GRUPO RUMO
O cerne da vanguarda paulista não é só composta por Itamar Assumpção e Arrigo Barnabé. Até porque se esse último representa um dos vértices da base do triângulo, não cabe à Itamar o vértice oposto. Chegamos a tecer algumas considerações sobre a singularidade de Itamar no que tange a sua posição de centro, como se fosse mesmo um pêndulo gravitando entre os dois vértices. A posição diametralmente oposta à de Arrigo, e sem a qual a vanguarda paulista não se explica, parece melhor representada pelo Grupo Rumo. Vamos tentar desenvolver essa idéia, ciente de que pisamos em terreno movediço, mas certos também de que trazemos à tona uma capítulo de nossa música estranhamente recalcado. II Hélio Ziskind, Akira Ueno, Ciça Tuccore (depois, Flávio Tagliaferri e Ricardo Brein), Gal Opido, , Geraldo Leite, Luiz tatit, Ná Ozzeti, Paulo Tatit, Pedro Mourão, Zé Carlos Ribeiro, formam o Grupo Rumo. Ainda que a maioria das composições seja de Luiz Tatit, as faixas não são interpretadas apenas por ele. Essa variação de intérpretes já anuncia uma diferença em relação à Arrigo e Itamar. Nesse sentido, o Rumo é quem melhor encarna a alternativa para o canto monocórdico que a música dos anos 70 representou. Outra diferença é que se Arrigo e Itamar, em suas discografias, apresentaram uma flutuação de músicos, o que nos força a ver os dois como núcleos, o mesmo não aconteceu com o Rumo, cuja formação se manteve praticamente a mesma em seus seis discos: Rumo (81), Rumo aos Antigos, Diletantismo, Caprichoso, Quero Passear e Rumo ao Vivo. III Por outro lado, a multiplicação das vozes, tanto em Itamar quanto em Arrigo, atinge picos que o Rumo não acompanha na mesma proporção. “Multiplicação das vozes” entendo como a grande contribuição que essa vanguarda trouxe para o cenário da música brasileira. O coral deixa de ser um apêndice da voz principal: ele adquire autonomia e, não raramente, se opõe a essa voz-núcleo. Multiplicação das vozes que o próprio Luiz Tatit, mais contido, reage: numa entrevista chega mesmo a mencionar o fato de que há um pouco de “confusão” nos arranjos de Itamar em razão da quantidade de vozes. IV Ainda assim, o Rumo segue a mesma trilha. E nem poderia deixar de ser: se em Arrigo existe o grande narrador, mesmo com um tom dramático, isso acaba por dar aos personagens um distanciamento que não existe no Rumo. Os personagens em Arrigo são chapados, perderam a dimensão psicológica – neles, tudo é superfície. O mesmo não acontece com o Rumo: não há narrador; é sempre um personagem falando pra outro; perdeu-se o exagero; no universo do Rumo, prevalece o informal. Por outro lado, esse informal ajuda a diminuir as tensões psicológicas que dava o tom na música popular brasileira e que tiveram o primeiro baque na bossa-nova. Data desse momento, ainda em meados de 50, um processo de desdramatização que manteve seu curso no tropicalismo, eivado de ironias, mas que nos anos 70 estranhamente foi interrompido. O seu retorno se dá então com a vanguarda paulista que retoma o humor, desaparecido na música brasileira, inunda as canções com palavras do dia-a-dia, focaliza a rua e o homem comum. V É sintomático que a única canção do Rumo a tocar nas rádios com freqüência foi “Ladeira da Memória”, de Zé Carlos Ribeiro. O ambiente é o centro de São Paulo, a chuva, as vitrines, e as pessoas felizes, felizes, felizes, porque a chuva acabou. Nada mais prosaico. Principalmente se tratando que estamos no ano de 1983, quando saiu o disco “Diletantismo” com a referida música. Ou seja, um momento de discussão política e final de ditadura. Nem mesmo em 81, com o seu primeiro disco, podemos dizer que haja alguma menção à situação política brasileira, Se pensarmos que o Rumo começou em plena década de 70, quando iniciou suas pesquisas, isto é, no coração da ditadura, torna-se ainda mais estranha essa ausência. Chega a ser mesmo um complicador para o entendimento dessa vanguarda, se pensarmos que em Arrigo e Itamar (um pouco mais disfarçado em Arrigo), a dimensão política está bem presente. VI No entanto, estamos longe de pensar que pudesse haver no Rumo uma mera aderência à situação de exceção. O que une o movimento em torno a Lira Paulistana é, sobretudo, a crítica que efetuam ao mercado da música e, consequentemente, ao que se fazia sob esse sistema. Criar um mercado
independente está inteiramente ligado ao ato de se fazer uma nova música. E se Arrigo abriu um viés inimaginável até então, interligando música popular e erudita, se Itamar produziu breques, silêncios, ritmos quebrados à música previsível das FMs, o Grupo Rumo, por sua vez, desconstruiu a canção, trazendo à tona a fala, ainda que num horizonte reconhecível da música brasileira. A ruptura formal não deixa de ser política.
VII De qualquer maneira, são rupturas diferentes. Itamar é o mais explícito semanticamente; a sua própria condição existencial propicia o enfrentamento. No caso de Arrigo, a metalinguagem que faz uso, leva-o a um enfrentamento da realidade, ainda que de modo trágico (ele sabe que algo deu errado na experiência). Mas no Rumo, a ruptura é quase um processo de fuga do presente. Se Itamar grava Ataulfo e Arrigo, Lupiscínio, essa revalorização, na verdade foi iniciada com o Rumo. Não é à toa que nos seus dois primeiros discos lançados simultaneamente, um deles é só de compositores da década 40 e 50, entre eles, Noel Rosa, Sinhô e Lamartine Babo. Se num disco, o de regravação dos clássicos, o processo dos arranjos se dá de forma tradicional, já no outro disco, de composições próprias, ele desconstrói aquele universo. Como se nos mostrasse o antigo e a desconstrução do antigo, o clássico e o moderno. Essa dupla face torna a pesquisa do Rumo longe do que vinha se fazendo com a música brasileira. VIII É curioso como em seu primeiro disco, Rumo (81), uma canção já aponta essa dupla face: “Nostalgia e Modernidade”. Aliás, a dupla face, paradoxo que nos desafia, é a alegoria desse movimento: em Arrigo, a repetição de células dodecafônicas (altura e duração) do seu primeiro disco (uma experiência sincrônica); em Itamar, a transição no tempo do experimental para o pop (uma experiência diacrônica); e, no Grupo Rumo, o passado e sua desconstrução, que talvez possamos chamar como redução ao esqueleto da canção. De qualquer maneira, a sensação que temos, ao ouvirmos os discos do Rumo, nunca será de estranhamento, ao contrário de Clara Crocodilo. Mas, em compensação, percebemos o trabalho de estilização em cima do conhecido. É como se dá em canções como “Carnaval do Geraldo” de seu primeiro disco, ou, “Noite Inteira com Você” do disco “Caprichoso”, ou, mesmo, “Aceita a Serenata” do disco “Diletantismo”. Os seis discos do Rumo apresentam sua ´fórmula: não existe acidente de percurso; nesse sentido, é o mais racional de seus parceiros de movimento. Porque se os discos de Itamar são cheios de acidentes, curvas, declives, próprios de sua atribulada existência, já os de Arrigo são a impossibilidade trágica de repetir a primeira experiência. Essa impossibilidade de repetição em Arrigo, o que simbolicamente nos remete ao universo do dodecafonismo, contrapõe-se a sua plena possibilidade no Grupo Rumo. IX A primeira música de seu primeiro disco, “Encontro”, fala de distância – a recomendável para se reconhecer um amigo na rua. Se de muito longe, você poderá confundi-lo, de muito perto, também. Talvez seja essa a senha que explique o descolamento do presente. Em “Época de Sonho”, a Vera está apaixonada e canta (e nem é época de paixão, nem estamos em fase de felicidade). Em “Quem é” do disco “Diletantismo”, existe a dona e a voz da dona. Em “Felicidade”, do disco “Rumo ao Vivo”, nada a explica. E “Mesmo Porque”, do disco “Diletantismo”, tem o personagem da novela e a atriz que a faz. Essa autonomia do outro em nós mesmos, entretanto, não se dá a nossa revelia. Esse talvez seja o maior legado do Rumo e de seu principal artífice, Luiz Tatit. É todo um processo de construção como nos testemunha a canção “Ah”, que segundo o próprio autor “é a primeira canção que sentimos que tinha elementos entoativos interessantes e que ao mesmo tempo era agradável de ouvir. Foi essa música que configurou a linha do Rumo”. Todo o processo de construção e suas dúvidas estão configurados nessa canção. A outra música desse mesmo disco que traduz esse esforço de construção da voz é “Minha Cabeça”, que “é livre, mas não de mim”. X Esse processo construtivo, no fundo, configura um descolamento da realidade. É como podemos entender o distanciamento do presente, a devida distância para reconhecer o outro, como nos aponta a música “Encontro”. A desconstrução ou a redução ao esqueleto da canção, não nos tira o chão. Reconhecemos na música do Rumo o que foi transfigurado. Segundo declarações do próprio Luiz Tatit, “as músicas soavam como se fosse uma declamação, mas não era, as notas eram todas precisas”. Elas, inclusive, sugerem como seria a canção se fosse cantada. A questão é que esse duplo vai sendo mitigado aos poucos.
Já no disco “Caprichoso”, “Delírio meu”, que o abre, dá uma boa amostra do quanto o trabalho do Rumo adere ao universo pop/rock, principalmente se o compararmos com os discos anteriores – “Rumo (81) e “Diletantismo”. Já “Rumo aos Antigos” e “Quero Passear” permanecem separados dos demais porque representam o elemento primitivo, a matéria prima sobre a qual a banda vai reprocessar seu trabalho. Essa primeira divisão de sua discografia é uma boa amostra da duplicidade. Mas em “Rumo ao Vivo” surge um elemento novo - é a transição para a unidade dos trabalhos solos de Luiz Tatit. Daí, ser um disco-fronteira, disco-limite. Nele se inserem músicas que fazem parte da fase anterior, é o caso de “Esboço”, metalinguagem da mesma estirpe de “Ah”, assim como se inserem músicas que vão predominar na fase seguinte – é o caso de “Trio de Efeitos”. Todavia, vão se destacar também aquelas que já nasceram mescladas à fase anterior e a seguinte, e essas, sobretudo, serão experiências limites: é o caso de “Banzo” e “Felicidade”. XI É curioso como Luiz Tatit se refere a esse disco-limite: “Foi “Ah” que configurou a linha do Rumo. Depois vieram outras que deram certo e outras mais duras, até que tudo amoleceu em “Rumo ao Vivo”... é esse disco mais bem acabado. O primeiro disco é o mais impactante, mesmo para nós, mas acho aquele disco uma confusão em todos os sentidos: sonoridade horrível, dezenove canções”. Fica, então, patente aqui uma mudança, assim como o adjetivo “amolecido” para designar as canções do disco “Rumo ao Vivo”. Como interpretar esse adjetivo? Amolecido feito água, onde tudo se dissolve, inclusive, o outro, o duplo, finalmente integrado. XII Não é à toa que em seus discos solos, “Felicidade”, “O Meio”, “Ouvido Uni-vos” e “Sem Destino”, uma nova lógica passa a predominar – não mais o duplo, mas um terceiro elemento de síntese. Além disso, as canções deixam de ser faladas como antes. “O Meio” talvez seja o disco mais conceitual dessa nova fase. Em quase todas as canções desse disco sobressaem três elementos, principalmente, o elemento do meio, que é sempre ambíguo, contínuo e difícil de se pegar. O que vagueia e se evapora em “Esboço”, o que não conseguimos pegar em “Os Três Sentidos”, o que são camadas de ar, contínua e sem parar em “Serra do Mar”, o que é mais ou menos em “Trio de Efeitos”, o que é leve e oscila em “As Sílabas”, e o que não é nem tão enfadonho nem tão vivo em “Amor e Rock”. Mas antes, no disco “Felicidade”, a primeira música que o abre, “Eu sou Eu”, parece haver já um terceiro elemento que justifica ele ser de uma forma e ser também de outra forma. Em “Ouvido Uni-vos”, a música “Terceira Pessoa” nos dá conta também de um universo que não é mais duplo, e, “Sem Destino”, seu último disco solo, “Quando a canção acabar” e a música que dá nome ao disco nos falam de um presente contínuo e sem fim. XIII Esse processo de integração é o último capítulo da vanguarda paulista. É quando realmente o processo se completa. O duplo é quem funda o movimento, sem o qual não seriam o que foram. Esse duplo é que os fazem difíceis de serem tragados pelo mercado e que instaura um movimento de ruptura. São as músicas duras de Luiz Tatit. É o teatro e a confluência de vozes em Itamar Assumpção. É o dodecafonismo em Arrigo Barnabé. Mas o grande sentido é quando os discos “Pretobrás II” e “Pretobrás III” aparecem de maneira póstuma nas vozes de diferentes artistas – é quando o Nego Dito realmente completa sua trajetória, inicialmente tão polêmica, entregando-se aos outros. O grande sentido é quando Arrigo adivinhou, enquanto fazia Clara Crocodilo, que nunca mais repetiria aquela experiência, porque de ruptura e ao mesmo tempo de integração (altura e duração). O grande sentido foi quando Luiz Tatit permitiu que suas experiências com o Grupo Rumo se diluíssem com o tempo, retornando de onde saiu. XIV Talvez, o maior exemplo dessa integração seja a parceria de autores tão diferentes. Entre Arrigo e Itamar talvez se justifique, malgrado a diferença entre ambos, porque foram próximos. Itamar chegou a tocar com Arrigo no início de carreira, moraram juntos, foram sempre amigos. Mas entre Itamar e Luiz Tatit? Só no final da vida, em 2000, o Nego Dito começa a passar textos para Tatit. Daí, nasceu “Dodói” e a bela referência que Tatit faz a ele em “Rock de Breque”, ambas do disco “Ouvido, Uni-vos” de 2005. E recentemente, em entrevista que Arrigo concedeu para o Programa “Matador de Passarinho”, no Canal Brasil, venho a saber do mais improvável: Arrigo e Tatit estão compondo juntos para um próximo disco. Não muito longe, em entrevista concedida à Carlos Calado em 7 de agosto de 2000, Arrigo assim se pronunciava à respeito do termo “vanguarda paulista”: sempre achei esse rótulo estranho, por terem
caracterizado trabalhos tão diferentes como um movimento. Minha música era de vanguarda mesmo, mas eu não via isso em grupos como o Premê, que sempre trabalhou com o humor, ou o Rumo, que se baseava no canto falado”. Pelo visto, doze anos depois, o movimento se completa.
Postado há 6th July 2012 por rogerio skylab