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José M. Silva Rosa
2004
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Da Ambiguidade da Música na Antiguidade tardia e no Pensamento de Sto. Agostinho∗ José M. Silva Rosa
Índice
Prelúdio Num tempo de subprodutos acústicos, aceitar pensar a música num Colóquio sobre Agostinho e a Cultura Portuguesa é, talvez, um risco que os organizadores deste Encontro correm. Mas esta pode ser também uma oportunidade para, com Agostinho, continuar a tarefa de “dar nome” às coisas, conforme o livro do Génesis, e prolongar nesta circunstância a vibração da palavra originária. Com efeito, também para o Bispo de Hipona, a tarefa da criação reverbera no íntimo diálogo entre a memória, a inteligência e a vontade – verdadeira imago Trinitatis no homem –, acorde perfeito da alma que pode e deve ser intersubjectivamente prolongado na partilha dos espíritos em consonância, qual vibração em que se juntam a lira e a harpa, i.e., segundo a simbologia antiga, a acção e a contemplação. ∗
in Santo Agostinho e a Cultura Portuguesa (Actas das Jornadas da Escola de Formação Teológica de Leigos, 14 e 15 de Fevereiro de 2004), Centro de Formaçãoe e Cultura, Leiria-Fátima, 2004, pp.137-162.
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A música, como se sabe, teve sempre um papel importante nos momentos fundamentais da vida do homem. Os povos primitivos consideravam que os sons constituíam poderosos meios de influência nas relações entre os espíritos e os homens: pela música, aqueles exercem poder sobre estes; mas também os homens, com a mesma música, podem influenciar os entes invisíveis, acalmar os elementos, adormecer as feras. Deste modo, a vibração sonora surgia como instrumento do encantamento eficaz, que podia catalisar ou exorcizar as mais poderosas energias. Acompanhando todas as celebrações humanas, do nascimento até à morte, a música continua a solenizar os ritos, a sacralizar os gestos, a provocar a dança, o júbilo, eventualmente o delírio, mas, de uma maneira ou de outra, é sempre veículo para uma outra modalidade de ser, uma existência possível alternativa à vida quotidiana. Assim, a música acaba por estar presente em toda a vida dos homens, qual forma privilegiada de relação com a realidade, ou não fosse ainda a nossa entrada no mundo acompanhada por um vagido original, choro e sopro genesíacos com que cada um diz à grande sinfonia dos sons do mundo: «eis-me aqui!» E o mais fascinante é essa imensa orquestra responder em coro: «consentimos!» Uma ambiguidade radical, porém, como se disse, marca ab initio toda a música e os sons produzidos pelos homens. Num dos mitos conhecidos mais antigos da humanidade – a Epopeia de Gilgamesh –, conta-se que Anu e Enlil decidiram destruir a humanidade porque esta era barulhenta e buliçosa e impedia o sono dos deuses primordiais1 . Em relatos paralelos mais recentes, encontramos a mesma ambiguidade e também já tentativas de a controlar: tenta-se encontrar os sons apaziguadores e propiciatórios dos deuses e dos espíritos, pois existem músicas que irritam e afugentam e músicas que apaziguam e pacificam – lembremo-nos de David, muito mais tarde, a tocar harpa para acalmar o mau espírito de Saúl2 1
Cf.L’Épopée de Gilgameš. Le grand homme qui ne voulait pas mourir,(traduit de l’akkadien et présenté par Jean Bottéro), Gallimard, Paris, 1992, p.184, n.2. 2 1 Sm 16, 14-23.
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Dando alguns exemplos num e noutro sentido: nas religiões xamânicas, encontramos a música viática do tambor do xamã que o ajuda na sua viagem pelos céus e pelos infernos, em busca da cura para as doenças; na tradição judaica, tínhamos o toque das campainhas na veste do Sumo-Sacerdote, que afastava os maus espíritos e lhe permitia entrar puro e em segurança no Santo dos Santos3 . Este costume, aliás, vinha do Antigo Egipto quando, para afastar os demónios, se costumava abanar o sistro, costume que permanece no ruído dos carnavais, das passagens de ano, ou ainda nos assobios dos potes de barro colocados nas velas dos antigos moinho de vento, para afastar desse desse lugar de tentações os demónios do pão. Em virtude desta ambiguidade latente, a música, enquanto actividade sagrada, mágica, religiosa, pode ser muito perigosa para o homem: quando mal executada, inapropriada à ocasião, não-ritualizada, pode fazê-lo enlouquecer ou levá-lo mesmo à morte. Se o guerreiro realizar mal a cerimónia preparatória da guerra e não permitir que o som da corneta e da tuba afaste dos demónios do medo e convoque os espíritos da coragem, morrerá, sem nenhuma dúvida alguma. Se o xamã não tocar convenientemente o seu tambor e demais instrumentos viáticos corre o risco de ficar louco, para sempre perdido da sua viagem; se Orfeu se enganar e produzir um acorde dissonante será devorado pelas feras amansou com a flauta. Deste modo, uma das ideias sobre a música, muito presente na antiguidade, é a de que ela é um meio eficaz contra os demónios, supondo contudo determinadas disposições e condições morais por parte dos seus destinatários. Mas a música profana, correlativamente, também pode ser o melhor meio que os demónios usam para seduzir a alma. Assim, ou pode assumir um papel indutor e purificador, operando a catarse do espírito e tornando-o digno de ouvir a voz de Deus ou, no pólo oposto, pervertê-lo. 3
Ex 28, 35.
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I – A música, entre a demonização e o enfeitiçamento Esta dupla valência encontra-se também na Antiguidade Clássica. A música – a verdadeira música – não é humana, mas divina (Apolo) ou semidivina (Orfeu). Contudo, como todas as coisas entregues aos homens, também a música foi corrompida pelos mortais. Já Píndaro na segunda Ístmica (II, 11) criticava a música profissionalizada, profanada, exercida por histriões que se faziam pagar caro, ao mesmo tempo que elogiava a sagrada arte da escuta das Musas. Por causa disto, as primeiras Constituições de Esparta e Atenas tinham leis que regulavam minuciosamente a execução musical. Esta distinção entre a música vulgar e instrumental – a que se compra e se vende – e uma música superior, espiritual, era também um tema corrente entre os círculos pitagóricos e socráticos, onde pontificava a figura do célebre músico Dámon. Os pitagóricos, aliás, defendiam que só por causa do hábito e do embotamento dos sentidos, a alma, encarcerada no corpo, não conseguia ouvir a música celestial do kosmos. Mas mediante determinados exercícios físicos e espirituais, era possível levá-la a escutar tal harmonia cósmica e a compreender o princípio musicante de toda a realidade: o número (arithmos) Era este, justamente, o exercício cometido por Platão à Filosofia. No Fédon 61 a, v.g., identificava a arte das Musas com a mais alta filosofia, esse exercício sublime que põe o homem de acordo consigo mesmo, com a lei da cidade e com o kósmos. Ao mesmo tempo, afirmava no Laques 188 d, que o músico perfeito é aquele que criou a mais bela harmonia: o acorde perfeito visto que a música é a gymnasthikê do espírito. Mas criou tal harmonia em si, na sua própria vida, e não em instrumentos de diversão para a turba multa. «Se em boa hora o ritmo e a harmonia penetram na alma, atingem-na até ao fundo e tornam-na verdadeiramente bela.» «A arte do educador por excelência, que re-
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cebeu o nome de Música, é aquela que por meio dos sons insinua a virtude na alma.»4 A música assume assim, como vemos, um evidente alcance ético e soteriológico: ela é terapêutica da alma, uma psycho-iatreia, uma medicina da alma, que a ajuda a libertar-se para o essencial, temas estes bem patentes na República, no Timeu e nas Leis5 . Certos tipos de música – a música ditirâmbica, dionisíaca, orgiástica, como em As Bacantes de Eurípedes –, ao contrário, provocam dissonância, embriaguez, delírio, desordem psíquica e, por isso mesmo, são um perigo terrível para a pólis. O extravasamento das energias interiores deve verter-se, preferencialmente, em cultos olímpicos, ordenados, políticos, i.e., que fomentam a ordem na cidade. Por isso, na República, certos tipos de poesia e de poetas, bem como alguns tipos de música, são erradicados da cidade como se fossem peste, uma vez que são prejudiciais à alma dos jovens e à ordem pública6 . Este alcance político da música – ajudar a formar bons cidadãos – é ainda evidente em Aristóteles, quando consagra parte do livro V da Política ao tema da música. E também aqui está presente a divisão entre a boa e a má músicas: existe a música harmoniosa, que propicia a eudaimonia, i.e., à felicidade, e a música que promove a desordem e a stasis, a revolução. Por isso afirma: a «flauta (aulós) frígia não é política». Curiosamente, Platão dissera o mesmo dos modos musicais jónico e lídio e do chamado modo trenódico (lamentoso, elegíaco). Somente é aconselhável o modo dórico, diz o fundador da Academia, sobretudo se executado no instrumento de Apolo, a lira. Subjacente a estas considerações está o princípio homeopático bem conhecido da medicina antiga: de que o semelhante opera pelo semelhante. Assim, a música imita os vários estados da alma, afirma o Estagirita, tese que será retomada por Aristides Quintiliano, em finais do séc. I da nossa era, como o saber fundamental da retórica e da 4 5 6
República, 401 d; Leis, 673 a. República, 401 d-e, Leis, II, 669 e; 670 a. República, 398 c - 399 e; Leis, 812 c - 813 a.
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oratória. Considera-se que se durante muito tempo ouvirmos uma determinada música, assim na nossa alma serão provocadas as virtudes ou os vícios conformes. A música, portanto, deve aparecer à cabeça de qualquer pedagogia. Os sofistas, aliás, também tinham salientado a importância da música, como uma psicagogia, i.e., a arte de conduzir as almas (Górgias), sobretudo através da bela palavra do retor. Mas os sofistas não tinham visto nisso um meio de conquista de uma superior perfeição espiritual, mas o meio mais eficaz de domínio público e de domesticação urbana, política, jurídica. Afastada destas teorias musicais que viam na música um meio para polir o homem – torná-lo político –, ou visavam a sua perfeição espiritual, a turba multa deleitava-se cada vez mais e apenas nos espectáculos, na música executada, nomeadamente nas representações teatrais, nos festivais e concursos públicos. E isto, curiosamente, quando a pura teoria musical começou a atingir altos níveis de sofisticação e de refinamento, por exemplo, com Aristóxeno de Tarento. Os romanos, tal como em outros aspectos da sua cultura, recolheram muito da teoria musical grega. Se bem que não fossem muito dotados para a música, afirma Théodore Gérold7 , a formação musical entre os romamos, sobretudo a teoria, fazia parte da educação do homo liber. A prática rítmica tinha um lugar especial no âmbito do treino marcial das legiões, do rufar dos tambores, das canções e dos rituais guerreiros. Mas, ao mesmo tempo, os espectáculos públicos urbanos exerciam sobre o povo romano um verdadeiro fascínio e enfeitiçamento. Aliás, alguns dos primeiros Imperadores, como Tibiro, Calígula e Nero, eram eles mesmos cultores das Musas (alguns bem sofríveis, aliás). Mais tarde, Domiciano mandou construir o grande Odéon e instituiu o chamado Concurso capitolino onde, de cinco em cinco anos, havia um certame entre os cantores mais famosos do império. No séc. III da nossa era, Caracala, Heliogábalo, Alexandre Severo, 7
Cf. Les Pères de l’Église et la Musique, Impremerie Alsacienne, Strasbourg, 1931 (nv. ed.: Minkoff Reprint, Genève, 1973, p. 3). A afirmação genérica é algo gratuita.
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etc., tinham em alta estima a música e os espectáculos musicais. A ideia clássica, pitagórica, platónica, aristotélica e estóica, porém, de que a música devia promover a paideia integral do homem, se ainda era teoricamente aceite em círculos aristocráticos restritos, já não era levada muito a sério fora da sua dimensão espectacular. Tácito, na obra De Oratoribus 29, e Suetónio, em Calígula 11, referem que o povo tinha uma verdadeira paixão pelos espectáculos de canto e dança, promovidos pelos imperadores. O povo, com efeito, na crítica de Juvenal, o que quer é «pão e circo» – «panem et circenses». Deste modo, os reparos que outrora Platão, Aristóteles tinham feito ao desregramento musical, vão ser assumidos tanto pelo estoicismo – que aí via uma submissão às paixões e, consequentemente, uma perda da autarkheia[F020?]– e sobretudo pelos autores cristãos, a partir do séc. II, os quais nestas orgias pagãs viam o dedo dos demónios. Alguns deles, porém, conhecendo o lugar importante que a verdadeira música tinha na filosofia grega e no Antigo Testamento, entenderam que era preciso diferenciar entre a boa música – a música davídica –, aquela ajuda o espírito a aproximar-se de Deus, e a música má, pagã, que perverte e desordena os espíritos arrastando-o para vícios e paixões. De facto, era então normal a animação musical, com instrumentos e coristas, saltimbancos, já das cerimónias públicas já das festas privadas, tais como banquetes de amigos, bodas, celebrações familiares, anversários, e assim por diante8 . É neste contexto que, nos primeiros séculos da nossa era, encontramos uma autêntica cruzada contra a música pagã, por parte dos autores cristãos, ao mesmo tempo que vão desenvolvendo cânticos e hinos litúrgicos nas suas celebrações, sobretudo cantos vocálicos, ainda muito devedores da salmodia bíblica. A luta contra música perniciosa e diabólica agudiza-se mais quando as famílias pagãs recém convertidas, nos sécs. II, III e IV, tinham de enviar os filhos para as escolas dirigidas por mestres pagãos, as quais 8
C ÍCERO, Pro Roscio Amerino, 134; AGOSTINHO, Enarrationes in Psalmos, 41,
9.
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se ensinava a música a par das outras artes liberales. Os chefes das comunidades cristãs sabiam que não era bom exporem-nos às músicas do paganismo que acabavam de abandonar, pois assim mais facilmente podia retornar as tentações de voltar atrás. Este confronto foi particularmente violento em Alexandria, cujos habitantes eram uns reputados melómanos. A acção e doutrina de Clemente de Alexandria representam, porém, um esforço de clarificação e de apaziguamento da luta, procurando separar as águas. Reconhece ele que a música é elemento muito importante da própria pedagogia divina. Deus condescendeu com a fraqueza humana e permitiu que certos preceitos fossem amenizados pelas doces melodias. Contudo, não deixa de denunciar: «a música demasiado artificial, que destrói as almas e lhe incute muitos sentimentos diversos, quer seja lacrimoso, quer impúdico e voluptuoso, quer provocador de um furor báquico ou de insanidade, deve ser banida.»9 As músicas dos banquetes, cheia de harmonias coloridas – armoniai chromatykai – onde pululam as grinaldas, as coroas de flores e as cortesãs semi-nuas são terrivelmente perniciosas e os jovens devem ser delas afastados. Esta música dissoluta só conduz à desordem dos costumes, à embriaguez, à mentira e à perfídia10 . No reverso desta condenação da música pagã, porém, Clemente de Alexandria, logo no início do Protréptico, afirma: «Deus organizou o universo de forma harmoniosa e pôs de acordo a dissonância dos elementos em relações consonânticas, para que o mundo todo fosse a harmonia; (...) atenuou a força do fogo com o ar, tal como se combina o modo dórico com o lídio (...). E o canto puro, o som fundamental do todo e a harmonia do universo, indo do centro até aos últimos limites, e das extremidades até ao centro, harmonizou tudo, não como a música do Trácio, (...) mas segundo a vontade paternal de Deus, pela qual David também se entusiasmou.» Gregório de Nissa continua esta a apologia da música espiritual, com uma tonalidade nitidamente estóica. Afirma ele que «a conspiração (sympnoia) e a simpatia (suympatheia) 9 10
Stromata VI, 90. Pedagogo, II, 44.
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recíprocas de todos os seres são a primeira, original e verdadeira música.»11 Mas o que é objecto da crítica mais impiedosa são os asmata keklasmena, os cantos estridentes e guturais ouvidos nos matrimónios pagãos, acompanhados com o gamélion, quer dizer, com um aulós duplo, de desigual comprimentos, que simbolizava o noivo e a noiva. Esta crítica centrava-se de modo particular em certos instrumentos, nomeadamente este que referimos: o aulós methystikos (flauta bébeda) e à syrinx, (flauta bífida) ou ainda a flauta de Pã, autêntico objecto de horror para os cristãos, visto o seu som ser penetrante, envolvente e excitante em todos os sentidos, mormente o sexual – se é que muitas vezes a forma não era explicitamente fálica. Diz Epifânio, Bispo em Chipre (†403), que «o aulós é o símbolo da serpente, pela qual o maligno falou com Eva e a enganou. Do mesmo modo o aulós foi inventado para enganar o homem. Eis a maneira como se comporta o tocador de aulós com o seu instrumento.»12 Esta evocação do falo surge muitas vezes, com efeito, sobretudo quando se descrevem os movimentos coleantes que o tocador faz com o aulós e a dançarina com o corpo, movimentos em tudo semelhantes aos da cópula sexual. Por causa disto, a estratégia mais utilizada pelos autores cristãos, e também a mais eficaz, para criticarem a música pagã era afirmarem que os instrumentos usados pelos pagãos tinham sidos ajudados a fabricar pelos demónios e que provocavam a idolatria. Afirma neste sentido São Jerónimo: «A rapariga jovem não deve saber para que foram construídas a flauta de cana, a lira e a cítara.»13 E até Horácio aconselhara que «a rapariga jovem não deve descer à rua, ao anoitecer, se escutar sob a sua janela os lamentos de uma tíbia.»14 Mas, como é compreensível, os cristãos das grandes urbes não podiam viver totalmente à margem deste ambiente, sobretudo quando dei11
Enarrationes In Psalmos, I, 3. Adversus Haereses, XXV, 41; cf. Agostinho, De Trinitate, XII, XI, 16, onde o movimento coleante da serpente é associado à fornicatio animi. 13 Epistula 107. 14 Carmina, III, 7, 27. 12
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xaram de ser perseguidos. Era por isso que as festas das celebrações dos mártires, a partir do séc. III, eram momentos particularmente temidos pelos pastores. Santo Efrém de Nísibis (Edessa-Síria), no séc. IV – que foi quem introduziu os cânticos na liturgia siríaca – exorta veementemente os seus fiéis para que não celebrem essas festas como os pagãos e não deixem amolecer os seus ouvidos pelos sons das flautas e das cítaras. Os bispos, porém, tinham dificuldade em responder aos cristãos quando estes invocavam o facto de a Bíblia exortar continuamente os fiéis para louvar o Senhor com a harpa e a lira, com a cítara, com címbalos sonoros, com pandeiros retumbantes, e muito mais. Para solucionar esta contradição desenvolveu-se uma compexa interpretação alegórica dos instrumentos bíblicos. O saltério, por exemplo, simboliza é a língua humana; a harpa é a boca, o plectro é o espírito, e assim por diante. João Crisóstomo acrescentará que, sendo os hebreus «duros de espírito», Deus teve de transigir com eles e permitirlhes a música instrumental. Explicando neste sentido o Salmo 41, afirma: «Deus, tendo visto que os homens eram desleixados e pouco dispostos a ler coisas espirituais, suportando-as dificilmente de boa vontade, quis tornar-lhes o trabalho mais agradável. Acrescentou, então, a melodia às palavras proféticas a fim de que, atraídos pelo ritmo do canto, todos lhe cantem santos hinos com ardor»15 . Já Platão, aliás, se referira a esta condescendência divina: os deuses tiveram dó dos homens e deram-lhes, para consolação nas suas penas e trabalhos, o sentido agradável do ritmo e da harmonia16 . Deve dizer-se, todavia, que os ataques são menos contra as melodias do que, e em primeiro lugar, contra o ritmo e as letras das canções profanas, que eram normalmente quadras obscenas, licenciosas e cheias de malícia. São atacadas especialmente as cenas representadas nas pantomimas teatrais por actririzes nuas e por actores efeminados. Estas cenas são chamadas odai pornikai ou asmata satanika, isto é, cantus diabolici – cânticos satânicos, do demónio – e todos os autores 15 16
PG, IV, 156. Cf. Leis, 653 d.
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cristãos são unânimes em salientar o perigo moral que constitui participar em semelhante tipo de espectáculos17 . Por via de regra, o apologista cristão procura sempre transfigurar o ritmo exterior – aquele que imprime ao corpo movimentos muito diversos, desde o frenético e orgiástico à cadência encantatória – em ritmos da alma, em moções espirituais e interiores. A ideia portanto vai sempre no sentido de uma reinterpretação espiritual das expressões físicas e materiais. Diga-se que, nesta época, a música também começava a jogar um papel importante não apenas entre os cristãos, mas em outros grupos religiosos mais ou menos secretos e perseguidos. Fílon de Alexandria18 refere que a festa mais importante dos Terapeutas do Egipto, em Tebaida, culminava numa vigília onde os homens e as mulheres formavam coros alternados, que aos poucos se iam juntando, e assim passavam toda a noite em cantos e danças. Sabe-se igualmente que entre os gnósticos (Bardesana, Harmonius), entre os basilidianos, os valentianianos, os marcionitas, os maniqueus, e uma miríade de outras seitas, era habitual que algumas festas e iniciações (v.g., a famosa Festa do Bêma dos maniqueus) fossem animadas com cânticos, hinos, litanias, salmos, etc.19 Criava-se, assim, ambientes propícios para aceder a estados alterados de consciência, indispensáveis à iniciação dos neófitos. Nos mistérios gregos eleusinos, tal como no Oriente, a música, particularmente certos ritmos e mantras, a repetição de sílabas sagradas, eram formas superiores de comunicação entre os iniciados e o deus, criando estados de comunhão e vibração comum, ou seja, fomentando uma espécie de osmose ou enarmonia fundamental: uma espécie de possessão pelo deus (entusiasmo). A música assim utilizada, aliando-se a outos factores político-sociais, era considerada um perigo por parte das autoridades, pois em seu entendimento propiciava a sedição. Nos finais do séc. III, tendo surgido 17
São Basílio, In Hexaëmeron, IV, 1; Tertuliano, De spectaculis, 17. De vita contemplativa, 892 ss. 19 Cf. Psaumes des errants. Écrits manichéens du Fayyüm (par André Villey), Paris, Cerf, 1994 18
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graves conturbações político-religiosas na Tebaida e em Fayoum, no Egipto, os representantes oficiais do Império, concretamente Juliano, Procônsul de África, alertaram Diocleciano para o carácter subversivo e perigoso das seitas maniqueias daqueles locais, relatando ao Imperador que a coesão das comunidades, a autoridade que as hierarquias gozavam entre eles, a sua fé numa revelação em Escrituras sagradas, a sua oposição à ordem social e religiosa oficial, o culto e as celebrações bem como negarem-se a ser julgados em tribunais civis, impediam o bom exercício do poder político. A resposta de Diocleciano, no Édito 31 de Março de 297, foi fulminante: o Imperador ordenou a Juliano que tomasse medidas contra os maniqueus de uma ferocidade inaudita: a decapitação dos aderentes, a destruição da hierarquia e das Escrituras, a condenação às minas dos funcionários que fossem complacentes e daqueles que manifestassem alguma simpatia para com os sectários. Este mesmo problema colocou-se aos cristãos, pelo menos até terminarem as perseguições, sob Constantino, com o Édito de Milão, em 313. Todavia, a música das cerimónias das primitivas comunidades cristãs, tanto quanto se sabe – e não é muito –tinha pouco a ver com as danças e os cantos de outras seitas, quase báquicos e orgiásticos. Quando Paulo exorta os cristãos de Colosso para que cantem a Deus salmos, hinos e cânticos espirituais (Col 3, 16) está em total consonância com a tradição salmódica veterotestamentária e com a sinagoga judaica20 . Aos poucos, porém, os cristãos começaram a fazer o seu próprio percurso no que respeita a cânticos. Tertuliano, em finais do séc. II, exorta para que, depois do ágape, cada um cante um cântico tirado das Escrituras, ou mesmo do seu próprio génio21 . Este apelo à criatividade cresceu, sem dúvida, quando o culto cristão saiu da clandestinidade e se tornou público. Sabe-se que, em 314, Roma já tinha 20
O que não quer dizer que os primeiros cristãos também não tivessem incorporado elementos musicais gregos, aspecto o que descobertas recentes demonstraram (papiros de Oxyrhynchos). 21 Apologeticum, XXXIX, 18: «Post aquam manualem et lumina, ut quisque de scripturis sanctis vel de proprio ingenio potest, provocatur in medium Deo canere.»
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cerca de quarenta basílicas nas quais a música ocupava um importante lugar, sobretudo no modelo chamado canticus responsorius. Santo Ambrósio, em Milão, no final do séc. IV, parece ter introduzido no Ocidente latino uma prática monacal, comum no Oriente: a salmodia coral antifónica22 , bem como a hinodia para todos os fiéis, costumes que rapidamente se expandiram pelas igrejas de Itália, Gália e Espanha, constituindo o chamado canto ambrosiano. Ambrósio muito oportunamente, aliás, soube até utilizar o canto para congregar os fiéis à sua volta, aquando das investidas da imperatriz Justina, que queria ocupar uma igreja cristã de Milão com as celebrações dos heréticos arianos. Agostinho, narra-nos precisamente este acontecimento numa passagem de Confissões, IX, 7, 15: «A Igreja de Milão começara pouco tempo antes a celebrar este género de consolação e de exortação, com grande entusiasmo dos irmãos, que cantavam em coro com as vozes e os corações. Havia seguramente um ano, ou não muito mais, que Justina, mãe do jovem imperador Valentiniano, perseguia o teu servo Ambrósio, por causa da heresia para a qual fora seduzida pelos Arianos. O povo de Deus velava na igreja, disposta a morrer com o seu bispo, o teu servo. Aí minha mãe, tua serva, tomando o primeiro lugar na preocupação e nas vigílias, vivia das orações. Nós, então ainda gelados longe do calor do teu espírito, éramos todavia contagiados pela cidade, consternada e perturbada. Nessa altura estabeleceu-se que se cantassem hinos e salmos, segundo o costume das regiões do Oriente, para que o povo não se consumisse de cansaço e tristeza: costume que se conservou desde então até hoje, sendo já muitos e quase todos os que, nos teus rebanhos e pelo resto do mundo, o imitam (...).» Vários inimigos tentaram atacar Ambrósio por causa do uso que ele fazia da música. Mas ele defendia-se, contrapondo: «Pretendem alguns dizer que eu enfeiticei o povo através do canto dos meus hinos. E eu não nego isso.» E brincando com o termo latino carmen, que significa ao mesmo tempo canto e fórmula mágica, acrescenta: «Grande 22
Originária da Síria, segundo Teodoreto de Cyr (Historia Eclesiastica, II, 9).
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carmen istud est, quo nihil potentius.» 23 Diga-se, aliás, que Ambrósio era um daqueles autores cristãos que aceitava piamente a música das esferas a que Ptolomeu dera uma bsae matemática. Esta teoria desenvolvera-se no Oriente, mas fora facilmente cristianizável por via dos coros angélicos, ideia muito cara a Ambrósio. Efectivamente, muitos autores cristãos defendiam que o canto dos fiéis se unia em coro ao dos anjos e, assim, subia até Deus. Face ao declínio da música pagã, não só fruto da decadência geral do Império, mas também da crítica dos cristãos, o canto ambrosiano aparece como a alternativa de uma música exclusivamente religiosa, ao serviço da fé cristã. E assim, deste modo necessariamente sumário, temos desenhado o quadro histórico que nos permite compreender melhor o lugar que a música ocupa no pensamento de Santo Agostinho.
II – Da música no pensamento de S. Agostinho Começamos por restringir este subtítulo – Da música no pensamento de S. Agostinho –, relacionando-o com outra possibilidade, mais ambiciosa, e que seria O pensamento de Agostinho como música, aspecto que não aprofundaremos aqui, ainda que façamos aqui variações nesse sentido. De facto, já foi sublinhado por muitos24 que o discurso agostiniano, mesmo na letra, é já um autêntico monumento de musicalidade. Com efeito, «com as suas assonâncias, antíteses, inversões, contrastes, jogos de palavras e de conceitos, a variedade de ritmos; a rima, a ri23
Contra Auxentium, XVI, 1017; cf. Théodore Gérold, Les Pères de l’Église..., p.
85. 24
V.g., pelos tradutores da nova edição portuguesa de Confissões: cf. Arnaldo do Espírito Santo, João Beato e Maria Cristina de Castro-Maia de Sousa Pimentel, «Notas Prévias à tradução», in Santo Agostinho, Confissões, Lisboa, IN-CM, 2001, pp. IX-XII.
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queza de imagens»25 , as aliterações, os assíndetos e polissíndetos, enfim, pelos mil e um recursos estilísticos a que deita mão – «Ut doceat, ut delectet, ut flectat»26 – todo o seu texto, como uma seara acariciada pelo vento, se mostra dócil a uma musicalidade que vem mais de longe e que, em nosso entender, deve ser procurada mais fundo, em uma intuição ontológica da harmonia, da ordem e da beleza da realidade, intuição que depois se expressa no que chamamos a musicalidade polifónica e sinfónica do seu pensamento. Com efeito, logo numa das suas primeiras obras, precisamente De musica, escrita em Milão, em 387, Sto. Agostinho apresenta-nos a teoria musical leccionada no quadrivium. Importa referir que esta disciplina liberal, que ele ensinara ao longo da sua vida como professor, e também na Escola de Retórica, em Milão, designava o conjunto das três artes do movimento: a palavra, o canto e a dança. Apesar de o seu projecto inicial pretender abordar estas três áreas27 , Agostinho tratou somente da primeira, a palavra, o que, diga-se de passagem, foi uma pena, pois no domínio da melodia e do canto ficaram perdidos para sempre elementos essenciais para uma História da Música tardo-antiga. Nesta obra, segundo o procedimento escolar em que exercitava os seus alunos, começa por dar uma definição de música: ela é a «scientia bene modulandi», «ciência de bem modular»28 . Ora modulari vem de modus29 , termo este que, conjugado com o de numerus e de mensura, ocupa um lugar central no pensamento de Agostinho, designando a estrutural essencial da realidade: é uma espécie de acorde perfeito que 25 Artur M ORÃO, “A música como realidade e como metáfora, nas Confissões”, in Actas do Congresso Internacional As Confissões de Santo Agostinho, 1600 anos depois: presença e actualidade, Lisboa, 13 a 16 de Novembro de 2001, Lisboa, Universidade Católica Portuguesa, 2002, pp. 729-744. 26 “Que ensine, que agrade, que comova”. Cf. De Doctrina christiana, 4, 26.34, seguindo o De Oratore, de Cícero. 27 Epistula 101 28 De musica, I, 2, 2; cf. Henri DAVENSON, Traité de la musique selon l’esprit de saint Augustin, Neuchatel, Éditions de la Baconnière, 1942. 29 De musica, I, 2, 2; I, 2, 3.
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constitui todas as coisas – unidade, beleza e ordem, diz o De Trinitate30 –, já a antecipar o pensamento medieval dos transcendentais, onde todo o ser é unum, bonum, verum (et pulchrum). É verdade que a ideia de um acorde perfeito constituinte de todos os seres é de origem pitagórica, platónica e neoplatónica. E nestas filosofias a especulação sobre a música articula-se com uma reflexão matemática sobre o número numerante da realidade, gerador da beleza, da ordem e da harmonia cósmica e ética, i.e., dos números numerados segundo os princípios do limite e da proporção. O jovem Agostinho conhece bem estas especulações31 . Mas o Agostinho convertido lê igualmente no Livro da Sabedoria que Deus criou todas as coisas «com conta, peso e medida» – «omnia mensura et numero et pondere disposuisti»32 . Deste modo, a ideia agostiniana de música reconduz as especulações e as aritmosofias filosóficas sobre a música, ao seu verdadeiro princípio, ou seja ao acto criador de Deus. Compreedemos, assim, que Agostinho considere que a música verdadeira não é a executada, mas o princípio musicante do real. A essência da música é uma ars divina. O músico profissional33 , aquele que toca e canta, ou procura aproximar-se o mais possível desta ciência criadora ou jamais será músico, mesmo que seja o mais exímio executante. Mas será possível ao músico profissional imitar música originária e divina? Em parte pelo menos é possível, não tanto com o seu instrumento, mas antes com a sua vida. Porque o homem é imago Dei, justamente ao nível do acordo entre a memória, a inteligência e a vontade. E o intervalo que há entre imagem e semelhança – imago et similitudo – repercute-se na progressão da alma a humana, a qual repete ao seu nível uma espécie de escala 30
De Trinitate, VI, X, 12. De musica, I, 7, 3; 10, 17; 11, 18-19; 12, 20-26. 32 De beata uita, 1, 9: «Modum, inquam, suum a natura constitutum habent omnia corpora, ultra quam mensuram progredi nequeant.» (cf. De quantitate animae, 17, 29) 33 Cf. De Musica, VI, IV, 7. 31
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musical natural, uma oitava a ser percorrida ontologicamente, gnosiologicamente e eticamente34 . Com efeito, a teoria da alma de Agostinho comporta um septenário essencial presente na teoria dos setes graus da ascensão da alma, em De quantitate animae, ou os sete patamares da memoria sui, no livro X de Confissões, reflexões sobre o ordo amoris35 , que se prolongam ainda nas especulações sobre a natureza da tétrade ou da década. Recorde-se, aliás, que uma das possibilidades do instrumento musical chamado saltério era ser decacorde, o que, segundo a exegese simbólica da escritura, simbolizava a atitude do homem que se volta, todo tenso para o alto, visto que este instrumento emitia sons na parte superior, onde se encontrava a caixa de ressonância36 . O saltério aparecia assim como o símbolo da vida contemplativa, tal como a lira da vida activa. Portanto, porque essa ordem e harmonia superiores estão também impressas no nosso espírito, e pode purificar-se o olho da mente a fim de contemplar primeiro em si, depois em Deus, tais divinas proporções. Este sentido inato musical, apesar de obscurecido pelo pecado37 , está ainda presente nas massas ululantes, diz Agostinho, quando se deleitam sensivelmente com uma boa execução musial e apupam e gritam aos maus executantes. Nas massas circenses não há ciência da música em si, é verdade, mas julgam segundo o sentido inato da proporção e da desproporção que permance inamissível no fundo das suas almas, e até 34
Artur M ORÃO, “A música como realidade e como metáfora...”, p. 741: «A junção do canto e da vida, isto é, o canto integral da existência, pressupõe, na antropologia agostiniana, a unidade inseparável do esse, do nosce e do velle. A sua expressão é a ordinata dilectio...». 35 Cf. Artur M ORÃO, “A música como realidade e como metáfora...”, p. 736; Hannah A RENDT, Der Liebesbegriff bei Augustinus, Berlin, Von Julius Springer, 1929 (trad. francesa, Le Concept d’Amour chez Augustin. Essai d’interpretation philosophique, trad. fr. Anne-Sophie Astrup, Paris, Payot & Rivages, 1999); Remo B ODEI, Ordo Amoris. Conflitti terreni e felicità celeste, Bologna, il Mulino, 1991. 36 Cf. Confissões, III, VIII, 16; Enarrationes in Psalmos, 143, 9; Sermo, 9, 5. 37 De Musica, VI, VI, 7.
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mesmo dos corpos: v.g., na pulsação sentida nas veias, nas batidas do coração, no ritmo respiratório, etc.38 Decorre daqui a sua crítica feroz aos histriões e aos artistas vendilhões da música. Se a música fosse apenas uma arte de executar, não se diferenciaria da actividade das araras, dos corvos e dos papagaios. E o próprio rouxinol levaria a palma a muitos executantes profissionais. E conclui: «Se os flautistas, os tocadores de lira e outros que tais, possuem a música, penso que nada há de mais vil que esta disciplina»39 . Compreende-se bem em que sentido, para Agostinho, a música é uma arte liberal: ela não pode ser vendida, trocada, não pode ter como fim o lucro ou o louvor público, pois toda a música é um dom de Deus40 , é imitatio Dei, uma comparticipação na obra criadora e, por isso, tem um fim em si mesma – propter se. Todos os que a tratam como meio para outra coisa desprezam-na e aviltam-na, mesmo que não o saibam41 . Agostinho assume deste modo a tradição anterior que fala de dois tipos de música: a musica sapientis e a musica luxuriantis42 . E ele próprio, Agostinho, Bispo de Hipona, sentia bem as dificuldades entre, por um lado, manter-se na contemplação noética e especulativa da harmonia pura, e, por outro, resistir ao enfeitiçamento que melodia executada exercia sobre os seus sentidos e emoções. Um célebre texto de Confissões (X, XXXIII, 49-50) dá-nos bem conta desta tensão, entre o fascínio e a recusa. Citemo-lo na íntegra, pois é assaz significativo para a compreenão desse estado de espírito e da ambivalência que a música executada nele gerava. «Os prazeres do ouvido enredaram-me e subjugaram-me (..) tenazmente, mas tu soltaste-me e libertaste-me. Agora, confesso-o, encontro um pouco de repouso nas melodias a que as tuas palavras dão vida, quando são cantadas com uma voz suave e bem trabalhada, não a ponto de ficar preso a elas, mas de forma a poder ir-me embora, 38 39 40 41 42
De Musica, VI, III, 4. De Musica, I, IV, 6; IV, 6.8; VI, 12. De Musica, I, V, 10; De moribus..., II, V, 16; Epistula 166, 13. Cf. De Vera religione, 43. De Doctrina christiana, IV, 7.
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quando quiser. No entanto, juntamente com as próprias frases que lhe dão vida, para que possam entrar em mim, [as melodias] procuram no meu coração um lugar de alguma dignidade, mas apenas lhes concedo o lugar apropriado. Às vezes, parece-me que lhes atribuo mais honra do que convém, quando sinto que o nosso espírito se move mais religiosa e ardentemente para a chama da piedade com aquelas letras sacras, quando assim são cantadas, do que se não fossem cantadas assim, e que todos os afectos do nosso espírito, cada um segundo a sua diversidade, têm na voz e no canto as suas próprias melodias, não sabendo eu qual é a oculta afinidade com essas melodias que os desperta. Mas o deleite da minha carne, ao qual não convém entregar a mente, (...) engana-me muitas vezes, quando o sentimento não acompanha a razão de modo a ir resignadamente atrás dela, mas além disso, uma vez que mereceu ser admitido por causa dela, tenta até ir adiante e guiá-la. Assim, sem me dar conta, peco nestas coisas e depois dou-me conta disso. Às vezes, porém, evitando com algum exagero esta mesma falácia, erro por excessiva severidade, mas, muitíssimas vezes, gostaria de afastar dos meus ouvidos e dos da própria Igreja toda a melodia das músicas suaves que acompanham o saltério de David; e pareceme mais seguro o que recordo ter ouvido dizer a respeito de Atanásio, bispo de Alexandria, o qual levava o leitor do salmo a entoá-lo com uma inflexão de voz tão pequena que parecia mais própria de quem recita do que de quem canta. Contudo, quando me lembro das minhas lágrimas, que derramei perante os cânticos da Igreja, nos primórdios da recuperação da minha fé, e quando mesmo agora me comovo, não com o canto, mas com as coisas que se cantam, quando são cantadas com uma voz clara e uma modulação perfeitamente adequada, reconheço de novo a grande utilidade desta prática. Assim, flutuo entre o perigo do prazer e a experiência do efeito salutar, e inclino-me mais, apesar de não pronunciar uma opinião irrevogável, a aprovar o costume de cantar na igreja, a fim de que, por meio do prazer dos ouvidos, um espírito mais fraco se eleve ao afecto da piedade. Todavia, quando me acontece que a música me comova mais do que as palavras, con-
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fesso que peco de forma a merecer castigo e, então, preferiria não ouvir cantar. Eis em que estado me encontro!» A ambiguidade para com a música executada, presente em outros autores cristãos que já vimos, é aqui sentida de modo intensíssimo. Por um lado, os coros musicais provocam em Agostinho um prazer e emoção tão intensos, que facilmente o levavam às lágrimas; por outro, sente que devia combate esses prazeres sensíveis do ouvido e transmutá-los em elevação espiritual. O problema não reside na beleza sensível da música, pois também ela é numerada, quer dizer, participa na beleza da harmoniza ideal e divina43 , mas no estado da alma. Por isso, a música não deve ser desprezada nem deve ser hiper-valorizada, como faziam os pagãos. É preciso previamente uma autognose, um conhecimento de si próprio e do seu estado: «nosce teipsum». Quer dizer, é preciso afinar o nosso próprio instrumento interior. No âmbito dessa autognose, a beleza da música – e a beleza em geral – é como uma tábua que flutua num mar agitado: nem devemos rejeitá-la, nem nos devemos instalar definitivamente nela. Devemos usá-la para nos salvar das vagas. Assim como Paulo afirmava44 que o visível nos conduz ao invisível, assim também o audível nos conduz ao inaudível da essência musical, ao verbum interius que canta em silêncio: «et quiescente lingua ac silente gutture canto quantum volo» / «com a língua em repouso e a garganta em silêncio, canto quanto quiser»45 . É neste silêncio que ressoa para a mente uma melodia, em comparação com a qual «tudo o mais é balbúrdia: esse “ouve interioremente o canto da razão”. Nos seus ouvidos virá assim desaguar a onda suave de uma música que nasce da eternidade: “Quando o mundo não faz ruído, os ouvidos do coração escutam algo de mavioso e doce, procendente daquela eterna e perpétua festividade”.46 Pode dizer-se, pois, com Henri Marrou, que «para lá de toda a 43
De Musica, VI. Cf. Rm 1, 20 45 Confissões, X, 8, 13; cf. De Trinitate, XV, XI, 20. 46 Artur M ORÃO, “A música como realidade e como metáfora...”, p. 741, citando Enarrationes in Psalmos, XLI, 9: «De illa aeterna et perpetua festiuitate sonat nescio 44
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música carnal, a reflexão [agostiniana] chega a descobrir uma música mais perfeita, música totalmente racional, feita já não de impressões sensíveis, mas de valores matemáticos, absoluto e eternos; música que a música sensível não realiza senão imperfeitamente, ainda que esta participação imperfeita já lhe dê uma grande beleza.»47 Todavia, para lá destas evidentes dimensões litúrgicas, eclesiológicas, psicológicas, matemáticas e até mesmo místicas da música, impõese aprofundar mais o que acima já tínhamos referido: a teologia da criação como lugar natal da reflexão agostiniana sobre a música. Pois podemos dizer que música nos conduz ao coração do pensamento agostiniano. Para Santo Agostinho, só Deus é um verdadeiro músico pois nele dizer é criar, e criar é musicar e modular porque ele é o summus modus48 . «Tudo criastes com conta, peso e medida»49 . «Numerus, pondus, mensura»: eis o acorde fundamental e o compasso ternário que estruturam a criação ab origine. Quando, no livro XI de Confissões, XI, V, 7. , se pergunta de que modo aconteceu a criação, responde: «é necessário concluir que falastes e os seres foram criados. Criaste-los pela vossa palavra.» A ideia bíblica de que Deus cria pela Palavra é desenvolvida e transfigurada, por Agostinho, num sentido eminentemente musical septenário: é modelo do Hexaëmeron, i.e., da narrativa dos seis dias da criação, mais o sétimo de descanso, que preside à composição polifónica de toda a realidade. Em Deus criar é o mesmo que dizer, ou poetar, no sentido da poiesis originária. Neste sentido, relendo o Génesis, em vez de lermos «Deus disse», será mais correcto interpretar «Deus cantou» e as coisas «foram cantadas». Não como coisas discretas, separadas entre si, mas como uma grande partitura de relações e quid canorum et dulce auribus cordis; sed si non perstrepat mundus»; XLII, 7: «erigit auditum in illam uocem dei internam, audit rationabile carnem intrinsecus». 47 Saint Augustin et la Fin de la Culture Antique,Boccard, Paris, 1938, p. 296. 48 De beata uita, 2, 8; 2, 11; 4, 34; De ordine, I, 8, 26, et passim. De imortalitate animae, 15, 24; 8, 15. 49 De beata uita, 1, 9: «Modum, inquam, suum a natura constitutum habent omnia corpora, ultra quam mensuram progredi nequeant.» cf. De quantitate animae, 17, 29.
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interconexões. Deus é pois o grande Poeta e a criação é o seu Poema – «ordo pulcherrimus rerum», «pulcherrimum carmen», «pulchritudo» e «carmen universitatis»50 . Música, enfim, que a sua bondade e providência ainda não acabaram de cantar, mas que continua até ao fim dos tempos como creatio continua constituindo a história, com os seus altos e baixos. Num texto particularmente eloquente a este respeito, a Carta 138, 5, afirma: «Assim vai transcorrendo a formosura das idades do mundo, como um grande cântico de um inefável cantor (carmen ineffabilis modulatoris) para que os que adoram dignamente a Deus enquanto dura o tempo da fé, passem à contemplação da eterna formosura.» Só Deus, portanto, é um cantor verdadeiramente original: não canta sons, melodias ou compassos que outros compuseram, mas cria tudo do nada, ex nihilo. Eis uma teoria musical da novidade absoluta. A criação inteira, o kosmos, é assim um imenso conjunto de diferentes acordes musicais, uma polifona de compassos e de ritmos, sendo mesmo adimissível alguma dissonância51 para que no fim o conjunto tenha a ainda mais beleza. Encontra-se aqui a essência musical do tempo e da história, segundo a feliz expressão de Henri Irénée Marrou, e na qual o engima do tempo humano encontra a sua melhor explicação: «Vou recitar um hino que aprendi de cor. Antes de principiar a minha expectação estende-se a todo ele. Porém, logo que o começar, a minha memória dilata-se, colhendo tudo o que passa de expectação para o pretérito. (...) Ora, o que acontece em todo o cântico, isso mesmo sucede em cada um das partes, em cada um das sílabas (...) e em toda a vida do homem, cujas partes são os actos humanos. Isto mesmo sucede em toda a “história dos filhos dos homens”, da qual cada uma das vidas individuais é apenas uma parte.»52 Esta visão musical da história continua na Carta, 166, 5, 15: 50
Cf. Confissões, XIII, XXXV, 50; Enarrationes in Psalmos, 7, 19; De Musica, VI, 11; De Civitate Dei, XI, 18. 51 Cf. De Civitate Dei, XI, 18. 52 Confissões, XI, 28, 38.
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«Aos mortais que têm almas racionais, a prodigalidade de Deus concedeu a música, ou seja, a ciência de bem modular, a fim de nos ensinar uma grande coisa. O artista que compõe um poema sabe que tempos há-de dar a cada palavra, para que a sucessão das notas da canção seja bela. Quanto mais faz Deus, que não permite que vão passando com maior rapidez ou lentidão do que a exigida por uma modulação prevista e predeterminada, os espaços de tempo nas naturezas que nascem e morrem. Como as sílabas e as palavras, são elas as partículas deste tempo no admirável cântico das coisas que passam. É que a sabedoria divina pela qual foram criadas todas as coisas é muito superior a todas as artes.» Mas que nome tem a Palavra cantada que criou os seres, o tempo e a história? Aqui é toda a teologia joânica que converge para Agostinho: o Lógos criador, o princípio, é Cristo, porque «no princípio era o Verbo e tudo foi feito por ele.»53 O Pai criou cantando, dizendo todas as coisas no seu Verbo54 , e o tempo e a história são esse canto continuado: um canto no princípio, no meio e no fim, porque o Verbo Encarnado é o centro da História – «E o Verbo fez-se carne...». A carne humana, a Santa Humanidade de Cristo é o mais belo canto de Deus55 . Deste modo, a teoria musical agostiniana, entre a criação e a escatologia, por via doutrina da encarnação, é radicalemente cristológica. Aliás, a nossa voz, exteriorizando o verbo interior, repete à sua maneira a Encarnação do Verbo56 . Mas, ultimamente, o modelo mais perfeito de toda a Música é o próprio Deus-Trindade, porque a Trindade é uma comunhão harmónica, é o Acorde Perfeito e o supremo Ternário que toda a realidade imita ou procura imitar. Deste modo, a Verdade de todas as coisas é 53
Jo 1, 1.3. «Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada foi feito.» Confissões, IV, X, 15. 55 Cf. Étienne G ILSON, Saint Augustin. Philosophie et Incarnation, (com Prefácio de Marie-Anne VANNIER), Genève, Ad Solem, 1999. 56 Agostinho, De Trinitate, XV, XI, 20: «Tal como o nosso verbo se torna de certo modo voz do corpo, convertendo-se em palavra pela qual se manifesta aos sentidos do homem, assim o Verbo se fez carne (...).» 54
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a mais bela harmonia: «Deus olhou todas as coisas que tinha feito: e eram todas muito boas!» – «Viditque Deus cuncta quae fecit et erant valde bona»57 .
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Gn 1, 1-3; 26. 31.
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