Os sonhos bovinos de Einstein 1 Quando tinha onze anos, o meu pai deu-me um livro fascinante escrito por Albert Einstein e Leopold Infeld, chamado A Evolução da Física. Logo nas primeiras linhas o livro compara a ciência a um romance policial. A diferença estará em que a ciência procura descobrir não quem foi o culpado, mas porque é o mundo como é. Como em todos os bons mistérios, é frequente os investigadores desviarem-se do caminho certo. Vezes sem conta têm de começar de novo, separando as pistas falsas das verdadeiras. Mas chega finalmente o dia em que reúnem elementos em número suficiente para lhes poderem aplicar essa ferramenta humana de poder inigualado que é a capacidade de dedução, e desse modo começarem a perceber o que se passou. Tendo elaborado uma teoria do mistério em estudo, fazem então algumas conjecturas, as quais serão em seguida postas à prova para — assim se espera — resolver o mistério. Contudo, alguns parágrafos mais à frente, a analogia com o romance policial é abruptamente abandonada. Dizem-nos que os cientistas enfrentam um dilema que nunca aflige quem combate o crime. No jogo de desvendar o mistério do universo, os cientistas nunca podem dizer «caso encerrado». Quer gostem quer não, nunca têm entre mãos um mistério, mas sim uma pequena fracção de um enorme conjunto de mistérios interdependentes. Sucede com frequência que a mais recente solução de uma parte do enigma indique que certas soluções encontradas anteriormente para outras partes desse enigma afinal estão erradas, ou pelo menos precisam de ser reanalisadas. Pode dizer-se com grande rigor que o jogo da ciência é um interminável insulto à inteligência humana. Mau grado a «indignidade» a que a física nos sujeita, ela fascinou-me de imediato. Gostei particularmente da maneira como são apresentados os mistérios do universo: através de perguntas que parecem superficialmente muito simples, mas têm na verdade um significado extremamente profundo; vêm, além disso, envoltas nas belas roupagens das experiências conceptuais e da lógica pura. Mas foi só bem depois de ter iniciado a minha carreira como físico que me apercebi de que muitos, talvez a maior parte, dos problemas da física não são abordados de forma fria e racional; pelo menos não a princípio. Antes de sermos cientistas somos Homo Sapiens, uma espécie que, pese embora o seu pomposo nome, obedece mais às emoções do que à razão. Nem sempre descartamos cuidadosamente as pistas falsas ou as suposições erróneas ou resolvemos os nossos problemas pelas técnicas mais racionais. Nos primeiros estádios do desenvolvimento de uma ideia, comportamo-nos mais como artistas, impulsionados pelo temperamento e pelo gosto pessoal. Por outras palavras, começa-se com um palpite, uma impressão, um desejo até, de que o mundo seja de uma determinada maneira. Partimos então desse pressentimento, permanecendolhe fiéis mesmo que os dados observacionais apontem há muito no sentido de estarmos a entrar num beco sem saída, arrastando connosco aqueles que acreditam em nós. Mas o que acaba por nos salvar é que a experiência é o juiz derradeiro, o que resolve todos os desentendimentos. Por mais bem fundamentado que o nosso palpite seja, por melhor que o formulemos, chegará a altura de o pormos à prova contra a dura realidade dos factos. Caso contrário, por mais apegados que estejamos às nossas convicções, elas disso não passarão.
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Capº 2 do livro MAIS RÁPIDO QUE A LUZ - a biografia de uma especulação científica, de João Magueijo. Lisboa: Gradiva, 2003.
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Isto dá-se com particular intensidade no campo da física conhecido por cosmologia – o estudo do universo como um todo. A cosmologia não estuda esta estrela aqui ou aquela galáxia ali: a isso chama-se normalmente astronomia. Para um cosmólogo, as galáxias são as moléculas de um fluido altamente invulgar a que chamamos fluido cosmológico. Os cosmólogos ocupamse precisamente do comportamento global deste fluido que contamina tudo. A astronomia trata das árvores: a cosmologia trata da floresta. É desnecessário acrescentar que se trata de um campo fértil em especulações. Os mistérios da cosmologia embrenharam-nos num complicado romance policial, pleno de pistas, deduções e factos empíricos, caminhos que não levam a nada. Inevitavelmente, partes do romance também mostram os físicos a confiar mais em palpites e especulações do que a maior parte deles gostaria de admitir. A cosmologia foi durante muito tempo um assunto religioso. É espantoso que se tenha tornado um ramo da física. Que razões temos para esperar que um sistema tão complexo como o universo possa ser tratado cientificamente? A resposta irá talvez surpreendê-lo: pelo menos no que diz respeito às forças que o governam, o universo não é assim tão complexo. É muito mais simples do que, por exemplo, um ecossistema ou um animal. É mais difícil descrever a dinâmica de uma ponte suspensa do que a do universo. Uma vez percebido isto, estão abertas as portas à cosmologia como disciplina científica. O principal passo consistiu na descoberta da teoria da relatividade, juntamente com a melhoria de qualidade das observações astronómicas. Os heróis deste romance são Albert Einstein, o astrónomo e advogado americano Edwin Hubble, e o físico e meteorologista russo Alexander Friedmann. Juntos, os três combinaram a invariância da velocidade da luz e as suas incríveis consequências com um mistério maior – as origens do nosso universo. E tudo começou com um sonho. Na adolescência, Albert Einstein teve um sonho muito estranho. Este sonho afectou-o profundamente durante muitos anos, e esta obsessão acabaria por se transfigurar em muitas reflexões profundas. Estas reflexões viriam a alterar dramaticamente a nossa compreensão do espaço e do tempo, e até mesmo a nossa percepção de toda a realidade física que nos rodeia. Efectivamente, elas puseram em marcha a mais radical revolução científica desde Isaac Newton, pondo em causa a rigidez do espaço e do tempo, de que a nossa cultura ocidental se encontra imbuída. O sonho de Einstein foi assim: Numa enevoada manhã de Primavera, Einstein passeava ao longo de um caminho nas montanhas, paralelamente a um ribeiro ondulante que descia dos picos com neve. Embora o duro frio já pertencesse ao passado, estava ainda fresco, à medida que os raios do Sol começavam lentamente a romper por entre a neblina. O canto ruidoso dos pássaros elevava-se acima dos sons das águas, que jorravam em tumulto. As encostas estavam cobertas por densas florestas, interrompidas aqui e ali por enormes penhascos. À medida que o caminho descia, a paisagem ia-se abrindo, dando lugar a clareiras cada vez maiores e a pequenos prados. Apareceram então ao longe vales suspensos, nos quais Einstein podia descortinar um grande número de campos, todos marcados inconfundivelmente pela presença humana. Alguns destes campos estavam cultivados e separados por vedações de formas mais ou menos regulares. Noutros, podiam ver-se vacas pastando preguiçosamente nos prados.
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O sol penetrava agora com mais confiança na neblina, diluindo-a ao ponto de tudo parecer ligeiramente desfocado. Einstein começava a distinguir pormenores dos campos mais abaixo. Era comum por estas bandas dividir os campos com vedações de arame electrificado. Estas vedações eram mesmo muito feias, e a maior parte delas não parecia sequer funcionar. De facto, viam-se vacas com a cabeça enfiada entre os fios, pastando do campo vizinho, sem qualquer respeito pela propriedade privada... Ao chegar ao prado seguinte, Einstein foi examinar a vedação electrificada. Tocou-lhe e, conforme esperava, não sentiu nenhum choque – não admirava que as vacas não ligassem nenhuma à vedação. Enquanto brincava com a vedação, Einstein viu um grande vulto caminhando do outro lado do campo. Era um agricultor que transportava uma bateria nova para um barracão ali situado. O agricultor chegou ao barracão e entrou para substituir a bateria velha, que estava descarregada. Olhando pela porta aberta do barracão, Einstein viu-o ligar a bateria nova e, precisamente nesse instante, todas as vacas se afastaram da vedação de um salto. Todas exactamente ao mesmo tempo. Seguiram-se longos mugidos de desagrado. Einstein continuou a caminhar e quando chegou ao outro lado do campo já o agricultor ia a voltar para casa. Cumprimentaram-se educadamente, tendo em seguida travado um estranhíssimo diálogo, como só acontece nas trevas alucinadas dos sonhos. «As suas vacas têm reflexos extraordinários», disse Einstein. «Agora mesmo, assim que o senhor ligou a bateria nova, todas saltaram ao mesmo tempo.»
Figura 2.1 Ao ouvir isto o agricultor mostrou-se confuso e olhou para Einstein com ar incrédulo: «Saltaram todas ao mesmo tempo? Obrigado pelo elogio, mas as minhas vacas não estão com o cio. Eu também olhei para elas ao ligar a bateria nova, porque estava a tentar pregar-lhes um susto de morte: gosto de pregar partidas às minhas vacas. Nos primeiros instantes depois de ligar a bateria não aconteceu nada, depois vi a vaca que estava mais próxima de mim dar um salto, depois a vaca seguinte, depois a outra e a outra, sempre por ordem, até todas terem saltado.» Agora era Einstein que estava confuso. Estaria o agricultor a mentir (figura 2.2)? Mas porque lhe mentiria ele? No entanto, Binstein tinha a certeza do que tinha visto: no momento em que o agricultor ligara a bateria nova todas as vacas, da primeira à última, tinham saltado exactamente ao mesmo tempo. A verdade é que não fazia sentido ter
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uma discussão por causa disto, mas Einstein começava a sentir vontade de estrangular o agricultor. Foi então que Einstein acordou. Que sonho tão parvo – e logo com vacas…, e porque tinha sido ele acometido de patéticas tendências homicidas? Era melhor esquecer tamanhos disparates.
Figura 2.2 Todavia, muitos sonhos estranhos têm um significado profundo que só mais tarde se torna evidente. E assim foi: antes de esquecer por completo o seu sonho, Einstein percebeu o que ele queria dizer. Não passava de um sonho, mas, num certo sentido, um sonho que apenas exagerara o que acontece no mundo real. A luz desloca-se muito depressa, mas não a velocidade infinita. A crer no sonho, desta propriedade física da luz seguir-se-ia uma consequência completamente descabida: o tempo tinha de ser relativo! O que para um observador é «ao mesmo tempo» não o é necessariamente para outro. Na verdade, a velocidade da luz é de tal forma elevada que nos parece infinita, mas isso deve-se às limitações dos nossos sentidos. Experiências cuidadosas ensinam-nos que a luz viaja a 300 000 km por segundo. É-nos mais fácil aceitar que o som se propague a velocidade finita porque ele é muito mais lento do que a luz: cerca de 300 metros por segundo. Se der um grito na direcção de um penhasco situado a 300 metros de distância, ouvirá o seu eco passados 2 segundos: o som demora um segundo a chegar ao penhasco, onde é reflectido, e faz a viagem de volta noutro segundo, sob a forma de eco. Se a luz for reflectida num espelho situado a 300 000 Km de distância, o «eco de luz» estará de volta dois segundos após esta ter sido emitida. Sabe-se há muito que este fenómeno afecta as comunicações no espaço, como por exemplo nas viagens à Lua. No caso de uma viagem a Marte, decorreriam cerca de vinte minutos até que o eco regressasse. Uma mensagem rádio enviada da Terra demoraria dez minutos a chegar a Marte, viajando à velocidade da luz, e a resposta dos astronautas demoraria outros dez minutos a chegar até nós. Seria exasperante ter uma discussão pelo telefone com alguém na Terra se estivéssemos de férias em Marte. O sonho das vacas mais não faz do que ilustrar, ainda que de forma extremamente exagerada, o que se passa na realidade – o que os nossos sentidos detectariam se a velocidade da luz fosse mais como a velocidade do som. No sonho de Einstein, a electricidade propaga-se pelos fios à velocidade da luz 2. Logo, a imagem do agricultor 2
Liberdade poética.
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a ligar a bateria desloca-se à mesma velocidade a que a electricidade avança pelo fio. Ambos chegam à primeira vaca ao mesmo tempo, sofrendo esta um choque. Estamos a supor que o tempo de reacção da vaca é zero e que por isso as imagens do agricultor a ligar o fio e da primeira vaca a saltar e a electricidade que avança pelo fio agora se movem todas lado a lado, aproximando-se de Einsteín. Quando a electricidade atinge a segunda vaca, ela dá igualmente um salto; a sua imagem junta-se ao cortejo das imagens do agricultor e da primeira vaca. Temos agora que as imagens do agricultor a ligar a electricidade e das duas primeiras vacas a saltar se aproximam de Einstein à mesma velocidade que a corrente que percorre o fio. E por aí fora, até chegar à última vaca. É por esta razão que Einstein vê o agricultor a ligar a bateria e as vacas a saltar todas ao mesmo tempo, nesse preciso instante. Se Einstein tivesse tocado no fio, teria recebido um choque eléctrico e dito Scheisse! exactamente no instante em que visse acontecer tudo o mais. Einstein não estava a ter uma alucinação; tudo se tinha passado realmente ao mesmo tempo. Quer dizer, ao mesmo tempo «dele». O agricultor tem, porém, um ponto de vista algo diferente. O que ele vê são uma série de ecos de luz provenientes de reflexões em penhascos/espelhos cada vez mais distantes. Ligar a bateria é como dar um grito à beira de um precipício. A primeira vaca dá um salto ao ser atingida pela electricidade: isto é análogo à reflexão do som nas paredes do precipício. A imagem da vaca a saltar que o agricultor vê é como o eco que regressa do precipício, e demora portanto algum tempo a chegar; há um intervalo entre o grito e a chegada do eco. As imagens das restantes vacas a saltar são como ecos devidos a penhascos cada vez mais longínquos, chegando por isso cada vez mais tarde — isto é, em instantes sucessivos. Então o agricultor também não está a ter alucinações: para ele, existe sempre um intervalo entre o ligar da bateria e o salto dado pela primeira vaca. Ele vê as vacas saltarem uma após outra e não ao mesmo tempo. Se Einstein tivesse tocado no fio com a mão, o agricultor tê-lo-ia visto saltar e dizer um palavrão depois de todas as vacas terem saltado. Não há contradição entre o que diz o agricultor e o que diz Einstein; não há nada para discutir. Ambos os observadores estão a contar o que viram, só que viram coisas diferentes. Se a velocidade da luz fosse infinita, o sonho de Einstein teria sido impossível. Sendo as coisas como são, trata-se apenas de um exagero. E no entanto SIM: há uma contradição! O sonho de Einstein revela que não existe o conceito absoluto de «acontecer ao mesmo tempo», absoluto no sentido de ser comum a todos os observadores sem qualquer ambiguidade. Em vez disso, o tempo tem de ser relativo, variando de observador para observador: o que para um são acontecimentos simultâneos poderá não o ser para outro. Mas será isto uma ilusão? Ou será o conceito de tempo realmente muito mais complicado do que aquilo a que estamos habituados? Na nossa experiência diária, se duas coisas acontecem ao mesmo tempo, todos estão de acordo quanto a isso. Poderia isto não passar de uma aproximação grosseira? Seria isto que o sonho de Einstein lhe estava a tentar dizer? Poderia o tempo ser relativo? No mundo em que Einstein nasceu, os cientistas acreditavam no «universo como mecanismo de relojoaria». Os relógios marcariam o tempo da mesma maneira em toda a parte. Cria-se que o tempo fosse a grande constante do universo. De igual forma, o espaço era concebido como uma estrutura rígida e absoluta. Da conjugação destas duas
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entidades, o espaço absoluto e o tempo absoluto, resulta o quadro imutável da concepção newtoniana do mundo: o «universo como mecanismo de relojoaria». É uma filosofia que reverbera por toda a nossa cultura. A verdade é que detestamos exprimir-nos de forma qualitativa, sobretudo em matérias financeiras. Preferimos definir uma unidade monetária e falar em seguida do valor das coisas usando múltiplos exactos dessa unidade. Mais geralmente, ao definir uma unidade casamos o rigor quantitativo da matemática (isto é, dos números) com a realidade física. A unidade específica é uma quantidadepadrão de determinada coisa; o número diz-nos quantas dessas unidades há naquilo que estamos a tentar descrever. É por isso que o quilograma nos permite exprimir exactamente o que queremos dizer com sete quilogramas de ananases e quanto eles devem custar. A estrutura básica da nossa civilização não existiria sem o conceito de unidade, aliado ao conceito de número. Por mais poéticos que nos digamos, adoramos o rigor quantitativo e não podemos viver sem ele. Na minha vida tenho encontrado pouquíssimos anarquistas genuínos — e já encontrei gente mesmo muito estranha. A nossa concepção de espaço e de tempo está impregnada desta filosofia, O espaço é definido através da unidade de comprimento – por exemplo, o metro. Se eu disser que está um elefante na estrada 315 metros mais à frente, isto quer dizer 315 vezes uma unidade fixa, o metro. É-nos portanto possível dar a posição do elefante com todo o rigor. Se quiser traçar um mapa de uma dada região da superfície da Terra, o que faço é introduzir uma estrutura bidimensional. Defino em seguida duas direcções ortogonais, digamos norte-sul e este-oeste. Bastam então dois números para especificar a posição de qualquer ponto relativamente ao lugar onde me encontro: a distância segundo a direcção este-oeste e a distância segundo a direcção norte-sul. Este referencial permite-nos representar com exactidão a posição de qualquer ponto. A nossa obsessão de saber exactamente onde tudo está encontra expressão perfeita no GPS (sistema de posicionamento global), o qual nos dá as coordenadas de qualquer ponto da superfície da Terra com precisão perfeitamente absurda. Claro, tudo isto é puramente convencional. Os aborígenes australianos traçam o mapa da sua terra com linhas melódicas. Para eles, a Austrália não é uma correspondência entre pontos na paisagem e pares de coordenadas desses pontos, mas sim um conjunto de linhas melódicas altamente retorcidas e que repetidamente se intersectam umas às outras. Ao longo de cada linha desenrola-se uma canção, a qual narra uma história que teve lugar ao longo desse trajecto particular. Estas histórias são normalmente mitos envolvendo animais, aos quais são atribuídas características humanas – complicadas fábulas plenas de significado emocional. Uma consequência imediata das linhas melódicas é criar-se um emaranhado complexo: um ponto não é já apenas um par de números. Pelo contrário, importa não só onde estamos (isto é, a nossa localização no espaço, tal como a entendemos no Ocidente), mas também de onde vimos e, em última análise, qual a totalidade da nossa trajectória passada e futura. O que para nós é um ponto é para os aborígenes uma variedade infinita de identidades, uma vez que por cada ponto podem passar infinitas linhas melódicas que se intersectam mutuamente. Isto dá inevitavelmente azo a um sentido de propriedade incompatível com o nosso: os indivíduos herdam linhas
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melódicas e não pedaços de terra. É impossível construir um GPS que funcione no espaço das linhas melódicas. E no entanto a Austrália existe. O que as linhas melódicas fazem é acentuar até que ponto qualquer descrição do espaço e do tempo é arbitrária e convencional. Nós, no Ocidente, escolhemos viver num espaço rígido e exacto feito de um conjunto de pontos, o espaço newtoniano (a que alguns chamariam euclidiano). Tudo isto se aplica igualmente ao tempo. Um relógio não passa de um mecanismo que evolui a um ritmo regular: é algo que faz «tic-tac» Um tic-tac define uma unidade de tempo, a qual nos permite especificar, por meio de um número, a duração exacta de um determinado acontecimento. O que constitui uma evolução regular é algo convencional, até arbitrário. Mas, como todas as convenções, esta não é puramente gratuita: permitenos descrever o que se passa no mundo físico à nossa volta de uma maneira simples e precisa. Tão grande é a nossa confiança na nossa capacidade de medir o tempo que desde Newton que pensamos nele como absoluto e fluindo uniformemente. Uniforme por definição, absoluto porque não vemos nenhuma razão para que haja desacordo entre diferentes observadores quanto ao instante em que se dá determinado acontecimento. Sim, porque haveriam eles de discordar? No entanto, o sonho de Einstein coincidiu com uma crise que se acercava: a concepção rígida do espaço e do tempo estava prestes a ser destruída. Numa noite de tempestade, as vacas com que Einstein tinha sonhado começam a apresentar sintomas óbvios de loucura; por nenhuma razão aparente, põem-se a atravessar o prado quase à velocidade da luz. Talvez sofram de uma variedade pouco comum da doença das vacas loucas, causada pelos choques eléctricos que apanharam. O agricultor, alertado pelo ruído, chega ao campo com uma lanterna. Mas as vacas ouvem-no aproximar e acalmam-se, juntando-se todas de um dos lados do campo. O agricultor aponta a lanterna às vacas e eis que estas se começam a afastar dele cada vez mais depressa, a uma velocidade cada vez mais próxima da luz. O agricultor pergunta a si mesmo se as vacas não estarão afinal com cio. Mas o agricultor interroga-se acerca de mais outra coisa. Acaba de apontar a lanterna a vacas que se estão a afastar dele a uma velocidade cada vez mais próxima da luz. Quererá isto dizer que as vacas verão a luz quase parada? Seria muito estranho a luz parar para descansar. Existirá luz parada? Para responder a esta questão, o agricultor pede a Cornélia, uma das vacas mais inteligentes da manada, que lhe diga o que vê ao deslocar-se paralelamente aos raios de luz. A Cornélia responde que não vê nada de estranho na luz proveniente da lanterna do agricultor – é luz como outra qualquer. Solicitamente, e para que não haja dúvidas, a Cornélia procede à medição da velocidade da luz. Fá-lo utilizando as técnicas habituais e servindo-se de relógios e réguas que transporta consigo. O resultado que obtém é estranho: nada de anormal se passa, a luz move-se a 300.000 km/s relativamente a ela. É agora a vez de o agricultor sentir vontade de estrangular a Cornélia. Plenamente convencido de que ela deve ser uma vaca inglesa, o agricultor decide pedir a duas outras vacas que meçam a velocidade da luz da sua lanterna. Mas entretanto instaurou-se alguma desordem e as duas vacas menos ágeis afastam-se agora do agricultor a 100 000 km/s e 200 000 km/s. Chamemos-lhes vacas A e B, para evitar dar-lhes mais nomes idiotas (ver a figura 2.3).
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Figura 2.3 Uma vez que o agricultor vê a luz da sua lanterna deslocar-se a 300 000 km/s, esperará que a vaca A a veja deslocar-se a 200 000 km/s (ou seja, 300 000 km/s menos 100 000 kmls) e a vaca B a 100 000 kmls (ou seja, 300 000 km/s menos 200 000 km/s). São operações aritméticas elementares, uma vez que todos aprendemos na escola que as velocidades ou se somam ou se subtraem (dependendo dos seus sentidos relativos). Logo, para obter a velocidade da luz relativamente a cada vaca, devemos subtrair a velocidade da vaca à velocidade da luz relativamente a um corpo parado, não é verdade? Ou será que os chatos dos professores de fisica que tivemos na escola nos andaram a enganar, como já desconfiávamos? Infelizmente, se o espaço e o tempo forem como normalmente nos parecem ser, esses professores deveriam ter razão. Pensemos em dois carros que se deslocam numa estrada em linha recta a 100 km/h e 200 km/h, tendo partido do mesmo ponto. Significa isto que, quando o meu relógio me diz que já passou uma hora, um dos carros percorreu 100 km e o outro 200 km. Qual é então a velocidade do carro mais rápido relativamente ao mais lento? Bom, é óbvio que ao fim de uma hora o carro mais rápido está 100 km à frente do mais lento: subtrai-se 100 de 200. A velocidade do carro mais rápido relativamente ao mais lento é portanto 100 km/h. Tudo isto parece lógico: subtraem-se as distâncias, o tempo é o mesmo, logo subtraem-se as velocidades. Quem poderia duvidar disto? Pelo mesmo raciocínio, se eu aponto um raio de luz deslocando-se a 300 000 km/s a duas vacas que se afastam de mim a 100 000 km/s e 200 000 km/s, estas deveriam ver a luz deslocar--se a 200 000 km/s e a 100 000 km/s, respectivamente. Mas mais uma vez as vacas obtêm um resultado estranho: ambas dizem que a luz se move a 300 000 km/s! Isto é, as vacas não só contradizem a lógica do agricultor, como se contradizem mutuamente. Em quem havemos de acreditar, nas vacas ou no professor de fisica? A boa notícia é que a experiência nos obriga a acreditar nas vacas! Mas isso põe-nos diante de um mistério: porque é que já não podemos simplesmente subtrair as velocidades? À luz dos nossos conhecimentos actuais, o que as vacas observam não faz qualquer sentido. Era mais ou menos este o enigma com que os fisicos se defrontavam nos finais do século XIX. As experiências que confirmaram o resultado obtido pelas vacas chamamse actualmente experiências de Michelson-Morley. Estas experiências estabeleceram empiricamente que a velocidade da luz é constante e independente do estado de
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movimento do observador. Se, durante uma viagem de comboio, me levantar e caminhar pela carruagem, a minha velocidade relativamente à carruagem soma-se à da carruagem relativamente ao cais da estação. Pelo contrário, Michelson e Morley descobriram que a luz emitida da Terra, que se encontra em movimento, continuava a propagar-se com a mesma velocidade: em certo sentido, em unidades da velocidade da luz, 1 + 1 = 1. Este resultado era profundamente ilógico em termos fisicos, uma vez que contradizia o dogma óbvio e lógico de que as velocidades ou se somavam ou se subtraíam. Foi a teoria da relatividade restrita de Einstein que resolveu o mistério. Curiosamente, Einstein não sabia das experiências de Michelson e Morley quando propôs esta teoria, pela qual provavelmente deve mais ao seu sonho das vacas do que aos resultados experimentais. Faremos por isso uso da analogia das vacas para explicar a solução do enigma. Solicitemos novamente ajuda à Cornélia. Coloquemo-la ao lado do agricultor. Assim que o agricultor liga a lanterna, a Cornélia parte a 200 000 km/s em perseguição do raio de luz que se propaga pelos campos. O agricultor yê o raio de luz deslocar-se a 300 000 km/s, logo, percorrer 300 000 km num segundo, enquanto a Cornélia percorre 200 000 km. O agricultor deduz então que a Cornélia verá o raio de luz 100 000 km à frente dela e, como passou um segundo, que ela pensará que a luz se move a 100 000 km/s (ver figura 2.4). Mas, quando se pede à Cornélia que meça a velocidade da luz, ela insiste que ela é de 300 000 km/s. Que se terá passado?
Figura 2.4 É nesta altura que entram em cena o grande génio e a coragem de Einstein. Ele teve a temeridade de afirmar que talvez o tempo não fosse o mesmo para todos. Talvez um segundo do agricultor fosse apenas um terço de segundo da Cornélia. Se assim fosse, a Cornélia teria visto o raio de luz 100 000 km à sua frente, mas teria dividido essa distância por um terço de segundo e obtido, para a velocidade da luz, 300 000 km/s (ver figura 2.5). Por outras palavras, se o tempo dos observadores em movimento correr mais lentamente, é possível compreender porque é que todos medem o mesmo valor para a velocidade da luz, em contradição flagrante com a regra simples de subtracção das velocidades.
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Figura 2.5 Mas há outra possibilidade. Talvez o tempo seja realmente absoluto, de forma que um segundo seja o mesmo tanto para o agricultor como para a Cornélia, e seja antes o espaço que nos está a pregar partidas. O agricultor vê o raio de luz 100 000 km à frente da Cornélia porque o raio de luz percorreu 300 000 km e a Comélia apenas 200 000 km; mas que vê a Cornélia? Se os 100 000 km do agricultor fossem 300 000 km para a Cornélia (ver figura 2.6), ela continuaria a medir exactamente o que mede: passou-se um segundo, a luz está 300 000 km à frente dela, logo a velocidade da luz relativamente à Cornélia, medida pela Cornélia com os meios de que dispõe, é de 300 000 km/s. Mas isto queria então dizer que os corpos em movimento se contraem na direcção do seu movimento. Poderia o espaço contrair-se devido ao movimento?
Figura 2.6 Existe, claro está, uma terceira possibilidade, que é uma combinação das duas hipóteses radicais anteriores. Talvez o tempo medido pela Cornélia corra mais devagar e o seu espaço se encontre distorcido relativamente ao do agricultor, conjugando-se ambos estes efeitos de modo a que ela meça exactamente o mesmo valor para a velocidade da luz. Enquanto para o agricultor se passou um segundo e a luz está 100 000 km à frente da Cornélia, para a Cornélia passou-se menos tempo e a luz está mais longe. E, de facto, fazendo as contas chega-se à conclusão de que esta é a reposta certa. É uma ideia louca, mas será verdadeira? Como se isto não bastasse, o agricultor cedo se apercebe de que todas estas loucuras estão a ter um efeito espantoso sobre as vacas – elas não envelhecem! Como o tempo corre mais devagar para quem se move rapidamente, enquanto o agricultor envelhece as vacas parecem cada vez mais jovens. Ter uma vida rápida e louca conserva a juventude dos bovinos.
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O agricultor nota também que as vacas estão comprimidas de forma preocupante: quando as vê passar parecem quase discos. O movimento tem consequências estranhas — o tempo passa mais devagar e as dimensões contraem-se. É claro que nunca ninguém fez esta experiência com vacas, mas ambos os efeitos descritos foram observados com partículas chamadas muões, produzidas quando os raios cósmicos atingem a atmosfera da Terra. Havia claramente algo errado no argumento que levava à regra de subtracção das velocidades, nomeadamente no conceito de espaço e tempo absolutos. As vacas de Einstein, ou seja, a experiência de Michelson-Morley, destruíram a ideia de um universo como mecanismo de relojoaria, onde o tempo e o espaço têm um significado absoluto e constante. Tempo e espaço tomaram-se em vez disso flexíveis e relativos, no âmbito daquilo a que hoje se chama teoria da relatividade restrita. A solução de Einstein do enigma da luz surpreende-nos por dois motivos: por ser descabida — e por ser bela. Quem é que teria tido semelhante ideia? Quem é este tipo? Um século depois já sabemos a resposta, mas, se regressássemos a 1905, veríamos que tudo era muito diferente. O jovem Albert Einstein era um sonhador e um individualista. Na escola era um aluno irregular. Saía-se bem naquilo de que gostava, mas por vezes tinha contratempos, como a reprovação da primeira vez que se apresentou aos exames de admissão à universidade. Einstein detestava o militarismo alemão, bem como o carácter autoritário do ensino do seu tempo. Em 1896 renunciou à cidadania alemã e permaneceu apátrida por vários anos. Numa carta a um amigo, o jovem Einstein descreveu-se de forma algo depreciativa como desleixado, com tendência a isolar-se e não muito popular. Como acontece com frequência a pessoas assim, para o mundo respeitável ele era um «preguiçoso» (esta caracterização é da autoria de um dos seus professores da universidade). Quando acabou o curso, Einstein tinha-se incompatibilizado com o mundo académico: um dos professores mais influentes moveu uma campanha no sentido de lhe ser negado um doutoramento ou um lugar na universidade. Pior ainda, Einstein viu-se incompatibilizado com o resto do mundo ou, por outras palavras, «profundamente desempregado». Vamos encontrar Einstein, aos vinte e dois anos de idade, face a um dilema trágico. Por um lado não lhe falta a confiança apessoada de todos os livres-pensadores, a todos revelando, em privado, o seu desprezo pelo mundo respeitável. Por outro, aflige-o a insegurança de saber que oficialmente não tem futuro, vendo-se obrigado a bajular pessoas importantes na esperança de que lhe dêem um emprego. Numa carta do pai de Einstein a um eminente cientista pode ler-se a seguinte descrição: «O meu filho está extremamente infeliz por estar desempregado, cada dia se convence mais de que falhou na sua carreira e de que não será capaz de a retomar». Mau grado todos os seus esforços, Einstein só conseguiu um lugar académico bem depois de ter realizado o trabalho que o tomou famoso. O começo da sua vida assemelha-se ao grande romance Martin Eden, de Jack London, facto este que para sempre envergonhará o mundo académico, onde os jogos mesquinhos de poder e influência são endémicos. Após grandes tribulações, um amigo e colega dos tempos da universidade conseguiu-lhe um lugar de secretário na Repartição das Patentes em Berna, na Suíça. O emprego não era muito bem pago, mas a verdade é que também não havia muito para fazer.
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Foi no seu emprego na repartição das patentes, aos vinte e seis anos, que Einstein desabrochou. Fez pouco do trabalho que se esperava que fizesse, mas produziu, entre muitas outras preciosidades, a teoria da relatividade 3. Num tributo a este ex-colega da universidade, Einstein diria, muitos anos mais tarde: «Ao terminar os meus estudos […] fui subitamente abandonado por todos. Não sabia para onde me virar ou o que fazer da minha vida. Mas ele permaneceu a meu lado e, com a sua ajuda e a de seu pai, uns anos mais tarde conheci Haller, da Repartição das Patentes. Num certo sentido isto salvou-me a vida; não que de outra forma tivesse perecido, mas o meu intelecto teria ficado atrofiado». «Este tipo» era portanto alguém à margem da sociedade e que acabou por ser feliz assim. E quem mais poderia ter tido uma ideia aparentemente tão louca como a teoria da relatividade? Infelizmente, a maior parte dos indivíduos nesta situação produz apenas ideias desequilibradas e inúteis, principalmente devido ao isolamento em que trabalham. Tenho numa das prateleiras do meu gabinete centenas de cartas que são disso exemplos perfeitos. Tem de se reconhecer mérito ao homem – não era um excêntrico qualquer, era Albert Einstein. Sem ele, o mundo estaria intelectualmente atrofiado 4. O artigo da teoria da relatividade foi prontamente aceite. O chefe do conselho redactorial responsável por esta decisão diria mais tarde que a pronta aceitação deste artigo tinha sido a sua maior contribuição para a ciência. Mas teria Einstein consciência do que tinha feito? Na sua velhice, Maja, a irmã de Binstein, recordou da seguinte forma os meses que se seguiram à publicação deste artigo: O jovem cientista esperava que a publicação do seu artigo numa revista tão conceituada e tão lida suscitasse reacções imediatas. Esperava dura oposição e as críticas mais severas. Mas ficou desiludido. A publicação do artigo seguiu-se um silêncio gélido. Os fascículos seguintes da revista não fizeram qualquer referência ao seu artigo. Os círculos profissionais tinham resolvido esperar para ver. Algum tempo depois de o artigo ter sido publicado, Albert Einstein recebeu uma carta de Berlim. Era assinada pelo célebre Professor Planck,- pedindo-lhe que clarificasse alguns aspectos da teoria que para ele eram obscuros. Depois de tão longa espera, foi este o primeiro sinal de que alguém tinha lido o artigo. A felicidade do jovem cientista foi enorme, sobretudo por ver as suas actividades reconhecidas por um dos maiores físicos da época.
O que Einstein fizera tinha implicações imensas em muitos campos, bem para além da introdução de um espaço e de um tempo relativos. A relatividade foi de êxito em êxito e as desventuras dos primeiros anos de Einstein cedo terminaram, quando o mundo reconheceu a grandeza do que ele tinha conseguido. A relatividade tinha implicações imensas e, como já disse, a linguagem da física moderna é em certa medida a linguagem da relatividade restrita. Mas este livro não é sobre a teoria da relatividade, por isso
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Einstein diria mais tarde que, se tivesse conseguido o lugar académico que almejava, provavelmente nunca teria descoberto a relatividade. 4
Como descobriu Binstein a relatividade restrita? Sabe-se muito pouco acerca disto porque ele deitou fora todos os seus apontamentos originais. Deixou, porém, uma pista muito importante: na altura em que realizou os seus cálculos cruciais, dormia cerca de dez horas por noite. Atribuo grande importância a este facto. Muitos pensam, erradamente, que as pessoas altamente inteligentes dormem muito menos do que «o comum dos mortais», dando como exemplos Napoleão Bonaparte, Winston Churchill e até a Sra. Thatcher, a quem aparentemente bastavam quatro horas de sono. Não discutirei aqui os méritos intelectuais destes expoentes, mas espero que o exemplo de Einstein destrua de vez esta teoria perniciosa e errónea.
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limitar-me-ei a salientar o que penso serem as três consequências mais importantes da teoria. A primeira é que a velocidade da luz – essa constante que é a mesma para todos os observadores em qualquer altura e em todos os cantos remotos do universo – é também um limite de velocidade cósmico. Esta é uma das previsões mais desconcertantes da teoria, embora resulte logicamente do seu princípio fundamental. Vejamos como: se não for possível acelerar ou travar a luz, será igualmente impossível acelerar um corpo deslocando-se a velocidade inferior à da luz até à velocidade da luz. Isto porque um tal processo seria o inverso de desacelerar a luz: caso fosse possível, o seu inverso também teria de ser possível, o que contradiz a relatividade restrita. Logo, a velocidade da luz é o limite de velocidade universal. Isto pode parecer estranho, mas a fisica é muitas vezes contra-intuitiva. E, de facto, os filmes de ficção científica gostam de mostrar naves espaciais rompendo a barreira da luz. Segundo a teoria da relatividade, o problema não é tanto passarem-nos uma multa cosmológica de excesso de velocidade, mas sim o facto de ninguém ter energia suficiente para o conseguir, por melhores motores que utilize. A existência de um limite de velocidade teve um impacto tremendo na maneira como nos vemos a nós próprios no universo. A estrela mais próxima, Alfa do Centauro, está a quatro anos-luz de nós. Quer isto dizer que uma viagem de ida e volta até lá demoraria pelo menos oito anos do tempo da Terra, qualquer que fosse o nosso estado de desenvolvimento tecnológico 5. Mas, para os astronautas, talvez tudo se passasse numa fracção de segundo, devido ao efeito da dilatação do tempo. Assim, no final da viagem haveria uma diferença de oito anos entre os astronautas e os seus entes queridos que tivessem ficado na Terra, o que poderia dar azo a alguns divórcios, mas – espera-se – a nada mais sério do que isso. Esta, todavia, é a estrela mais próxima, que em termos astronómicos fica ao virar da esquina. Porque não algo cosmologicamente mais substancial? Bem, não sejamos demasiado ambiciosos e pensemos numa viagem ao outro lado da nossa galáxia. Esta distância é mesmo assim de milhares de anos-luz, o que significa que, mesmo com a tecnologia mais avançada de que é possível dispor, uma tal viagem de ida e volta demoraria vários milhares de anos da Terra. Teríamos também de certificar-nos de que o tempo medido pelos astronautas seria no máximo de alguns anos, caso contrário arriscar-nos-íamos a que esta missão espacial se transformasse num cemitério voador. Mas aqui é que está o problema! Mesmo que nos socorramos da tecnologia mais avançada e façamos esta viagem imensa a uma velocidade próxima da da luz, num tempo que para os astronautas corresponde a alguns anos, na Terra ter-se-ão passado milhares de anos. Que missão espacial tão fútil! Regressar à Terra seria corno regressar a um outro planeta. Já não se trataria de um divórcio ou dois: os pobres astronautas estariam totalmente desligados da civilização de onde provinham. Se quisermos evitar desastres destes, devemos viajar a velocidades bem inferiores à da luz e por conseguinte não nos podemos afastar muito de casa. A distância máxima que podemos alcançar é forçosamente muito menor que o produto da velocidade da luz pela nossa esperança de vida — digamos, algumas dúzias de anos-luz, o que em termos
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Estou a ignorar o considerável problema de como acelerar a nave espacial até uma velocidade próxima da da luz e depois desacelerá-la, o mais depressa possível e sem matar ninguém. É bem possível que seja este o obstáculo mais sério a uma tal empresa.
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cosmológicos é uma ninharia verdadeiramente ridícula. A nossa galáxia é mil vezes maior do que isso e o nosso grupo local de galáxias um milhão de vezes maior. A imagem global que daqui resulta é que estamos confinados ao nosso cantinho do universo. É um pouco como a vida na Terra se não conseguíssemos deslocar-nos mais de um metro por século –uma mobilidade extremamente reduzida. Deprimente. Uma segunda consequência importante da teoria da relatividade é o conceito do mundo como um objecto a quatro dimensões. Pensamos normalmente no espaço como tendo três dimensões: largura, profundidade e altura. E a duração? Sim, num certo sentido tudo tem «profundidade temporal», ou seja duração, mas sabemos que o tempo é fundamentalmente diferente do espaço. Por isso, incluir ou não o tempo na equação é essencialmente um problema académico. Ou melhor, era, antes da teoria da relatividade. Segundo a relatividade, o espaço e o tempo variam consoante o observador: durações e comprimentos podem dilatar-se ou contrair-se consoante o estado de movimento relativo do observador e do objecto da observação. Mas, se o espaço se contrair e o tempo se dilatar, não é um pouco como se o espaço se estivesse a transformar em tempo? Se assim fosse, o espaço seria de facto quadridimensional. A razão pela qual não podemos deixar o tempo de fora é que o espaço se pode transformar em tempo e vice-versa. Esta é a percepção do mundo a que actualmente se chama espaço-tempo de Minkowski (o mesmo Prof. Minkowski que um dia apelidou de preguiçoso o seu estudante Albert Einstein). De acordo com a relatividade, o espaço e o tempo não são absolutos; é uma mistura dos dois — o «espaço-tempo» — que o é. É um pouco como o teorema da conservação da energia, que aprendemos na escola. Há muitas formas de energia, entre as quais se contam, por exemplo, o movimento e o calor. A energia não se conserva em cada uma das suas formas, uma vez que podemos transformar, por exemplo, calor em movimento (utilizando uma máquina a vapor). No entanto, a quantidade total de energia conserva-se e permanece constante. De igual forma, o espaço e o tempo deixam de ser constantes para passarem a depender do observador. As durações e os comprimentos podem dilatar-se ou contrair-se, mas a totalidade, o espaçotempo, é o mesmo para todos. Se pensarmos um pouco no assunto, perceberemos quão revolucionária é esta imagem do espaço-tempo. A unidade básica da existência deixou de ser um ponto para passar a ser a linha traçada por esse ponto no espaço-tempo, quando consideramos o que o ponto foi no passado e o que será no futuro. Minkowski chamou a estas unidades fundamentais «linhas do universo». Então pense em si mesmo não como um volume no espaço tridimensional, mas sim como um tubo no espaço quadridimensional, tubo este descrito pelo seu volume tridimensional avançando no tempo a caminho da eternidade. Num acesso de humor idiossincrático, o físico George Gamow deu à sua autobiografia o titulo My world-line 6. A última consequência da relatividade restrita que quero referir é a famosa equação E = mc2 : a energia é igual à massa vezes o quadrado da velocidade da luz. Esta é provavelmente a mais célebre das equações da física contemporânea. Como surgiu ela? Chega-se lá através de um argumento intimamente relacionado com o que utilizámos para mostrar que a velocidade da luz é um limite de velocidade universal. Há pouco, provámo-lo logicamente (pois, se fosse possível acelerar um corpo até à velocidade da 6
A Minha Linha do Universo. (Nota do Tradutor)
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luz, também seria possível desacelerar a luz, o que contradiz o facto de c ser constante), o que está muito bem, mas qual a razão dinâmica de não se poder ultrapassar a velocidade da luz? Ao darmos um empurrão a um objecto estamos a acelerá-lo: isto é, a alterar-lhe a velocidade. No entanto, quanto maior a massa do objecto (em linguagem corrente, quanto mais pesado o objecto for), tanto maior a força que é necessário aplicar-lhe para produzir a mesma aceleração. Einstein descobriu que quanto mais depressa se mover um objecto, tanto mais «pesado» ele é (ou, em linguagem mais rigorosa, tanto maior é a sua massa) 7. Einstein descobriu também que à medida que a velocidade de um objecto se aproxima da da luz a sua massa torna-se infinita. E, se a massa do objecto se torna infinita, não há força no universo capaz de o acelerar mais. Nada existe que seja capaz de lhe comunicar a aceleração que lhe falta para atingir a velocidade da luz e ultrapassá-la. É por isso que a velocidade da luz funciona como o limite cosmológico da velocidade. Ao tentar fazer algo ilegal ficamos sem energia: o objecto que estamos a empurrar torna-se mais e mais pesado e não conseguimos empurrá-lo com força suficiente para quebrar a barreira da luz e ser multados por excesso de velocidade, quer o desejemos, quer não. E que tem isto a ver com E = mc2 ? Aqui vemos a mente de Einstein a trabalhar na sua forma mais pura, guiada por razões irresistivelmente simples de simetria e de estética. Einstein começa por notar que o movimento é uma forma de energia, por vezes chamada energia cinética. Ao comunicarmos movimento a um corpo estamos a aumentar-lhe a massa, mas estamos igualmente a aumentar-lhe a energia (aqui sob a forma de energia cinética). Parece então que quando lhe aumentamos a energia lhe aumentamos também a massa. Mas que tem assim de tão especial o facto de se tratar de energia do movimento? Porque não aceitar que ao fornecermos energia a um corpo (sob qualquer forma) lhe estamos a aumentar a massa? É uma generalização corajosa, mas em princípio deve ser possível verificá-la experimentalmente. Quando um objecto aquece, a sua massa deveria aumentar. Quando se estica um elástico, a energia elástica acumulada deveria fazer aumentar a sua massa. Não muito, só um bocadinho. E assim sucessivamente, para todas as formas de energia. E assim, num grande golpe de génio, Einstein propôs, num artigo de três páginas publicado em 1905, que ao aumentar-se em E a energia de um objecto, a massa do mesmo deveria aumentar E dividido pelo quadrado da velocidade da luz: m = E/c2 A justificação disto é que, quando se adiciona energia cinética a um corpo, a massa dele aumenta e, por razões de simetria, o mesmo deveria passar-se com outras formas de energia. Mas foi então que, dois anos mais tarde, em 1907, Einstein sofreu uma verdadeira tempestade cerebral, levando o seu sentido de beleza e de simetria ainda mais longe, para o bem — ou para o mal — de todos nós. Dois anos antes, Einstein notara que a relação entre o aumento da massa e o aumento da energia não deveria cingir-se à energia cinética, uma vez que isso destruía a unidade da teoria: todos os tipos de energia 7
A distinção subtil entre peso e massa está na base da formulação da teoria da relatividade generalizada, que descreverei no próximo capítulo.
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deveriam fazer aumentar a massa de um corpo. Mas não quereria isto dizer que a energia tem uma massa, ou antes, que as duas são uma e a mesma coisa? Identificar toda e qualquer forma de energia com a massa e vice-versa tem como resultado uma teoria mais una e mais perfeita. Mas, se a energia em todas as suas formas transporta massa, não deveria a massa transportar também energia? E foi assim que Einstein se lembrou de fazer algo incrivelmente simples à fórmula acima: reescreveu-a na forma E = mc2 O que parece duma simplicidade brutal é, na verdade, um salto conceptual gigantesco. É mais uma generalização corajosa, mas não gratuita. Faz previsões que podem ser verificadas experimentalmente. Um cálculo rápido revela que 1 grama de matéria encerra energia equivalente à libertada na explosão de 20 000 kg de TNT. Mas obviamente isto não pode ser verdade! Ou pode? Que fez Einstein face a tamanha contradição? Sem grandes cerimónias, Einstein observou que nós não detectamos energias, mas apenas variações de energia. Sinto frio se a energia térmica deixa o meu corpo e passa para o meio ambiente. Sinto o meu carro a acelerar se carrego no pedal do acelerador e queimo combustível, o que corresponde a converter a energia química do combustível em energia de movimento do carro. A quantidade colossal de energia encerrada em 1 grama de matéria passa despercebida porque nunca é libertada; é um enorme reservatório de energia aprisionado no interior da matéria, cuja presença nunca se dá a conhecer. Num texto de divulgação escrito pelo próprio Einstein faz-se uma analogia entre este conceito e um homem fabulosamente rico, mas que nunca se separa do seu dinheiro. Vive modestamente e só gasta pequenas quantias. Ninguém sabe da sua imensa fortuna, uma vez que dela só são visíveis pequenas variações. A enorme energia associada à massa dos objectos comporta-se de forma muito semelhante. Talvez deva recordar-lhe que quando tudo isto se passou praticamente não existia física nuclear. Chegou-se à ideia de a matéria ter energia com papel e lápis, ironicamente através de considerações de simetria e de beleza. Mal sabia Einstein — o pacifista — o que dali iria sair. No dia 6 de Agosto de 1945 o «homem fabulosamente rico» de Einstein legou ao mundo a sua sinistra fortuna. A teoria da relatividade foi um gigantesco terramoto intelectual. Ninguém duvida actualmente que a relatividade não só revolucionou a física como alterou para sempre a nossa percepção da realidade, para já não falar das suas consequências dramáticas para a história do século XX. E tanto assim é que toda a gente já ouviu falar da teoria da relatividade de Einstein. Mas Einstein ainda não tinha acabado. Cedo percebera que a teoria estava incompleta, e foi por isso que lhe chamou relatividade «restrita». Começou portanto imediatamente à procura da teoria completa, a relatividade «generalizada». Esta iria revelar-se ainda mais original e desconcertante, mas a história da sua descoberta já não é tão simples. Por esta altura já Einstein tinha perdido a inocência sonhadora da sua juventude e a demanda da teoria da relatividade generalizada foi um pesadelo muito adulto. Fotografias de Einstein tiradas na altura em que finalmente concluiu a teoria da relatividade generalizada mostram um homem totalmente exausto. O aspecto é o de alguém que acaba de travar uma longa e sangrenta batalha intelectual.