Gabriel Garcia Ufrj

  • October 2019
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OS POETAS, COMO OS MINOANOS, SÃO SEMPRE MENTIROSOS: FINGIMENTO E VERDADE NA TENSÃO ENTRE FILOSOFIA E LITERATURA Gabriel Cid de Garcia* [email protected]

Dentre os escritos em prosa de Fernando Pessoa, uma passagem nos convida a introduzir a problemática deste texto: “A certeza - isto é, a confiança no caráter objetivo das nossas percepções, e na conformidade das nossas idéias com a “realidade” ou a “verdade” – é um sintoma de ignorância ou de loucura” (PESSOA, 2005, p. 558). Esta breve e esparsa consideração nos coloca que a realidade almejada pelo poeta não se confunde com a realidade do que há e do que é. Sua realidade, em sendo realidade poética, engloba também o campo daquilo que não há, daquilo que não é, abarcando de súbito o ser e o não-ser. Em um livro dedicado à relação entre Filosofia e Poesia, María Zabrano aproxima a poesia da embriaguez, do irracional, da tentativa de expressar o inexpressável, ao passo que delimita a filosofia ao campo da razão. O filósofo estaria preocupado com alguma totalização, preocupado com o uno, enquanto o poeta se resguardaria ao direito de querer não o todo, por crer que nesta remissão à totalidade não estivessem devidamente efetuadas todas as coisas em sua singularidade, assim como seus matizes mais ínfimos. Nas palavras de Zambrano, “[...] tudo tem direito a ser, até o que não pôde ser jamais” (ZAMBRANO, p. 22, 2001), exercendo,

*

Bacharel e licenciado em Filosofia / Departamento de Filosofia – UFRJ. Mestre em Literatura Portuguesa / Programa de Pós-Graduação em Letras – UERJ e Doutorando em Literatura Comparada / Programa de Pós-Graduação em Letras – UERJ.

portanto, uma justiça caritativa1. Não interessa, ao filósofo, as aparências, pelo motivo da certeza objetiva de seu perecimento, de sua permanência limitada, enquanto o poeta, justamente pelo motivo pelo qual o filósofo as repugna, se apega a elas de forma irrefreável, por perceber-se também, assim como as coisas, no movimento mesmo deste fluxo. Para melhor exemplificar o ofício do poeta, Zambrano relembra um conto de um imperador da China que ordenou que tocassem uma terna melodia para acompanhar o desabrochar das flores. A atenção ao que é singular em cada instante, o apego ao que é fugaz, resulta diretamente de uma inserção profunda no devir, que faz com que o poeta se perca diante dos processos que se sobrepõe em meio às mudanças da vida, e que também evidenciam seu perecimento e renovação. O poeta não atribui ao ser apenas uma função copulativa que admitiria predicados específicos, mas percebe a diversidade e a virtualidade infinita das coisas em mutação, insuflando na linguagem uma autonomia que a garante enquanto realidade efetiva, prescindindo de qualquer juízo que possa classificá-la. A herança ocidental platônica, que busca delimitar campos precisos que destrincham o inteligível do sensível, manifesta, sob diversos matizes, a primazia da seriedade, da certeza fundada na consciência, do verdadeiro, considerado sob estes aspectos, no lugar do falso. A pergunta de Nietzsche é precisa: ao afastarmos o engano, 1 Embora María Zambrano pense a justiça caritativa como um atributo daquilo que o poeta produz, ela trabalha a idéia de que a poesia vai contra a Justiça, entendida aqui de forma oposta à mencionada anteriormente. Se entendermos o poeta dirigindo-se contra a ordem, estabelecida diante da unidade que o filósofo evoca, então ele está do lado da destruição, do irracional, e portanto, da ameaça à lei. À justiça apregoada pelo filósofo, e sobretudo, originalmente, Platão, adviria uma justiça “mais justa”, benéfica, caritativa, da poesia, que não se contenta com o fato de que cada coisa seja somente um predicado, que cada coisa não possa exceder ainda mais e infinitamente seus limites. A justiça caritativa, portanto, pode desfazer a violência imposta pela tirania da Justiça que não faz senão fixar aquilo que é inexpressável, definir a essência imutável de cada coisa, ignorando o devir.

o erro, e privilegiarmos a verdade como ideal, será que não nos ocultamos nós, ocidentais, uma questão mais profunda – ou por demais superficial –, mais fundamental do que a distinção entre uma vereda correta, necessária, e outra condenável, contingente? A admissão do verdadeiro como ideal coloca sob suspeita, sob julgamento, toda a esfera do não-verdadeiro e da incerteza. Fernando Pessoa, privilegiando em Nietzsche a ênfase na alegria2, e ao problematizar, de forma descontínua, ao longo de toda sua obra, o drama da metafísica em crise, nos ajuda a perceber a necessidade do esvaziamento dos limites impostos pelos moldes da tradição. Através do fingimento, Pessoa destitui qualquer instância objetivante de seu lugar, restituindo a fluidez, o engano e a frivolidade ao mesmo tempo em que evidenciam o esgotamento das formas de compreensão do mundo que insistem em afastar, em nome de uma imagem da verdade, o discurso filosófico do poético. É célebre e recorrente sua Autopsicografia, poema de Pessoa do Cancioneiro. Já no título, percebemos a pretensão do ofício a que se

2 Referimos-nos aqui à passagem escrita por Pessoa sobre Nietzsche, publicada nas Obras em Prosa, p. 532-543, onde uma mistura de admiração e recusa é presenciada, ao mesmo tempo em que nos inteiramos a respeito de algumas características de Nietzsche elencadas por Pessoa, como o estilo inconseqüente, a obscuridade e a contradição de si - próprio, características que poderiam, decerto, serem atribuídas ao próprio Pessoa. Deste excerto, sublinhamos sobretudo a seguinte passagem, que nos aponta para um campo radical de indecidibilidade em relação aos discursos canônicos: “A única afirmação grande Nietzsche é que a alegria é mais profunda que a dor, que a alegria quer profunda, profunda eternidade. Como todos os pensamentos culminantes e fecundos dos grandes mestres, isto não significa coisa nenhuma. É por isso que teve tão grande ação nos espíritos: só no vácuo total se pode pôr absolutamente tudo”. Se podemos arriscar uma interpretação, poderíamos talvez supor que este vácuo total estaria associado a uma dimensão pré-significante, condição absoluta para que tudo possa advir. O que faria de um pensador, portanto, um grande mestre dotado de um pensamento culminante, seria a possibilidade do esgarce, nas mentes alheias, de tudo que é significado, de tudo que remete à representação e à estagnação, abrindo o caminho para a entrevisão de um ineditismo ontológico capaz de abarcar o que quer que seja, uma senda desértica para o novo. Esta abertura será analisada no artigo segundo a perspectiva do falso.

propõe o poeta: descrever sua própria alma, o âmago do seu ser, aquilo que regula suas faculdades e anima a vida consciente. De início,

pode-se

argumentar

a

provável

impossibilidade

desta

empreitada, sob um ponto de vista científico, objetivo. No entanto, logo

nos

primeiro

versos,

entramos

em

um

campo

de

indiscernibilidade. O poeta é um fingidor Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente. (PESSOA, p. 100, 1998)

O primeiro verso é direto e amplia indiretamente o fingimento para todo o labor poético. Lega-nos, ademais, a dúvida quanto à sinceridade daquilo que estamos lendo, trazendo à escrita uma condição paradoxal que seria diretamente conectada à atividade expressiva. Basta lembrar o paradoxo lógico do filósofo-poeta Epimênides, também conhecido popularmente como o paradoxo do mentiroso. “O poeta é um fingidor” pode ser considerado o equivalente poético (se nos furtamos a considerar a afirmação epimenídica como poética) do paradoxo de Epimênides (podemos pensar também na direção inversa). O poeta minoano teria afirmado que “Os minoanos são sempre mentirosos.”3 Se a afirmação de Epimênides for verdadeira, não mereceria crédito, pois estaria se auto-nomeando mentiroso, já que provém, enquanto cretense, da civilização minóica. Por outro lado, se pensarmos que o que ele afirma pode ser realmente uma inverdade, teríamos que concluir que ele não poderia estar de fato mentindo, dado que é um minoano e dado que consideramos a sentença mentirosa. Porém, se ele não mente, como pode afirmar que todo minoano é sempre mentiroso? A

3 De acordo com a Wikipedia, esta frase seria atribuída à Bíblia, Novo Testamento, Epístola a Tito, 1:12. Informações sobre o paradoxo de Epimênides adquiridas na Wikipedia, sob o verbete Paradoxo do mentiroso < http://pt.wikipedia.org/wiki/Paradoxo_do_mentiroso >, acessado em 26/01/2007.

conclusão se emaranha infinitamente em uma espiral que afasta qualquer tipo de possibilidade investigativa, colocando em jogo verdades e mentiras, bem como sua própria taxonomia. Se um poeta afirma que “o poeta é fingidor”, é porque existe, em sua poética, em seu texto, afirmações que são falsas, e mesmo a própria gênese do enunciador enquanto tal pode ser pensada enquanto falsa. Porém, se atentamos para o fato que é um poeta que afirma que o próprio poeta é quem está afirmando, então o crédito está destarte chafurdado, tal qual no paradoxo de Epimênides. Se o poeta finge então o que ele afirma não deve ser levado a sério, ou tomado como verdade. Porém, se consideramos que ele não finge, temos de concordar que ele está dizendo uma verdade que vai de encontro à sua própria afirmação, pois seria impossível falar a verdade enquanto se afirma o contrário. Esta investida no fingimento, supostamente consciente, de Pessoa, propicia, por meio da literatura, uma crítica contundente aos pressupostos da razão e da representação. Se tudo que existe se erigiu a partir de um estado aórgico de forças pré-significado, então existiu um momento intermediário que pode ser entendido como uma forma de poesia, de modo que, qualquer conhecimento tido como sério, racional e objetivo, não poderia sustentar sua certeza, já que esta se resolveria, sobretudo, em um estatuto subjetivo. E os que lêem o que escreve, Na dor lida sentem bem, Não as duas que ele teve, Mas só a que eles não têm. (Idem, 1998)

Aqueles que lêem o que o poeta (fingidor) escreve não se incomodam, a princípio, se o que ele afirma é verdade, ou se é verídico ou mesmo verossímil. O que importa para Pessoa (e para o poeta, e para toda a arte e para toda a filosofia) é menos a contrapartida lógico-formal ou indutiva que a produção de um efeito a partir de seu meio de composição, de sua poética. Este último, um

esforço que é captado pela intuição, torna possível e crível, e – por que não? – verídico, aquilo que é produzido, expresso, o sentimento gerado pela ficção, absolutamente real. Deste modo a razão pode ser revista, entretida, tomada entre, ao meio, em parte, nunca em sua origem ou lei, mas em seu recorte que propicia uma estética própria, uma realidade suficiente e inatingível, da qual percebemos apenas seu efeito em uma sensação: E assim nas calhas de roda Gira, a entreter a razão, Esse comboio de corda Que se chama coração. (Idem, 1998)

Quando escreveu sobre os graus da poesia lírica4, Pessoa nos explicita o método de despersonalização (que também poderia ser chamado, em uma inflexão deleuzeana, de dramatização). O primeiro grau se limitaria a uma expressão espontânea das emoções que são refletidas de seu temperamento. Por concentrar-se nos sentimentos reais do poeta e na intensidade que procede destes, torna-se vulgar a produção

e

o

poeta,

monocórdio.

O

segundo

grau,

mais

intelectualizado, admite uma variação de emoções com que o poeta, afastando-se da unidade e da simplicidade, lapida sua obra. Poderá ele trazer ao seu temário outras emoções, mas ainda se apresenta demasiado pessoal, dada a maneira pela qual as expressa, que se mantém ainda ao redor de uma identidade. Já no terceiro grau, o poeta pode finalmente se acercar da despersonalização. Como ao longo dos graus da poesia lírica o que cresce é o grau de intelectualização que uma determinada sensação pode comportar, esse terceiro grau já admite diversas maneiras pelas quais as variadas emoções poderão ser expressas, justamente pelo fato de o 4 Se a poesia lírica tende a exprimir os sentimentos do poeta, o que Pessoa empreende, ao longo dos seus quatro graus, é que ela seja modificada, ampliada, constituindo um sentido bem demarcado para a lírica, ainda que mantenha sua forma, onde o poeta adquiriria caracteres dramáticos, onde outros personagens poderiam interagir, sem que a poesia se transforme em gênero dramático, ou perca seus caracteres líricos. O motor para tal será o pensamento, o intelecto, e por meio dele é que o poeta poderá devir outros.

poeta falsear aquilo que sente, i.é., passar “a sentir estados de alma que realmente não tem, simplesmente porque os compreende” (PESSOA, 2005, p. 275). O fator diferencial é a atividade do pensamento, que proporciona ao poeta a possibilidade de conhecer estados de alma diferentes do seu, senti-los, à medida que pode, por meio da inteligência, distanciar-se da unidade de temperamento que caracterizava os poetas dos graus anteriores. É somente no quarto grau que o poeta se tornará totalmente despersonalizado. A intensidade da imaginação e da inteligência utilizadas são tamanhas que o poeta poderá realmente vivenciar aqueles estados de alma que ele não tem, atingindo o seu ápice, que se caracteriza pela plena autonomia da expressão de qualquer tonalidade remissão

pessoal, ao

poeta

existindo real.



Este

ficcionalmente, processo

sem

inaugura

nenhuma

uma

poesia

dramática5 dentro da própria poesia lírica, já que permite a entrada de modos outros de expressão que são, cada um, diferentes e autônomos, não mais cercando a emoção em um poeta, em um lugar central, mas dispersando-a, tornando-a múltipla e impessoal na medida em que afirma sua existência verdadeiramente intelectual. Segundo José Gil, Intelectualizar a sensação é abstrair dela um perfil, uma linha que permita ligá-la a outras sensações ou conteúdos psíquicos; e isso equivale a tornar carnal, sensível, a idéia que, através de detalhes ínfimos, dá a conhecer o laço íntimo entre várias coisas (GIL, 2000, p. 38).

O pensamento instila sua relação com a terra, com a carne, à medida que se permite navegar os graus da poesia lírica, i.é., 5 Já afirmava Pessoa, a respeito do drama moderno, que qualquer obra que quisesse explicitar alguma tese, diminuiria, em contrapartida, sua potência artística, caso esta mesma tese não estivesse de tal forma integrada à obra e se apresentasse apenas como um adicional inassimilável. (Ibid., p. 278) Pode-se inferir desta idéia a própria relação inabarcável que Pessoa mantém com as teses que pululam em sua obra, tanto filosóficas como literárias.

intelectualizar aquilo que se sente para que a vida possa devir pura potência expressiva impessoal. A ontologia desnuda seus caracteres poéticos e consente ao falsário seu campo de atuação ilimitado. É neste sentido que o ofício do poeta pode ser analisado não só enquanto uma metonímia de uma possível aproximação de um pensamento diferencial sobre o real, sobre a Natureza, mas se afirmar como lugar próprio de sua irrupção contínua. Todo e qualquer pensamento não seria isento de uma dimensão poética, sendo esta já seu tope e condição processual. Pode ainda o poeta, avançar ainda mais na despersonalização, chegando a um estágio em que se pode considerar sua própria criação como um indivíduo fictício que sinta sinceramente os estados de alma que são por ele pensados/sentidos? A resposta afirmativa de Pessoa apenas vem a corroborar a perspectiva do falso, pois desta forma, ele desqualifica qualquer pretensa objetividade do conhecimento e os critérios de verdade que pautam o mundo ocidental. Pôr em crise a verdade é a ação que pode ser depreendida daquilo que Gilles Deleuze escreveu acerca das potências do falso6. Inspirado por Nietzsche, Deleuze afirma que as potências do falso viriam a substituir a forma do verdadeiro, por aproximar da esfera do possível as anomalias que perfazem a matéria mesma que foge ao escopo da representação, instaurando uma incerteza irreconciliável ao admitir até mesmo o impossível. Se, ao compreender o mundo a partir de encadeamentos lógicos, sensório-motores, cronológicos, obliteramos relações não-localizáveis, fragmentadas, invisíveis à consciência, então é preciso que admitamos uma outra forma de 6 Em um capítulo intitulado As potêncis do falso (1990, p. 155-188), Deleuze apresenta a concepção das narrativas falsificantes a partir de um olhar sobre determinados filmes e movimentos cinematográficos, identificando o advento destas narrativas que destronam a forma do verdadeiro de narrativas verídicas, que impõe à vida valores que a constrangem em nome de uma verdade superior. O falso seria, portanto, o próprio âmbito da vida, isenta de qualquer julgamento pelo fato mesmo de se consolidar exteriormente a quaisquer critérios e valores.

compreendê-lo que leve em conta a simultaneidade de diferentes realidades, onde

ainda

aquelas que

não

são

necessariamente

verdadeiras podem ser entendidas como possíveis (cf. DELEUZE, 1990). De acordo com Nietzsche, existiria uma necessidade de se evitar, a todo custo, qualquer possibilidade de desconfiança, de incerteza, de engano, que até mesmo toda a ciência busca afastar. Com que autoridade os que não querem deixar-se enganar podem sequer afirmar que este afastamento do engano pode ser mais benéfico, mais interessante do que uma vida em meio ao erro e à inverdade? Nietzsche constata a condição quixotesca do homem dotado desta vontade de verdade: se “a vida é composta de aparência”,

de

“erro,

embuste,

simulação,

cegamento

e

autocegamento” (NIETZSCHE, 2004, p. 236), admitir que o mundo aspira ao verdadeiro, que o mundo é verídico, seria contrariar e sobrepujar o mundo que já existe, erigindo um outro que o desqualifique. Portanto, é possível se questionar a respeito de que o homem veraz, no ousado e derradeiro sentido que a fé na ciência pressupõe, afirma um outro mundo que não o da vida, da natureza e da história; e, na medida em que afirma esse 'outro mundo' – não precisa então negar a sua contrapartida, este mundo, nosso mundo? (Idem). O poder do falso que é solapado pela assunção do verdadeiro pode ser visto em plena efusão na arte moderna e contemporânea, destituindo e criticando a pretensão da verdade. O domínio do falso seria originário diante de qualquer modelo que pudesse vir a reclamar para si a verdade como ideal, e a arte, se instalando neste domínio, colocaria sempre em foco esta pretensão ao verdadeiro. Fernando Pessoa, ao trazer em sua multiplicação o questionamento de uma instância central para a expressão, e propor o fingimento7 como parte 7 Fernando Pessoa poderia ser considerado, em literatura, uma realização

essencial de seu próprio ofício, nos dá a pensar o caráter fictício, falso, de qualquer sentido que possa ser produzido conscientemente, já que se conjugaria na diferença ontológica entre interior e exterior, que o permite definir apenas como uma possibilidade sempre renovada de uma nova apropriação. Neste sentido, poderíamos pensar a própria vida como permeada de teatro, de fingimento, onde cada um pode encarnar seu personagem e atuar nas diversas situações

nas

quais

são

solicitados,

fingindo

em

conjunto

e

inconscientemente que o mundo pode ser entendido e sobrecodificado. Exercendo

a

mentira,

no

entanto,

o

poeta

se

torna

absolutamente sincero, permitindo à verdade ser tomada em um sentido totalmente novo, na contramão da ciência, da religião e da metafísica8, que mentem para si mesmas para manter uma certa imagem de verdade onde só existe ausência de sentido, falsidade, ambas as características do único mundo que pode ser chamado de verdadeiro. Não mais entenderíamos a verdade como oposição ao erro, ao falso, à aparência, mas como sinônimo destes, à medida que a arte possibilita sua afirmação, sua reinvenção.

Bibliografia DELEUZE, Gilles. Cinema 2: a imagem-tempo. Trad. Eloisa de Araújo Ribeiro. São Paulo: Editora Brasiliense, 1990. GIL, José. Diferença e negação na poesia de Fernando Pessoa. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. ______. Fernando Pessoa ou a metafísica das sensações. Lisboa: Relógio D`Água Editores, 1997.

próxima das questões levantadas por Orson Welles no filme F for Fake – Verdades e Mentiras (1974), onde o diretor questiona a veracidade do narrado realizando um falso documentário sobre falsários, exercendo na própria estrutura do filme sua proposta. 8 Entendida aqui em sua acepção tradicional, visto que Fernando Pessoa imprime sentidos bastante próprios ao termo ao longo de sua obra publicada.

NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das Letras, 2004. PESSOA, Fernando. Ficções do interlúdio. São Paulo: 1998. ______. Obra em prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005. ZAMBRANO, María. Filosofia y poesia. México: FCE, 1996.

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