O Pescador De Sonhos

  • June 2020
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O Pescador de Sonhos Era uma vez um filho de pescador. Filho de um pescador que pescava no rio, onde as ondas e as marés eram menos revoltosas e a segurança da terra era sempre mais tangível. Era um menino sonhador, porque sofria não por uma dor que lhe causassem, mas pelo que faziam ao seu mundo. Era um menino que nunca estudou, porque o rio, naquelas manhãs de nevoeiro, lhe ensinara tudo o que a vida pode ter. Era um menino, filho de pescador. Era um menino que, sem dar por isso, se fez homem; um homem cansado, um homem ausente e só; um alguém que ninguém jamais quererá saber. Esse homem sou eu e aquele menino também fui eu, um eu que foi escorregando pelas águas do rio. Fui à pesca com o meu pai. O barco era pequeno como a nossa casa e a nossa vida. Era madrugada. O meu pai gostava de apanhar os peixes desprevenidos, enquanto estavam a dormir — é uma pescaria mais farta, dizia. Era de manhã, o sol raiava por trás da montanha. Estava escondido pela densa mata que se erguia ao longo das margens do rio. A luminosidade era coada pelo nevoeiro que subia lentamente das águas para se dissipar como um fumo na imensidão do céu. No outro lado do barco mal se distinguiam as barbas negras do meu pai que segurava o leme-motor com o seu braço duro e rude. Parámos e lançámos a rede. Esperámos. Eu estava no topo da embarcação. Olhava o infinito que, naquele momento, estava a um metro de distância. Podia tocá-lo. Podia sentir a sua dimensão impossível de conter. Podia abraçá-lo como se o sonho, em algum momento, voltasse para a realidade. E ele veio. Voltou daquelas noites em que, quando dormia, eu o via tão claramente. Ao longe, na ilusão da realidade, ouvia o meu pai: Segura! Puxa, que a pescaria é farta! Vamos, rapaz, faz-te homem! Chegavam peixes, muitos peixes mortos, e vinham também peixes que falavam, que furavam as redes, que gozavam com a pequenez humana, quando os tentava pescar. Estava nevoeiro: um novo mundo revelava-se. O meu pai não o conseguia ver. Os

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seus olhos estavam preparados somente para ver a truta fresca que pescava e o que ela poderia render. Quando regressámos à aldeia, já o nevoeiro tinha levantado. O pai foi vender o peixe ao mercado e eu fui para casa. A minha casa é branca da cor do nevoeiro, mas a tinta está a sair. O cimento cinzento da vida dos homens vai-se exibindo, cada vez mais. A cada dia que envelheço, vejo mais o cinzento como uma marca irreversível no branco da minha casa infantil. Peguei na bicicleta e larguei à descoberta de novos mundos do outro lado da montanha. Havia lá outro dialecto e uma menina que o pronunciava com a subtileza do amor. Já não lembro o seu nome, mas que importa isso: o nome é tão pequeno e aquela menina era tão grande, era do tamanho da paixão. Recordo a ânsia com que pedalava montanha acima, com o coração aos pulos, desejoso de te encontrar para brincarmos aos amantes adultos. Mais adultos do que os crescidos, porque amávamos a dar, não a exigir. Já não lembro o teu nome, tu que me ensinaste a amar... Porque será? Passei pelo mercado. Já estava fechado, mas o meu pai ainda não tinha ido para casa. Havia sempre tanta gente antes da minha mãe e de mim... Havia todos os amigos daquele tasco que ficava ao lado do mercado. Todos eles bebiam, mas a mãe e eu não. Devia ser por isso que o pai preferia os amigos. Cheirava ao tinto do vinho lá no tasco. Todas as palavras que se soltavam daquela profundeza vermelha tinham o sabor a vinho maduro com fim prolongado, intenso, interminável. Quando o pai chegou a casa, a minha mãe e eu já tínhamos jantado. Sentou-se à mesa, patriarcal, e ordenou que o servissem. A comida foi posta diante do orgulhoso pai de família, que não atinava com a faca na enguia que se escapava. A comida está fria! Vaticinou e continuou comendo. Tem pouco sal. A minha mãe era um recipiente gasto pelo uso e abuso do tempo, mas, naquela noite, explodiu e respondeu: Se queres melhor, faz tu! O meu pai olhou para mim calmamente e disse: Filho, vai para o teu quarto. E eu fui. Deitei-me na cama sem almofada e pus-me a pasmar para o tecto rachado, por onde, durante o inverno, pingava copiosamente. Nesses dias, ia à cozinha, trazia umas panelas para guardar esse bem precioso, cuja nascente era o tecto do meu quarto. Todavia, hoje as fendas estavam secas,

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abertas como argila ao sol. Ouvia a voz forte e dura do meu pai que esbofeteava impiedosamente. E novamente me lembro das palavras daquele peixe que me falou sem que o meu pai pudesse ouvir. Porquê que vocês se maltratam tanto? Ainda hoje não sei. Os homens devem ser mesmo assim. Aqui, no fundo do rio, todos têm o seu lugar. Por trás da porta não havia lugar para a minha mãe. Ouvia a mão rude e pesada do meu pai tingir a pele suave daquela mulher inocente e indefesa. Mãe, vou salvar-te! Vou acabar com a estupidez humana! Todavia, a porta estava trancada e eu sou tão pequeno. Não tenho forças para a arrombar. Mãe... A minha mãe derrubada contra o armário, sem forças para se defender, chora. Ouve-se um estrondo, bate com a cabeça na parede e, depois, silêncio. O silêncio do fim... o silêncio do fim das discussões, pairando ainda as notações últimas do perfume a injustiça, aquele ar amargo da impotência e aquele soluço dum choro reprimido... Silêncio... O pai volta à mesa e janta tranquilamente. Porquê que vocês comem mais do que podem meter na boca? No rio onde vivo, todos temos a boca pequena e só comemos o que cabe nela. O Homem tem dentes e uma boca imensa, Peixe, ele é capaz de lá meter todo o mundo, mascá-lo e depois cuspi-lo como uma nova realidade que vai vender. No meu rio, o governante é um trono vazio: somos todos líderes e o que nos conduz é o respeito que devemos ter por cada peixe. É tão diferente aqui, à superfície da terra, deve ter ocorrido algum engano durante a evolução da civilização... A minha mãe chorava, ouvia-a e imaginava-a dorida e negra. Quando era pequeno, a minha mãe era a mulher mais bonita da aldeia. Lembro-me de todos os homens a cobiçarem. Envelheceu em poucos anos. Cortou o seu longo e belo cabelo e deixou de se arranjar, não sei se para agradar o pai, se para esquecer a sua beleza. Com o tempo, os amigos deixaram de vir cá a casa. A mãe foi ficando mais mirrada, triste; recipiente do uso e abuso que alguns senhores fazem, quando fingem ser o tempo dos outros. O Peixe contava: No meu mundo, ninguém é deus de ninguém. Posso sair, falar e brincar com todos, que nunca me irão magoar. Olho o Peixe quase a chorar. Leva-me contigo, por favor! Já não consigo respirar aqui entre os homens. O Peixe observa-me bem de dentro do meu

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sonho e diz: Já estás comigo. Podes fazer um mundo igual ao do fundo do rio à tua volta!

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