, pesará, sobretudo, o esforço sonhador de Filomena tentando transformar o marido, que será bem-sucedido, e seu desejo de aventuras e sensações. O casamento entre os dois, uma vez consolidado, é considerado como fato dado. A partir daí resta a Filomena tentar transformar o marido que já tem. Neste sentido, o romance é conservador, já que o casamento nunca chega a ser questionado enquanto instituição. Isto serve como argumento contra a inversão. Qual seria a função da discussão matrimonial dentro deste romance? Possivelmente, o desejo do autor de moralizar o casamento no Brasil imperial. Neste sentido, não se trata de acabar com o casamento ou com a dominação da mulher em sentido amplo. Por isso, nos termos de hoje, ele não poderia ser considerado feminista ou progressista. Deve-se notar que os romances franceses citados são todos centrados essencialmente no casamento. É este o problema central e principal. M. Dupont tem
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como problema o casamento forçado de Eugénie com Dupont; o problema é resolvido com a morte de Dupont e o casamento entre Eugénie e Adolphe. Mlle. Giraud tem como problema o casamento “não concretizado” de Adrien e Paule; tenta-se resolvê-lo com a “correção” da homossexualidade. Ao final, tem-se o arrependimento da mocinha e uma tragédia. Em Filomena Borges, este problema se concentra na primeira parte, nestes cinco primeiros capítulos, para, em seguida, ser substituído por outros, que veremos a seguir. O fio narrativo, portanto, é a oposição entre os temperamentos antagônicos postos em contato através de um casamento arranjado. Para Fanini, uma das linhas narrativas do romance seria a busca por celebridade;286 defenderemos e apropriaremos, alternativamente, a busca por sensações. 3.3 Aventuras e sensações O casamento foi o grande problema da primeira parte do romance, concentrada nos cinco primeiros capítulos. Depois do casamento forçado, resta a Filomena tentar alterar o marido, ação que ela coloca em curso no capítulo III, cujo título remete justamente ao início do processo: “Começam as provações”. A educação sentimental de João Borges, no entanto, não acontece sem resistência. O marido luta de volta, tentando fazer valer seu direito. Ele usa de artimanhas para invadir o quarto da esposa em dois capítulos cujos nomes também são sugestivos: “Veremos quem vence” (VI) e “Luta aberta” (V). Quando seu plano de tomar a esposa à força falha, Borges, apesar de reconhecer seu direito (“não estou cometendo um crime”), passa a colaborar mais abertamente com Filomena. A virada para a segunda parte do romance se dá com o clímax da violência do marido. Filomena não se submete à violência, e aquele primeiro tipo de narrativa vai por água abaixo. O tom se altera sensivelmente. Saímos do domínio dos romances de casamento franceses e entramos no domínio dos romances de aventura. Iniciam-se, então, as tentativas de Borges de se adequar aos gostos da mulher. Deve-se notar, aqui, que não há só exercício de poder de Filomena sobre Borges; há participação ativa deste na sua própria mudança. As provações do marido, que já haviam se iniciado no Rio, passarão a se intensificar na primeira viagem do casal. 286
FANINI, Angela. op. cit. p. 134.
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Eles devem ir a Portugal para receber o título que Borges encomendara, a pedido da esposa, e estendem o passeio por outras partes da Europa. Esta primeira viagem é a solução para o primeiro problema intransponível do romance: as vias legais e as vias violentas não servirão para Borges, então resta a ele jogar conforme as regras da esposa. A viagem os leva para sítios marcantes dos ideais de Filomena, a Itália de Nápoles, Veneza e Gênova. Até chegarem a este objetivo, eles passam pela França, Suíça, Mônaco, Nice, em uma narrativa muito rápida. Ao chegar a Nápoles, a esposa sonhadora descobre que nada era como em sua imaginação, uma quebra total de expectativa:
Não obstante, a romantica senhora soffreu uma triste decepção ao saltar na desejada cidade. Não era o seu Napoles o que tinha defronte dos olhos, não o reconhecia; faltava-lhe fosse o que fosse – um certo pittoresco, um certo encanto, que ella, por mais que procurasse, não encontrava alli. - Não! Definitivamente não era aquelle o Napoles de seus sonhos! O que ella via defronte de si era uma população maltrapilha e desordeira, que a acotovelava grosseiramente, obrigando-a a segurarse ao braço do marido, o qual, por mais de uma vez, esteve a cahir com os encontrões que recebia de todos os lados. - Safa! Gritou o Borges, tonto – Assim nem a praia do peixe! Sobre o cáes e nas longas ruas agitadas, que vão a Chiaja, a Santa Luzia, à rua de Toledo, ao forte de Sant’Elmo – o mesmo formigar, o mesmo borborinho impertinente e grosseiro. E que confusão de pescadores, camponeses, frades, mercadores, garotos nús e lazarones de todos os feitios e de todas as cores. - Isto parece uma cidade de doudos! Observou Philomena ao marido – isto nunca foi Napoles! E aquella multidão irrequieta parecia justamente um bando enorme de doudos, que iam e vinham em vertigens, empurrando-se uns aos outros, mettendo-se pelas pernas dos estrangeiros, invadindo-lhes a bolsa e as algibeiras com olhares de ganancia, e, às vezes, com os dedos. Vendedores d’agua, de fructas e de peixe, passabem a gritar como perdidos; burros carregados de legume seguiam a trote, chocalhando guisos barulhentos; transeuntes de todos os matizes sociaes, conversavam e gesticulavam agitadamente. E carruagens a galope cortam as ruas em varias direcções, n’um estardalhaço febril de matracas, ferragens e campainhas. E tudo, até as casas, as arvores e as pedras da rua, parece gritar, mover-se, espolinhar-se n’um frenezi estrepitoso e sem tregoas. Philomena declarou que estava roubada: - Qual! Pois aquillo era lá Napoles possivel! Bem longe estava de ser o Napoles que ella queria – o seu rico Napoles! – Aquelle era um Napoles de segunda mão! Um Napoles pulha! – Antes não tivesse lá ido! Mil vezes antes!
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Que lhe mostrassem as belas scenas napolitanas, que ella vira em pequena nas lytographias coloridas! Que lhe apontassem os bem conhecidos e muito pittorescos pescadores napolitanos, com as suas calezones, a perna de fóra, a sua facha e o seu gorro vermelho, o seu amoleto ao pescoço.287
Esta “Primeira desilusão”, título do capítulo VI, ocasiona uma alteração na alma de Filomena. Ela descobre que deve preparar suas próprias aventuras, o que fará deste trecho até o final do romance:
E um grande vacuo abriu-se nas suas aspirações; um de seus sonhos acabava de esphacelar-se como uma nuvem dissolvida pelo vento. E Philomena, desde que se convenceu de que, se quizesse a comoção e a aventura, tinha de preparal-as por suas próprias mãos, cahiu n’um estado sombrio de atonia e desanimo.288
Com o apoio do marido, este estado deixará de ser sombrio e passará a ser o motor do restante do romance. Somos levados, então, a partir dessa consciência, para dentro de um folhetim rocambolesco. O autor, ao incutir na personagem essa percepção, arma a sequência do romance e prepara a paródia e a piada, presentes nos próximos acontecimentos da viagem. O primeiro deles é um clichê dos folhetins e dos romances de sensação, o rapto. O próprio recurso de intitular um capítulo com esta referência é um chamariz importante (o capítulo VII se chama “O rapto”). No entanto, um leitor habituado aos raptos de mocinhas mais comuns poderia sentir um estranhamento ao ler a seguinte passagem:
Chegado o momento, armou os seus homens; [o estalajadeiro] vestiuse de cocheiro (profissão que exercera por muito tempo); muniu-se de um par de tiros; preparou a bagagem do raptor pela maneira que mais convinha à conjuncutura, isto é, reduzindo-a o melhor que pôde, e metteu-se dentro de um coche apropriado, do qual tomaria a boléa; e, depois de erguer com os outros varios brindes ao Cantonalismo, à Hespanha, à Liberdade; e depois de embolsados os protestos de gratidão, que o Borges lhes apresentava na fórma de moedinhas de ouro, puzeram-se todos a caminho da casa do official, dispostos a derramar a ultima gota de sangue em prol da gloriosa empresa que commettiam. E quem os visse, tão formidaveis nos seus capotes de conspiradores; os calones convictamente puxados sobre a orelha; os gestos 287 288
Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 25/12/1883. p. 1. ed. 359. Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 25/12/1883. p. 1. ed. 359.
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ameaçadores e trágicos; não seria capaz de supor que se tratava de raptar uma donzella, mais que ninguém senhora de seu nariz. Philomena, ébria de prazer com a idéa de ser furtada, palpitante de comoção, fez a trouxa em segredo e retirou-se ao quarto, pretextando incommodos para dissimular os seus projectos de fuga. À meia noite chegava o terrivel grupo dos conspiradores, acompanhando o coche, que devia conduzir o precioso fructo d’aquella empresa delicadissima. Borges separou-se de seus companheiros, mudo e sombrio. E, com o passo firme, a mão armada, penetrou resolutamente no jardim da casa em que estava a mulher. Não foi difficil, porque felizmente, o portão se achava apenas encostado. Ao chegar debaixo de certa janella, tirou da algibeira um pequeno assobio de metal e apitou devagarinho. A janella abriu-se logo, e, ao doce clarão da lua, apareceu o vulto romantico de Philomena, toda de branco, os cabelos soltos, os braços nús.289
O segmento do rapto não será tão fácil, permitindo à cena certa emoção. Apesar da sensação, destaca-se o caráter cômico e irônico. A forma como é conduzida a descrição faz piada com a narrativa folhetinesca e sensacional. Do mesmo modo, o autor faz pilhéria da repercussão dos acontecimentos nos jornais após a primeira tentativa frustrada de rapto por Borges:
O facto ganhou logo circulação no bairro, e, à falta de esclarecimentos verdadeiros, inventou-se toda a sorte de legendas. Uns juravam que Philomena não era mulher, e sim um grande sonso, que namoriscava a esposa do official e usara d’aquelle expediente para ir ter com ella; outros afiançavam que a tal estrangeira era pura e simplesmente uma cocote, sequiosa por chamar sobre si a attenção do publico; outros lhe attribuiam intenções politicas. Este notara que ella trazia no corpo as mais belas joias do mundo, que lhe vira nas orelhas e no collo brilhantes de um tamanho fabuloso; aquelle protestava que nunca ouvira uma voz tão estranha e todavia tão melodiosa como a d’ella; est’outro dava a sua palavra de honra em como a tal sujeitinha era de uma formosura e de uma graça, que nem as virgenes de Murillo. Porém a opinião mais seguida rezava que a encantadora e mysteriosa estrangeira era nada menos do que a fila de um rico negociante portuguez, de cuja companhia desertara por não querer casar com um fidalgo velho e debochado que o pai lhe impunha. Pelo menos era esta a versão que mais se compadecia com o que noticiavam a esse respeito os jornaes do dia seguinte. “GRANDE ATTENTADO CRIMINAL, dizia um. – A noche a las doce poco mas o menos, un malhechor de los muchos que infelizmente infectam esta hermosa ciudad, intentó introducirse por la ventana de uma de nuestras mas acreditadas fondas, com el fin perverso de raptar uma joven estrangera que alli residia esperando sua anciano 289
Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 26/12/1883. p. 1. ed. 360.
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padre, hidalgo portuguez, cuyo nombre nos abstenemos de publicar por motivos faciles de compreender. La bella nina, que casi fue victima de tanta atrocidad, hallase, a sua ruego, depositada em casa del oficial S. D. José Muñoz, hasta que el competente juiz decida de sua destino. Debido al delicado estado de natural sobre-excitacion nerviosa, la señorita aludida aun no ho podido explicar los pormenores del crimen del cual fue objeto. El malvado desapareció, pero la policia emplea todos los médios para alcarzarlo y cremos que sus esfuersos no seran defraudados. A medida que nos lleguem nuevos pormenores los transmitiremos a nuestros lectores.” Outros jornaes iam mais longe. Um chegou a fazer engenhosas considerações sobre o facto estranho de se achar “desacompanhada n’um hotel já por si suspeito (o dono do hotel era federalista e o jornal apoiava o governo) uma senhora tão distincta, tão bem tratada e com todas as apparencias de donzella! Não estaria ahi a ponta de algum importante enigma politico?... Em épocas de revolução é preciso desconfiar de tudo e de todos!...” Estas noticias excitaram a curiosidade geral. Não faltou quem deixasse de enxergar no mysterioso homem da escada um malhechor ordinario, como diziam algumas folhas, e attribruir-lhe fins de grande alcance politico.290
Utilizando-se desse recurso, Aluísio Azevedo destaca o caráter artificial e falso não só desse tipo de história sensacional (como feito na narrativa do rapto), mas também do próprio romance que ele então publicava nas páginas da Gazeta. A grande publicidade de Filomena Borges forjou opiniões diversas sobre quem seria a misteriosa mulher, que era apresentada como real. Afinal, aquela mulher virou romance, e dentro deste ela recebeu novas e diversas apreciações. Há um ponto em comum na discussão que é bastante relevante: a preocupação com o corpo e com a moral desta mulher. Seria ela uma cocotte interessada em atenção? O que faria uma senhora distinta desacompanhada num hotel? A preocupação repete a discussão recuperada no primeiro capítulo deste trabalho, e vai tornar a aparecer no correr do romance. O réclame volta a ser usado como recurso narrativo nos capítulos XVII e XVIII, articulando o ar de realismo, a paródia e o diálogo com jornal:
O botocudo intrigava muita gente: - Seria crivel que uma mulher, tão formosa e tão lucida, tivesse por marido aquella besta do Alto Amazonas?!... O monstro seria de facto seu amante, ou ella o conservaria como um simples reclame?!...
290
Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 26/12/1883. p. 1. ed. 360.
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E os commentarios reproduziam-se entre os frequentadores do Cirque d’hiver à proporção que Philomena ia se tornando conhecida e sendo cada vez mais desejada e menos condescendente. [...] Entretanto o nome da original e formosa brazileira derramava-se por Pariz, invadindo as redacções das folhas, os salões, os atteliers, os boulevards, os cafés, as corridas, os foyers de todos os theatros, as mansardas das tristes costureiras e o quinto andar dos magros estudantes. Attribuiram-lhe anecdotas, inventaram-lhe legendas, fizeram-lhe canções e triolets, publicaram-lhe a biographia em pequenas revistas theatraes. E o mundo inteiro a viu, a admirou, em caricaturas, em fotografias, em chrommos, em caixinhas de phosphoros, em bustos de gesso, em nervosos grevins de terre cuite. E por toda a parte appareceram chapéus, fazendas, penteados à PHILOMENA BORGES. Seu nome serviu de titulo a casas de negocio; suas toillettes serviram de modelo; suas phrases foram repetidas, publicadas, decoradas, traduzidas em todas as linguas. Quando ella terminou a longa excursão que fez pelo norte da Europa, possuia em dinheiro e em joias mais do que o necessario para viver tranquillamente o resto de sua vida.291
Discussão semelhante à do folhetim seguinte:
Philomena não se enganara quanto à previsão do enthusiasmo que havia de causar no Rio de Janeiro. Bastou constar que vinha ahi a famosa cancionista, tão apreciada de Pariz, para que toda a cidade se mostrasse tomada de uma loucura instantanea. E desde então até a sua chegada foi ella a ordem do dia; não se fallava n’outra cousa. Esperavam-n’a contando os minutos: um sussurro unisono de elogios inhalava da opinião publica, sem que ninguem pudesse explicar a causa de semelhante alacridade. Afinal chegou. Que frenesi! Todos queriam ser o primeiro a vel-a. O caes Pharoux parecia diminuir sob a multidão que o coalhava. Viam-se enormes grupos, esparsos, por aqui e por alli, galgando a muralha, invadindo as lanchas e os escaleres. Nas ruas faziam-se commentarios a respeito da baroneza de Itassú; os jornaes pregavam na parede noticias a respeito d’ella; vendia-se o seu retrato em todas as proporções; inventavam-se biografias. Uns affirmavam que Philomena Borges era um modelo de virtudes; outros que era uma grande velhaca. Este jurava que a vira já muito por baixo, n’um hotel; aquelle dizia que ella sempre fora riquíssima, e que só trabalhava em publico por amor à arte. Aqui afiançavam havel-a visto em tal época, dansar uma habanera em casa de tal figurão; logo alli, negavam: - Que não! que essa Philomena era outra, fallecida havia já cousa de cinco annos, e que esta, a nova, a do theatro, não tinha absolutamente nada de commum com a outra, com a tal 291
Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 06/01/1884. p. 1. ed. 6.
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Philomena, cujos bailes, de tão luxuosas e originaes, ainda se conservavam na memoria de toda a gente! E as discussões reproduziam-se, cada qual mais disparatada.292
Para além do diálogo com o próprio processo de publicidade do romance, Aluísio Azevedo estabelece um debate com o métier dos jornais, ao apresentar a divergência de opiniões e relacioná-la diretamente a interesses políticos. Deste modo, o autor quase que antecipa a recepção que o romance teria na imprensa, dividida principalmente por suas diretrizes políticas. As passagens também evidenciam a porosidade entre o folhetim e o restante do jornal. Os assuntos se repetem, dialogam, e a própria forma de escrever é muito semelhante nos dois espaços. O jornal é matriz do romance, tanto no conteúdo como na forma.
Depois das passagens extraordinárias pela Itália (desilusão) e Espanha (sensação), a viagem do casal segue seu curso. Eles hospedam-se nas ruínas de um castelo em Córdoba, onde acontece a primeira identificação entre Filomena e João Borges, apesar da contrariedade com a qual o último vê sua situação: “Mas no fundo sentia-se muito mal à vontade e extremamente contrariado. – Por que não havia sua mulher de ser como as outras?...”293 (“Enfim”, capítulo VIII) Os caprichos de Filomena, de fato, só se multiplicam e amplificam, levando-os a excursionar pelo Oriente e além: Egito (onde ela se torna filósofa!), Babilônia (na qual só encontram o deserto, nenhum vestígio de civilização antiga), Grécia, Índia, Arábia, África (estas passagens quase que só enumeradas). Ao lembrar-se da Grécia, Filomena cobra:
- E, custasse o que custasse, ele havia de fazer um almoço no tesouro de Atréus como fizera seu padrinho!... - Que padrinho é esse? Perguntou o Borges. - D. Pedro II, o nosso Imperador. - Ah!... Coitada! Mal então sabia ela a influência que o monarca estava destinado a exercer na sua vida!...294 292
Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 07/01/1884. p. 1. ed. 7. AZEVEDO, Aluísio. Aluísio Azevedo: ficção completa em dois volumes. (Org. Orna Messer Levin). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005. v. 1. p. 1054. Pelo fato das edições n. 361 e 362 da Gazeta de Noticias não estarem disponíveis nem na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, nem no Arquivo Edgard Leuenroth da Unicamp, citamos as passagens correspondentes da obra completa. 294 Ibidem. p. 1059. 293
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Se as passagens e os capítulos anteriores estabeleciam um diálogo com a imprensa, muito evidente para os leitores da época, a viagem do casal pelo Oriente estabelecerá um novo diálogo com as viagens do imperador. Mesmo se não houvesse referência expressa ao padrinho, os leitores já teriam suficientes elementos para pensar numa relação; com a declaração aberta da personagem, fica clara a intenção do autor. O “almoço no tesouro de Atréus” havia acontecido de fato. Ele foi noticiado pela Gazeta de Notícias de 6 de fevereiro de 1877: “Depois foi visitar o tesouro d’Atreu onde foi servido o jantar. Esta refeição no meio d’aquella sombra mysteriosa, em um edificio subterraneo que tem proximamente 40 seculos de existencia interessou immenso o imperador.”295 O narrador aproveita a passagem para chamar atenção para a futura aparição de D. Pedro II no romance. Como não costuma fazer esse tipo de intervenção, o trecho fica ainda mais destacado. Essas referências a D. Pedro II seriam muito evidentes para os leitores da época. As viagens do imperador eram um tema muito em voga nas décadas de 1870 e 1880, período em que ele realizou três grandes viagens para o exterior. A primeira, em 1871, num contexto complicado de intensificação da crítica à escravidão e à monarquia, levou D. Pedro II à Europa e ao Oriente Médio, motivando piadas dos portugueses Eça de Queirós e Rafael Bordalo Pinheiro. Em 1876, sob pretexto de doença da imperatriz, D. Pedro II seguiu para sua segunda viagem, agora incluindo também destinos americanos (Estados Unidos, Canadá). A primeira viagem durou dez meses; a segunda, dezoito. Apesar do tempo prolongado das viagens e das sucessivas piadas que elas inspiraram, o monarca manteve sua postura discreta e burguesa, de negar-se por vezes a
295
Gazeta de Noticias, 06/02/1877. p. 1. ed. 36. As fontes eram os jornais franceses, e os acontecimentos teriam se dado no dia 25 de novembro. Ainda na mesma notícia, reportava-se: “Em seguida foi vêr o museu de antiguidades pre-historicas, formado pelos resultados das escavações do doutor e admirou principalmente uma enorme massa de representações de Juno com fórmas diversas. Foi depois a Argus e a Napolis, voltou outra vez por Mycenas para tornar a vêr o museu e as escavações, e seguiu por Corintho para Athenas.” A forma de descrever a viagem é muito semelhante à narrativa de Aluísio Azevedo. Também é significativa a passagem do imperador por Nápoles no mesmo trecho, traçando outra relação com Filomena Borges. O imperador estaria visitando as escavações do Dr. Schliemann. O interesse arqueológico da heroína azevediana, despertado justamente neste período de sua viagem, aproxima a afilhada ficcional do padrinho real.
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um tratamento diferenciado, o que, segundo Lilia Schwarcz, auxiliava na construção da sua imagem pública.296
Jean-Yves Mérian argumenta que as viagens de Filomena seriam “fruto da imaginação” do autor, pura e simplesmente:
Em Filomena Borges, Aluísio Azevedo conduz em dois momentos sua heroína através das loucas aventuras na Europa e no Oriente Médio. A vida agitada na Espanha, na Itália e na França, que se estende durante quase dez anos, é puro fruto da imaginação do romancista. Poderia ter inventado outras aventuras em função das necessidades do jornal onde foi publicado o romance. No entanto, descobriremos que a Europa não representava apenas o cenário das aventuras de uma heroína megalomaníaca. Para Aluísio Azevedo foi uma ocasião para dar sua opinião sobre os estereotipados romances-folhetins europeus e desmistificar, aos olhos de suas leitoras, Paris, Nápoles e Andaluzia... esses lugares tão idealizados pela imprensa da época.297
O pesquisador francês está preocupado, na passagem, em defender que o ponto comum entre os folhetins de Azevedo é o mundo burguês, não o exotismo. Ainda assim, não nos parece adequada a afirmação. A atuação de Azevedo como caricaturista provará que as viagens não são provenientes simplesmente de sua imaginação. Na caricatura a seguir, o maranhense, que ainda não havia se tornado romancista, fez uma paródia das “aventuras do Barão de Munckausen” relacionando-as às viagens do imperador:
Figura 42: “As aventuras do Barão de Munckausen por Aluizio Azevedo”
296
SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 297 MÉRIAN, Jean-Yves. p. 433-4.
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Aluísio Azevedo, O mequetrefe, 06/07/1877. p. 2. ed. 105.
Os primeiros quadros mostram um imperador enfastiado e sonhador:
[1] O Barão é un petit bon homme, chic, terno, sabe calçar um par de luvas e envergar uma casaca [2] O Barão começou de sentir o fastio dos homens que não têm o que fazer, uns tedios ideais que só se curão com uma boa viagem. [3] A imaginação do senhor Barão era já um vulcão: Noutes hoffmannicas, dias à Theophile Gautier; só via fantasmas, diabos e mulheres. Estava quasi doudo. [4] Em delirio o nosso heroe lembrava certo heroe de certa lenda hespanhola. [5] Resolveu viajar para se distrahir, e saudoso despede-se da pátria, abraça os amigos e chora!... Coitado!
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Com Hoffmann e Gautier298 na cabeça e com delírios de Dom Quixote, esta representação do imperador se assemelha muito à personagem Filomena Borges. Ao contrário da heroína, no entanto, o monarca deve pensar no que dizer em sua viagem:
[6] Em caminho entra o Barão comsigo em serias meditacoes: Que diabo hei-de eu contar nas terras que vou correr? [7] Optima idéa!!! = Araras = Aquillo que os franceses chamão = canards = [8] Uma pequena desharmonia entre os dous viajantes ia pondo em risco os preciosos dias do nosso Barão.
Na segunda linha dos quadrinhos, o imperador encontra-se nos Estados Unidos, destino marcante de sua segunda viagem real, partindo rapidamente para a Inglaterra após uma tradução mal sucedida do hino americano:
[9] Ei-lo nos Estados-Unidos, cercado de um bello auditorio, que se diverte a custo da scyencia do Barão, que prova nao ser Belem do Pará a patria de Christo [10] O Barão ouviu um bello hymno nos Estados-Unidos. [11] E quiz traduzil-o.... Forte lastima! E maior assunda. [12] Tão grande que obrigou o pobre Barão a escafeder-se o mais depressa possivel para [13] Inglaterra, onde, curado do susto, entesou-se tanto que se podia confundir com o homem mais teso de que lemos noticia. [14] E com que gosto e eloquencia fasia, pouco tempo depois o nosso Barão, preleccões em inglez? [15] E o chic com que fallava o mais parisiense francez com os cocheiros? Seria só para mostrar-se? [16] Coitado! Os habitos ingleses são muito contagiosos.... [17] E o Barão gostou tanto da Inglaterra que chegou a sacrificar as suas virgens e preciosas barbas.
As piadas se dão em torno da fluência do imperador em várias línguas e da sua erudição, muito questionadas. Na linha seguinte, as desventuras na Inglaterra levam o monarca para a França nas costas de um porco alado (parece cada vez mais difícil acreditar que é a viagem de Filomena Borges que é fruto de pura imaginação):
[18] Finalmente o Barão já não era um homem, era um inglez! [19] Amigo apaixonado da caça, 298
Aluísio Azevedo parodiaria Théophile Gautier em um de seus últimos romances, A mortalha de Alzira, encomendado pela Gazeta de Noticias e publicado sob o pseudônimo Vitor Leal. LEVIN, Orna Messer. Aluísio Azevedo: cadeira 4, ocupante 1(fundador). Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2013. p. 35-6.
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[20] Porem um pouco infeliz!.. Do primeiro tiro morreu o cão, teve o Barão medo de morrer do segundo e... [21] Deixou-se de caçadas; pençou na ida para a bella França [22] E foi. Atravessou o Pas de Callais nas costas de um porco alado. Abençoado porco! [23] Que o levou para junto das diaphanas dançarinas. Ah! parisienses que poserão em dança os miolos do Barão. Está elle abismado, fascinado, está mesmo pelo beiço. [24] Já não é o mesmo Barão! Nada de barbas a ingleza! Venha o bigodinho pintado e chic [25] com que se possa entrar nos bailes carnavalescos e matar de amores meio Pariz
A inaptidão do imperador não se resume aos discursos, mas se estende a outras atividades aristocráticas, como a caça. Em seguida, é questionada aquela imagem de homem sereno:
[26] Está um perfeito crevé! Quem o diria? Um homem tão serio e bem comportado! Enfin! aborreceu-se e [27] foge com uma linda criança, roubada por elle da casa dos paes. O seductor vae com sua victima para [28] Roma, cujas ruinas, cuja morte e decadencia em tudo apparecião aos olhos do Barão como um negro espectro de remorso [29] Por isso que continuou sua viagem sem se quer olhar para traz. [30] E esqueceu o maldito phantasma ao calor sensual das sultanas: Que vidão! Que sultão! E com a cara côr de café para maior illusão. [31] Alem da mania da côr de café teve o Barão a de ser sabio quis ser [32] astrólogo e... Oh! grandiosa idéa!!! o Barão pensa em ir a lua. [33] Applica-se o systema = Julio Verni = O Barão foi a lua!
Há alusão ao descaso com o Brasil, o “maldito phantasma” da decadência que ele encontrou em Roma e que aparece como “espectro de remorso”. A opinião de abandono parece comum, já que D. Pedro II passava então por um segundo período longo de viagem. Interessante que o lugar em que se nota a decadência é justamente a mesma Itália onde Filomena encontrará sua primeira desilusão. Como a afilhada, também o monarca tem mania de ser sábio. Na viagem pelo Oriente, Filomena se interessou pela arqueologia e tornou-se filósofa. Enfim, a mania astrológica do imperador resulta na sua viagem à Lua, inspirada em Julio Verne:
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[34] Onde tomarao-no pelo esperado messias. Pobre Barão! viu-se em um cortado! A iducação da lua não é das melhores e o Barão soffreu tudo [35] Até obrigarão-no a uzar os costumes do paiz, e rasparam-lhe as barbas criadas na Turquia, e lavaram-lhe a cara e vestiram-no de uma especie de pierrot [36] Para consolação encontrou, passeiando pela lua um seu amigo velho [37] O Barão engordou tanto na lua quem nem se mover podia. Engordou até nos miolos! [38] O seu bom amigo, condoendo-se daquelle estado de gordura, soprou-o dentro de uma bolha de sabão. [39] E o Barão no elher [ether?] criou raios e revolucionou o mundo planelario [planetário] [40] Finalmente o gordo cahiu na rua do Ouvidor, com grande pandega dos janotas. Viva o gordo pellado!! [41] Criada nova barba, vestida nova casaca, o que se lucrou com a viagem do Barão? Algumas arrolas de gordura de mª e uns contos de rª de menos
Aluísio Azevedo assinou a caricatura com o nome completo, o que não era comum; seus outros desenhos eram assinados somente com o primeiro nome, enquanto os colegas caricaturistas geralmente usavam uma rubrica. É um ponto importante, porque a publicação de Filomena Borges gerou, como vimos, reações exaltadas e até uma possível censura por parte do próprio imperador. As caricaturas, por sua vez, chegam a ser mais violentas e diretas, mas não suscitaram reações tão fortes. Será que elas suscitavam reações, mas ainda não conseguimos encontra-las? Será que a tiragem e circulação menor das folhas ilustradas resultavam num escândalo de menor alcance do que o de algo publicado na grande Gazeta de Noticias? Será que a ausência da referencia nominal a D. Pedro II isentaria a caricatura de culpa? De todo modo, esta caricatura de Azevedo demonstra que as viagens em Filomena Borges não são, para o autor, recurso sem propósito. Ele articula, deste modo, a história de Filomena à crítica ao Império que ele vem formulando no romance. Ela começa com uma das bases imperiais, o casamento patriarcal, e segue com viagens que ao mesmo passo parodiam romances folhetinescos e sensacionais, muito em voga com o público, e fazem referência crítica à figura do imperador. Apesar da relação entre Filomena e seu padrinho, sugerida pela comparação entre a caricatura acima e o romance, não defenderemos aqui a alegoria, porque não há formalização suficiente para tanto. Por outro lado, a relação com as viagens do imperador politiza as aventuras de Filomena.
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Se pudermos confiar nas anedotas que contam que Aluísio Azevedo desenhava seus romances antes de escrevê-los, seria tentador afirmar que ele desenhou a segunda parte de Filomena Borges nesta caricatura, mas há outros elementos que não podem ser desconsiderados na análise deste trecho do romance. Antes de concluir a discussão da caricatura, é importante destacar que as descrições do imperador dentro do romance se aproximarão de caricaturas:
A gorda figura do imperador, com o seu abdomen saliente, as suas pernas finas, a testa abaulada, os olhos vulgares, causavam-lhe um desgosto profundo. Não lhe podia perdoar aquelle aspecto de bom velho, aquelle ar pacato, aquella proverbial honestidade, aquella expressão moleirona de homem lymphatico e turgido pela vida sedentaria. A voz branda e fanhosa, o ar gibboso de Sua Magestade avultavam no espirito de Philomena como o mais grave attentado que se pudesse oppor às magnificencias da corôa.299
O romance faz parte, assim, dos esforços por desestabilizar a imagem pública do imperador; e, mais uma vez, utiliza-se da comicidade para alcançar seu objetivo, apesar da dubiedade dos efeitos, conforme argumenta Schwarcz:
Graças à liberdade de imprensa o Brasil conheceu uma maneira divertida de fazer críticas políticas sérias. Com efeito, o humor cumpria um duplo papel. De um lado, mesmo que pela gozação, as caricaturas geravam uma certa simpatia com relação a esse governante, retratando a partir de suas fragilidades. Por outro lado, exposto desse modo à chacota pública, D. Pedro e seu sistema como que desmontavam.300
A descrição do imperador ao mesmo tempo desestabiliza sua imagem para o leitor e para Filomena que, desiludida, deve fazer grande esforço para continuar vivendo sua fantasia imperial.
Voltando da primeira viagem, o capítulo X, “De volta à pátria”, apresenta um Borges transformado, inclusive rejeitando a própria pátria.301 O título de Barão de Itassu é conquistado só aqui, o que impede a leitura de que Filomena exigiria o título 299
Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 09/01/1884. p. 1. ed. 9. SCHWARCZ, Lilia. op. cit. p. 424. 301 Fanini defende a infelicidade e o desgosto do casal pelo Brasil, visão que procuro negar. FANINI, Angela. op. cit. A rejeição de Borges não se seguirá, revelando certa inconsistência no romance. 300
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para se entregar ao marido. O baile de máscaras que serviria para comemorar a obtenção do título acaba servindo para mostrar aos leitores a ruína do casal, condição que impulsionará uma nova virada na narrativa. Entre a volta ao Brasil e a revelação da ruína, Borges mostra outras resistências à sua transformação nos desabafos com Barroso. Por outro lado, é justamente no capítulo em que a ruína é revelada que Filomena mostra-se finalmente entregue ao marido. Este trecho do romance se assemelha muito às narrativas de sensação, estudadas por Alessandra El Far em Páginas de sensação. Gênero de maior visibilidade no universo de livros destinados ao “povo”, essas narrativas sensacionais eram constituídas por saídas do cotidiano, emoções imprevisíveis; o caráter sensacional, quando não destacado no próprio título da obra, era evidenciado pelos editores.302 A pesquisadora inclui o romance que ora discutimos nessa categoria:
Esse foi o caso de Filomena Borges (1884), de Aluísio Azevedo, que decidiu trocar seu previsível cotidiano carioca pelos ‘verdadeiros perigos’, pelas ‘fadigas dos desertos arenosos’ e das ‘florestas virgens’, pelas ‘longas noites perdidas nos cumes silenciosos das montanhas’, onde se poderia ouvir o ‘sibilar dos ventos e dos roncos desesperados das feras que têm fome’.303
A fonte em que El Far se apoia é o Jornal do Commercio de 15 de outubro de 1891, em que o romance era anunciado como sensacional. A pesquisadora explica a incursão de Aluísio Azevedo neste ramo literário:
Em busca da preferência desses consumidores, vários literatos brasileiros, adeptos do estilo elegante e detentores de uma fina erudição, chegaram a publicar romances nomeados de ‘sensação’. Por uma repercussão mais acalorada de suas obras, Aluísio Azevedo, por exemplo, deu vida a Filomena Borges (1884), e, segundo a livraria Laemmert, Valentim Magalhães entrou na seara romanesca com Flor de sangue (1897). No entanto, foram os homens de letras de menor visibilidade e desacreditados pelos críticos que souberam criar enredos ‘ao gosto do povo’, alcançando, com isso, uma repercussão bastante incomum para os padrões da época.304
302
EL FAR, Alessandra. op. cit. p. 113-114. Ibidem. p. 116. A fonte que a autora utiliza para afirmar que o romance era anunciado como de “sensação” é o Jornal do Commercio de 15/10/1891 (nota 9). 304 Ibidem. p. 122. 303
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É evidente que, para Azevedo, seria interessante conquistar a repercussão e esse público amplo, mas talvez ele não tenha tido habilidade para cativar como gostaria. Além das emoções imprevisíveis e do esforço editorial, sem deixar de considerar o interesse pela polêmica, outros pontos aproximam Filomena Borges da narrativa de sensação. O casamento é tematizado da mesma maneira, propondo uma moral que procura fortalecer os laços entre marido e esposa para evitar o adultério, os filhos bastardos, a prostituição, as “anomalias sexuais”, evitando assim o enfraquecimento da estrutura familiar. A defesa do maior respeito ao indivíduo e suas escolhas, permitindo o casamento por qualidades individuais, não por caprichos ou ambições, é traço comum entre os romances de sensação, Filomena Borges, M. Dupont, Mlle. Giraud. O rapto, as privações, as misérias, a existência infeliz, o ritmo incessante da narrativa,305 todos estão presentes no romance de Aluísio Azevedo. No entanto, o romance não segue a sequência comum aos romances de sensação: ordem, desordem, restabelecimento (moral). Não há, em nenhum momento, uma quebra da “ordem”; há diversas “fugas” em busca de sensações novas. A excursão pela Europa e pelo Oriente é um fato novo e extraordinário, longe da rotina... Fosse como as narrativas de sensação, Filomena Borges teria um restabelecimento moral da ordem, que nunca chega nem a estar exatamente estabelecida, sem que, por outro lado, haja inversão ou carnavalização. A esposa e o marido buscam sensações, aventuras, e é nesse sentido que aproximamos o romance azevediano daquele tipo de narrativa.306 3.4 Cenas políticas As “Novas torturas” do capítulo XIII revelam uma nova problemática no romance: não se trata mais do marido vencer as provações que a esposa lhe impõe; trata-se do casal vencer as (mais duras) provações da vida, com a nova condição de miséria. Não é coincidência, portanto, que este seja o título do capítulo seguinte, em que se narra a vida dos Borges em São Paulo, onde João terá de batalhar para ganhar o
305
Ibidem. p. 178. Ainda dentro da discussão de Filomena Borges como narrativa quixotesca de aventuras e sensações, recomendamos a análise de Yasmin Nadaf em Rodapé das miscelâneas. A autora fez uma comparação entre o romance de Aluísio Azevedo e Tartarin de Tarascon, de Alphonse Daudet, publicadas em sequência no folhetim do periódico mato-grossense O Republicano. Cf. NADAF, Yasmin Jamil. Rodapé das miscelâneas. O folhetim nos jornais do Mato Grosso (séculos XIX e XX). Rio de Janeiro: 7Letras, 2002. p. 162-164.
306
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sustento da família. (capítulo XIV, “Miséria”) Borges revela, aqui, sua opinião sobre o dinheiro:
Então o Borges, pela primeira vez, comprehendeu que a pureza de seu caracter e a bondade de seu coração não eram dotes naturaes, mas uma simples resultante das circumstancias felizes de sua vida. - Ah! dinheiro! dinheiro! pensou elle, tu és o unico que nos dás o direito de sermos bons, generosos e abençoados pelos nossos semelhantes! tu és o unico que conquistas a sympathia e o respeito do mundo inteiro! Tudo me perdoavam – a estupidez, a brutalidade, a loucura, a fraqueza, até os crimes, se os cometesse; só não me perodam já te não possuir. Ó meu chorado companheiro de tanto tempo! Que importa que do nosso dinheiro não participe ninguem? Que importa que elle só preste ao egoista que o possue, que importa?! O dono será sempre “um homem honesto!” Terá quem o defenda, quem o elogie, quem o ame, quem o proteja, quem lhe offereça e dê aquillo que elle não pede e do que não precisa. “Não ter onde cahir morto”. Isto é que ninguem perdoa! Furta, mata; prostitue-te; mas, se deres a tua mãi o dinheiro que furtaste, serás “um bom filho”; se deres a tua mulher o fructo de tua prostituição, serás “um bom marido” se o deres a tua amante, serás “um fidalgo, um excellente cavalheiro, um homem de bem.” E todos te abençoarão! Terás em redor de ti o acatamento, o sorriso, a lisonja, porque és, ou porque podes ser “bom.” Porque o teu dinheiro vale pelo destino que ha de ter e não pela procedencia que teve! Depois de semelhantes considerações, o Borges sentiu um profundo rancor pelo genero humano e uma pesada indifferença pelo bom cumprimento do dever. - Illusão! tudo illusão!... dizia elle, a sacudira cabeça, sem se lembrar que no meio de toda essa tempestade, o seu amor conjugal, aquillo que elle mais estimava no mundo, havia-se enfolhado e fructescido.307
Fanini defende que Borges seria o porta-voz do autor.308 Apesar de, nesta passagem, João Borges cumprir esta função, ela já havia sido cumprida por Filomena no diálogo do costume bárbaro, por exemplo.309 De acordo com Mérian, o dinheiro é um problema comum nos folhetins de Aluísio Azevedo, em que as personagens vivem um mundo maniqueísta e imoral, entre a fortuna e os infortúnios da riqueza e da ruína. A fala de Borges desmascara esse mundo para o leitor. O novo trecho do romance traz de volta o Urso, cão São Bernardo de Borges, que representa um respiro de alívio e esperança. O casal e seu cão entram para o 307
Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 03/01/1884. p. 1. ed. 3. FANINI, Angela. op. cit. p. 137. 309 A voz do autor ficará mais evidente na última parte do romance, utilizando-se do narrador, de João e de Filomena para expressar seus pontos de vista. 308
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circo, onde obtêm uma escalada de sucessos até conquistar a própria companhia e excursionar pelo Brasil, pela América Latina e depois pela Europa. Mais uma vez chamamos atenção aos títulos dos capítulos: “Coisas extraordinárias”, em seguida “Segredos de bastidor”, deixando clara a noção de sensação e as referências ao teatro. É o teatro, portanto, que leva o casal à sua segunda viagem pela Europa. Ele já havia aparecido no início do romance, como um dos primeiros caprichos de Filomena. Esta gostaria de montar um teatrinho na própria casa, o que arma o pretexto para a comicidade do “triângulo amoroso” Barradinhas, ator metido a galã, Filomena e João Borges. A esposa atuaria como par romântico do ator, que tentava se aproveitar da situação para obter alguma coisa; João, que suspeitava desde o princípio, segue o sedutor e surpreende-o no momento em que ele se aproveitaria de estar só com Filomena. Mais à frente, quando o teatro volta novamente ao romance, permite situações mais diversas. Para Fanini, o trecho da excursão teatral se relaciona com uma discussão azevediana sobre centro e periferia, nacional e estrangeiro.310 Parece, por outro lado, que o que ele faz é uma provocação autoirônica sobre o teatro em geral. O romancista participava muito ativamente da vida teatral carioca, a princípio elaborando os cenários, depois escrevendo e adaptando as próprias peças. Suas preocupações teatrais eram semelhantes às suas preocupações romanescas. Azevedo reclamava do público nacional, que, segundo ele, preferiria os gêneros ligeiros aos moralizantes:
[...] procurei demonstrar que a nossa unica manifestação possivel no theatro é a opereta ou a magica. E isso mesmo, acrescentemos agora, porque a opereta e a magica, sobre serem coisa já inventada por outros, é de todos os generos theatraes o mais ligeiro e o que requer do publico menos esforços de attenção. [...] Para não gostar destas coisas é preciso primeiramente não gostar da opereta, e nós, nós, confessem, meus senhores, nós não gostamos de outra coisa.311
Não é sem sentido que o casal Borges alcance estrondoso sucesso através de gêneros baixos e populares. Eles não são artistas trágicos ou dramáticos; não são nem
310 311
FANINI, Angela. op. cit. p. 130-133. Aluísio Azevedo, “Litteratura – Nosso theatro”, Gazeta da Tarde, 08/11/1882. p. 2. ed. 256.
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artistas propriamente cômicos. Sua companhia é circense, e apresenta-se primeiro numa “barraca de saltimbancos”, ainda no Brasil; depois, na França, em circos e vaudevilles. Sua cena não é nada elaborada. Borges, figura hercúlea, luta com o Urso disfarçado de urso. Filomena desfila seus dotes naturais em danças sensuais. Novamente, o corpo da personagem feminina fica em evidência, causando sensação e escândalo por onde passa. É uma tirada de Azevedo: para agradar a esse público, música, dança, violência, sensualidade, aspectos que, contraditoriamente ou não, ele sempre dominou em sua arte, como adaptador de opereta, escritor de comédias, romancista etc.
Nesta segunda passagem pela Europa, Filomena e o marido encontrarão nos bastidores um monarca: D. Luís de Portugal. Vimos que a aparição indecorosa de D. Pedro II incomodou muito os críticos coetâneos; é igualmente importante notar que eles não mantiveram o mesmo critério para a presença de D. Luís. Esta incoerência parece comprovar nosso argumento de que a repercussão foi eminentemente política, não moral. Segue a cena:
N’essa noite, já no theatro, quando ella se preparava para entrar em scena e o marido mettia no pescoço o seu barulhento aiucará feito de buzios e dentes de animaes ferozes, foram sorprehendidos por uma voz que, da porta do camarim, dizia no melhor portuguez: - É permittido comprimentar a formosa brazileira?... - Pois não! respondeu esta, ordenando à criada que fizesse entrar a visita na pequena sala proxima. E, quando appareceu, já prompta: - Oh! o duque!... Não sabia que V. Ex. fallava portuguez, e com tanta perfeição!... - Pois se eu sou portuguez... - Ah! fez ella, considerando o typo louro que tinha diante de si. Dir-se-hia um alemão. Era baixo e gordo, vermelho, bigode e barba à Cavagnac, cabelos de um amarello frio e secco. - Estimo bastante, acrescentou a brasileira, poder agradecer na sua propria lingua o rico presente que o Sr. duque... - Não fallemos n’isso, interrompeu elle – tratemos de outra qualquer cousa!... De seu esplendido paiz, por exemplo. - O Sr. duque conhece o Brazil?... - Não. Nunca fui ao Brazil, mas tenho lá muitos parentes e amigos. - Parentes? Na côrte ou nas províncias? Na côrte. [sem travessão mesmo. Vai armando o parentesco!] - Ah! Então devo conhecer algum d’elles. Eu sou filha da côrte. - É inutil insistirmos; não conhece com certeza... é uma familia de estrangeiros... [interessante colocar nesses termos – “familia de estrangeiros”]
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- Ah! balbuciou Philomena, tornando-se mais cortez, porque havia já suspeitado quem vinha a ser aquella incognita visita. – É elle, com certeza... pensou de si para si. Mas n’esse momento o Borges acabava de entrar na pequena sala e, no seu papel de botocudo, foi assentar-se a um canto, sem mais ceremonias. - Tomo a liberdade de apresentar-lhe meu marido, disse Philomena, mostrando-o ao duque. O selvagem monologou alguns sons gutturaes e sem sentido e encarou a visita, franzindo as sobrancelhas. - Ainda não conseguiu se familiarisar com as línguas estranhas, explicou Philomena. E, percebendo no duque um gesto de contrariedade: - Pode conversar à vontade em portuguez; Burucululu não entenderá uma palavra do que ouvir. Só eu posso me fazer comprehender por elle, graças ao pouco que sei do Tupy. - Mas como foi a senhora, tão bonita e tão delicada, descobrir esse monstro para seu marido?... quiz saber o fidalgo. - Devo-lhe a vida!... respondeu Philomena – Se não fosse esse bravo indigena, teria sido devorada pelos seus compatriotas n’uma lamentavel excursão que fiz ao Alto Amazonas. - Ah! E sabe o que o levou a salval-a? - O amor, creio eu. Este pobre monstro viu-me de longe entre os seus companheiros, correu-me aos pés, ajoelhou-se, em seguida tomou a minha defesa, matou os que me queriam fazer mal, carregou commigo para um logar seguro, e desde esse instante segue-me como um cão. É de suppor que me tomasse por alguma divindade!... Pelo menos, assim me leva a crer o respeito religioso que elle me tributa! - Ah! - De resto, não tem absoluta consciencia do que faz – é uma especie de bicho! Não sabe a razão por que apparece em publico; não comprehende nada do que o cerca. Uma occasião, perguntei-lhe, por curiosidade, que effeito lhe produzia Pariz e, pela resposta que deu, conclui que o tolo se suppõe n’uma existencia de além tumulo, julgase no paraizo de sua religião. - Como assim? Perguntou o duque, intrigado. Philomena apressou-se a explicar: - É que, na occasião de defender-me de seus companheiros, Borucululu ficou muito ferido e, ao chegar a Manáus, accometteramlhe febres tão fortes, que o fizeram delirar tres dias consecutivos. Pois bem, o toleirão imagina que sucumbiu à molestia e que voou logo às mansões sideraes, onde eu represento para elle a venerada carnação do poder altissimo e da suprema divindade! - De sorte que elle se julga já falecido?... Perguntou o duque com interesse. - Em plena bem aventurança eterna. Julga-se uma alma do outro mundo. Pariz, que é o eden terrestre dos estrangeiros, para elle, coitado! é nada menos que o paraiso celeste! - É singular! - Singular e extremamente commodo para mim, proseguiu a brasileira, gozando do effeito que as suas palavras produziam na visita – Imagine o Sr. Duque que o facto de meu marido julgar-se morto faz com que elle não tenha commigo a menor exigencia e submeta-se
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humildemente ao que eu lhe ordene. Entretanto é o meu guarda, é a minha defesa; quando o sinto ao meu lado, não tenho a receiar qualquer aggressão, venha ella de um leão das salas ou de um leão das florestas! - É muito singular! repisou o duque, reconsiderando com um ar de pasmo a grossa e taciturna figura do Borges acocorado ao canto da sala. Sim, senhora! Está garantida! - Ah! perfeitamente garantida! Já vê o Sr. Duque que eu não poderia encontrar melhor marido em parte alguma do mundo! - Elle então não consente que lhe toquem sequer com o dedo?... perguntou o louro, fazendo um ar de desgosto. - Experimente! disse Philomena, faça que me vai prender o braço. O duque estendeu a sua mão calçada de luva da Escocia e fez que ia tocar no carnudo braço da artista. O Borges ergueu-se logo e, movendo lentamente a cabeça para os lados, com movimentos de urso velho, principiou a rondar em torno dos dous, farejando. - E se eu me arriscasse a dar-lhe um abraço?... perguntou o duque. - Deus o defenda! Nem é bom pensar n’isso! Burucululu seria capaz de estrangulal-o no mesmo instante! Não queira experimentar, que eu não respondo pelas consequencias! [é genial, sedução e ameaça...] - E não havia meio de estar um momento em sua companhia, sem a presença d’esta alimaria!? - Pode haver, mas é muito arriscado! Elle tem um faro mais subtil do que o de qualquer cão de caça!... Iria descobrir-me no inferno, se no inferno eu tivesse me escondido! - E porque não se desfaz a senhora de semelhante bruto?! No fim de contas deve ser aborrecido supportar eternamente este orangotango. - Se lhe estou dizendo, Sr. Duque, que o demonio do bicho tem faro! - Era fazer presente d’elle ao museu zootechnico de França, em nome do Imperador de seu paiz, que é um sabio. E com isso a senhora ainda prestaria um relevante servico à biologia. Se quiser eu me encarrego de remettel-o à comissão que recebe os donativos. [grande piada com sapiência do imperador e com insapiência de todos, que não percebem a farsa!] - Não! disse Philomena, por ora não. Mais tarde pode ser que aceite o seu offerecimento. - Pois, quando quizer, estou às suas ordens, acrescentou a ilustre visita, erguendo-se e tomando a mão de Philomena para depor um beijo. Mas o Borges afastou-o da mulher, mettendo-se entre os dous grosseiramente. - Este animal não me deixa por o pé em ramo verde! pensou o fidalgo, sahindo contrariado, depois de cortejar a brasileira. Borges acompanhou-o até fóra da porta e, ao voltar para junto da mulher, disse-lhe esta: - Conheces? - Quem? Este typo? Não! - Oh! o D. Luiz, homem! - Que D. Luiz? - O D. Luiz de Portugal. - Ora essa! - Pois é elle!
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- Queira Deus que estas brincadeiras não te venham a dar na cabeça!... observou o botocudo. - Deixa-te de receios! Meu selvagem – e vem d’ahi, que já deu o segundo signal para principiar o espectaculo! (Continúa.)312
Mas já não estava o espetáculo em pleno curso? A cena, além da comicidade, mostra D. Luís de maneira indecorosa, cortejando uma mulher na frente de seu marido. Seu “parente” no Brasil, D. Pedro II, aparecerá de maneira menos ativa e ainda assim mais incômoda para os críticos da época. Impossível tratar de monarcas e decoro sem reconstituir a polêmica de A flor-de-lis. A opereta foi adaptada pelos irmãos Azevedo a partir do original francês Le droit du seigneur, com libreto de Boucheron e Burani e música de Vasseur. Em outubro de 1882, um ano antes da “questão Filomena Borges” na Gazeta de Noticias, os comediógrafos brasileiros conseguiram fazer passar sua versão da opereta pela censura do Conservatório Dramático. O título francês já apontava para o que encontraremos no enredo: um “senhor” fazendo valer seu “direito” de passar a noite com uma mulher, “costume bárbaro” da Idade Média, para ficar com os termos da personagem Filomena. Os autores brasileiros fizeram algumas alterações no texto de modo a adequá-lo à censura e ao público nacionais.313 O primeiro ato apresenta as duas linhas centrais da ação: o Alcaide-mor deseja encontrar uma mulher que possa parir seu herdeiro (além da esposa, claro, apresentada como infértil), e o Capitão-general procura por seu filho, que ele não vê desde o nascimento há vinte anos. O Físico-mor, interesseiro, vai servindo a quem lhe fizer a proposta mais vantajosa: a princípio trabalha para o Alcaide, depois para a esposa deste, a Condessa, depois para o Capitão. A solução inicial para o problema dos 312
Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 05/01/1884. p. 1. ed. 5. Infelizmente não tivemos acesso ao texto original para uma comparação. Há um relato na imprensa que permite compreender melhor a “pequena historia” d’A flor-de-lis: “Quando, ha alguns annos, a opera-comica franceza foi submetida à aprovação do nosso Conservatorio dramatico, D. Censura, frazindo o sobr’olho, recusou-a redondamente como imoral, e nunca mais se falou n’isso. Só ultimamente é que, para aproveitar a partitura de Leon Vasseur, os dois irmãos Azevedo decidiram, evitando os pontos prohibidos do libreto francez, escrever o libreto óra se representando que o Conservatorio approvou sem lhe achar espinha. Ha, entretanto as espinhas, ao que parece; e o facto único de S. M. o imperador se retirar do espectaculo com toda a familia e comitiva, no fim do primeiro acto, só póde ser explicado por uma forte divergencia entre a corôa e D. Censura. Consta-me, de resto, que D. Censura completamente ausente na primeira representação, foi hontem ao Sant’Anna, de tesoura em punho e disposta a cortar tudo quanto possa ter irritado a petuitaria imperial.” Daniel J, “Chronica theatral”, Revista Illustrada, 28/10/1882. p. 6. ed. 320. A partir da segunda representação, o texto da peça teria sido alterado. 313
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dois “nobres” é Catarina: ela é a mulher ideal para o Alcaide, e o Capitão acredita que ela possa ser seu filho por ter visto, marcada em sua espádua, uma flor; seu filho teria uma flor-de-lis nas costas. Catarina, ingênua, está inclinada a aceitar a proposta do Alcaide, sem entendê-la por completo. Seu noivo, Beija-flor, tenta dissuadi-la, sem explicar, entretanto, a razão. Para o público já ficou claro: o Alcaide quer se aproveitar sexualmente da mocinha; a intenção verdadeira do Capitão ainda é nebulosa. O segundo ato se passa numa festa no palácio, onde o Alcaide tentará tomar Catarina de seu noivo à força. A Condessa, por um lado, e o Capitão, por outro, impedirão que o plano do tirano tenha sucesso. O jovem casal consegue fugir, mas uma grande confusão é armada. O terceiro ato, cujo cenário é uma floresta, traz o amor do jovem casal consumado religiosa e carnalmente (fora de cena, decerto). O Capitão, encontrando-se finalmente com a Condessa, descobre que Catarina não pode ser seu filho, pois ele era homem, tinha vinte anos e uma flor-de-lis gravada, não um girassol, como a mocinha, que tinha apenas dezesseis anos. É ela quem junta os pontos, identificando Beija-flor como o filho do caso adúltero entre o Capitão e a Condessa! O rapaz seria açoitado a mando do Alcaide, mas o castigo é interrompido pelo Físico, que reconhece a flor-de-lis.314 Ainda mais interessante que o enredo da peça é o acontecimento ocasionado pela sua primeira representação. Estreando no Theatro Sant’Anna em 27 de outubro de 1882, o espetáculo contou com a ilustre presença da família real. Ao final do primeiro ato, o cortejo imperial abandonaria o teatro, gerando grande repercussão. O motivo seria a falta de decoro da peça (ou uma enxaqueca do imperador). Alguns órgãos da imprensa defendiam os irmãos Azevedo, sem muita convicção, enquanto outros os recriminavam. O próprio Aluísio, irmão mais novo e então menos conhecido, é quem responde à polêmica na Gazeta da Tarde:
Voltando porem à Flor de Liz, vemo-nos forçados a confessar que de todo o clamor levantado em redor della, só conseguimos tirar uma conclusão – e que a maioria da nossa imprensa e a maioria de nosso publico são essencialmente monarchistas. A peça não seria reputada immoral si o imperador não se lembrasse de sahir do theatro no meio do espetaculo.315 314
AZEVEDO, Artur. A flor-de-lis. In: Teatro de Artur Azevedo II. Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Artes Cênicas, 1985. Clássicos do Teatro Brasileiro 8. 315 Aluísio Azevedo, “Litteratura – A flor de liz”, Gazeta da Tarde, 03/11/1882. p. 2. ed. 252.
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Mas, afinal, o que teria incomodado tanto D. Pedro II naquela peça? Teria o monarca identificado uma relação entre a sua figura e a do Alcaide? Haveria na peça referências às suas amantes? Um leitor que não conheça a peça pode perguntar: o que há nela de indecoroso? Abusos sexuais de um “nobre”, insinuações ao ato sexual de um casal, adultério. As cenas finais do primeiro ato mostram, no palco, o Alcaide agarrando a inocente Catarina, que nada entende:
O ALCAIDE-MOR - Meu doce amor, dizer desejo Em que consiste emprego tal. Curiosa estás, pelo que vejo... Acho isso muito natural. (Aproximando-se [dela.) Olha: eu te aperto esta mãozinha... CATARINA ‘Stá bem. Depois? O ALCAIDE-MOR E esta cintura... CATARINA ‘Stá bem. Depois? O ALCAIDE-MOR - Oh, que inocente criatura! [...] [Neste corte, a entrada de Beija-Flor inicia a cena final] O ALCAIDE-MOR (À parte.) – Eu nunca vi tanto candor. CATARINA ‘Stá bem. Depois? O ALCAIDE-MOR (À parte.) – Quanto ela é pura! [(Alto.) Chega-te a mim, não tenhas [medo... Tranqüila estás, que não me [excedo... CATARINA Se assim é preciso... O ALCAIDE-MOR É, pois não! CATARINA Sou toda ouvidos. O ALCAIDE-MOR Coração! [O diálogo se estende mais um pouco, até que Beija-Flor consegue “deitar água na fervura” do Alcaide invocando o coro para um viva]316
Essa figura de “velho babão” é retomada em Filomena Borges. É assim que o imperador é descrito, é assim que ele atua, apesar das muitas atenuações. Como o Alcaide, o imperador, no romance azevediano, utiliza-se do poder em troca de possíveis favores sexuais. D. Pedro II, no entanto, não chega a ter no romance ares de vilão como tem a sua contrapartida teatral; ele não explora ou abusa direta e arbitrariamente da afilhada. O que acontece em Filomena Borges é quase o contrário. A mocinha, agora nada inocente, é quem identifica a fraqueza do monarca e utiliza-se dela para seu 316
AZEVEDO, Artur. op. cit. p. 126-7.
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próprio bem. O interesse de Filomena no padrinho não é sexual, mas político; o interesse do Alcaide em Catarina é eminentemente sexual. Poderia, deste modo, Filomena Borges ser entendido como extensão ou resposta à polêmica de A flor-de-lis? Uma fofoca da época permite pensar que sim:
Ainda ha poucos dias a Sra. Helena Cavallier, que se beneficia no dia 15 com a primeira do Mulato de Aluizio Azevedo, foi pedir à sua magestade que honrasse esse espetaculo com a sua presença, ao que o imperador se recusou. Foi assaz commentada essa recusa à uma conhecida atriz, de um favor que o imperador concede quasi que constantemente à quem o pede. Uns attribuiram-n’a à reminiscencias da Flôr de Liz e da Philomena Borges. Disseram outros ter havido imperial confusão e sua magestade ter julgado que o Mulato de Aluizio Azevedo era o mesmo Mulato, já não me lembro de quem, que aqui foi representado ha tempos e que.. Seja como for, está sua magestade no direito de recusar-se à assistir a um espetaculo e suponho que bem fortes foram as razões que actuaram no espirito do imperador. Mas uma cousa que sua magestade não pode e não deve recusar – é o concurso de sua influencia para o verdadeiro desenvolvimento do theatro nacional.317
Já citado anteriormente, este texto ganha novo sentido. Pelo visto não era absurdo considerar que o imperador teria ficado ofendido com os textos de nobreza indecorosa de Aluísio Azevedo. Filomena Borges e A flor-de-liz, dentro de seu contexto de circulação e produção, politizam-se, desconstruindo a imagem oficial de D. Pedro II junto das caricaturas e de outras intervenções de cunho cômico. Uma associação com um galã, ainda mais “fora de época”, afetava a persona pública do monarca: “Apesar de ter tido uma vida amorosa bastante repleta, a imprensa e os relatos não exploram essa imagem, insistindo, ao contrário, no retrato de um monarca sereno, moralmente elevado, acima das questões mundanas, ou seja, a negação formal de seu pai.”318 Fica a sugestão de um rei amante, mundano, carnal. Não é por acaso, portanto, que a “Suprema exigencia”, o último capricho de Filomena, seja uma incursão pela política. Ela impulsionará o casal para a fase final do romance, que se passa em Petrópolis. A cidade de Pedro havia sido visitada e estudada
317
D. Quixote, “Atravéz da semana”, Gazeta da Tarde, 13/10/1884. p.1. ed. 239. Esse pseudônimo é marcante: seria o próprio Aluísio Azevedo ou algum amigo? Não pudemos descobrir. 318 SCHWARCZ, Lilia Moritz. op. cit. p. 383.
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por Aluísio Azevedo enquanto escrevia o romance, se pudermos nos fiar na palavra de Artur Azevedo.319 As impressões de cada membro do casal sobre Petrópolis são bastante distintas:
E no Borges as primeiras impressões foram justamente o contrario de tudo isso. Espirito pratico, e por demais terrenho, não se cegou logo pelas apparencias do mimalho de Sua Magestade e tratou de julgar Petropolis friamente, com todo o peso do seu bom senso grosseiro e burguez. O que ele notou, em primeiro logar, foi o engano em que alli viviam todos, suppondo luzir com o reflexo que vinha do monarcha; quando aliás Sua Magestade, astro sem brilho proprio, não podia emprestal-o a quem quer que fosse. Emquanto a mulher se extasiava defronte dos jardins, das fontes e dos rios, elle, o Borges, notava que Petropolis, com os seus decrepitos laudemios, com as suas sesmarias, os seus emphyteuses, os seus canons, os seus fóros territoriais, continuava a ser uma fazenda, uma feitoria do imperador, e que era bastante tocar em qualquer cousa, que lá estivesse, para se sentir logo, a dois passos, o olho vigilante e reprehensivo do proprietario, do dono. Por toda a parte, em tudo, o mesmo prestigio do “Senhor”. A mesma impertinencia do “Amo.”320
João Borges, para além de “porta-voz” do autor, torna-se um cronista. Sua análise de Petrópolis e seu fastio com o imperador e seu séquito são violentos e inversamente proporcionais ao gosto da esposa pela cidade, pelo poder, pelo imperador.321 Neste capítulo XIX, “Petropolis”, joga-se com a diferença entre as impressões de João e de Filomena. No entanto, o narrador descredita a última, fantasiosa, com a imaginação dissimulando fatos, dando mais peso à crítica. Apesar disso, a crítica também é coloca na voz de Filomena, que tenta convencer o marido que sua nomeação não é absurda e deve ser aceita:
- Mas, João, vem cá, repara que estás no Brazil e lembra-te de que aqui os empregos de confiança do governo, sejam eles de que genero for, nada têm que ver com as aptidões individuaes de quem os vai desempenhar! Que diabo! Não vês ahi todos os dias ministros da 319
V. Capítulo 1. Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 08/01/1884. p. 1. ed. 8. 321 No fim deste folhetim, surge a primeira referência a negros no romance de maneira bastante violenta: “- Isto, quando a mim, classificou elle finalmente, em confidencia com o Guterres – cheira-me assim a mulata fôrra com pretenções a cocotte.” Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 08/01/1884. p. 1. ed. 8. 320
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guerra, que não conhecem patavina do militarismo? Não vês que os ministros da agricultura não sabem para que lado fica a lavoura; que o ministro do imperio, a cargo de quem está a instrucção publica, já faz muito quando sabe ler e escrever correctamente?... Não vês que o ministro da fazenda não pesca nada de economia politica; que o da pasta de estrangeiros não entende cousa alguma de politica internacional! E assim o da marinha! e assim todos eles! e assim todo o mundo! Oh!322
As posições políticas de Borges vão sendo conquistadas com os conselhos de Guterres323 e com os favores do imperador, que em pouco tempo é tido como amante da afilhada: “Espalhou-se logo o boato de que o imperador estava deveras apaixonado pela irresistivel afilhada e que esta lhe correspondia de um modo escandaloso.”324 Boatos à parte, é o narrador que coloca Filomena em posição de destaque:
Não obstante, quatro mezes depois d’isso, a condessa de Itassu era já o melhor empenho para o Sr. D. Pedro de Alcantara. Pretendente que se apadrinhasse com ella podia ter a certeza de obter o que desejasse. De suas mãosinhas aristocraticas sahiram nomeações importantissimas, licenças escandalosas, remoções, transferencias, accessos de empregos, privilegios de companhias, concessões de engenhos centraes. Muita questão importante resolveu-se com um simples de seus sorrisos.325
Em seguida, as folhas críticas e satíricas atacam a relação:
Mas, em compensação, os jornaes illustrados, os orgãos republicanos e algumas folhas diarias surgiam pejados de satyras, de pilherias e de caricaturas contra elle, a mulher e o monarcha. Deram-lhe alcunhas ridiculas, inventaram-lhe biographias vergonhosas, crivaram-o de triolets insultuosos. Affirmou-se que Philomena Borges era de facto a imperatriz do Brazil; que ella, se não reinava sobre a nação, reinava sobre o monarcha; que sua magestade, tomado de amores, deixava fazer de si o que bem quizesse a condessinha de Itassú, e que esta, abusando da posição, pintava o diabo com o pobre paiz, erguia e desmanchava gabinetes, com o mesmo capricho com que armava e desfazia os seus penteados e... os do marido.326
322
Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 10/01/1884. p. 3. ed. 10. “- Em politica, meu amigo, disse o outro – verdadeiro é só aquillo que nos convem.” Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 09/01/1884. p. 1. ed. 9. 324 Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 10/01/1884. p. 3. ed. 10. 325 Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 11/01/1884. p. 1. ed. 11. 326 Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 11/01/1884. p. 1. ed. 11. 323
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Mas o narrador faz questão de tirar a culpa do imperador:
O Imperador!... Pobre homem! bem longe estava elle de merecer as accusações que lhe faziam a respeito da afilhada! Que estivesse impressionado pela gentil creatura, pode ser, mas é que o diabrete arranjava as cousas de tal geito, que o bom monarcha não conseguia ir alem de seus desejos, se é que os tinha. Por mais esforços que empregasse, se os empregava, fugia-lhe por entre os dedos, com desculpas banaes, como por exemplo a da circumstancia de ser sua afilhada, deixando o coração do soberano ainda mais abrasado e ancioso, o que é possivel, porque desgraçadamente os imperadores são feitos da mesma carne fresca e titilante de que se formam as outras creaturas suceptiveis ao amor..327
O recurso irônico é notável, e contribui para fortalecer a ideia de que o que se tenta fazer é desconstruir a imagem do monarca. Ele seria, afinal, uma pessoa de carne e osso, tão suscetível ao desejo quanto qualquer outro mortal. Mais uma vez o jornal entra no romance como veículo de vozes diferentes, demonstrando um embate ideológico dentro da narrativa.328 Tanto é que Borges, no folhetim anterior, fora descrito como republicano e tipo do povo, um republicano por excelência:
Burguez completo, amigo sincero do povo, d’onde sahira e onde crescera, livre por habito e por principio, conhecendo o governo apenas pelos seus impostos, pelas suas exigencias, pelas suas oppressões, era, sem nunca o ter dito, talvez até sem o saber, um inimigo natural do throno, um typo perfeito do revolucionario moderno, um verdadeiro, um puro republicano. [...] Desde pequeno habituado ao trabalho livre, sem jamais precisar do governo, a quem sempre considerou um parasyta importuno, educado por um pai da mesma fórma trabalhador e independente, Borges nunca se lembro de pôr a sua consciencia em leilão [...]329
O trecho demonstra, agora na voz do narrador, como as opiniões políticas do próprio autor são canalizadas em diferentes momentos, através de diferentes recursos, compondo o romance também como sátira política.
327
Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 11/01/1884. p. 1. ed. 11. A questão ideológica em Filomena Borges foi discutida por Ribeiro. Cf. RIBEIRO, Luís Filipe. op. cit. 329 Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 10/01/1884. p. 3. ed. 10. 328
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De repente, finaliza-se o capítulo da seguinte maneira: “Cassou-se imediatamente a nomeação do conde, e, à noite, quando este teve occasião de ver o amo, notou-lhe na physionomia um certo ar de má vontade. [parágrafo] Lá se ia por agua abaixo o prestigio do Borges e mais da mulher.”330 A virada é tão repentina quanto relacionada às recusas de Filomena ao imperador. No penúltimo capítulo, “Dissolvem-se as ultimas illusões”,331 os Borges perderam totalmente o apadrinhamento, o “empenho”, perdendo assim todo o poder:
Mas, ai! A linda ambiciosa contava dispor ainda do unico elemento com que lhe era dado realisar tudo isso – a proteção do padrinho. Não desconfiava ainda, a visionaria! que já não tinha às suas ordens essa vontade maravilhosa, que tudo determina no Brazil. E, ao reconhecer os primeiros symptomas de sua impotencia, teve impetos de estrangular-se. Todavia procurou illudir-se. Não desanimou logo e, a despeito dos protestos do marido, que parecia cada vez mais afflicto, reuniu todo o seu empenho em um ultimo esforço, a ver se conseguia reatar o sonho, sem ter de polluir o seu contracto de fidelidade conjugal.332
Ou seja, nunca passou pela cabeça de Filomena trair o marido; ela jogava com o poder de sedução e conduzia deste modo o imperador, que, ao não ver atendida sua vontade (no caso, sexual), desfaz os laços. A história é muito semelhante, nesse sentido, à “proposta indecente” da peça adaptada pelos irmãos Azevedo. A proposta de D. Pedro II fica nas entrelinhas: se tivesse Filomena, as vantagens prosseguiriam; como ela se recusa a “poluir o contrato”, cessam as proteções e está traçada a falência final do casal. Desfeita a proteção, acaba tudo. O fim da proteção é anterior à queda do Gabinete, o que enfraquece a leitura de correspondência.333 Não se pode afirmar com certeza que a queda de Filomena marca o fim de uma era, seja do romantismo, seja do conservadorismo da elite imperial. Do modo como funciona a política dentro do próprio romance, o casal poderia continuar atuando normalmente na política com o novo
330
Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 11/01/1884. p. 1. ed. 11. A virada dos capítulos é ruim, apressada. 332 Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 11/01/1884. p. 1. ed. 11. 333 A leitura da nova ordem é de Fanini. FANINI, Angela. op. cit. p. 123. 331
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gabinete. O real problema foi perder a proteção do imperador.334 Por mais sedutora que possa parecer a leitura de correspondência, ela não se aplicaria, portanto. O apadrinhamento é mais importante no romance, já que é essa prática que garante o casamento de Filomena, depois sua ascensão social; quando o apadrinhamento se perde, a coisa acaba mal.335 A crítica política de Filomena Borges, portanto, se desdobra em três partes: 1) crítica ao casamento; 2) desconstrução da imagem do imperador; 3) crítica da política imperial: apadrinhamento, poder moderador. Esta dimensão política crítica do romance, esquecida durante boa parte do século XX, foi levantada por Mérian, seguido por Ribeiro e Fanini, que também politizaram a obra, e agora conta com a contribuição deste trabalho. É uma maneira adequada de leitura, e um dos motivos pelos quais o romance foi provavelmente concebido. Ele se relaciona, assim, com as opiniões políticas da Gazeta. A coluna “Cousas Politicas”, especializada no assunto dentro daquele periódico, atinha-se a comentários noticiosos sobre as atividades políticas e legislativas imperiais. Coube às outras sessões do jornal a crítica mais aberta, posto que cômica, das instituições imperiais. Falava-se mais livremente nesses outros espaços, mais literários.336 Pelo menos era o que esperavam Aluísio Azevedo e Ferreira de Araújo, que acabaram decepcionados. Fosse nas “Balas de estalo”, fosse no “Folhetim”, espaço ao qual pertenceu principalmente Filomena Borges, mas ao qual a obra não se ateve, como visto nos capítulos anteriores. Seja visto como exagero,337 positividade338 ou originalidade,339 o posicionamento político através da literatura foi a opção que tomou Aluísio Azevedo para sua luta política.
334
O próprio 5 de janeiro de 1879, a queda do Gabinete, é referido no romance como “talvez precipitado justamente pelo soberano”. Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 12/01/1884. p. 1. ed. 12. 335 Nesse sentido, podemos voltar a relacionar Filomena Borges e o teatro. Os críticos da época cobravam o auxílio de D. Pedro II, o que motiva o texto da fofoca de D. Quixote na Gazeta da Tarde, citado anteriormente. 336 RAMOS, Ana Flávia Cernic. op. cit. V. Capítulo 2 daquela dissertação, “‘Cousas Políticas’ e ‘Balas de Estalo’”. 337 MÉRIAN, Jean-Yves. op. cit. p. 466-7. 338 FANINI, Angela. op. cit. 339 RIBEIRO, Luís Filipe. op. cit. p. 11.
154
3.5 O fim de Filomena Por fim, Filomena é abatida por uma melancolia intensa que a levará à morte. Como D. Quixote, o que mata a heroína é a desilusão. É comum na literatura de Aluísio Azevedo a morte das protagonistas, como é comum nas obras que relacionamos com Filomena Borges: Emma, Luísa, Paule. Dois aspectos são muito relevantes. O primeiro é que, apesar da morte das mocinhas ser comum,340 o final de Filomena Borges não agradou aos críticos da época. O segundo é que, se a atuação de Filomena é tão escandalosa e criticada, sua “punição” ou rendição não a isentam da culpa que os críticos lhe impõem. A resignação da personagem é marcante: “- Não, meu amigo, não! Eu irei para onde quiseres; tenho obrigação de acompanhar-te.... respondeu Philomena em voz baixa, fazendo esforços para conter as lagrimas.”341 Filomena não se limita a ceder às vontades do marido, desculpando-se de modo enfático:
- Meu amigo, disse Philomena com difficuldade, derramando sobre o marido um supplicante olhar de extrema ternura, como se lhe quizesse pedir perdão – Meu bom amigo, sinto que morro, e só me punge a idéa do bem que te não fiz e do muito que merecias!... [...] - Obrigada! muito obrigada, meu generoso e honrado amigo! De tal modo te habituaste às minhas chimeras e a minha loucura, que não pódes acreditar que eu tenha um momento lucido antes de morrer. [...] - Só tu és bom!... dizia arquejando – só tu mereces todas as bençãos do céu!... Como eu te adoro e como eu te amo meu...342
Para uma senhora de vontade tão forte, de tantos sonhos e de imaginação tão fértil, a morte por uma só desilusão parece mesmo não fazer sentido. É o problema de armar todo o romance sobre as fantasias da personagem título: tudo é possível, mas tudo parece falso; caberia qualquer solução, mas muitas seriam ruins. Daí resulta tanto a desarticulação entre as partes, quanto o estranhamento causado pelo desfecho. Devemos considerar, é claro, a possibilidade de Azevedo querer dar mais relevância à desilusão política; o que não isenta, ainda assim, o final de sua marca apressada e mal articulada.
340
Apontado por Ribeiro como “imprimatur típico do gênero”. RIBEIRO, Luís Filipe. op. cit. p. 19. Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 12/01/1884. p. 1. ed. 12. 342 Aluísio Azevedo, “Philomena Borges”, Gazeta de Noticias, 13/01/1884. p. 3. ed. 13. 341
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Tabela 5 - segunda parte, primeira viagem Folhetim Capítulo(s) Título(s) VI Primeira desillusão 8 VII O rapto 9 VII, VIII O rapto (cont.), Emfim [ED. FALTANTE] 10 IX Vôos altos [ED. FALTANTE] 11 X De volta a pátria 12 XI Qual dos dous maridos será o mais infeliz?... (cont.) 13 XI, XII Qual dos dous maridos será o mais infeliz?... (cont.), 14 Amor de Philomena XII, XIII Amor de Philomena (cont.), Novas torturas 15
Data 25/12/1883 26/12/1883 27/12/1883 28/12/1883 29/12/1883 30/12/1883 31/12/1883 01/01/1884
Tabela 6 - segunda parte, segunda viagem Folhetim Capítulo(s) Título(s) XIII, XIV Novas torturas (cont.), Miséria 16 XIV Miséria (cont.) 17 XV Coisas extraordinárias 18 XVI Segredos de bastidor 19 XVII Suprema exigência 20
Data 02/01/1884 03/01/1884 04/01/1884 05/01/1884 06/01/1884
Tabela 7 - terceira parte - Sátira política Folhetim Capítulo(s) Título(s) XVIII Celebridades 21 XVIII, XIX Celebridades (cont.), Petropolis 22 XIX, XX Petropolis (cont.), Volta-se à dansa 23 XX Volta-se à dansa (cont.) 24 XXI, XXII Torniquetes, Dissolvem-se as ultimas illusões 25 XXII, Dissolvem-se as ultimas illusões (cont.), 26 XXIII Paquetá XXIII Paquetá (conclusão) 27
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Data 07/01/1884 08/01/1884 09/01/1884 10/01/1884 11/01/1884 12/01/1884 13/01/1884
Conclusão Filomena Borges nos parece, hoje, desarticulado. Talvez isso pudesse servir como elogio, consideradas as contribuições e inovações do romance modernista. Mas não é. Desarticulação, no caso desse romance, seria tida como defeito de composição. Não seria possível pensar, por outro lado, que, como romance, Filomena Borges foi composto da mesma maneira que o jornal, canalizando diferentes vozes, opiniões, ideais, notícias, concepções sobre os mais variados temas, unidos pela atualidade? E que, se pudéssemos pensar desta maneira, o romance poderia ter se utilizado dos mesmos recursos que o jornal que lhe serviu de veículo, de base e de matriz? Como a Gazeta de Noticias, Filomena Borges discute os temas coetâneos de maneira cômica, focalizando a crítica ao império e às suas bases em meio a uma discussão literária. A desarticulação do romance pode ser, nesse sentido, nada mais que a própria forma de sua articulação, que segue o modelo de um jornal. O jornal é, por excelência, montado a partir de fragmentos.343 Vimos, nos periódicos, o esforço coletivo para a construção da personagem Filomena Borges, um lance publicitário a princípio elaborado pela Gazeta de Noticias, que saiu de controle e foi apropriado por outros periódicos e para outros fins, muito ligados ao comércio. O processo parece ter chamado atenção razoável dos leitores e possíveis consumidores da época. No entanto, isso conspirou contra o romance. Seu reclame criou uma enorme expectativa, que, para infelicidade de Aluísio Azevedo, ele não soube atender. O insucesso comercial do romance deveu-se, em muito, a este aspecto; e o insucesso de crítica também esteve a ele relacionado. Os críticos coetâneos leram o romance tomando por base e levando em conta a construção coletiva da personagem, convencidos ou confundidos pelas diversas possibilidades que a mulher misteriosa tinha na imprensa. Aqui, outro dos motivos para o fracasso: a personagem que aparecia nos periódicos poderia ter resultado mais interessante que a personagem do romance. A mulher sedutora, vendida no jornal, não teria sido suficientemente sexualizada no romance? O escândalo que se ligava à sua imagem não teria tido o curso esperado na narrativa? O aproveitamento político da heroína teria incomodado mais o público geral que as folhas ligadas ao Império? 343
THÉRENTY, Marie-Ève. La Littérature au Quotidien: Poétiques journalistiques au XIXe siècle. Paris: Éditions du Seuil, 2007. p. 89.
157
Nos termos do próprio escritor maranhense, podemos pensar as diferenças entre a expectativa do público e da crítica. O público esperaria um folhetim para diversão; o autor entregou uma narrativa híbrida, 1) com o problema do casamento à francesa, 2) as viagens e aventuras à moda de sensação e 3) uma sátira política, muito ligada à busca por sensação e às referências indecorosas. A crítica esperaria um romance sério, naturalista; o autor entregou uma mistura entre cômico e político, parodiando os recursos folhetinescos e sensacionais para satirizar o Império. A expectativa sobre Filomena Borges deve também ser considerada. Esperar-se-ia uma personagem extraordinária, sensual, misteriosa; mas Azevedo entregou uma senhora, apesar de sedutora, séria, sem escândalo e sexualidade explícita. Por que, afinal, o romance não teria agradado? Por ter frustrado todas as grandes expectativas? Por ter explicitado mais a política que o apelo sexual? Parece que sim.
Nossa crítica, partindo da reconstituição histórica que fizemos e das contribuições das leituras mais recentes, procurou apresentar outra alternativa de leitura, demonstrando a relação entre Filomena Borges e a crítica política de Aluísio Azevedo e da Gazeta de Noticias. Não é de se estranhar que o leitor atual não encontre nele outro chamariz senão o divertimento; seu sentido político se perdeu com o tempo. A essência desse romance, como a do jornal que lhe serviu de suporte, é efêmera. É interessante que os atores envolvidos na publicação tenham optado pela literatura para desmoralizar o imperador. Isso mostra que a literatura servia, também, como campo para o debate de ideias. A sátira política partia da conjunção de dois projetos de mudança da ordem política, de Aluísio Azevedo e da Gazeta; a opção pela mensagem cômica, acessível, apresenta a ligação inegável. Agora, lido no jornal, o romance faz sentido; para o leitor atual que tenha, por acaso, tentado ler o romance sem esse suporte histórico, a narrativa talvez parecesse ininteligível.
As trocas entre a linguagem literária e a linguagem própria do jornal, os modos de escrever e intervir da Gazeta, puderam ser bastante evidenciadas pelo estudo de Filomena Borges. Os recursos de escrita ficaram bastante claros nas comparações feitas no Capítulo 3, mas já estavam postos desde o princípio, na composição coletiva
158
da figura Filomena Borges. A intervenção se estendeu do casamento à imagem do imperador, passando pelo teatro, enfim, constituindo-se como crítica ao Império. A leitura do romance no jornal permitiu perceber o sentido da sátira política, que pretendia contribuir para a mudança da ordem política através de uma mensagem folhetinesca, popular, cômica. Conciliaram-se, deste modo, os projetos da Gazeta e de Aluísio Azevedo.
O romance não durou, portanto, pois seu valor era menos literário, mais político e comercial.
O que procuramos fazer foi uma história cultural desse romance, tratando a literatura em termos mais gerais e levando em consideração a grande relevância da imprensa na literatura do período; evitamos, deste modo, a tradição de se pensar através do cânone, recuperando o contexto de produção e circulação da maneira mais completa possível.
Resta, por fim, uma questão. Por que, nas edições em livro, o autor não alterou a obra, como fez com os folhetins anteriores (Mistérios da Tijuca e Memórias de um condenado)? Por achá-la ruim, indigna, ou por achar que ela havia cumprido seu papel? Dedicá-la a Ferreira de Araújo mostrava uma divisão de paternidade/autoria? É possível. As tabelas a seguir possibilitam a comparação entre os folhetins e a primeira edição em livro:
Tabela 8 – Divisão do romance Filomena Borges Folhetim* Capítulo(s) Título(s) I Flores de Laranjeira 1 II O ferrolho 2 II, III O ferrolho (cont.), Começam as provações 3 III Começam as provações (cont.) 4 III, IV Começam as provações (cont.), Veremos quem 5 vence IV Veremos quem vence (cont.) 6 V Luta aberta 7 VI Primeira desillusão 8
159
Data Parte** 18/12/1883 1 19/12/1883 20/12/1883 21/12/1883 22/12/1883 23/12/1883 24/12/1883 25/12/1883
2
9 10 11 12 13 14
VII VII, VIII IX X XI XI, XII
O rapto O rapto (cont.), Emfim [ED. FALTANTE]*** Vôos altos [ED. FALTANTE]*** De volta a patria Qual dos dous maridos será o mais infeliz?... (cont.) Qual dos dous maridos será o mais infeliz?... (cont.), Amor de Philomena Amor de Philomena (cont.), Novas torturas Novas torturas (cont.), Miséria Miséria (cont.) Coisas extraordinarias Segredos de bastidor Suprema exigencia Celebridades Celebridades (cont.), Petropolis Petropolis (cont.), Volta-se à dansa Volta-se à dansa (cont.) Torniquetes, Dissolvem-se as ultimas illusões Dissolvem-se as ultimas illusões (cont.), Paquetá
26/12/1883 27/12/1883 28/12/1883 29/12/1883 30/12/1883 31/12/1883
XII, XIII 01/01/1884 XIII, XIV 02/01/1884 XIV 03/01/1884 XV 04/01/1884 XVI 05/01/1884 XVII 06/01/1884 XVIII 07/01/1884 XVIII, XIX 08/01/1884 XIX, XX 09/01/1884 XX 10/01/1884 XXI, XXII 11/01/1884 XXII, 12/01/1884 XXIII XXIII Paquetá (conclusão) 13/01/1884 27 *contagem corrigida **nossa divisão ***indisponíveis na Hemeroteca Digital e no AEL 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26
Tabela 9 – 1ª edição Capítulo
Título
Paginação
I
Flores de laranjeira
5-11
II
O ferrolho
12-17
III
Começam as provações
17-24
IV
Veremos quem vence
24-35
V
*
-
VI
Primeira desillusão
35-39
VII
O rapto
39-44
VIII
Emfim
44-46
IX
Vôos altos
46-49
X
De volta a patria
49-52
XI
Qual dos dous maridos será o 52-59 mais infeliz?....
XII
Amor de Philomena
59-63
XIII
Novas torturas
64-67
XIV
Miseria
67-72
160
3
4
XV
Coisas extraordinarias
72-75
XVI
Segredos de bastidor
75-78
XVII
Suprema exigencia
78-82
XVIII
Celebridades
82-86
XIX
Petropolis
86-90
XX
Volta-se á dansa
90-95
XXI
Torniquetes
95-98
XXII
Dissolvem-se
as
ultimas 98-101
illusões XXIII
Paquetá
101-104
* Atribuímos a falta do capítulo V a uma falha editorial, não a um corte autoral.
Não houve alteração significativa. Nos casos estudados por Milton Marques Júnior, Azevedo não teve apenas a preocupação em remodelar a linguagem; a própria estrutura de capítulos foi bastante alterada. Não foi o caso de Filomena Borges. Respondendo à questão que restou, parece-nos que Aluísio Azevedo concordaria, afinal, que Filomena Borges é obra efêmera, como sua matriz, a “mãe” Gazeta de Noticias, de Ferreira de Araújo. Assim, ela pertenceu a seu tempo, teve seus efeitos, depois se esvaiu, perdendo sentido do mesmo modo que Filomena Borges, sua protagonista, perdeu o sentido ao serem desfeitas suas últimas ilusões.
161
162
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