ISS E LOCAÇÃO DE BENS MÓVEIS1
Rogério Roberto Gonçalves de Abreu2
No exame das diversas funções e atribuições outorgadas constitucionalmente à União, aos Estados e aos Municípios, não raro estará o cientista jurídico a se deparar com o problema das receitas e despesas públicas, principalmente considerando que o efetivo desempenho de tais atribuições depende do aporte de recursos financeiros aos cofres estatais, recursos estes posteriormente canalizados para destinações regularmente definidas mediante lei orçamentária anual. Daí dizer, com propriedade, RICARDO LOBO TORRES (2003:03), que ―os fins e objetivos políticos e econômicos do Estado só podem ser financiados pelos ingressos na receita pública‖. De fato, o aprofundamento do estudo das funções do Estado gera, inexoravelmente, para o jurista, a necessidade de abordar a questão das receitas e despesas públicas. Embora a amplitude do presente trabalho não permita um aprofundamento nas diversas classificações aceitas pela doutrina, aponta-se, com RÉGIS FERNANDES DE OLIVEIRA e ESTEVÃO NORVATH (2002:35), classificação das receitas públicas (baseada em sua origem), pelo qual podem ser enquadradas como originárias, derivadas ou transferidas. As originárias decorreriam da exploração, pelo ente estatal, de seus próprios bens, enquanto que as derivadas proviriam ―do constrangimento sobre o patrimônio do particular‖. As transferidas seriam oriundas de outros entes estatais. O tributo, como principal fonte de recursos financeiros aos cofres públicos, perfaz espécie de ingresso público da segunda classe, ou seja, receita derivada, nitidamente compulsória.
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Última atualização: maio/2004.
Mestre em direito econômico pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Especialista em direito fiscal e tributário pela Universidade Cândido Mendes (UCAM/RJ). Juiz federal substituto na Paraíba. Professor de direito penal do Centro Universitário de João Pessoa (UNIPÊ).
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O próprio Código Tributário Nacional fornece o conceito de tributo que, universalmente aceito pela doutrina, é reiteradamente repetido nas obras. Assim dispõe o art. 3.º do CTN: ―Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.‖ Não sendo objetivo deste trabalho o estudo sistemático do conceito de tributo, importa apreender que a Constituição Federal definiu as linhas mestras da repartição de receitas tributárias, outorgando a cada um dos entes estatais dotados de autonomia legislativa a chamada competência tributária que, na linguagem sempre autorizada de ROQUE ANTÔNIO CARRAZZA (2003:437), ―é a possibilidade de criar, in abstracto, tributos, descrevendo, legislativamente, suas hipóteses de incidência, seus sujeitos ativos, seus sujeitos passivos, suas bases de cálculo e suas alíquotas‖, salientando o autor que ―a competência tributária esgota-se na lei‖. Tal pensamento encontra coro na abalizada lição de JOSÉ AFONSO DA SILVA (1995:657), para quem a competência tributária ―compreende a competência legislativa plena, e é indelegável, salvo as funções de arrecadar ou fiscalizar tributos, ou de executar leis, serviços, atos ou decisões administrativas em matéria tributária e outras de cooperação entre essas entidades públicas‖. Conferiu a CF/88, assim, aos municípios, através de seu artigo 156, a competência tributária para a instituição de impostos e, dentre estes, para a tributação dos ―serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar‖ (CF, art. 156, II). A partir do texto acima transcrito, tem-se que a Constituição Federal haveria outorgado aos municípios competência legislativa para a tributação dos serviços de qualquer natureza, restringindo, contudo, seu espectro de abrangência nos termos do art. 155, II, da CF e, outrossim, prescrevendo, como forma de completar a definição dos fatos geradores tributáveis, sua respectiva definição em lei complementar. Hodiernamente, faz as vezes de tal lei complementar o Decreto-Lei n.º 406/68 — eis que nascida sob a égide de ordenamento constitucional que não previa a existência de tal espécie normativa como necessária para a disciplina da matéria —, o qual traz em seu bojo uma lista de serviços tributáveis mediante o ISS municipal.
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HUGO DE BRITO MACHADO (2003:362), de forma bastante esclarecedora, afirma que ―da mesma forma que a União Federal não pode tributar as grandes fortunas sem que a lei complementar defina os que como tal se há de entender, também os Municípios não podem tributar os serviços de qualquer natureza que não tenham sido definidos em lei complementar.‖ Pode-se afirmar, em outros termos, que a validade de eventual descrição abstrata, em lei tributária municipal, de determinado serviço como fato gerador de ISS afigura-se condicionada a sua anterior inclusão na mencionada lista de serviços. Neste passo, adentra-se no cerne da questão objeto das considerações ora propostas. Consta do Decreto-Lei n.º 406/68, em seu item 79, como serviço legitimamente tributável pelos Municípios através do imposto sobre serviços de qualquer natureza (ISSQN), a ―locação de bens móveis, inclusive arrendamento mercantil‖, atribuindo o legislador, pois, à locação de bens móveis, de maneira expressa, a qualificação de serviço tributável. Exemplo dos mais esclarecedores e, frise-se, de freqüente discussão doutrinária e judicial acerca da plena validade da disposição legal em questão encontra-se na tributação, mediante ISS, das locações de veículos a particulares. Em torno da constitucionalidade da inclusão da locação de bens móveis no rol de serviços tributáveis pelo ISS gerou-se na doutrina, com posterior aporte aos tribunais, incisiva controvérsia jurídica, defendendo parte expressiva dos autores a tese de que a tributação das locações de bens móveis seria inconstitucional, servindo-lhe de carro-chefe o argumento da impossibilidade de conceituar a locação como sendo um serviço. A forçada alteração da qualificação jurídica da locação, para que se a compreendesse como se serviço fosse, infringiria princípios constitucionais como legalidade, tipicidade, segurança jurídica, dentre outros, concluindo tais autores que a tributação, v.g., das locações de veículos a particulares, mediante ISS municipal, seria flagrantemente inconstitucional. Os partidários da tese acima exposta, por outras palavras, defendem que a inclusão da locação de bens móveis na lista de serviços tributáveis do Decreto-Lei n.º 406/68 seria inconstitucional ante a não efetiva caracterização de tal atividade como serviço. A artificial inclusão, na lista de atividades tributáveis, de item que não configura serviço consistiria indevida ampliação da hipótese de incidência tributária a
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lindes não pretendidos pelo legislador constituinte e, assim, manifestamente inconstitucional seria a cobrança do tributo tendo por fato gerador a locação de bens móveis. Analisando-se detidamente a matéria, tem-se que o cerne da questão versa, determinantemente, sobre a correta fixação da natureza jurídica da atividade de locação de bens móveis, respondendo-se à instigante questão de ser ou não uma espécie de serviço. Em bem elaborada construção, atacam os autores o entendimento que atribui à locação de bens móveis, a exemplo de veículos automotores, a natureza jurídica de serviço, alegando que não encerraria, em verdade, uma obrigação de prestar (característica dos serviços), mas apenas uma obrigação de dar. Afirmam que tal aspecto retiraria à locação de bens móveis o principal caráter de um típico serviço, o qual se identifica com uma prestação (praestare) e não com uma dação (dare). O exame da questão merece profunda reflexão. Em primeiro lugar, pode-se encontrar em MARIA HELENA DINIZ (2002:203), citando CLÓVIS BEVILÁQUA, o conceito do contrato de locação como sendo: (...) o contrato pelo qual uma das partes, mediante remuneração paga pela outra, se compromete a fornecer-lhe, durante certo lapso de tempo, o uso e gozo de uma coisa infungível, a prestação de um serviço apreciável economicamente ou a execução de alguma obra determinada.
Identificam-se, portanto, ab initio, três possíveis objetos de um contrato de locação, quais sejam, uma coisa, um serviço, e a realização de uma obra. Conceituando especificamente o contrato de locação de coisa, diz a autora citada ser ―o contrato pelo qual uma das partes (locador) se obriga a ceder à outra (locatário), por tempo determinado ou não, o uso e gozo de coisa infungível, mediante certa retribuição‖. CAIO MARIO DA SILVA PEREIRA, em suas Instituições (2003:272), acentuando restringir-se às coisas, define a locação como o ―contrato pelo qual uma pessoa se obriga a ceder temporariamente o uso e o gozo de uma coisa não fungível, mediante certa remuneração.‖ Citando CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, a locação de serviços é conceituada por MARIA HELENA DINIZ
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(2003:259) como ―o contrato em que uma das partes se obriga para com a outra a fornecer-lhe a prestação de uma atividade, mediante remuneração.‖ Examinando todos esses conceitos, tem-se que o diferencial entre a locação de coisas e a locação de serviços está no objeto jurídico do contrato: a cessão temporária de um bem no primeiro caso e a prestação de uma atividade concreta no segundo. À primeira vista, apenas pelo exame superficial e posterior contraposição dos conceitos, já se teria estabelecido diferença suficientemente incisiva em direção ao reconhecimento da procedência da tese da inconstitucionalidade. Contudo, o trabalho de investigação científica sobre o caso presente apenas começa. Dês que a análise acima efetivada introduz na discussão um elemento não ventilado pelos autores, qual seja, que a locação, por si, é uma prestação, começa-se a vulnerar a tese da inconstitucionalidade em suas próprias bases, dado que se batem pela peremptória negativa da associação locação/serviço. Analisar significa estudar um dado objeto a partir de seus componentes para, posteriormente, reunidas as partes dissociadamente estudadas, compreender-se o todo. O desmembramento dos elementos constantes dos conceitos acima apresentados revela, em primeiro lugar, que na locação de bem móvel o objeto jurídico do contrato não é o bem, mas a atividade do locador em manter com o locatário o uso e gozo do bem em questão. Tal raciocínio joga completamente por terra o argumento de que seria apenas a fria compreensão do vocábulo atividade o diferencial necessário a extremar ambos os contratos de locação, com a simples e unilateral oposição entre os conceitos de locação e serviço. No contrato de locação de serviço, a atividade do locador é a disponibilização da prestação de um serviço, por tempo determinado ou não, mediante remuneração. Entretanto, há de se tem em mente que a prestação de serviço pode ser, em vez de locada, gratuitamente cedida, o que descaracterizaria a atividade como locação, embora um serviço ainda fosse prestado ao destinatário (que não mais seria um locatário, mas apenas um cessionário a título gratuito).
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O que se apreende da explanação supra é que tanto na locação de serviços como na locação de bens móveis existe efetivamente uma prestação por parte do locador, sendo tal prestação o objeto jurídico do contrato, diferençando-se ambas apenas pelo seu objeto material, eis que, no primeiro caso, trata-se de um serviço e, no segundo, de determinado bem móvel. Não se pode compreender como válido o argumento de que no contrato de locação haveria uma obrigação de dar e, destarte, descaracterizada estaria tal locação como serviço, eis que, no serviço típico, seria possível identificar apenas uma obrigação de prestar. Com efeito, a obrigação de dar revela, ordinariamente, no que pertine ao bem objeto da avença, a potencial inversão do título de propriedade, inexistente no contrato de locação. A obrigação de dar encontra-se ínsita em negócios jurídicos como compra e venda, doação, permuta, dação em pagamento, além de outros em que se tem autêntica transferência de propriedade, com exaurimento instantâneo da atividade do alienante. O salientado aspecto revela que a obrigação de dar um determinado bem tem exaurimento instantâneo e, mesmo quando se celebra contrato de fornecimento contínuo, a obrigação referente a cada um dos itens fornecidos se exaure com sua entrega (inversão da propriedade), não decorrendo para o alienante obrigações diferidas no tempo (embora possam decorrer para o adquirente, em caso de pagamento em prestações). Relembrando serem os três clássicos poderes inerentes ao domínio o uso, o gozo e a disposição, torna-se oportuno frisar que no contrato de locação, não existindo a possibilidade de inversão do título de propriedade — eis que apenas se concedem o uso e o gozo de um certo bem móvel, permanecendo a disposição, ainda, com o proprietário locador —, descaracterizada está a locação como criadora de uma simples obrigação de dar, com exaurimento instantâneo da atividade. O que existe, de fato, é uma avença cujos efeitos e obrigações persistem por determinado lapso temporal para ambos os contraentes, enquanto vigente o contrato, consistindo, pois, uma atividade contínua, de vigência diferida no tempo. E em que consistiria tal atividade? Basta considerar que o locador coloca em poder do locatário um bem para que dele se utilize conforme permitido no
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instrumento contratual, garantindo-lhe plena utilização do bem enquanto vigente o contrato. Outrossim, espera receber, em razão de tal atividade, uma contraprestação pecuniária e, ao fim do contrato, o próprio bem locado, no mesmo estado em que se encontrava. Existe, pois, a prestação, pelo locador, de uma utilidade ao locatário, concretizada no uso e gozo de um bem móvel, pelo qual espera receber uma contraprestação pecuniária comutativa. O que realmente ataca a doutrina negativista é a colocação dos contratos de locação de bens móveis na lista de serviços tributáveis do Decreto-Lei n.º 406/68, taxando-a de inconstitucional ante a suposta modificação do conceito de serviço para abranger a locação de móveis e, assim ampliar a incidência do imposto sobre serviços. Entretanto, já
posteriormente ao ingresso no ordenamento jurídico da
Magna Carta de 1988, atribuiu o legislador infraconstitucional a qualificação de serviço à locação de bens móveis, de modo que não se pode argumentar com a não-recepção do Decreto-Lei n.º 406/68 nessa parte, uma vez ter sido expresso o legislador em imputar a tal espécie de atividade (locação) o qualificativo técnicojurídico de serviço. Eis como define serviço a Lei Federal n.º 8.666/93 (Lei de Licitações e Contratos Administrativos): Art. 6.º - Para os fins desta Lei, considera-se: .......... II – Serviço – toda atividade destinada a obter determinada utilidade de interesse para a Administração, tais como: demolição, conserto, instalação, montagem, operação, conservação, reparação, adaptação, manutenção, transporte, locação de bens, publicidade, seguro ou trabalhos técnico-profissionais; (GRIFADO).
Embora seja clara a mencionada lei, no caput de seu artigo 6.º, em restringir os conceitos por si utilizados para seus próprios efeitos, não se pode negar haver guardado total coerência com o entendimento acima apresentado referentemente à natureza jurídica da locação como serviço. O contrato de locação, dessa maneira, em termos genéricos, seria aquele através do qual o locador garante ao locatário a fruição de uma certa utilidade material, por tempo determinado ou não, mediante contraprestação remuneratória. Esta garantia de fruição perfaria o objeto jurídico
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imediato de todo contrato de locação, diferençando-se suas espécies de acordo com o respectivo objeto mediato, qual seja, uma coisa, um serviço ou uma obra. Em arrimo ao pensamento acima sustentado, oportuna a transcrição de dois arestos
dos
tribunais
superiores,
com
franco
posicionamento
pela
constitucionalidade da tributação. TRIBUTÁRIO – ISS – LOCAÇÃO DE VEÍCULOS – BENS MÓVEIS – SERVIÇOS NÃO PRESTADOS PELA DEVEDORA TRIBUTÁRIA – REEMBOLSOS DE IMPORTÂNCIAS QUE NÃO SE ENQUADRAM COMO SERVIÇOS PRESTADOS – NÃO INCIDÊNCIA – 1. A Autora, como locadora de automóveis, aluga seus veículos com o tanque de combustível cheio, sendo contratado que o locatário deve restituir o carro no prazo combinado igualmente com o tanque cheio. Quando isto não ocorre na devolução do veículo, a Autora providencia a reposição do combustível gasto e realiza a cobrança do locatário, à parte, destacando na Nota Fiscal que referida receita não é tributada pelo ISS, pois não integra o preço do serviço, que é a base de cálculo do imposto. 2. O mesmo procedimento é adotado pela Autora com relação a despesas com franquias de seguros. Quando o veículo locado sofre qualquer tipo de abalroamento, a empresa seguradora da Autora cobre as despesas e emite cobrança de uma franquia, a qual posteriormente é cobrada do Locatário responsável, como reembolso de despesas, conforme previsto no contrato de locação. Da mesma forma que ocorre com relação às demais despesas, a Autora não recolhe o ISS sobre esta quantia, visto que a mesma não integra o preço do serviço. 3. A base de cálculo de incidência, in specie, face à natureza da atividade da locadora, é a locação de veículos, pura e simplesmente, e não serviços correlatos, mas não afins, que não fazem parte da espécie de serviços prestados pela locadora. 4. Os reembolsos que se pretende façam parte dos serviços não podem vingar, simplesmente porque são serviços prestados por terceiros, sem qualquer relação direta com a atividade principal exercida pela locadora, que é a locação de veículos. 5. Os serviços referidos não são, propriamente, receita da locadora. Os que estão sujeitos à base tributária, in casu, são os locativos, tão apenas estes, os que, verdadeiramente, constituem a receita propriamente dita do locador. 6. Recurso improvido. (STJ – REsp 224813 – SP – 1ª T. – Rel. Min. José Delgado – DJU 28.02.2000 – p. 57) — grifado. ISS – LOCAÇÃO DE BENS MÓVEIS, EXPRESSAMENTE INCLUÍDA NO ITEM 52 DA LISTA DE INCIDÊNCIA – INEXISTÊNCIA DE INCONSTITUCIONALIDADE – Conceito de serviços. Art. 24, II, da Constituição Federal não violado. Textos não prequestionados. Cabimento pela alínea c indemonstrado. (STF – RE 115.103 – SP – 1ª T. – Rel. Min. Oscar Correa – DJU 29.04.1988) — grifado.
Ademais, vale a pena salientar, a norma constitucional que atribui aos municípios a competência para instituição e cobrança de seus impostos (art. 156)
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diz, textualmente, em seu inciso III, competir aos municípios a instituição de ―serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar‖, motivo pelo qual se há de entender que o Decreto-Lei n.º 406/68 fora recepcionado pela Constituição Federal de 1988, atribuindo-se-lhe o status de lei complementar federal, a exemplo do Código Tributário Federal que, editado na origem segundo o processo legislativo ordinário, apresenta, desde o advento da novel Carta Federal, status de lei complementar em razão da matéria tratada. A mesma Constituição Federal, em seu artigo 146, III, “a”, determina caber à Lei Complementar estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre definição de tributos e suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes. O argumento de que estaria o Decreto-Lei n.º 406/68, ao atribuir à locação de bens móveis a qualidade de serviço tributável, incidindo em inconstitucionalidade não prevalece diante de uma crítica mais rigorosa em sede constitucional ou, mais perfeitamente dizendo, de controle de constitucionalidade sobre falsa hierarquia de normas. De fato, a apontada “inconstitucionalidade” se alicerça no artigo 110 do CTN, o qual dispõe que (...) a lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.
Assim sendo, eventual lei ordinária que viesse ampliar o conceito de qualquer instituto oriundo do direito privado com fim de majorar o âmbito de incidência do fato gerador abstrato estaria incidindo em flagrante inconstitucionalidade, eis que, alterando norma geral sobre fato gerador, apresentar-se-ia como pretensa norma modificativa do Código Tributário Federal, o qual só por lei complementar federal pode ser alterado. Decorreria, desse modo, inconstitucionalidade formal ante o conflito de normas (lei ordinária x lei complementar) e material por via reflexa, diante da tentativa de expedição de lei ordinária sobre matéria constitucionalmente definida como
própria
de
lei
complementar.
Saliente-se
a
natureza
reflexa
da
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inconstitucionalidade, uma vez que seria derivada de uma anterior ilegalidade: afrontando o Código Tributário Nacional, agride, reflexamente, a Constituição Federal. Entretanto, o Decreto-Lei n.º 406/68 não incidiu em tal inconstitucionalidade por dois motivos muito simples: primeiro, quando de seu advento, tratava-se de espécie normativa do mesmo grau hierárquico da lei ordinária e, portanto, do CTN (o CTN, no nascedouro, era lei ordinária) e, assim, tinha força para modificá-la e revogá-la, não podendo, pois, ser inconstitucional. Note-se que o CTN foi editado em 1966, enquanto que o Decreto-Lei n.º 406/68 assim o foi apenas dois anos após. Afigurando-se como lei posterior a dispor sobre a mesma matéria de forma diversa, e se servindo do mesmo fundamento de validade constitucional, apresenta-se totalmente válida, inclusive com poderes de modificação e até revogação da norma anterior, conforme dispõe o art. 2.º, § 1.º, da Lei de Introdução ao Código Civil, já existente à época da entrada em vigor do DL n.º 406/68. O segundo motivo está no fato de que, atualmente, o CTN (que impede a alteração dos conceitos jurídicos privatísticos para efeitos tributários) e o Decreto-Lei n.º 406/68 (que define a locação de bens móveis como serviço tributável) estão no mesmo nível hierárquico normativo, apresentando ambos os diplomas, com o advento da Constituição Federal de 1988, o status de lei complementar federal, não podendo haver, assim, conflito de constitucionalidade pelo cotejo de ambas entre si. O pensamento acima encontra supedâneo na doutrina sempre atual e no magistério do ilustre SACHA CALMON NAVARRO COELHO (2002:326), o qual afirma, em seu Manual, que ―estão a viger – por isso que recepcionados pela Constituição de 1988, segundo o dizem dos tribunais, inclusive o do STF – o Decreto-Lei n.º 406/68 (lei complementar rationae materiae) e a Lei Complementar n.º 56/87.‖ Em face dos fundamentos jurídico-doutrinários acima apresentados, e de acordo com a análise proposta com relação aos institutos jurídicos públicos e privados oportunamente questionados e confrontados, chegou-se à inelutável ilação de não haver fundamento na tese da inconstitucionalidade da incidência do ISS sobre a locação de bens móveis, eis que, prevista na lista constante do Decreto-Lei
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n.º 406/68, e havendo sido tal diploma legal recepcionado pela Constituição Federal de 1988 com o status (nível hierárquico normativo) de lei complementar federal, plenamente correta se mostra a instituição do tributo, pelos entes municipais, com hipótese de incidência legalmente definida a abranger o fato gerador abstrato em questão. Embora reconhecendo que a presente discussão não encontrará no presente trabalho seu termo final, apresenta o mesmo, como ponto de vista defensável, segundo se crê, ser constitucional a tributação por via de ISS das locações de bens móveis, a exemplo do que ocorre com as locações de veículos automotores a particulares. Não socorre, como se viu, o argumento que pretende polarizar locação e serviço como entes jurídicos diametralmente opostos e reciprocamente repulsivos. Dissecados os conceitos e respectivos institutos jurídicos, logrou-se provar a perfeita adequação entre os institutos e, uma vez repelida a tese quase maniqueísta da incompatibilidade, exsurge clara a constitucionalidade da tributação atacada.
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