Havia Uma Cidade Na Orla Do Mundo

  • June 2020
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Havia uma cidade na orla do mundo, cujos habitantes acalentavam a esperança de um dia poder restaurar a glória dos seus antepassados. Os feitos memoráveis dos seus avós estavam perenizados na imutabilidade pétrea das paredes e muros dos seus palácios e templos decadentes. Ilustradas com alto-relevos assombrosos, e registadas através de textos escritos em signos que pouca gente, naquele tempo, conseguia compreender e utilizar, as façanhas dos heróis, reis e sacerdotes que um dia tinham edificado a fortuna e o poder daquela cidade eram ainda recordadas com nostalgia, entremeada, diga-se em verdade, com algum rancor. A cidade, apesar disso, ia sendo a pouco e pouco esquecida pelo resto da ecúmena e quase mesmo pelos seus próprios naturais: o oblívio só ainda não se consumara porque a visão das paredes dos palácios e templos, repletas de cenas de guerras passadas, de imagens de deuses demiurgos e reis orgulhosos, ainda suscitavam algum temeroso respeito. De facto, nessas imagens e inscrições estava depositada a identidade dos habitantes da triste urbe; nelas subsistia ainda a memória e a consciência de um passado e um destino comuns que ligava aquelas gentes através de laços que iam, não obstante, sendo paulatinamente corroídos pela pobreza, pela pequenez e vulnerabilidade dos débeis. Todavia, mais do que essas imagens e inscrições que evocavam tempos dourados que ficaram para trás, era a presença avassaladora da grande fortaleza, ao mesmo tempo o palácio principal da cidade, colocada no centro da cidade e no topo de uma rocha maciça e enorme, que soprava alguma vida às recordações e às tradições antigas dos seus habitantes. Como descrever essa fortaleza titânica que, naqueles dias, se encontrava vazia e abandonada? Visualizemos primeiro a cidade: esta espraiava-se num vale profundo e estreito, envolvido por altas e abruptas montanhas e penedias cobertas de arvoredo. O casario era mais alto e tinha mais andares, quanto mais encostado estava ao sopé da montanha do castelo. À medida que dele se afastava, as ruas tornavam-se mais intrincadas, caóticas, e as casas mais baixas, humildes e acomodadas umas às outras. No centro desse vale densamente urbanizado, uma montanha, ou melhor dizendo, um espigão de rocha, enorme, altaneiro e sozinho, elevavase. Esse espigão deixava atónitos, não apenas os forasteiros, mas também, algumas vezes, os próprios habitantes da cidade quando estes, em certas alturas propícias à contemplação e à conversa, davam por si a deter-se em reflexões filosóficas sobre o sentido da sua existência e sobre o significado do tempo. Quem olhava pela primeira vez para essa montanha não saberia dizer se aquela era, de facto, uma montanha, ou se a montanha era, ela própria, o castelo; tal era o modo como aquela obra, fruto do trabalho de calejadas mãos humanas, se confundia com o labor paciente da natureza. Importa dizer aquilo que já deveria ter antes definido: chamo essa estrutura colossal de “castelo”, porque este termo é apenas uma palavra mais cómoda. Aquele invulgar edifício, para

além das suas óbvias funções militares, era também a carcaça vazia de um antigo centro administrativo: ali batera o coração de um império arruinado, corpo outrora glorioso; fora ali a sede da grande confederação formada por aqueles estados que, vulnerabilizados pela sangrenta guerra que deflagrou como um incêndio vindo de Ocidente, julgaram melhor unir-se tristemente e a contragosto, do que perecerem orgulhosa e alegremente; tinha sido ali ainda durante algum tempo, sete ou oito anos, a capital dos diminuídos chefes que governaram a cidade depois de a jurisdição que os antigos reis haviam estendido pelos três cantos do mundo ter sido mutilada e encolhida pela sanha dos seus inimigos e pela sua própria cobiça. O “castelo”, por outro lado, era também um palácio: a corte faustosa, que já não existia, ali executara os protocolos devidos à presença da santa figura do rei, encenando ao mesmo tempo a solenidade do poder e a servilidade da sua sujeição. Ali vivera a família do rei e o seu harém, cercados de um lado pela austeridade e rigor da chancelaria, e do outro pela azáfama das cozinhas, oficinas e aposentos de trabalho, assim como pela pompa dos átrios e pátios ajardinados da gigante estrutura, elementos indispensáveis ao funcionamento da máquina que alimentava, não só os detentores do poder, mas também os seus símbolos, que deviam ser representados e, tal como um sol, projectados para todas as direcções, a partir daquele centro nevrálgico, cérebro e músculo de um império que morrera e do qual apenas subsistira uma vaga e distorcida memória. Por entre as espessas paredes do castelo, ou melhor dizendo, da cidadela; fortes como uma montanha e austeras como um montanhês, uma enorme fatia da memória daquele povo estava depositada no interior da grande sala do arquivo real. É claro que os textos administrativos e económicos relativos ao palácio, os éditos reais e o espólio literário acumulado pelos reis de antanho, ainda podiam ser lidos pelos parcos escribas e letrados que exerciam funções na pauperizada sociedade que sobrara daquilo que antes tinha havido. Mas nesses tempos crepusculares pouco interesse havia, para os habitantes da cidade, em consultar registos da propriedade adstrita ao palácio, ou das rendas a ele devidas pelos camponeses e artesãos livres. Pouco interesse havia, também, em ir cansar os olhos percorrendo com o olhar os milhares de pergaminhos e livros nos quais estava depositada toda a criação literária, religiosa, científica e mágica que séculos de uma civilização, pouco menos que brilhante, haviam produzido. Mas, mais do que isso, a cidadela tornara-se um “monstro” inútil. Enorme, labiríntico, complexo, frio, escuro, vazio e húmido, era como um elefante titubeando no meio de uma olaria: de nada servia aos citadinos, tornados meio campónios, mais preocupados em obter da terra e do rio o seu sustento, através do seu duro labor, ciosos da sua courela e das suas pequenas, mas acolhedoras e familiares casas. Poucas guerras havendo, e ainda menos poder, o grande castelo tornara-se apenas um cangalho.

Os letrados, no entanto, ainda iam algumas vezes à cidadela, dispostos a escalar a enorme escadaria que conduzia ao seu portão principal. Quando chegavam lá acima, orgulhosos da façanha cometida e encharcados em suor, pediam ao guarda, enquanto ofegavam para recuperar o ar dos pulmões, um velho bêbado, viúvo, que recebia uma gratificação da edilidade para tomar conta da entrada do mamarracho e impedir, quem sabe, os ratos de se esgueirarem para o seu interior; pediam, dizia eu, os letrados ofegantes e exaustos ao guarda, que abrisse a portinhola e os deixasse entrar, para poderem procurar, por entre as centenas de salas onde estava guardada a papelada e livralhada vetusta que necessitavam para os seus tratados jurídicos ou mágicos, ou para outras incumbências obscuras, poéticas ou inúteis, desdenhadas pelos seus concidadãos mais analfabetos, demasiado pragmáticos e preocupados com a sua sobrevivência para poderem conferir alguma importância às indagações dos intelectuais.

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