François Dosse - Gilles Deleuze E Félix Guattari - Biografia Cruzada.pdf

  • Uploaded by: Rafael Mathias
  • 0
  • 0
  • June 2020
  • PDF

This document was uploaded by user and they confirmed that they have the permission to share it. If you are author or own the copyright of this book, please report to us by using this DMCA report form. Report DMCA


Overview

Download & View François Dosse - Gilles Deleuze E Félix Guattari - Biografia Cruzada.pdf as PDF for free.

More details

  • Words: 258,655
  • Pages: 229
EXPLORANDO GRANDES AUTORES

m X "1:1

r

,o )>

z

o

o

,

C\

)>

z o m

V>

',?Q~

1

J

'1111'

91.615 .:;

Conselho Editorial de Filosofia

FRANÇOIS DOSSE

Maria Caroh"na dos Santos Rocha (Presidente). Professora e Doutora em Filosofia Contemporânea pela ESA/ Paris e UFRGS/Brasil. Mestre em Sociologia pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS)/Paris.

Historiador, Professor do IUFM de Créteil, Université Paris XII

Fernando José Rodrigues da Rocha. Doutor em Psicolinguistica Cognitiva pela Universidade Católica de Louvain, Bélgica, com pós-doutorados em Filosofia nas Universidades de Kassel, Alemanha, Carneg:ie Mellon, EUA, Católica de Louvain, Bélgica, e Mame-la-Valle, França, Professor Associado do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Lia Levy. Professora Adjunta do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Doutora em História da Filosofia pela Universidade de Paris IV-Sorbonne, França. Mestre em Filosofia pela UFRJ. Nestor Luiz ]oão Beck. Diretor de Desenvolvimento da Fundação ULBRA. Doutor em Teologia pelo Concordia Seminary de Saint Louis, :Missouri, EUA, com pós-doutorado em Teologia Sistemática no Instituto de História Europeia em Mainz, Alemanha. Bacharel em Direito, Licenciado em Filosofia. Roberto Hojmeister Pich. Doutor em Filosofia pela Universidade de Bonn, Alemanha. Professor do Programa de Pós-Graduação em Filosofia pela PUCRS. Valeria Rohden. Doutor e livre-docente em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com pós-doutorado na Universidade de Münster, Alemanha. Professor titular de Filosofia na Universidade Luterana do Brasil.

GILLES DELEUZE & FÉLIX GUATTARI BIOGRAFIA CRUZADA

Tradução: Fatima Murad

Consultoria, supervisão e revisão técnica desta edição: Maria Carolina dos Santos Rocha Professora e Doutora em Filosofia Contemporânea pela ESA/Paris e UFRGS/Brasil Mestre em Sociologia pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS)/Paris D724g Dosse, François. Gilles Deleuze e Félix Guattari : biografia cruzada I François Dosse; tradução: Fatima Murad; revisão técnica: Maria Carolina dos Santos Rocha.- Porto Alegre: Artmed, 2010. 440 p. ; 25 cin + 1 encarte

0701091615

1111111 111111111 I 111

ISBN 978-85-363-2370-1 L Filosofia. 2. Gilles Deleuze - Biografia. 3. Félix Guattari Biografia.!. Título. CDU 101:929

Catalog~ção na pÚblicação: Ana Paula M. Magnus- CRB-10/Prov-009/10

2010

Obra originalmente publicada sob o título Gilles Deleuze et Félix Guatarri: biographie croisée

ISBN 978-2-7071-5295-4 © Editions La Découverte, Paris, France, 2007.

Capa: Tatiana Sperhacke

Agradecimentos

Fotos da capa © Raymond Depardon f Magnum Photos/Magnum Photos/Latinstock © Philippe Bouchon/AFP Preparação de original: Katia Michelle Lopes Aires Editora Sênior: Mônica Ballejo Canto Editoração eletrônica: Techbooks

. ~Ê~~s~~~~s1s~~cA) j

TOMBO_

I CLASSIFICAÇÃO

l

~.f&j~

ireiJ~._/.1 ~l?. .2 ;}lf7í,.... ,.· ~ svs



~\

Ri'''"

Reservados todos o S . ; : de

1

!

(ÕCf

GD1\::> .

pt~b :~~~~~=·~~a portuguesa, à

ARTMED® EDITORA S.A. Av. jerônimo de Ornelas, 670- Santana

90040-340 - Porto Alegre - RS Fone• (51) 3027-7000 Fax• (51) 3027-7070 Ê proibida a duplicação ou reprodução deste volume, no todo ou em parte, sob quaisquer

formas ou por quaisquer meios (eletrônico, mecânico, gravação, fotocópia, distribuição na Web e outros), sem permissão expressa da Editora. Unidade São Paulo Av. Embaixador Macedo Soares, 10.735- Pavilhão 5- Cond. Espace Center Vila Anastácio - 05095-035 - São Paulo - SP

Fone• (11) 3665-!100 Fax• (11) 3667-1333 SAC 0800 703-3444 IMPRESSO NO BRASIL •:.' PRJNTED IN BRAZIL

Agradeço a todos aqueles que generosamente me prestaram seu testemunho ao longo das entrevistas realizadas entre 2000 e 2006. Essa contribuição foi essencial. Constituiu um dos materiais mais importantes para a realização desta biografia cruzada de Gilles Deleuze e Félix Guattarí. Alfred Adler, Éric Alliez, Dudley Andrew, Bernard Andrieu, Manola Antonioli, Alain Aptekman, Olivier Apprill, Philippe Artieres, Zafer Aracagok, François Aubral, Danie!e Auffray, Jacques Aumont, Kostas Axelos, Alain Beaulieu, Raymond Bellour, Thomas Bénatouil, Réda Bensmaia, Denis Berger, Giuseppe Bianco, Pierre Blanchaud, Pascal Bonitzer, julian Bourg, Christian Bourgois, Constantin Boundas, Christine Buci-Glucksmann, Bernard Cache, Michel Cartry, Pascal Chabot, Pierre-Antoine Chardel, Noeile Châtelet, Jean Chesneaux, Michel Ciment, Pascale Criton, Andrew Cutro-fello, Fanny Deleuze, Christian Descamps, Marc-Alain Descamps, Jacques Donzelot, Jean-Marie Doublet, jean-Claude Dumoncel, Élie During, Corinne Enaudeau. Jean-Pierre Faye, Pierrette Fleutiaux, François Fourquet, Daniel Franco, Gérard Fromanger, Maurice de Gandillac. Roger Gentis, Fernando Gonzales, Frédéric Gros, Lawrence Grossberg,

Bruno Guattari. Emmanuelle Guattari, Jean Guattari, Alain et Daniele Guillerm, Nicole Guillet, Suzanne Hême de Lacotte, Eugene Holland, Michel Izard, Eleanor Kaufman, Lawrence Kritzmann, Christina Kullberg. David Lapoujade, Claude Lemoine, Jean-Louis Leutrat, Sylvain Loiseau, Sylvere Lotringer, Yves Mabin, Norman Madarasz, Robert Maggiori, ]osée Manenti, Jean-Paul Manganaro, Patrice Maniglier. Michel Marié, Jean-Clet Martin, Hervé Maury, Philippe Mengue, Alain Ménil, Catherine Millot, Olivier Mongin, Pierre Montebello, Liane Mozere, Lion Murard, Jean-Pierre Muyard, Stéphane Nadaud, Jean Narboni, Toni Negri, Miguel Norambuena, Jean Oury, François Pain, Dominique Paini, ]o Panaget, Thierry Paquot, André de Souza Parente, Giorgio Passerone, Paul Patton. Florence Pétry, Richard Pinhas, Rafael Pividal, Jean-Claude Polack, Matthieu Potte-Bonneville, Daniel Price, John Protevi, Olivier Querouil, Anne Querrien, David Rabouin, Jacques Ranciere, François Regnault, Olivier Revault dAllonnes, Judith Revel, Alain Roger, Jacob Rogozinski, Suely Rolnik, Élisabeth Roudinesco, Jean-Michel Salanskis, Elias Sanbar, Anne Sauvagnagues, Renê Schérer, Dominique Seglard, Guillaume Sibertin-Blanc, Danielle

vi

Sivadon, Gérard Soulier, Hidenobu Suzuki, ]ean-Baptiste Thierrée, Simon Tormey, Serge Toubiana, Michel Tournier, Michel Tubiana, Guy Trastour, Kuniichi Uno, Janne Vahanen, Paul Veyne, Arnaud Villani, Tiziana Villani,]. MacGregor Wise, Frédéric Worms, Chris You· nes, Dork Zabunyan, François Zourabichvi!L Agradeço imensamente também a Virginie Linhart por ter me passado as entrevistas que realizou para sua pesquisa sobre a vida de Félix Guattari. Ela me ofereceu gentilmente essa documentação excepcional de entrevistas que realizou ao longo do ano 2000: Éric Alliez, Raymond Bellour, Franco Be· rardi Bifo, Denis Berger,Jacky Berroyer, Novella Bonelli· Bassano, ]ack Briere, Brivette, Michel Butel, Michel Cartry, Gaby Cohn-Bendit, Marie Depussé, Gise!e Donnard,Jean-Marie Doublet, Hélime Dupuy de Lôme, Mony Elka!m, Patrick Farbias, Jean-Pierre Faye, François Fourquet, Gérard Fromanger, Gervaise Garnaud, Sacha Goldman, Bruno Guattari, Emmanuelle Guattari, Jean Guattari, Nicole Guillet, Tatiana Ke· cojevic, ]ean-Jacques Lebel, Sylvere Lotringer, Pierre Manart, Lucien Martin, Ramondo Mal· ta, Ginette Michaud, Gian Marco Montesano, Yann Moulier-Boutang, Lion Murard, Toni Ne· gri, Jean Oury, Pierre Pachet, François Pain, ]o Panaget, Jean-Ciaude Polack, Anne Querrien, Jacques Robin, Michel Rostain, Dominique Seglard, Gérard Soulier, Jsabelle Stengers, Mas· saki Sugimura, Paul Virilio, Claude Vivien. Agradeço imensamente também ao meu amigo ]ean-Christophe Goddard por ter-me

convidado a intervir em duas jornadas apaixonantes sobre O Anti-Édipo que organizou nos dias 2 e 3 de dezembro de 2005 na Universidade de Poitiers. Agradeço ainda a Anne Sauvagnargues e

Guillaume Sibertin~Blanc por terem me aceito em seu seminário "Leituras de Mil Platôs de Deleuze e Guattari", do grupo de trabalho "Deleuze, Espinosa e as ciências sociais", patrocinado pelo Centre d'Études en Rhétorique, Philosophie et Histoire des Idées (CERPHI) durante o período 2005-2006. Agradeço igualmente a Emmanuelle Guat· tari por seu apoio desde a formulação de meu projeto e a José Ruiz Funes por ter me facilita· do o acesso ao acervo Guattari do IMEC. Agradeço também a Fanny Deleuze, Em· manuelle e Bruno Guattari por terem me pas· sado e permitido que eu publicasse suas fotos pessoais. Agradeço, enfim, mas com um sentimento

intenso de reconhecimento, àqueles a quem confiei a árdua tarefa de serem meus primeiros leitores críticos e que me ajudaram a melhorar substancialmente o manuscrito inicial. Sem dúvida, devo muito a eles, tanto pelas inúmeras correções como pelas precisões e sugestões: Manola Antonioli, Raymond Bellour, François Fourquet, Hugues Jallon, Thierry Paquot, Guillaume Sibertin-Blanc e Danielle Sivadon. Evidentemente, agradeço àquela que

teve de sacrificar momentaneamente suas próprias pesquisas, pois suas qualidades de es· tilista me são indispensáveis, Florence Dosse.

Abreviações

A : !.Abécédaire de Gi/les Dele112e (avec Claire Parnet), Pierre·André Boutrang, 1988.

IncM : L'inconscient machinique, éd. Recherches, 1979.

AH: LesAnnées d'hiver, Barrault, 1985.

IT : Cinéma 2. L'lmage-temps, Minuit, 1985.

AO : Capitalisme et schizophrénie, t. 1 !.Anti-OEdzpe, Minuit, 1972.

K : Kafka. Pour une /ittérature mineure, Minuit, 1975.

B : Le Bergsonisme, PUF, 1966.

LS: Logique du sens, Minuit, 1969.

CC: Critique et clinique, Minuit, 1993. CH: Chaosmose, Galilée, 1992.

MP : Capitalisme et schizophrénie, t. 2 : Mi/le Plateaux, Minuit, 1980.

CZ : Cartographies schizoanalytiques, Galilée, 1989.

NEL : Les Nouveaux Espaces de liberté (avec Toni Negri), éd. Dominique Bedou, 1985.

D :Dialogues, avec Claire Parnet, Flammarion, 1977; rééd, augmentee, Champs Flammarion, 1996.

Nph : Nietzsche et la philosophie, PUF, 1962.

DR: Différence et répétition, PUF, 1968. ES : Empirisme et subjectivité, PUF, 1953.

PS : Proust et les signes, PUF, 1964 ; rééd aug· mentée, 1970. PCK : La Philosophie critique de Kant, PUE 1963.

FB : Francis Bacon. Logique de la sensation, La Différence, 1981, 2 vol.; rééd. Seuil, 2002.

Pli: Le Pli. Leibniz et !e baroque, Minuit, 1988.

F: Foucault, Minuit, 1986.

PT : Psychanalyse et transversalité, Maspero, 1972, rééd. La Découverte, 2003.

PP : Pourparlers, Minuit, 1990.

ID : L1te déserte et autres textes. Textes et entretiens 1953-1974, ed. David Lapoujade, Minuit, 2002.

Qph : Qu'est-ce que la philosophie ?, Minuit, 1991.

IM : Cinéma 1. L'fmage-mouvement, Minuit, 1983.

RF: Deux régimes de fous. Textes et entretiens 1975-1995, éd. David Lapoujade, Minuit, 2003.

vi i i

RM :La Révolution moléculaire, éd. Recherches, 1977.

SPE: Spinoza et le probleme de J'expression, Mi-

SM : Présentation de Sacher-Masoch (joint à L. VON SACHER-MASOCH, La Vénus à lajourrure), Minuit, 1967.

SPP: Spinoza. Philosophie pratique, PUF, 1981.

nuit, 1968. TE: Les Trais Écologies, Galilée, 1989.

Sumário

Prólogo .......... , , .. , .. , ........................................ 13 PARTE

1

I

DOBRAS: BIOGRAFIAS PARAlElAS

Félix Guattari: itinerário psica-político- 1930-1964 ..................... 29 "Y'a bon Banania". . A cena traumática . . . . . . . . . . . . . . .

Fim de guerra ......... O engajamento trotskista.. ..

. .. 29 . ..... 31

. ....... 32 .. .. .. .. . .. 35

.. .. .. .. .

Félix: um lacaniano precoce . .

2

. .... 39

La Borde, entre mito e realidade ................................ , ... 44 A filiação da psicoterapia institucional . Um novo construtor: Jean Oury .. . A invasão dos "bárbaros" ............. .

3

.. ... 44 . ........... 46 . ........ 50

A vida cotidiana em La Borde ........................ , .......... , .. , 56 Multiplicidade de agenciamentos institucionais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . O grupo de trabalho de psicoterapia e de socioterapia institucionais . . . . . .

Transversalidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

..........

A família Guattari e sua ruptura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

A prova por Lacan. . . . . . . .

. .... 56 . ..... 59

. ....... 61 . ..... 62

. .......................................... 67

As linhas de errância ..................................................... 63

4

A pesquisa crítica à prova da experiência ........................... , .. 72 A transdlsciplinaridade em ato. . . . . . . . . . . . . . .

. ......................... 72

Uma oposição de esquerda. . . . . . . . . . . . . . . . . . ...... 74 Em busca de um programa . . . . . . . . . . . . . . . . . . ............................. 78 5

Gilles Deleuze: o irmão do herói ............................. , ...... 82 As primeiras aprendizagens. . . . . . . . . . . . . . . . . . .

. .. 83

10

Sumário

Sumário

Um "novo Sartre" . . . . . . . . . . . . . ....... A ilha Saint-Louis. ........... Um despertador de vocações filosóficas. . . . . . . .

6

. .... 84 . 89 . ... 91

A arte do retrato . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9 7 Hume revisitado . . . . . . . Uma fase de latência. . . . . . . . . . . . . . . O incontornável Kant ........................... .

Proust em busca de verdade ....................... .

7

. .. 99 . 102 . ..... 107 . ........ 108

Nietzsche, Bergson, Espinosa: uma tríade para uma filosofia vitalista ....... 113 Um dos três mestres da suspeita: Nietzsche ................................... 113 Bergson: o impulso vital ................................................. 117 Um pensamento da afirmação: Espinosa ..................................... 122

8

O deleuzismo: uma ontologia da diferença ........................... 131 Inverter o platonismo e o hegelianismo.....

.......

. ... 131

A diferença por ela mesma . . . . . . . . . . . . . . . 132 O cogito rompido . . . . . . . . . . ........ ......... . ..... 136 A reabilitação dos vencidos . . . . . . . . . . . . . . . ............................ 138 A outra metafísica ...................................................... 141 Como um peixe na água ................................................. 147

9

Maio de 68: a ruptura instauradora ................................. 147 Como um peixe na água ................................................. 147 Deleuze à escuta de 1968 ................................................ 152

PARTE

11

DESDOBRES: BIOGRAFIAS CRUZADAS

11

14 Mil Platôs: uma geofilosofia do político .............................. 209 Lógicas espaciais .. .. .. .. .. .. . .. .. .. .. .. .. 214 O caso de um povo sem terra: o povo palestino ............................... 215 Uma pragmática política em escala mundial . . . . . ......................... 217

15 O CERFI em suas obras .......................................... 223 . . 224 Um grupo de pesquisa autogerido. Esclarecer as decisões do Estado .. . . 226 A arte do escândalo ............ . ....... . ............... 227 Grandes sucessos editoriais ............................................... 229 À escuta dos atores ..................................................... 233

16 A "revolução molecular": Itália, Alemanha, França ..................... 237 O maio de 68 italiano: 1977 .............................................. A reação de Bolonha. . . . . . . . . . . . . . . . ....... . ....................... ........ ........ . .... A placa de chumbo na Alemanha . ................ Os anos de chumbo italianos. . . . . . . . . . Do bobo da corte à liberação das ondas . . . . ......... . ...

237 241 243 245 248

17 Deleuze e Foucault: uma amizade filosófica .......................... 254 A aventura do Grupo de Informações sobre as Prisões ........................... 256 O momento das fraturas ................................................. 259 A Verdade ............................................................ 262 Jogos de espelhos ...................................................... 264 Dois filósofos do acontecimento ........................................... 265 Deleuze, leitor de Foucault ............................................... 267 O desaparecimento ..................................................... 268

1O Fogo no psicanalismo ........................................... 15 7

18 Uma alternativa à psiquiatria? ..................................... 274

Lacan em Lyon com Deleuze .............................................. 158 Lacan-Deleuze em situação de proximidade .................................. 159 Um dispositivo de trabalho a duas vozes ..................................... 163 Uma tentativa de antropologia histórica ...................................... 168 Para uma esquizoanálise ................................................. 171

Anti psiquiatria ......................................................... 2 74 .. ............. 277 A "Rede Alternativa à Psiquiatria" . . . .. . . . . . .. . . .. . .. . . . . . Acusações de pedofilia .................................................. 278 Gourgas tomada de assalto ............................................... 280 A internacionalização da rede ............................................. 280

11 O Anti-Édipo .................................................. 175

19 Deleuze em Vincennes .......................................... 284

A linha de fuga que permite evitar o perigo do terrorismo ........................ 175 Um sucesso editorial estrondoso ........................................... 176 Teses discutidas do lado dos analistas ........................................ 177 Os apoios de Girard, Lyotard, Foucault ...................................... 180 O Anti-Édipo a distância ................................................. 183

O caldeirão de Vincennes ................................................ 284 Lutas internas ......................................................... 286 Deleuze pedagogo ..................................................... 291

12 A máquina contra a estrutura ...................................... 189 Uma máquina de guerra contra o estruturalismo ............................... 189 Inverter o estruturalismo pelas ciências humanas ............................... 194 Inverter a semiologia estrutural ............................................ 194 A esquizoanálise contra a psicanálise ........................................ 197 Uma antropologia política contra a antropologia estrutural. ....................... 198

13 A literatura "menor" sob um olhar cruzado ........................... 202 "É um rizoma, uma toca" ................................................. 202 O acontecimentQ,Kafka .................................................. 205

20 1977: o ano de todos os combates ................................. 298 O "fascismo da batata" .................................................. 300 Os novos filósofos: "um trabalho de porco" ................................... 306

PARTE

111

SOBREDOBRAS: BIOGRAFIAS PARALELAS

21 Guattari entre ação cultural e ecologia ............................... 313 As alamedas do poder ................................................... 313 Relações tumultuadas ................................................... 315 A revolução ecológica ................................................... 316 Caosmose ............................................................ 320 O desmoronamento de um mundo: 1989 .................................... 321

12

Sumário

22 Deleuze vai ao cinema ........................................... 325 Um companheiro dos Cahiers du Cinéma .. 325 Uma nova metafísica bergsoniana.. Crítica da semiologia do cinema . . .......... Os pioneiros do estudo cinefíllco na universidade.

O sismo de 1939-1945...........

. . 331 . .......... 333 .......... . . 335

.........

. .............. 337

Da imagem-movimento à imagem-tempo . .

. . 338

O pensamento-imagem................

. .. 340

Prólogo

23 Guattari e a estética ou a compensação aos anos de inverno .............. 345 Joséphine . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

. .. 346

Ser escritor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

. . 348

24 Deleuze dialoga com a criação .................................... 354 Trabalhar com os artistas . . . . . . . . . ............ 354 Da música antes de qualquer coisa . . . ........... As dobras da imanência. ..................

"Nós dois" ou o entre-dois

. ......... 360 . .. 365

25 Uma filosofia artista ............................................. 372 Filosofar é criar conceitos ..... . Afetos e perceptos ............. .

. .. 372 . .. 375 . ..................... 376

Uma estética da vida .......... .

26 À conquista do Oeste ........................................... 379 O passador Lotringer .... . A admiração americana .. .

. ...... 379 . ....................................... 387

2 7 Sob todas as lafltudes ........................................... 392 Rumo ao extremo oeste. . . . O turno universitário. . . . . . . . . . . . . . . . .

Uma terra de escolha: o Japão. . . . . . . . . . . O Brasil: terra de esperanças. . . . . . . . . . . . As fronteiras mexicanas. . . . . . . . . . .

. ............................... 382 . ................................ 383

. .............................. 393 . ........................ 395 . ......................... 397

Um chileno escapa de Pinochet. ........................................... 398 Uma terra de escolha: a Itália . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .... 399

28 Dois desaparecimentos .......................................... 402 O amigo chorado . . . . . . . . . .......................................... 403 A falta de ar até a morte . . . . . . . . . . ................................. 405

29 A obra trabalhando ............................................. 411 Os primeiros comentadores: um desdobramento da obra ........................ 411 A alternância por uma nova geração ........................................ 412

Uma nova radicalidade cultural e política .................................... 414 Críflcasda crítka ....................................................... 416 Um pensamento do maquínico moderno .................................... 417 Uma atualidade crescente ................................................ 420

Conclusão ....................................................... 425

~~ .......................................................... ~9

A quatro mãos. A obra de Gilles Deleuze e Félix Guattari até hoje é um dilema. Quem es· creveu? Um ou o outro? Um e o outro? Como foi possível desenvolver uma construção intelectual comum entre 1969 e 1991, para além de sensibilidades tão diferentes e estilos tão contrastantes? Como podem ter sido tão próxi· mos sem jamais abandonar uma distância manifesta no fato de se tratarem mutuamente por senhor? Como relatar essa aventura única por sua força propulsora e sua capacidade de fa· zer emergir uma espécie de "terceiro homem", fruto da união dos dois autores? Parece difícil captar em seus escritos o que toca a cada um. Evocar um hipotético "terceiro homem" seria, sem dúvida, um pouco apressado, na medida em que, ao longo de sua aventura comum, um e outro souberam preservar sua identidade e seguir um percurso singular. Em 1968, Gilles Deleuze e Félix Guattari evoluem em duas galáxias diferentes. Nada predestina seus dois mundos a se encontrar. De um lado, um filósofo reconhecido que já publicou boa parte de sua obra e, de outro, um militante que se move no campo da psicanálise e das ciências sociais, administrador de uma clínica psiquiátrica e autor de alguns

artigos. Mesmo que, sem cair em um finalismo histórico, se possam subscrever as palavras do jornalista Robert Maggiori, que qualifica esse encontro de "predestinadO'\ como essas duas galáxias acabam entrando em contato? Como se verá, a explosão de maio de 1968 foi um momento de tal intensidade que possibi· litou os encontros mais improváveis. Primeiramente, de forma mais prosaica, houve, no começo desse encontro, um intermediário, um personagem mercuriano, subterrâneo e fundamental: o doutor Jean-Pierre Muyard, que trabalhava em La Borde prova disso é a dedicatória pessoal que lhe escreve Félix Guat· tari na primeira obra comum, O Anti-Édipo: "A ]ean·Pierre, o verdadeiro culpado, o indutor, o iniciador desta empreitada perniciosa". Jean-Pierre Muyard estudou medicina em Lyon no final dos anos 1950. Militante da ala esquerda da Union Nationale des Étudiants de France (UNEF), que se opõe ativamente à guerra da Argélia, ele se torna presidente da seção de Lyon em 1960. Conhece ]ean·Ciaude Polack, então presidente da Association Gé· nérale des Étudiants en Médicine de Paris. Pa· ralelamente à especialização em psiquiatria, Muyard faz cursos de sociologia na Faculdade

14

Gilles Deleuze & Félix Guattari

Fmnrr>is Dosse

de Letras em Lyon. Entre outros, assiste com a maior paixão aos cursos do filósofo Henry Maldiney. Em 1965, Muyard torna-se vice-presidente da Mutuelle Nationale des Étudiants de France (MNEF) e participa ativamente da implantação dos Bureaux dAide Psychologique Universitaires (BAPU). Encontra Guattari

pela primeira vez por ocasião de um seminário da oposição de esquerda que se realiza em 1964 em Poissy e para o qual foi convidado por Polack: "Recordo-me da impressão, eu diria fisiológica, que Guattari me causou de imediato - uma espécie de estado vibratório incrível, como um processo de conexão. O contato com

ele aconteceu ali, e eu aderi mais ao movimento de energia do que à personalidade, à pessoa. Sua inteligência era excepcional, o mesmo tipo de inteligência que Lacan, uma energia lucife2 riana. Lúcifer sendo o anjo da luz" • Em 1966, Nicole Guillet pede a Muyard que se instale em La Borde, onde faltam médicos, para atender ao afluxo de pensionistas. Ele se acomoda ali por um tempo- ficará até 1972. Por seus engajamentos, sua atividade profissional em LaBorde, "Doe Mu" faz parte plenamente do "bando de Félix". Quando era estudante em Lyon, Muyard

ouvira falar dos cursos de Deleuze por seus colegas entusiastas da faculdade de letras. Tendo mantido contatos em Lyon, ele vai para lá de tempos em tempos. Em 1967, fica fascinado com a apresentação que Deleuze publica de 3 Sacher-Masoch . Os dois homens tornam-se amigos, e Deleuze, desejoso de conhecer melhor o mundo dos psicóticos, mantém um diálogo permanente com Muyard: "Ele me diz:

falo da psicose, da loucura, mas sem nenhum conhecimento de dentro. Ao mesmo tempo, ele era fóbico em relação aos loucos. Ele não 4 conseguiria ficar por uma hora em La Borde" • Em 1969, Muyard se cansa do ativismo desenfreado que Guattari promove em La Borde, onde desfaz incessantemente os grupos constituídos para formar outros: "Ele dependia daquilo que se dá hoje às crianças hiperativas, um medicameqto chamado Ritalina. Era preciso encontrar.llm meio-de acalmá-lo.

Contudo, ele dizia ter vontade de escrever e 5 não escrevia nunca" • Muyard pensa em um estratagema: decide apresentar Deleuze e Guattari. Em junho, ele embarca em seu carro Félix Guattari e François Fourquet e os conduz a Saint-Léonard-de-Noblat, em Limousin. A sedução mútua é imediata. Guattari é inesgotável nos temas que interessam a Deleuze, a loucura, La Borde e Lacan - ele acaba de preparar uma exposição inicialmente destinada à Escola Freudiana de Paris sobre "Máquina e estrutura:"6• Para sua demonstração, retoma os conceitos lançados por Deleuze em Diferença e Repetição e em Lógica do Sentido. Esse texto é importante. Até então, Guattari estava na posição de discípulo de Lacan e começava a se apresentar como um interlocutor, desejando inclusive obter junto de seu mestre a postura do parceiro privilegiado. A ambiguidade da atitude de Lacan em relação a ele e a escolha feita por este último de privilegiar o clã dos althusserianos-maoístas da Rue d'lJlm, como Miller e Milner, colocam de fato Guattari na sombra: "Quando entrei em contato com Deleuze em 1969, realmente aproveitei a oportunidade. Avancei na contestação do lacanismo em dois pontos: a triangulação edipiana e o caráter reducionista de sua tese do significante. Pouco a pouco, todo o resto se esboroou como 7 um dente cariado, como um muro detonadd' • De sua parte, Deleuze passa por uma virada em sua obra. Depois de ter-se consagrado à história da filosofia, com Hume, Kant, Espinosa, Nietzsche, ele acaba de publicar dois livros mais pessoais em 1969: sua tese Diferença e Repetição' e Lógica do Sentido'. A filosofia é fortemente contestada na época pelo estruturalismo e sua ala avançada, o lacanismo. O "psicanalismd' ambiente e a devoção geral por Lacan soam como um desafio lançado ao filósofo. O encontro com Guattari oferecerá a Deleuze uma oportunidade magnífica de responder a isso. No momento de seu encontro com Guattari, Deleuze está em convalescença. Atacado de tuberculose, fora submetido um ano antes a uma cirurgia complicada- retiraram-lhe um

pulmão - que o levará a sofrer de uma insuficiência respiratória crônica até a morte. Debilitado, ele deve repousar por um ano, na calma. em Limousin. Contudo, a debilidade é também uma abertura, como mostra Deleuze a propó10 sito de Beckett . Esse estado é propício a um encontro. Tanto mais que Deleuze está à beira de um outro precipício do qual fala em O Abecedário: o alcoolismo. O encontro com Guattari será essencial para ele superar esse impasse. Para prosseguir e aprofundar o diálogo iniciado com Deleuze sobre a psiquiatria, Muyard sugere promover um encontro de Deleuze e Guattari em Dhuizon, em um castelo alugado por Guattari, próximo a La Borde. É lá que o trio Gilles Deleuze,Jean-Pierre Muyard e Félix Guattari debate o conteúdo da obra que virá a ser O Anti-Édipo. Uma carta de François Fourquet ao seu amigo Gérard Laborde, datada de 19 de agosto de 1969, evoca a atmosfera que reina em Dhuizon: "O contexto aqui é cômico. A presença de Deleuze em Dhuizon desencadeou uma série de fenômenos, e a meu ver essa série vai se prolongar por muito tempo. Há muita gente em Dhuizon: além de Félix e Arlette, há Rostain, Liane, Hervé, Muyard, Elda, etc. Toda essa gente se alvoroça em torno de uma cena primitiva que se repete todas as manhãs: Félix e Deleuze criam, intensamente, Deleuze toma notas, ajusta, critica, remete à história da fllosofia as produções de Félix Em suma, as coisas funcionam, não sem deixar alguns rastros de transtornos na pequena famflia (na qual nos incluímos Genevieve e eu), tanto mais que um dos pequenos irmãos tem o privilégio de assistir ao combate dos deuses: Muyard, que historicamente esteve na origem da relação com Félix"". Muyard ainda atua um pouco como mediador, antes de se eclipsar: "Eu tinha cumprido minha tarefa, e Mefisto se retira. Minha intuição é que esse não era mais meu lugar, embora Deleuze tivesse vontade de trabalhar comigo e me quisesse presente nas sessões, eu sentia que incomodava Félix. A operação alquímica funcionou, e por longo tempo"". Antes de seu primeiro encontro, Deleuze e Guattari tinham trocado algumas cartas,

15

na primavera de 1969, em que testemunham a amizade nascente. "Caro amigo, nem tenho palavras para lhe dizer o quanto fiquei tocado com a atenção que o senhor teve a gentileza de dedicar aos diversos artigos que lhe enviei. Uma leitura lenta, muito minuciosa, de Lógica do Sentido me leva a pensar que há uma espécie de homologia profunda de 'ponto de vista' entre nós. Encontrá-lo quando isso for possível para o senhor constitui para mim um acontecimento já presente retroativamente a partir 3 de varias origens,.I , escreve Guattari em 5 de abril de !969, revelando a Deleuze seu bloqueio de escrita e sua incapacidade de atribuir a ela o tempo necessário, em razão de suas atividades em La Borde. Em contrapartida, ele tem a impressão de se comunicar com Deleuze como que por ultrassons com Lógica do Sentido. Em uma carta anterior que enviou a um de seus ex-alunos, Ayala, Deleuze manifestou o interesse que teria de reunir todos os textos que lhe foram passados por Guattari. Félix permanece cético: "Será que tudO isso não é uma espécie 14 de bazófia. de vigarice?" Pouco tempo depois, em maio de 1969, Deleuze escreve a Guattari: "Eu também sinto que somos amigos antes de nos conhecermos. Peço perdão também por insistir no seguinte ponto: é evidente que o senhor inventa e maneja alguns conceitos complexos muito novos e importantes, fabricados em articulação com a pesquisa prática de La Borde -por exemplo, fantasia de grupo ou, então, seu conceito de transversalidade, que me parece ser de natureza a suplantar a velha, mas sempre ressuscitante, dualidade 'inconsciente pessoal/ 15 inconsciente coletivo' ". Deleuze estima que esses conceitos precisam ser submetidos a uma elaboração teórica, e não concorda com Guattari quando ele sustenta que a efervescência em curso não é o momento mais propício; isso seria o mesmo que afirmar que "só se pode escrever realmente quando as coisas vão bem, em vez de ver na escrita um fator modesto, mas ativo e eficaz, de se afastar um pouco da frente de batalha e de ficar melhor 16 por s1. mesmo" . De Ieuze tenta convencer

16

Gilles Deleuze & Félix Guattari

François Dosse

Guattari de que a hora chegou. Finalmente, "a outra solução, publicar os artigos como tais, é 7 desejável e a melhor»> • Ela será Psicanálise e Transversa/idade, publicado em 1972 e prefa18 ciado por Deleuze • Em 1º de junho de 1969, Guattari se abre com Deleuze sobre suas fraquezas e as razões

de sua "grande confusão extremista'' 19• Na base dessa desordem de escrita, estaria uma falta de trabalho, de leituras teóricas sustentadas e um medo de cair de novo naquilo que foi deixado para trás há muito tempo. Seria preciso acrescentar uma história pessoal complicada,

com um divórcio no horizonte, três filhos, a clí~ nica, os conflitos de todas as ordens, os grupos 20 militantes, a FGERI ... Quanto à elaboração propriamente dita, para ele "os conceitos são 21 instrumentais, truques" • Logo após seu primeiro encontro de junho de 1969, Deleuze escreve a Guattari para lhe

dar alguns esclarecimentos sobre a maneira de encarar um trabalho comum: "Seria preciso evidentemente abandonar todas as fórmulas de polidez, mas não as fOrmas de amizade que permitem que um diga ao outro: o senhor está se traindo, não estou entendendo, isso não está bom ... Seria preciso que Muyard participasse plenamente dessa correspondência. Seria preciso, enfim, que não houvesse uma regularidade forçada"'. Deleuze retém de suas primeiras trocas que "as fOrmas de psicose não passam por uma triangulação edipiana, pelo menos não necessariamente e não da maneira como se diz. Isso é o essencial para começar, ao que me parece ... A gente não foge muito ao 'familiarismo' da psicanálise, de papai-mamãe (meu texto que o senhor leu permanece absolutamente tributário dela) ... Trata-se então de mostrar como na psicose, por exemplo, mecanismos socioeconômicos são capazes de incidir diretamente no inconsciente. Isso não significa evidentemente que eles incidam como tais (como mais-valia, taxa de lucro... ), mas sim algo muito mais complicado, que o senhor aborda em outra ocasião quando diz que os loucos não fazem Sifi1p1esmente cosmogonia, mas também econoillia-política ou quando vê

com Muyard uma relação entre crise capitalista e crise esquizofrênica'm. Ele acrescenta que a maneira como as estruturas sociais incidem "diretamente" no inconsciente psicótico poderia ser captada graças aos dois conceitos de Félix Guattari "de máquina e de antiprodução", que ele conhece muito mal ainda. Assim, Deleuze acompanha Guattari em sua crítica do familiarismo: ''A direção aberta pelo senhor parece-me muito rica pela seguinte razão: faz-se uma imagem moral do inconsciente, seja para dizer que o inconsciente é imoral, criminal, etC., mesmo que se acrescente que está muito bem assim, seja para dizer que a moral é inconsciente (superego, lei, transgressão). Eu disse certa vez a Muyard que isso não funcionava, e que o inconsciente não era religioso, não tinha nem 'lei', nem 'transgressãO, e que isso era besteira ... Muyard respondera que eu estava exagerando, e que a lei e a transgressão, tais como emanam de Lacan, não têm nada a ver com tudo isso. Com certeza ele tinha razão, mas isso não tem a menor importância, pois é toda a teoria do superego que me parece falsa, e toda a teoria 24 da culpabilidade" • Essa carta, escrita pouco antes das longas sessões de trabalho do mês de agosto de 1969, em Dhuizon, revela-nos que o principal alvo de O Anti-Édipo, publicado três anos depois, já estava claro: a "triangulação edipiana'' e a redução familiarista do discurso psicanalítico. Guattari responde muito rápido a Gilles Deleuze, em 19 de julho, explicitando seu conceito de máquina que "expressa metonimicamente a máquina da sociedade industrial"". Além disso, em 25 de julho envia a Deleuze algumas notas que já estabelecem um traço de equivalência entre o capitalismo e a esquizofrenia: "O capitalismo é a esquizofrenia, ainda que a sociedade-estrutura possa não ter assumido a 26 produção de 'esquizo' :' Sua relação situa-se de imediato no âmago dos desafios teóricos. Provém de uma cumplicidade amigável e intelectual imediata. Contudo, essa amizade jamais será fusional, e sempre se tratarão rigorosamente por senhor,

embora ambos utilizem com muita facilidade o você. Oriundos de dois mundos diferentes, um respeita o outro e sua rede de relações em sua diferença. A condição mesma do êxito ele sua empreitada intelectual comum passa pela mobilização de tudo o que constitui a diferença de suas personalidades, na ativação daquilo que contrasta e não na osmose artificiaL Eles têm uma concepção muito elevada da amizade: "Eles mantinham essa distância que Jankélévitch chamava de 'distância amativa', que é uma distância que não se fixa. Ao contrário da distância gnoseológica, a distância ama Uva 27 decorre de uma aproximação/afa,stamento" • Com certeza. Guattari, pela angústia do face a face com Deleuze, e porque sempre funcionou ''em grupo'', desejaria envolver seus amigos do 28 CERFl • A chegada de Deleuze a Dhuizon era a oportunidade, o primeiro círculo do CERFl estava lá, e tudo o que esperava era participar. Contudo, o testemunho de François Fourquet é muito claro, não foi o que aconteceu. Deleuze tem horror a discussões de grupo não fundamentadas, e não pode nem quer imaginar um trabalho que não seja a dois, no máximo a três. A companheira de Guattari, Arlette Donati, transmitiu então a Félix as reservas de Deleuze. A elaboração de seu primeiro livro será feita 29 sobretudo por via epistolar • Esse dispositivo pactuado de escrita tumultua a vida cotidiana de Guattari, que precisa mergulhar em um trabalho solitário com o qual não está acostumado. Deleuze espera dele que se debruce em sua mesa de trabalho desde que acorde, que ponha no papel suas ideias (ele tem três no momento) e que lhe envie todos os dias, mesmo sem reler, o produto de suas reflexões em estado bruto. Assim, ele submete Guattari a essa ascese que considera indispensável para superar seus problemas de escrita. Guattari adere plenamente ao jogo e se retira em seu escritório, trabalhando como um condenado. Ele que passava o tempo dirigindo seus "bandos" encontra-se confinado na solidão de seu gabinete· de trabalho todos os dias até as 16 horas. Só vai a La · Borde no fim da tarde, muito rápido, e em geral está de volta a Dhuizon antes da 18 horas. Jean

17

Oury viu essa mudança como um "abandono": Guattari, onipresente na vida cotidiana de La Borde, se desinveste para se consagrar ao trabalho com Deleuze. É preciso inclusive que sua companheira, Arlette Dona ti, leve seu almoço, pois ele não se autoriza nenhuma pausa. No essencial, o dispositivo de escrita de O Anti-Édipo é constituído pelo envio de textos preparatórios escritos por Guattari, que Deleuze retrabalha e aprimora em vista da versão final: "Deleuze dizia que Félix era o descobridor de diamantes e que ele era o talhado r. Portanto, era preciso apenas que lhe enviasse os textos tal como os escrevia para que ele os arranjasse, e foi o que ocorreu" 30• Sua realização comum passa, portanto, mais pela troca de textos do que pelo diálogo, ainda que eles estabeleçam uma reunião de trabalho semanal na casa de Deleuze na terça-feira à tarde, dia em que este último dá aula em Vincennes pela manhã. Nos feriados é Deleuze que vai ao encontro de Guattari, mas longe da loucura que ele não suporta: "Um dia, estamos jantando em Dhuizon, Félix, Arlette Donati, Gilles e eu quando o telefone toca de La Borde, anunciando que um sujeito havia posto fogo na capela do castelo e fugido para os bosques. Gilles empalidece, eu não-me mexo e Félix pede ajuda para encontrar o sujeito. Gilles me diz nessa ocasião: 'Como você pode suportar os esquizos?'. Ele não conseguia suportar a visão de loucos"31 • Sobre seu trabalho comum, tanto Deleuze quanto Guattari se explicaram muitas vezes, expondo-se apenas parcialmente. Relatando sua escrita a dois quando do lançamento de O Anti-Édipo, Guattari esclarece: "Essa colaboração não é o resultado de um simples encontro entre dois indivíduos. Além do concurso das circunstâncias, houve também todo um contexto político que nos conduziu a isso. Tratava-se, na origem, não tanto do compartilhamento de um saber, mas do acúmulo de nossas incertezas, e mesmo de uma certa confusão diante do rumo que tomaram os acontecimentos depois de maio de 1968""- Deleuze, por sua vez, comenta: "Quanto à técnica desse livro, escrever a dois não causou nenhum problema

18

Cilles Deleuze & Félix Guattari

François Dosse

particular, mas teve uma função precisa que fomos percebendo progressivamente. Uma coisa muito chocante em livros de psiquiatria ou mesmo de psicanálise é a duplicidade que os perpassa entre o que diz um suposto doente e o que diz o terapeuta sobre o doente ... Mas, curiosamente, se tentamos superar essa dualidade tradicional, era justamente porque escre-

víamos a dois. Nenhum de nós era o louco, nenhum era o psiquiatra, eram necessários dois para desencadear um processo ... O processo é »33 o que ch amamos dfl e uxo . Mais tarde, em 1991, por ocasião do lançamento de O que é a filosofia?, Robert Mag-

giori tem uma longa entrevista com eles, mais urna oportunidade de se explicarem sobre seu encontro e sobre sua colaboração: "Meu encontro com Félix se deu sobre as questões de psicanálise e de inconsciente. Félix me proporcionou uma espécie de campo novo, me fez descobrir uma área nova, embora eu já tivesse falado de psicanálise antes, e era isso que lhe 34 interessavá em mim" • Nos relatos sobre o encontro, o intermediário ]ean-Pierre Muyard "desapareceu''. Deleuze afirma: "Foi Félix que veio me procurar"; Guattari confirma: "Eu então é que fui procurá-lo, mas, em um segundo momento, foi ele que me propôs o trabalho comum"'l5. Ainda que permaneçam pouco loquazes sobre a elaboração do manuscrito- um "segredo'', diz Deleuze -, eles são mais prolixos sobre seu trabalho comum. Deleuze invoca a figura de Kleist para descrever o que se passa com Guattari. Elaborar uma ideia falando passa pelo gaguejo, pela elipse, pelos sons desarticulados -"não somos nós que sabemos alguma coisa, mas é antes de tudo um certo estado de nós .. :' - e Deleuze 36 afirma que "é mais fácil a dois" se pôr nesse estado. Eles têm ao mesmo tempo sessões orais em que, ao final de uma decantação do diálogo, são decididos os temas a trabalhar: em seguida, cada um se entrega ao trabalho de escrita de versões sucessivas que circulam de um ao outro: "Cada um funciona como incrustação ou citação no texto do outro, mas, passando um instan:t€, nã~s~. sabe mais quem

está citando quem. É uma escrita com variações"37. Evidentemente, essa elaboração comum pressupõe uma comunidade de ser, de pensamento, de reatividade ao mundo: ''A condição para poder efetivamente trabalhar a dois é a existência de um fundo comum implícito, inexplicável, que nos faz rir ou nos preocupar com as mesmas coisas, ficar desanimados ou 38 entusiasmados com coisas análogas" • Guattari também lembra ao mesmo tempo as sessões orais e as trocas de versões escritas. Seu diálogo continua sendo o de duas pessoas de caráter bem oposto: "Somos muito diferentes um do outro, de modo que os ritmos de adoção de um tema ou de um conceito são diferentes. Mas há também, é claro, uma complementaridade. Quanto a mim, sou mais propenso a operações aventureiras, de 'comando conceitual', digamos, de inserção em territórios estrangeiros. Já Gilles possui armas pesadas filosóficas, toda uma intendência bibliográfica ... "39 • Deleuze, que sempre teve horror às discussões que decorrem, segundo ele, da troca estéril de opiniões, opõe a isso a prática de conversar, que, ao contrário, instaura uma verdadeira polêmica interna à enunciação. Seu diálogo decorre de uma verdadeira ascese: "Um fica calado quando o outro fala, isto não é apenas uma lei para se compreender, para se ouvir, mas significa que um se coloca per40 petuamente a serviço do outro" • Mesmo que a ideia apresentada por um pareça absurda ao outro, a vocação do outro deve ser procurar seus fundamentos e não a discutir: "Se eu lhe dissesse que no centro da terra há geleia de groselha, seu papel seria descobrir o que poderia comprovar tal ideia (se é que isso é uma ideia!)" 41 • Dessa troca nasce uma verdadeira "máquina de trabalho", na qual é impossível saber o que vem de um ou do outro. O que importa, explica Deleuze, é a transformação do "é" em "e", não no sentido de uma relação particular e puramente conjuntiva, mas no sentido do envolvimento de toda uma série de relações. O "e" é atribuído à possibilidade de criação, à gagueira criadora, à multiplicidade: "O E não é nem um nem outro, é

sempre os dois, é a fronteira, há sempre uma fronteira, uma linha de fuga ou de fluxo, apenas não se pode vê-la, porque ela é menos perceptível. No entanto, é nessa linha de fuga que as coisas se passam, os devires se fazem, as re2 voluções se esboçam"~ • Isso constitui o caráter absolutamente único de seus livros. Partir em busca de uma paternidade deste ou daquele conceito é, como escreve Stéphane Nadaud, "menosprezar um conceito essencial 4 em seu trabalho: o do agenciamento" :l. Todo o seu dispositivo de escrita consiste em esta~ belecer um agenciamento coletivo da enunciação, que é o verdadeiro pai dos conceitos inventados. Será que com isso ele dá origem a um terceiro homem resultante da coalescência dos dois, um Félix-Gilles, um "Guattareuze", como satirizou o desenhista Lauzier? É o que se poderia pensar ao ler as seguintes palavras de Deleuze: "Não colaboramos como duas pessoas. Éramos mais como dois córregos que se juntam para formar 'um' terceiro que serí44 amos nós" • Mas não é assim, e já dissemos a que ponto eles respeitaram uma certa distância, conservaram sua diferença, preservaram sua singularidade tratando-se por senha" "Há entre nós uma verdadeira política dissensual, não um culto, mas uma cultura de heterogeneidade, e que fez com que cada um de nós reconhecesse e aceitasse a singularidade do outro ... Se fazemos alguma coisa juntos é porque isso funciona, e porque somos levados por algo que está além de nós. Gilles é meu amigo, 45 não meu companheiro'' • A ideia desse agenciamento é fundamental para compreender a singularidade do dispositívo. Deleuze explica isso ao seu tradutor japonês Kuniichi Uno: "A enunciação não remete a um sujeito. Não há sujeito de enunciação, mas apenas agenciamento. Isso significa que, em um mesmo agenciamento, há 'processos de subjetivação' que vão designar diversos sujei46 tos, uns como imagens e outros como signos" • É, aliás, com esse tradutor japonês, Uno, seu ek -aluno que se tornou um amigo, que Deleuze se abre mais explicitamente sobre as modalidades de seu trabalho conjunto. Ele apresen-

19

ta Guattari como uma "estrela" de grupo e faz uma bela metáfora para expressar a natureza de sua ligação, a do encontro do mar que vai encalhar em uma colina: "Seria preciso compará-lo [Félix] a um mar aparentemente sempre em movimento, com explosões de luz o tempo todo. Ele pode saltar de uma atividade a outra, dorme pouco, viaja, não para. Ele não se inter~ rompe. Tem velocidades extraordinárias. Eu seria mais como uma colina: mexo-me muito pouco, sou incapaz de tocar duas atividades, minhas ideias são fixas, e os raros movimentos que tenho são interiores ... Nós dois juntos, Fé17 lix e eu, daríamos um bom lutador japonês"' • Deleuze acrescenta: "Somente quando se olha Félix mais de perto, percebe-se que ele é muito sozinho. Entre duas atividades, ou no meio de muita gente, ele pode mergulhar em uma grande solidão"". Ele explica ao seu amigo japonês a que ponto vê Guattari como um criador de ideias de uma mobilidade e de uma inventividade que encontrou raríssimas vezes: "Suas ídeias são desenhos ou mesmo diagramas. A 19 mim o que interessa são os conceitos"' • Com seu conceito de máquina e sua proposição de substituí-lo à noção de estrutura, Guattari oferece a Deleuze uma possível porta de saída do pensamento estrutural, o que a Lógica do Sentido já procurava. Nesse plano, o da crítica de Lacan e de seu "inconsciente estruturado como uma linguagem", e no nível da consciência política, Guattari está à frente de seu amigo quando se encontram em 1969. Embora Deleuze esteja em vantagem na história da filosofia, ele reconhece em I 972 que estava atrasado em relação ao amigo em alguns campos importantes. "Eu trabalhava na época unicamente nos conceitos, e ainda de forma muito tímida. Félix me falou do que ele já chamava de máquinas desejantes: toda uma concepção teórica e prática do inconsciente-máquina, do inconsciente-esquizofrenia. Por isso, tive a impressão de que ele é que estava em vantagem 50 sobre mim ... " • Criou-se então a oportunidade de trabalhar juntos, da contribuição mútua, do humor, de momentos de pura diversão e mesmo, como diz seu amigo comum Gérard

20

Gil!es Deleuze & Félix Guattari

Dosse

Fromanger, "eles estavam orgulhosos um do outro, e um se sentia honrado pelo outro, por ser ouvido pelo outro. Tinham uma confiança enorme um no outro, eram como gêmeos não idênticos que se completam. Não havia entre eles nenhuma inveja, nenhuma reserva nas sessões. A qualidade do que escreviam decorria disso, dessa espécie de abertura total, de dádiva de confiança''51 • Juntos, formam um verdadeiro laboratório de experimentação de conceitos em sua eficá~ cia graças ao caráter transversal do procedimento. A contribuição de Guattari a Deleuze terá sido sobretudo a de um sopro de oxigênio em um universo onde está rarefeito: "Sentia-se que ele tinha urna espécie de júbilo em encontrar Félix. Quando se viam, tinha-se a impressão de que eles ficavam contentes de se encontrar. Contudo, não se viam muito, pois sabiam 52 que as relações humanas são frágeis" • A diferença de personalidades de Guattari e Deleuze produz como que um motor em dois tempos:· "Nunca tivemos o mesmo ritmo. Félix me criticava por não responder às cartas que me mandava: é que eu nunca estava em condições a tempo. Eu só conseguia fazer isso muito mais tarde, um ou dois meses depois, 53 quando Félix já tinha passado adiante" • Ao contrário, no corpo a corpo das sessões de trabalho, um instiga o outro em sua fortaleza até o esgotamento total das forças dos dois lutadores, até que o conceito discutido e disputado possa levantar vôo, sair de sua ganga, a partir de um trabalho de proliferação, de disseminação: "Para mim, Félix tinha verdadeiros relâmpagos, enquanto eu era uma espécie de para-raios, eu enfiava na terra para que renascesse de outra fOrma, e Félix retomava, etc., e assim avançávamos"s.1• Em agosto de 1971, O Anti-Êdipo dá lugar a uma última e longa sessão de trabalho juntos, na baía de Toulon, em Brusc-sur-Mer. As duas famílias com os filhos alugam uma vila para aproveitar as alegrias da praia enquanto os dois homens prosseguiam suas discussões a portas fechadas. O texto é finalmente concluído em uma daüt'simbólica: ')\h! Quanta de-

licadeza das coisas que nosso livro termine em um 31 de dezembro, a fim de fixar bem que os fins são os começos. Esse trabalho está muito bonito, marcado por sua força criadora ele sua 55 parte, e por meu esforço inventiva e oleoso" • Entretanto, no momento da publicação da obra, em março de 1972, Guattari atravessa um período difíciL Percebe-se que o excesso de atividade e o esforço titânico para realizar esse trabalho ameaçam levar a um fenômeno de descompensação, a um sentimento de vazio. A realização nunca tem o mesmo valor que as mil e uma possibilidades da imaginação e que a alegria permanente de uma criação prestes a se consumar: "Vontade de me encolher, de voltar a ser bem pequeno, de acabar com toda essa política de presença e de prestígio ... A ponto de sentir raiva de Gilles por 56 ter me lançado nessa desventura'' • Em seu ]ournal, a comparação com a eficácia de um Deleuze parece perturbá-lo: "Deleuze trabalha muito. Não temos efetivamente a mesma dimensão! Sou uma espécie de autodidata inveterado, um artesão, um personagem à moda 57 Julio Verne .. :' Sobretudo depois, quando o agenciamento é suspenso por algum tempo, como entre a conclusão de um livro e sua publicação, Guattari se permite expressar suas angústias pessoais: "Preservar meu estilo, minha maneira própria. Eu não me reconhecia verdadeiramente no AO [O Anti-Êdipo ]. Preciso parar de correr atrás da imagem de Gilles e atrás do acabado, da perfeição que ele pro58 porcionou à última possibilidade de livro" • Uma súbita angústia de ter sido devorado, de perda de identidade se apoderaram dele. "Ele tem sempre em vista a obra. E para ele [Gilles] tudo isso não passaria de notas, uma matéria prima que desaparece no agenciamento final. É por isso que me sinto um pouco sobrecodifi~ cado pelo O Anti-Êdipo"59• Deleuze, por sua vez. graças à colaboração com Guattari, realiza o desejo manifes~ tado já em Diferença e Repetição: escrever um novo tipo de livro, de natureza experimental: ''Aproxima-se o tempo em que não será mais possível escrever um livro de filosofia como se

faz há muito tempo: í\h! O velho estilo .. : A busca de novos meios de expressão filosófica foi inaugurada por Nietzsche, e deve ser prosseguida hoje em conformidade com a renovação de algumas outras artes" 60• Como observa Ar~ 61 naud Bouaniche , quando Deleuze fala sobre "O pensamento nômade" em Cerisy, no âmbito da década consagrada a Nietzsche, exatamente no momento da publicação de O Anti-Êdipo, ele anuncia a intenção de produzir uma nova estilística. A propósito de Nietzsche, define o que poderia ser um novo tipo de livro que não se conformaria aos códigos tradicionais: "Os grandes instrumentos de codiflcação já são co~ nhecidos ... São conhecidos três principais: a lei, o contrato e a instituição"62 • Nietzsche resiste a todas essas operações de "codificação' e se engaja em urna tentativa sistemática de "deco~ dificação''. É assim que Deleuze e Guattari concebem seu trabalho de escrita: "Embaralhar todos os códigos não é fácil, mesmo no nível da escrita mais simples, e da linguagem" 63. Os dois autores buscarão o meio de escapar a qualquer forma de codificação, deixando-se interpelar pelas forças externas para desfazer as formas convencionais. Esse horizonte nômade será alcançado no segundo volume de Capitalismo e Esquizofrenia, publicado em 1980: Mil Platôs. Nesse meio tempo, Guattari encontrará sua respiração pessoal. Descobre em Kafka um universo que corresponde às suas angústias, ao desejo prolífero de criação, uma desordem criativa parecida com a dele: "Há conjunção de duas máquinas: a máquina literária da obra de Kafka e minha própria máquina, de Guattari" 64 • A escrita guattariana faz um desvio por Kafka para em seguida voltar melhor a Deleuze e realizar, no meio do percurso, um livro sobre Kafka escrito a dois65• É nessa obra que Guattari e Deleuze elaboram a noção que desenvolverão mais tarde de "agenciamento coletivo de enunciação'': "Não acreditamos que a enunciação possa estar relacionada a um sujeito desdobrado ou não, clivado ou não, reflexivo ou nãd'66• A máquina se põe em marcha novamente para Mil Platôs. O agenciamento torna-se o

21

conceito nodal dessa nova publicação. Contudo, o dispositivo de escrita muda um pouco: ''A composição desse livro é muito mais complexa, os âmbitos tratados muito mais variados, mas havíamos adquirido hábitos tais que um 67 podia adivinhar aonde o outro ia" • Tudo leva a crer que, a partir dessas trocas intensas iniciais e da cumplicidade que resultou delas, a escrita de Mil Platôs, embora também tenha dado margem a idas e vindas entre as diversas versões, foi realizada mais por uma elaboração comum ao longo das sessões de trabalho oral. Com a publicação de Mil Platôs, em 1980, chega ao fim uma longa aventura iniciada em 1969: "Depois disso, Félix e eu precisávamos voltar a trabalhar cada um do seu lado, para recuperar o fôlego. Mas estou convencido de uma coisa, vamos trabalhar juntos de novO', escreve Deleuze em 198468. Ele mergulha então no estudo do cinema. enquanto Guattari retoma com mais força ainda seu ativismo cultural e político. Entretanto, mais uma vez, sente a falta, o vazio, a solidão, a in quietude, e se abre com o amigo, que o tranquiliza: "Li muito sua carta onde diz que, nosso trabalho comum tendo esmorecido, já não sabe bem nem o que ele fOi para o senhor, nem onde se encontra hoje. já eu vejo claramente. Creio que o senhor é um prodigioso inventor de 'conceitos selvagens'. O que me encantava tanto nos empiristas ingleses, era o senhor que tinha ... De todo modo, acredito firmemente que vamos voltar a trabalhar os dois"69• Não são meras palavras de consolo; quando Deleuze se engaja no início dos anos de 1980 em seus cursos sobre o cinema, não perde de vista o prosseguimen~ to de um trabalho com Guattari. Ele enuncia muito cedo o tema que se tornará o título de sua última obra comum, publicada em 1991. O que é afilosofia?: "Eis, portanto, meu programa de trabalho para este ano. De um lado, farei cursos sobre cinema e pensamento. Farei isso em conexão com o Bergson de Matéria e lvfemória, que me parece um livro inesgotável. De outro lado, gostaria de continuar essa tabela de categorias que coincide com seu trabalho. E lá o ponto central seria para mim a busca de

22

Dosse

uma resposta bastante clara e simples a o que é a filosofia? Daí duas perguntas de partida: 1 - Aquela que o senhor faria, imagino: por que chamar isso de 'categorias"? O que significam exatamente essas noções, 'conteúdo', 'expressão, 'singularidade', etc. Peirce e Whitehead fazem tabelas de categorias modernas: de que maneira evoluiu essa noção de categoria?; 2-

Depois, partindo-se das mais simples dessas categorias, 'conteúdO e 'expressão', retomo minha pergunta: o que o levou a conceder um

aparente privilégio à expressão do ponto de vista do agenciamento? Precisaria que me ex• . »70 phcasse pacientemente ... Deleuze escreveu sozinho O que é afilosofia' No entanto, como diz Robert Maggiori a propó-

sito dessa obra que considera essencial, "tem Guattari nela, mas diluído no sentido da aspirina'm. Também ali, Guattari sugere, emenda, define novas pistas a partir do manuscrito enviado por Deleuze: "Há um tema que eu gostaria de evocar: é o da oposição entre mistura e interação ..: Sobre o cérebro que funciona sobre ele mesmo: ver Francisco Varela, os sistemas autopoiéticos ... Falo um pouco disso em meu texto 'Heterogênese maquínica'... A passagem estética é um cruzamento do movimento do infinito do conceito e do movimento de finitude da função. Há uma simulação do infinito, um artifício finito do infinito que conduz a um ponto histérico 72 conversivo o paradigma da criação" • A amizade contou muito nessa coassinatura. Na verdade, as contribuições de Guattari são meramente marginais. A revista Chim6res Publica, aliás' desde 1990, o que será a intro73 dução da obra assinada apenas por Deleuze , Segundo Dominique Séglard, "O que é a filosofia? foi escrito somente por Gilles Deleuze, foi ele que me disse. Félix Guattari desejava 74 coassiná-lo, mas Deleuze não queria muito" • Uma amiga próxima de Félix Guattari, bastante preocupada com o estado depressivo dele, convenceu-se de que a única maneira de salvá-lo seria proporcionar-lhe um segundo fôlego, fazendo com que participasse da preparação final do manuscrito, No verão de 1991, ela decide telefonar p~ra Deleuze e lhe pedir esse fa-

Gilles De!euze & Félix Cuattari

vor. O livro sairia em setembro. Deleuze aceita sem dificuldade, o que por si só diz muito sobre a força de sua relação de amizade, a que voltaremos mais adiante, mas há também uma coerência intelectual na dupla assinatura, pois essa obra vem coroar uma sequência de criatividade conceitual de 20 anos de duração. A tendência atual é suprimir o nome de Félix Guattari e manter apenas o de Deleuze. Contudo, O que é a filosofia? não pode ser lido como um retorno à "verdadeira" filosofia por um Deleuze que teria se "desprendido" de seu amigo Félix. Tanto por conteúdo, estilo, conceito lançado nessa obra, tudo contradiz a tese de um Deleuze que deve se "desguattarizar". Não se pode passar ao largo do dispositivo estabelecido pelos dois autores, análogo àquele a que se referem em Rizoma, da ramificação, do agenciamento que se opera entre a vespa e a orquídea: ''A orquídea se desterritorializa formando uma imagem dela, um decalque de vespa; mas a vespa se reterritorializa nessa imagem; porém, ela se desterritorializa tornando-se ela própria uma peça no aparelho de reprodução da orquídea; mas ela reterritorializa a orquídea ao transportar seu pólen ... captura de código, mais-valia de código, aumento de valência, verdadeiro devir, devir-vespa da 15 orquídea, devir-orquídea da vespa'' • Por que a vespa mantém uma relação de ordem sexual com a orquídea, sabendo que, se de um lado há polinização, de outro, o da vespa, não haverá reprodução? Os etologistas explicam que existe aí uma relação entre dois ret,:rimes de códigos em uma evolução paralela de duas espécies. Essas duas espécies não têm nada a ver uma com a outra, e no entanto há um ponto de encontro que transformará seu devir. Esse agenciamento só pode funcionar, pelo menos para Deleuze, com a condição de fechá-lo aos outros. Quando há risco de dispersão para fora, Deleuze reage prontamente para lembrar as regras, as condições que tinha colocado de início. No céu sereno de sua amizade, houve somente algumas pequenas elevações de febre e pequenas tensões, O respeito ao agenciamento foi o que motivou um cha-

mado à ordem, em 1973, por parte de Deleuze, que não deseja se deixar levar em aventuras que não são as suas. A divergência'~· provém do fato de que Deleuze e Michel Foucault são considerados pelo ministério do Equipamento como as duas autoridades intelectuais competentes representantes do CERFI. Contudo, para Deleuze, está fora de cogitação deixar que o associem ao CERFI: "Félix, ah Félix, querido Félix, eu o estimo e nada de minha parte pode afetar nossas relações. Então vou lhe relatar o que, em uma iluminação, me deixa preocupado exteriormente. Já lhe contei há pouco tempo que, desde o início de nossa afeição, eu tinha dito a Arlette: o que complicará as coisas é que eu quero obter de Félix algo que ele nunca vai querer me dar, e ele, me empurrar em algum lugar para onde eu jamais gostaria de ir. Desde o início, aliás, o senhor propusera ampliar o trabalho a dois, estender a certos membros do CERFI. Eu disse que estava fora de cogitação de minha parte, e durante muito tempo nos respeitamos plenamente: o senhor, minha solidão, e eu, suas coletividades, sem 76 tocar nisso" • Essa amizade tão intensa é observada por todos os próximos: "Raramente vi duas pessoas se amarem e se estimarem de verdade como Gilles e Félix. Uma delegação de confiança total entre eles. Uma ligação intelectual e humana total, comovente"77• Isso não impediu alguns momentos de esfriamento em suas relações, em particular no final dos anos de 1980: "Senti as coisas mais frias falando com um e falando com o outro, Falando com Félix de uma coisa que Gilles devia fazer, Félix me diz: J\h, sim! Pobre velho!', e de sua parte, f, N. de R. T.: No original, différend. A expressão usada por F. Dosse parece aludir aqui ao conceito empregado por]. F.

Lyotard, em que a compreensão dos "différends" diz respeito à sutileza psicológica, política ou diplomática que esposa a singularidade da [..J, e em que a política, a arte, a escritafi~

losófica são, igualmente, maneira da escrita dos ''différends': ou seja, do aspecto irredutível e irrepresentávcl daquilo que acontece entre duas pessoas ou entre dois pareceres situação. Ver Blay, Michel (dir.): Dictionnaire des Concepts Philosophiques. Larousse, CNRS Éditíons, Paris, p. 218, 2006.

23

Gi!les: 'Você tem visto Félix, Marco?' - 'Sim' - 'Ah, sim! Félix está bem, muito bem .. :, uma 78 súbita frieza" • Algo parece ter-se quebrado um pouco em relação ao seu primeiro período. Aos silêncios mais longos que se instalam, aos encontros mais espaçados, acrescentaHse a consagração, no final dos anos de 1980, de um Gilles Deleuze que alguns gostariam inclusive, como vimos, de "desguattarizar". Contudo, quando da longa depressão que Guattari enfrenta nesses anos de inverno, Deleuze está lá, presente: "Deleuze esgotado, sem fôlego, me liga para perguntar o que vou fazer esta noite. Respondo que vou assistir à Copa da Europa de futebol, porque sou louco por esporte. Deleuze me diz: 'Vou a uma festa na casa de Félix, é preciso estar perto dele'. Fui para lá ... Félix completamente hierático, sentado no chão assistindo à TV, justamente a final do futebol, e ao seu lado Gilles que, sem dúvida, teria dado um dedo da mão para não estar ali, diante do futebol, nessa festa, ele para quem estar com duas pessoas já era uma 79 multidão" •

Notas 1. Robert Maggiori, entrevista com o autor. 2. Jean-Pierre Muyard, entrevista com o autor. 3. GiHes DELEUZE, Présentation de Sacher-Masoch, Minuit, Paris, 1967 (doravante citado SM). 4. Jean-Pierre Muyard, entrevista com o autor. 5. Ibid.

6. Félix GUATTARI, "Machine et structure", 1969, Change, n. 12, Seuil, Paris, 1972; republicado em Psychanalyse et transversalité, Maspero, Paris, 1972; reed. La Découv.erte, Paris, 2003, p. 240-248 (doravante citado PT); ver capítulo "La machine contre la structure". 7. Félix Guattari, entrevista autobiográfica com Eve Cloarec, arquivos IMEC, 27 de outubro de 1984. 8, Gilles DELEUZE, Différence et répétition, PUF, Paris, 1968 (doravante citado DR). 9. Gilles DELEUZE, Logique du sens, Mnuit, Paris, 1969 (doravante citado LS). 10. Gilles DELEUZE, posfácio a Samuel BECK.ETT, Quad, rvlinuít, Paris, 1999.

24

Dosse

ll. François Fourquet, carta a Gérard Laborde, 19 de agosto de 1969, divulgada por François Fourquet. 12. jean-Pierre Muyard, entrevista com o autor. 13. Félix Guattari, carta a Gilles Deleuze, arquivos IMEC. 5 de abril de 1969. 14. Ibid. 15. Gilles Deleuze, carta a Félix Guattari, arquivos IMEC, 13 de maio de 1969. 16. Ibid. 17. lbid. 18. Félix GUATTARI, PT. 19. Félix Guattari, carta a Gilles Deleuze, arquivos IMEC, I' de junho de 1969. 20. FGEill Fédération des groupes d'étude et de recherches institutionnelles criada em 1965 por Guattari; ver capítulo, ''A FGERl e o CERFI à

prova da experiência". 21. Félix Guattari, carta a Gilles Deleuze, arquivos IMEC, I e de junho de 1969. 22. Gi!les Deleuze, carta a Félix Guattari, arquivos IMEC, 16 de julho de 1969. 23. !bid. 24. Ibid.

25. Félíx Guattari, carta a Gilles Deleuze, de 19 de julho de 1969, passada por François Fourquet. 26. Félix Guattari, algumas notas sobre o presiden~ te Schreber. enviadas a Gilles Deleuze em 25 de julho de 1969, arquivos IMEC. 27. Robert Maggiori, entrevista com o autor. 28. O CERFI é um grupo de pesquisa em ciências sociais criado por Félix Guattari na segunda metade dos anos 1960 (Centre d'études, de recherches et de formation institutionnelles); ver capítulo "A FGERI e o CERFI à prova da experiência". 29. O que atesta o trabalho de ordenação dos es~ critos de Félix Guattari enviados a Gilles Deleuze para preparar O Anti-Édipo, realizado por Stéphane NADAUD, Écrits pour I.:A.nti-CEdipe, Lignes-Manifeste, Paris, 2004. 30. Arlette Donati, entrevista a Eve Cloarec, arquivos IMEC, 25 de outubro de 1984. 31. Alain Aptekman, entrevista com o autor. 32. Félix Guattari, "Deleuze e Guattari se explicam", mesa redonda com François Châtelet, Pierre Clastres, Roger Dadoun, Serge Leclaire, Maurice Nadeau, Aaphae1 Pívidal, Pierre Rose,

Gil!es Deleuze & Félix

Horace Torrubia, La Quinzaine littéraire, n. 143, 16-30 de junho de 1972; reproduzido em Gilles DELEUZE, L1le deserte et autres textes, Minuit, Paris, 2002, p. 301 (doravante citado ID).

33. lbid., p. 304-305. 34. Gilles Deleuze, citado por Robert MAGGIORI, Libération, 12 de setembro de 1991; reproduzido em nobert NIAGGIORI, La Philosophie au jour Le jour, Flammarion, Paris, 1994, p. 374. 35. Ibid., p. 374-375. 36. Gilles Deleuze, ibid., p. 375. 37. Gilles Deleuze, ibid., p. 375-376. 38. Gilles Deleuze, ibid., p. 376. 39. Félix Guattari, ibid., p. 376. 40. GiUes Deleuze, ibid., p. 376. 41. Gi!!es Deleuze, ibid., p. 377. 42. Gilles DELEUZE, Cahiers du cinéma, n. 271, novembro 1976; reproduzido em Gilles DELEUZE, PourparLers, Minuit, 1990, p. 65 (doravante citado PP). 43. Stéphane NADAUD, É'crits pour I:Anti-CEdipe, op. cit., p. 12. 44. Gilles Deleuze,LeMagazine littéraire, n. 257, setembro de 1988, entrevista com Raymond Bellour e François Ewald: reproduzido em Gilles DELEUZE, PP, p. 187. 45. Félix Guattari, em Robert NIAGGIORI, La Philosophie au jour le jour, op. cit., p. 378. 46. Gilles Deleuze, carta a Kuniichi Uno, 25 de outubro de 1982; reproduzido em Gilles DELEUZE, Deux régimes de Jous, Minuit, Paris, 2003, p. !85 (doravante citado RF). 47. Ibid., p. 218. 48. Ibid., p. 218. 49. Ibid., p. 219. 50. Gilles Deleuze, Lll.rc, 1972, p. 47; reproduzido em Gilles DELEUZE, PP, p. 24. 51. Gérard Fromanger, entrevista com Virginie Linhart. 52. ]ean-Pierre Faye, entrevista com Virginie Linhart. 53. Gilles Deleuze, carta a Kuniichi Uno, em RF, pp. 219-220. 54. Ibid., p. 220. 55. Gilles Deleuze, carta a Félix GuattarL não datada, arquivos IMEC. 56. Félix GUATTARI, }ournal, 13 de novembro de 1971; NRF, n. 564, janeiro de 2003, p. 357.

57. Félix GUATTAR].journal, 6/10/1972; citado por Stéphane NADAUD, Écrits pour L.Anti-CE:dipe, op. cit., p. 490. 58. Félix GUATTAR!, journal, 13/10/1972, ibid., p. 496. 59. Félix GUATTARI, fournal, 6/10/1972, ibid., p. 490-49!. 60. Gílles DELEUZE, DR, p. 4. 61. Arnaud BOUANICHE, "Le mode d'écriture de L'Anti-CEdipe: littéralité et transversalité", comunicação oral no âmbito das oficinas domestrado de filosofia Bordeaux, Poitiers, Toulouse, organizadas por jean-Christophe Goddard, Poitiers, 2 e 3 de dezembro de 2005. Ver Arnaucl BOUA.J'JICHE, GiLles Deleuze, une introduction, Pocket-La Découverte, Paris, 2007. 62. Gílles DELEUZE, "Pensée nomade" (1972), reproduzido em ID, p. 353. 63. Ibid., p. 354. 64. Félix GUATTARJ, journal, 14/10/1972; citado por Stéphane NADAUD, Écrits pour I.:Anti-CEdipe, op. cit., p. 497. 65. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, Kafka. Pour une littérature mineur, Minuit, Paris, 1975 (doravante citado K).

66. Ibid., p. 149. 67. Gilles Deleuze, carta a Uno, "Comment nous avons travaillé à deux", 25 de julho de 1984, re~ produzida em RF. p. 220. 68. Ibid. 69. Gi!les Deleuze, carta a Félix Guattarí, não datada (início dos anos 1980), arquivos IMEC. 70. Gilles Deleuze, carta a Félix Guattari, não datada (com certeza 1981), arquivos IMEC. 71. Robert Maggiori, entrevista com o autor. 72. Félix Guattari, notas datilografas sobre "O que é a filosofia?", arquivos IMEC. 73. Gilles Deleuze, "Les conditions de la question: qu'est-ce que la philosophie?", Chim8res, n. 8, maio 1990.p.123-132. 74. Dominigue Séglard, entrevista com o autor. 75. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, Rhizome, Minuit, Paris, 1976, p. 29. 76. Gilles Deleuze, carta a Félix Guattari, arquivos IMEC, 24de junho de 1973. 77. Gianmarco Montesano, entrevista com Virginie

Linhart. 78. Ibid.

79. Michel Butel, entrevista com Virginie Linhart.

I DOBRAS: BIOGRAFIAS PARALELAS

1 Félix Guattari: itinerário psica-político- 1930-1964

"Pedrinho", como era chamado em casa, nasceu em 30 de março de 1930, sob o signo do número três, caçula de uma fratria de três me-

à sua paixão e se dirigir ao cassino como outros se dirigem à fábrica, para ganhar dinheiro.

ninos: Jean, Paul e finalmente Pierre-Félix. Seu destino intelectual não está inscrito verdadei-

"Y'a bon Banania"

ramente na herança familiar, embora logo seja visto como um ser estranho e surpreendente: "Félix era o patinho na ninhada de pintos"', re-

corda Jean, seu irmão nove anos mais velho que cumpriu um pouco a função de figura paterna. A família é antes de tudo tradicional e conservadora, mas concede mais liberdade ao caçula, que pode assim adquirir uma independência mais precoce que seus irmãos - o mais velho teve de entrar no mundo do trabalho aos 17

anos. Pierre-Félix, com 15 anos em 1945, verá se abrir para ele o mundo da universidade graças ao efeito do ânimo produzido pela Libertação. Embora não sejam intelectuais, os pais de Félix têm suas paixões particulares: a mãe, pela literatura e por museus, e o pai, que tocava qualquer peça ao piano sem jamais ter lido uma partitura, pela música. Entretanto, a maior paixão do pai de Guattari é o jogo. Intoxicado durante a Grande Guerra, ele foi submetido a uma trepanação, e sua necessidade de iodo fez com que escolhesse Monte Carla como local de repouso. Ali pôde dar livre curso

Durante a guerra, o pai de Félix simpatizara com um artesão já reputado, um tal de Pierre Lardet que havia descoberto na Nicarágua, em 1912, uma bebida tão saborosa que logo pensou em importar para a França. Essa bebida, que logo se tornará o famoso alimento matinal Banania, é composto de farinha de banana, cereais triturados, cacau e açúcar. De volta a Paris, em 1914, ele se lança na produção industrial e na difusão em grande escala, com a campanha "Y'a bon Banania'' [É bom Banania], que aproveita, desde 1915, a popularidade dos soldados senegaleses. Impulsionado pela onda de seu produto, Pierre Lardet enriquece rápido e se porta como grande senhor com seus cavalos de corrida, trajes de grande burguês. frequência ao Cassino de Paris ... Quando um amigo o aconselha a entrar na bolsa de valores, ele decide criar uma sociedade anônima e comprar uma fábrica de chocolate em Épinay. Entretanto, o negócio malogra, e Lardet, quebrado, acaba por declarar falência. O processo

30

Fr
que se segue quase se transforma em drama quando o empresário arruinado tenta dar um tiro em pleno tribunal. O pai de Félix Guattari assume o comando da fábrica da qual era administrador até então, mas decide abandonar tudo e criar carneiros no campo, em um vilarejo da Orne, La Rapouill€re. Fracassa com os carneiros e se instala no Oise para cuidar de coelhos angorás, muito na moda no pós-guerra. É nesse período, rodeado de coelhos, que nasce Pierre-Félix, em Villeneuve-les-Sablons (hoje Villeneuve-le-Roi), ao lado de Méru. Em pouco tempo, com a crise e a modernização da indústria têxtil, a atividade tradicional de criação de angorás naufraga, e os Guattari são obrigados a comer seus coelhos: "Meu pai não foi feito tampouco para 2 criar coelhos" , conflrmajean, o mais velho dos três filhos. A família retorna à região de Paris. Após todos esses dissabores, o início é difícil. Os Guattari se instalam em um HLM'' da Cité des Oiseaux, em Montrouge. O pai se lança ainda em outras pequenas aventuras comerciais sem futuro: vende cafeteiras, depois batatas. Isso não é suficiente para alimentar uma família que se tornou numerosa. O pai de Guattari está no limite, é visto como suicida. Entretanto, em 1934, ele consegue tomar um empréstimo e reatar com a atividade chocolateira criando uma nova sociedade, Mon-Bana. Instala a fábrica em La Garenne-Colombes e se torna finalmente dono de uma pequena empresa próspera que absorve todo seu tempo. Assim, é a esposa que se dedica à família, com "um sentido claro do sacrifícid'3• Natural da Córsega,jeanne Paoli reatara com o passado italiano de sua ilha casando-se aos 17 anos com um Guattari, cuja família era originária da Bolonha: "Casaram-se em 1919. Ele era então herói da guerra, e foi portanto mais por admiração por um garoto como esse do que outra coisa'' 4• *N. de T.: Habitation à Loyer Moderé: conjunto habitacional construído por urn?-; coletividade e destinado às pessoas de baixa renda.

Gilles Oeleuze & Félix Guattari

Essa mãe, sensível ao mundo da criação artística e literária, teve uma grande inf1uência sobre o filho caçula, particularmente ao projetar nele sua decepção por não haver tido uma filha. Pierre-Félix parece ter sido um menino muito tímido, recolhido em si mesmo, "quase feminino" 5. Em 1952, quando aos 22 anos deixou o domicílio familiar para viver com sua companheira, r.Aicheline Kao, algumas casas adiante, na mesma rua, Félix Guattari menciona em seu diário um conflito entre Micheline e sua mãe, que revela o amor muito exclusivo desta última: "A insistência de minha mãe em querer controlar minhas noites me angustia ... (deve-se observar que nessa questão meu pai é espectador)"6 • Pouco tempo depois escreve: "Jamais ousei amar minha mãe... Não ter a coragem de amar sua mãe é se condenar a permanecer sempre hesitante no limiar da vida ... Estou sempre retirado do mundo. Não o sinto, não mergulho ... Estou ao mesmo tempo perto demais e longe 7 demais dos objetos maternos ... Isso me mata'' • No mesmo diário, escreve três anos mais tarde: "Esse rigor que no raciocínio me dá uma grande firmeza lógica e que em matéria de sentimen~ to logo transformou em rigidez esse espírito de sistema que faz com que fora de meu próprio sistema eu me sinta desamparado, desesperado, deteriorado, esse rigor me parece vir de mi~ nha mãe. Ela está se mudando para Montoire. Recriminou-me por tê-la deixado. Tempera~ menta exclusivo. Vem dela também, sem dúvi~ da, essa necessidade que tenho do clã ... Tenho tanto dela, pois foi ela quem me deu a vida que história'. .. Fui amoldado demais por ela, não havia mais coexistência possível"8• Uma das primeiras lembranças de seu pai remonta a 1933- Félix tem 3 anos, e o pai lhe comunica: "Preciso lhe dizer que a gente vai montar um negócio". Essa frase, fruto do desespero do início dos anos de crise, marcada pela vontade imperiosa de sair dela, se tornará uma espécie de princípio de vida para o pe~ queno Félix, fortemente impressionado: 'Acho que durante toda minha vida montei negó9 cios, golpes" • O êxito dessa iniciativa teve

efeitos colaterais sobre o caçula: os pais já não tinham a mesma disponibilidade, o pequeno Pierre-Félix logo se sente abandonado. Deixa transparecer seu mal~estar sem poder expres~ sá~lo, somatiza a tal ponto que sua palidez e seu temperamento fechado acabam preocupando os pais. Eles são orientados a consultar um médico, que prescreve uma temporada no campo para reanimar o menino, "e, da noite para o dia, eu, que era muito ligado a toda essa vida com meus irmãos e tudo mais, me vi deportado na Normandia, separado de tudo, na casa de uma avó um tanto quanto auste~ 10 ra" . Manifestamente, Pierre-Félix aceita muito mal essa separação, que vê como um distanciamento vindo de uma mãe que não tem mais tempo para dedicar a ele: "Eu chorava quando eles vinham me visitar e iam embora. Estava infeliz como um cão"ll.

A cena traumática É na casa dos avós, em Louviers, que se desenrola uma cena traumática, e que sem dúvida está na origem de uma mudança radical de comportamento. Estamos em 1939, Félix Guattari tem 9 anos. O avô Victor, segundo marido de sua avó, um antigo mineiro em Montceau-les-:rviines, tem o hábito de ouvir no rádio uma série sobre "O traidor de Stuttgart". Para poder ouvir seu programa favorito, ele leva o aparelho para o banheiro e deixa a porta aberta: 'Aos seus pés há uma caixa de recortes: pequenas bonecas de papel para as quais confecciono vestidos. Vovô está com a cabeça completamente caída, apoiada nos joelhos, os braços pendurados. Será que está mexendo nos meus brinquedos? Tenho vontade de gritar alguma coisa! Silêncio. Viro a cabeça, lentamente - uma eternidade - para a luz do aparelho de rádio. Estrondo assustador. Caído no chão. Vovó grita. Congestão''". A avó chega, apavorada, e corta as pontas das orelhas para tentar reavivar o coração, depois coloca um jornal sobre a cabeça do marido para protegê-lo das moscas.

31

Esse contato brutal com a morte aos 9 anos foi estruturante na personalidade de Félix Guattari. Aos 54 anos, ele ainda esclarece que precisou de muito tempo para se libertar desse trauma. Reagiu a ele com sérias crises de angústia, um sentimento agudo da finitude, da fatuidade elas pessoas e da futilidade das coisas: "Isso me tomava como algo que escorria sobre mim, crises terríveis de angústia que literalmente me deixavam aterrado de medd' 13 • Para não deixar a avó sozinha, os pais de Félix decidem mantê-lo com ela por algum tempo, visto que ele já está cursando a escola em Louviers. O sentimento de abandono redobra, agravado pela angústia decorrente do desa~ parecimento brutal do avô. A avó acaba compreendendo: "Ela me diz: 'Sim, você tem medo de que isso aconteça comigo também'" 14, e de~ cide ligar para os pais do menino, a fim de que busquem o filho. Desde então, o jovem Félix muda radicalmente de comportamento. Ele, o menino re~ servado, tímido, quase temeroso, que deixa que tomem seus brinquedos, dominado pelos irmãos e principalmente pelo do meio, Paul, que fez dele sua vítima, transforma-se de súbito em um verdadeiro chefe de bando: "Depois, como ainda não era muito estimulante organizar um bando, eu tinha organizado o bando 5 adverso»l • Sua reputação em La Garenne-Co~ lambes logo se firmou: quando chegou a hora de matriculá-lo no colégio do bairro, o diretor recusou, e a mãe precisou procurar um estabelecimento suficientemente distante para que o filho encontrasse um bem-aventurado anonimato. Foi no colégio que Félix teve um encontro decisivo com um personagem sem par e sem normas, discípulo de Célestin Freinet"", Fernand Oury. Félix assiste às aulas desse professor de ciências naturais que se tornará céle-

~' N. de R. T.: Célestin Freinet (1896-1966 ). Pensador francês que desenvolveu uma pedagogia fundamentada em grupos de cooperação a serviço da expressão livre ele crianças e da formação pessoaL Education du Travail, de 1947, é urna de suas obras mais importantes.

32

Dosse

Gilles Deleuze & Félix Guattari

bre no campo da pedagogia institucional

16 •

O

primeiro contato é muito breve, pois ao cabo de três semanas de aula, Fernand Oury desa~ parece, preso pelos alemães em 1943. Contudo, a lembrança dessa passagem-relâmpago é tão intensa que, ao saber na Libertação- Félix tem 15 anos na época- que Fernand Oury é um dos encarregados da coordenação dos Albergues da Juventude (AJ), ele se inscreve imediatamente. Fernando Oury desperta então

Guattari para um mundo que rompe com a rigidez que este percebe no olhar materno, um universo de sociabilidade fraterna. Fica fascinado com a personalidade e com o talento de pedagogo de Fernand Oury: "Tive uma vonta-

de enorme de ver Fernand. Comecei a gostar e a sentir saudades de sua maneira tão especial de encarar as coisas, a bruma misteriosa e

quase poética que envolve as coisas quando se 17

está em sua presença'' • As redes de albergues da Libertação per-

mitem aos adolescentes de família modesta viajar em 'férias. Para o chefe de bando em que transformou Félix, os A] são sobretudo um meio de descobrir a convivência mista, depois de se manter até então conflnado à fraterni~ dade masculina. É, numa dessas expedições que conhece um outro jovem Píerre: "Eu disse: 'Não precisa me chamar de Pierre, basta me 8 chamar de Félix',[ . Esse segundo nome, que acabou por se impor, ele deve ao cunhado de seu pai, o tio Félix, morto em Verdun. Esse tio, apaixonado pela pintura e amigo de Vlaminck, deixou uma marca muito forte: "Era para mim 19 um pouco o ideal do ego" • A reconstrução subjetiva e o mergulho no mundo, após as fraturas profissionais dos pais - a necessidade de estar sempre prestes a "montar um negócio"- e a morte espetacular do avô, se realizam assim sob um nome que significa satisfação, felicidade. Essa exigência de satisfação imediata e essa vitalidade excepcional nasceram, portanto, da tomada de consciência precoce da finitude, da presença não fantasmática, mas bem real, da morte. "Montar um negócio" torna-se a palavra::;d_e orderv. para conjurar as

forças mortíferas e a angústia diante de uma flnitude sem remédio. Essa presença da morte, o jovem Félix a conhece muito cedo, antes mesmo da morte do avô. Ele escreve em seu Diário em julho de 1971 que, aos 6 ou 7 anos, um mesmo pesadelo o atormentava todas as noites durante um longo período: "Uma dama de negro. Ela se aproximava da cama. Eu tinha muito medo, e isso me despertava. Não queria voltar a dormir. Até que uma noite meu irmão me emprestou seu fuzil de ar comprimido dizendo que bastava atirar se ela voltasse. Ela não voltou. Mas o que me surpreendeu mais, lembro bem, é que eu não tinha carregado o 20 fuzil" . Essa dama de negro, personagem que dá nome ao romance de G. Leroux, evoca também um personagem real, o da tia Emilia, irmã de seu pai, que perdeu o marido - do nome de Félix- nas trincheiras de Verdun: "Mas é claro, é claro! O armário, a dama de tafetá, a arma negra, a artemisa, as armas do ego, a miséria dos anos de 1930, meu pai tinha falido lançando-se, com o apoio dessa tia Emília, na criação d e coeIho angora... '"" .

Fim de guerra Na Libertação, a consciência política de Guattari é precoce. Desde 1945, paralelamente à aventura dos A], começa a militar no Partido Comunista (PCF). Seu pai, antigo Cruz de Fogo nos anos 1930, que foi um gaullista convicto durante a guerra, fica sabendo por amigos que seu filho vende L'Hurnanité na ponte da Estação de La Garenne-Colombes. Ele não gosta nem um pouco disso. Paul, o irmão do meio, tenta expressar a reprovação familiar em forma de zombaria: "Leve l'Humidité [a Umi~ dade], órgão central do partido refrigerador!", dizia ele pelos cantos. A atmosfera reinante nos A] na época do pós-guerra era particularmente intensa. É nesse meio, nos saraus cotidianos, que muitos se iniciam como cantores - Francls Lemarque, os irmãos ]acques, os Barbus, Pierre Dudan - ou como atores - Yves Robert. Outros

recebem ali formação como agitadores culturais, quadros políticos ou sindicais. Guattari tem então seus primeiros encontros feministas: Annick, mais velha que ele, que o leva para sua casa. A mãe não gosta e o põe para fora sem qualquer formalidade. O adolescente se lança na escrita. Desde 1944, sente necessidade de escrever histórias, poemas, sonhos. Suas facilidades intelectuais são manifestas: "Eu tinha aprendido a escrever de um único golpe, a ler de um único golpe ... Os garotos da classe tinham dificuldade, e eu lia muito bem'm. Ele prossegue com sucesso seus estudos no liceu Paul-Lapie de Courbevoie, depois no liceu Condorcet na série final do ensino médio onde obtém seu baccalauréat em filosofia-ciências em 1948. Apaixonado pela filosofia, espera de seu professor - que considera excelente- um sinal, um encorajamento para empreender esse caminho, mas, não obstante seus bons resultados, permanece na incerteza, porque não é capaz de perguntar a ele. Seu irmão mais velho, Jean, consegue que ele entre, apesar de sua forte dúvida, no curso de farmácia. Ele começa um primeiro estágio de farmácia em julho de 1948 em Bécon-les-Bruyeres, onde se aborrece profundamente e é reprovado nos exames do primeiro ano. Sob o olhar vigilante do irmão mais velho, repete o ano, mas não adianta nada. Ele só deseja uma coisa: ir embora e passar num concurso público para garantir sua independência financeira, e planeja então fazer um concurso para inspetor~júnior nos correios e telégrafos. Nesse melo tempo, pensa ter encontrado a alma gêmea em l\tücheline Kao, uma moça de origem chinesa que conheceu aos 16 anos. Eles são vizinhos na Rue de ll\.igle em La Garenne-Colombes. Encontram-se em 1946 por ocasião de uma "caravanà' organizada por Per~ nand Oury, uma temporada de ferias nos Alpes em Aubier-le-Vieux: "Lembro-me de um menino que queria ter ares de adulto. Ele fumava cachimbo'"'. Micheline Kao tem 14 anos, está antes de tudo intrigada com esse adolescente que lhe declara amor eterno. Parece-lhe bem curioso, mas não sente nada além de amizade

33

por ele. Segue-se um longo período, até 1951, durante o qual fazem o jogo do gato e do rato: "Eu não o queria, mas depois, um belo dia, aca24 bei 'cedendO, se é que se pode dizer assim" • Em 1951, decidem viver juntos na casa dos pais de Micheline Kao, um meio modesto de operários muito acolhedores. A família de Félix aceita sua saída, mas fica estarrecida e muito descontente ao vê-lo instalar-se no outro ex~ tremo da rua em uma família adotiva muito atenciosa com ele: "O pai Kao levava seu café 25 da manhã na cama"! Os pais de Félix se perguntam, não sem preocupação, se não quiseram se apropriar de seu filho. De sua parte, a f8.míliaKao libera o andar térreo para que ocasal possa ficar à vontade. Félix mandou buscar seu piano e sua biblioteca, sinais de que estava se instalando de verdade. O pai de Micheline adota Félix como se fosse seu filho. Essa reconstrução afetiva ocorre em um cenário de grande tormento profissionaL Guattari percebe com horror que o curso de farmácia o afastou da atividade de escrita, que é para ele uma respiração existencial: "Descubro consternado que não sei mais escrever, que não sei mais ler, e copio livros para me pôr novamente em contato com a escrita. Lembro de ter copia26 do um livro inteiro de Camus" • A falta de diálogo com seu pai não ajuda Félix a se orientar, mas ele está cada vez mais convencido de que tomou o caminho errado. Decide então acabar com isso e se inscrever em filosofia na Sorbonne. O pai de fato não tinha prestado atenção ao tormento do filho até o momento em que, após dois dias vagando, Félix retorna ao lar e cruza com o pai, que está varrendo a neve caída na frente de casa. Esse pai até então mudo pergunta-lhe de súbito: "'Mas, Pierre, por que você quer largar o curso?' Eu digo: 'Porque eu não gosto, não tem nada a ver comigo: -'Mas, o que é que você queria f8.zer?', coisa que todo mundo já sabia há muito tempo. - 'Eu queria fazer filosofia: - 'Está certo, então você tem que fazer filosofia"'27. Há claramente nesses anos um enfraquecimento da imagem paterna, embora Félix ainda diga no diário, em 1953, que sua estrutura moral está calcada na imago paterna. Ele julga

34

Gi!les Deleuze & Félix Guattari

François Desse

de encontrar a felicidade ... Mas não é no passado nem no futuro que se deve procurar esse cionalista, Cruz de Fogo, nada de negócio com 'consolo primário'. É preciso encontrá-lo no ser os alemães, escuta dos ingleses, respeito famimais imediatamente presente. É preciso se faliar e, ao mesmo tempo. corroído pela liberdazer ser no mundo, dar ao mundo a imagem da de: meio termo, mentiroso, espectador, jogador, 28 felicidade, por mais simples que seja esse roscomerciante, inteligência" • 3 to, mais desprovido de qualquer esperança" :l; Nesse início dos anos de 1950, Guattari está "Magnífico. Magnífico o EN [O Ser e o Nada]". fortemente marcado pela figura de Sartre, a Leio parágrafos que circundo com lápis verde e ponto de adotar a língua sartriana em seu jor31 fico muito contente, isso me despertd' ' • nal, onde se demarcam facilmente as temátiEssa admiração por Sartre jamais será recas existencialistas: "Essa objetivação (do temnegada por Guattari, que escreve ainda no crepo) contribui por antítese para que possamos púsculo da vida em 1990: "Para mim, Sartre é sentir o tempo em nós, isto é, para desligá-lo 29 um autor como Goethe ou Beethoven: ou se do mundo'' • É sobretudo a temática do tempo, pega tudo ou se larga tudo. Passei quase quinze do nada, da morte e da necessidade de supeanos de minha vida sendo totalmente impregrar uma angústia mortífera que lhe interessa, nado não somente pelos escritos de Sartre, a ponto de praticar sobre si mesmo exercícios mas também por seus atos e gestos. Tudo o que fenomenológicos - como outros praticam os eu possa ter dito ou feito é evidentemente marexercícios espirituais de Inácio de Loyola - a cado por isso. Sua leitura da nadificação, da fim de se conhecer melhor e espantar a má fé: destotalização, que se torna em mim devir, des"Eu mergulhei. Vivi o que podia ser uma angústerritorialização, sua concepção da serialidade tia permanente. No trajeto, encontrei o méto~ e do prático-inerte, que irrigariam em mim a do, se' é que existe um, para se ver inautêntico: noção de grupo-sujeito, seu entendimento da enumerar, explicitar todos os objetos dos quais liberdade e o tipo de engajamento e de respona gente se torna sujeito involuntário ... até que sabilidade do intelectual que ele encarnava fose produza uma espécie de vazio. É mais fácil ram em mim, se não imperativos, pelo menos ser fenomenólogo para as coisas do que para as dados imediatos. Prefiro ter errado com ele do pessoas ... O problema está em que o outro o vê, 35 que ter acertado com Rayrnond Aron'' . em que ele tem um ponto de vista sintético soÉ entre os jovens de subúrbio dos AJ que bre seu ser. Tudo depende da intencionalidade Félix, de temperamento mais anarquizante no com que o faz existir para ele ... a luta sartriana início, embora membro do PCF, conhece milicontinua"30; "Não há tempo no mundo, nós o tantes trotskistas em 1948 e se torna militante projetamos sobre o mundo. Dizer que só en31 político do Partido Comunista Internacionatendi isso ontem à noite" • lista (PC!), seção francesa da IV Internacional Félix Guattari chega inclusive a comentar que, na época, nada mais era que um pequeno capítulos de O Ser e o Nada em seu diário. A procírculo de dissidentes comunistas considerado pósito do capítulo "Da determinação como nepelo PCF como a referência dos piores inimigação'' ele escreve: "O para-si constitui o mundo gos da classe operária. Guattari passa a ser incomo totalidade. Ele não é de modo nenhum o clusive um dos quatro responsáveis trotskistas que é o ser. Essa totalização é nada sobre o ser, ela totaliza e retalha ao mesmo tempo. Não con- do grupo da região parisiense dos 'J\jistas". Em La Garenne, há um grupo de jovens sigo fazer explodir a noção do todo, agarro-me particularmente dinâmico, o da fábrica Hisa ele'm. Disso resulta um motivo existencial que pano-Suiza. A empresa é conceituada: produz por toda sua vida induzirá à busca desenfreada da felicidade imediata na intensidade do momento presente e dos envolvimentos que ele suscita: "seri'u como._que uma necessidade "'N. de T.: L'f:tre et le Néant.

essa f1gura do pai "ao mesmo tempo moral-na-

automóveis suntuosos, Rolls-Royce à francesa, assim como os motores que equiparam todos os aviôes da Grande Guerra. Para La Garen~ ne, partilhada entre duas grandes empresas - Peugeot e Hispano -,trata-se de um importante celeiro de emprego. palco da classe operária. É preciso dizer que a empresa é dirigida pelo filho de Léon Blum. Robert Blum, aberto, como o pai, ao diálogo e à inovação social. Na Hispano, um militante carismático, Raymond Petit, reúne os jovens em torno de si e logo se torna seu pai espirituaL Consegue da diretoria e de seu comitê de empresa a constituição de um Grupo de Jovens da Hispano para possibilitar aos jovens operários viajar de férias e usufruir de estações de esqui e da rede de AJ, Com um forte carisma, Raymond Petit transmite seu entusiasmo, e esse "agitador" não deixa de suscitar uma certa desconfiança da direção. Propõem-lhe que se torne membro permanente do comitê de empresa para cuidar do lazer dos jovens da fábrica. Consciente dos riscos de se distanciar de seu meio de origem, ele não pode recusar essa "promoção". É graças a esse cargo de membro permanente que acaba conseguindo que a Hispano seja a primeira empresa em 1950 a enviar seus jovens operários com menos de 21 anos para o esqui nas férias de inverno, concedendo-lhes inclusive uma terceira semana de férias remuneradas.

O engajamento trotskista Comunista libertário, Raymond Petit trava uma guerra feroz contra todas as formas de aparelho burocrático, o que não agrada os dirigentes do PCF. Abandonado pelo partido, ele retorna à base e a seus colegas de oficina. Um de seus amigos, o jovem Roger Panaget, que entrou na Hispano em 1947, organiza reuniões uma vez por semana para programar fins de semana e férias. Com o Grupo de jovens, toma a iniciativa de promover visitas a museus, escaladas, saraus, grupos de dança folclórica, espeleologia, sessões de cineclube, idas ao teatro, círculos de estudo ou ainda competição

35

de voleibol: "Durante as caravanas, as equipes dividiam o trabalho: tarefa de cortar lenha, 36 varrer ou descascar legumes .. , " • Essa vida comunitária rompe as fronteiras hierárquicas, e se estabelecem sólidas relaçôes de amizade entre os rapazes e moças do grupo. O entusiasmo comunicativo de Panaget permite a difusão de tais atividades para além dos limites da empresa Hispano, na medida em que o grupo se abre para outros jovens do bairro. A experiência seduz Félix Guattari, que participa das atividades do grupo e fica amigo de Raymond Petit e Roger Panaget. Petit representa então para Félix um modelo de engaja~ menta: "Ontem à noite, com Raymond, ficou claro para mim o tato de que meus estudos entravam agora diretamente no campo de meu ideal revolucionário'm. Quando Félix se instala em La Borde, em 1955, propõe a Roger Panaget que venha morar em seu quarto na casa dos pais de Micheline Kao. Guattari adere ao Movimento Revolucionário da Juventude (MRJ), que constitui na época a porta de entrada no PC!. Ele faz ali um estágio probatório antes de ser entronizado entre os eleitos da vanguarda proletária. Contudo, sua adesão ao trotskismo permanece "subterrânea": é a onda da infiltração no seio dos movimentos comunistas oficiais. Ele participa de uma série de iniciativas, como a das "brigadas" que se dirigem à Iugoslávia para apoiar a experiência titista condenada na época pelas autoridades do PCF. Félix, que foi responsável por uma "brigada de trabalho', encontra-se em 1949 cavando as bases da futura universidade de Zagreb com um grupo de jovens. Como militante responsável, confisca dos voluntários recalcitrantes os bônus de alimentação quando resistem a carregar pedras ou cavar trincheiras. O jogo duplo que implicam a militância trotskista e as boas relações mantidas com os militantes comunistas do subúrbio a oeste de Paris nem sempre é fáciL Na época da propaganda em favor do apoio à experiência realizada por Tito, em 1950, Félix e seu grupo de trotskistas são atacados pelo braço pesado do

Gilles De!euze & Félix Guattari

Dosse

PCF. A investida dura uma noite inteira, durante a qual as batalhas são bastante violentas. No subúrbio, Guattari começa a ser visto no PCF como um perigoso propagandista "titista". Chegam a convocá-lo um dia para que explique diante dos camaradas suas atividades anti-Partido. Teme-se o pior, e os companheiros trotskistas de Félix tentam dissuadi-lo de ir a essa reunião onde existe muita chance de ele ser agredido. É nessa época que o Kominform,.' denuncia as "víboras lúbricas" do titismo: Tito é considerado como um agente do imperialismo que teria instaurado uma ditadura fascista. À véspera da convocação, Guattari ainda participa de um confronto violento em Paris, onde deveria ocorrer uma reunião preparatória ao envio de brigadas: "Estávamos cercados pelas Seções da Federação de Paris. Durante horas tínhamos sido atingidos pelas ondas de assalto dos militantes do Partido ... Na saída, fomos perseguidos no metrô por stalinistas enfurecidos. Eu tinha acompanhado até em casá uma moça iugoslava que trabalhava na Embaixada, Miléva, uma morena de 38 tirar 0 fôlegd' • O companheiro trotskista de Guattari, Paulo, é ferido durante o confronto e está com a cabeça enfaixada. Ele quer acompanhar Félix na sessão do dia seguinte, que corre o risco de degenerar em confronto, mas este último o desaconselha, para não acirrar os ânimos. Vai então sozinho e dá um jeito de se safar graças à sua reputação de ajista: "Estava lá Poil de Carotte*'', um cara dos A]. Eu cheguei, a gente discutiu, bateu boca, mas não houve nenhuma bofetada'". Sua popularidade junto aos grupos jovens o salvou de um sério acerto de contas. A família política de Guattari cinde-se em 1951 entre a tendência Pablo-Franck, à qual ele acaba aderindo, que prega a infiltração no interior do PCF, e a tendência lambertista, que

*N. de R. T.: A Kominform, criada em l947 e extinta em 1956, era urna organização para o intercâmbio de informação e experiência entre os partidos comunistas. *"' N. de T.: Poil de carot,t~: apelido que se dá às pessoas ruivas (literalmente: pelo de cenoUra).

é hostil a ele. Félix, que se matriculou em filo~ sofia na Sorbonne, não pode então praticar a infiltração ali - ele é bastante conhecido como trotskista. Ao mesmo tempo em que cultiva as redes militantes na Sorbonne, dedica-se às Amizades Franco-Chinesas. Nessa época, a esperança segue a tiracolo e sobe ao céu no Leste, e até no Extremo Oriente, desde a vitória de Mao em 1949. Raymond Petit, do grupo Hispano. foi um dos primeiros a visitar essa nova China em 1953. Pouco depois, em 1954, uma delegação composta de cerca de 40 franceses - entre os quais Jean Eiffel, René Dumont, Michel Leiris, Claude Roy e dois estudantes - vai para Pequim. Félix é um dos viajantes: "Um dia, ele me diz: 'Você pode me levar ao Bourget amanhã? 40 Vou para Pequim"' , recorda seu irmão Jean, ainda sob efeito da surpresa. Sobre essa viagem-relâmpago, simultaneamente seduzido e desorientado, ele escreverá em seu diário: "De minha viagem à China, ficou uma impressão de sonho. Onde eu estava? Com quem? Que 41 personagem representei?" É por ocasião de seu envolvimento na associação das Amizades Franco-Chinesas que Guattari conhece o historiador sinólogo Jean Chesneaux, que na época fazia a aproximação entre os intelectuais franceses e os militantes do Partido Comunista Chinês (PCC). Reorientando seu trabalho militante para a "célula filosofia' do PCF na Sorbonne, Guattari sugere a Denis Berger, militante do PCI e membro de sua secretaria política, lançar logo após o XX Congresso do PCUS, de 1956, um boletim mimeografado: Tribune de Discussion. A estratégia de inf1ltração atinge o limite: um desejo de se expressar se faz sentir de maneira premente e precisa ser difundido. A conjuntura do relatório Kruchev favorece a formulação de algumas questões, mas ainda não chegou a hora de propor uma organização política alternativa. Ê preciso ainda suscitar indagações e promover o debate de ideias. Félix consegue a adesão ao PCI, que na época não passa de um grupelho de oitenta membros, dos futuros antropólogos Lucien Sebag, Michel Cartry e

Alfred Adler, como também de Philippe Girard e de Anne Giannini Monnet (da família de Jean Monnet, o pai da Europa), entre outros. A difusão da Tribune de Discussion ultrapassa rapidamente o meio estudantil da Sorbonne e obtém a caução de dois intelectuais renomados: François Châtelet e Henri Lefebvre. Jean-Paul Sartre chega inclusive a contribuir com essa iniciativa, e figurará na lista de doadores com o nome de "HK" (de "Heidegger/Kierkegaard") até 1958, data em que deixará de contribuir. por considerar que, com o fascismo às portas da França, é preciso, dali em diante, fazer uma frente comum com o aparelho do PCE No outono de 1956, com a invasão soviética da Hungria, a urgêncía de um discurso crítico no interior do movimento comunista se faz sentir ainda mais. O grupo Tribune de Discussion aproxima-se de um outro pequeno círculo de intelectuais comunistas que também fazem um boletim, L'Étincel/e [A Centelha]. Há alguns intelectuais conhecidos, como o filósofo Victor Leduc,Jean-Pierre Vernant, Yves Cachin (sobrinho do fundador do PCF, Mareei Cachin),Jean Bruhat, Anatole Kopp, assim como um núcleo militante muito ativo no ll Q Distrito em torno de Gérard Spitzer, que se engajou aos 15 anos nos FTP'', em 1943, e aderiu ao PCF desde a Libertação. Todos têm em comum uma crítica radical do stalinismo e a denúncia das in~ suficiências do engajamento do PCF contra a guerra da Argélia. Eles contestam sobretudo a votação dos poderes especiais. No dia 12 de março de 1956, o secretário geral da SFIO*'·', Guy Mollet, que se tornou presidente do Conselho após a vitória dos socialistas nas eleições legislativas, decide pôr em votação a lei sobre os "poderes especiais" do exército, dando-lhe uma ampla autonomia de ação. A lei é votada pela maioria dos grupos parlamentares, entre os quais o grupo comunista. Na Hispano, reage-se imediatamente à decisão de mobilizar os

*N. de T.: Sigla de Francs-tireurs et partisans, movimento

na Hcsistência Francesa à ocupaçfto alemã. """N. de T.: Sigla de Section française de I'Inlernationale ouvriCre.

37

convocados para a guerra da Argélia. A primeira manifestação de protesto é organizada por Raymond Petit, Roger Panaget, Raymond Levildier e Brivette. Há um choque violento com as forças da ordem em Bois-Colombes, que é manchete do L'Humanité. A associação dos dois grupos não dura muito, pois logo é denunciada como um grupo trotskista pelo aparelho do PCE A maioria dos militantes de L'Étincelle fica com medo e volta a se enquadrar, com ex~ ceção do grupo de Spitzer (Simon Blumenthal, Paul Calvez), que prossegue a aventura com os ex~ integrantes da Tribune de Discussion. Desse agrupamento nasce um novo caderno mimeografado, o Bul/etin de l'Opposition Communiste, e ele recebe o nome de A Via Comunista em janeiro de 1958. Denis Berger, membro da secretaria política do PCI. trava uma batalha com Pierre Franck para conven~ cê-Io a aceitar a existência desse jornal agregador que se pretende mais do que um simples boletim interno, e que ele acha que deve ser vendido em banca. Contudo, não consegue convencer a direção do PC!: "Fui expulso. 12 Tinha aderido em 1950'" • Raymond Petit e Guattari decidem então sair do PCL Assim, A Via Comunista não é apenas um jornal, mas sim uma organização que surge nas fronteiras do trotskismo. O primeiro boletim coloca a questão: quem somos nós? O que queremos? Reposta: "Encontrar a Via Comunista para o 13 nosso país"' • Nascido em plena contestação da guerra da Argélia, esse será o principal terreno de luta a que se consagrará A Via Comunista 1 até 1962: "Primeiro a Argélia"' \ dama a 3u edição, no momento em que a crise argelina abala a IV República. O núcleo dirigente se reúne uma vez por semana. Guattari se investe ativamente na redação de artigos do jornal com o pseudônimo de Claude Arrieux. Em fevereiro de 1961, juntamente com Claude Deville e Jean Labre, 45 faz uma entrevista com Sartre , e se dedica sobretudo, nesse início dos anos de 1960, a acompanhar de maneira crítica a evolução do PCF. Consagra muitas páginas à preparação e à realização do XVI Congresso, denunciando a

38

Gi!les Deleuze & Félix Guattari

Dosse

fidelidade dele ao stalinismo. Quanto ao Grupo Hispano. ele é bastante comentado no jornal, mas com o nome de "Grupo Simca", para não revelar o trabalho subterrâneo de solapamento que se realiza ali contra o aparelho stalinista. Guattari detém inclusive as condições de sobrevivência de A Via Comunista, pois o essencial dos subsídios que sustentam o jornal vem da clínica de La Borde, da qual é adminis46 trador nessa época • No clima de mobilização

contra a guerra da Argélia, A Via Comunista consegue rapidamente um grande número de contatos, em torno de 200 a 300: "Isso correspondia bem à maneira como Félix concebia o trabalho. Não se conduz as pessoas com base

em um programa, mas se trabalha com elas. A atividade que desenvolvia em La Borde o

ajudava diretamente, e ele começava a teorizar"47. Tratava-se de constituir um grupo não sectário; não um partido clássico, mas uma organização concebida mais sobre o modelo do Grupo Jovens da Hispano. Três dirigentes de A Via Comunista, Denis Berger, Gérard Spitzer e Roger Rey, dedicam-se mais especificamente ao trabalho clandestino de apoio à luta de independência argelina. Como diretor da publicação, Gérard Spitzer é condenado no final de 1959 por atentado contra a segurança do Estado. Na prisão, inicia uma greve de fome no dia 27 de fevereiro que prossegue até 20 de março. Só será libertado depois de dezoito meses, após uma ampla campanha de sensibilização feita pelo jornal, que constituiu um comitê de defesa presidido por Élie Bloncourt"3. Por sua vez, Denis Berger especializa-se na preparação de fugas. Detido pela DST" em 5 de dezembro de 1958, fica preso 10 dias - nessa ocasião é informado de sua expulsão do PC!. Mais tarde, em fevereiro de 1961, ele consegue organizar a fuga de seis mulheres das redes de ajuda à FLN do presídio parisiense de Roquette. Entre 1958 e fevereiro de 1965, A Via Comunista publica 49 números

e conta com um público surpreendente para

"N. de T.: Sigla de Direhion de la Sécurité du Territoire.

um jornal sem nenhum apoio institucional. Tão logo é lançado, o Manifesto dos 121 "sobre o direito à insubmlssão na guerra da Argélii' aparece em A Via Comunista, que é imediata-

mente apreendida'19• Os dois polos de A Via Comunista situ· am-se na Hispano (para o polo operário) e na Sorbonne (para o polo estudantil). Guattari faz

a ponte entre esses dois mundos e consegue recrutar Michel Cartry, que conhece por ocasião de um curso de propedêutica em junho de 1952. Desde as primeiras conversas nasce uma relação de amizade. Michel Cartry logo estará ao lado de Félix no grupo de fllosofia do PCF que se reüne na Rue de la Contrescarpe: "Fé0 lix nos iniciou em Trotski"s • Eles distribuem a Tribune de Discussion nas caixas de correio de seus colegas, escrevem com pseudônimos e provocam reações por parte dos militantes ortodoxos do Partido, escandalizados com a existência de traidores da causa da classe proletária: "Em uma das reuniões da célula fi· losofia do Partido, alguém lançou: 'Tem gente desleal entre nós', e foi um de meus melhores 51 companheiros que disse isso" • No início de suas atividades na Tribune de Discussion, Michel Cartry não sabe que Félix é um militante trotskista organizado. Só após essa primeira experiência Félix lhe propõe, a ele e a Lucien Sebag, dar um passo adiante e aderir à IV In· ternacional. Em 1958, ao denunciar no pátio da Sorbonne a votação dos poderes especiais. Lucien Sebag, Michel Cartry e Philippe Girard acabam expulsos da União dos Estudantes Co· munistas (UEC). Michel Cartry partilha com seu amigo do liceu Condorcet, Alfred Adler, o mesmo entu· siasmo por Sartre: "Eu sairia completamente nu pela neve para ir buscar Les Temps Moder· 52 nes quando a revista era lançadà' • A aproximação de Sartre com os comunistas leva Alfred Adler a aderir ao PCF em 1953, junto com Michel Cartry, Pierre Clastres e Lucien Sebag. É ainda Guattari que induz Alfred Adler a to· mar distância de Sartre passando-lhe textos de Lacan: ''A partir daí, comecei a mudar de 53 lado" . Contudo, politicamente, Adler ainda

se considera como um autêntico comunista: "É claro que eu não tinha um retrato de Stalin em casà''"'. A virada data de 1956: Alfred Adler lança-se com seus companheiros na aventura de A Via Comunista, onde encontra também os futuros escritores Pierre Pachet e Michel Butel, e muitos outros estudantes da Sorbonne pertencentes ao "bando' de Guattari. Entre os adeptos de renome, o irmão de Daniel Cohn-Bendit, Gaby, que também é estudante de filosofia na Sorbonne em 1956. Companheiro de Gaby Cohn-Bendit e de Pierre Pachet, Claude Vivien também é membro do grupo da célula filosofia em 1956: "Era o grupo mais extraordinário que tinha encontrado em minha vidà'". Caçula do grupo, ele participa de todas as discussões e da vida coletiva dessa célula que domina o Quartier Latin nessa época de tensão com os grupos fascistas, sem contar as manifestações de oposição contra a guerra da Argélia. Guattari adota com Claude Vivien o método testado com outros para convencê-lo a romper com o stalinismo. Convida-o a passar um fim de semana em La Borde: "Isso foi fundamental na minha vida. Vi os loucos e me dei conta de que eles não 56 eram muito diferentes de mim" • Como muitos, Claude Vivien, que foi para ficar dois dias, instala-se em La Borde, onde vai trabalhar por quatro anos como monitor, ao mesmo tempo em que prossegue o curso de filosofia e as atividades políticas. Participa do trabalho oposicionista com Tribune de Discussion. Félix o faz ler Trotsky e aderir à N Internacional. Quando o PCF expulsa a célula fl!osofia e cria a UEC, em 1956, ele é secretário da célula dissolvida. Adere a A Via Comunista ao lado de Guattari, de Gérard Spitzer, por quem tem grande estima57, de Denis Berger e do futuro advogado Simon Blumentbal. Até 1962, A Via Comunista é uma alavanca eficaz contra os males da guerra colonial na Argélia, mas, com os acordos de Evian, a hora é de desaceleração. AJnda restam alguns momentos de engajamento nesse local da Rue Geoffroy-Saint-Hilaire. onde se reúne o Partido Revolucionário Socialista da Argélia

39

de Mohammed Boudiaf, que está em contato então com A Via Comunista e do qual Guattari se sente próximo 5ll. Entretanto, logo se dá a ruptura e em seguida o desaparecimento em 1965. É preciso dizer que alguns começaram a debandar para o maoísmo sob o impulso de Simon Blumenthal e de Benny Levy, enquanto outros fazem a apologia de Ben Bella. De fato, desde 1961. podem ser lidas em A Via Comunista as teses dos comunistas chineses sobre a 9 "coexistência pacífica''f> , mas é sobretudo após a guerra da Argélia, em 1963, que o jornal adquire às vezes uma coloração maoísta e publica o programa político de 25 pontos da direção 60 do Partido Comunista Chinês • Essa evolução não agrada Guattari, que se concentra em seus artigos de 1964 sobre estudos críticos do regime soviético, mas se sente cada vez mais distante da orientação do jornal e acaba por abandoná-lo abruptamente: ''Afastei-me de todos do dia para a noite ... Em 1964, cansei""- Ele não será facilmente perdoado por isso, sobretudo por Gérard Spitzer, que o condena por ter cortado os meios de subsistência de A Via Comunista. Quando Félix Guattari sente que uma instituição está se perpetuando, no vazio, na simples gestão de seu pequeno capital cultural, ele não hesita em tomar a dianteira e encerrar suas atividades, para abrir outras possibilidades fora dali. Em 1964, a inspiração vem do movimento estudantil que se radicaliza.

Félix: um lacaniano precoce Nos anos de 1950, além de sua identidade de militante político, Guattari é visto como um especialista em teses lacanianas. Na Sorbonne, desperta profundo interesse, pois é conhecido por difundir textos totalmente ignorados de Lacan. Goza do prestígio de ser um teórico capaz de entrar nesse pensamento muito obscuro para os neófitos e, ao mesmo tempo, de ter uma prática junto ao mundo da loucura por suas atividades na clínica de La Borde: "Nessa época da Sorbonne, chamavam-me de 'La62 can' ... Eu aborrecia todo mundo com Lacan"

40

""'"rnk Dosse

O encontro entre o psiquiatra Jean Oury e Félix Guattari foi decisivo nesse aspecto. Em 1945, como se recorda, Félix ainda usa calças curtas, tem apenas 15 anos e é aluno de Fer~ nand Oury, que organiza então reuniões frequentes com seus grupos de jovens dos A]. É nesse contexto que o irmão de Fernand,jean, que está com 21 anos, encontra pela primeira vez o jovem Félix em la Garenne-Colombes onde os dois residem. Quando Jean Oury vai para Saint-Alban, as relações com Félix são temporariamente suspensas. Fernand, por sua

vez, fica um pouco desamparado diante da confusão de Félix, e o aconselha a visitar seu irmão psiquiatra em dezembro de 1950. Jean é responsável então pela clínica de Saumery no Loir-et·Cher: "Fernand me disse: Acima de tudo, não vá quebrá-lo em pedacinhos'. Ele não precisava de mim para se reduzir a peda~ cinhos"63. Nessa época, Guatarri entra no curso de farmácia, que o aborrece profundamente: em compensação, está fascinado com a ativi~ dade psiquiátrica de Jean Oury. Este último, em dezembro de 1950, aconse· lha Félix enfaticamente a ler Lacan e inclusive a mantê-lo a par das pesquisas deste, pois suas responsabilidades de psiquiatra o absorvem demais, e o impedem de ir a Paris. Seis anos mais velho que ele, Jean Oury desempenha junto a Félix Guattari o papel de confidente, novo substituto da figura paterna ausente. Em seu diário, em 1952, Guattari menciona o que chama de 'A linha JO" (Jean Oury): "Nada de proteção, deixar fazer desde que a pessoa não se machuque concretamente (corte e ferimento) ... Para isso, é preciso silêncio e pouca emotividade. Ser simples""'. Aos 26 anos, Jean Oury já é um psiquiatra experiente. De suas intermináveis discussões, emergem alguns conselhos de orientação profissional. Jean Oury o apoia em seu desejo de abandonar os estudos de far· mácia e o encoraja a entrar em um curso de filosofia. Faz a Félix algumas recomendações de leitura a respeito: além de Lacan, Sartre, Merleau-Ponty... Tal foi o papel fundamental desempenhado por Jean Oury na vida de Guat· tari e a força da rêÍ'ação que nascerá entre eles.

Gilles Deleuze & Félix Guattari

Isso explica em grande parte o caráter indestrutível da máquina bicéfala que constituirão em La Borde, mas que deverá enfrentar fortes tempestades. Guattari faz a ponte entre Paris e a clínica de Jean Oury em Saumery de mobilete: ''A gente passava noites inteiras discutindo, com um lado pitoresco, sobre o Rorschach. Compunha música concreta, gravava os pássa~ ros ou fazia aquilo que chamamos de 'mente aquática', que consistia em pegar objetos e fazer frases em torno deles para estabelecer uma nova sintaxe"65. Graças a Oury, Guattari descobre assim, de maneira precoce em relação ao resto do mundo intelectual, os textos de Lacan sobre a "fase do espelho", sobre a "agressividade" e sobre a família. Esses escritos têm tal efeito sobre ele que aos poucos os aprende de cor e os recita a quem quiser ouvir nesses anos de 1951 e 1952. Guattari assiste em 1953, no College de Philosophie, na Rue de Rennes, a uma conferência de Lacan sobre Goethe. O fascínio pelo personagem é instantâneo. No final de 1954, Lacan o convida para assistir ao seu seminário em Sainte-Anne. Ainda havia pouca gente: "Eu era o primeiro não psiquiatra, não médicd'66 a assistir ao seminário do mestre, que ainda não é então o must do parisianismo. Na mesma época, Félix descobre um campo que explorará com particular intensidade mais tarde, o da linguagem. O ano de 1953 é também o do fama· so discurso de Roma, no qual Lacan consagra a prevalência dos métodos linguísticos para a psicanálise. Mas Lacan não é para ele o único a introduzi-lo nessa questão: "Pela primeira vez coloco o problema da linguagem. Passei a me interessar por ele a partir de Lacan e de suas invectivas contra Blondel. A partir de lzard e de seu amor pela poesia acima de tudo. A partir de Roudant, a quem expliquei o quanto começo a compreender agora seu projeto. Não existe 67 pensamento sem encarnação na linguagem" • Além do interesse pelo funcionamento da língua nesse momento em que a linguística está virando moda, existe nele a vontade de expressar, de fazer obra, que é o tema mais recorrente e que o perseguirá por toda a vida.

No dia l' de setembro de 1953, ele escreve em seu diário em letras maiúsculas: "EU QUERO ESCREVER UM L!VRO", e no final do mês coloca-se a questão de saber qual poderia ser o conteúdo dele: "Escrever! Eu quero escrever. Isso está se tornando uma necessidade imperiosa ... Mas escrever o quê? Talvez comece pelas minhas dificuldades de escrever... Posso fazer uma literatura filosófica. Escrever sobre a morte, por exemplo? Mas não li nada. E por muito tempo ainda, não li nada sobre nada. As lembranças da infância? Sím, evidentemente, mas elas só vêm quando querem. É preciso trabalhá-las. CAVAR um primeiro buraco. Isso supõe um aprofundamento poético da situação. Tendo excluído o poético e o filosófico, resta-me optar pelo romanesco e pelo diário. O primeiro me assusta, o segundo me aborrece. Poderia talvez fazer um romance no dia a dia com eu, Micheline, }0. Uma moça ideal, etc.'! Alguma coisa que transmitisse e cristalizasse aquilo que me prende. Escrever um livro foi o grande mito de minha juventude"68• Guattari fala então a "língua'' !acaniana, escreve ao seu guru, que lhe responde e sugere ocasiões de encontro, de discussões. Por fim, acaba por se deitar em seu divã, antecipando-se nisso a toda La Borde, a um custo de 50 francos por sessão, um bom dinheiro para a época. Depois de convencer politicamente Claude Viviene e de instalá-lo em La Borde, ele o leva ao seminário de Sainte-Anne em 1956: "Lá fiquei realmente bastante impressionado, porque ouvi alguém que se destoava totalmente dos professores da Sorbonne que eu conhecia e que tinham sua importância: Vladimir Jankélévitch, Jean Wahl, Ferdinand Alquié. Fiquei seduzido, e depois foi Félix que me mandou para o divã de Lacan" 69• Em 1954, a atividade intelectual de Guattari é quase que exclusivamente consagrada a Lacan: "Sou filósofo? Sou apenas estudante de filo· sofia? Minha atividade destes últimos tempos contém uma marca de preocupação filosófica: os cursos de Lacan"70• Suas anotações deixam transparecer um tema que Guattari sistematizará mais tarde,

41

mas que já está presente nos cursos de Lacan de final de 1954 e início de 1955, a noção de máquina: "O sujeito como indivíduo-máquina tem manifestações inconscientes que não poderiam ser reintroduzidas no concreto sem um tratamento especial" 71 ; "Descartes: a máquina é o relojoeiro. Essas máquinas são fundamentalmente humanas (Aragon saúda o relógio) .. :.n; "Se a máquina incorpora as formas degradadas do conhecimento, tal como o demônio de Maxwell, ela fará milagres. É aí que está a inversão da inversão da entropia'm. A temática maqulnica oposta à estrutura será mais tarde um dos temas favoritos de Félix Guattari e, depois, da "dupla' Deleuze-Guattari 74 •

Notas 1. Jean Guattari, entrevista com o autor. 2. Jean Guattari, entrevista com Eve Cloarec, arquivos IMEC, 15 de novembro de 1984. 3. Jbid. 4. Ibid.

5. Félix Guattari, entrevista autobiográfica com

.Eve Cloarec, arquivos JMEC. 6. Félix Guattari, caderno n. 3, 27 de novembro de 1952, arquivos I'MEC. 7. Ibid., 19 de dezembro de 1952. 8. Félix Guattari, caderno n. 4, 13 de janeiro de 1955, arquivos IME C. 9. Félix Guattari, entrevista autobiográfica com Êve Cloarec, arquivos IMEC. 10. Ibid. 11. lbid.

12. Félix GUATTARl, La Révolution moléculaire, Encres, Recherches, Paris, 1977, p. 11-12 (doravante citado lli\A). 13. Félix Guattari, entrevista autobiográfica com Eve Cloarec, arquivos IMEC. 14. Ibid.

15. lbid.

16. A pedagogia institucional foi elaborada por

Fernand Oury. Seu objetivo era estabelecer regras de convivência dentro da escola que favorecessem a tomada da palavra pelos alunos e a ajuda escolar em estreita colaboração entre professores e alunos. Com essa pedago-

42

Françoís Dosse

gia, Oury pretendia propor uma alternativa às escolas-casernas. 17. Félix Guattari, caderno n. 3, 14 de novembro de 1952, arquivos IMEC. 18. Félix Guattari, entrevista autobiográfica, arquivos IMEC. 19. Ibid. 20. Félix GUATTARJ, '}ournal!97! ",La NRJ.: outubro 2002, n. 563, p. 220. 21. Jbid. [N. de T.: Com a tradução, perde-se o encadeamento fonético do original; "Mais oui, mais oui! 18.rmoire, la Dame de moire, l~u·me noire, J'armoise, les armes de moi, la mouise des années trente, mon pere avait fait faillite en se lançant, avec làppui de cette tante Émilia, dans I'élevage du lapin angora .. :'J 22. Félix Guattari, entrevista com Êve CJoarec, arquivos IMEC, 10 de julho de 1984. 23. Micheline Guillet (Kao), entrevista com Eve Cloarec, arquivos 1MEC, 20 de setembro de 1984. 24. Ibid. 25. Jean Guattari, entrevista com Virginie Linhart. 26. Félix Guattari, entrevista com Eve Cloarec, arquivos lMEC, 23 ele agosto de 1984. 27.· Ibid., 10 de julho de 1984. 28. Félix Guattari, caderno n. 4, 1 de novembro de 1953, arquivos IMEC. 29. Félix Guattari, caderno n. 1, janeiro de 1951, arquivos IMEC. 30. Félix Guattari, caderno n. 2, 4 de outubro de 1952, arquivos IMEC. 31. Ibid., 1952. 32. Ibid., 8 de outubro de 1952. 33. Ibid., 13 de outubro de 1952. 34. lbid., 24 de outubro de 1952. 35. Félix GUATTARI, ''Plutôt avoir tort avec luí", Libération, 23-24 de junho de 1990.

36. Ouvriers face aux appareils, une experiénce de militantisme chez Hispana-Suiza, Maspero, Pa~ ris, 1970, p. 39. 37. Félix Guattari, caderno n. 3, 27 de novembro de 1952, arquivos IMEC. 38. Félix GUATTARI, "Journal197!", 10-23 de setembro de 1971, La Nauvelle Revuefrançaise, n. 563, outubro de 2002, p. 349.

39. Félix Guattari, entrevista autobiográfica com Eve Cioarec, arquivos IMEC, 23 de agosto de 1984. 40. Jean Guattari, entrevista com Eve Cloarec, arquivos IMEC, 15 de novembro de 1984. 41. Félix Guattari, caderno n. 4, 26 de novembro de 1954, arquivos IMEC. 42. Denis Bergec entrevista com o autor. 43. La Vaie communiste, n. l, janeiro de 1958, arquivos IMEC.

--------------------------------------------~G~il~le~s~D~e~le~u~z=e~&~F~e-/~ix~G~u~at~ffi~r~i--~43 60. La Voie communü;te, n. 36, jun.-jul. de 1963.

Fé~ix Guattari, entrevista com f:ve C!oarec, arqUivos IMEC, 10 de julho de 1984. 62. Ibid. 63 · Jean OURY, 1/, donc, Matrices, Paris (1978), 1998, p. 25. 61.

64. Félix Guattari, caderno n. 2, 2 de outubro de .1952, arquivos IMEC. 65. Jean Oury, entreviSta com 0 autor.

Fé~ix Guattari, entrevista com Eve Cloarec, arqmvos IMEC, 29 de agosto ele 1984.

44. Título de La Vaie cammuniste, n. 3, abril-maio de 1958, arquivos BDIC.

66.

45. La Voie cammuniste, n. 20, fevereiro de 1961, arquivos BDIC. 46. Ver capítulo 2.

67. Félix Guattari, caderno n. 3, 28 de março de 1953, arquivos IMEC.

47. Denis Berger, entrevista com o autor. 48. No dia 17 de março de 1960, é enviado um t€legrama ao presidente da República, ao chanceler e ao ministro do Exército pela libertação de Gérard Spitzer, assinado por Élie Bloncourt, Claude Bourdet, Albert Chatelet, Gílles Martinet, Daniel Meyer, Mareei Prenant, Oreste Rosenfeld, Jean-Paul Sartre, Laurent Schwartz. Texto em La Voie communiste, n. 12, abril de 1960, arquivos BDIC. 49. "Le Manifeste des 121 ",La Vaie communiste, n. 16, setembro de 1960. Primeira publicação do texto que se pronuncia sobre a insubmissão. 50. Michel Cartry, entrevista com o autor. 51. Ibid. 52. Alfred Adler, entrevista com o autor. 53. lbid. 54. Ibid. 55. Claude Vivien, entrevista com Vírginie Linhart. 56. Ibid. 57. Gérard Spitzer tem a auréola de seu passado de resistente. Seu pai, médico judeu húngaro, fOi deportado. Ele se engajou na Resistência em Grenoble e foi responsável pelo FTP de Paris em 1943, aos 15 anos de idade. 58. Entrevista com Mohammed Boudiaf, La Vaie communiste, n. 31, nov.-dez. de 1962, arquivos daBDIC. 59. La Voie communiste, n. 23, jun.-jul. de 1961, arquivos da BDIC.

68. Ibtd., fim de setembro de 1953.

69. Claude Vivien, entrevista com Virginie Linhart. 70. Félix Guattari, caderno n. 4, 24 de maio de 1954, arquivos IMEC. 71. Féli_x Guattari, "Cahier Lacan 1954-55", ano" taço~s de curso de 15 de dezembro de 1954, arquivos IMEC. 72. lbid., anotações de 12 de janeiro de 1955. 73. lbid, anotações de 20 de janeiro de 1955. 74. Félix GUATTARI, "Machine et structure" e p~sição feit~ à Escola Freudiana de Paris: p~­ bhcada em Change, n. 12; republicado em Félix GUATTARI, PT, reeel., p. 240-248.

Gilles Deleuze & Félix Guattari

2 La Borde, entre mito e realidade

Um lugar mítico no campo, o castelo de La Borde abriga uma clínica psiquiátrica singular, na qual se trata a loucura de maneira diferente. La.Borde tornou-se ao longo do tempo uma utopia realizada - o movimento ali é testado e provado em processo. Brecha na tradição do aprisionamento do mundo da loucura, a experiência realizada em plena Sologne, no Département du Loir-et-Cher, parece reatar com ou-

lembra que estamos em Sologne. Nas proximidades, há uma sala de espetáculos que podereceber uma centena de pessoas e uma pequena capela transformada em biblioteca. Foi ali, na comuna de Cour-Cheverny, na região central. não longe de Chambord e a 15 quilômetros de Blois, que tomou corpo essa experiência coletiva que pretendia reinventar o mundo, manten1 do-se à parte de seus sobressaltos .

tras modalidades, pré-cllnicas, da indistinção de loucos e de homens dotados de razão, da normalidade e da patologia, sem com isso negar o horizonte medicalizante necessário para responder ao delírio psicótico. Mundo à parte, o navio labordiano navega no espaço aberto de um vasto parque de 18 hectares em cujo centro desponta o velho castelo de um século que, no início da aventura, abriga o essencial do dispositivo clínico, com seus gabinetes, a cozinha, os salões, a enfermaria, a lavanderia e os quartos nos andares superiores. O castelo é ladeado de alguns pavilhões aos quais está ligado. A certa distância, uma estufa, uma horta e, mais adiante, no bosque, um centro de equitação, galinheiros, chiqueiros. Ao lado do castelo, um cedro centenário se impõe, até ser abatido mais tarde por uma tempestade, e um pouCé~ mais-àfrente um grande lago

A filiação da psicoterapia institucional Na origem desse mundo à parte, uma lei da primeira metade do século XIX define em !838 o estatuto jurídico dos "estabelecimentos públicos destinados aos alienados". Pode-se considerá-la como uma peça-chave da política de aprisionamento e do poder abusivo dos alienistas. Contudo, ela pode ser vista também como uma forma de proteção contra o arbítrio: 'A lei de 38 era uma lei que, bem utilizada, permitia a defesa da pessoa ao mesmo tempo contra sua família e contra as usurpações das 2 autoridades administrativas municipais" • Um local memorável da renovação psiquiátrica, situado em Saint-Alban, em Lozêre, e fun-

dado em 1921 pelo doutor Tissot, está na origem da instituição de La Borde. Uma mudança radical da prática psiquiátrica se cristalizou no fim da Segunda Guerra Mundial nesse hospital de tipo particular, privilegiado pelo isolamento. A contestação encontrará em Saint-Alban um de seus redutos prediletos, pois o hospital abrigou toda uma rede de resistentes durante a guerra. Foram acolhidos insubmissos e resistentes, como também alguns grandes intelectuais que passaram uma temporada ali. Desde as reformas de Pierre Balvet, que permitiram transformar os executantes, que eram os enfermeiros, em cuidadores legítimos, os doentes se beneficiam de uma humanização do funcionamento asilar. Lucien Bonnafé, o novo diretor do hospital a partir de 1942, comunista e chefe do maquis''' da alta Lozere, permite aos doentes sair do recinto do asilo e travar relações com a população do entorno. A chegada, em 1939, de uma forte personalidade, François Tosquelles, mudou totalmente os hábitos. Esse psiquiatra catalão foi responsável pelo serviço psiquiátrico do exército republicano espanhol. Militante do POUM (Partido Operário de Unificação Marxista, de orientação trotskista), ele fugiu da Espanha franquista, atravessando os Pirineus a pé até chegar ao campo de refugiados espanhóis de Sept-Fons. Informado por outro psiquiatra catalão, Angels Vives, a respeito do confinamento de Tosquelles nesse campo, Pierre Balvet, que conhecia bem a reputação desse "psiquiatra vermelho", vai libertá-lo e o leva para a clínica de Saint-Alban, para que ele contribua com sua experiência e seu desejo de renovação. Tosquelles se iniciara na psiquiatria aos 16 anos. Aos 24, quando os republicanos espanhóis tiveram de enfrentar o pronunciamiento do general Franco, ele já era médico psiquiatra fazia quatro anos no Instituto Pere Mata de

"'N. de R. T.: Lugar retirado, geralmente nas montanhas ou nas florestas, onde se agrupava a Resistência armada durante a segunda guerra mudial. Diz-se igualmente, de um grupo de resistentes da Ocupação. Por extensão, maquisard é aquele que resistiu, na Ocupação, em um maquis.

45

Réus, onde se perpetuou durante um século uma tradição fundada na atividade de centros de leitura. Participou cedo de uma experiência inovadora da Comunidade da Catalunha, e ali aprendeu com o professor Mira e Lopes urna organização original dos serviços de saúde, amplamente inspirada na psiquiatria alemã. Quando Tosquelles atravessa a fronteira francesa, leva com ele uma obra, que se encarregará de traduzir para o francês, do alemão Hermann Simon, a propósito de sua experiência de Guttersloch, segundo a qual é preciso cuidar da instituição psiquiátrica tanto quanto dos doentes, estimulando as atividades de trabalho e de criação de toda a comunidade 3 hospitalar • As posições vanguardistas de Tosq uelles encontram um quadro propício no hospital de Saint-Alban, graças ao clima de efervescência intelectual que se desenvolveu ali durante a guerra. Esses psiquiatras são quase todos da mesma geração; com menos de 30 anos, eles têm o mundo a reinventar. Com a iniciativa da criação de um clube dos doentes do Hospital Saint-Alban, Tosquelles encontra seu lugar em um trabalho coletivo intenso que leva à criação de uma sociedade erudita, chamada de Sociedade do Gévaudan: "Para preparar um futuro feliz, falava-se da psiquiatria, tratava-se de rever de maneira crítica os conceitos de base e 4 os tipos de ação possíveis" • Em 1952, quando Bonnafé é chamado para um cargo em Paris, Tosquelles se torna médico-diretor do hospital. O contexto global da Resistência, a espera das remessas de armas por paraquedas, os acolhimentos dos maquisards, os vínculos construídos com a população vizinha: tudo isso faz do hospital de Saint-Alban um meio aberto que trabalha com os camponeses e com os soldados do país e que se engaja naquilo que a Sociedade de Gévaudan qualificou de "geo-psiquiatria", isto é, a inserção da ativida~ de psiquiátrica nas tradições locais. Esse meio montanhoso implica urna prática médica rnigrante, que consiste em buscar os doentes em suas casas e em assegurar o acompanhamento pós-cura no domicílio.

46

Dosse

O elo entre o hospital e a Resistência era tão orgânico que o recrutamento dos internos estava estreitamente ligado às redes da Resistência local. O diretor, Lucien Bonnafé, orquestra essa atividade. Recebe Paul Eluard, que transforma Saint-Alban em plataforma de edição clandes· tina, assim como importantes agentes de ligação da Resistência, entre os quais Georges Sadoul e Gaston Baissette. Encontra seu seguidor no curso de medicina que faz em Toulouse, o filósofo Georges Canguilhem, então comissário adjunto da República em Clermont-Ferrand: "Tudo isso teve um papel muito importante na aventura de Saint-Alban, esse lado muito misturado à guerra, ao movimento da guerra em todos os sentidos: a resistência local, os maquis de Auvergne, com o monte Mouchet, a resistência intelectual, a edição clandestina'' 5• Essa experiência irá se revelar determinante na abertura de La Borde: segundo Jean Oury, constituirá seu "crisol", sua "matriz" 6• No imediato pós-guerra, numerosos jovens internos optam pelo Saint-Alban. Jean Oury chega lá em setembro de 1947, com toda uma geração que se fOrma nessa escola7• O contato com Tosquelles é imediato. Oury é portador de um projeto que concebeu aos 18 anos, em 1942: constituir um grupo de trabalho entre colegas, suficientemente libertário. Ele está impregnado, como Guattari, da experiência de seu subúrbio de origem, a Garenne-Colombes, dos A], de movimento de jovens muito ativos desde a Libertação. Nascido em 1924, Jean Oury vem da camada popular: seu pai era po· lido r na Hispano-Suiza, a grande e prestigiosa empresa de La Garenne. Jean Oury chega a Saint-Alban com o texto de uma conferência de Lacan do mês de maio de 1947 que se tornará para ele a referência mais importante ao longo de seu percurso psiquiátrico. Ocorre que o psiquiatraAjuriaguerra organizou com seu colega Georges Daumézon e com o sociólogo Georges Gusdorf uma série de intervenções da Rue d'Ulm para dar con· tinuidade ao congresso de Bonneval de 1946, no qual Lacan havia desenvolvido a tese da causalidade psíquica: "Vi ..desfilarem pessoas

Gilles Deleuze & Félix Guattari

que falavam, até que no mês de maio ouço um sujeito; digo a mim mesmo: 'Enfim, alguém inteligente'; era Lacan, e isso permanece" 8• Essa conferência determina sua vocação. Até então ele vacilava entre o curso de física-química e a psiquiatria: a voz/via de Lacan decídiu por ele. Contudo, ainda demorará para estabelecer um contato pessoal com seu mestre: "Somente em outubro de 1953 é que o vejo em análise, e isso durou até 1980: 27 anos! À razão de duas vezes por semana, pois sou incurável"9• Jean Oury participa, assim, de toda a aventura lacaniana; a cisão de 1953, a fundação da Escola Freudiana de Paris em 1964, e se ocupa durante quatro anos da comissão de adesão, ao lado de Lacan, de Serge Leclaire e de Mustafa Safouan.

Um novo construtor: Jean Oury Jean Oury permanece em Saint·Alban até 1949, quando então é chamado para substituir, em Saumery, um amigo de Tosquelles, Solanes, que partiu para assumir um hospital em Caracas. Assim, Oury chega a Loir-et-Chair para um período que não deveria durar mais do que um mês e acaba se transformando em instalação definitiva, até 1953. O castelo do século XVII de Saumery é então a única clínica psiquiátrica do departamento. Essa clínica privada "prati· camente não funcionava mais, e tinha apenas 10 doze leitos" • É lá, em Saumery, na clínica de La Source, que se forma a futura equipe de La Borde: "Sob muitos pontos de vista, os anos de 1950 a 1953, o período da clínica de La Source, são o ápice da história labordiana"ll. Nesse microcosmo, com um número muito limitado de doentes, define-se um certo estilo de vida coletiva. "Tratava-se de um grupo bastante unido a partir de pessoas que tinham se conhecido nos Albergues da Juventude ou no subúrbio de origem de Oury- La Garenne-Colombes -, ao qual se juntaram alguns ami· 12 gos" • Todas as pessoas das relações de Jean Oury passam um tempo ali, para ajudar nos cuidados ou nas oficinas de animação nos fins de semana ou durante as terias, constituindo

uma verdadeira tribo: "Saumery é o período que chamei de 'portas fechadas">1 3. Em Saumery, Oury concebe sua prática psiquiátrica na linha de Saint-Alban: 'A psiquiatria sem essa articulação é mistificação. Tosquelles falava do heterogêneo policêntrico e ao mesmo tempo do transdisciplinar. Não se pode cuidar de alguém sem levar em conta seu trabalho, 1 sua infância, sua situação material" 1' • Quando os proprietários da clínica manifestaram a intenção de retomá-la e se opuseram a todas as propostas de organização, Oury decidiu levar a experiência para outro lugar. Oury havia conseguido ampliar a estrutura de acolhimento para quarenta leitos, mas, isolado em Saumery, único responsável pelas questões psiquiátricas de todo o departa· menta, ele também tinha muita vontade de ir embora e de criar sua própria instituição. A oportunidade surgiu em abril de 1953, quando descobriu que o castelo de La Borde, a dez quilômetros dali, estava à venda. Ele o adqui· riu e levou consigo quase todos os doentes de Saumery e seus oito cuidadores. O estado do castelo era tal, na época, que não encontrava comprador. Do castelo cercado de construções em ruína, apenas o térreo e um andar eram habitáveis. Além disso, La Borde era bastante isolado, pois o vilarejo mais próximo encontrava-se a quatro quilômetros, e a primeira cidade, a treze. Esse nascimento é acompanhado de imediato de um reconhecimento pelo meio psiquiátrico: desde 1954, os psiquiatras Louis Le Guillant, Évelyne Kestemberg e Georges Daumézon procuram discutir com Oury e lhe enviam seus doentes. Com a criação de La Borde, começa uma aventura nova e revolucionária. Seu idealizador batiza a clínica conferindo-lhe, com certa dose de humor, uma constituição dita do "ano !",instaurada desde a abertura do estabelecimento, em abril de 1953. Essa carta fundadora institui o princípio comum do coletivo de trabalho como grupo terapêutico segundo três princípios organizadores. O centralismo democrático assegura a preeminência do grupo gestor e responde a um princípio

47

marxista-leninista ainda em voga nesse ano do desaparecimento do "pai dos povos". O segundo princípio, que prevê a precariedade dos estatutos, corresponde à utopia comunista segundo a qual toda pessoa deve ser capaz de passar do trabalho manual ao trabalho in· telectual e vice-versa: qualquer um na clínica pode ser convocado a passar da atividade de cuidados médicos a tarefas de limpeza, de coordenação de oficinas de criação ou, ainda, de preparação de espetáculos. Um mecanismo de revezamento das tarefas é sistematizado. O terceiro princípio, antiburocrático, institui uma organização comunitária com a coletivização das responsabilidades, das tarefas e dos salários. Sem se reivindicar um programa que posteriormente terá um nome, o de "psicoterapia institucional", já é possível demarcar todas as temáticas dessa corrente inovadora: 'A permeabilidade dos espaços, a liberdade de circular, a crítica dos papéis e das qualiflcações profissionais, a plasticidade das institui· ções, a necessidade de um clube terapêutico dos doentes" 15. Um texto pomposo define ironicamente essas orientações: "Ontologia para uma fenomenologia não dedutiva', com um subtítulo mais curto: "La menthe àl'eau"'~. Trata-se de se situar em uma postura criativa caminhos não traçados da maneira mais inspirada, deixando que o acaso e a espontaneidade ajam, como teorizaram os surrealistas. Oury invoca nesse campo a influência de Lacan, mas também de Francis Ponge: "Desviar o objeto é o procedi· mento de Francis Ponge. Fazer surgir aquilo que Lacan chama de Coisa. Lá se toca uma certa superfície, uma semântica que se reporta diretamente ao acolhimento çie psicóticos" 16 • Desde o início, além da paixão por sua função de terapeuta-psiquiatra, Oury tem o maior interesse pela criação, à qual consagra sua tese. Ao fazer a ligação entre criatividade e loucura, ele pretende contestar a ideia segundo a "'N. de R. T.: Literalmente pode traduzir-se como "a menta na água" ou "chá de menta" (hortelã), e aponta para o tom irônico do subtítulo.

----------------...... 48

Dosse Gilles Deleuze & Félix Guattari

qual a loucura só comporta negatividade: "Eu

apresentava essa criação como uma espécie de defesa biológica: tentativa de reconstrução do 17 mundo, função de vicariância ... " Nessa tese, Oury estabelece uma conexão entre a fissura provocada pela lesão psíquica do psicótico e uma auto produção: "O próprio delírio é produ-

tivo ... Eu falava de 'co nação' estética"

18



Oury dirá que uma clínica não deve ser confundida com uma "indústria de calçados". O grupo terapêutico de La Borde deve se desfazer do funcionalismo com suas seções, suas especializações e sua hierarquização. Ele não quer reproduzir o que se passa nos hospitais clássicos, que empregam ergoterapeutas ou

socioterapeutas fechados em sua especialidade e separados do resto do pessoal. A revolução deve ser permanente ali, assim como a reflexão, que deve seguir passo a passo as iniciativas práticas para avaliar sua possível fecundidade. Uma das questões particularmente delicadas cliz respeito à retribuição salarial do trabalho realizado em La Borde. O princípio de início adotado, bastante complexo, é o da definição do salário em função de um coeficiente estabelecido provisoriamente segundo uma ponderação de critérios ligados à dificuldade da tarefa e à sua capacidade terapêutica. Desde a criação de La Borde, Oury implanta o Clube da Clínica, baseado no modelo de Saint-Aiban: "O primeiro gesto do doutor Odin [trata-se na verdade de Jean Oury] foi procurar um lugar com cadeiras e uma mesa para vender sabonetes ou canetas esferográficas, jogar cartas ou ler 19 revistas" • Assim como em Saint-Alban, o objetivo era criar um espaço social não tributário das relações hierárquicas de poder, um lugar de trocas entre cuidadores e doentes, monitores e enfermeiros, pessoal de serviço e médicos. Esse clube não é nem um pouco marginal na vida da clínica. Ao contrário, concede-se a ele a melhor parte do castelo, o grande salão do térreo e o pequeno salão contíguo. Abre-se ali um bar onde se encontram bebidas sem álcool, cigarro. Uma assembleia geral deve ser realizada ;;'cada ql.linze dias para designar a

direção e o presidente. No início da aventura, o funcionamento da direção é permitido apenas aos monitores, com a exclusão dos doentes, mas as coisas mudam quando se percebe que muitos doentes são plenamente capazes de assumir responsabilidades administrativas. Essa sociabilidade é mantida em La Borde por uma profusão de comitês de oficinas e de reuniões de todo tipo. A direção do clube comanda oficinas que se ocupam do jornal dos internos, La Borde-Éclair, da atividade de pirogravura, do coral, do teatro de marionetes, etc. Ela também supervisiona a tesouraria e dispõe, para isso, de autonomia financeira em relação à clínica: "Estabelece-se assim uma estrutura fOrmal, democrática, de representação dos internos"'-w. Para envolver todos os funcionários nas relações com os doentes, decide-se implantar, sete meses após a criação da clínica, uma comissão de cardápios: fazer o cozinheiro sair da cozinha e, ao contrário, fazer com que mais pessoas participem das atividades da cozinha ajuda a desenclausurar, a acabar com as especializações e a desencadear uma dinâmica de homogeneização do grupo. Essa política voluntarista não está isenta de resistências e conflitos, pois atinge em cheio a especialização de cada um. As tensões criadoras devem suscitar uma atenção constante à alteridade nesse lugar onde a psicose interpela sempre de maneira diferente as lógicas racionais. As trocas comunitárias implantadas nas instituições labordianas visam tirar os indivíduos do isolamento, arrancá-los de suas tentações mortíferas, romper com a compulsão de repetição, recriando permanentemente novos grupos-sujeitos. O objetivo da aplicação dos princípios dessa terapia institucional não é tanto criar o relacional como tal, mas sim "desenvolver novas formas de subjetividade"21 • Félix Guattari mantém Jean Oury a par de suas atividades políticas, sobretudo do seminário de Lacan, que ele acompanha regularmente desde os anos de 1950. Convidado a ir para La Borde, Félix instala-se ali com sua companheira Micheline Kao em 1955. A divisão de competências se modifica um pouco

entre os dois amigos. Embora Guattari continue sendo o preposto para as relações exter~~s, incu~~em-no também do clube terapêutico da chmca e da organização do trabalho. Com a instal~çã? de Guattari, La_ Borde logo se tor~a uma maquina bicéfala". E essa dupla de amigos que permitirá superar todas as provas e manter o rumo de uma instituição que produz desequilíbrios para enfraquecer suas bases e manter-se receptiva às inovações. Guattari é mais atraído pela aventura intelectual encarnada pela experiência labordrana do que pelo mundo da psicose: "É muito curioso, mas é verdade que eu não estava mui.t~ interessado na loucura'm. Ao contrário, a atiVIdade de organizador e de coordenador se a~.aptava perfeitamente ao militante político: Eu tmha esse comportamento militante um pouco rí~do em face dos funcionários que estavam murto surpresos ao ver se introduzir uma disciplina de funcionamento, um estilo de reunião, de controle das tarefas" 23• A vida cotidiana na clínica não é de tato muito tranquila.. Antes da adoção dos neurolépticos e da q~mwterapia, os conflitos com os doentes podiam acabar em pugilato, e não era raro receber uma cafeteira ou qualquer outro utensílio na cabeça. Guattari, já então chefe de bando, enfrenta com .determinação e põe em prática seus con~~cimentos de judô para imobilizar se necessano qualquer veleidade de violência. Quanto .aos ~ncionários, eles dispõem de vários locais d.e diScussão para se expressar, e o diálogo aJ~da a neutralizar os litígios e a recuperar a flmdez necessária. Muito diretivo, Guattari começa a acompanhar alguns doentes e se mostra particularmente intervencionista em face daqueles que se refugiam em seu leito. Ele os I~tlma a sair do quarto e a se dedicar às atiVIda?e_s ?revistas na grade de horário. Entre o semmano de Lacan que acompanha regularmente e o ter~eno labordiabo, Guattari adquire uma verdadeira formação psiquiátrica. Guattari flexibiliza seus métodos quando s~ :ncontra do outro lado do espelho na condiçao de paciente. Na verdade, em 1957 é enca-

49

minhado por Oury a Tosquelles, em Saint-Alban, para ficar internado por algum tempo a fim de -e~capar do serviço militar e da guerra da Argeh~. Nessa ocasião, ele avalia o quanto pode ser msuportável para um paciente estar submetido a enfermeiros autoritários. Os debates desses anos de 1950 tratam da influênCia de Sartre e de suas teses existencialistas A dis~u~são com Oury sobre as relações en~ tre medicos e enfermeiros é reveladora dessa preocupação de disfuncionalizar: "A perspectiv~ central é, portanto, exatamente o desaparecimento de determinados papéis, de estereótipo_s: 0 mesmo deve ser feito pelo louco e pelo medico ou pelo enfermeiro, para alcançar uma promoção de relações humanas que não mais co~~uz~~ automaticamente a papéis, a estereotipas - . Em La Borde, os enfermeiros são monitores sem jaleco branco, e não se distinguem dos doentes. Com humor, Oury inverte valores estabelecidos segundo os quais a mternação de um louco se reveste de um caráter definitivo. Ao contrário, ele considera os doent~s.como passageiros, ao passo que o corp? medico, este sim, é o elemento estável, enraizado e crônico. Desde o início da aven~ tu_ra, e depois em Saint-Alban, encontra-se a mtuição de que existe verdade no discurso do louco. Sem fetichizar o delírio, procura-se n:le uma parte de criatividade à qual o olhar clmrco deve estar atento, o que "foi chamado de dimensão transcendental do Ioucd' 25, Guattari logo se incumbe pessoalmente de alguns doentes, como Jack Briere, que chega a La Borde em 29 de janeiro de 1959. É recebido por Guattari, que fará psicoterapia individual c?m ele e o acompanhará. até que deixe a clímca em 1967. O tratamento de Jack Briêre, às vo_lta~ co~ _a_ngústias fóbicas, é inteiramente classico: Fehx Guattari não falava. Eu deitava_:m seu,divã. Ele ficava atrás e ouvia" 26.Jack Bnere s.era durante quatro anos presidente e te.so~relro da Assembleia Geral dos internos. DISpo,e de uma efetiva autonomia financeira, mant_e~ o registro contábil, gere uma conta ba~cana em Blois e, por outro lado, se beneficia da generosidade de Guattari, que lhe ga-

?s

50

Gi!les De!euze & Félix Guattari

François Dosse

rante o dinheiro necessário para a compra de !ívros sobre a metalurgia, sua paixão, e que lhe

servirão mais tarde quando fizer o curso do Conservatório de Artes e Ofícios. ]ack Bri€re fica aturdido diante do ritmo de Guattari, que é apelidado por um ele seus colegas ele "Speedy Guatta"'. Quando se pergunta a Jack Briere o que Guattari lhe proporcionou, ele responde: "Viver. Ele estimulava as pessoas a realizar seu desejo e, quanto a mim, encorajou-me a fazer 28 escultura'' • Entre os pacientes, existe um a quem Guattari é particularmente apegado, grande artista, poeta e músico que aterrissou ali em 1955 e permaneceu até sua morte em 30 de maio ele 1999:Jacques Besse, nascido em 1921, faz um curso médio brilhante e ingressa na classe preparatória, estuda filosofia e se torna diretor musical da companhia de Charles Dullin em 1943. Na Libertação, assina algumas músicas de filme para Yves Allégret, Alain Resnais, e compõe úm concerto para piano. Em 1950, retornando sozinho a pé de uma viagem à AJ'~ gélia, sua vida sofre uma reviravolta. Vagueia então de prisão em hospital psiquiátrico até que Oury e Guattari o acolhem em La Borde, abrindo-lhe as colunas da revista Recherches, 29 que publica alguns de seus escritos . Regularmente,Jacques Besse tem vontade de sair da clínica e passear em Paris, fonte de inspiração literária: "Voltando mecanicamente para Saint-Germain-des-Prés, eu me pergunto com que peso de Amor, com que imposto de Amor que não seja o imposto de sangue, deveremos pagar a necessidade de todos os nossos atos prosaicos em face do Céu que nos convida, nós, o mais absurdo dos povos, à mais poé30 tica das Alianças!" • Guattari lhe dá uma nota de 500 francos para que possa fazer um passeio, mas o dinheiro é gasto em bebida durante o dia, e no fim da tarde Jacques Briere é internado à força. É preciso muitas vezes buscá-lo no hospital psiquiátrico de Ville-Évrard para trazê-lo de volta a La Borde. Besse participa ativamente de todos os saraus culturais de La Borde. Consegue-se in<·' clusive convenCê-lo a escrever uma peça de

teatro, representada à medida que ele escreve, que, com duração de quase uma hora, é apresentada na clínica com o título de Exotique Occident. O cineastajacques Baratier, seu amigo, que o visita sempre em La Borde, lhe dedicará um belíssimo filme em 2004, no qual Laurent Terzieff encarnao papel de jacques Besse, em grande parte escrito por ele mesmo, que dá respostas do tipo: "Não procure a doença atrás »31 daspaIavras, mas o poeta . Para sair do duplo impasse dos grupos grandes demais ou da mera relação dual entre cuidador e doente, decide-se em La Borde criar pequenas unidades: "Tínhamos assim seis ou sete grupos com nomes bizarros. Houve um, depois de 1970, que foi chamado ele 'grupo dos desarvorados"':l 2 • Depois, passamos à constituição ele unidades terapêuticas ele base (UTB) que têm como função estar na medida certa para conseguir modificar a consistência subjetiva dos pacientes. Essas unidades restritas de composição numérica variável, mistas, pois compreendem tanto internos como monitores, tornam-se então unidades indivisíveis de quinze pessoas, cuja lei se impõe aos indivíduos que são seus membros. A UTB eleve funcionar corno um lugar privilegiado do sujeito para atenuar a dificuldade que o indivíduo sente de centrar bem sua fala e seu comportamento. Por fim, essas UTB tiveram o efeito perverso de suscitar um familiarismo excessivo, reforçado nessas pequenas unidades que têm a tendência a se fechar em si mesmas: "Lembro do caso de um doente em 1971 que chega aqui e a gente lhe diz: 'Você vai para tal UTB'. No dia seguinte ele veio me procurar dizendo: 'Estou com problemas com minha família. Consegui dinheiro para que fosse embora daqui"t:~.

A invasão dos "bárbaros" Com a instalação de Guattari em La Borde, há também a chegada do que Oury qualifwa de "invasores", jovens estudantes militantes que, por recomendação de seu amigo Félix, passam um tempo na clínica para se confron-

tar com o mundo da loucura. O papel desses "bárbaros", como Oury os chama outras vezes, é muito importante, na medida em que a clínica cresce rapidamente - ela passa de 48 doentes em 1955 para 90 em 1958. Esses "bárbaros" advêm do mundo da cultura e da militância política. Os primeiros a chegar são os fllósofos elo "bando de Félix", que optam, quase todos, pelas ciências humanas: Lucien Sebag, Michel Cartry, Alfrecl Adler, Claude Vivien e a futura psiquiatra Ginette Michaud. O local de encontro dos "bárbaros" com Félix é a biblioteca ela Sorbonne, lugar privilegiado de sociabilidade política: o bibliotecário Romeu, além de ser ele grande ajuda por seu saber enciclopédico, inicia os estudantes de tllosofia na política, conduzindo-os na via do engajamento comunista. Para Guattari, os caminhos da renovação da militância política passam por La Borde, onde ele convoca seu "bando" a se investir nas atividades da clínica. Tão logo La Borde é criada, na primavera de 1953, Michel Cartry é convidado para lá. "Vivemos La Borde como uma grande utopia. Lembro de Oury vindo nos buscar na estação de Blois. Passamos uma noite inteira em seu gabinete comentando Diário de um Sedutor de 34 Kierkegaard" • O futuro antropólogo é incumbido do acompanhamento de um jovem esquizofrênico tratado por Guattari e que escreve poemas, tem um diário e assiste ao seminário de Lacan. Guattari o envia de tempos em tempos a Paris e conta com seu amigo Cartry para recebê-lo. Chegadas as férias universitárias, os "bárbaros" se instalam temporariamente em La Borde e participam de todas as atividades da clínica. São encarregados então da tipografia, desta ou daquela oficina de argila, de cerâmi~ ca, e participam das reuniões em que estão presentes médicos, enfermeiros e doentes: ''A recusa de ver a loucura como uma simples doença e uma maneira de ligá-la à própria aventura intelectual, em relação à linguagem, à poesia. Tudo isso era verdadeiramente novo. 35 Não se ouvia isso correntemente" • Quando Cartry opta pela antropologia, intensifica ain-

51

da mais o contato com La Borde, e sua mulher, Christiane, decide se tornar monitora ali, vivendo dois anos na clínica, onde nasce seu filho. O companheiro ele colégio de Cartry, Alfred Adie r, também futuro antropólogo, vive amesma experiência fascinante de La Borde e na época considera Félix como seu "guru". Esses "bárbaros" são chamados, aliás, de "soldadinhos de Guattari". Buscando como tantos outros escapar da guerra, Alfred Adie r apresenta seu dossiê no Centro Hospitalar Universitário ao doutor Lebocivi, que o encaminha à clínica dirigida por um amigo de Guattari, Claude Jeangirard, a uma dezena de quilômetros de La Borde. Com isso, ele pode ir todos os dias a La Borde, situada em Cour-Cheverny, e participar ao lado de Guattari de todas as atividades. É ainda em La Borde que Claude Vivien escreve seus primeiros textos sobre Freinet: ''A gente 36 dormia no castelo em saco de dormir" • Quanto a Ginette Michaud, lança-se nos cursos de medicina e de psicologia. Para ela, La Borde é decisiva nesse aspecto, onde se insta~ lará como psicóloga: "O conceito de transversalidade fui eu que inventei e transmiti a Félix 37 para que trabalhasse sobre ele" • Na época, Ginette Michaud vive com Lucien Sebag, jovem filósofo convertido à antropologia e considerado na época como potencial sucessor de Claude Lévi-Stauss. Ele também se envolve em La Borde e leva para lá seu irmão Robert Sebag, o brilhante matemático. Essa primeira "invasão" dos bárbaros é seguida de uma segunda onda, que corresponde ao flm da guerra da Argélia e à realocação do investimento militante de Félix Guattari junto aos estudantes nos meios sindicalizados da UNEF e dos mutuários da MNEF". Os anos de 1960, após a independência da Argélia e antes da explosão de 1968, drenam um grande número de estudantes estagiários, muitos dos quais se investem com uma verdadeira paixão militante nas atividades da clínica. Para esses ~'N. de T.: UNEF: Union Nationale des Étudiants de France; MNEF: Mutuelle Nationale des Étudiants de France.

l 52

Dosse

estudantes animados por um ideal político,

trata-se do duplo encontro com o mundo da psiquiatria e com uma utopia social realizada aqui e agora: "Cheguei a La Borde num dia de verão. Acho que tinha 20 anos. Era o fim da guerra, um amigo tinha saído da prisão, o tem38 po estava bonito ... " É assim que a estudante de letras e futura escritora Marie Depussé inida o relato de seu primeiro contato com esse outro-mundo. Na época, cursa a Escola Normal Superior (ENS) em Sevres e regularmen-

te ouve Lacan com seu amigo, estudante de filosofia, que acabou de sair de três meses de prisão por causa de uma manifestação contra a guerra da Argélia. Tendo decidido festejar a libertação no campo, eles foram para La Borde. A paixão foi imediata: "Se fiquei em LaBorde é porque estava maravilhada pelos loucos. 39 pela maneira como se cuidava deles" • Marie Depussé tornou-se então estagiária antes do tempo, pois em 1962, data de sua chegada. a função ainda não existe. Depois de desembarcar em Lá Borde, Marie Depussé nunca mais partirá de verdade. Ela intervém em uma reunião a propósito de um doente cuja violência, para ser contida, parece exigir que se decida por uma série de eletrochoques - em La Borde assume-se também esse aspecto da psiquiatria, e, aliás, são muitos os internos que os solicitam reiteradamente para acalmar sua angústia. Ela expressa sua convicção de que esse doente busca principalmente, com suas atitudes provocadoras e violentas, instituir um diálogo, uma escuta: "Félix veio em minha direção, sorriu e sem rodeios me disse para abandonar meus estudos, que meu futuro estava em La Borde ... Nessa época, Félix dizia: 'O mundo está em La Borde'. 40 Isso, em grande parte, era verdade" • A proposta seduz e põe em dúvida Marie Depussé, que divide seu tempo entre Paris, onde segue seu curso na ENS até a conclusão, e La Borde, para onde vai todos os fins de semana e participa das tarefas mais humildes: lavar louça, fazer faxina. Seu pai, arquiteto, constrói para ela uma casa de madeira,,muito bonita no parque de La Borde, que lhe dá um ponto de ancoragem.

Gil!es Deleuze & Félix Guattari

Ela é fascinada por Oury, mas não menos por Guattari, a quem vê como um incansável vendedor de esperança, capaz de convencer o mais vacilante a se levantar. Essa tensão utópica encontra seu momento de paz cotidianamente na hora do chá de tília: "Que graça há na imobilidade dos seres, em torno das mesas, diante de uma xícara de chá, às 9 horas da noite, em La Borde. Nessa hora, eles são escolhidos. Convivialidade silenciosa ... Hora de sus41 pense, onde a pausa é interiorizada" • Marie Depussé tem a dimensão da pertinência analítica de Guattari principalmente quando. num dia de grande abatimento, alimenta uma fantasia de autodestruição. Seu desejo de acabar com tudo é tão intenso que seu irmão percebe e se abre com Guattari: "Um dia, estupefata, cruzo com Félix longe dos gabinetes de La Borde e ele me diz: 'Parece que você está com vontade de morrer. Então, eu quero lhe dizer uma coisa: morra!' E eu ri muito. Foi dito de tal forma, na hora certa, no cruzamento certo. Eis como Félix trabalhava com 42 um verdadeiro poder de terapeuta'' • Marie Depussé permanece, portanto, em La I3orde, 43 e consagra duas obras à clínica , Seu talento na escrita lhe vale corrigir os textos de Guattari. Ela o dissuade a prosseguir suas tentativas ficcionais: "Ele foi muito obcecado por ]oyce durante toda a vida. Ele chegou com Joyce e morreu com Joyce. Há muitas pessoas que fo44 ram destruídas por Joyce" • Em compensação, quando corrige seu texto sobre a "transversalidade", fica elevada com a qualidade e densidade da reflexão. Pouco depois, em março de 1963, outro escritor, militante da UEC, dá seus primeiros passos em La Borde, Michel Butel. Sua irmã está em mau estado psicológico, e seu amigo Jean-Claude Polack o aconselha a levá-la para se consultar com Oury e Guattari. Michel Butel não espera muita coisa desse encontro e vai por dever familiar, sem entusiasmo. Ele sofre de asma nessa época, e uma noite se vê prestes a ter uma grave crise enquanto está hospedado na clínica. Sai em busca dos medicamentos necessários quando chega Guattari: "É

o encontro de minha vida. A gente começou a conversar. Ele tinha o hábito de transfOrmar sua vontade de conhecer as pessoas de forma incrível, indo diretamente ao essencial, e era capaz de falar de tudo"'15 , Guattari, dez anos mais velho que ele, seduz Butel pela amplitude de sua curiosidade intelectuaL Logo encontram um terreno comum, o da reflexão e da ação política. Nasce desse encontro uma amizade que não se desfará. Butel faz vários estágios em La Borde, onde fica encantado com a onipresença de seu amigo Félix: "Em La Borde. ele era o Deus. Ele estava sempre lá. Morava na época em uma espécie de anexo ao lado da clínica. Quando acontecia alguma catástrofe, mesmo que fosse às 3 horas da manhã, se podia contar com ele. Ele conduzia reuniões extremamente cansativas . .Era a alma da clínica! Oury tinha o estatuto da figura tutelar, mas era Félix quem tocava a máquina no cotidiano'"16. Nessa segunda onda de "invasão bárbara" chega também a La Borde uma personalidade importante da extrema esquerda de Lyon, militante contestado r da UEC. a estudante de letras Françoise Routier, que em sua passagem subverte muitos hábitos já adquiridos pela instituição labordiana, o que nem sempre é do agrado de Jean Oury. Um dos futuros pilares de La Borde, psiquiatra de profissão. chega em 1963: Jean-Claude Polack, que iniciou seus estudos de medicina em 1954, acaba de concluir o curso universitário em 1962. Interno em psiquiatria, é sobretudo um líder estudantil de primeiro plano que em 1961 dirigiu a seção de medicina da UNEF, uma sólida organização de 12 mil membros e particularmente radicalizada contra a guerra da Argélia. Quando chega a La Borde, Polack acaba de sofrer um revés. Ele fora sondado para se tornar o presidente da UNEF. e tudo levava a crer que sua eleição seria uma formalidade, pois a corrente esquerdista que o apoiava, chamada de "minoria", era majoritária. Por ocasião das jornadas preparatórias para o congresso que se realiza em Talence, perguntou-se ao futuro candidato à presidência qual seria seu programa à frente da organização sindical e,

53

diante de uma plateia estupefata, Polack pronunciou um discurso ultraesquerdista e agressivo, tomando como modelo o sindicalismo dos bandos de estudantes extremamente violentos do Japão, os famosos Zengakuren. Para evitar o pior, a minoria teve de procurar outro candidato, mais apresentável ao congresso. Polack manifestamente dinamitara suas chances de chegar ao comando da UNEF. Esse estágio organizado pela mutual em La Borde suscita o entusiasmo de Polack: "Foi amor à primeira vista, o primeiro lugar onde eu tinha a impressão de que se fazia psiquiatria''47 • Polack volta à clínica para se reciclar e se instala ali para trabalhar como psiquiatra a partir de 1964, consagrando à clínica uma obra escrita junto com sua companheira, a psiquiatra 18 Danielle Sivadon' • Quando Polack descobre La Borde, ele está ligado a toda uma série de líderes estudantis, militantes sindicalistas e revolucionários, aos quais relata sua nova paixão, dizendo-lhes que lá se encontra um "pequeno míope" incrível, com quem se discute noites inteiras sobre tudo, a vida, a morte, o amor. Convida-os a ir lá o mais rápido possível e, enquanto isso, organiza uma reunião na casa de Marie Depussé com Guattari. É lá que se articula o projeto político de constituir uma "oposição de esquerda', que pretende se dotar de um programa. O bando de Guattari encontra-se em La Borde. Além de Michel Butel e jean-Claude Polack, estão lá os futuros sociólogos Liane Mozere e Hervé Maury, François Fourquet, assim como Pierre Aroutchev, Georges Préli e alguns outros em 1965: "Eu tinha então 26 anos, e a gente estava apaixonado pelos loucos"49• Estagiários no verão de 1965, alguns se instalam em La Borde para trabalhar, como François Fourquet, a partir do outono de 1966: "Pedi para trabalhar em La Borde. Félix me olhou muito surpreso e me disse: 'O que é que te prende? Você tem um futuro como professor universitário'. Ele tinha razão, tornei-me mais tarde professor universitário" 50• Uma espécie de imperativo empurra Fourquet para La Borde. Tendo concluído seu curso de ciências políticas, ele está em condições de colocar

54

Gilles Deleuze & Félix Guattari

François Dosse

suas competências a serviço da clínica, que

para o diploma de ciências políticas: Lion Mu~

se debate com grandes dificuldades de ges-

rard, que desembarca em 1966 em La Borde,

tão. Guattari fica feliz por poder passar a incumbência a uma pessoa competente como Fourquet. Trata-se de conseguir o repasse da Seguridade Social e de racionalizar a gestão da clínica e de sua centena de pacientes, monitores, estagiários, enfermeiros e médicos. François Fourquet dedica-se, portanto, à tarefa e passa os primeiros meses trabalhando regularmente até as 22 horas para recuperar os dossiês perdidos e colocá-los em ordem. Sua vida não se limita à burocracia. Ele assu-

fica imediatamente seduzido por essa clínica,

me também funções de enfermeiro quando

nand Deligny. Sua ligação com Danielle Rouleau, ela também estudante, que abandonou

necessário, junto com sua esposa, Genevieve, enfermeira profissional na clínica: "Fiquei tão

que trabalha no "descolamento da pessoa e da função pa~a impedir qualquer forma de sedi-

mentação""·1. Em 1966, vindo de Poitiers, François Pain, cunhado do psiquiatra Tony Lainé, chega a La

Borde para um estágio de um mês. Fica sete anos. Muito jovem, recém saído do baccalau~ réat;~. ele se inscreve em medicina em Tours, para ficar próximo a La Borde, onde é colocado à disposição do educador-psiquiatra Fer-

por uma enfermeira, com a qual tive uma fi-

a faculdade de ciências de jussieu para fazer medicina, em análise com Guattari, consagra sua inserção por um longo período no meio

lha'". Fourquet também participa ativamente

labordiano. Desde o primeiro estágio, há en-

dos diversos grupos e das oficinas. Entretanto é antes de tudo secretário administrativo, sob

tusiasmo entre os 50 membros de seu grupo

apaixonado por La Borde que me apaixonei

o comando de Guattari, até 1972.

Na mesma equipe, que se encontra no CERFI, está um amigo de Jean-Claude Polack, secretário da UNEF em 1964, Michel Rostain, que também descobre encantado La Borde em meados dos anos de 1960. Para um intelectual do Quartier Latin que acabou de concluir o curso de filosofia, a liberdade de expressão

reinante ali, a preocupação de aprofundar os pensamentos de Marx, Freud, Lacan e a ancoragem na realidade que pressupõe viver dentro da clínica constituem o atrativo da travessia de no último ano do ensino médio, Rostain não convida a passar um tempo em La Borde, para

todas as manhãs. Logo se trava entre François Pain e Guattari uma relação de intensa amizade que não se desfará. Oury e Guattari encaminham François Pain para análise com Tosquelles, o pai espiritual da clínica: ''A certa altura, Tosquelles me interrompe depois de

cinco minutos em que eu estava deitado em seu divã porque critiquei Oury e iniciou uma longa diatribe contra Félix. Ao final da sessão, ele me pergunta quanto me deve, e como já fa-

zia várias sessões que eu não lhe pagava, respondi que isso cobria minha dívidd' 54 •

Notas

loucos, aprender a dar injeções, fazer a guarda

1. Ver Anne-Marie NORGEU, Roger GENTIS, La Borde: le château des chercheurs de sens? La vie quotidienne à la clinique psychiatrique de La Borde, Êr€s, Paris, 2006.

noturna, vender flores com os loucos e discutir 52 o organograma'' • Sua paixão é tamanha que

2. François TOSQUELLES, em François FOURQUET, Lion MURARD, Histoires de la psychia-

trabalhar ali: "Ele me diz: você vem, mas vai

trabalhar: vai lavar louça, conversar com os

ele se instala em La Borde de 1966 a 1973, vi-

vendo de três meses até o ano inteiro na clí~ nica durante esse período. Na mesma época, chega outro representante do "bando de Félix", amigo de França\~ Fourquet, com o qual pre-

Société générale d'imprimerie et d'édition, Pa~ ris, 1933. 4. François TOSQUELLES, em !fistoires de la psychiatie de secteur, op. cit., p. 68. 5. Jbid., p. 72.

6. Jean OURY, li, donc, op. cit., p. 73 7. Jean Ayme, Robert Millon, Mauríce Despinoy, Claude Poncin, Roger Gentis, Horace Torrubia, etc. 8. Jean Oury, entrevista com o autor.

9. lbid. 10. Jean OURY, em François FOURQUET, Líon MURARD, Histoires de la psychiatrie de secteur, op. cit., p. 145. !I. Jean OURY (vulgo Odin), Histoires de La Borde, Recherches, n. 21, mar.-abr. 1976, p. 35. !2. Félix Guattari, "La Grille", exposição feita no estágio de formação de La Borde. janeiro de

vindos de toda a França para refazer o mundo

uma experiência original. Professor de filosofia gosta da rotina. Ele telefona para Félix, que o

trie de secteur, Recherches, Paris (1975), 1980, p.22. 3. Hermann SIMON, La Psychothérapie de /'asile,

"'N. de R. T.: No original, "baccalau.réat". O primeiro dos graus universitários outorgado por um diploma que marca o fim dos estudos secundários; diz-se também do exame que permite sua obtenção.

1987, arquivos IMEC. 13. 14. 15. 16. 17.

Jean Oury, entrevista com o autor.

Jbid. Histoires de La Borde, op. cit., p. 26. Jean Oury, ibid., p. 31.

Jean Oury, "Créativité et folie", transcrição ele um debate com Félix Guattari, 1o de junho ele 1983, arquivos IMEC. 18. Ver Jean OURY, Essai sur la conation esthétique,

Le Pli, 2005. 19. Ginette MICHAUD, "La notion d'institution dans ses rapports avec la théorie moderne des groupes", D.E.S, 1958, p. 89, citado em Histoires deLa Borde, op. cit., p. 61.

20. Jean-Claude POLACK. Danielle SNADON-SABOURJN, La Borde ou le droit à la folie, Calmann-Lévy, Paris, 1976, p. 41. 21. Félix Guattari, "La Grille", exposição feita no estágio de formação de La Borde, janeiro de 1987, arquivos 1MEC.

22. Félix Guattari, entrevista autobiográfica com Eve Cloarec, arquivos IMEC, 29 de agosto de

1984. 23. Jbid. 24. Félix GUATTARI, "Sur les rapports infirmiers-médicins" (1955), em PT, p.11.

55

25. Jean Oury, ibid., p. 25. 26. Jack Briêre, entrevista com Virginie Linhart. 27. lbid. 28. Jbid. 29. Jacques Besse publica notadamente La Gran~ de Pâques, Belgfon, Paris, 1969. 30. lbid., p. 93. 31. Jacques BARATIER, Rien, Vai/à L'ordre, 2004. 32. Jean Oury, entrevista com o autor. 33. lbid. 34. Nlichel Cartry. entrevista com o autor. 35. Michel Cartry, entrevista com Virginie

Li~

nhart. 36. Michel Cartry, entrevista com o autor. 37. Ginette Michaud, entrevista com Virginie Linhart. 38. Marie DEPUSSÉ, Dieu gít dans les détails,

P.O.L., Paris, 1993, p. 9. 39. Marie Depussé, entrevista com Virginie

Li~

nhart.

40. Marie DEPUSSÉ, em Jean OURY, Mario DEPUSSÊ, À quelle heure passe le train ... , Cal~ mann-Lévy, Paris, 2003, p. 216-217. 41. Marie DEPUSSf:, Dieu git dans les détails, op. cit., p. 39. 42. Marie Depussé, entrevista com Virginie Linhart.

43. Marie DEPUSSÉ, Dieu gtt dans les détails, op. cit., 1993;Jean OURY, Marie DEPUSSÉ,À quelle heure passe le train. .. , op. cit., 2003. 44. Marie Depussé, entrevista com Virginie Linhart.

45. :Michel Butel, entrevista com Virginie Linhart. 46. lbid. 47. Jean~Claude Polack, entrevista com o autor. 48. Jean-Claude POLACK. Daniel! e SNADON-SABOURIN, La Borde ou !e droit à la folie, op. cit., prefácios de Félix Guattari e de Jean Oury.

49. Liane Mozêre, entrevista com o autor. 50. François Fourquet, entrevista com Virginie Linhart. 51. François Fourquet, entrevista com o autor. 52. Michel Rostain, entrevista com Virginie Linhart 53. Lion Murarei, entrevista com o autor. 54. François Pain, entrevista com o autor.

Gilles Deleuze & Félix Guattari

3 A vida cotidiana em La Borde

Entre esses diversos meios, os "indígenas" e os "bárbaros", os cuidadores e os cuidados, a circulação é regulada no âmbito de incontá-

veis reuniões na clínica. Toda ocasião é propícia para decidir uma nova. Entre elas, existe uma que há muito tempo atua como instituição: a subcomissão para a animação da jornada (SCAJ). Fundada em 1955, ela terá uma regularidade metronômica até 1965. Essa reunião plenária ocorre no grande salão, pontua a organiza a atividade da jornada todos os dias após o jantar.

Multiplicidade de agenciamentos institucionais Desde sua chegada a La Borde, Guattari assume a coordenação das reuniões da SCAJ, papel delicado, pois elas têm a função de passar informações de todo tipo, de organização de atividades, mas também de desrecalque e de

exposição dos diversos litígios em curso. Para esse mundo de doentes em ruptura, consistem sobretudo na ocasião de recriar uma socialidade por meio da palavra, envolvendo-se em todas as contendas sem gravidade: "Não há dúvida para mim·, de que esse é o motor da 'res' '

1

socialização local' dos doentes" • Como sugere Guattari, a troca verbal não tem como objeto um jogo de poder ou de saber; ela é fundada em um arbítrio da troca considerada como necessária para "ajudar o doente a escapar de si mesmd'2 • Máquina de palavras vazias, o que se troca é da ordem do imaginário, com o objetivo de realizar uma melhor integração simbólica: "Essa reunião cotidiana é uma espécie de escumadeira para recolher o que flca boiando''3. A SCAJ funciona como uma imensa máquina de distribuir o trabalho com base no princípio da mobilidade máxima. O desenvolvimento da clínica de La Borde é tal que em 1957 se decide, à maneira das ordens da Idade Média, criar colônias e partir em missão. A algumas centenas de metros dali, um amigo de Jean Oury, Claude Jeangirard funda em La Chesnaie uma nova clínica, implantada pelos labordianos comandados por Guattari. Jeangirard praticou a psiquiatria à Sainte-Anne, em Vi!le-dAvray, onde se fica sabendo que em La Borde se desenvolve uma experiência interessante. Ele chega no mês de agosto de 1955, para um encontro com Oury, com a ideia de comprar um castelo e criar um lugar semelhante à prática de La Borde: "Ele chegou aqui com uma magnífica Hispano-Sui-

za. Era impressionante, pois eu tinha vivido toda minha infância com uma Hispano~Suiza 1 na cabeça"· • Oury consegue para ele, em novembro, o belíssimo castelo de La Chesnaie, que precisa de reforma. A equipe labordiana é solicitada para os trabalhos de organização, e a clínica abre as portas em julho de 1956. Embora seu modo de funcionamento seja similar ao de La Borde, La Chesnaie está na origem de uma inovação importante: aquilo que se chamou de "grade". A técnica da grade, logo exportada para La Borde, onde desempenhará de imediato um papel motor, é na verdade uma prática importada pelos educadores que vieram restaurar a clínica de La Chesnaie. Ela responde à necessidade de, com um número de voluntários insuficiente, dar conta de uma grande quantidade de tarefas a realizar. A grade, que institui então um sistema de rodízio para determinadas atividades, se reveste do caráter intangível de uma lei imposta a toda a coletividade. Além disso, permite a integração do pessoal de serviços ao pessoal cuidado r. Às vezes, as relações são tensas entre as duas clínicas irmãs: "Foi a guerra dos botões entre La Chesnaie e La Borde, e, assim como nas sacie~ dades primitivas, houve raptos. Eles queriam levar para lá uma enfermeira da qual necessi5 tavam. Vieram raptá-la durante a noite" • Em desacordo com Jeangirard, que participa muito pouco das diversas reuniões da clínica, Oury decide retirar suas tropas. No dia 1ll de julho de 1957, os labordianos de La Chesnaie, retornam, Guattari sempre à frente da clínica-mãe. "Mas as coisas já não podem ser como antes em La Borde, como se nada tivesse acontecido''. A partir de julho de 1957, realiza~se uma nova reunião diária das 18 às 19 horas. Essa reunião logo se tornará o epicentro da vida labordiana e tratará de aplicar o sistema de grade, que articulará duas grandezas difíceis de pensar juntas: o afeto e a atribuição. Ela é preenchida primeiramente para cobrir os buracos do horário, e as atividades são assumidas segundo o querer de uns e de outros: "Um verdadeiro mercado persa todas as noites. A gente chamava isso de grade"7, como em La Chesnaie.

57

Nicole Guillet sempre viveu em um ambiente psiquiátrico - seu pai era o tesoureiro do hospital psiquiátrico de Saint-Alban desde 1934.Já bem pequena, aos 12 anos, ela escapava do ofício dominical, pois vivia em um meio familiar protestante praticante, para participar das reuniões da Sociedade do Gévaudan, em torno de Tosque!les: "Já se discutia para saber como desalienar os loucos, como evitar seu retraimento, como chegar a serviços mistos. Nesse âmbito, Balvet foi um precursor da liberalização da psiquiatria'''- Aos 17 anos, Nicole Guillet conhece Jean Oury quando ele chega a Lozere. Durante seu curso universitário, aproxima-se de Frantz Fanon e o leva a Saint-Aiban para um encontro com Tosquelles: "Lembro~me da primeira discussão entre Tosquelles e Fanon na sala de minha mãe: a questão era saber se era imperativo que os enfermeiros tivessem di~ ploma de formação' 9 Nicole Guillet ainda não havia terminado a residência em Lyon quando recebeu uma chamada de Oury, que lhe pediu para ajudar seu amigo Claude Jeangirard a implantar um serviço de insulina em La Chesnaie. Ela vai para lá em novembro de 1956 e fica até julho de 1957, quando os labordianos voltam ao seu castelo de origem. Ainda não há lugar ali para um médico em tempo integral, mas Félix pede a Nicole Guillet para ajudar na administração: "Félix gostava muito disso, de deslocar as pessoas: que um médico trabalhasse na área administrativa. Os psicólogos, ele punha para ,10 1avar Iouça... . Durante quase dez anos, Félix Guattari assume a organização do trabalho em La Borde adotando um sistema de eliminação de divisó~ rias permanente: 'A grade é uma tabela dedupla entrada que permite gerir coletivamente as atribuições individuais em relação às tarefas. É uma espécie de instrumento de regulagem da 11 necessária desregulamentação institucional" • A intenção é igualizar as condições a partir do princípio de polivalência das tarefas. O método é autoritário, e todos esperam com ansiedade para saber que função lhe foi atribuída pelo comitê da grade; o resultado é eficaz, mas não isento de tensôes: "Eu estava motivado

58

Dosse

por uma espécie de centralismo militante. Do

mesmo modo que em uma organização política quando se decide ir colar cartazes no dia seguinte"1.2. Alguns estão felizes por se lançar na experiência de uma sociedade que já superou a distinção manuais/intelectuais, porém, entre o pessoal médico, são muitos os que se dedi-

cam a contragosto aos trabalhos de faxina, enquanto que, do lado do pessoal de serviço, alguns temem tocar na coisa médica. A grade, estabelecida para um mês, é con-

ferida diariamente. No diagrama aparecem em abscissa os nomes dos empregados e em

ordenada o horário da jornada, e sobre essa base leem-se as atribuições: "louça'', "faxina'', "galinheiro", "vigília", "oficina de argila", assim como as atribuições de mais longa duração. Ninguém escapa à grade, e para alguns ela encarna, assim como seu chefe, o "gradista" supremo, a realização da utopia. Para outros, é

um rolo compressor insuportável que esmaga os indivíduos e seus desejos em nome do intereMe 'comum. Além disso, a distribuição do trabalho é, em geral, objeto de uma sobreinterpretação por aqueles que são submetidos a ela e que veem nisso um meio de Guattari se agarrar a tal ou qual inibição ou fobia para pô-la à

prova: "As decisões do 'gradista' são entendidas 13

como sentenças" • Ao longo dos anos, o sistema um pouco rígido é motivo de um número crescente de reprovações e cristaliza as recusas: "A coisa degringola de todo lado. Monitores que querem lavar louça! Uma vigilante noturna que está cansada de cumprir suas 12 horas a fio e que deseja que a vigília seja reduzida a 5 horas! Uma faxineira que assiste ao

médico nos tratamentos e se safa ... e que reto rna! Uma outra que leva doentes ao galinheiro! Uma lavadeira que monitora as insulinas! Está . "" . tu do de cabeça para baum Soma-se às mudanças de atribuições impostas o problema da remuneração e de seu cálculo. Logo se está falando de coeficiente de "aborrecimento'', certamente difícil de calcular de maneira científica ... Determinadas atividades evoluem por si mesmas, como a de levar as bandejas c
Gilles Deleuze & Félix Guattari

doentes que não podem ou não querem sair da cama. O pessoal de serviço é encarregado de preparar as bandejas que devem ser levadas aos internos pelos monitores, que pouco a pouco se esquecem de que isso faz parte de suas atribuições: "É então o pessoal de serviço que se incumbe, de fato, desse trabalho. Abandono de bandejas, abandono de funções"". Oury sugere então introduzir aquilo que chama de um "tempero" nos mecanismos, à maneira do Cravo Bem Temperado, de Johann Sebastian Bach. Com o desenvolvimento da clínica, Oury necessita de um número cada vez maior de colaboradores. Em 1959, recorre àquela que se tornará, corno secretária médica, um pilar fundamental do edifício e que faz parte da família espiritual: Brivette Buchanan. Ela advém do mesmo subúrbio que Oury, La Garenne-Colombes. Foi lá que se conheceram nas atividades dos AJ, nas caravanas operárias, no grupo jovem da empresa Hispano-Suiza. Brivette Buchanan torna-se a companheira do líder da Hispano, Raymond Petit. Secretária médica no hospital Foch de Suresnes, Brivette passa férias em Saumery e participa ativamente da vida coletiva da clínica. Fica trabalhando em La Borde até sua aposentadoria. Em 1958, a clínica está à beira da falência. A administração é exercida de maneira desastrosa por uma certa senhora Fichaut que gasta sem controle, abastecendo a clínica nos varejistas a preços mais altos. Excelente na arte de gastar, ela se mostra incapaz de garantir a entrada de dinheiro e transforma sua sala, que se tornou o domínio de seus numerosos gatos, em uma bagunça aromática. Um belo dia de abril de 1958, pouco antes do 13 de maio, acontece o "golpe de Estado'', Guattari reassume o comando da administração, responsável pelas finanças, depois de despachar do dia para a noite a incapaz que reinava ali: "Fui ao encontro dessa boa mulher e lhe 16 disse: isso já bastou'' • Guattari se forma para essa responsabilidade na prática. No início, não tem nenhuma formação de gestor. Contudo, aos 25 anos, torna-se o verdadeiro diretor de urna grande clínica que salvou da ruína. Ao

examinar as contas, constata assombrado que La Borde tem um passivo a descoberto de 30 milhões de francos da época. Precisa, então, usar todo seu charme, e isto não lhe faltava, para convencer o banqueiro de Blois, o senhor de Querotret. a lhe dar um crédito para poder honrar as dívidas mais urgentes da clínica. Entre as numerosas instituições geradas por La Borde, a Rotunda flgura como o pulmão político da clínica. As pessoas se reúnem semanalmente nessa antiga lavanderia para discutir política, para se informar sobre a atualidade por meio de uma revista. Nicole Guillet, que permanecerá como médica em La Borde até 1974, cuida de vários comitês: o comitê de cozinha, o comitê cultural, o comitê de faxina e o comitê de cardápio, o que supõe uma reunião por clube e por semana: "Para o comitê de cozinha, eu reunia os cozinheiros e todo o pessoal da cozinha. Fazíamos os cardápios, examinávamos os pedidos e as reclamações. Para o comitê de faxina, procurava-se que não houvesse segregação entre enfermeiros e faxineiras"17. A essas reuniões de comitês especializados, acrescenta-se uma reunião plenária, chamada de "grande reunião" ou "grupo dos grupos", que se realiza no fim de semana, sexta-feira à noite, a propósito do trabalho geral da clínica. Começa por volta de 20h30 e raramente termina antes de 1 hora da madrugada: "É um grupo onde se discute sobre a vida da clínica entre cuidadores e onde Félix introduzia o tempo todo linhas de fuga. Tratava-se ao mesmo tempo da lei da instituição e da abertura de possibilidades. Tornar possível o impossível"1s. Mais tarde. acrescentaram-se ainda reuniões teóricas em pequenos grupos na sala de Oury, consagradas no essencial a um comentário das teses de Lacan, e que se tornaram o seminário de Oury. Por sua vez, Félix Guattari e Nicole Guillet se encarregam do que chamam de "grande grupo''. Ele se reúne no gabinete que simboliza o poder médico, o de Oury, mas na ausência dele, quarta-feira às 16 horas. É a ocasião de reunir os grandes doentes, aqueles que não conseguem se envolver nas conversas ou nas

59

diversas atividades propostas. Essa reunião começa com o silêncio, e, no final, todos devem ter feito uso da palavra. Com esse trabalho de psicoterapia de grupo não diretivo, Guattari e Guillet conseguiram criar uma necessidade, a ponto de os frequentadores, cerca de 15, insistirem em saber a data do próximo "grande grupo". Embora La Borde seja profusa em grupos muito efêmeros, esse terá uma longevidade excepcional: criado em fevereiro de 1961, ainda existe nos anos de 1970. Marie Depussé se recorda de ter assistido a uma dessas reuniões durante a qual, após um longo silêncio, uma voz parecia expressar algo de essencial sobre o horror elo nascimento; em seguida, um silêncio de chumbo recaía sobre o grupo, "e depois, cinco minutos adiante ou cinco metros adiante, havia uma outra voz que saía da água e que não parecia responder ao sentido corrente da conversa ao tomar a palavra pela primeira vez, mas na verdade respondia. Então podia responder ao nascimento pela fome, pela morte, 19 era uma palavra ele ricochete inesperad.a" .

O grupo de trabalho de psicoterapia e de socioterapia institucionais Em 1960, Jean Oury, juntamente com os psiquiatras Hélime Chaigneau, François Tosquelles, Roger Gentis, que trabalha no hospital psiquiátrico de Saint-Alban de 1956 a 1964, Jean Ayme, um antigo trotskista que foi secretário do sindicato dos psiquiatras hospitalares, e alguns outros, cria um grupo de reflexão sobre a prática psiquiátrica: o Grupo de Trabalho de Psicoterapia e de Socioterapia Institucionais {GTPSI). Retoma um projeto já antigo de Tosquelles que em 1965 queria criar uma espécie de Partido Psiquiátrico }fancês - mas a sigla PPF, que lembrava o partido fascista de Jacques Doriot, não era das mais felizes. Quando se constitui em 1960, esse grupo reúne pouco mais de uma dezena de psiquiatras20, agregados por Guattari a partir da quarta sessão em novembro de 1961, e mais tarde

60

Fra,ncois Dosse

psiquiatras de La Borde, como Jean-Claude Polack, Renê Bidault e Nicole Guillet. Funcionará até 1965, data da fundação da Sociedade de Psicoterapia Institucional (SPI). O objetivo do GTPSI é "falar de psicoterapia institucional 2 fora dos próprios estabelecimentos" J. O GTPSI tinha como hábito reunir-se duas vezes ao ano para um fim de semana de reflexão, sempre em um hotel diferente. A secretária de Oury, Brivette Buchanan, encarregava-se de tomar notas de todas as discussões. Esse grupo de reflexão objetivava definir a singularidade de um círculo de psiquiatras que aceitam determinados postulados próprios à sua disciplina e, portanto, não são assimiláveis às 22 diversas correntes da antipsiquiatria • Esses psiquiatras definem assim um campo

teórico e prático que recebe o nome de "psicoterapia institucional". Um dos princípios fundamentais é considerar que só se pode cuidar dos loucos em uma instituição que refletiu sobre seu próprio modo de funcionamento. O segundo princípio é que não se trata a psicose a partir de um suposto acesso direto a uma patologia estritamente individual e desconectada do sociaL Tomar a patologia como individual reduz o tratamento a uma interação simples entre dois indivíduos: o doente e seu médico. Para a psicoterapia institucional, ao contrário, o tratamento passa pela invenção de novos agenciamentos e de conexões sociais. As teses elaboradas no início dos anos 1960 são o prolongamento da concepção sartriana do sujeito que deve se libertar da alienação para fazer surgir sua própria liberdade. A ideia lançada pelo GTPSI é, portanto, fazer emergir um grupo-sujeito e desconstruir os grupos assujeitados "que recebem sua lei de fora, diferentemente de outros grupos, que pretendem se firmar a partir 23 da adoção de uma lei interna" . As primeiras intervenções de Guattari no GTPSI - no qual é praticamente o único não psiquiatra - são moderadas e mais consensuais. Rapidamente, porém, ele assume um lugar importante, e suas intervenções são longas e fundamentadas, saindo das referências puramente psiquiáttiibas para._abrir a reflexão a ou-

Gilles Deleuze & Félix tros campos e à sociedade em geral. No modo de funcionamento do grupo, "a cumplicidade Oury-Félix é evidente, e muitas vezes seu hábito de discutir junto e de manejar os conceitos pega os outros participantes despreparados. As discussões revelam inspirações súbitas de Oury e de Félix, estimulantes, e reações um tanto quanto intensas, cômicas, agressivas ou defen21 sivas da parte de uns ou de outros" ' • Esse duo estará no centro da vida do grupo, e, segundo seu bom hábito, as duas partes repartem implicitamente os papéis: Oury, como especialista reconhecido em psiquiatria, utiliza as intervenções de Guattari para perturbar as sessões, tirá-las das categorias ordinárias, e essas incursões selvagens são assim testadas junto a outros membros, antes que Oury recoloque as sugestões lançadas nos limites do possíveL Guattari encontra no GTPSI a ocasião de um agenciamento de suas diversas filiações políticas e psicanalíticas: '1\.s reflexões de Félix são muito 'labordianas' em sua expressão, facilidade na réplica e na interpelação, referências numerosas às experiências da clínica em matéria de organização do trabalho, enervamento em relação à prudência ambiente, e em seu conteúdo ainda muito marcado por Lacan 25 e pela linguística estrutural" • De fato, durante essa primeira metade dos anos de !960, o trabalho teórico do GTPSI é também muito influenciado pelo clima intelectual estruturalista da época, que atribui à linguística o papel de ciência-piloto. As práticas promovidas fundamentam-se em geral nas teses de Ferdinand Saussure, Roman Jakobson e Nicolai Troubetzkoy. Assim, a vontade de chegar à distinção das pessoas em relação a papéis instituídos e a funções não é apenas de inspiração sartriana, mas também estruturalista, e pretende dar um prolongamento psiquiátrico às análises fonológicas da língua. É o momento em que o psiquiatra Claude Poncin lança em La Borde a noção de "situemas", que aproxima as relações intrainstitucionais e as relações entre fonemas. A intervenção do Oury no GTPSI, em junho de !960, demonstra que La Borde é estruturada

como uma combinação de fonemas, à maneira como Lacan afirma, na mesma época, que o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Ele distingue, portanto, as diversas unidades significantes da clínica de La Borde e põe em evidência certas articulações, como aquela que liga o interior do castelo à unidade-lavanderia e à unidade-insulina, cujo estado de simbiose é tal que há o risco da armadilha da separação do conjunto da clínica -e portanto de isolamento: "Isso foi denominado por um jogo de palavras de lingística''""'. "A gente dizia: Você não está na lavanderia, você faz lingística e, no entanto, não faz menos efetivamente lavanderia":". Essa expressão estruturalista, no entanto, não implica uma adesão total ao paradigma então hegemónico 23 no campo das ciências sociais • A psicoterapia institucional participa plenamente dessa efervescência das ciências humanas, porém toma suas distâncias desde o início da orientação estrutural dominante. Ela não pretende veicular a concepção de uma estrutura que se desenvolveria independentemente do sujeito e seria sobrevalorizada em relação a ele.

Transversal idade O outro grande conceito labordiano, desenvolvido particularmente por Félix Guattari em 1964 a partir de uma sugestão de Ginette Michaud, é o conceito de transversalidade. Guattari consagra a ele sua intervenção diante do primeiro Congresso Internacional de Psico29 drama realizado em Paris em !964 • A abordagem transversal tenta subverter as oposições estruturais binárias e contribui para manter sempre em funcionamento o dispositivo maquínico. Partindo de uma analogia entre o modo de desvio de sentido que se opera nos psicóticos e os mecanismos de discordância crescente que perpassam a sociedade, ele sistematiza a oposição entre os grupos-sujeitos e

"'N. de T.: No original, lingistique, de lingerie (lavanderia) e linguistique (!inguística).

os grupos assujeitados para afirmar que essa dupla tentação persegue todo grupo constituído. Guattari sugere substituir a noção muito vaga de transferência institucional por um "conceito novo: o de transversalidade no grupo"30. Esse conceito se opõe ao mesmo tempo ao eixo de verticalidade fundado em um organograma com estrutura piramidal e a uma concepção de horizontalidade que consiste em justapor setores diferentes sem que se estabeleça uma relação entre eles: "Enquanto as pessoas permanecem imobilizadas em si mes31 mas, não veem nada além de si mesmas" • Um certo nível de transversalidade permite dar início ao processo analítico de saída de si e de deslocamento necessário no confronto com o grupo: ')\, transversalidade é o lugar do sujeito inconsciente do grupo, para além das leis objetivas em que se fundamenta. O suporte do 32 desejo do grupo" • La Borde é também um local altamente festivo. Um tempo importante da vida Iabordiana é dedicado à organização de festas, cerimônias, quermesses, que permitem sair do universo psiquiátrico, abrindo-o amplamente ao entorno. No início dos períodos de verão, as quermesses anuais montadas sob o patrocínio da Federação de Ajuda à Saúde Mental - Cruz-Marinha - são bastante difundidas e inclusive constituem as reuniões mais importantes elo departamento. Configuram a ocasião de representações teatrais em que os doentes são os atores. Em geral, ilustram um tema: "1900", ')\, Sologne", ')\,Revolução Francesa', "Western", "Cafés dançantes", etc. O período mais intenso dessas animações culturais situa-se sobretudo antes de 1968. A clínica consegue envolver fortemente as co~ munidades vizinhas e até organiza um "mês cultural", em que toda noite se inventa uma nova animação em conjunto com a Casa de Cultura de Blois. A vida da clínica se concentra na longa preparação desses eventos. Confeccionam-se roupas, aprendem-se músicas e diálogos, percorre-se o departamento para vender os bilhetes da tômbola em que o vencedor pode ganhar um carro. Há ínclusive

____________________________________________G_'i_lle_s_D_e_l_e_uz_e__ &_F_é_li_x_G_u_a_tt_a_ri___ 63

62

equipes que saem à noite para fixar cartazes

informando sobre as atividades previstas. A quermesse sobre "A Hevolução Francesa" dei~ xou lembranças muito fortes, com todos os internos fantasiados de sans culottes cantando

La Carmagnole. Jean Renoir até apresenta ali seu filme La Marseillaise. Nesse ano, quase 5 mil pessoas convergem para La Borde. Na pref€itura de Blois até mesmo ressoava a ameaça: "Tbus les bourgeois, on les pendra'"·'. Quando da quermesse sobre o tema da Sologne, os organi-

zadores mandaram buscar rabiolots (caçadores no dialeto da Sologne), contadores de história, músicos com instrumentos antigos. Sob um capitel de 3 mil lugares, Johnny Hallyday, o "ídolo dos jovens", entoa "Cabelos longos, ideias curtas". No inverno, a clínica não para, e organiza cerimônias para as quais convida às vezes estrelas de primeiro plano, como jacques Brel, que esteve lá duas vezes. La Borde é também o local de nascimento de um circo, graças ao encontro de Guattari com]ean-Baptiste Thierrée, militante maoísta que se apresenta sempre no cabaré L'Écluse em Paris, no começo do Boulevard Saint-Michel, com um número de magia. François Paio, amigo ele Gattari, assiste ao espetáculo e, entusiasmado, sugere que faça seu número em La Borde. Lá conhece Guattari, que lhe propõe trabalhar com ele. Thierrée vai então a La Borde toda semana para passar dois dias com os internos e montar espetáculos. Assim como os outros, integra-se na vida cotidiana da clínica com responsabilidades diversas. Em mau estado psicológico, Thierrée é imediatamente curado por Guattari: "Melhorei desde que conheci Félix. Ele teve indiretamente uma grande influência sobre minhas atividades por pensar que tudo o que se deseja é possível"::;:s. Na época, Thierrée acalenta o sonho de montar um circo de tipo novo. Encorajado pelo novo amigo, encontra coragem para procurar personalidades que não conhece. É assim que, certo dia, seus olhos se detêm diante ~, N. de T.: Verso d~~.La Carmagnole: "Todos os burgueses. vamos enforcá-Ioé

da fotografia num jornal de uma das filhas de Charles Chaplin, Victoria. Além de sua beleza, Jean-Baptiste descobre que ela gosta muito de circo. Thierrée escreve para ela: "Eu não tinha o endereço dela na Suíça. Simplesmente pus no envelope: Victoria Chaplin. A carta chegou e 34 um mês depois ela estava junto de mim" • A sequência é um verdadeiro conto de f3.das, e serealiza uma grande cerimônia de casamento em La Borde, em 15 de maio de 1971. Acompanheira de Guattari então, Arlette Donati, é madrinha de Victoria e Michel Rocard de Jean-Baptiste Thierrée, militante do PSU. Esse casamento deixa Charles Chaplin desesperado, pois acaba de escrever um filme, The Freak, no qual ela de- · veria t3.zer o papel de uma mulher-pássaro. O casal Thierrée~Chaplin cria uma animação particularmente intensa em La Borde com suas tendas, seus cavalos, suas feras, serpentes e animais de todo tipo, e os internos são convidados a participar dos espetáculos: "Tivemos alguns êxitos. Penso principalmente no caso de Claude Farei, um catatônico. Tive a ideia de fantasiá-lo da cabeça aos pés, e nessa situação ele fazia tudo o que eu lhe solicitava. Eu lhe perguntava sempre: 'Por que você se mexe quando está fantasiado?' Ele não respondia jamais, até que um dia me disse: 'Porque isso não é sério"'%. No verão de 1971, o circo Bonjour de Thierrée e de Victoria Chaplin ainda não havia sido criado oficialmente, mas eles foram convidados por Jean Villar a apresentar seu espetáculo no quadro do Festival de Avignon. Ao retornar a La Borde, Thierrée sonha com Guattari montando uma exposição humana em que apresenta casos sociais de todas as espécies ao invés de animais.

A família Guattari e sua ruptura A companheira de Guattari em 1955, Micheline Kao, deixa a casa dos pais um pouco vacilante e arrependida. Mesmo assim, ela tenta a experiência e trabalha em La Borde como secretária médica. O casal vive em um quartinho embaixo da cozinha do castelo. Além de

sua atividade oficial, Micheline Kao de dedica a todas as atividades labordianas. Ela cuida principalmente de uma oficina de estenodatilografia que funciona bem; de tempos em tempos, incumbe-se das prescrições de insulina e faz algumas vigílias noturnas. Além disso, continua a datilografar os artigos de Félix. É nessa época que Guattari se apega bastante a um interno de La Borde totalmente recolhido em si mesmo, autista, e consegue que faça progressos por força de redobrar as tentativas e os ângulos de abordagem. Comunica-se com ele, faz com que fale e acaba conseguindo curá-lo depois de ter dedicado quase que exclusivamente a ele sua atenção terapêutica. A promiscuidade da vida comunitária de La Borde fragiliza o casa!'l6. Depois de um ano, em 1956, eles se separam, e Micheline Kao deixa La Borde. É o fim de uma longa ligação. Apesar de tudo, Micheline e Félix preservam seus vínculos de amizade. Inclusive, alguns meses mais tarde, alimentam o projeto efêmero de voltar a viver juntos. Félix procura um apartamento em Paris e sugere a Micheline que restabeleçam sua vida comum. No ano seguinte, em I 957, Micheline Kao conhece o irmão de Nicole Guillet, Pierre, com quem se casa. Quanto a Félix, ele tem dificuldade de superar essa ruptura, a ponto de pensar e de escrever que sua companheira Michelíne não queria continuar em La Borde e lhe teria dado um ultimato: ou eu ou La Borde, provocando assim a ruptura. Quando Micheline Kao anuncia a Félix seu futuro casamento, a tristeza se transforma em raiva: "Se você quer se casar, será comigo e com 37 mais nint,'llém", disse-lhe ele • Apegada a Félix, hesitante, ela pede um tempo para pensar. Nesse meio-tempo, Félix tem um encontro decisivo com aquela que se tornará sua esposa e com quem terá três filhos. Nicole Perdreau, jovem e bonita, acaba de chegar a La Borde como monitora. Quando a conhece, Félix está completamente perdido e deprimido: "Essa moça era encantadora, era o que minha avó chamava de uma pequena Tanagra, uma jovem morena, um corpo bonito, fina, radiante, e a primeira vez que a vi com Félix ainda não

era sua mulher. Ele estava sentado um pouco distraído com essa jovem encantadora com a cabeça apoiada nos seus joelhos. Disse a mim mesma: esse pequeno quatro-olhos, ele não está aborrecido mesmo assim":ls. A família de Nicole, de origem camponesa, vive em Tour-en-Sologne. Sua mãe é arrumadeira e tem uma forte queda pelo álcool, e seu pai, antigo mecânico e piloto de testes de aviões, fOi vítima de um acidente que afundou sua caixa torácica. Em 1955, ele acaba de falecer em decorrência desse acidente. Solicita-se a Félix que cuide de Nicole, uma incumbência que será total e se transformará em casamento. Dessa união nascem sucessivamente Bruno, no dia 12 de dezembro de 1958, Stephen, em 1961, e finalmente Emmanuelle, em .1964: "Nicole era muito frágil. Era adorável, mas um passarinho. Ele a ajudou, a estruturou e lhe deu prazer ca39 sando~se com elá' • A partir da integração de Nicole Perdreau a La Borde, quase toda a família Perdreau desembarca na clínica'10• Nicole Perdreau instala-se com Félix em uma pequena acomodação de três peças, e é muito exigente com a limpeza do lugar: "Havia uma única porta, e atrás da porta as pantufas que a gente tinha de calçar se não quisesse ou11 vir os berros de sua mulher"' • Assim, quando queriam ver Félix, seus amigos passavam pela janela para evitar a cerimônia das pantufas e o encontravam na peça minúscula que lhe servia de escritório. Félix não é um pai muito presente, na medida em que divide seu tempo entre La Borde e Paris, onde alugará um apartamento muito bonito e espaçoso na Rue de Conde. Seu filho Bruno lembra que, aos 5 anos, ia com mãe à estação de Blois todas as quintas-feiras buscar o pai, que na segunda-feira partia novamente para Paris. Guattari tenta compensar suas ausências com uma grande atenção aos filhos. Trazia para eles de Paris todo tipo de jogos educativos. Sobretudo, Félix ensina desde muito cedo ao filho mais velho a leitura e o cálculo mental; ''Aos 4 anos e meio, eu sabia ler e escrever, e aos 6 anos, conhecia todas as tabuadas de multiplicação'' 42 • Muito autoritá-

64

fr
rio, Félix exige do filho Bruno, que tem apenas 6 anos, que mantenha um diário, o que causa ao filho um profundo embaraço - mas ele tem de aceitar, pois o pai o tranca em um escritório com um caderno a ser preenchido e um lápis. Contudo, absorvido por suas diversas atividades, Félix logo não terá mais o tempo necessário para dedicar aos filhos e se apoia em sua esposa. Após a ruptura do casal, delega sua responsabilidade ao filho mais velho, Bruno: "Eu não tenho tempo, você cuida de tudo" 4 :~.

Nos momentos em que o pai está presente em La .Borde, as crianças vivem em horários defasados. O pai trabalha até tarde e se deita tarde, portanto as crianças nunca jantam com os pais. Visto que Félix não é muito dado às férias, quando a esposa e os filhos viajam, em geral para Sables-d'Olonne por um mês, ele os acompanha apenas por uma semana. Bruno não sofreu muito com essa ausência, pois, como fllho mais velho, sentia com forte intensidade a presença do pai, ainda que tão fugaz.. O mesmo não ocorreu com Stephen e Emmanuelle, atingidos em cheio pela ruptura entre os pais. Em 1967, uma jovem enfermeira de uma clínica psiquiátrica de Marseille, Arlette Donati, vai estagiar em La Borde, por dez dias. Félix se apaixona à primeira vista: "Em 1967, uma moça de extrema beleza vem para La Borde. Chama-se Arlette. Trava-se uma relação muito mais séria desta vez, porque Arlette é uma personalidade extremamente rica"'14 • Bastante perdida, não compreendendo muito bem onde mete os pés, ela é duramente criticada por Jean Oury: "Havia duchas comuns e lavabos comuns, de modo que todos iam lavar as mãos e encontravam seu analista escovando os dentes .. : Eu tinha feito duas ou três reflexões para Oury, que me empurrou um monte de livros, mas literalmente dizendo: 'Vá ler, você não passa de uma idiota. Você não entende nada!"' 45• Contudo, Arlette Dona ti é apoiada por Guattari, que, num primeiro momento, não lhe desperta muito interesse. Quando retoma para Marseille, Félix não para de lhe pe· dir que volte'para So)ogne.

Gilles De!euze & Félix Guattari

Sua ligação com Arlette pouco a pouco leva Félíx a romper com sua esposa Nicole. Quando Arlette retorna, eles só se veem em La Borde na ausência de Nicole ou em hotéis das proximidades. Contudo. logo saem dessa situação provisória. Cansada de "nomadizar" em toda a Sologne de hotel em hotel, Arlette Donati vai à agência de turismo de Blois para conseguir uma casa. Procurando um local de veraneio, ela encontra um castelo magnífico e muito amplo que Félix pode alugar em parte e onde o casal viverá por sete anos, não longe de La Borde, em Dhuizon. Félix abandona sua esposa e o térreo de um galpão de La Borde. Quanto a Arlette, sua situação de amante oficial de Félix lhe permite integrar-se nas atividades ela clínica. Em Dhuizon, Félix mora em um espaço amplo que Arlette organiza mandando derrubar as paredes e concebendo um escritório e quartos modernos e iluminados. Dhuizon logo servirá de acolhida para o "bando" de Félix: seus amigos do CERFI se hospe· dam regularmente ali em uma casinha situada próxima ao castelo. Félix mantém assim o projeto de construir um casal, mas desta vez com Arlette: "Ingenuamente, eu pensava ter rompido para sempre com esse tipo de conjugalidade' Porém, Já estava eu de novo, e desta vez ainda por conveniência própria"'16• Essa ruptura radical tem efeitos desastrosos para a esposa e para os filhos de Félix. Nicole Perdreau tem de se mudar, deixar a acomodação em La Borde, mas continua trabalhando na clínica. Ela se instala com os três filhos e toda a família no conjunto habitacional de Blois: "Para nós, o mundo inteiro vem abaixo com a separação dos pais. É uma catástrofe terrível. Ficamos todos doentes. Stephen rói até as unhas dos pés. Emmanuelle está cheia de fungos na cabeça. Para nós, é um horror completo''47. Isso é agravado pelo fato de a vida em La Borde ser mais idílica. Os filhos de Guattari e os dos outros psiquiatras, como os filhos de Oury, tinham uma vida comunitária. Podiam participar das inúmeras oficinas da clínica e assim se dedicar a atividades tão diversas quanto a marcenaria, a cerâmica, o desenho, sem contar a

relação privilegiada com a natureza e a alegria de construir ninhos para os pássaros. Subitamente, as crianças se veem divididas entre o conjunto habitacional com sua mãe e o fim de semana em Dhuizon, onde se misturam a uma massa de amigos que cercam seu pai e formam uma barreira. Quanto ao pai, ainda não é fácil para ele viver essa situação: 'A.s crianças foram embora. Impressão de falta. Foi a primeira vez desde a separação que pude cuidar deles por urn mês inteiro. Entre os três, eles fOrmam uma 48 personalidade coletiva" • Às· dificuldades próprias ao desmoronamento do círculo familiar acrescenta-se a condenação inapelável dos pais de Félix em relação aos seus fllhos. O divórcio ainda não é tão comum nesses anos de 1960, e eles reprovam com rigor a ruptura que ele provocou. Soma-se à reprovação moral dos pais e dos irmãos o fato de que Arlette Donati é muito mal aceita na família Guattari. Ela subverte os hábitos de Félix. Ele que nunca dera atenção à maneira de se vestir, que usava um pulôver em qualquer estação, é induzido a se tornar mais elegante, e Arlette se aplica em vesti-lo diferente: "Quando o conheci, parecia um velho, à parte seus olhos. Estava vestido corno um velho, cabelo cortado muito rente, com óculos grossos que deviam pesar uma tonelada diante de seus olhos"". Arlette acha que Félix sofre de numerosas inibições sob sua aparente facilidade com os outros: "É que ele se sentia pouco à vontade, como se nenhum prazer da vida pudesse ou o tivesse tocado"50• Ela se surpreende, ela que adora o sol, ao ouvi-lo dizer que o sol provoca bolhas, e não compreende como qualquer atividade esportiva e corporal pode ser totalmente estranha a Félix: "Ele nunca tinha tomado um banho de mar. Ele não sabia sair para viajar, não sabia como devia comer, em que copo tinha de beber" 51 • Paralelamente à sua vida com Arlette, Félix se envolve em relações cada vez mais numerosas com as mulheres. F, encorajado por seu "tenente" em La Borde, seu amigo psiquiatra Jean-Claude Polack, cuja fama de mulherengo já é conhecida. Polack inclusive achava seu

65

amigo Félix um pouco tímido nesse campo. Mas, em contato com ele, torna-se um cortejador impenitente. É preciso dizer que a época, em torno dos anos de 1967 e 1968, também favorece o questionamento de todas as formas de familiarismo e coloca ao lado do futuro revolucionário um outro modo de relações entre os sexos, mais livres, desembaraçadas dos constrangimentos momis e dirigidas apenas ao desejo. O momento se presta, portanto, a uma libertinagem generalizada, e o certificado de bom revolucionário costuma ser avaliado pela capacidade de romper. Nesse campo. Félix Guattari dificilmente encontrará um concorrente perigoso. Nesse clima em que se prega a união livre contra o casamento, o intercâmbio sexual generalizado, a liberação das mulheres, chega-se inclusive a perseguir toda forma de casais muito estáveis. Oury lança um olhar crítico sobre essa prática de "kamikazes eróticos"52: "Esses kamikazes vinham de Dhuizon. Lá era seu posto de comando, e quando um casal se mantinha depois de oito dias, enviava-se um kamikaze para desmanchá-lo, porque o amor era capitalista. O poder erótico também causou estragos, e, quando se aplica aos esquizofrênicos, isso se torna crime"53 . Por iniciativa de Guattari, formou~se um grupo para perseguir casais que representavam a "terrível conjugalidade"". Contudo, a psiquiatra Danielle Sivadon, ao chegar a La Borde em 1972, consegue formar um casal com Jean-Claude Polack, o que não deixa de ser uma proeza: "Por pouco nossa vida foi salva. Tivemos um filho, mas éramos mal vistos" 55• Essa explosão da sexualidade nem sempre é do agrado de Arlette Donati, que constata com despeito que o casal que forma com Guat· tari fica a sós apenas na quinta-fCira à noite em Dhuizon. Félix usa sua rede de amizade para se proteger, e seu grande amigo François Pain é encarregado de se ocupar de Arlette duran· te sua ausência. No plano sentimental, assim como no plano político, Guattari revela uma capacidade de romper fora do comum, que pode estar relacionada com sua angústia de

66

Oosse

morte, sua rejeição quase fóbica de tudo o que pudesse estar ligado à compulsão de repetição, remetendo por isso mesmo à finitude, à morte. Para conjurar esse temor, precisava sempre

apostar na novidade, tentar novas experiências, saltar para outra coisa ou outra pessoa. A vida do casal Arlette-Félix está cada vez mais dividida entre a Rue de Conde em Paris de segunda-feira a quinta-feira à tarde e Dhui-

zon o resto do tempo. Em Paris, assim como em Dhuizon, o desfile de amigos é permanente, podendo chegar até 50 pessoas nos fins de semana de tempo bom: "Félix habitava Dhui-

zon em uma estrutura que lembrava muito a corte de Luis XIV Ele tinha a primeira favorita,

a segunda, a terceira, e havia acertos de con56

tas impiedosos" • Segundo Oury, Dhuizon era o "jardim de Adonis". O casal atravessa sérios períodos de crise: "Arlette se apaixona por um

sujeito de Aix-en-Provence que eu tinha conhecido muito tempo antes em A Via Comu-

nista.. De imediato, eles fazem projetos de casamento ... Tenho muita dificuldade de aceitar 57 essa história!" Félix estimula Arlette a continuar seus estudos, a se inscrever em psicologia em Paris - ela se torna psicoterapeuta. O casal não consegue resistir muito à proliferação de relações e ao ambiente de liberação sexual que preside La Borde. Quanto a Arlette, é cada vez mais difícil para ela tolerar a invasão constante. Ele se instala bem próximo de sua casa em Dhuizon, a uma centena de metros dali, em um grande pavilhão, com amigos. Além disso, continua vivendo na Rue de Conde em Paris, para onde só vai agora temporariamente. A ruptura é brutal e diflcil: "Deparei-me algumas vezes com essa experiência de desordem em estado bruto, na 58 separação de Arlette" . De maneira geral, a chegada da segunda "invasão bárbarà' a La Borde com os estudantes contestadores da UNEF, em meados dos anos 1960, favorece a aceleração das trocas nos casais e sua fragilização. Michel Rostain, que se instala em La Borde em 1965, vai morar com Félix,em Dhuizon a partir de 1969. Ele coabita ehtão com Arlette Donati, com a

Cilles Deleuze & Félix Cuattari

qual estabelece uma relação e, no momento da ruptura desta com Félix, vai com ela para o pavilhão em frente. Michel Rostain vivia até 1969 com uma ex-aluna do colegial, chamada Catherine, que por sua vez se apaixona por um dos grandes companheiros de Félix no CERFI, Lion Murard. Entretanto, Félix também mantém uma relação com essa mesma Catherine, enquanto Iv1ichel Rostain se torna amante de Arlette Donati. Guattari fez do combate contra o familiarismo um tema militante. Contudo, está longe de ser indiferente aos próprios pais, particularmente à mãe, personagem nodal na construção de sua personalidade. Os pais, se reaproximaram dele geograficamente em 1967. A mãe de Félix, com problemas oftalmológicos recorrentes, consulta regularmente os médicos de La Borde e simpatiza com Oury, que cuida dela como da própria mãe. É durante essas visitas que o pai de Félix e seu irmão Jean procuram uma casa de férias em Loir-et-Cher. Chegam a Montoire - sinistramente conhecido pelo Ü1moso aperto de mão entre Pétain e Hitler e se dirigem à casa do primeiro notário. Ficam encantados com uma magnífka casa de pedra em meio a um vasto parque dominado por um grande cedro à beira do Loir, onde se pode passear de canoa. Essa casa, onde os pais de Félix permanecerão por treze anos, fica bem próxima a La Borde e se torna um lugar privilegiado para receber suas crianças e seus amigos, entre os quais Jean Oury. Os pais tentam inclusive transferir a fabrica Monbana para Montoire. Alugam durante seis meses a parte desativada da estação da cidade, onde há agora apenas um trem por dia, mas o projeto não dá certo. Essa aproximação espacial com o mundo de Félix atesta a grande afeição que ele tem por sua mãe. É claro que, publicamente, ele diz que a família não tem sentido e zomba de Arlette, que convida seus pais para Dhuizon. No entanto, de maneira signitlcativa, quando sua mãe morre em La Borde, em 1969, "ele não parava de dizer que estava órfão: 'Estou órfão', 59 ficava repetindo'' •

A prova por lacan A vida de La Borde é ritmada também pelos seminários de Jacques Lacan. Como escreve com humor Jean Oury, a quarta~feira é um dia mais morto em La Borde que o domingo. Qual a razão disso? Nada a ver com o dia de folga escolar, não, é por culpa de LaCan. Nesse dia é o seminário do Mestre: "Isso produzia em La Borde uma hemorragia de pessoal, de dinheiro. Com Félix, a invasão, com Lacan, a hemorragia... "60. Vimos que o primeiro contato entre Oury e Tosquelles ocorreu em torno de um texto de Lacan. O choque foi tamanho que Oury abandonou suas veleidades de fazer biologia e decidiu se orientar para a psiquiatria, e pouco depois já estava em Saint-Alban: "Tosquelles mandava distribuir um texto aos internos: fazia-os ler a tese de Lacan e depois de um mês lhes pergun61 tava o que achavam dele" • Na época, Oury devora todos os escritos de Lacan e resolve assistir regularmente seu seminário e f8.zer dele seu analista, o que não é possível realizar de imediato- a Lozere é muito longe de Paris. Quando se instala em La Borde, seu sonho pode enfim se realizar. O horário da clínica torna-se então tributário do famoso seminário parisiense de quarta-feira em Saint-Anne e depois em Ulm, que Oury e toda a equipe de direção da clínica não perdem por nada. Oury faz rigorosamente anotações muito precisas, que serão objetos de trabalho para as reuniões do GTPSI. Oury torna-se um parceiro interessante para Lacan, por estar ligado a uma clínica psiquiátrica de renome, vanguardista, que pode ser uma fonte de inspiração e de prolongamento clinico da abordagem lacaniana da psicose. De fato, toda a equipe clínica de La Borde passa pelo divã de Lacan: "Toda vez que chegava alguém em La Borde, a primeira coisa que lhe diziam é que deveria fazer uma análise e, naturalmente, com Lacan. Chegou-se a obrigar pessoas a abandonar seu analista e se trans62 ferir para Lacari' • Toda a abordagem da psicose por Oury é marcada pelos ensinamentos de Lacan, ainda que ele não se coloque como cliscípulo, mas sim como alterego que costuma

67

discutir diretamente com ele quando o leva de carro de sua casa de campo de Guitrancourt para Paris: "Tenho por essa pessoa um respeito absoluto. Não mudei de opinião. Para mim, é 63 o coeficiente de estabilidade que é absoluto'' • Visto que numerosos monitores de La Borde eram compelidos a fazer análise com Lacan se quisessem continuar na clínica, toda semana saía um vagão da SNCF* quase lotado da clínica para o divã de Lacan. Guattari ainda acreditava que foi a análise com Lacan que lhe permitiu expressar sua experiência subjetiva. Contudo, a duração da análise é das mais variadas, às vezes meia hora, mas geralmente três ou quatro minutos fracionados em duas ou três sessões no mesmo dia, entrecortados de momentos intermináveis na sala de espera. Às vezes, mediante pagamento, ele prolonga a sessão no carro, enquanto Guattari o leva para casa, na Rue de Lille, após o seminário: "Isso faz parte da análise"", dirá Lacan. Guattari participa da criação da Escola Freudiana de Paris em 1964; associado à sua arrancada, é ele que sugere a publicação de uma "Carta" para tirar a Escola de sua tendên~ cia ao confinamento sectário. Guattari, considerado por Lacan como um jovem e brilhante intelectual, espera se tornar um interlocutor privilegiado do guru da cena parisiense, mas constata desolado a ascensão de toda a corrente maoísta em torno de Jacques-Alain Miller. A concorrência é acirrada. Em 1969, antes do rompimento definitivo, Lacan lhe prega mais uma peça, como é seu costume. Guattari escreveu um texto importante para ele, que tem um papel estratégico de resposta ao paradigma dominante do estruturalismo, ''Máquina e estrutura'',-que serviu inicialmente de exposição destinada à Escola Freudiana de Paris. Nesse texto fundamental, Guattari retoma categorias de análise da obra de Gilles Deleuze, Diferença e Repetição, lançada em 1968, que se tornará o suporte essencial de suas primeiras discussões e de sua futura colaboração.

~, N.

de T.: Société Nationale des Chemins de fer Français.

68

Dosse

Gilles Deleuze & Félix Guattari

Roland Barthes aprecia bastante esse texto de

No pós-guerra, Deligny constituiu a "Grande

Em .1965, é arruinada, sem nenhum recur~

Guattari e pede para publicá-lo em Communications. Guattari fala sobre isso com Lacan no divã, e o mestre fica indignado: Como! Por que não sua própria revista, Scilicet? Lacan obriga o

Cordée", que foi a primeira experiência de cura ambulatorial, evitando assim a internação psiquiátrica de jovens com transtorno de caráter. A iniciativa surgiu de seu encontro com Huguette

so, que a pequena tropa decola do campo de Bem acolhido, Deligny trabalha por um bom tempo no Loir-et-Cher: "Ele passava o dia todo

analisando a escolher sua editora. Guattari tem de se dobrar à exigência e procura Barthes para

Dumoulin, antiga responsável nacional pelas Ju-

em sua oficina. Era muito bom para os doen-

ventudes Comunistas e militante ativa na rede

lhe pedir que desista da publicação. Longe de cumprir sua promessa, Lacan procrastina e não publica o texto, que acabará sendo aceito na revista de Jean-Pierre Faye, Change, em 1972.

de AJ: "Os locais da Grande Cordée- que tinha

tes""'. Apesar de sua cumplicidade amigável, ]osée Manenti tem um atrito com Guattari a propósito do acompanhamento de um doente, e não haverá mais acordo possível: "Ele [Félix] me deu um ultimato: 'Ou você ürz o que digo

As linhas de errância Uma noite de 1965, um caminhão para diante do castelo de La Borde. Vem de Cévennes com o pequeno bando de Fernand Deligny, sua companheira, a psicanalistajosée Manen-

ti, ex-mulher de Michel Durafour, com quem viveu doze anos, Yves, o menino austista do fil65 me LeMoindre Geste , Guy, um grande enfermei:fo~ ê Marie-Rose. Não tendo mais dinheiro nem onde se fixar, Fernand Deligny procurarefúgio em La Borde para continuar cuidand~ de seus autistas. Oury os acolhe, aprova sua mstalação, mas esclarece que é preciso que Gu~t­ tari concorde. A pequena equipe espera entao

o dia inteiro pela chegada de Félix: "Ele parou e olhou para mim: 'Você que éJosée Manenti'l-

começado em um teatro, em Montmartre pareciam saguão de estação de trem, com viajantes bizarros, que passavam da manhã até a noite, várias vezes por dia, nervosos, barulhentos, 63 em uma demanda íncessante" . Foi nesse meio comunitário de ajistas da região parisiense, que transformavam seus estágios de férias em fa-· lanstérios onde tudo era coletivizado, que Fernand Deligny recrutou seus educadores e ani-

madores. Do mesmo modo que para La Borde, o trabalho terapêutico pelas "curas livres" não deixava de ter uma intenção política na contes-

tação dos poderes existentes. Comunista, Deligny recusava qualquer forma de proselitismo; Terapeuta, não queria entrar na malha burocratlCa

da incumbência pelos organismos de Seguridade Social. Pedagogo, era muito crítico em b.ce dos profissionais da educação.

.

,

Deligny inventou toda uma hnguagem poetica para dar uma expressão gráflca ao comportamento de seus jovens autistas. A criança que

CevEmnes para seguir em direção de La Borde.

ou vai embora', e eu respondi: 'É muito simples, eu vou embora'. Eu tinha relações muito 70 engraçadas com ele" • Assim, ]osée Manenti deixa La Borde e vai para Paris, onde pretende se tornar psicanalista. Quanto a Deligny, ele continuará trabalhando dois anos em La Borde na "estufa" onde instala seu ateliê: "ele tinha

horror de grupos, uma verdadeira fobia. Ficava no seu canto lá em baixo"71 . Oury tem um enorme apreço por ele e considera que seus escritos possuem grande valor poético: "Ele tem expressões magníficas como 'a sétima face

do dado ou ainda 'o que seria dos dedos sem a 72

palma?"' • Em Saint-Alban, seus escritos constituíram as primeiras publicações da clínica.

Após esses dois anos de trabalho em La Borde, Deligny teve oportunidade de retornar ao Gard, onde Guattari adquiriu em 1967 uma grande edificação de muros espessos ao pé das Cevênnes, em Gourgas, na comuna de Monoblet. Essa casa serve inicialmente de lugar de descanso para os internos de La Borde. No

gira taz uma "auréola'; aquela que se balança faz uma "nuvem de balanço'. Após uma passagem pelo Vercors, em 1954, Deligny com seu grupo parte sucessivamente para Haute-Loire de 1955 a 1956, depois paraAllierde 1956 a 1959. Nesta

pós-1968, Gourgas torna-se um dos centros de

lidade, sua sensibilidade. Era como uma for66 ma de superposição" • Em seguida, destina-se

data ele se muda para Cévennes, onde fica até

confluência do movimento contestatório. Lo-

1965. Huguette Dumoulin, com a qual ele tem

uma oficina de desenho a Deligny, e toda sua equipe se instala em La Borde, onde se ocupa

duas filhas, e josée Manenti o acompanham a partir de Paris. É nesse universo pedregoso, e:n

cal privilegiado de encontros e de estágios, que acolhe pesquisadores do CERFI, servirá de retiro para os militantes perseguidos pela justiça após o Movimento de Maio- foi alugado por um tempo paraJean-Luc Godard. Guattari propõe a Deligny instalar sua tropa em Gourgas. Para administrar o local, Félix designa o antigo responsável pelas Juventudes Comunistas de Blois, Louis Ohrant, vulgo Mim ir. Personagem da mesma estirpe que Raymond Petit da Hispano, esse

Sim -Vamos conversar: Surpreendeu-me logo de início sua vivacidade, sua inteligência brilhante, de tom muito seco, e por trás de uma

incrível gentileza, bem dissimulada, sua fragi-

assim de psicóticos e sobretudo de autistas. Ao

pleno desamparo, que ele se instala com Josee

chegar, Deligny já carrega toda uma história

Manenti. Levou para lá uma criança auttsta

de prática terapêutica. Ele se inscreve em uma

profunda, Yves, que acompanhava desde 1956. Deligny era deliberadamente um genial não

perspectiva diferente daquela de Oury-Guattari, mas igualmente inovadora. Sua vinda para La Borde não é mero acaso, pois seu itinerário seguiu uma pista bastante similar, a do s~bü~­

bio, dos AJ e d~ contestação dos poderes mstrtucionais67.

conformista, distante de qualquer instituição.

Contudo, a negação da instituição e de suas leis próprias tem um preço, e Deligny pagou à vista. Isso levou ao rápido definhamento daquilo que a "Grande Cordée'' poderia ter criado.

operário de origem é um militante ímpar, que ficou preso dois anos por deserção durante a

69

guerra da Argélia. Félix simpatizou com ele em

La Borde. Louis Ohrant instala-se com a mulher e os

três tllhos em Gourgas, onde cuida da manutenção, cultiva a terra e cria carneiros. Guattari envia também seu amigo cineasta François

Pain para ajudar Deligny a montar os quilômetros de filme rodado desde a Grande Cordée. Entretanto, François Pain desiste muito rápido: "Deligny queria que eu ficasse com ele, mas era uma vida monástica que não me convinha"n.

Em Gourgas, Deligny se vê em um lugar de interatividade, aberto aos quatro ventos, e isso o incomoda: "Vou fazer 64 anos - é preciso deixar a cada tentativa um espaço próprio, pois é um verdadeiro caos ver essas pessoas tão díspares convidadas a se juntar em um mesmo canto, ao passo que se a distância fosse respeitada elas se entenderiam bem" 74• A abertura de

Gourgas a toda a extrema esquerda dá lugar assim a algumas situações ubuescas*, por exem-

plo, quando a organização trotskista Aliança dos Jovens pelo Socialismo (AJS), em estágio de formação política, decide repentinamente abandonar o local, pois seus dirigentes não suportavam conviver com doentes mentais.

Solicitado pelo educador Claude Sigala a abrir mais amplamente Gourgas para jovens em

ruptura escolar, Deligny se opõe. Contudo, permanece na comuna de Monoblet com seus jovens autistas, mas a um quilômetro de Gourgas. As cartas que Deligny envia a Guattari testemunham a proximidade/distância em face

de suas posições. A propósito de A Revolução Molecular, publicado por Félix Guattari em 1977, Deligny se diz chocado com o qualificativo empregado a propósito de seus doentes: "Por que você se refere a débeis quando menciona aqui? Trata-se de crianças que se 75 recusam a falar... " • Ao mesmo tempo, ele confessa ter ficado muito surpreso ao constatar o quanto ambos estão empenhados na mesma

batalha. Evidentemente, eles não têm os mes~ N. de R. T.: Digno do personagem do tirano grotesco "Le pêre UBU" (O pai UBU), criado por A. jerry (França 1873-1907)

70

Dosse

Gilles Deleuze & Félix Guattari

mos arroubos nem as mesmas simpatias, mas, como diz Deligny com humor, "qualquer coisa

serve para atormentar/fracassar o mundo, o 76

NÓS do mundo" • A propósito da constatação final de uma revolução que se tornou molecu~ 77 lar , Deligny corrige: "Se as 'moléculas' pretendiam ser particulares [de partículas], essa 'revoluçãO a que você se refere não teria chances 78 de ocorrer" , Deligny insiste sobre o autismo dos jovens sob seus cuidados no Gard. Essa palavra comporta por si só uma dimensão refratária que lhe agrada, pois refrata a linguagem: "O a-consciente não se diz; não é efeito 79 da linguagem" , rompendo assim com a concepção lacaniana de um inconsciente estruturado como linguagem, e convergindo com as críticas formuladas por Guattari nesse campo. Prevendo rodar um filme cuja história se passa em Gourgas e que pretende realizar no outono de 1979, Deligny esbarra nos projetos de Guattari. Este, na verdade, pretende ceder Gourgas, vender a quem fizer a melhor oferta para atender às suas necessidades financeiras. Deligny fica ressentido e não esconde isso, e a situação acaba levando à ruptura. Entre o desejo de um de preservar Gourgas como lugar aberto aos quatro ventos e o desejo do outro de levar ali uma vida de recluso, o acordo dificilmente poderia durar mais de dez anos: "O estilo de sua carta me surpreende um pouco. Se tivermos de continuar trocando cartas, eu preferiria que fosse em outro tom ... Não vejo por que os internos de La Borde estariam impedidos de viver em Gourgas! Por quê? Em nome de quê? ... Fique com sua amizade. Ela é realmente precária demais".s0.

7. Ibid., p.l42. 8. Nicole Guillet, entrevista com o autor. 9. !bid. !0. Ibid. 11. Félix Guattari, ''La Gril!e", exposição feita no estágio de fOrmação de La Borde, janeiro de

1987, arquivos IMEC. 12. OSCAR (Félix Guattari), Histoires de La Borde, op. cit.. p. 226. !3. Jean-Ciaude POLACK, Danielle SNADON-SABOURJN, La Borde ou !e droit àfoLie, op. cit., p. 40. 14. Histoires de La Borde, op. cit., p. 247. 15. Liane MOZERE, Le Printemps des creches,

Eve Cloarec, arquivos IMEC, 29 de agosto de

Li~

nhart.

20. O núcleo fundador do GTPSI é composto por François Tosquelles,jean Oury, Roger Gentis, Horace Torrubia,jean Ayme, Hé!Cne Chaigneau, Philippe Koechlin, Robert l\1illion, Maurice Paillot, Yves Racine, Jean Colemin, Michel Baudry; vários outros psiquiatras se juntarão a esse grupo inicial: Giséla Pankow,Jean-Claude Pollack, Denise Rothberg, Nicole Guillet (informações passadas por Olivier Apprill). 21. Roger GENTIS, Un psychiatre dans le sü~cle,

Éres, Paris, 2005, p. 38. 22. Ver capítulo "Uma alternativa à psiquiatria?" 23. Félix GUATTARI, "Introduction à la psychothérapie institutionnelle" (1962-1963), em PT,

Notas I. Félix GUATTARI, "!.a S.C.A.j. Messieurs-Da-

mes", em Bulletin du personneL soignant des cliniques du Loir-et-Cher, n. 1, 1957, reproduzido

emPTp.36. 2. Ibid. p. 37. 3. Ibid. p. 37.

Olivier Apprill, entrevista com o autor. Jbid.

Histoires de La Borde, op.cit., p. 273. Félix Guattari, "La Grille", exposição feita no estágio de formação de La Borde, janeiro de

1987, arquivos do IMEC. 28. Ver François DOSSE, Histoire du structuralisme,

4. Jean Oury, entrevista com o autor. 5. Jbid,

6. Histoires de4aBorde, op. cit., p. 133.

-

·-

56. Marie Depussé, entrevista com Virginie Li-

!bid., p. 84.

57. Félix GUATTARJ, "Journal1971", 25 de setembro de 1971, La NouveLLe Revue française, n.

Jean-Baptiste Thierré, entrevista com o autor.

!bid. lbid. De um lado, Guattari tem uma relação amorosa com a companheira do psiquiatra Jeangirard,Jacqueline Moulin, depois com Ginette Michaud, e de outro, Nlicheline Kao tem uma relação amorosa com um psiquiatra argelino, Ben Milard. 37. Micheline Guil\et (Kao), entrevista com Eve Cloarec, arquivos IMEC, 20 de setembro de 1984.

nhart. 39. Nicole Guillet, entrevista com o autor. 40. Sua mãe, BérangCre, vem trabalhar ali, sua irmã GeneviCve se casa com o cozinheirto, Renê. Sua irmã Jeannine se casa com Ettore Pellandini, e o responsável pelas quermesses de La Borde com a mulher do psiquiatra Bidault, JYlichelle.

41. Marie DEPUSSÉ, emjean OURY, Marie DEPUSSÊ, À quelle heure passe !e train ... , op. cit., p. 214. 42. Bruno Guattari, entrevista com Virginie Linhart.

43. !bid. 44. Félix Guattari, entrevista com Eve Cloarec, ar-

quivos IMEC, 29 de agosto de 1984.

45. Arlette Donati, entrevista com Eve Cloarec, arquivos IMEC, 25 de outubro de 1984.

46. Félix GUATTARJ, 'Journal1971", 25 de setem~ bro de 1971, La NouveLLe Revue Jrançaise, n. 564, janeiro de 2003, p. 336.

47. Bruno Guattari, entrevista com Virginie Li-

p.42. 24. 25. 26. 27.

!bid., p. 79. fbid., p. 80.

38. Marie Depussé. entrevista com Virginie Li-

L'Harmattan, Paris, 1992, p. 109.

16. Félix Guattari, entrevista autobiográflca com 1984. 17. Nicolle Guillet, entrevista com o autor. 18. Liane MozCre, entrevista com o autor. 19. Marie Depussé, entrevista com Virginie

30. 31. 32. 33. 34. 35. 36.

tomo 1, La Découverte, Paris, 1991; reecl. col. "Biblio-Essais", Livre de poche, Paris, 1995.

29. Félix GUATTAR!, "La transversalité" (1964), em PT, p. 72-85.

nhart.

48. Félix GUAT'J'ARI, "Journal1971", 2 de setembro de 1971, La Nouvelle Revue française, n. 563, outubro de 2002, n. 563, p. 336. 49. Arlette Donati, entrevista com Eve Cloarec, arquivos IMEC, 25 de outubro de 1984.

50. 51. 52. 53. 54. 55.

71

lbid. lbid. Jean Oury, entrevista com o autor. lbid. Danielle Sivadon, entrevista com o autor. Ibid.

nhart.

564, janeiro de 2003, p. 336.

58. FéUx Guattari, entrevista com Eve Cloarec, arquivos IMEC, 1° de outubro de 1984.

59. Arlette Donati, entrevista com Eve Cloarec, arquivos IMEC, 25 de outubro de 1984.

60. Jean OURY, em Jean OURY, Marie DEPUSSÉ,À quelle heure passe le train .. , op. cit, p. 243. 61. lbid., p. 247. 62. Jean-Claude Polack, entrevista com o autor. 63. Jean OURY, emjean OURY, Marie DEPUSSÉ. À queL!e heure passe le train ... , op. cit., p. 255. 64. Jacques Lacan, citado por Félix Guattari, ibid. 65. Le Moindre Geste, fllme de Fernand Deligny, Josée Manenti e Jean~Pierre Daniel, realização de Nicolas Philibert, 2004. 66. Josée Manenti, entrevista com o autor. 67. Nascido no subúrbio de Lille em 1913, Fernand Deligny atua como professor primário em Nogent, na região parisiense, em 1936, e depois no Instituto Médico-Pedagógico de Armenti€res. Em 1941, trabalha no hospital psiquiátrico de ArmentiCres em um pavilhão onde vivem juntos jovens psicóticos e jovens delinquentes considerados irrecuperáveis. 68. Josée MAl'IENTI. "Fernand Deligny.. :', Chimeres, n. 30, primavera 1997, p. 104. 69. Nicole Guillet, entrevista com o autor. 70. josée Manenti, entrevista com o autor. 71. Jean Oury, entrevista com o autor. 72. Ibid. 73. François Pain, entrevista com o autor. 74. Fernand Deligny, carta a Félix Guattari, arquivos IMEC, 9 de outubro de 1977. 75. Fernand Deligny, carta a Félix Guattari, arquivos IMEC, 31 de outubro de 1977. 76. lbid. 77. Félix GUATTARI, La Révolution moléculaire, Recherches, Paris, 1977. 78. Fernand Deligny, carta a Félix Guattari, arqui-

vos IMEC, 31 de outubro de 1977. 79. Fernand Deligny, carta a Félix Guattari, arquivos IMEC, 9 de abril de 1978. 80. Félix Guattari, carta a Fernand Deligny, arquivos IMEC, 1979.

Gi!!es Deleuze & Félix Guattari

4 A pesquisa crítica à prova da experiência

A criação da Federação de Grupos de Estudo e de Pesquisas Institucionais (FGERJ) por Félix Guattari em 1965 marca nele uma verdadeira guinada estratégica, que deixa para trás A Via Comunista e suas filiações trotskistas. O objetivo é converter o trabalho intelectual em um programa de pesquisa não acadêmica. Tra~

ta-se de organizar, a partir das competências específicas de cada um dos grupos autônomos

constitutivos da federação, a circulação máxima de suas contribuições; a intenção é sub-

verter os hábitos e as falsas certezas de toda disciplina constituída.

A transdisciplinaridade em ato A FGERJ desenvolve o princípio da transversahdade1 enunciado por Guattari nos espa-

ços que têm em comum lidar com a instituição: psiquiatras, antropólogos, psicanalistas, psicólogos, enfermeiros. O meio labordiano está na raiz desse projeto, ao qual se associam educadores, professores primários e universitários, urbanistas, arquitetos, economistas, cooperantes, cineastas, etc. Em outubro de 1965, há doze grupos federados, e todos têm como referência a an~li:se institucional inspirada na

pedagogia de Fernand Oury ou na psicoterapia de François Tosquelles, que já receberam suas cartas de nobreza. Essa federação, muito flexivel em seu funcionamento, agrupa mais de cem pesquisadores, e seu local de implantação mais importante é, evidentemente, o meio psiquiátrico. Sob o impulso de Guattari constitui-se um organismo que terá grande ressonância no campo das ciências humanas: o Centro de Estudos, de Pesquisas e de Formação Institucionais (CERFI), cujo objetivo é permitir à federação "firmar contratos de pesquisa com organismos públicos ou privados sobre problemas suscetíveis de estimular e de enriquecer o trabalho da 2 FGER1" • O CERFI, que conhecerá sua idade de ouro nos anos de 1970, obterá subvenções substanciais do Estado para financiar algumas pesquisas de grande amplitude nas áreas da saúde, da formação, do equipamento, etc. Para dar mais visibilidade a esses trabalhos, a FGERJ publica uma nova revista cujo primeiro número sai em janeiro de 1966. Um ano antes, um pequeno grupo em torno de Félix passou uma noite inteira pensando no título da nova revista. Michel Butel propõe um nome a cada quinze minutos. Guy Trastour recorda de ter sugerido no final, já um

pouco cansado, Recherchei. Esse é o título adotado, que se inscreve na continuidade da revista conduzida por sua esposa, Renée Trastour-Fenasse, codiretora da revista da MNEF, Recherches Universitaires, que então cederá seu lugar: a ancoragem nos meios estudantis é garantida e claramente afirmada. A nova revista será administrada e dirigida no primeiro momento pela ex-companheira de Fernand Deligny, Josée Manenti. O desejo manifestado pelos iniciadores da FGERJ e por Félix Guattari é submeter as grandes referências tutelares, como Marx, Freud e Lênin, à prova da prática contemporânea, dos desafios do presente e do estágio mais avançado dos conhecimentos em todos os campos das ciências humanas: "Arepetição é a morte. Utilizar Marx ou Freud em forma de repetição é lançar-se em uma espécie 4 de incensamento mortífero'' • A FGERJ pretende promover a transdisciplinaridade, conce~ bida não como uma partilha de proprietários preocupados com suas delimitações fronteiriças, mas como indagação original sobre o território das disciplinas para articular suas orientações de pesquisa "a fim de que seus conceitos estejam em 'oposição distintiva' e não se mantenham em estruturas antagonis5 tas de desconhecimento recíproco" . Afirmar entre 1965 e 1966 o valor das pesquisas empíricas em ciências humanas é singularmente inovador e original em um contexto intelectual muito "althusserizado". É o grande momento do sucesso de Ler o Capital e Para Marx, do retorno "a Marx" seguindo as vias do "corte epistemológico". Preconizar um desvio pelas práticas sociais e institucionais, assim como pela prova dos fatos, abre caminho a investigações promissoras que de imediato representam escapes, linhas de fuga nesse ambiente científico e puramente conceituaL Embora essa orientação permaneça marginal e a contracorrente das fascinações do momento, a FGERJ dispõe da aquisição da reflexão sobre a análise institucional que pretende conjugar as contribuições do freudismo e do marxismo, e colocar a libido no centro do processo de pesquisa, e não mais na penum-

73

bra, longe do verdadeiro saber erudito. Desde suas primeiras exposições apresentadas em 1966 na "comissão teórica' da FGERI. Guattari marca distância das posições althusserianas, então em plena onda, utilizando Lacan para elaborar melhor sua crítica. Ele lembra a esses defensores do conceito pelo conceito o sentido das realidades: "Existe um patamar aquém do qual não se pode avançar na desrealização da história; existe um realismo residual da história; essa realidade inexpugnável é o fato contingente que os 6 homens e ninguém mais fazem e falam" • Para além da filosofia da história, essa crítica abre caminho a uma reconexão entre a pesquisa, o saber e o terreno da experiência, do vivido, das representações dos atores e de sua palavra. Com isso, Guattari não opõe um sujeito pleno, senhor de si mesmo, ao "processo sem sujeito" de Althusser; trata-se de um sujeito clivado: "O sujeito esquizofrênico, na verdade, ficará no segundo plano, será o sujeito do inconscien~ te, chave oculta das enunciações recalcadas ... Essa subjetividade não tem de prestar contas 7 nem perante a lei, nem perante a história:' • Guattari quer manter o objetivo de transformação revolucionária que sempre defendeu, mas agora sustentado por uma reflexão conduzida do interior da sociedade. Não se trata mais de esperar a "grande noite", mas de prepará-la mediante transformações efetivas das instituições. A FGERI, essencialmente composta de intelectuais, tem ligaçôes também no mundo industrial, em particular com a prestigiada rede da Hispano comandada por Roger Panaget, que cria o Grupo de Estudos e de Pesquisa do Movimento Operário (GERMO) ligado à FGERJ. Outro grupo da FGERJ contribui desde 1965 para a difusão das teses feministas, o Grupo das Boas Mulheres de Esquerda (GROBOFEGA), combinando uma reflexão histórica e etnológica e um engajamento especificamente feminino com ações de luta pela contracepção livre e gratuita, pela liberdade de aborto e pela liberação sexuaL Encontram-se ali, entre outras, Nicole Guillet, as sociólogas Liane Moz8re e Anne Querrien, assim como a

74

François Desse

escritora Annie Mignard e a futura psicanalista Brigitte Maugendre. Os primeiros números da revista Recherches dão uma ideia da diversidade pretendida pela F GERI, assim como de sua recusa de qualquer forma de centralização. O primeiro contém um artigo de Félix Guattari sobre a psicoterapia institucional que revela o verdadeiro ponto de ancoragem dessa federação,

mas leem-se ali também artigos vindos dos grupos "teatro", "arquitetura", "economia". O editorial do segundo número afirma a recusa de encarnar uma corrente específica, ao contrário das outras revistas desse tipo: "Nada de comitê de redação que determine a linha, que selecione os artigos. Nada de teorias nem de conceitos a defender... Recherches é o órgão de expressão de todo grupo que trabalha em um setor do campo social orientado para a análise das instituições nas quais cada um está inserido e que aceita ser interpelado constantemente por outros grupos implantados em- outros setores"8• Não existe um aparelho para gerir a FGERI, e seus diversos grupos têm apenas uma ocasião efetiva de encontro durante o ano: as quermesses anuais organizadas em La Ilorde. Nem por isso a federação promove uma forma de interdisciplinaridade "frouxà'. Ao contrário, os pesquisadores são solicitados para falar sua própria linguagem disciplinar sem concessão à mundanidade ou à vulgarização.

Uma oposição de esquerda Ao mesmo tempo em que se constitui a FGERI, instala-se, ainda em torno de Guattari, outra organização política que cristaliza as novas forças recrutadas no meio estudantil a Oposição de Esquerda (OG). Na verdade, os dois projetos são concebidos como complementares: a OG é a ala de intervenção política de profissionais que se reconhecem na rede da FGEIU. A criação da OG é fruto de todo um trabalho minucioso de "botões de casaco", como se dizia na ét:oca, comandado por Guattari.

Gilles Deleuze & Félix Guattari

O fim da guerra da Argélia em 1962 reforça a atividade e a influência de Guattari no meio estudantil do lado da MNEF e da UNEF. A situação universitária é marcada por um duplo processo de radicalização política com a guinada à esquerda da UNEF em 1963 e com a autonomização da UEC em relação à direção do PCF. Após a guerra da Argélia, que havia mobilizado fortemente o meio estudantil, a UNEF entra em pane. A organização sindical tinha um estudante a cada dois em suas fileiras, mas um certo desencanto, a concorrência de um sindicato criado pelo governo gaullista e o cansaço dos veteranos concorrem para uma crise de esgotamento. Quando o congresso de Dijon abre as portas na primavera de 1963, impõe-se um verdadeiro aggiornamento. Os dirigentes da UNEF constatam desolados que sua organização só agrupa agora um estudante a cada quatro. É nesse contexto que emerge uma nova geração, bastante ativa e contestatória, vinda essencialmente das tlleiras da Federação Geral dos Estudantes de Letras (FGEL), presidida a partir de 1963 por Jean-Lous Péninou, e da Associação Geral dos Estudantes de Medicina (AGEMP), presidida por Jean-Ciaude Polack. Os porta-vozes dessas correntes contestatórias da esquerda sindical pregam uma radicalização das lutas e consideram que a UNEF não pode apresentar uma simples lista de reivindicações, mas deve integrá-la em uma crítica global da sociedade para defender um programa global da transformação. Essa esquerda sindical é comandada por militantes da UEC, cuja autonomização em relação ao PCF tem uma ressonância crescente no meio estudantil, criando uma dinâmica particularmente entre os estudantes de letras e de medicina, os dois pilares da esquerda sindical. Criada pela direção do Partido em 1958 para desmontar a célula filosofia da Sorbonne, que se tornou agitada e contestatória demais, a UEC é dirigida pelos chamados "italianos", Alain Forner, Pierre Kahn, Jean Schalit, entre outros, que têm em comum mirar-se na Itália para encorajar a desestalinização do Partido. Seu jornal, Clarté, expressa esse desejo de re-

novação abrindo espaço para artigos menos diretamente políticos, abordando a criação artística e o mundo intelectual. Podem ser lidos ali textos sobre Alain Resnais, Maurice Béjart, Samuel Beckett. que rendem ao semanário uma ampla audiência (25 mil exemplares vendidost Mais radicais que esses ''italianos" da direção da UEC, correntes heterogêneas de uma esquerda que se pretende mais revolucio~ nária desenvolvem-se dentro da UEC, sobretudo no setor de Letras. Suas referências teóricas são uma mistura de Victor Serge, Lênin, Trotski, Rosa Luxemburgo, e de André Gorz, no que se retere à análise da sociedade francesa. Esses escritos alimentam uma esperança revolucionária na qual a contestação estudantil desempenharia um papel fundamental: "O condicionamento estreito da universidade (pelo Capital) dá à ação universitária uma importância nacional", conclui Marc Kravetz, 10 um dos dirigentes da FGEL • A aspiração dessa corrente é romper com a forma puramente corporativista da atividade sindical para direcionar o movimento estudantil a questões de vida concreta na sociedade, a problemas de ordem existencial enfrentados pelos jovens que não se reconhecem nos valores dominantes da sociedade de consumo capitalista. Outro elemento da situação no meio estudantil absolutamente essencial, em particular para realizar a conexão desejada por Guattari entre a política e a prática psicoterapêutica, é a evolução da MNEF, que administra a Seguridade Social estudantiL Ela volta a atenção para as diversas patologias específicas que se encontram no meio estudantil no momento de sua massificação e implanta agências de ajuda psicológica aos universitários (BAPU). Estas últimas publicam a revista que estará na origem de Recherches Universitaires da FGEIU, e disso resulta a criação de um Comitê Nacional Universitário para a Saúde Mental. Um dos responsáveis pela MNEF, Jean-Pierre Milbergue, prega então a estruturação do movimento estudantil em torno de métodos psicossociológicos, o que supõe uma ruptura com as formas tradicionais de militância política. Ele

75

organiza uma série de estágios, de encontros entre estudantes e os meios profissionais espe~ cializados. É no âmbito de um desses estágios, no final de 1963, que Jean- Pierre Milbergue organiza uma reunião com o pessoal de La Borde: Oury, Guattari e alguns outros deixam o seminário de Lacan da Rue d'Ulm para se dirigir como vizinhos à sede da MNEF, na Place du Panthéon. Um novo permanente, recrutado como assistente técnico para "higiene mental", Guy Trastour, descobre nessa ocasião um novo discurso que o deixa encantado: "Percebo uma outra forma de colocar os problemas, as relações com o outro, com a loucura, e estou completamente seduzido" 11 • Guy Trastour decide de imediato implantar com Guattari um projeto de hospital-dia para adolescentes, que deve ser um local de acolhimento para estudantes e jovens operários. A rede constituída por Guattari assume amplitude particular em um meio sensível ao discurso psi, na medida em que Guy Trastour, que cuida dos BAPU, tem a possibilidade de percorrer o país para 12 estabelecer ligações entre psi e estudantes • O outro sinal de radicalização surgiu em março de 1964 na UEC. O aparelho do Partido preparou as coisas com o máximo cuidado, esperando tirar proveito das divisões de seus contestatários de todo matiz, "italianos", "trotskistas", "maoístas'', para retomar a dire~ ção de sua organização estudantil. Encontra~ ram em Jean-Michel Catala e em Guy Hermier dois líderes incumbidos de comandar na batalha as tropas reunidas pela direção para o congresso. O comitê nacional dominado pelos "i ta~ lianos" é amplamente minoritário e se orienta para um compromisso com a direção do Partido a fim de manter o controle da UEC. O sucessor natural de Alain Fofner, Pierre Kahan, prepara um relatório centrado na denúncia das diversas alas esquerdistas. Entretanto, os ''italianos", que representam não mais que 20% dos mandatos, acabam se colocando ao lado da oposição de esquerda em uma mesma moção final que contabilizao mesmo número de votos (180) que os partidários da tendência ortodoxa da direção do PCF. Diante desse empa-

76

François Dosse

te, a tensão se acirra, e parte-se para a decisão nos pênaltis: 'A sessão é reaberta na manhã de domingo. Logo na abertura, Marie-Noelle Thinaut pega o microfone e, com a voz es~

maecida, embargada de emoção, revela que durante a noite foi fechado clandestinamente um acordo entre os 'pró-Partido' e os 'italianos'. Ela conta que ouviu por acaso uma conversa. Roland Leroy e Alain Forner dividiam entre si os postos do comitê nacional; ficam cinco cargos para cada uma das tendências principais, e treze para a esquerda. O espanto toma conta da plateia. Um silêncio pesado, incrédulo, se estabelece por alguns segundos"". Pierre Goldman e Yves Janin lançam imprecações contra Roland Leroy, provocando uma confusão tão grande que a direção teme um possível questionamento de seu acordo por baixo do pano e decide se reunir a portas fechadas. A cortina pode baixar pudicamente sobre o primeiro ato da nova sessão secreta, e os dois líderes por merecimento da normalização, Guy Hermier e Jean-Michel Catala, podem ter acesso ao comitê nacional e se arrogar o controle do Clarté, deixando a Pierre Kahn o papel decorativo de secretário-geral da UEC. É nesse meio efervescente de sindicalistas da UNEF, membros da UEC, antistalinistas revolucionários que Guattari trava suas ami~ zades e constitui seu "bando". O candidato da "minoria" em 1963, Jean-Claude Polack, vai para La Borde como interno em psiquiatria e se torna imediatamente o "tenente" de Guattari. Outro dirigente da UNEF. secretário-geral em 1964, JVlichel Rostain, estudante de filosofia na Sorbonne, na órbita de A Via Comunista, fica incomodado ao constatar a distância entre o discurso sustentado por essa organização e suas práticas. Quando de uma reunião em 1964, perto do Panthéon, onde se encontram, entre outros, em torno de Guattari, Antoine Griset, Jean-Louis Péninou e Marc Kravetz, Michel Rostain manifesta sua discordância com A Via Comunista. Surpreso, ele percebe que suas palavras causam a maior alegria em Guattari, que telefOna para ele no dia seguinte convidanpo-o para La Borde. Michel Butel

Cilles Deleuze & Félix Cuattari também faz parte do primeiro círculo em torno de Guattari, que conheceu em La Borde em 1963. Ele passa a vida na UEC e se dedica à agitação política no Quartier Latin. Na Sorbonne, Michel Butel reencontrou seu amigo de infância Yves Janin, mais combativo ainda do que ele. Eles formam um trio com o mais ativista dos ativistas, Pierre Goldman, responsável pelo serviço de ordem da UEC. Essa equipe afinada pretende manter o controle do Quartier Latin diante das ameaças constantes da extrema direita. Todavia, a Sorbonne e a faculdade de medicina não constituem o único terreno fértil onde brota a esquerda sindical radical. As ramiflcações se estendem do lado da faculdade de direito em um ambiente hostil, assim como no Instituto de Estudos Políticos de Paris. No início dos anos de 1960, a faculdade de direito se tornou um território ocupado pelas organizações de extrema direita. O presidente de honra da corporação não é outro senão Jean-Marie Le Pen. Isso significa que não pega bem ser de esquerda e menos ainda esquerdista em Assas. Entretanto, começa a se organizar um pequeno polo de resistência chamado de Associação Cujas"''. Cruzam-se ali tanto jovens radicais quanto jovens católicos de esquerda, tanto socialistas como Pierre Guidoni quanto militantes da UEC. É nesse caldo de cultura de esquerda que se encontram aqueles que se tornarão amigos próximos e fiéis de Guattari: Liane Mozere e Hervé Maury. Essa extrema esquerda plural tem de demonstrar uma coragem singular, mas ela conta com alguns apoios de peso, como o do decano da faculdade, Gabriel Le Bras, especialista em direito canônico, assim como de um outro grande jurista, na pessoa de Georges Vedei. O Instituto de Estudos Políticos de Paris é um meio mais aberto que as faculdades de direito. É inclusive outro viveiro onde Guattari poderá realizar encontros decisivos. Em 1964, François Fourquet, estudante de ciências po~ {' N. de T.: Sigla de Cercle universitaire juridique claction sociale.

líticas e militante da "esquerda" da UEC, encontra Guattari por ocasião do congresso da UEC. Já Lion Murard é um pouco mais jovem que seus colegas. Nascido em 1945, ele ingressa na faculdade de ciências políticas em 1963 e fica amigo de François Fourquet através da ação que realizam juntos na minoria da UNEF e da UEC nos anos de 1964 e 1965. Outra recruta importante em ciências políticas é Anne Querrien, que estuda na Rue Saint-Guillame mais para satisfazer a vontade de seu pai, que é conselheiro de Estado. Ela logo se engaja de forma muito ativa na esquerda da UNEF e em 1964 está na presidência da seção de Paris da MGEN'' e depois na agência nacional da instituição em 1965. Juntamente com Liane Mozere, François Fourquet e Hervé Maury, Anne Querrien faz parte do setor Direito da UEC. Ela se envolve nas atividades do Centro Estudantil de Pesquisa Sindical (CERS) e descobre o nome de Guattari lendo Recherches Universitaires. Por outro lado, as enquetes do CERS possibilitavam associar política e abordagens sociopsicológicas, bem como possuíam a vantagem de ser transversais, realizando estudos que diziam respeito ao mesmo tempo aos meios estudantis, operários e camponeses. Essas pesquisas-ações podiam chegar a resultados para esclarecer um pouco melhor o mal-estar estudantiL Foram úteis para redeflnir de maneira mais apropriada as reivindicações do movimento estudantil medindo suas necessidades, suas aspirações. A guinada à esquerda operada pela UNEF quando do congresso de Dijon se traduz em um reforço dessa corrente no aparelho sindical. A MGEN é presidida então por um adepto da esquerda sindical na pessoa de Antoine Griset. A Federação de Letras da UNEF organiza uma grande manifestação parisiense com lO mil estudantes que enfrentam a polícia. Eles impedem a visita do ministro da Educação Nacional, Christian Fouchet, à Sorbonne. A alta dos aluguéis da Cidade Universitária esbarra em um

"'N. de T.: Mutuelle Générale de l'Education Nationale.

77

verdadeiro front de recusa. Essa agitação do final de 1963 se traduz em vitórias importantes: em janeiro de 1964, o governo desiste dos aumentos de aluguel e anuncia a construção de uma nova universidade em Nanterre, para desafogar a Sorbonne. Tais concessões não desarmam o movimento estudantil, que se sente encorajado por essas vitórias e quer acentuar ainda mais a pressão sobre os poderes públicos. Um novofrontse abre em 1965 por ocasião do congresso da UEC, que se realiza em um feudo do stalinismo, em Montreuil. É o segundo ato da direção "pró~ Partido" para coroar o putsch de 1964, apoderando-se desta vez da totalidade dos poderes da organização estudantil. Os "italianos" se desgastaram e já não têm ilusões sobre sua sorte. De fUto, eles serão esmagados, como mostra o resultado da moção ele Guy Hermier (344 votos contra 145). Este último será o novo dirigente da UEC: "Jean-Michel Catala, apelidado de 'Dracatala' em razão de sua intransigência, o mais empedernido dos 14 pró-Partido, instala-se na tribuna'' • A direção do Partido encontra no caminho um aliado inesperado, do qual não tem necessidade nenhuma, mas que lhe oferece seus serviços. Trata-se da corrente maoísta surgida na ENS de Ulm, que no entanto não se cansa de denunciar o "revisionismd' e os "social-traidores". Os líderes dessa corrente, valendo-se do prestígio da ENS e da autoridade intelectual de Althusser, decidem se aliar a Guy Hermier e Jean-Michel Catala para despachar da direção da UEC todas as outras correntes. Eles voltam a tomar assento em um comitê nacional "expurgado" ao lado daqueles da tendência pró-Partido. Esse expurgo põe fim às ilusões de uma possí~ vel autonomia da UEC em relação ao aparelho do Partido. Entre 1965 e 1966, esse chamado à ordem levará ao surgimento de novas organizações, primeiro trotskista, com a juventude Comunista Revolucionária (JCR), depois maoísta, com a União da Juventude Comunista Marxista-Leninista (UJCML). Quanto às redes de esquerda constituídas por Guattari, elas estão desconectadas das verdadeiras alavancas políticas.

78

Gilles Deleuze & Félix Guattari

Dosse

Em busca de um programa Na medida em que a "esquerda" está excluída da direção da UEC, é preciso prolongar sua existência, mas agora de fora. Em 1965, é com esse objetivo na cabeça que Guattari reúne alguns militantes estudantis na casa de Marie Depussé, em Paris, para criar a OG e estabelecer uma plataforma para ela. Em seguida,

um grupo inteiro se instala nos Godelins, entre Cour·Cheverny e Bracieux, bem perto de La Borde, onde Guattari podia prosseguir o tra· balho junto aos internos da clínica. Ele vinha de tempos em tempos visitar os amigos para ver como os trabalhos estavam avançando. Encontram-se ali François Fourquet, Michel Butel, Pierre Aroutchev, Liane Mozêre, Hervé Maury, Geoges Préli e sua mulher, Nicole. É uma responsabilidade pesada para os so· breviventes da UEC definir ao mesmo tempo as

regras e o programa político de uma organização que se pretende inovadora: ''A incumbência ei-a escrever teses, que se tornaram As 9 Teses da Oposição de Esquerda, mas na verdade o que se fez foi sobretudo jogar um jogo chamado 'a

mano', que consiste em adivinhar o que se tem na mãd,j 5• QuantO a Guattari, um pouco chateado ao constatar que as coisas não avançam, aproveita para aprender a dirigir e fica dando voltas em torno da casa, sob o olhar divertido e sob as caçoadas de Michel Butel. Depois, im· paciente, Guattari decide suspender a locação dessa casa dos Godelins e pôr toda essa gente para trabalhar levando o grupo para La Borde. Na clínica, o dispositivo de redação das 9 teses se reduz a um trio formado por Guattari, François Fourquet e]ean Médam: "Félix escreve mal, em um jargão horroroso, ilegível, e ele achava que eu podia fazer uma revisão no projeto. Era impos6 sível. Já quando fala, ele é cristalinci" Guattari é, no essencial, a "voz" dessas 9 teses. François Fourquet acrescenta e completa as proposições acerca da economia política e estimula o amigo a desenvolver os aspectos psicanalíticos relacionados com a dimensão política da contestação. É a primeira_vez que Félix Guattari põe em prática esse disj5'Üsitivo·de escrita a dois.

A intenção dele a propósito das 9 teses é criar um tipo de agrupamento de ordem política, mas original, rompendo com o centralismo democrático tal como funciona não apenas nas organizações stalinistas, como também nas trotskistas. Além disso, Guattari pretende tirar as lições políticas da experiência de La Borde. Cabe a ele levar em conta a dimensão subjetiva dos indivíduos, seu desejo e, portanto, seu inconsciente. Isso implica uma organização bem diferente de A Via Comunista- que deres· to desaparece em fevereiro de 1965. Guattari e Fourquet passam todo o verão e todo o outono de !965 pensando e redigindo essa plataforma em La Borde. É preciso não apenas reescreVer a história do mundo como também extrair perspectivas para o futuro e ligar as tradições do movimento operário às aquisições do freudo-lacanismo. Guattari apressa o movimento para que a plataforma esteja pronta o mais cedo possível. Ela é concluída no Natal de 1965 e lançada em forma ele brochura em fevereiro de 1966, com prefácio de Gérard Spitzer. A primeira tese propõe adotar uma escala de análise que ultrapasse o âmbito nacional e se situar de início no plano mundial para demonstrar melhor o que é considerado como uma nova contradição própria do capitalismo entre uma lógica mundializada, de um lado, e a lógica dos interesses específicos do capitalismo monopolista de Estado, de outro. A segun· da tese denuncia o projeto reformista e stali· nista de integração do movimento operário na lógica capitalista. A terceira e a quarta teses analisam as contradições anti-imperialistas e a emergência de uma nova força com o terceiro mundo para tornar mais clara a dimensão internacionalista elo movimento operário: "A luta ele classes caracteriza-se por sua universalidade"17. A quinta tese é uma crítica em regra aos Estados socialistas existentes, por sua incapacidade de abandonar as regras do mercado mundial. Essa crítica inspira-se fortemente nas análises de Trotski, mas se demarca em alguns pontos: 'As análises de Trotski nos parecem tão irrefutáveis no plano econômico quanto as consequências políticas e sociais

que se deduz delas nos parecem problemáti· 8 cas'>~ • A sexta e a sétima teses tratam de apresentar um panorama da situação francesa em meados dos anos 1960 do ângulo da relação do Estado com os imperativos ela modernização econômica e política. Finalmente, a oitava e a nona teses se dedicam a colocar o problema da organização revolucionária e da etapa de agrupamento a constituir. Partem da necessidade da criação de uma nova organização política para modificar as relações sociais de produção capitalista, mas constatam ao mesmo tempo o impasse do centralismo adotado pelos parti· dos comunistas: "Não se trata de negar o papel dirigente do partido, mas de afirmar a necessidade de uma descentralização efetiva da dire· ção das lutas de massas nos diversos níveis setoriais"19. Quanto à efervescência de grupelhos de extrema esquerda, ela não constitui uma solução para esses problemas: a última tese coloca a questão de saber se é preciso adotar a resolução de criar um novo partido. Os autores da plataforma constatam o fracasso constante dessas tentativas reiteradas. Diante da imaturidade das condições, o que está em questão é um agrupamento, mas com a firme vontade de não sucumbir na impotência. A OG é criada então com uma plataforma e um pequeno jornal, o Bulletin de f'Opposition de Gauche (BOG). Esse jornal contém todos os endereços da rede constituída por Félix Guat· tari nas alas esquerdas da UEF, da MGEN e da UEC. Com tiragem de uma centena de exem· piares quinzenal ou mensal, ele faz a ligação entre o que se passa no movimento estudantil e o que se passa no movimento operário graças ao grupo Hispano. Em 1966, surgem assim, e a coincidência no tempo não é mero acaso, duas iniciativas sob o bastão de Guattari, pensadas como com· plementares: a revista Recherches da FGERI e o Bulletin de l'Opposition de Gauche, chamado também de "Carré Rouge". Ao mesmo tempo, há uma mudança na maneira como se concebe Recherches. Até ali, os números eram hete· róc!itos por definição, expressão da diversida· de dos grupos da FGERI. A partir de junho de

1967, a revista publica números temáticos, espécies de obras coletivas de reflexão sobre um tema específico. O primeiro dessa série, "Programmation, architecture et psychiatrie", aborda a questão psiquiátrica estudada do ângulo da arquitetura e do urbanismo. Ele associa as pesquisas dos dois grupos mais dinâmicos da FGERI, o dos psiquiatras e o dos urbanistas. Na origem dele, consultores do ministério elos Assuntos Sociais e da Saúde fazem um estudo sobre o caso da clínica de La Borde, que, com 150 leitos, cuida do mesmo número de pacientes que um hospital de 2 mil leitos. Não apenas os métodos da psicoterapia institucional começam a seduzir para além do pequeno círculo labordiano, como esse modelo seria mais interessante tendo em vista que permitiria uma economia substanciaL O ministério decide então fazer um levantamento mais amplo, que resultará na redação de relatório sobre um projeto de normas de construção aplicáveis aos hospitais psiquiátricos. Os encarregados disso serão Guy Ferrand e Jean-Paul Roubier, ambos médicos e membros da FGERI: "O balanço dessas discus· sões é amplamente positivo. Sem dúvida, por· que põem em jogo mecanismos inconscientes e não uma pura e simples transmissão de in~ 20 formações ou confronto de opiniões" • Esse número faz eco a um questionamento real dos poderes públicos que estão mesmo decididos a abandonar o equipamento manicomial clássico de ajuntamento de doentes em locais herdados do período carcerário. O Sº- plano tinha como ambição recuperar um atraso flagrante nesse campo, pautando a construção de 30 mil leitos psiquiátricos públicos até 1975. Modes· to nas conclusões, esse número de Recherches pretende sobretudo mostrar quais as escolhas decisivas a serem feítas: "Desejamos avançar no sentido de definições mais precisas, de um esclarecimento que permita às pessoas de boa vontade que têm alguma responsabilidade nesse campo se situar com pleno conhecimento de causa'm. Em 1967, Liane Mozere assume a direção da revista Recherches, pela qual ficará respon·

80

Dosse

sável até 1970. Nascida em 1939, ela foi criada em Pequim - o pai trabalhava no jornal de Pe-

quim, e o avô materno era ministro. Quando Mao assume o poder em 1949, a família deixa a China e vai para a França, e ela abandona o

sobrenome Tchang para adotar o patrônimo de sua avó, Moz8re. A formação em direito e a especialização sobre a China abrem-lhe as portas do CNRS, de onde acaba saindo para

se engajar plenamente em uma concepção mais coletiva da pesquisa, mais ajustada às suas posições militantes. O CERFI que se constitui em 1967 reúne um primeiro circulo de responsáveis que, sarcasticamente, recebe o nome de "Máfia"'- O CERFI se pretende um

organismo agregador de grupos autônomos e livres. Ele quer simplesmente caminhar por suas duas pernas- Marx e Freud -,e a "Máfia" cuida do resto. O CERFI será antes de tudo um grupo~sujeito, o que implica uma vida comuni-

tária entre seus membros. Em nome da recusa da dissociação entre vida privada e vida púb-lica, corre-se o risco de muitos descontroles passionais e fortes tensões afetivas. A atenção voltada aos f€nômenos do inconsciente e do desejo "queria dizer que as assembleias gerais do Coletivo se transformam frequentemente em sessões de análise coletiva; que era preciso assumir seu desejo reivindicando o montante do salário que se acreditava poder justificar"2:1• Em 1967, quando Liane Mozere assume a direção da revista Recherches, ganham projeção as revoluções latino-americanas: Fidel Castro, Che e a guerrilha na Bolívia, etc. Para ampliar o pequeno cenáculo da OG, Guattari e seus amigos criam em 1967 a Organização de Solidariedade à Revolução Latino-Americana (OSARLA), que também funciona de maneira descentralizada: cada grupo da organização se ocupa de um país particular da América Latina. Essa organização tende a envolver um círculo mais amplo, e Guattari terá a oportunidade de reencontrar um antigo camarada trotskista, Alain Krivine. Nesse flnal dos anos de 1960, a onda comunitária ._,vinda da América se propaga entre a juventude contestadora francesa: "Vamos ~

Gilles Deleuze & Félix Guattari

coletivizar nossa força de trabalho e vamos negociá-la, vamos vendê-la. E o dinheiro que tirarmos daí, bem, nós o dividiremos, ele nos servirá para cultivar nossas ideias, nossa força de trabalho, nossa corrente enquanto corrente"24. Dessa experiência, o CERFI espera a emergência de outra forma de subjetividade que possa surgir de um "agenciamento coletivo de enunciação" ou de uma nova "subjetividade de grupo", partindo de uma multilocalização 25 espacial: "Era uma comunidade u'rbana'' •

Notas 1. Félix GUATTARI, "La transversalíté", 1964;' re-

produzido em PT. 2. Recherches. o. 6, junho 1967. p. 316.

3. Guy Trastour, entrevista com o autor. 4. Editorial, Recherches, n. 1, janeiro, 1966, p. 2. 5. Jbid., p. 3. Entre os fundadores da FGERI, ao lado de numerosos psiquiatras, como Jean Ayme, Jean Oury, Gilbert Diatkine, Nicole Guillet, Claude e Catherine Poncin,Jean-Claude Polack, Af€lio e Horace Torrubia, Germaine Le Gillant, Jean-Pierre Muyard; etnólogos: Michel Cartry, Alfred Adler, Françoise e l\llichel Izard, Olivier Herrenschmidt; arquitetos: Gérard Bufflere, Catherine Cot, jacques Depussé, René Poux, Alain e Estelle Schiedt, Ametico Zublema; muitos estudantes, alguns economistas e sociólogos, psicólogos, estatísticos e educadores, aos quais se juntam alguns escritores, como Roland Dubillard, Thomas Buchanan e Jean Perret. Ultrapassando o centralismo jacobinista, a FGERI implanta numerosos grupos correspondentes na província. Os primeiros grupos de correspondentes são os de Blois, Dijon, Lyon, N<;tncy, Nantes, Nice, Rennes, Strasbourg e Tours. 6. Félix GUATTARI, "La causalité, la subjetivité et l'histoire", 1966, em PT, p. 175. 7. Ibid.. p. 182. 8. Editorial, Recherches, n. 2, janeiro, p. L

9. Cifra informada por Hervé HAMON, Patrick ROT:tvlAN, Génération, tomo 1, Seuil, Paris,

1987. p.128. 10. Marc KRAVETZ, Cahiers de l'UNEF. PUE dezembro de 1963, citado por Alain MONCHA-

ELON, flistoire de l'UNEF, Pllr: Paris, 1983. p. 150.

1L Guy Trastour, entrevista com o autor. 12. Essa atividade se prolonga no lançamento de um Bulletin Santé mentale que vai assegurar a ligação entre informação e reflexão sobre o trabalho realizado pelas diversas comissões e difundir os resultados das pesquisas dos GTU (grupos de trabalho universitários). 13. Hervé HAMON, Patrick ROTtvlAN, Génération, tomo l, op, cit., p. 209-210. 14. Ibid., p. 240. 15. Liane Mozere, entrevista com o autor. 16. François Fourquet, entrevista com o autor. 17. Félix GUATTARI, "Les neufthêses de !'opposi-

tion de gauche" (1966), em PT. p.108. 18. !bid., p. 111.

81

19. !bid.,p.l21.

20. Félix GUATTARI, "Présentation", Recherches, n. especial, junho de 1967, n. 6, p. 4. 21. Ibid.. p. 9. 22. Encontra-se ali a rede recrutada pela ação militante na UNEP, na MGEN, na UEC, e depois na criação da OG: François Fourquet, Liane MozCre, Hervé Maury, Michel Rostain, Anne Querrien e Lion Murard. Todos fizeram um estágio iniciático em La Borde. 23. Janet H. MORFORD, "Histoire du Cerfl.La trajectoire d'un collectif de recherche sociale }), EHESS/DEA, texto datilografado, outubro,

1985, p. 55. 24. Michel Rostain, em Janet H. MORFORD, "Histoire du Cerfi. La trajectoire d'un collectif de recherche socíale", op, cit., p. 57. 25. Hervé Maury, ibid., p. 75,

________________.... Gilles Deleuze & Félix Guattari

5 Gilles Deleuze: o irmão do herói

Gilles Deleuze, que não cansará de denunciar o familiarismo e a atmosfera contlnada da burguesia, nasceu em 18 de janeiro de ]925, no 17' Distrito de Paris. De sua infância, ele não é capaz de suportar a mera evocação. Contudo, quando da realização da série de TV EAbécédaire junto com Claire Pernet, ele recordará de alguns momentos-chave que marcaram sua juventude. Seu pai, Louis Deleuze, é engenheiro. Dono

de uma microempresa- com um Uni co assala-

Estamos no verão de 1928, diante da casa de férias dos Deleuze em Deauville: Georges, 5 anos, segura no ombro de seu irmão mais novo, Gi]]es. Ambos estão vestidos de palhaço. Um pouco mais tarde, em 1934, os revemos, ainda em Deauville, Gilles, então com 9 anos, fingindo fumar um cigarro com um papel enrolado. No ano seguinte, eles posam de novo juntos, desta vez em trajes de tênis, cada um com sua raquete. Georges segura novamente no ombro do irmão menor. Depois, mais nada. O irmão mais velho desaparece do horizonte. Não se encontra mais nenhum vestígio dele. Contudo, esse irmão maior desempenhou com certeza um papel importante na construção da identidade de Gilles Deleuze, ainda que como sujeito ausente. Georges Deleuze entrou na escola militar de Saint-Cyr para se tornar oficial. Durante a guerra, ele se engaja na resistência. Preso pelos alemães, é deportado e morto durante a viagem que deveria conduzi-lo a um campo de concentração luto impossível dos pais, que erigem o filho mais velho em mártir. Assim, Gilles Deleuze sofre duplamente com o desaparecimento de seu irmão: por mais que faça, sempre parecerá insignificante aos olhos dos pais diante do ato heroico do irmão mais velho.

Isso levará a uma rejeição precoce do meio familiar, como se recorda seu amigo Michel Tournier, com quem Gilles se abrira a respeito: "Gilles sempre foi complexado em face de seu irmão Georges. Os pais devotavam um verdadeiro culto ao filho mais velho, e Gilles não os perdoava pela admiração exclusiva por Georges. Ele era o segundo, o medíocre, enquanto 1 Georges era um herói" • Em nenhum outro testemunho ou escrito encontra-se vestígio desse ressentimento. Contudo, ]ean-Pierre Faye, que descobriu uma relação de parentesco por casamento com ele, recorda de ter assistido, quando criança, a uma cena estranha e, para ele, inexplicável: "Durante a guerra, minha mãe foi ao enterro de um rapaz que morreu quando chegava ao campo de concentração de Buchenwald, e estava lá o jovem Deleuze [Gilles] com o rosto convulsionado 2 de dor, transtornado" • No pós-guerra, esse traumatismo logo será recalcado, ou evocado com ironia. Em 1951, professor de filosofia em Amiens, Gilles Deleuze contará a seu aluno de colégio, Claude Lemoine, que teve um irmão, "mas esse imbecil, quando de uma cerimônia de calouros, se perfurou com a própria espada de Saint-Cyr. Isso o fazia rir. Fazia-o passar ali 3 por um imbeci1" .

riado, um operário italiano-, ele explora uma técnica de impermeabilização de telhados. A crise de 1930 o atingiu em cheio, e ele precisou se requalificar e arrumar emprego em uma fábrica de aeronaves. A vitória eleitoral da Frente Popular deixou desolado esse empresário de direita, próximo do movimento dos Cruz de Fogo. Ele compartilhava o ódio de todo seu meio social por esse judeu, Léon Blum, que se tornou chefe do Executivo. Ao contrário, seu filho Gilles se recorda desse momento extra· ordinário - o verão de 1936 quando, aos 11 anos de idade, assistiu encantado a chegada às praias de Deauville dos primeiros beneficiários 4 das férias pagas: "Era grandiosd' • Sua mãe. Odette Camaüer, cuidava da casa e dos filhos. Ela compartilhava plenamente

das ideias políticas do esposo e se indignava diante da invasão popular de lugares até en· tão preservados: "Minha mãe, embora fosse a melhor das mulheres, dizia que era impossível

frequentar uma praia onde há pessoas asslm"5. Sem dúvida como reação ao seu meio familiar, GiUes Deleuze adorará afirmar mais tarde a

origem meridional de sua família, que antigamente era "De l'yeuse", nome occitano que

significa "Do carvalho": "Uma árvore cuja única preocupação, como da família, era se desarraigar, tomando a 'linha de fugà de uma livre 6 derivà' • Evocando posteriormente, diante de seus alunos, a figura de Pierre]anet, esse contemporâneo de Freud que definia a memória como "canal da narrativa", Deleuze menciona uma lembrança da infància que o marcou, a da ajuda que seu pai queria lhe dar no período de férias em sua difícil aprendizagem da álgebra.

83

Isso me deixava em pânico. Era regulado em milímetro. Meu pai achava que tinha o dom de enunciar com clareza. A coisa desandava rapidamente. Em cinco minutos meu pai começa7 va a gritar, e eu, a chorar" •

As primeiras aprendizagens A guerra surpreende Gilles Deleuze aos 15 anos, quando se encontra na casa alugada por seus pais todo verão em Deauville. Decidem deixá-lo na região e encontrar um lugar para ele como pensionista. Com isso, Gilles cursa um ano da escola num hotel de Deauville transformado em colégio para a ocasião. É nesse momento da descentração familiar que Gilles Deleuze situa uma primeira ruptura decisiva em sua personalidade. Ele diz ter sido até então um aluno medíocre, que enganava o tédio se lançando em uma coleção de selos. Um encontro produzirá o despertar intelectual e uma curiosidade sem limites. De fato, em Deauville, ele sente uma verdadeira fascinação por seu jovem professor de letras, um certo Pierre Halbwachs. De saúde frágil, ele fora dispensado, e como tinha uma licenciatura, o requisitaram para lecionar nesse hotel-liceu. Gi]]es Deleuze descobre através dele a literatura francesa. Torna-se um aluno devotado e não se contenta com as aulas; segue Pierre Halbwachs pelas praias e dunas: "Eu era seu discípulo. Tinha encontrado meu mestre'8 O professor declama para ele os textos de Gide, Baudelaire, Anatole France. Essa proximidade levanta suspeitas de sua senhoria, que o adverte contra as supostas tendências pederastas de seu professor. Gilles Deleuze menciona essa prevenção ao professor, que lhe promete esclarecer a senhoria e dissipar qualquer mal-entendido. Contudo, a discussão só serve para inquietar ainda mais a boa senhora, que alerta os pais de Deleuze sobre o perigo que ameaça seu filho. É impossível retornar a Paris, pois nesse meio-tempo os alemães haviam atravessado a fronteira e avançavam rapidamente sobre a capitaL Gilles e o irmão Georges

Cilles Deleuzc & Félix Cuattari

pegam então suas bicicletas e vão encontrar os pais em Rochefort, para onde a fábrica fora transferida a fim de escapar ao avanço das tropas nazistas.

Finalmente, após o armistícío, Gilles Deleuze retoma à Paris ocupada e ao liceu Carnot, onde estudava desde a S' série. Em 1943.

no último ano do ensino médio, poderia ter tido Maurice Merleau- Ponty como professor de filosofia, mas volta para a classe do senhor Via!, que de imediato lhe transmite sua paixão pela disciplina: "Desde as primeiras aulas de 9 fllosofia, soube que era isso que eu iria fazer" •

Deleuze, mais uma vez, vai além dos marcos instituídos, está sempre criando oportunidades de conversar com o professor de filosofia e se torna um aluno particularmente brilhante. A descoberta da especulação filosófica é para ele uma verdadeira revelação: "Quando aprendi que havia conceitos, isso teve para mim o efeito de novos personagens. Isso me pareceu tão vivo, tão animadO' to. -Quando iniciou o 4° e último ano do ensino médio, Gilles Deleuze já tinha despertado um pouco para a filosofia através de seu amigo Nlichel Tournier, apenas um mês mais velho que ele. Em 1941. Michel Tournier faz sua "filô" no liceu Pasteur, onde tem aula com Maurice de Gandillac. Um amigo comum, Jean Marinier, que fará medicina, lhe apresenta Deleuze, que reside na época na Rue Daubigny com os pais e está no 2Q ano do ensino médio no liceu Carnot. Michel Tournier recorda com certo orgulho esse momento em que inicia seu amigo Gilles na filosofia ao falar sobre o curso de Gandillac. Logo admite: "Quando Deleuze entrou na filosofia, ele nos dominou a todos de cabeça e ombros"n. Michel Tournier lembra as conversas com seu novo amigo, em 1941 e 1942: ''As pala· vras que trocávamos como balas de algodão ou de borracha, ele nos devolvia endurecidas e pe· sadas como projéteis de ferro fundido e de aço. Logo passou a ser temido por esse dom que tinha de nos pegar por uma única palavra em flagrante delito de banalidade, de idiotice, de 12 · · r laxismo do pensamento" , An t es d e mgressa na série fina:!: Deleuz~ acompanha seu amigo,

convidado por Maurice de Gandillac, em 1943, para as décadas organizadas por Marie-Magdeleine Davy em uma grande propriedade da região parisiense, perto de Rosay-en-Brie. Marie Magdeleine fez do castelo de La Fontrelle um lugar protegido onde pode esconder judeus, resistentes, refratários ao STO, aviadores britânicos ou americanos. Para dissimular essa atividade, ela organiza inúmeros encontros culturais para os quais convida Michel Leiris, Jean Paulhan, Léopold Sédar Senghor, Paul Flamand, Gaston Bachelard, Robert Aron, Jean Wahl, Jean Burgelin, Jean Hyppolite, Maurice de Gandillac e muitos outros. Personalidade surpreendente era essa Marie-Magdeleine Davy. Nascida em !903 na região parisiense, "parecia mais um menino de verdade, detestava vestidos e em 1908 só usava calções ou calças compridas. A mãe a repreendia por não usar os adjetivos no femi~ ' »13 nino e por falar dela mesma no mascu1mo . Além de esquisita, ela devotava tamanha adoração à natureza que fugia de seu quarto à noite, deslizando por uma corda amarrada, para ir ao imenso parque e ao rio próximos à propriedade de sua avó. Desafiando a proibição familiar, ela se inscreve na Sorbonne aos 18 anos e se embrenha no estudo de filosofia e história, aprende latim, grego, hebreu e sânscrito, além de umas dez línguas vivas. Conhece Étienne Gilson, que a inicia no latim medieval, frequenta os salões, sobretudo o de Mareei Moré - um católico de esquerda e militante personalista que fez parte da revista Espritonde tem contado com toda a elite filosófica. Ao mesmo tempo, faz uma licenciatura de teologia no Instituto Católico de Paris. Titular de um doutorado em teologia em 1941, entra no CNRS como especialista do século Xll e traduz obras de Guillaume Saint-Thierry, Pierre de Blois e Bernard de Clairvaux.

Um "novo Sartre" É nesse meio e sob a égide dessa mulher que aparece o jovem aluno do último ano do

ensino médio Deleuze, que chama a atenção de imediato. Ali ele pode sobretudo conversar livremente com Pierre Klossowski a propósito de Níetzsche. As pessoas cochicham em torno 14 dele: "Esse vai ser um novo Sartre" • Nesses anos, Deleuze participa também com Maurice de Gandillac das reuniões no último sábado de cada mês na residência de Mareei Moré, um grande apartamento do Quai de la Mégisserie onde se encontram professores universitários e intelectuais de renome. No dia 23 de junho de I94~i. discute-se ali a "civilização cristã:' com Jean Grenier, Brice Parrain, Marie-Magdeleine Davy, Michel Butor, Maurice de Gandillac e Gilles Deleuze. No dia 5 de março de 1944, debate-se "Mal e pecado" a partir da obra de Georges Bataille com Jean Daniélou, Alexandre Kojeve, Jean Paulhan, Roger Caillois, Georges Bataille, Pierre Klossowski,Jean Hyppolite, Arthur Adamov,Jean-Paul Sartre e, mais uma vez, Maurice de Gandillac e o jovem Deleuze. Nesse ano de 1944, Michel Tournier leva Deleuze também às aulas públicas dos psiquiatras Alajouanine e Jean Delay em Salpêtriere. Desde essa época, Michel Tournier está assombrado com a capacidade de seu amigo de tirar a poeira da tradição filosófica para lhe dar um ar de atualidade. É preciso dizer que essas discussões ocorrem no clima sombrio da ocupação nazista. Ao abrigo de seu liceu parisiense, Gilles Deleuze, que tem 18 anos e está prestes a concluir o ensino médio, não entra na Resistência. Contudo, está na mesma classe do militante comunista Guy Môquet, que será abatido pelos nazistas. Ele lembra o pavor que causou a noticia do massacre da população do vilarejo de Oradour-sur-Glane no dia lO de junho de 1944. Não tendo se engajado, Deleuze forma junto com outros, entre os quais Michel Tournier, um pequeno grupo que partilha a mesma concepção não acadêmica da filosofia. Criado sob a égide de Alain Clément, o grupo publica uma revista de fllosofia,Espace, que terá apenas um número. Seus redatores se dizem inteiramente hostis à noção de interioridade e decidem fazer uma provocação ilustrando o primeiro e

85

único número da revista com um vaso sanitário com a seguinte legenda: "Uma paisagem é um estado de alma". Essa revista quer se erigir contra a "salmoura malcheirosa do Espírito", como Sartre qualifica a vida interior, e esclarece na apresentação em forma de advertência ao leitor: "Se os atrativos do espiritualismo declinam dia a dia, seria um erro não prestar atenção ao sucesso atual dos diversos huma15 nismos modernos" • No artigo que escreveu em 1946, De Cristo à Burguesia, Deleuze denuncia a ligação de continuidade histórica entre o cristianismo e o capitalismo, apegado ao mesmo culto do engodo da interioridade. Paradoxalmente, dedica esse artigo à "Senhorita Davy", sua grande sacerdotisa, que no entanto é uma fervorosa espiritualista. Esse artigo tem claramente a marca de Sartre, que detesta Marie-Magdeleine Davy. "Hoje, muitos homens não acreditam mais na vida interior"16 em um mundo de tecnicidade que esvazia o homem para reduzi-lo à condição de exterioridade pura. Todo o artigo visa desenvolver uma dialética de interioridade e exterioridade para valorizar a segunda. Assim, Deleuze opõe a interiorização à qual o marechal Pétain havia induzido os franceses ao ato de exteriorização de um de Gaulle ao entrar na resistência. Deleuze vê no sucesso moderno da burguesia uma continuidade e uma acentuação do processo de interiorização: ''A Natureza, ao se tornar vida privada, espiritualizou-se em forma de família e de boa natureza; e o Espírito, ao se tornar o 17 Estado, se naturalizou em forma de pátria'' , Deleuze ironiza essa filiação comparando a "vida interior" e a "vida de interior", separadas apenas por uma palavrinha. Paradoxo extremo, a burguesia consegue conclUir o movimento iniciado por Cristo interiorizando tudo o que este último execrava: a propriedade, o dinheiro, o ter, que ele combatia para substituir pelos valores do Ser. Ao se naturalizar, a vida espiritual cristã se degradou. Partindo de um ímpeto rumo ao Espírito, tornou-se "uma natureza burguesa" 18• Um vasto movimento de secularização transformou o Espírito em Estado, Deus em sujeito impessoal e o Contrato Social em ex-

86

François Dosse

pressão da Divindade, que permite concluir que

"a relação que liga o Cristianismo e a Burguesia 19 não é contingente" • No outono de 1943, tão logo ingressa na última série do ensino médio, um acontecimento filosófico desperta seu entusiasmo, partilhado por Michel Tournier: a publicação de O Ser e o Nada de Jean-Paul Sartre. "Gilles me telefonava todos os dias para contar o que 20 tinha lido na jornada. Ele sabia de cor" • Esse meteoro filosófico era diferente de tudo e tinha a capacidade de dar à filosofia uma presença viva no clima mortífero da Ocupação: "Passa-

mos esse inverno de guerra, negro e gelado, enrolados em cobertores, os pés envolvidos em peles de coelho, mas a cabeça pegando fogo, lendo em voz alta as 722 páginas compactas de nossa nova bíblia'". Gilles Deleuze frequenta a obra de Sartre antes do deslumbramento coletivo a que a França da Libertação assistirá.

Não apenas ele faz soprar um vento novo na filosyfia como também é escritor e teatrólogo, encarnando assim a possibilidade de conjugar atividade especulativa e criação literária. Essa é uma lição precoce para o jovem Deleuze, que jamais renegou sua dívida para com Sartre. Durante a semana, Deleuze devora O Ser e o Nada, e no domingo, quando vai ao teatro, o que vai ver? Sartre. Num domingo de 1943, ele vai com Michel Tournier ao teatro Sarah-Bernhardt onde estão encenando As Moscas. Surpreendidos pela história trágica do momento, eles têm de evacuar a sala diante de um alerta. Enquanto a multidão se apressa para chegar aos abrigos subterrâneos, os dois comparsas desafiam o perigo nessa bela tarde ensolarada: "Deambulamos pelos cais em uma Paris absolutamente deserta: a noite em pleno dia. E as bombas começam a chover. Os alvos da RAF são as fábricas Renault de Billancourt... Não diremos uma só palavra sobre esse incidente medíocre. Só sabemos dos embates de Orestes e Júpiter às voltas com as 'moscas'. Passada meia-hora, as sirenes anunciam o fim do alerta, e voltamos ao teatro. A cortina sobe. Júpiter-Dullin ~stá lá. Ele grita pela segunda vez: 'Jovem, nif6 incrimine os deuses!"m. i

l!ttl .--.··~----·

Gilles Deleuze & Félix Cuattari

A primeira de todas as publicações de Deleuze é um pastiche de Sartre intitulado: "Descrição da mulher. Por uma filosofia de outro sexuaddm. Nesse "à maneira de .. :', Deleuze se lança a uma fenomenologia divertida do batom que remete a uma exteriorização da interioridade, a uma outra forma de revelação do oculto, para concluir que a mulher não é, mas que ela se temporaliza: "A maquiagem é 24 a formação dessa interioridade" . A urgência desse artigo, segundo o jovem Deleuze, queretoma por sua conta a crítica dirigida por Sartre a Heidegger por ter representado uma humanidade assexuada, é dar um estatuto filosóflco à mulher. Mas o discípulo quer ultrapassar · o mestre que, a seu ver, não vai até o fim na crítica, e descreve um universo desolador por seu caráter inteiramente assexuado. Com a mulher, é Outro que surge, e todo um mundo interior se expressa nela: "A mulher é um universal concreto, é um mundo, não um mundo exterior, mas a face oculta do mundo, a morna interioridade do mundo, uma condensação do mundo interiorizado. Daí o incrível sucesso sexual da mulher: possuir a mulher é possuir o 25 mundd' • Contudo, essa paixão sartriana sofre sua primeira fratura quando o fenômeno se transforma em moda da filosofia existencialista na Libertação. No dia 29 de outubro de 1945, Sartre pronuncia sua famosa conferência onde Paris inteira se amontoa: "O existencialismo é um humanismo". Uma multidão compacta se acotovela para conseguir um lugar. A imprensa repercute esse acontecimento cultural sem precedente que vê um fHósofo provocar "quinze desmaios" e "trinta poltronas destruw ídas". Nessa multidão, Deleuze, que acaba de concluir o ensino médio, e seu amigo Michel Tournier estão desapontados com a apresentação de seu guru, e não o perdoam por tentar reabilitar essa velha noção de humanismo: "Estávamos arrasados. Assim nosso mestre recolhia da lata de lixo onde tínhamos jogado essa besta deformada, fedendo a suor e vida inte26 rior, o humanismo" • Conversando em um café após a conferência, os dois companheiros não

conseguem parar de pensar que seu entusiasmo foi traído pelo mestre. Apesar da decepção, Deleuze estará ainda por muito tempo sob a influência da estrela sartriana, corno testemunha o conteúdo de dois artigos que publicou 27 em 1946 e 1947 e que posteriormente renegou. Contudo, mesmo tomando outro cami~ nho, Deleuze sempre recOnhecerá sua dívida para com Sartre, como atesta ainda um artigo escrito um mês depois de Sartre ter recusado 23 o prêmio Nobel em 1964 • Ali ele deplora uma geração sem mestres e reconhece em Sartre alguém que conseguiu dizer alguma coisa sobre a modernidade e se erigir em mestre de toda uma geração, a da Libertação: 'A gente conhecia então, depois de longas noites, a identidade do pensamento e da liberdade"". Deleuze não se reconhece no espírito dos anos 1960, que tende a considerar Sartre como "superado". Ao contrário, Deleuze denuncia o conformismo de seu tempo e saúda a Critica da razão dia- !ética como "um dos livros mais belos e mais 30 importantes lançados nos últimos anos" • Passado o baccalauréat::', Deleuze ingressa no curso superior de letras, e após a classe preparatória à ENS do liceu Louis-le-Grand em Paris. Está na mesma classe que Claude Lanzmann, que logo se torna seu amigo. Ali era aluno assíduo de Ferdinand Alquié e de Jean Hyppolite. Uma vez emancipado de sua profunda influência, ele descreverá um e outro com certo sarcasmo. Alquié "tinha longas mãos brancas e uma gagueira que não se sabia se vinha "N de R. T.: No original, llypokhágne. Primeiro ano da classe preparatória para o curso de entrada das seções literárias (francês, línguas estrangeiras, filosofia e artes) da Escola Normal Superior (ENS) da França. Kdgne ou Cagne: segundo ano da classe preparatória para o concurso de entrada na Escola Normal Superior. Ambos são oferecidos após o Bacharelado (baccalauréat). Baccalauréat: comumente denominado 'bac', é um diploma que saciona o fim dos estudos do secundário francês. É o mais antigo exame da França e foi críado em 1808 por Napoleão. Existem 3 tipos de 'bac': o geral, o tecnológico e o profissional. As três séries propõem matérias gerais comuns cujo horário está adaptado para as especialidades de: francês, matemática, história-geografia, filosofia, línguas vivas l e 2, educação física e esportiva.

87

da infância ou se, ao contrário, estava ali para esconder um sotaque natal, e que se colocava a serviço dos dualismos cartesianos"; quanto a Hyppolite, ele "tinha um rosto forte, de traços incompletos, e ritmava com o punho as tríades 31 hegelianas, encadeando as palavras'' • Deleuze está também na mesma classe que Jean-Pierre Faye. Este recorda que logo nos primeiros dias de aula "havia alguém nessa classe preparatória de Alquié que quase na primeira fileira falava do cogito em Husserl, e era Deleuze"32. Alnda aprendiz de filósofo, Deieuze já é ouvido por seus colegas, distinguindo-se por suas capacidades excepcionais. Deleuze assiste ainda no liceu Henri-IV a algumas aulas de Jean Beaufret, que é então o introdutor na França da obra de Heidegger. Fascinado por seu mestre, Jean Beaufret afirma como ele que só é possível compreendê-lo verdadeiramente falando e pensando em alemão. Na semana seguinte, Deleuze vem contradizê-lo e lhe opõe uma solução sarcástica, dizendo que encontrou em Alfred Jarry o poeta francês que não somente compreendeu, mas antecipou Heidegger. Beaufret pede que se cale, mas alguns anos mais tarde, por ocasião do lançamento da obra de seu amigo Kostas 3 Axelos :\ Gilles Deleuze voltará por duas vezes 34 a essa surpreendente comparação . Ele afirma então que se "pode considerar a obra de Heidegger como um desenvolvimento da patafísica'"'. A linguagem própria a Heidegger, que introduz o grego antigo e o velho alemão na língua moderna por meio de múltiplas aglutinações, encontra seu equivalente em]arry, que, por sua vez, introduz no francês moderno o latim e o velho francês, sem contar a gíria e mesmo o bretão: "Talvez seja bom dizer que não há ali nada mais que jogos de palavras", comenta 36 Deleuze . Não obstante suas aptidões excepcionais, Deleuze não consegue entrar na ENS, ainda que suas exposições já sejam consideradas como eventos a que não se pode faltar sob nenhum pretexto e mobilizem grandes piateias. É o caso, entre outros, da arguição sobre "Bárbaros e civilizados" a que é submetido por

88

Dosse

Georges Canguilhem. Gilles obtém uma boa

nota, que permitiria seu ingresso se ele não houvesse abandonado outra matéria. Assim, ele é reprovado, porém, devido aos seus bons resultados, consegue uma bolsa de agrégation~'

e se recolhe na Sorbonne, onde segue os cursos de Ganguilhem, de Bachelard e de Gandillac, que será o orientador de sua tese. Estudante na Sorbonne, Deleuze faz par-

te de um pequeno grupo de amigos entre os quais se encontram seu companheiro de sempre,Jean-Pierre Bamberger, François Châtelet, Olivier Revault d'Allonnes, Claude Lanzmann, Michel Butor e, naturalmente, Michel Tournier. Nem todos são filósofos: um trio formado por Jacques Lanzmann, Serge Rezvani e Pierre Dmitrienko se dedica à pintura e se instala em

uma antiga lavanderia na Rue de Vaugirard, onde fazem suas amigas posarem. O desfile de aprendizes filósofos que vão ver o trio pintar é permanente: Gilles Deleuze, Claude Lanzmann, Jean Cau, Jacques Houdart, Renê Guillonnet, Pierre Cortesse,Jean Launay, de pé em silêncio, contemplam à vontade as belas moças desnudas. O traje rigoroso desses estudantes vindos da Sorbonne em suas jaquetas, camisas brancas e gravatas contrastava com as roupas boêmias dos artistas: "Gilles Deleuze já tinha na época um discurso originaL Os outros - sobretudo Claude - se limitavam a reproduzir a retórica pedante'm. Nessa época, Claude Lanzmann e Gilles Deleuze são muito ligados, e Lanzmann fala de seu amigo com um fervor e uma admiração particulares. Quanto a Gilles Deleuze, ele "era muito gentil, muito desajeitado; usava cachecol no verão; tinha o aspecto de uma criança superprotegida por uma mãe preocupada demais. Sua inteligência deixava Claude em transe. Ele sorvia Deleuze. Procura38 va por todos os meios apropriar-se dele" •

* N. de R. T.: Agrégation é um concurso francês acessível após um Mestrado, bastante seletivo, que permite àquele que o obtém lecionar em escolas secundárias. Esse diploma permite, igualmente, depois de alguns anos de experiência profi"Ssional.ledonar em uma universidade.

Cilles Deleuze & Félix Guattari

Na licenciatura, Deleuze e Olivier Revault dAJlonnes nunca faltam às aulas de Gaston Bachelard, pelo qual têm a maior admiração. Também fazem os cursos de Jean Wahl, que sensibilizará o jovem Deleuze para a filosofia anglo-saxã e para o existencialismo pré-fenomenológico. Martia! Guéroult é outro mestre para eles por sua leitura particularmente metódica dos textos: "Sempre achei que Gilles foi 39 um grande aluno de Guéroult" • De sua parte, Guy Bayet consagra seu curso a Espinosa, que está no programa da agregação. François Châtelet se recorda de um momento antológico entre o mestre Alquié e o estudante Deleuze a propósito de Malebranche: "Guardo ... a lembrança de um trabalho de Gilles Deleuze que devia tratar de não sei mais que tema clássico da doutrina de Nicolas Malebranche diante de um de nossos mais profundos e mais meticulosos historiadores da filosofia. e que havia construído sua demonstração, sólida e sustentada por citações peremptórias, em torno do único princípio da irredutibilidade da parte de Adão. Diante do enunciado do princípio adotado, o mestre empalidecera e, manifestamente, tivera de se segurar para não intervir; à medida que a exposição ia avançan~ do, a indignação se transformava em incredulidade e, depois, no momento das considerações finais, em surpresa maravilhada. E ele acabara de concluir... que não era costume tratar os problemas como fora feito ali com tanta maestria e que, em todo caso, quanto a ele, não poderia menosprezar o elevado interesse de hipóteses 40 explicativas dessa natureza'' • Para quem passou pela qualificação do programa de agregação, resta o temido grande teste oral que é dividido em quatro provas: uma sobre um texto grego, outra sobre um texto latino e duas sobre textos franceses. Para se preparar melhor, um pequeno grupo de candidatos se reúne regularmente na Rue Méchin, perto do Hospital Cochin, na casa de Olivier Revault d'Allonnes. Esse pequeno "clube dos cinco'' que se impõe uma ascese coletiva é constituído por Pascal Simon, que morrerá de um câncer no cérebro quatro anos após o con-

curso. Alain Delattre, primo do famoso general de Latre de Tassigny. François Châtelet, Gilles Deleuze e Olivier Revault d'Allonnes. A relação de textos de filosofia francesa para o programa de agregação de 1948 é constituída então pelo estudo de Matéria e Memória, de Bergson, e pela obra de Durkheim, As Regras do Método Sociológico. Revault d'Allonnes recorda que ele e Châtelet, mais marxizan tes, não tinham nenhum problema de se apropriar das teses durkheimnianas, mas consideravam Bergson um espiritualista empoeírado em quem não viam interesse: "No Biarritz, o café onde a gente se encontrava, dizemos a Gilles que Bergson nos aborrece um pouco. Ele retruca: 'Não, não se enganem, vocês não leram direito. É um grande filósofo""". Então, Deleuze tira de sua maleta Matéria e Jvfemória e começa a ler em voz alta uma longa passagem e a explicá-la, a comentá-la com seus colegas: "Ele usou a seguinte expressão: Ah! Vocês não gostam de Bergson! Isso me deixa desolado'"". Portanto, desde 1947, Deleuze já considera Bergson um filósofo de primeiro plano, e essa obra o acompanhará sempre e inspirará toda sua filosofia. Num momento filosófico marcado pela dominação do marxismo e do existencialismo sartriano, considerar Bergson um filósofo importante denota uma originalidade que Deleuze jamais deixará de reivindicar, sempre preocupado em pensar de maneira intempestiva contra a doxa de sua época. O pequeno grupo solicita aos membros do júri do concurso, Alquié, Gandillac e Lacroze, que lhes entreguem em envelope fechado os temas de dissertação. O resultado do concurso esteve à altura das expectativas para esse pequeno cenáculo. Deleuze, sem dúvida fragilizado por sua reprovação na ENS, não queria se apresentar no oral. Será necessária a capacidade de convencimento de seu amigo Châtelet, que o encoraja a se apresentar em todas as provas, vai buscá-lo e o leva à força diante do júri. Ele foi admitido como colaborador. O jovem Deleuze já tem problemas de saúde a ponto de não ter obtido o certificado necessário para se apresentar nas provas da

agregação. Quando começou a faltar às aulas no ano da agregação, o pequeno grupo de preparação fica preocupado e o visita na Rue Daubigny. Deleuze. que está saindo de uma violenta crise de asma, está de cama. O pai falecera pouco depois do desaparecimento do filho Georges, e Gilles vive só com a mãe: "Fo~ mos vê-lo, e na minha lembrança é uma visita à Mareei Proust no quarto com a mãe, uma pequena lâmpada rosa e Gilles, que já tinha difi43 culdades respiratórias" • Nesse ambiente con~ finado, tudo que o jovem Gilles Deleuze deseja é sair. O êxito na agregação é a chance de obter sua independência financeira. De sua relação conflituosa com o meio familiar, ele conserva uma fobia a qualquer alimentação à base de leite, o que surpreende seus amigos: "Convidamos Gilles para jantar várias vezes. Ele sempre perguntava à dona da casa se o prato continha alguma gota de leite, e, se era o caso, ele não 44 podia comer" •

A ilha Saint-Louis Em 1949, de volta da Alemanha, onde foi fazer o curso de filosofia na universidade de Tübingen, Michel Tournier decide preparar-se para a agregação um ano depois de seus amigos, mas não fará parte dos felizes eleitos: ele nutrirá um grande ressentimento por aquilo que qualifica de "curso hipertrofiado, inchado, ubuesco, a instituição mais desonesta e mais 45 nefasta de nosso ensino" • Ao chegar, ele se instala no Hotel de la Paix, no número 29 da Rue d'Anjou, na ilha de Saint-Louis. É lá que ele acolhe Gilles Deleuze, que decidiu abandonar a mãe em 1950. Esse hotel está magnificamente localizado à margem do Sena, no coração de Paris, com suas agradáveis orlas bordadas de álamos, seus galeristas famosos e livreiros. Algumas estrelas vivem ali, como o escritor Yvan Audouard e sobretudo Georges de Caunes, que apresentava o telejornal da noite na única rede de TV existente: "Ele era mais conhecido que 46 Brigitte Bardot ou De Gaulle" • Deleuze, como seu amigo, ocupa um quarto por mês nesse ho-

90

Dosse

tel onde viverá sete anos. A tarifa não é excessiva na época, mesmo porque o hotel não é de alto padrão. Assim, Deleuze vive no centro de Paris e leciona então no liceu de Amiens, para onde viaja toda semana. Visto que o professor de filosofia é julgado com muita complacência porque o tomam como o louco do lugar, ele

pode se permitir uma certa excentricidade, e assim, quando o cansaço se faz sentir, toca serrote musical para os alunos. Alain Aptekman, grande amigo de François Châtelet, que ele conheceu em Túnis, onde Châtelet foi nomeado para o liceu francês, lembra de ter visitado Deleuze nesse pequeno hotel várias vezes: "Fui

várias vezes ao seu quarto, que me angustiava bastante, pois não havia um dedinho de parede que estivesse livre. Havia um monte de reproduções de pintura penduradas na parede, as persianas ficavam entreabertas. Era um lu'hd"'" gar comp Ietamente 1ec a o . Michel Tournier e ele se encontram com n:mita frequência com os irmãos Lanzmann, Jacques e Claude, Serge Rezvani, François Châtelet, Kostas A.xelos. Eles têm seu bistrô favorito na ilha com um nome muito filosófico de "Mônada", que coloca o grupo de amigos sob a elevada proteção de Leibniz. Tournier e Deleuze, cujos quartos são vizinhos, também se encontram quase sempre no restaurante La Tourelle, na rua Hautefeuille, para o jantar. Nesses anos, Deleuze tem uma breve relação amorosa com a comediante Évelyne Rey, irmã dos Lanzmann. Serge Rezvani menciona achegada dessa moça à casa de Monny, padrasto dos Lanzmann: "De repente entra uma moça magra, a testa escondida sob uma franja de cabelos sombrios. É Évelyne, a irmã de Jacques ... Sob a massa de cabelos, ela dissimula um estranho olhar de pássaro noturno. O nariz pequeno e adunco (que mais tarde ela fará a loucura de retalhar), lábios muito finos, sensíveis, um maxilar um pouco largo e, sobretudo, iluminando a sombra na qual ela tenta escondê-los, os olhos, grandes olhos de um azul de 43 miçangas, claros como praias ao ar livre" . No final dos anos de 1940, Gilles Deleuze prossegud~u trabalho de escrita. Em 1946, faz

Gilles Deleuze & Félix Guattari

a introdução a uma obra de natureza esotéri49 ca . O autor é um pseudônimo, e Deleuze deve ter recebido a incumbência dessa introdução graças ao convívio com os círculos de Mareei Moré, para tirar algum dinheiro. A obra, que segundo Deleuze "apresenta um interesse capital", visa reunificar as linguagens separadas da ciência e da filosofia para encontrar a ambição cartesiana de construção de uma mathesis universalis. Contudo, por trás dessa introdução que parece fruto de mera contingência, pode-se encontrar o ponto de vista sempre defendido por Deleuze, de um monismo que parte de uma filosofia da vida que subsume qualquer subdivisão: ''A unidade, a hierarquia para além de qualquer dualidade anárquica, é a mesma da vida, que desenha uma terceira ordem, irredutível às duas outras. A vida é a unidade da alma como ideia do corpo e do corpo como extensão 50 da alma' , escreve ele, dando ali uma definição de estrita obediência spinozista. Deleuze oferece uma leitura da obra que lhe permite escapar à parte mística para insistir em suas próprias temáticas. Define a mathesis como algo que não é nem científico nem filosófico e que, por transgredir as fronteiras, se oferece como "um 51 saber da vida" . Encontra-se a marca de Sartre nessa introdução onde Deleuze afirma que "cada existência encontra sua própria essência 52 fora dela mesma, no outro" • Em 1947, Deleuze publica a introdução a 53 uma obra essencial de Diderot, A Religiosa • Ele expressa seu mais vivo interesse pelo personagem de Susana, que encarna ao mesmo tempo a natureza e a liberdade a ponto de fazer de seu autor, Diderot, o tolo de sua própria trama romanesca. Ele ressalta a tensão do ca~ ráter da heroína, dividida entre dois estilos diferentes, aquele específico do século XVIII, que remete à natureza, à eloquência, ao sentimental e ao exclamativo, e um estilo-liberdade em que as consciências se opõem em frases curtas e em negações obstinadas. Esse período do final dos anos de 1940 e início dos anos de 1950, para Deleuze, é marcado principalmente pelo início de sua carreira de professor no liceu de Amiens, onde lecionará

de 1948 a 1952. O horário o retém boa parte da semana em Amiens, aonde chega terça-feira de manhã e só retorna a Paris sexta-feira à noite ou sábado de manhã. Descobre que é colega de Jean Poperen e de Max Milner. Quando se apresenta diante de sua primeira classe entre 1948 e !949, está vestido de forma bem clássica, um poUco exagerada até, camisa branca e gravata, como é de uso em um liceu de uma cidade da província. Contudo, já se distingue pelo chapéu que deposita sobre a mesa quando sobe ao tablado e que tornará legendário. Fuma um cigarro atrás do outro enquanto dá aula.

Um despertador de vocações filosóficas Desde seu primeiro ano de ensino, ele é um "fantástico despertador""', nas palavras de seu aluno Michel Marié. Nascido em 1931 e filho de uma família camponesa, este último não está inscrito na área de filosofia, ele se prepara para o curso em ciências experimentais, mas o fascínio que Deleuze exerce sobre ele mudará sua vida: "Um dos professores que mais me influenciaram foi Gilles Deleuze, que me dava aula de filosofia. Pela mobilidade e leveza de seu pensamento, pela aparente facilidade de seu ensino, pelo interesse que tinha pelas coisas da vida (o esporte, a roupa, a comida, a história das técnicas ... ), esse rapaz de 24 ou 25 anos, que era antes um irmão mais velho do que um pai, me inspirou conflança. Com ele, a filosofia não era essa disciplina rígida que eu temia. Era o encontro, a fusão entre, de um lado, um aparelho conceitual, uma cultura com suas linguagens, suas técnicas de aprendizagem, suas explicações e seus encadeamentos, que se aprende em contato com gerações de pensadores, e, de outro lado, uma espécie de impulso secreto, de disposição do espírito a apreender, a conceber as coisas mais simples, as mais cotidianas e as mais fundamentais da 55 existência" • Imediatamente, Deleuze adota um estilo de ensino singular, abordando em um tom leve os problemas mais concretos dos

adolescentes, o esporte, o namoro, os animais, para em seguida elevá-los aos cimos da reflexão, apoiando-se em um repertório de autores clássicos da tradição filosófica. Nesse primeiro ano, ele tala de Espinosa aos alunos, mas Bergson também já ocupa um papel importante em seu ensino. Depois da aula, Michel Marie frequentemente acompanha o professor até em casa. Deleuze insiste para que ele faça um curso de filosofla. Entretanto, Michel Marie lhe confessa que quer ser padre operário: "Senti uma reação dura, que o fazia sofrer. Ele não tinha um discurso anticlerical, mas aclerical"56. Michel Marie seguirá efetivamente esse caminho, trabalhará mais de dois anos em uma fábrica, mas a bula papal condenando a experiência dos padres operários impedirá essa escolha. Então, tardiamente, ele seguirá os conselhos de Deleuze e irá se inscrever na Sorbonne em 1954, para se tornar urbanista no futuro e depois antropólogo. Outro aluno de Deleuze no liceu de Amiens, Claude Lemoine, será mais tarde diretor da FR3. Ele recorda de Deleuze no ano letivo de filosofia de 1951 e 1952, decisivo em seu curso: "Ele me transmitiu de imediato a necessidade 57 da filosofia' • Filho de advogado da boa burguesia da província, Claude Lemoine tinha um destino todo traçado: assumiria o escritório do pai no dia em que este se aposentasse. "Deleuze me disse: 1\.s coisas não podem ser desse jeito!"'53 O rapaz pede para ter uma conversa com o pai: este consente, sem entusiasmo, e finalmente acaba se convencendo: o filho estudará fllosofia em Paris. Claude Lemo in e tira 19 em filosofia e recebe felicitações de Deleuze através de uma carta. Essa atenção dedicada aos alunos que manifestam interesse e competência em filosofia é absolutamente excepcional, e não se limita ao ano letivo. Quando Claude Lemoine chega a Paris, fica um pouco perdido na capital. Deleuze propõe que fique na casa de sua mãe, na Rue Daubigny, se não tiver outro lugar onde se instalar. Claude Lemoine ingressa no curso superior de letras do liceu Louis-le-Grand e faz um curso de filosofia na Sorbonne. Como não deseja lecionar, acaba optando, para grande

92

Cilles Deleuze & Félix Cuattari

Dosse

desespero de seu mestre, pelo jornalismo e ingressa da Associação Geral de Imprensa. Para demonstrar a importância que Deleuze e a filosofia tiveram para ele, Lemoine e sua mulher darão o nome de Gilles ao filho mais velho e de Sotla à filha, o que dá "Gillesofia' em forma de homenagem e reconhecimento. No final de 1952, Deleuze é nomeado para o liceu de Orléans, onde lecionará até 1955. Ele geralmente iniciava suas aulas com alguma facécia à qual dava a aparência de verossímil. Sempre lhe aconteciam histórias no trem vindo de Paris, e os mais variados incidentes se passavam no ônibus que o conduzia da estação de Orléans à estação de Aubray, um trajeto de apenas dez minutos que logo se tornou um concentrado de desventuras, como aquela já relatada por um de seus alunos, Alain Roger: "Levaram minha valise ... Um engano ... uma terrivel confusão ... no ônibus de Aubrais ... Então, imaginem vocês, abro minha valise no hotel, e o que é que eu vejo? Colgate, Palmolive, essas coisas ... Um representante comercial... Lembro de!é. todo apressado ... um senhor gordo ... Um belga, sem dúvida. Todos enormes numas casinhas pequenas ... Como vocês querem que eu dê aula com dentifrícios e cremes de barbear? Por outro lado, o senhor gordo ... quando ele abrir minha valise ... diante de todos os seus clientes ... o que é que ele vai lhes mostrar? A Crítica da Razão Pura ... e minha aula sobre o transcendentaL. nada disso é vendáveL Ele vai perder seu ganha-pão, eu me sinto maL Enfim, vou pelo menos tentar lhes dar aula ... "59• Após esse preâmbulo, a aula pode começar. Deleuze tira um papel do bolso, desdobra-o lentamente e fica segurando na mão, sem jamais consultar. Dá a impressão de improvisação, mas se sabe, e voltaremos a isso, do cuidado meticuloso com que preparava suas aulas. Dando a impressão de estar no mesmo nível que seu público, de não ter preparado nada e de ser pego desprevenido, ele finge estar perturbado diante das questões que coloca a si mesmo em voz alta: '1\h! O transcendental, o que é isso? Kant diz claramente que são as condições de P9~sibi!ídade ... Mas, por que cha-

mar isso de transcendental? ... Não sei, não sei mesmo". Pouco a pouco a decantação se opera, as linhas do problema se desenham, as artlcu~ lações tornam luminoso o discurso: "Ele pro~ cedia por repetições sob ângulos diferentes, praticando uma espécie de perfuração em espiral"60. Assim como em Amiens, Espinosa é o que mais se discute em suas aulas em Orléans: "Ele comentou o início da Ética durante três 61 ou quatro meses" . Também abre um espaço não desprezível à psicanálise e já a Lacan, com uma aula sobre ')\,oposição Lagache/Lacan". No último ano que lecionou em Orléans, Alain Roger é interno do hypokhâgne. O trabalho de Deleuze se divide então entre três classes: uma do último ano do ensino médio, hypokhâgne e duas horas de ensino khâgne. A classe de letras é constituída essencialmente de moças, boas alunas que, em sua maioria, não têm a intenção de se preparar para a ENS, mas que estão lá para fazer seu curso prepa~ ratório antes de ingressar na universidade. O magnetismo de Deleuze será decisivo para o futuro de Alain Roger. Nesse final de novembro de 1954, seu moral está baixíssimo. Inscreveu~se em letras por pressão dos pais tinha obtido menção honrosa em filosofia no concurso geral, mas acaba de ter uma série de avaliações desastrosas, e, para completar, seu professor de latim lhe dá uma nota negativa: 7/20! Essa situação reforça sua ideia de que não tem nada a fazer ali, que os pais se enga~ naram. Quanto a ele, sua paixão é a bicicleta, da qual pretende fazer sua profissão. Seu llel corcel da marca Stella está só esperando por ele na casa da família em Bourges, e Alain está muito decidido a abandonar o universo confinado das letras para voltar ao ar livre que sopra nas estradas do Berry e se inscrever no clube de ciclismo profissional do local. Nascido em 1936, Alain Roger idolatra Louison Bobet e só tem um sonho: ganhar uma etapa do Tour de France depois de haver deixado Fausto Copi no Tourmalet. "Um sonho que jamais realizei 62 por causa de Deleuze" • Ê nesse estado de espírito que ele assiste prostrado à última aula da semana. Larga a ca-

neta e contempla o vazio, desvairado, uma bicicleta na cabeça. Isso não escapa à perspicácia de Deleuze, que, vendo o aluno se esquivar rapidamente no fim da aula às l 1 horas, aborda-o no corredor e pede que não vá embora. Alain Reger lhe explica as razões de seu desinteresse, e Deleuze tenta elevar seu moral: "Comigo vai melhor?". Na verdade, o aluno havia obtido lJ em filosofia: "Então, responde Deleuze. 11 + (-7), dá quanto? Quatro, isso deve dar 4, já é menos pior". Alain Roger diz que quer se tornar ciclista profissional. D:leuze o leva então à biblioteca do liceu, e Alam Roger 0 segue um pouco encabulado, não ousando contradizê-lo, mas também se mantendo firme em suas intenções. Deleuze tira três obras das estantes da biblioteca: as Entrevistas, de Epicteto, a Ética, de Espinosa, e a Genealogia da Moral, de Nietzsche. Seleciona alguns capítulos desses três livros e manda o aluno preparar uma exposição para a terça-feira seguinte: "Você vai procurar o centro de gravidade desse triângulo, a intersecção de três medianas, é taciJ". A linha de fuga é cortada, e o fim de semana na casa dos pais comprometido. Alain Roger precisa flcar para preparar essa exposição a contragosto, mas ninguém contesta Deleuze. Pois bem, o mergulho nesses três textos conseguiu convertê-lo definitivamente, pois ele irá se tornar professor de fllosofia na Universidade Blaise-Pascal de Clermont-Ferrand de 1967 a 2004. Ele se pergunta então "como Deleuze podia prever que esses três nomes seriam, durante meio século, meus autores preferidos'.63. Esse triângulo ético, cuja exposição durará mais de uma hora, irá se tornar de fato a matriz da nova vocação. Alain Roger se vê bombardeado de exposições o ano todo e não deixa mais o internato para honrar a confiança daquele que se tornou mais que um professor, seu mestre espiritual. Deleuze se incumbe dele e o submete a um programa de leituras para quatro anos, cujos progressos acompanha regularmente: "E então, o Sofista, está avançando?"; "E então, essa teoria da percepção pura em Bergson, você gostou?". A "terapià' funciona, e aquele que

93

queria se tornar ciclista passa de 9/20 em filosofia no início do ano para 16/20 antes das férias de verão. A primeira prova do ano, que lhe vale um modesto 9/20, trata do seguinte tema: "O que é o desejo?", e a apreciação geral revela a vontade do mestre de tirar o aluno de sua subordinação a Sartre: "Qualidade mosófica incontestáveL Muita esperança, mas para conseguir realizá~las precisará renunciar a Sar-

tre, pelo menos por um ano. Você voltará a ele depois, e de outra forma. Será preciso ler Platão e Kant e compreender Sartre a partir daí, e não o inverso. Senão você ficará bloqueado e não conseguirá progredir. De certa maneira, é o momento de partir do zero, não que você já não tenha feito uma boa aquisição, mas é nessa condição que sua aquisição de filosofia

ganhará sentido e irá se desenvolver"M. O mestre o e aluno deixam juntos Orléans. A partir de 1955, Deleuze é nomeado para o liceu Louis-Ie-Grande, em Paris, onde lecionará até )957. Quanto a A!ain Roger, entra na classe preparatória no liceu Henri-N, bem ao lado. Suas relações passam a ser então de amizade. Sabendo que ele está na penúria em Paris, numa falta de dinheiro terrível, Deleuze o leva ao restaurante com frequência, mas, como ele próprio não dispõe de muitos recursos nesse meado dos anos de 1950, lhe diz: ''A gente vai 65 comer dois ovos fritos" • Em 1956, mais urna vez, o apoio de Deleuze se revela decisivo para Alain Roger, que fica doente: 'No inverno de 1956, fui vítima de uma pleurisia, que me reteve na enfermaria do liceu durante longas semanas, onde, apesar de tudo, eu tentava trabalhar. Gilles veio me visitar e, se não fosse ele, talvez 66 eu tivesse capitulado diante da ad vers1'd ade" . Na classe preparatória, durante o ano escolar de 1955 e 1956, Deleuze tem na sua turma aquele que será mais tarde diretor da revista Positif, Michel Ciment, e François Regnault, futuro filósofo althusseriano. Michel Ciment, que na época escreve um diário, recorda de ter anotado várias vezes: "Que aula incrível!". Ele não entende seus colegas, preocupados em não fazer o curso de maneira mais clássica. Contudo, Deleuze nunca foi afrontado: "Ele era

94

Gilles Deleuze & Félix Guattari

Fra,ncn•is Dosse

adorado por todo mundo"'''. Ele então dá uma aula sobre a questão do fundamento: "O que é fundar?", apoiando-se sobretudo em Heidegger

e em Leibniz, autores particularmente difíceis para alunos que acabaram de sair do baccalauréat, e esse tema o faz remontar também à antiguidade grega: "Ele nos tinha feito ler um livro que me marcou muito, Da Tirania de Xenofonte, lançado pela Gallimard com um prefácio de KojCve e a correspondência trocada entre Ko-

j€ve e Leo Strauss"li~. Ele também consagra sua aula a um comentário de f"édon, de Platão.

Outra incongruência para os alunos da classe preparatória é que Deleuze fala muito de literatura, de Proust, de Rousseau, mas também de Claudel, cuja obra O Sapato de Cetim está no programa de letras; comenta com eles Proteu, que considera uma peça belíssima de Claudel. Evoca também Ambrose Bierce, suas

histórias monstruosas e particularmente o conto ''óleo de cão" e, ignorando as barreiras entre as literaturas, aconselha vivamente os alunos. a ler certos romances policiais da série Noire da Gallimard. Ele escreverá mais tarde que "um livro de mosofia deve ser em parte uma espécie muito particular de romance policial"69. Além da literatura, Deleuze é apaixonado por cinema e comenta alguns filmes em aula, fascinado particularmente por aqueles que põem monstros em cena, e que convida os alunos a ir ver. Michel Ciment, já um fanático por cinema, que está sempre correndo entre o Louis-le-Grand e a cinemateca da Rue d'Ulm, é convidado por Deleuze para jantar no Balzar: "Eu tinha 18 anos e ia ver as retrospectivas de Keaton, Bergman, Stroheim ... e a gente falava de cinema. Ele já era muito cinéfilo e gostava muito de}erry Lewis. E também gostava muito 70 de Stroheim'' • Tudo em seu discurso mostrao desejo de eliminar as fronteiras entre os gostos e os saberes. Ele já fala de animais, dizendo-se fascinado pelos rinocerontes. Quanto à música, afirma ser tão apaixonado por Edith Piaf quanto por Mozart, "nos dizendo que temos o direito de julgá-los igualmente belos"n Deleuze possui uma espécie de autoridade natural, não .Ji',esponde a nenhuma provocação •I





e por isso nunca perde a calma. Por causa de suas unhas compridas e de seu tom afetado, um aluno o chama de "pederasta", e ele atende: "Sim, e então?''. Outro aluno, militante marxista muito "stalinizado", urn tal Fussmann, tinha escrito em sua dissertação de filosofia que "o professor de filosofia é um lacaio da burguesia, estipendiada pelo capitalismo". Ao lhe devolver a prova, Deleuze lê a passagem para a classe e comenta: "Primeiro flquei vermelho. Depois fiquei pálido .. :·, e seu aluno François Regnault, fascinado, sabe muito bem o quanto isso o fazia rir. Para desanuviar a atmosfera, ocorreu-lhe tazer a classe jogar o jogo do cadavre exquis"'. Cada um escreve uma palavra na borda de uma folha de papel, dobra e passa para o próximo, e Deleuze anota no quadro o poema que resulta dali. O nome do poema é "O nabo cívico" e co~ meça assim: "O avermelhado. Ela gozou, grande mosca ..:·: 'Ainda éramos um pouco meninos de colégio, e Deleuze comentou o poema no quadro, deixando todo mundo deslumbrado com seu comentário. Ao mesmo tempo, isso nos livra de ter de descobrir o que o autor quis 72 dizer" • Sobre a questão da sexualidade, um campo ainda tabu na época, ele demonstra uma certa audácia. Freud e a psicanálise têm lugar garantido em seu curso de fllosofia, fato raríssimo em 1955. Quando aborda as relações homens/mulheres, refere-se ao desejo de "encontrar um parceiro sexual", longe da ideia sentimental do grande amor. Quanto à homossexualidade na Antiguidade grega, ao contrário dos comentários da Sorbonne sobre Platão, que ainda evitavam o assunto, "[o] de Deleuze nesse momento era: 'Não fiquem chocados, o pederasta grego não tem nada a ver com o que vocês pensam. Isso era absolutamente normal no mundo grego. Eis a diferença com Proust, que mostra o pederasta enrustido'. Nessa época, ninguém mais teria a audácia de dizer isso'm. Em 1956, a vida privada de Deleuze encon· tra-se em um momento decisivo. Ele conheceu

por intermédio de Michel Tournier o galerista Karl Flinker, e através deste último uma certa Fanny Grandjouan, que trabalha com o costu· reiro Pierre Balmain. Ela se torna sua mulher em agosto de 1956. A cerim6nia religiosa foi realizada na basílica Saint-Léonard de Noblat, onde fica a propriedade da família de sua es· posa, e que se tornará seu local privilegiado de trabalho, no centro de Limousin, na cida· de natal de Poulidor. Deleuze escreve algumas palavras ao seu orientador de tese, Maurice de Gandillac: "Foi uma bela festa. O casamento é um estado arrebatador, já era tempo de eu saber. Sob o olhar severo de Fanny, Balmain teve um ataque de fúria. A senhora Alquié nos apoiou nessa prova de uma maneira deliciosa .. :'74. Após uma breve passagem por Champigny, em um conjunto habitacional bem triste, Deleuze e sua esposa se instalam no 15º Distrito de Paris, Rue des Morillons - a rua dos objetos perdidos, perto do abatedouro - em um pequeno apartamento reformado pela fa· mflia Grandjouan. Nesse ano de 1956, ele visita com frequência Maurice de Gandillac, e não se limita a uma troca meramente filosófica com seu orientador de tese. As duas filhas de Gandillac têm verdadeira adoração por ele, que lhes conta histórias sempre mais extravagantes de um certo senhor "Cretino", de quem ele diz ser vizinho no hotel do Quai d:Anjou. O humor já é um dos traços distintivos de Deleuze, sem dúvida uma maneira de mascarar seus sofrimentos físicos e psíquicos.

Notas 1. Michel Tournier, entrevista com o autor. 2. jean-Pierre Faye, entrevista com o autor. 3. Claude Lemo in e, entrevista com o autor. 4. D!bécédaire de Gilles Deleuze (1988), 3 cassetes, ed. Montparnasse, Arte Vidéo, 1997;

reed. DVD, 2005 (doravante citado A). 5. Ibid. 6. René SCHÉRER, Regards sur Deleuze, Kimé,

*N. de T.: Literalmente, "cadáver delicioso", um dos jogos inventados pelos surrealistas para aumentar o repertório imagétíco e onírico de seus participantes.

Paris, 1998, p.12. 7. Gilles Deleuze, curso em Paris-VIII, 3 de junho de 1980, arquivo sonoro, BNF.

95

8. Gilles Deleuze, A

9. Jbid. 10. lbid. 11. J\lllchel Tourníer, entrevista com o autor.

12. Michel TOURNIER, Le Vent Paraclet, Gallimard, co!. "Folia", Paris, 1977, p. 155. 13. Marc-Alain DESCAMPS, Marie-Magdeleine Davy ou la Liberté du dépassement, Le miei de la pierre, 2000, p. 97. 14. Maurice de Gandillac, entrevista com o autor. 15. "Présentation",Espace, n. 1, 1946, p. 11. 16. Gilles DELEUZE, "Du Christ à la bourgeoisie", ibid., p. 93. 17. lbid., p. 97.

18. Ibid., p. 105. 19. lbid., p. 106. 20. Michel Tournier, entrevista com o autor.

21. íVlichcl TOURN1ER, Le Vent Paraclet, op. cit., p. 160. 22. Michel T0Ufu\11ER, Célébrations, Gallimard, col. "Folia", Paris, 2000, p. 425. 23. Gilles DELEUZE, "Description de la femme. Pour une philosophie dftutrui sexuée", Poésie 45, n. 28, out.-nov. 1945, p. 28-39. 24. Ibid., p. 33. 25. lbid., p. 32.

26. Michel TOURNIER, Le Vent Paraclet, op. cit., p.

160. 27. Gilles DELEUZE, ''Du Christ à la bourgeoisie", Espace, 1946, p. 93-106; "Dires et profils", Poésie47, 1947. 28. Gilles DELEUZE, "Jl a été rnon maitre", Arts, 28 de novembro de 1964, p. 8-9; reproduzido em ID, p.l09-113.

29. Ibid., p. 110. 30. lbid., p. 112. 31. Gilles Deleuze, citado por Giuseppe BIANCO, "Jean Hyppolite et Ferdinand Alquié", em Stéphan LECLERQ (sob adir.), Aux sources de la pensée de Gilles Deleuze, Sils Maria, Mons,

2005, p. 92, nota 2. 32. Jean-Pierre Faye, entrevista com o autor. 33. Kostas AXELOS, Vers la pensée planétaíre, :Minuit, Paris, 1964.

34. Gilles DELEUZE, "En créant la pataphysique jarry a ouvert la vaie à la phénoménologie", Arts, 27 de maio a 2 de junho de 1964, p. 5; reproduzido em ID, p.!OS-108. Gilles DELEUZE,

96

Dosse

"Un précurseur méconnu de Heidegger, Alfred jarry", Critique et clinique, Minuit, Paris, 1993, p. 115-125 (doravante cítado CC). 35. lbid., p. 115.

54. Michel Marié, entrevista com o autor. 55. Nlichel MARIÊ, Les 1'erres et les Mots. Une tra-

36. lbid., p. 123. 37. Serge REZVANL Le Testarnent amoureux, Stock, Paris, 1981, p. 124. 38. Ibid.. p. 126. 39. Olivier Revault d'Allonnes, entrevista com o autor. 40. François CHÂTELET, Chronique des idées perdues, Stock, Paris, 1977, p. 46. 41. Olivier Ravault d'Allonnes, entrevista com o autor. 42. Ibid. 43. Olivier Revault dAllonnes, entrevista com o autor. 44. lbid. 45. J\!lichel TOURNIER, Le Vent Paraclet, op. cit., p. 162. 46. Michel Tournier, "Gilles .Deleuze: Avez-vous eles questions à poser?", France Culture, programa de Jean Daive, 20 de abril de 2002. 47. Alain Aptekman, entrevista com o autor. 48. Serge REZVA.l"\JI, Le Testament amoureux, op. cit.,p.219. 49. Gilles DELEUZE, introdução a Dr. Jean NIALFATTI DE MONTEREGGIO, Études sur laMathk.se, éd. Du GriffOn d'or, Paris, 1946. 50. Ibid., p. YJ. 51. Ibid., p. XV. 52. lbid., p.XX. 53. Gilles DELEUZE, introdução a DIDER01; La Religieuse, éditions Mareei Daubin, Paris, 1947.

56. 57. 58. 59.

versée des sciences socia!es, Méridiens-Kiincksieck, Paris, 1989, p. 82.

60. 61. 62. 63. 64.

65. 66.

67. 68.

69. 70. 71.

72. 73. 74.

Ibid. Claude Lemoine, entrevista com o autor.

6

Ibid.

Alain ROGER, "Gilles Deleuze et 18.mitié", em Yannick BEAUBATIE (sob adir.), Tombeau de Gilles Deleuze, Mille Sources, Tulle, 2000, p. 36. Alain Roger, entrevista com o autor. Ibid. Alain Roger, entrevista com o autor. lbid. Gilles Deleuze, comentário ela dissertação de Alain Roger de 26 de outubro de 1954, passado por Alain Roger. Gilles Deleuze, fala relatada por Alain Roger, entrevista com o autor. Alain ROGER, "Gílles Deleuze et l'amitié", em Yannick BEAUBATIE (sob adir.), Tombeau de Gilles De!euze, op. cit., p. 40 François Regnault, entrevista com o autor. :Nli.chel Ciment, entrevista com o autor. Gilles DELEUZE, Différence et répétition, PUF, Paris, 1968, p. 3. Michel Ciment, entrevista com o autor. François Regnault, entrevista com o autor. Ibid. François Regnault, entrevista com o autor. Gilles DELEUZE, carta a Maurice de G.AJ."\1DILLAC, Le Siecle traversé. Souvenirs de neuf décennies, Albin Michel, Paris, 1998, p. 357.

A arte do retrato

Deleuze explicou isso várias vezes. Ele se lançou em seu próprio trabalho filosófico a partir de monografias de autores. Costuma-se separar sua obra em dois períodos: o das publicações clássicas sobre os grandes autores da tradição - Hume, Bergson, Nietzsche, Espinosa, etc. e o de sua obra pessoal, mais tardia. O próprio Deleuze induz a essa leitura em O Abecedário, quando compara o ato de filosofar com o ato de pintar. Da mesma manei~ ra como Van Gogh começou pelo retrato antes de se dedicar à paisagem, o filósofo deve antes de tudo se empenhar em restituir a singularidade dos pensadores que o precederam para, uma vez nutrido e mais bem armado com o pensamento de outro, se lançar em um trabalho de criação pessoal. Antes de se tornar um colorista à Van Gogh ou à Gauguin, o filósofo também deve passar pela "cor batata, cores de terra, sem nenhum brilhd' 1• Deleuze prossegue alertando contra aqueles que teriam a pretensão de dispensar essa fase iniciática: "É necessário esse trabalho de história da filosofia, é essa lenta modéstia. É preciso fazer retratos por muito tempo" 2, Contudo, o esquema de um percurso tranquilo em dois tempos complementares é contestado com muita veemência pelo próprio

Deleuze, que, em 1973, não encontra palavras suficientemente duras para expressar sua rejeição a uma história da filosofia: "Sou de uma geração, uma das últimas gerações que foram mais ou menos assassinadas com a história da filosofia ... Na minha geração, muitos não escaparam"3. Como conciliar esse paradoxo, uma vez que essas afirmações, uma de 1973 e a outra de 1988, são ambas posteriores à sua emancipação da história da filosofia? Pode-se considerar que Deleuze escapou dessa contradição aparentemente servindo à história da filosofia, mas instalando verdadeiras minas explosivas sob o pedestal de cada um dos modelos intelectuais: "Minha maneira de escapar nessa época, eu acredito, era conceber a história da filosofia como uma espécie de sodomia ou, o que dá no mesmo. de concepção imaculada. Imagino-me chegando por trás de um autor pelas costas e lhe fazendo um filho, que seria seu, mas que seria monstruosd' 4• Essa atitude suscita multas reservas por parte dos autores visitados e fecundados por Deleuze e mesmo em muitos de seus próximos que dizem não compreender isso. Para aqueles que consi~ deram que Deleuze trai os autores sobre os quais escreve monografias, ele teria aparecido

98

Fr~mçoís Dosse

mascarado até desvendar seu próprio sistema filosófico em 1969, com a dupla publicação de Diferença e Repetição e de Lógica do Sentido. Na verdade, parece que Deleuze leva ao seu paroxismo aquilo que julga ser o melhor e o mais autêntico no pensamento dos autores do qual se faz porta-voz em um procedimento que segue mais ou menos a lógica endógena de seu pensamento, à maneira de um Martia! Guéroult, cujo rigor ele admirava muito. Ao mesmo tempo, ele sempre se situa a uma distância que lhe permite oferecer uma visão singular. Essa tensão o conduz a revitaiizar tradições que de um golpe são metamorfoseadas e rejuvenescidas. Nessa primeira fase, até 1969, Deleuze é movido pela preocupação de respeitar a originalidade de cada autor, de descobrir os problemas que tentou resolver. Esse entrelaçamento em que evolui ü:rz dele um filósofo que cultiva ao mesmo tempo uma arte da distinção, uma sede de criação pessoal e um desejo de ruptura com o prêt-à-penser (pronto para pensar). Ao mesmo tempo, ele se inscreve na linha de uma tradição francesa cuja originalidade reside na singularidade de cada interpretação e em um modo de intervenção "mais problemática que 5 doxográfica, mais conceitual que erudita" • Muitos, incluídos seus amigos, o qualificaram de "dândi", não por seu chapéu ou pelas unhas compridas, mas por sua arte de ser inoportuno e por desenvolver um pensamento sempre in~ tempestivo: "A originalidade de Deleuze está ... em ter~ se colocado muito cedo numa posição de ruptura com todas as tendências contemporâneas que agitavam a nós, estudantes: antes de tudo o marxismo e a fenomenologia. Na contracorrente, com um dandismo - tanto intelectual quando nos trajes e na postura 6 reconhecido por todos" • Ele está plenamente convencido de que exumar Hume no clima intelectual dos anos 1950, dominado pelos "três H" (Hegel, Husserl, Heidegger), é coisa de urna arte consumada do contraponto. Deleuze volta à carga quando lança em 1961 uma leitura destinada a marcar a importância de Sacher-Masoch, em plena onda de Sade.

Gilles Deleuze & Félix Guattari

Olhando mais de perto, pode-se afirmar também, como Giuseppe Bianco, que Deleuze, no essencial, retomou os autores abordados por seus professores. De fato, na universidade de Strasbourg, Jean Hyppolite havia consagrado seu curso de 1946 e 1947 a Hurne, o de 1947 e 1948 a Kant e o de 1948 e 1949 a Bergson. Entre 1949 e 1950, Hyppolite dedica quatro ar7 tigos a Bergson , cuja particularidade, na qual Deleuze irá se apoiar, é reduzir a dimensão psicológica da obra de Bergson para destacar melhor sua natureza ontológica. Ferdinand Alquié, orientador da tese secundária* de Deleu~ ze sobre Espinosa, havia dado duas aulas sobre esse autor em 1958-1959. Quanto a Jean Wahl. bastante aberto à filosofia anglo-saxã da qual foi um grande divulgador na França, foi ele, sem dúvida, que convenceu Deleuze a exumar Hume. Além dessa abertura internacional, Jean Wahl dá duas aulas sobre Nietzsche entre 1958 e 1959 e entre 8 1960 e 1961 Jean Wahl desempenha um papel igualmente inspirador para Deleuze na reabilitação da obra de Bergson. É de fato Jean Wahl, ex-aluno de Bergson a quem ele dedicará sua tese, que introduz este último na universidade, consagrando-lhe algumas de suas aulas. Como introdutor para Deleuze ao mesmo tempo de Hurne, da literatura anglo-saxã e de Bergson, desempenhou um papel fundamental em sua formação. Isso é atestado por uma carta que ele escreve muito mais tarde, em 1972: "O senhor me pergunta se pode utilizar meu ponto de vista sobre Jean Wahl no livro que está escrevendo. Com certeza. Esse ponto de vista é de total admiração. A importância de Jean Wahl para minha geração foi: l. Por ter trazido ao nosso conhecimento um número incrível * N. de R. T.: No origínal: Doctorat. Para obter-se um doutorado em filosofia. na França. como uma "norma gerar exige-se trBs teses: a principal que ocupa a maior parte do corpus de pesquisa, uma secundária e uma complementar que, via de regra, são extensões da principal. Evetualrnente pode-se escolher diretores diferentes para as diferentes teses, por exemplo, para G. Deleuze, Maurice de Gandillac foi o promotor da tese principal e Fernand Alquíé o de sua tese secundária.

de pensadores, por torná~los vivos, introduzindo-os na França, trate-se de Kierkgaard ou de Whitehead. É espantoso como os livros de Jean Wahl dominam tudo o que foi feito depois. Ele sacudiu completamente a filosofia francesa. 2. Seu tom, seu humor, sua autoironia. e sobretudo por seu estilo, ele acaba realmente com qualquer divisão entre filosofia e poesia, muito mais que Bachelard, que permanece no nível de um comentário sobre a poesia ou fantasia, prolongando-a. Jean Wahl surge como um filósofo-poeta irredutível à filosofia. 3. Seu próprio pensamento e a própria atualidade de seu pensamento: foi ele quem comandou a reação contra a dialética quando Hegel dominou a universidade. Foi ele quem fez valer o peso da construção do 'E'. Foi ele o pensador da intensidade e igualmente da crítica da totalidade. Em tudo o que foi importante antes e depois da guerra, encontram-se as marcas de 9 Jean Wahl" •

Hume revisitado Em 1952, Deleuze tem a oportunidade de publicar uma primeira obra na coleção de seu amigo André Cresson, professor de classe preparatória, que dirige uma série de pequenos livros de iniciação filosófica no modelo "Vida e obra". Deleuze, que ficou seduzido com a leitura empirista de Descartes por Jean Laporte e com seu grande artigo sobre Hum e de 1933, elabora junto com André Cresson essa intro~ 10 dução a Hume • Os autores captam a essência da doutrina de Hum e em seu princípio de causalidade e em sua reflexão sobre as probabilidades: "FJe constata que a probabilidade tem regras, que alt,rumas proposições são mais pro~ váveis que outras"n. Embora o absoluto esteja fora de alcance, a ordem probabilística permite avançar alguns degraus no conhecimento. Deleuze se dedica ao mesmo tempo a preparar a publicação de sua tese de estudos superiores sobre Hume, defendida sob a dupla orientação de Hyppolite e de Canguillen. Como não sabe utilizar a máquina de escrever, é aju-

99

dado por seu vizinho e amigo no Hotel de la Paix, :Michel Tournier, que se torna na ocasião sua "força de dissuasão"*: "Ele não parava de me importunar, ou para que traduzisse páginas de livros alemães, ou para que datilografasse 12 seus próprios manuscritos" • Resultado: o autor não reconhece mais seu texto. Depois que datilografo, ele o vê tristemente encolhido e suspeita de alguma amputação. Essa suspeita é atestada pela dedicatória pessoal que escreve no exemplar do livro oferecido ao seu amigo Tournier: "Para Michel, este livro que ele datilografou, e também criticou, achincalhou duramente, e talvez tenha até diminuído, porque tenho certeza de que era mais grosso, mas que é também um pouco seu, na medida em que lhe devo muito (não por Hume) em filosofia'. A obra é publicada em 1953 com o título Empirismo e Subjetividade. É dedicada por Deleuze ao seu ex-professor Jean Hyppolite, fundador e diretor da coleção "Épiméthée", 13 que acolhe a obra • Esse livro é totalmente anacrônico: Hegel, que está no programa da agrégation em 1946, denunciou energicamente o empirismo, que também sofreu críticas veementes de Husserl. Esse estudo inspira~se amplamente nas teses críticas de Jean Wahl contra o hegelianismo. Por trás da apresentação das teses de Hum e, já se percebe a singularidade da abordagem deleuziana, que consiste em situar em primeiro plano o problema que o autor tenta resolver, isto é, em formular a pergunta certa: "Uma teoria filosófica é, na verdade, uma pergunta desenvolvida, e nada mais: por si mes~ ma, nela mesma, ela consiste não em resolver um problema, mas em desenvolver até o limite as implicações necessárias de uma pergunta 14 formulada'' • Descobre-se o que será a linha metódica constante de toda intervenção de Deleuze em uma carta enviada muito mais tarde, em 1986, a Arnaud Villani, em que define o que é para ele um livro útil de filosofia: "Creio *N. de T.: A expressão "force de frappe" presta-se aqui a um jogo de sentido, pois "frappe" significa também a ação ou manei!'a de datllografar.

100

Gilles Deleuze & Félix Guattari

Dosse

que um livro, para que mereça existir, pode ser representado em três aspectos rápidos. Apenas se escreve um livro digno: L quando se acredita que os livros sobre o mesmo tema ou

sobre um tema próximo incorrem em uma espécie de erro global (função polêmica do livro); 2. quando se acredita que algo de essencial foi esquecido sobre o tema (função inventiva); 3.

quando se julga capaz de criar um novo conceito (função criadora). Naturalmente, esse é o mínimo quantitativo: um erro, um esquecimento, um conceito ... Assim, eu pegaria cada um de meus livros, abandonando a modéstia necessária, e me perguntaria: L que erro pretendeu combater?; 2. que esquecimento quis 15 reparar?; 3. que novo conceito criou? .. :' • Aplicando-se a ele seus próprios critérios de avaliação, pode-se dizer que essa obra sobre o empirismo de Hume se justifica por várias razões. O contrassenso praticado pela tradição filosófica e combatido por Deleuze seria considerar o sujeito como um dado natural e não distinguir bem o atomismo e o associacionismo. A falha a suprir, o esquecimento, visaria a noção essencial da construção, a instituição. Quanto à novidade, ela "consistiria na possibilidade de uma ciência da natureza humana, substituindo uma psicologia do espírito por 16 uma psicologia das afeições" • No caso de Hume, a pergunta é: "Como o 17 espírito se torna uma natureza humana?" • E Deleuze restitui a originalidade da resposta de Hum e. Ela reside na afirmação segundo a qual o espírito não preexiste aos seus conteúdos, que ele é fortemente tributário da travessia da experiência. Dessa primeira pergunta decorre uma segunda, essencial e que se coloca de imediato: "Corno o espírito se torna um sujeito'?"18 Segundo Deleuze, Hum e permite deslocar a pergunta clássica que explica tudo pelo sujeito, ao passo que a tarefa do filósofo deve ser a de elucidar seu funcionamento. Hume é definido por Deleuze como um pensador da prática, um moralista, um pensador político, um historiador. O que é que funda 19 a moral segunQ.~ Hum e? "É a simpatid' • Esse impulso afetivo" porta uina parcialidade que é

preciso assumir: "Uma das ideias mais simples de Hume, mas também das mais importantes, é: o homem é muito menos egoísta do que parcial'20. Por outro lado, Hum e nos apresenta um sujeito que jamais é dado, mas sempre construído. Ele já não é fonte de explicação, mas o que deve ser explicado: "A filosofia de Hume 21 é sempre teoria da prática" . A razão está na órbita da paixão e, portanto, é tributária da contingência, da diversidade de situações, fundamentalmente variável de acordo com o momento. Hume enfatiza assim a inserção social do indivíduo, sempre ancorado em um pertencimento, fonte de sua paixão: "Deleuze encontra a essência do empirismo no problema da subjetividade, e o que faz o sujeito em Hum e é sua capacidade de crer e de inventar. a crença está na base do sujeito cognoscente, a invenção está na base do sujeito da moral e da política"'Hume se dissocia ainda do caráter excessivamente formalista, excessivamente abstrato, das teorias do contrato social como a de Rousseau. A questão não é tanto refrear os ardores egoístas, mas sim ampliar as solidariedades: "O problema moral e social consiste em passar das simpatias reais que se excluem a um todo real que inclui as próprias simpatias. Trata-se de ampliar a simpatia'm. Disso resulta uma teoria da instituição própria de Humel, que pretende fazer prevalecer a regra sobre a lei: "A principal ideia é esta: a essência da socieda24 de não é a lei, mas a instituiçãd' • As teses de Hume implicam, portanto, uma nova concepção do direito e uma nova definição da vocação de uma ciência do homem mais aberta a essas dimensões psicológicas e sociais. Essa redefinição de uma filosofia do direito interessa particularmente a Deleuze. Tal temática do direito como estreitamente articulado ao social, como codificação da jurisprudência, é uma ideia que continuará a se desenvolver e que ele retomará em 1988 em O Abecedário. O direito, para ele, não é uma limitação canônica e separada do socius, mas um processo permanente de invenção: "Nesse sentido, a concepção que Hume tem da sociedade é muito for-

te. Ele nos apresenta uma crítica do contrato que não somente os utilitaristas, mas também a maior parte dos juristas que se opõem ao direito natural, serão obrigados a retomar" 2 ~. Quando Dominique Séglard lhe perguntou por que havia dedicado seu mestrado a Hum e, Deleuze respondeu: "Por causa do direito. lviinha verdadeira vocação era o direito, a filosofia e 26 o direito" • Na época, é encorajado pelo jurista Maurice Hauriou para quem a instituição prevalece sobre o contrato. Essa referência é muito importante para ele se inserir em uma flliação de crítica interna ao pensamento republicano, que procura limitar o princípio da soberania. Deleuze acrescenta: "Eu estava procurando meu homem na classe preparatória. Alquié era Descartes e Hyppolite era Hegel. Mas eu detestava Descartes e Hegel'm. No mesmo ano da publicação de sua monografia sobre Hume, Deleuze publica na pequena coleção dirigida por Canguilhem uma coletânea de 66 textos escolhidos e apresentados por ele sobre o tema Instintos e Instituiçõei8. Deleuze manifesta ali todo o interesse de que se reveste a seu ver a dimensão da instituição que, segundo ele, está ligada, assim como o instinto, a um mesmo princípio de satisfação: "Que na instituição a tendência se satisfaça, não há dúvida: no casamento a se29 xualidade, na propriedade a avidez" . Nessa apresentação, Deleuze retoma a diferenciação entre lei e instituição, e se apoia na concepção defendida por Hume sobre a positividade que representa a instituição enraizada no social, diferentemente das teorias do direito natural, que rejeitam essa positividade reguladora fora do social, confinando o direito à sua dimensão negativa e limitativa: ''A tirania é um regime em que há muitas leis e poucas instituições, enquanto a democracia é um regime em que 30 há muitas instituições e pouquíssimas leis" • Antes da lei, a instituição impõe ao corpo do indivíduo e ao corpo social os modelos a partir dos quais a ação poderá se desenvolver e que leva a pensar que "o homem não tem instintos, é feito de instituições'm, Deleuze atribui a Hume a intuição segundo a qual todo debate

sobre a natureza humana tem a ver com a diferença entre instintos e instituições. Nada no homem decorre de algo natural, tudo é construção, está em elaboração. O homem não nasce sujeito, mas se torna sujeito. Portanto, o homem é impulsionado adiante, em direção a um futuro, a sua inserção singular na prática. O hábito e a repetição também participam desse processo produtivo. O sujeito e a subjetividade situam-se sempre no polo da criatividade: "Crer e inventar, eis o que faz o sujeito como sujeitdm. No plano do método, Deleuze saúda Hum e por ter distinguido a crítica transcendental que parte de uma certeza de essência e seu próprio procedimento, que provém de um ponto de vista imanente. Também aqui, Deleuze não deixará de seguir o ensinamento de Hume de permanecer em um plano de imanência. O que é então o sujeito? Em primeiro lugar, uma duração, um hábito: "O hábito é a raiz constitutiva do sujeitdm. Uma das grandes regras da prática reside nessa condensação temporal constituída pelas convenções, pelos costumes sociais. As relações são vistas por I-lume como sempre exteriores aos seus termos. Quanto à associação de ideias, ela esclarece apenas a fina película da consciência, a dos hábitos de pensamento, das considerações do senso comum, a doxa, mas não elucida as diferenças, o que só é possível mediante o recurso às circunstâncias: "Essa noção de circunstância aparece constantemente na filosofia de Hum e. Está no centro da história, torna possível uma ciência do particular, uma psicologia diferencial"". No âmago do empirismo de Hume, Deleuze encontra o princípio ao qual consagrará sua tese, o princípio da diferença: ':Assim, a experiência é a sucessão, o movimento de ideias separáveis na medida em que diferentes, e diferentes na medida em que separáveis. É dessa experiência que se deve partir, porque ela é a experiência. Ela não supõe nada 35 mais, nada a precede" , Sua tese encontrará ali sua fonte com a firme vontade de pensar a diferença por ela mesma e retornará as aquisições de sua monografia sobre Hume%.

102

Dosse

Gilles Deleuze & Félix Guattari

O empirismo de Hume contém em si uma filosofia da prática, um sujeito envolvido, inseparável do dado circunstancial. São as circunstâncias que afetam as paixões humanas e que permitem restituir a singularidade nos diversos campos da economia, do direito e da moral. Segundo Deleuze, julgam erroneamente Hume quando o acusam de ter pulverizado, atomizado o dado. Seu atomismo, assim como seu associacionismo, é o correlato de sua concepção do sujeito como se constituindo no dado.

Deleuze retomará sua leitura de Hume mais tarde, em 1972, para sua contribuição a uma História da Filosofia dirigida por seu 37

amigo François Châtelet • Ele insistirá ainda na originalidade do procedimento empirista de Hume que se apresenta como um mundo 38 de "ficção científica" , embora a pesquisa que sustenta esse procedimento se abra para o campo da prática e, portanto, da cotidianidade, O mérito de Hume foi ter sido capaz de perceber a-exterioridade das relações aos seus termos--e de ter rompido assim com o julgamento de atribuição. Quem lê essa caracterização de Hume em 1972 se pergunta se Deleuze não está qualificando sua própria ambição filosófica, Será que ele fez, segundo suas palavras, "um filho por trás" em Hume? O Hume de Deleuze é pelo menos o filho de um sistema filosófico concebido no século XVIII e de indagações sugestivas formuladas no século XX que renovam sua importância. Pode-se considerar, então, que a problemática de Hume formulada por Deleuze é "estranha ao vocabulário do 39 Hume histórico" • A contribuição de Deleuze foi reunir uma série de proposições esparsas de Hume em um conjunto coerente, sistemático, visando mostrar que a constituição do sujeito se opera a partir do dado da experiência. O empirismo de Deleuze não fica às margens de Hume, ele toma ali seu primeiro impulso, mas para radicalizar em seguida sua crítica da subjetividade. Arnaud Villani vê nisso a tentativa de tornar indiscerníveis o empirismo e a metafísica: "É por isso que, sem acrobacia nem ilusionismo, pode-se considerar Deleuze 0 metafísico e nebempiri~ta"~ •

Uma fase de latência Depois de sua obra sobre Hume em 1953, e até a publicação da obra sobre Nietzsche em 1962, Deleuze escreve um bom número de estudos e de resenhas, mas não um verdadeiro livro. Em uma entrevista com Raymond Bellour e François Ewald datada de 1988, ele se indaga sobre essa interrupção, sobre essa fase de latência: "Se vocês querem aplicar a mim os critérios bibliografia-biografia, vejo que escrevi meu primeiro livro relativamente cedo, e depois mais nada durante oito anos. Sei, no entanto, o que estava fazendo, onde e como vivia nesses anos, mas sei abstratamente, um pouco. como se outra pessoa me contasse lembranças em que acredito, mas que não vivi de fato. Ê como um buraco na minha vida, um buraco de oito anos. É isso que me parece interessante nas vidas, os buracos que elas contêm, as lacunas, às vezes dramáticas, ou às vezes não" 41 • Contudo, é nesses períodos de ausência que se produzem as mutações essenciais, que as forças em ação no movimento do pensamento exercem sua pressão, cujos efeitos costumam ser de retardamento. São momentos de decantação necessária para perceber melhor seu próprio caminho. Onde anda Deleuze nesse período'! Ele está exercendo então suas funções de professor de liceu em Orléans, entre 1953 e 1955, depois em Paris, no Louis-le-Grand, de 1955 a 1957. Esse é também, e sobretudo, o momento em que se torna assistente de história da filosofia na Sorbonne, entre 1957 e 1960. Está assoberbado com a preparação de suas aulas às quais sempre dedicou bastante tempo e atenção. Na Sorbonne, ele logo conhece um sucesso espetacular. Professor muito jovem nesse lugar venerável, ele oficia na sala Cavailles, quartas-feiras, das 14 às 15 horas: "Não apenas a sala .ficava cheia, como havia estudantes sentados no pequeno tablado em torno da mesa do professor. Outros tinham de ficar no corredor, e a porta era deixada aberta para que pudessem ouvir. No final da aula, às 15 horas, todos iam embora, e Raymond Polin,

que lecionava na mesma sala, ficava com apenas seis pessoas. Ele era louco furioso e detes12 tava Deleuze"' • Ele também dá uma aula no sábado pela manhã, às !Oh 30: "Era fascinante, eu estava subjugado. Ele tinha resposta para tudo e com reviravoltas surpreendentes, com uma visão completa tanto de Platão quanto de Espinosa, Kant ou Hegel", testemunha um de seus ex-alunos, Marc-Alain Descamps, vindo de Bordeaux para fazer seu curso de filosofia em Paris~ 3 . Segundo este último, Deleuze teria mencionado em suas aulas, desde essa época, a importância das raízes dos íris como possibilidades de formar rede, o que ele conceituará mais tarde com Guattari na forma de um novo paradigma: o rizoma. Na Sorbonne, ele consagra seu curso entre 1954 e 1955 a Aristóteles e a Hum e, frequentado por um futuro escritor que se tornará seu amigo, Rafael Pividal: "Era absolutamente notável, ele ainda era muito jovem e já tinha feito sua reputação entre os in44 contáveis estudantes que faziam seu curso'' • O curso de 1957 e 1958 atesta a importância que teve para ele Jean Wahl, de quem retoma as temáticas essenciais sobre diversidade, filosofias pluralistas, irredutibilidade do diver5 so e "uma filosofia do ET'' ". Entre 1959 e 1960, ele consagra seu curso ao Capítulo III de A 46 Evolução Criadora, de Bergson, e a Rousseau • Este último curso sobre Rousseau revela o interesse de Deleuze, já mencionado a propósito de Hum e, pela questão do contrato social, do direito natural em suas relações com o socius. Portanto, a dimensão prática e política do pensamento deleuziano, sempre reiterada mais tarde, já está presente em estado embrionário. Esse curso dará lugar, dois anos depois, a um pequeno prolongamento com uma publicação a propósito do 250º aniversário do nascimen47 to de Rousseau • Nessa evocação da obra de Rousseau, ele destaca como seu escrito mais significativo o Contrato Social. Seu maior ensinamento está no fato de que, para Rousseau, a separação dos poderes é um engodo, e que o legislativo, o poder da lei, é que prevalece. Mas o que se passa de essencial para Deleuze durante esses oito anos meio apagados?

103

Esse período parece constituir uma importante transição para sua relação com a história da fllosofia e para sua emancipação dos mestres. Institucionalmente, continua tributário de sua formação primeira, na medida em que o orientador de sua licenciatura, que deve acompanhá-lo em sua tese, é seu ex~ professor Jean Hyppolite. Quando este último é nomeado para a direção da ENS da Rue d'Ulm, Deleuze o substitui na Sorbonne, onde é encarregado do ensino de história da filosofia. Deleuze já sente o que chamará mais tarde de "aversão" ao hegelianismo e à sua dialética, mas ainda está a serviço dos grandes maciços do corpo filosófico e demonstra uma certa "timidez filosófica''4s, que o leva, por exemplo, a não men~ cionar em seu curso sobre Hum e a tese central de licenciatura defendida em 1947 e publicada em forma de livro em 1953, Empirismo e Subjetividade. Antes de mais nada, Deleuze está realizando sua progressiva emancipação, numa mescla de reconhecimento e ruptura com seus dois mestres, Ferdinand Alquié e Jean Hyppolite. Na época, Ferdinand Alquié é orientador de sua tese secundária sobre Espinosa, quase concluída nesse final dos anos de 1950. Ele é também, sobretudo, o grande especialista em Descartes, defensor fervoroso do dualismo contra todas as tentações monistas que identifica em Espinosa, Bergson, Hegel ou Marx. Segundo ele, apenas o dualismo pode permitir desenvolver uma metafísica em torno da distinção de objeto e sujeito. Nessa época, Deleuze partilha com seu mestre Alquié uma visão metafísica comum, na medida em que ambos acreditam que a realidade não se reduz absolutamente à sua representação. Em 1956, Deleuze dedica uma resenha a uma obra de Alquié sobre Descartes em que saúda seu mestre por ter ajudado tanto na compreensão da obra cartesiana e por ter evidenciado o fato de que seu pensamento "expressa a própria 49 essência da metafísica'' . Ele o segue também em sua apresentação da atividade filosófica de um Descartes que se descobre filósofo em um movimento de singularização "que o conduz a

104

Dosse

Gil!es De!euze & Félix Guattari

romper com os hábitos de seu meio, as lições de seus mestres, as tradições de sua família, 50 seu país, o próprio mundo objetivo" • Ninguém

duvida que Deleuze reconhece ali um caminho não traçado que delimita para si. Embora Deleuze dedique a Alquié sua obra sobre Kant em 1963, suas relações se deterioram rapidamente depois disso, e em 1967 Alquié critica seu ex-aluno por se extraviar nos meandros de um método estrutural que vira as costas à própria essência da filosofia, à metafísica e à questão do sujeito. Em 28 de janeiro de 1967, quando de uma exposição perante os membros da Sociedade Francesa de Filosofia sobre "O método da dramatização', Alquié critica Deleuze por ter condenado a pergunta "O que é?": "Lamento a rejeição, um pouco rápida, da pergunta O que é?, e não poderia aceitar o que ele nos diz no início, intimidando-nos um pouco, a saber, que nenhum filósofo havia feito essa pergunta, a não ser Hegel... Quando ele

chegou à verdade, disse a mim mesmo: enfim, eis um exemplo fllosófico! Mas esse exemplo logo se deturpou, pois Deleuze nos disse que precisávamos nos perguntar: quem quer a verdade? por que se quer a verdade? é o cioso que quer a verdade?, etc., perguntas muito interessantes, sem dúvida nenhuma, mas que não tocam a essência mesma da verdade, que talvez não sejam então perguntas estritamente filosóficas"51. Na resposta que Deleuze lhe dirige, sente-se que ele está muito abalado com esse ataque crítico. Depois de ter admitido que, de fato, numerosos filósofos colocaram a questão do "o que é'!", mas antes de tudo em forma de "como", ele se diz ferido pela crítica de ter abandonado um questionamento propriamente filosófico: "Pois acredito inteiramente na especificidade da filosofia, e essa convicção 52 eu a devo ao senhor" . Consuma-se assim a ruptura entre Alquié e seu ex-aluno. Um processo similar de desligamento de Jean Hyppolite se desencadeia nesse mesmo período. Depois de ter sido o coorientador, junto com Ganguilhem, da tese de licenciatura de Deleuze sobre Hum e, Hyppolite estava previsto para ser o orient,ador de sua tese principal que,

.,

·-

como ficou definido, deveria tratar da "ideia de problema'. Grande especialista de Hegel, Hyppolite é o tradutor de Fenomenologia doEspfrito, mas também aquele que abriu as teses hegelianas a um confronto permanente com a modernidade filosófica. Professor de Deleuze na classe preparatória, Hyppolite tinha a maior estima por seu aluno. Quando Deleuze não se candidata à ENS, Hyppolite lhe propõe que vá com ele para Strasbourg, para onde acaba de ser nomeado. Deleuze não vai para lá, mas obtém de seu mestre uma bolsa de agregação concedida pela Universidade de Strasbourg. Em 1954, Deleuze dedica uma resenha a Lógica e Existência, de Hyppolite, lançado pela PUF 53 em 1953 • Deleuze louva ali um distanciamento crítico do humanismo e o esboço de uma ontologia, contra a leitura de Hegel feita por Kojév, excessivamente antropológica. Essa reinterpretação de Hegel não deixa de estar ligada à entrada de Heidegger na França no mesmo momento, sobretudo após a publicação em !946 da Carta sobre o humanismo. Deleuze concorda com Hyppolite principalmente em sua definição do Ser como sentido, e não essência: "De uma certa maneira, o saber absoluto é o mais próximo, o mais simples, ele 5 está lá" ''. Se a ontologia abandona a essência, isso pressupõe a ausência de um segundo mundo, e, por isso mesmo, o saber absoluto não pode ser distinto do saber empírico. Contudo, Deleuze não adere totalmente às teses de Hyppolite e inclusive discorda radicalmente quando ele, de maneira muito hegeliana, considera que o Ser só pode ser idêntico à diferença quando ela é levada ao seu absoluto, que é a contradição. Já Deleuze, desde 1954, formula a hipótese essencial que estará no centro de sua futura tese, Diferença e Repetição, segundo a qual se trata de construir uma "ontologia da diferença que não teria de chegar até a contradição, porque a contradição seria 55 menos que a diferença, e não mais" • Trata-se, para ele, de substituir a leitura de Hegel por Hyppolite, que visa deslocar a ontologia para o Ser, por uma ontologia inteiramente voltada para a vida .

Em 1967, quando a ruptura se consuma, já faz um bom tempo que as relações entre Hyppolite e seu aluno estão degradadas. Deleuze tinha renunciado a Hyppolite para sua tese principal e escolhido Maurice de Gandillac. Segundo Alain Roger, um dos elementos que teria provocado uma situação irremediável entre eles, além de sua discordância teórica sobre Hegel, seria aparentemente o rumor de que Deleuze tinha certa propensão à homossexualidade. 'A senhora Hyppolite, Marguerite, muito pudica, teria praticamente forçado o 56 marido a despachá-lo" . Quando em 1959 François Regnault ingressa na ENS da Hue d'Ulm e participa das primeiras leituras de Marx em torno de Althusser, ele manifesta com alguns colegas, corno Pierre Macherey e Roger Establet, o desejo de convidar Deleuze: "Lembro muito bem que Hyppolite nos perguntou quem gostaríamos que viesse, e quando falamos em Deleuze, ele respondeu: 'Não, eu não querO. A gente nunca soube por quê"5'- Seja como for, o que se atestou foi o caráter ao mesmo tempo brutal e irreversível dessa ruptura. Deleuze não participará da Homenagem a Hyppo/ite publicada em !971, com edição de Michel Foucault, do qual ele era muito próximo na época. Não participará tampouco do volume dedicado a Alquié, lançado um pouco mais tarde, em 1982. Entre 1960 e 1964, Deleuze fica afastado do CNRS, e sua maior disponibilidade lhe possibilitará explorar livremente textos que não fazem parte do corpo clássico da história da filosofia, mas que atendem ao seu desejo de ligar a crítica e a clínica. O recurso literário torna-se então um objeto legítimo e mesmo privilegiado de sua reflexão filosófica. A oportunidade surge no início dos anos de 1960. Seu amigo Kostas Axelos prepara um número da revista Arguments sobre "O amor problemà'. Ele tinha recebido várias colaborações sobre Sade, mas nenhuma sobre Sacher-Masoch. E propôs a Deleuze. O texto, publicado em 1961, é o primeiro estudo de Deleuze sobre uma obra literária, que antecede seu Proust e é bem anterior ao seu Kafka"'. Ele atende ao pedido de Axelos

105

com enorme prazer, pois assim pode acabar com o entusiasmo intelectual por Sade, que tem como efeito reduzir Masoch ao estado de componente secundário do sadismo naquilo 59 que era chamado de sadomasoquismo • Essa intervenção de Deleuze é uma faca de dois gumes, pois não somente imerge na literatura como se afirma no campo da pesquisa da psicanálise num momento em que a popularidade de Lacan não para de crescer no campo intelectual francês. Desde 1961, muito antes de conhecer Guattari, Deleuze é instigado pelas categorias analíticas. Como explicou a Arnaud Villani, um livro deve sua utilidade a alguns imperativos. No que se refere à sua Apresentação de Sacher-Masoch, Deleuze esclarece em que medida ele responde a esses critérios: "O erro foi ter negligenciado a importância do contrato (e, para mim, o êxito desse livro é que depois dele todo mundo falou do contrato masoquista, ao passo que antes esse era um tema muito acessório): o novo conceito é 60 a dissociação do sadismo e do masoquismd' • O comentário que Deleuze faz aqui lembra sua insistência já acentuada a propósito de Hume sobre a questão de um contrato social que não seja abstrato, sua visão da instituição como ancorada no socius. Ele encontra essa diferenciação entre contrato e instituição também em Sacher-Masoch, cuja relação com o contrato é absolutamente essencial. Indo de encontro à assimilação que secostumava fazer entre sadismo e masoquismo, Deleuze opõe a prática contratual de aliança do masoquismo ao ato de posse instituída buscado pelo sadismo. É pelo contrato que o masoquista garante sua relação com o parceiro, conferindo-lhe todos os direitos por um tempo limitado. Ao contrário, o pensamento de Sade pertence à esfera da instituição, e nisso é um pensamento profundamente político, em ruptura com o quadro contratual que ele ultrapassa por todos os lados. O segundo objetivo de Deleuze é fazer justiça a Masoch diante do ofuscamento que sofreu em proveito de Sade. Ele não apenas deixou de ser lido como, no plano clinico, foi rebaixado a

106

Dosse

simples variante do sadismo na entidade "sadomasoquistd', ao passo que "está muito claro que seu universo nada tem a ver com o univer.. portanto, a so dsd e a e"61DI . e euze se propoe, refazer o percurso que conduz da crítica literária à clínica para discernir, por trás da síndrome, os sintomas próprios ao masoquismo e aqueles específicos do sadismo. Deleuze reabilita com seu estudo aquele que foi o verdadeiro inventor da qualificação "masoquista, que não é, como se acredita, o psiquiatra Krafft-Ebing, mas o próprio romancista Sacher-Masoch: 'A literatura não é secundária, testemunha imaginária de uma perversidade real. Ela contribui efetivamente, e por seus próprios meios, para o quadro clínico da sexualidade"'". Ê preciso levar a sério, como sugere Atme Sauvagnargues, a indagação sartriana de Deleuze no início de sua apresentação de Sacher-Masoch: "Para que serve a literatura'?''():). Em seu artigo de 1961, Deleuze apoia-se 64 sobretudo em Theodor Reik , apresentado comn-o principal teórico de referência por ter caracterizado bem a sintomatologia do masoquismo, apesar de ter omitido o contrato. Reik demonstrara que "o masoquista só consegue sentir prazer após a punição: isso não significa que ele tenha prazer (a não ser um prazer secundário) na própria punição" 65• Em !967, quando Deleuze publica sua Apresentação de Sacher-Masoch, é Freud que se torna a referência teórica matriciaL Retoma a distinção feita por ele entre pulsão de morte e instinto de morte para esclarecer a propensão do sádico a se colocar do lado da negação pura e a se aproximar do instinto de morte. Freud e Lacan enfatizaram as resistências e os processos de denegação, e Deleuze retoma a análise do lugar do fetichismo em Freud para fazer disso um atributo do masoquismo: "Os principais fetiches de Masoch e de seus heróis são as peles, os calçados, o próprio chicote, os capacetes estranhos com os quais gostava de pa66 ramentar as mulheres" • A confusão das duas sintomatologias que chega à identidade de um sadomasoquismo não deve ser atribuída a Freud, que sefbpre diferenciou os dois mo-

Gilles Deleuze & Félix Guattari

dos de comportamento. Antes mesmo de seu encontro com Guattari, em 1969, Deleuze já emprega a teoria analítica quando critica o esquema edipiano e o estatuto atribuído à castração na teoria freudiana. Deleuze considera que a maneira como os analistas querem ver a qualquer custo a imagem paterna por trás do ideal masoquista é singularmente redutora. Sem dúvida, o pai tem um papel essencial no sadismo, que se desenvolve com base na negação da figura materna, mas é abusivo estendê-lo ao masoquismo. Ao contrário, o masoquismo vive em um universo simbólico intermaterno no qual os tipos de ideal feminino constituem uma ordem simbólica em que a tlgura do pai está ausente, é suprimida. Nesse plano, Deleuze se apoia na tese lacaniana da forclusão do "nome do pai": "Lacan enunciou uma lei profunda segundo a qual aquilo que é abolido simbolicamente ressurge no real em 67 forma alucinatória'' . Deleuze se apoia também naquilo que considera a obra-prima de Freud, Além do principio de prazer, saudada como uma incursão genial de Freud no continente filosófico. O princípio de prazer governa tudo, não sofre de exceção, mas somente de complicações, fontes de exterioridade, de produção de um resíduo irredutível, de um para-além que reabre para a reflexão filosófica. Essa exterioridade leva Freud a invocar um princípio transcendentaL Assim, Eros está preso a um princípio de repetição: "É preciso compreender que a repetição, tal como Freud a concebe nesses textos geniais, é em si mesma síntese do tempo, síntese 'transcendental' do tempo. Ê ao mesmo tempo repetição do an68 tes, do durante e do depois'' • Deleuze abandona Freud para revelar um destrinçamento do princípio de prazer e do princípio de desejo no masoquista. Essa desvinculação conduz o masoquista a um duplo processo de dessexualização e ressexualização em torno do princípio da repetição. Anunciando uma temática central de O Anti-Édipo, Deleuze contesta em Freud o papel atribuído às noções de castração e de culpabilização: "Elas se tornam fáceis demais, visto que servem para reverter situações e para

fazer com que se comuniquem no abstrato ,69 mundos reaImente estran hos .

O incontornável Kant Em 1963, Deleuze consagra um estudo a Kant, embora ele não faça parte de seu Pan70 teão filosófico • Ao evocar esse livro mais tarde, ele dirá que o escreveu contra um "inimigo"; porém, quando em !968 explica o porquê dessa obra, Deleuze não esconde seu fascínio: "Quando se está diante de uma obra tão genial, não é o caso de dizer que não se está de acordo. É preciso antes saber admirar; é preciso encontrar os problemas que ele coloca, seu próprio maquinário. Ê por força da admiração que se encontra a verdadeira crítica'm. Além dessa obra, Deleuze publica no mesmo ano 72 um artigo sobre a estética kantiana • Ele também deu algumas aulas sobre Kant, primeiro na Sorbonne, no final dos anos de !950, depois na universidade de Vincennes, em 1978. Finalmente, em 1986, ele publicará um longo estudo sobre o tema de uma "poétici' kantianan. A genialidade de Kant, segundo Deleuze, é ter descoberto que o homem é composto de duas faculdades de natureza diferente: de um lado, a intuição, a receptividade, que está ligada à experiência e encontra sua fonte na sensibilidade; de outro, o conceito, que tem sua fonte no entendimento que define a forma do conhecimento, seu agenciamento no ser pensante. Entre essas duas dimensões heterogêneas, Kant percebe um buraco, e ele será o primeiro a definir o ser humano a partir desse buraco que o atravessa; essa é sua contribuição fundamental à modernidade. Enquanto no século XVII o pensamento se refletia no infinito, seja em Descartes ou em Leibniz, sendo o infinito primeiro em relação ao finito, a intuição e o entendimento se tornam com Kant dimensões incomensuráveis, e o princípio de flnitude é erigido em princípio constituinte. Essa revolução é absolutamente fundamental: o dado e o conceito não se sobrepõem, e o buraco não pode ser tapado ou saltado. Constatando a diferença

107

de natureza entre o espaço-tempo e o "Penso", Kant se indaga sobre as condições do conhecimento. Ele faz com que intervenha então uma terceira faculdade, certamente incapaz de se livrar do buraco, mas cuja função é estabelecer a relação: o que Kant chama de "esquematismo da imaginação''. O cogito cartesiano está fendido agora- bem antes da psicanálise. Em A Filosofia Crítica de Kant, dedicada a seu mestre Ferdinand Alquié, Deleuze segue o percurso da noção de faculdade nas três "Críticas". A revolução copernicana de Kant está em submeter o objeto ao sujeito, e não em pressupor uma harmonia entre sujeito e objeto. ''A primeira coisa que a revolução copernicana nos ensina é que somos nós que a comandamos ... Kant opõe à sabedoria a imagem crítica: 71 nós, os legisladores da Natureza" ' • Em A Critica da Razão Pura, submetem-se os fenômenos a categorias que, enquanto conceitos produzidos pelo entendimento, são objeto de uma dedução transcendental. A razão legisla, mas sob o impulso da faculdade de desejar, ou seja, sob o reino da razão prática, da vontade autônoma. Para fazer esse exercício autônomo, é necessário um regime de liberdade. No âmago do procedimento transcendental, Kant situa o uso da imanência, que será um de seus temas favoritos: "O método transcendental é sempre a determinação de um uso imanente da razão, 75 conforme um de seus interesses" • Assim, Deleuze sempre reivindica um criticismo transcendental, ao mesmo tempo considerando que a exigência fundamental de imanência é mais realizada por Nietzsche do que por Kant. Essa busca da imanência associa~se à preocupação filosófica de Deleuze, mas não a preenche, pois Kant parou n.o meio do caminho ao reduzir a dimensão transcendental às condições de uma experiência possível. Assim, ele se condena à recognição, ao decalque do real averiguado e, segundo Deleuze, cai nos meandros da consciência psicológica. Deleuze, ao contrário, reaflrma sua tese sobre a abertura a outras modalidades do pensável mais criativas do que as do simples reconhecimento do mesmo, e que só se pode atingir insistindo

108

François Dosse

Gil!es De!euze & Félix Guattari 76

sobre a diferença por si mesma . Com isso, ele modifica a acepção da própria noção de "facul~ dade'', que ainda é entendida como uma dis~ posição ou função cognitiva geral à espera de

seus conteúdos particulares "possíveis", mas se torna uma força cada vez mais singular, suscetível de afetar ou de ser afetada por um fenô~ meno também singular: "Há, portanto, modos múltiplos (no sentido de Espinosa) de pensar, de sentir, de recordar, de fantasiar, de falar... , que constituem faculdades distintas, criadas a

cada vez no contato com fenômenos ou obras . l ares ,n. smgu A relação de Deleuze com Kant não é de simples negatividade. Vincent Descambes apresenta-o inclusive como um continuador da obra crítica de Kant das ideias de alma, de mundo, de Deus: "Gilles Deleuze é antes de 78 tudo um pós~kantiano" • Kant foi o filósofo que atingiu certos limites, como o do tempo, do su-

jeito, do pensamento, "mas sem jamais ousar ' l os"79 . .D el euze procura passar d o u ltrapassadecalque à construção de sua própria cartogra~ fia das teses kantianas. De fato, ele escapa da alternativa kantiana na qual a multiplicidade é regulada por um tempo que ele percebe como uniforme, homogêneo e irreversível contra uma abordagem que veria no tempo a expressão de profundezas insondáveis. Deleuze, ao contrário, reivindica uma temporalidade heterogênea cujos fragmentos não se juntam mais segundo 80 a ideia de uma totalidade restaurada'' . Isso lhe permite, em um procedimento que qualifica de empirismo transcendental, libertar a fOrça de efração do acontecimento e das singularidades: "Quando se abre o mundo fervilhante de singularidades anônimas e nômades, impessoais, pré-individuais, pisamos enfim o solo do 81 transcendental" •

Proust em busca de verdade Em 1964, um ano após a publicação de sua obra sobre Kant, Deleuze volta à literatu82 ra com uma obra dedicada a Proust • Ele afirma assim a vqntade de fazer valer a reflexão

filosófica sobre territórios não cultivados pela tradição acadêmica, uma maneira de escapar 83 da história clássica da fllosofia . Com Proust e os Signos, Deleuze deseja corrigir o erro comumente partilhado pela crítica literária que consiste em fazer da obra-prima de Proust uma obra sobre a memória: "Em que consiste a unidade de Em Busca do Tempo Perdido? Sabe~ mos pelo menos em que ela não consiste. Ela não consiste na memória, na lembrança, mes84 mo involuntária'' • Segundo Deleuze, a Busca se serve da memória, mas como ferramenta, como meio de chegar à verdade: ''A Busca do tempo perdido é, na verdade, uma busca da 85 verdade" . O movimento dessa busca só pode , se realizar a partir de uma imposição ou de uma situação violenta que a suscíta, e o motivo essencial para Proust é seu ciúme. Segundo Deleuze, o herói proustiano se apaixona para poder liberar seu desejo de ser ciumento. Nesse aspecto, a Busca não é orientada ao passado, mas ao futuro. O segundo deslocamento operado por De~ leuze consiste em reparar o principal esquecimento na análise da obra de Proust: o universo dos signos, que dá o título à obra de Deleuze e constitui a seu ver a própria unidade da escrita proustiana: ''A palavra 'signo' é uma das 86 palavras mais frequentes da Busca" . Cada segmento social é compartimentado e se re~ conhece por signos comuns emitidos por seus .membros. Assim, os signos dos Verdurin não têm muito a ver com os dos Guermantes; são uma pluralidade de mundos incomensuráveis que constituem o universo social e sensível no qual o narrador evolui. Podem-se descobrir ali subconjuntos coerentes, como os signos de pertencimento à mundanidade ou os signos próprios à expressão amorosa, ou ainda aque~ !e que desigua as qualidades sensíveis. Mas o que subsume o conjunto é o mundo da Arte, que desempenha o papel de mundo último dos signos então "desmaterializados" que "encontram seu sentido em uma essência ideaL Desse modo, o mundo revelado da Arte reage sobre 87 todos os outros" • A arte tem um estatuto privilegiado na medida em que é a mediação sem

a qual a interpretação dos signos não poderia superar sua opacidade aparente. Um livro útil, segundo Deleuze, deve inven~ tar um novo conceito, e nesse plano a obra sobre Proust lança luz acerca da fecundidade da noção de "captura". Deleuze retoma no plano conceitual a captura efetuada entre dois elementos: um animal - a vespa- e um vegetal - a orquídea-, em que a vespa fecunda a orquídea, transgredindo as regras de separação entre os dois mundos. Deleuze retoma conceitualmen~ te o primeiro capítulo de Sodoma e Gomorra em que Proust consagra nada menos que trinta páginas à metáfora da vespa e da orquídea. Faz disso um modo de fecundação possível da literatura pela filosofia e vice-versa. Aliás, ele conclui a obra constatando que a procura da verdade da Busca rivaliza com a ambição filosó~ fica. A imagem do pensamento, tal como o entende Proust, "opõe-se ao que é mais essencial 88 em uma filosofia clássica de tipo racionalista'' • A obra de Proust, ao significar que as verdades não dependem nem do arbítrio nem da abs~ tração, tem portanto uma dimensão filosóflca. Essas verdades devem ser buscadas no interior das zonas de opacidade nas quais agem as fOrças empregadas nos movimentos do pensamento. Sob as convenções da comunicação regrada, forças subterrâneas desempenham o papel de verdadeiros detonadores do pensamento. Esses conectores que o colocam em movimento são os próprios signos, que é preciso "sempre inter89 pretar, isto é, explicar, desenvolver, decifrar" , Deve-se observar que, se Deleuze inova por seu tratamento da literatura como sintomatologia, como olhar clínico, na linha do que já ha~ via tentado com Sacher-Masoch, ele continua fiel a toda uma tradição para a qual pensar é interpretar. Como assinala Robert Mauzi, especialista em literatura francesa, Deleuze oferece uma leitura original da Busca, privilegian~ do a temporalidade do narrador em relação à do escritor, que é abandonada: ele não indaga sobre a intencionalidade de Proust, limitan~ do-se a uma decodificação de seu universo de signos: "Seria preciso, portanto, parar de falar da subjetividade proustiana; há de se convir

109

que é um alívio ler um ensaio sobre Proust em que todos os temas da psicologia e da psicaná~ 90 lise são eliminados" . Segundo o filósofo Jean~Claude Dumoncel, a chave para entrar no pensamento de Deleuze está na leitura de Proust, pois o que aparecerá mais tarde como uma tese pessoal abstrata - Diferença e Repetição - está lá, com a narra~ ção proustiana, sua expressão mais legível e seu verdadeiro esquema diretor, que chega a considerar que "é a diferença que dá à repetição seu objeto. O grau desta vem sempre da diferença. É a diferença que deve ser repetida, e Proust apenas relata isso ao longo de centenas de páginas"".Jean~Claude Dumoncel julga tanto mais fundamentada a leitura filosófica que Deleuze faz de Proust na medida em que este último reivindica duas fontes de inspiração filosófica: Gabriel Tarde e Henri Bergson. A Busca se desenvolve entre o que Deleuze qualifica como "diferenças livres" que fazem vibrar e "repetições complexas" que se revelam como ondulações vibratórias em uma relação que leva a pensar naquele que une a nuvem de tempestade e os estrondos do trovão. No entanto, essas ondulações se distinguem das re~ petições simples: ''A ondulação, diferentemente da iteração, é uma maneira de não se repetir'm. A repetição vibratória traz consigo no tempo diferenças potenciais. Proust indaga sobre a maneira como emergem na consciência as reminiscências que parecem depender de um regime associativo do tipo: "O sabor da madalena é parecido com o daquelas que degustá~ vamos em Combray; e ela ressuscita Combray, . . vez"93 . El on d e a d egustamos pe la pnmeira ' e se aproxima assim da concepção bergsoniana da memória, que faz coexistir um presente que invoca outro presente que foi, mas que não é mais, e cuja evocação é tributária dos presentes que o recompõem sem que o ser do passado jamais seja atingido: ''A essência do tempo nos 94 escapa" • A memória involuntária interioriza o contexto antigo, que se torna inseparável do momento presente, e efeito disso como o essencial não é a semelhança, mas, ao contrário, "é 95 a diferença inleriorizada, tornada imanente" •

110

Françols Dosse Cilles Deleuze & Félix Cuattari

Com o título que Deleuze dá à sua conclusão 'A imagem do pensamentO'-, é possível avaliar

a permanência desse tema da busca em toda sua obra: esse será o título do Capítulo !li de importância capital de Diferença e Repetição, e já se pode dizer que "a imagem do pensamento"

é o horizonte de toda sua exploração do universo cinematográfico empreendida nos anos 96

de I 980 . Deleuze confirma em I 968, quando da publicação das Obras Completas, de Nietzsche, esse eixo fundamental de sua reflexão que perpassa todas as suas monografias: "Hume, Bergson, Proust me interessam tanto porque há neles elementos profundos para uma nova imagem do pensamento. Há alguma coisa de extraordinário na maneira como eles nos dizem: pensar não significa aquilo que você acredita ... Sim, uma nova imagem do ato de pensar, de seu funcionamento, de sua gênese no próprio pen. que buscamos>•97 . sarnento, e, exatamente Isso Ao mesmo tempo, são perceptíveis cer~ tas modificações entre as diversas edições de

Proust e os Signos. Publicado em 1964, o livro dá lugar a duas versões posteriores ligeiramen~ te modificadas, em 1970 e em 1976. Entre a pri-

meira edição e a seguinte, ocorre o encontro fundamental de Deleuze com Guattari. A marca deste é perceptível e reconhecida por Deleu-

ze, que lhe empresta a temática da transversalidade: "Em relação às pesquisas psicanalíticas,

Félix Guattari formou um conceito muito rico de 'transversalidade' para dar conta das comunicações e relações do inconsciente"98• Essas transversais são essenciais para compreender a passagem de um mundo fechado a um outro

que não destrói sua singularidade, mas que, sem confusão nem totalização possível, permite a passagem de um universo de signos a outro. São essas transversais que conduzem a passagem de uma Albertina a outra, com pas-

santes privilegiados como Swann. Essas transversalidades têm como efeito tornar possíveis os encontros, suscitar novos fluxos, sem com isso pôr em perigo a existência da pluralidade,

"sem jamais reduzir o múltiplo ao Um, sem jamais reunir o múltiplo em um todo'm. Essas transversais são de todas as ordens: o ciúme

pela multiplicidade amorosa ou a viagem pela multiplicidade de lugares, ou ainda o sono pela multiplicidade de momentos.

Concepts, "Gilles Deleuze I", janeiro de 2002, Sils Maria. Mons, p. 108. 17. Gilles DELEUZE, ES, p. 2. 18. fbid, p. 3.

Notas

19. Ibid, p. 23. 20. Jbid., p. 24.

1. Gilles Deleuze, A. 2. [bid. 3. Gilles DELEUZE, "Lettre à un critique sévêre" (1973), PP, p. 14. 4. Gilles DELEUZE, PP, p. 14. 5. Thomas BÉNATOUIL, "L'histoire de la phi· losophie: de l'art du portrait au collage", Le Afagazine littéraire, fevereiro 2002, p. 36.

6. Renê SCHERER, Regards sur Deleuze, op. cit., p. 12. 7. Jean Hyppo!ite, Figures de la pensée philoso- · phique, PUF, Paris, 1991, tomo I, "Du bergsonisme à l'existentialisme" (1949), p. 443-459; "Vie et philosophie de l'histoire chez Berg~ son" (1949), p. 459-467; '1\spects divers de Ia mémoire chez Bergson" (1949), p. 468-488; "Vie et existence dapr€s Bergson" (1950), p. 488-498. 8. Informações transmitidas por Giuseppe BIANCO, "Trous et mouvement: sur le dandysme deleuzien. Les cours de la Sorbonne 1957-1960", op. cit., p. 93. 9. Gilles Deleuze, carta de 17 de julho de 1972, acervo Jean Wahl, IMEC, transmitida por Giu~ seppe Bianco, "Philosophies du ET. Que se passe+il entre (Jean Wahl et Deleuze)?", por ocasião de umajornadajean Wahl, organizada por Frédéric Worms e Giuseppe Bianco, 16 de abril de 2005, ENS. lO. André CRESSON, Gilles DELEUZE, David Hume, sa vie, son CEuvre, PUF, Paris, 1952. 11. Ibid., p. 41.

12. Michel TOURNIER, ''Gilles Deleuze", Critique, n. 591-592, agosto-setembro de 1996, p. 699. 13. Gilles DELEUZE, Empirisme et subjectivité, PUF, 1953 (doravante citado ES). 14. Ibid., p. l19. 15. Gilles Deleuze, carta de 29 de dezembro de 1996 a Arnaud Villani, em Arnaud VlLLANI, La Guêpe et l'Orchidée, Belin, Paris, 1999, p. 56. 16. Arnaud VILLANI, "Une généalogie de la philosophie deleuzienne: Empirisme et subjectivité',

21. Manola ANTONIO LI, Deleuze et l'histoire de la philosphie, Kimé, Paris, 1999, p. 30. 22. fbid., p. 31. 23. Gilles DELEUZE, ES, p. 27. 24. Ibid., p. 35. 25. fbid., p. 34-35.

26. Palavras de GUies Deleuze reportadas por Dominique Séglard, entrevista com o autor. 27. lbid.. 28. Jnstincts et institutions, textos escolhidos e apresentados por G. DELEUZE, Classiques Hachette, Paris, 1953. 29. Gilles DELEUZE, ibid., p. VIII. 30. Ibid., p. IX. 31. fbid., p. XL 32. Gilles DELEUZE, ES, p. 90. 33. Jbid., p. 101. 34. Gilles DELEUZE, ES, p. l15. 35. Ibid., p. 93. 36. Gilles DELEUZE, DR.

37. François CHÂTELET, Histoire de La philosophie, t. N: Les Lumi8res, Hachette, Paris, 1972, p. 65-78; reproduzido em Gilles Deluze, ID, p. 226-237. 38. fbid., ID, p. 226. 39. Patricia de MARTELAERE, "Gilles Deleuze, interprete de Hume", Revue philosophíque de Louvain, fevereiro de 1984, t. 82, p. 224.

40. Arnaud VILLANI, "Une généalogie de la philosophie deleuzienne: Empirisme et subjectivité", op. cit., p. 120. 41. Gilles DELEUZE, PP, p. 188-189.

42. Olivier Revault dl\llonnes, entrevista com o autor. 43. Marc-Alain Descamps, entrevista com o autor. 44. Rafael Pividal, entrevista com o autor. 45. Giuseppe BIANCO, ~Philosophies du ET. Que se passe+il entre (Jean Wahl et Deleuze)?", por ocasião de umajornadajean Wahl, organizada por Frédéric Worms e Guiseppe Bianco, 16 de abril de 2005, ENS.

111

46. Encontram~se alguns resquícios desses cursos nos arquivos da Escola Normal Superior de Fontenay-Saint-Cloud que se encontram na biblioteca da ENS-LHS de Lyon. Curso sobre Bergson: 19 páginas datilografadas, publicado em Frédéric WORl\IIS (sob a clir.), Annales ber-

gsoniennes Jl Bergson, Deleuze, la phénoméno· logie, PUF, Paris, 2004, p.166-188; curso sobre Rousseau: 27 páginas datilografadas; curso sobre Kant: 24 páginas datilografadas; curso sobre Hume: 38 páginas datilografadas. 47. Gilles DELEUZE, «jean-jacques Rousseau précursem de Kafka, de Céline et de Ponge", Arts, n. 872,6-12 de junho de 1962, p. 3; retomado em Gilles Deleuze, ID, p. 73-78. 48. Giuseppe BIANCO, "Trous et mouvemenL: sur le dandysme deleuzien. Les cours ele la Sorbonne 1957-1960", op. cit., p. 95. 49. Gilles DELEUZE, ''Descartes, l'hornme et l'CEuvre, por Ferdinancl Alquié", Cahiers du Sud, n. 337, outubro de 1956, p. 473-475. 50. fbid. 51. Ferdinand ALQUIÊ, em Gilles DELEUZE, "La méthode de dramatisation ", ID, p. 148. 52. lbid., p. 149. 53. Gilles DELEUZE, "Jean Hyppolite, Iogique et existence'', Revue philosophique de la France et de l'étranger, n. 7-9, julh.-set. 1954, p. 457~460; reproduzido em Gilles Deleuze, ID, p. 18-23. 54. Ibid., p. 20. 55. Ibid., p. 24.

56. Alain Roger, entrevista com o autor. 57. François Regnault, entrevista com o autor. 58. Gílles DELEUZE, ~De Sacher-Masoch au masochisme", Arguments, n. 21, 1961. Após esse primeiro estudo, Deleuze lançará em 1967 uma versão ampliada de sua abordagem ele Sacher~Masoch: Gilles DELEUZE, Présentation de Sacher-Masoch, .Minuit, Paris, 1967. 59. Essa onda de Sacie não parou de crescer desde os anos 1930, balizada por importantes estudos como: Pierre KLOSSOWSKI, "Éléments d'une étude psychanalytique sur le marquis de Sade", Revue de psychanalyse, 1933, e Un si funeste désir, Gallimard, 1963; Maurice BLANCHOT, Lautréamont et Sade, 1947; Simone DE BEAUVO!R, Faut-il bríiler Sade?, 1955; Georges BATAILLE, La Littérature et le Mal, 1957;

112

Dosse

jacques LACAN, "Kant avec Sade", Critique,

n. 191, 1963; Michel FOUCAULT, "De Sade à Freud", Critique, n. 195-196, 1963; CEuvres completes de Sade, 1967; Roland BARTHES, Sade, Fourier, Loyola, 1971, ... 60. Gil!es Deluze, carta de 29 de dezembro de 1986 a Arnaud Villani, em Arnaud VILLANI, La Guêpe et l'Orchidée, op. cit., p. 57. 61. !bid.,p.1l.

62. Anne SAUVAGNARGUES, Deleuze et làrt, PUF, Paris, 2005, p. 44. 63. Gilles DELEUZE, SM, p. 15. 64. Theodor REIK, Le Masochisme, Payot, Paris, 2000. 65. Gilles DELEUZE, "De Sacher-Masoch au rnasochisme ", Arguments, n. 21, p. 44.

66. 67. 68. 69. 70.

Gilles DELEUZE, SM, p. 30. Ibid., p. 57. Ibid., p. 99. Ibid., p. 51. Gil!es DELEUZE, La Philosophie critique de Kant, PUF, Paris, 1963 (doravante citado PCK).

71. Gilles Deleuze, entrevista, afirmações coligidas por Jean-Noel VUARNET, Les Lettres ftançaises, 28 de fevereiro-S de março de 1968; reproduzidaemiD,p.192. 72. Gilles DELEUZE, ''L'idée de genese dans l'esthétique de Kant", Revue d'esthétique, n. 2, abril-junho de 1963; reproduzido em ID, p. 79- I OI. 73. Gilles DELEUZE, "Sur quatre formules poétiques que pourraient résumer la philosophie kantienne", Philosophie, n. 9, inverno de 1986; reproduzido em CC, p. 40-79.

74. Gilles DELEUZE, PCK, p. 23. 75. Ibid., p. 54. 76. GillesDELEUZE,DR,p.l76-177. 77. Guillaume Sibertin-Blanc, entrevista com o autor.

78. Vincent DESCOMBES, Le Même et t:Autre, Minuit, Paris, 1979, p. 178.

7

79. Manola ANTONIO LI, Deleuze et l'histoire de la

philosophie, op. cit., p. 87. 80. Jean-Clet MARTIN, Variations. La philosophie de Gi!les Deleuze, Payot, Paris, 1993, p. 34. 81. Gilles DELEUZE, LS, p. 125. 82. Gilles DELEUZE, Proust et les signes, PU F, Pa-

ris, 1964 (doravante citado PS). 83. Sobre a unidade de projeto de prospecção

Nietzsche, Bergson, Espinosa: uma tríade para uma filosofia vitalista

da "imagem do pensamentO' que serve de fio condutor para Nietzsche e a filosofia, Proust e os signos e Diferença e repetição, ver Arnaud BOUANICHE, Gilles Deleuze, une introduction, op. cit., p. 45-52.

84. 85. 86. 87. 88. 89.

Gilles DELEUZE, PS, ed. 1970, p. 7. !bid., p. 21. Ibid., p. 9. !bid., p. 19. Ibid., p. 186. !bid., p. 190. 90. Robert MAUZJ, Critique, n. 225, fevereiro de 1966, p. 161. 91. Jean-Claude Dumoncel, entrevista com o autor. 92. )ean-Ciaude DUMONCEL, Le Symbole d'Hécate. Philosophie deleuzienne et roman proustien, ed. HYX. Orléans, 1996, p. 60. 93. Gilles DELEUZE, PS, p. 69. 94. lbid., p. 71. 95. !bid., p. 73. 96. Ver Dork ZABUNY!u\1, Gilles Deleuze. Voir, parler, penser au risque du cinéma, Presse de la Sorbonne nouvelle, Paris, 2006. 97. Gilles Deleuze, entrevista com Jean-Noel Vuarnet, Les Lettres Jrançaises, 28 de fevereíro-5 de março de 1968; reproduzida em ID, p.

193. 98. Gilles DELEUZE, PS, p. 184, nota 1. 99. !bid., p. 137.

Um dos três mestres da suspeita: Nietzsche

uma leitura bem diferente de Nietzsche. É preciso considerar também a influência de Canguilhem, cuja tese defendida em 1943, Ensaio

Nietzsche tem um papel fundamental para Deleuze na formalização de suas próprias posições filosóficas. Ele aplica a Nietzsche o mesmo procedimento de leitura que para os outros. Trata-se em primeiro lugar de reparar um erro, o da interpretação do eterno retorno do mesmo, conforme uma lei cíclica. Em segundo lugar, Deleuze contribui com outros para tirar do esquecimento a faculdade crítica, corrosiva, progressista de um pensamento

sobre Alguns Problemas acerca do Normal e do Patológico, repele qualquer visão evolucionista

nietzschiano que foi utilizado até então essen-

cialmente em uma perspectiva reacionária e elitista. Por fim, ele extrairá de Nietzsche seu conceito fundamental da diferença como resultado da libertação da vontade de potência.

Como mostrou bem o especialista do mundo germânico Jacques Le Rider, a recepção de Nietzsche na França, nos anos que antecederam a guerra, foi essencialmente muito conservadora. No entanto, é bem diferente durante a Segunda Guerra Mundial, com o pequeno círculo que se constitui em torno de Mareei More e que, como já mencionamos, é frequentado pelo jovem Deleuze. Encontram-se ali Georges Batai!le, Jean Wahl, Jean Hyppolite, que farão

de um progresso contínuo da razão e opõe a ela um ponto de vista resolutamente nietzschiano. Deleuze encontra ali, antes de tudo, uma reformulação da vontade de potência como "normatividade vital", da vida como ato de criação ou de instituição de novas normas. Em 1946, surge a Sociedade Francesa de Estudos Nietzschianos, que dura até J965 e tem como objetivo "contribuir, sem nenhum desígnio político nem intenção de proselitismo, para que se conheça melhor o pensamento de Nietzsche, reconduzido do plano da propaganda tendenciosa para o de uma compreensiva obje1 tividade e de uma crítica esclarecida" • Deleuze está entre os membros mais átivos dessa sociedade presidida por Jean Wahl, que consagra dois de seus cursos a Nietzsche, entre 1958 e !959 e 2 1960 e 1961 • Ao mesmo tempo em que se empreende um importante trabalho de tradução, de edição e de interpretação nesses anos 1950, a sociedade publica um obra antológica por ocasião do cinquentenário da morte do filósofo em 3 1950 . Além disso, inicia-se um enorme trabalho

1

Gilles Deleuze & Félix Guattari

Dosse

de edição das obras completas de Nietzsche, sob a dupla responsabilidade de Gilles Deleuze e de Maurice de Gandillac. Assim, o livro de Deleuze, Nietzsche e a Filosofia, publicado em 1962,

inscreve-se como extensão ele um interesse reabilitado e de uma renovação dos estudos nietzschianos'1. O leitor é logo atraído pela novidade da proposição e do olhar que resulta dali. Deleuze não se contentou em exumar com Nietzsche um maciço filosófico recoberto por

camadas sucessivas de comentários que teriam pervertido sua mensagem. Logo de início, ele dá um tom polêmico à sua obra contra a dialética hegeliana para realçar a força de desestabilização das leses de Nietzsche dirigidas contra toda a história da filosofia. A filosofia de Nietzsche, que Paul Ricceur qualificará de "filosofia da suspeita", opera a "golpes de martelo" para desenvolver uma teoria dos conceitos de sentido e de valor, que relega ao segundo plano a questão da verdade. Nietzsche preco-

niza um procedimento específico que chama de "genealógico", que não tem nada a ver com um tribunal de valores: ''Genealogia significa ao mesmo tempo valor da origem e origem dos valores"'. A esse título, Nietzsche se opõe a qualquer absolutização dos valores. O sentido da fenomenalidade é sempre os ligar aos diversos pontos de vista que os comportam, às forças ativas que constituem sua dinâmica. É esse jogo de forças que a filosofia deve reencontrar naquilo que Deleuze chama de "sinlomatologia"'" ou de "semiologia"6• Essa reavaliação do sentido não deve conduzir a um refúgio na hermenêutica para reencontrar um suposto sentido original perdido, encoberto ou rasurado. O sentido, em uma acepção nietzschiana, não provém de um reservatório já existente, mas de um efeito produzido cujas leis de produção é preciso descobrir. A história de um fCnômeno é antes de tudo a história das forças que se apoderam dele e que modificam sua significação.

~ N. de R. T: O termo usado aqui é séméiologie e, embora apresente a mesma definição de "semiologia", indíca mais espec\ftcamente sua.,pertença à área médica que trata dos sinais clínicos e do§.~intomas das doenças.

Dando ênfase à força afirmativa, ao ''sim", Deleuze apresenta Nietzsche como o anti- Hegel, o antidialético. Canguilhem já havia desestabilizado fortemente o continuísmo hegeliano. Deleuze prossegue e radicaliza sua crítica a Hegel questionando seu conceito de negação e de contradição que coloca a filosofia em um impasse, pois ela permanece fundamentalmente prisioneira de uma identidade primeira cuja negação é apenas a repetição. Com isso, Deleuze lança o conceito que será a própria essência de sua tese e o fio condutor de todo seu pensamento: o da diferença. Uma filosofia da vontade faz valer a afirmação de sua diferença, e é esse "diferencial" que Deleuze procura valorizar nas teses de Nietzsche. À cultura do ressentimento e da culpabilidade do cristianismo, Nietzsche opõe o indivíduo soberano, liberto da moral dos costumes, "o homem que pode prometer"'. Nietzsche vê nisso uma forma superior de responsabilidade. Sobre esse ponto, como de hábito, Deleuze faz o que chama de um "filho por trás" do filósofo e transforma essa lição em uma exaltação do homem liberto da moral e, por isso, irresponsável: ''A irresponsabilidade, o mais nobre e o mais belo segredo 8 de Nietzsche" • Ao polo da reatividade se opõe o da atividade, da vontade de potência. Ele pode levar até a figura do super-homem que está no Livro IV de Zaratustra. Contudo, também aqui, as instrumentalizações totalitárias ou simplesmente conservadoras das teses de Nietzsche repousam em um contrassenso na interpretação da significação do super-homem que em Nietzsche não está ligado absolutamente à exaltação de um poder sobre outro. O super-homem não procura tanto converter a reação em ação, mas sim transmutar a negação em afirmação. A afirmação, para Nietzsche, é o próprio ser em direção ao qual a humanidade deve caminhar. Essa leitura de Nietzsche parece encontrar sua fonte em Espinosa, o outro grande inspirador da filosofia vitalista de Deleuze. Quanto ao eterno retorno, a interpretação feita por Deleuze rompe totalmente com o sentido que era atribuído até então à doutrina

nietzschiana. Contra a ideia de que tudo o que se produz retorna segundo movimentos cíclicos, Deleuze vê no eterno retorno a resultante de uma seleção dos fortes, uma eliminação dos fracos: "Ela faz do querer uma coisa inteira ... ela faz do querer uma criação, ele efetua a 9 equação querer= criar" . Apenas as diferenças voltam, e por isso o retonio não é do mesmo, mas do outro. Ele extrai da leitura de Nietzsche uma nova tarefa da filosofia, que não deve mais se contentar em ser o reflexo de seu tempo, mas sim se aventurar nas vias da radicalização da crítica contra seu tempo para fazer surgir daí, pelo caráter intempestivo, inatual de suas indagações, as forças criativas. O método que deve prevalecer é o da "dramatização", Ele consiste em deslocar o modo de questionamento, passando da pergunta tradicional da metafísica - "O que é?" - a outra indagação "Quem?"- para restituir as forças em ação no fenômeno estudado. Portanto, o conceito deve ser relacionado a um querer na perspectiva de dar conta do universo concreto da vida. A fllosofia se afasta, então, de sua inspiração platônica, abandonando a questão da essência - o que é o certo? O que é belo?- que induz uma concepção dualista, opondo a essência do fenômeno à sua aparência. Esse "método ele dramatização" tematizado por Deleuze para além 0 das teses de Nietzsche, em 196i , abre para uma possível tipologia que interroga as forças do ponto de vista de suas qualidades ativas e reativas. Associa-se a uma sintomatologia que interpreta os fenômenos a partir das forças que os produzem, e a uma genealogia que avalia as forças em função de sua vontade de potência, ou seja, uma filosofia que cumpre uma tripla função: artística graças à sua tipologia, clínica graças à sua sintomatologia e legislativa graças à sua genealogia. Jean Wahl, responsável pelo retorno em favor de Nietzsche, escreve uma longa resenha da obra de Deleuze na Revue de Métaphysique et de la Morale: ele reconhece ali um grande livro que se soma à linhagem das melhores exegeses desse pensador. Contudo, em face da lei-

115

tura qualificada de "original" feita por Deleuze, Wahl toma alguma distância do tom polêmico dirigido a Hegel, que ele atribui a "uma espécie 11 de ressentimento" , pois acha que Nietzsche não está tão distante assim de Hegel sob vários aspectos. \tVahl considera que as páginas consagradas à dialética figuram entre as melhores, mas diz que as críticas dirigidas por Deleuze a Hegel são tão superficiais quanto as da corrente marxista, ao mesmo tempo em que admite a necessidade de um olhar crítico sobre Hegel. Em compensação, Wahl saúda o final da obra consagrada a uma "nova imagem do pensamento" e que prolonga a obra nietzschiana por sua insistência nas forças que devem se apoderar do pensamento para torná-lo crítico e criativo. Contudo, a interpretação de Deleuze comporta riscos, segundo Wahl: "Estamos diante de dois perigos nessa interpretação, por mais interessante e profunda que ela seja, ou, pelo menos, diante de duas dificuldades: a dificuldade que consiste em eclipsar completamente o negativo e outra dificuldade que decorreria do flito de que o positivo corre o risco de não • . . »12 mms aparecer o tanto quanto sena preciso . Pouco depois da publicação do livro, Deleuze organiza um colóquio sobre Nietzsche, realizado na abadia de Royaumont, de 4 a 8 de julho de 1964. Ele submete a lista de convidados a Jean Wahl e a Martial Guéroultl3. Como assinala David Lapoujade, essa será a única manifestação coletiva organizada por Deleuze. O fato de ele conseguir superar sua aversão por colóquios mostra a importância que atribui à renovação em curso nos estudos nietzschianos. É nesse colóquio que Michel Foucault põe em discussão sua aproximação entre os três "mestres da suspeita", que são Nietzsche, Freud e Marx~'~. Corno é de praxe, o organizador Deleuze deve apresentar uma conclusão sintética 15 para extrair os ensinamentos essenciais • Ele enfatiza que a edição crítica da obra de Nietzsche ainda tem enormes lacunas, o que dá livre curso a todos os contrassensos possíveis, e se pergunta, por outro lado, em que medida a loucura que atinge Nietzsche no fim da vida

116

Dosse

Gl!!es Deleuze & Félix Guattari

deve fazer parte ou não de sua obra filosóflca. A verdadeira razão invocada por Deleuze

para explicar a parte de opacidade na leitura do corpo nietzschiano é de ordem metodológica. Está ligada ao fato de que em Nietzsche o sentido não é unívoco, não é tributário daquilo que designa: "Toda interpretação já é de uma interpretação, ao infinito ... A lógica é substi16

tuída por uma topologia e uma tipologia" • A noção de valor transforma a busca da verdade: após a separação do verdadeiro e do falso, é

preciso sair em busca de uma instância mais profunda, a da vontade de potência. Em 1965, Deleuze consagra a Nietzsche uma nova publicação dentro de uma coleção 17 de iniciação à filosofia • Ele mostra então a unidade impressionante em Nietzsche entre

o pensamento e a vida em uma dinâmica de aflrmação de sua singularidade. Essa unidade existencial tem suas raízes na tradição pré~so~ crática, mas constitui sobretudo um enorme potencial de renovação de toda a história da filosofia. Ela prefigura o advir do pensamento por seu estilo inovador que adiciona ao corpo clássico de textos filosóficos os poemas e aforismos que se tornaram instrumentos privile~ giados da interpretação. Dois anos depois, Deleuze e Foucault re~ digem juntos uma introdução geral à publica18 ção das Obras Completas de Nietzsche . Eles inscrevem sua edição na continuidade do trabalho de exploração sistemática dos arquivos e de sua publicação na ordem cronológica dis~ posta pelos italianos Giorgio Colli e Mazzino Montinari. Manifestam também sua vontade de corrigir, por um retorno aos textos, as deformações e numerosas omissões praticadas pela irmã de Nietzsche, Elisabeth, que se erigiu em herdeira testamental muito autoritária e abonadora da imagem ele um Nietzsche antissemita e precursor do nazismo: "O anti-Nietzsche 9 por excelência',j . Por esse "retorno a .. :', Deleuze e Foucault possibilitam ler um novo Nietzsche: "Os pensadores 'malditos' se reconhecem do exterior em três traços: uma obra brutalmente interrompida, parentes abusivos que interferem nas publicà'ções póstumas, um livro-mis-

.I I..~~~.fi

i!-'' i

. • •.•.•...•.. 1

~:

,. ;

tério, algo como 'o livro' cujos segredos a gente 20 nunca deixa de pressentir" • Na explicação que dá quando da edição das Obras Completas, Deleuze atribui boa parte desse retorno a Nietzsche à redescoberta do intempestivo e, portanto, da história como ressurgimento do novo, do .inesperado - estamos 21 nos meses que precedem o Maio de 1968 • Nictzsche é apresentado por Deleuze como exemplo daquilo que a filosofia contemporânea deve cumprir em sua crítica radical, em sua procura de outras formas além do "Ego" ou do "Eu" e em sua busca de formas de individualizações interpessoais ou de singularidades pré-individuais. Para mostrar o caminho dessa procura, Deleuze evoca uma linhagem de filósofos: "É Lucrécio, é Espinosa, é Nietzsche, uma linhagem prodigiosa em filosofia, uma linhagem estilhaçada, explosiva, totalmente 22 vulcânica" • O início dos anos de 1970 é um momento particularmente intenso da recepção de Nietzsche na França. As publicações se tornam mais numerosas. Pierre Klossowski dedica seu 23 ensaio sobre Nietzsche "a Gilles Deleuzc" e, sobretudo, toda uma geração oferece novas lei21 turas de Nietzsche ' • O apogeu desse momento, verdadeiro ponto de cristalização de toda essa efervescência, ocorre em julho de 1972, por ocasião de uma década de Cerisy-la-Salle. Todos aqueles que percorreram a obra de Nietzsche se reuniram ali para expor suas interpretações e debatê-las". A comunicação de De26 leuze in titula-se "Pensamento nômade" • Ele tem apenas 47 anos na época, mas começa sua exposição falando de uma defasagem de geração: "O que um jovem descobre atualmente em Nietzsche não é seguramente o que minha geração descobriu nele'm. Estamos então no imediato pós-68, depois do encontro com Guattari. O recurso a Nietzsche assumiu um contorno bastante político, como arma da crítica mais radical, confirmando a virada em curso ao longo de toda a década de 1960 de um pensamento marcado à direita para a extrema esquerda, graças principalmente à leitura de Deleuze. Em sua intervenção, Deleuze toma distância da

maneira como Foucault havia destacado em Royaumont o alvorecer de nossa modernidade em uma tríade reunindo Nietzsche, Marx e Freud. Segundo Deleuzc, diferentemente do freudismo e do marxismo, Nietzsche consti~ tui uma contracultura irredutível a qualquer recuperação institucional: "Nietzsche faz uma tentativa de decodificaçã6"~ 8 • Em contraparti~ da, Deleuze vê uma aproximação possível de Nietzsche com Kafka. Nietzsche encarna uma possível filosofia contra a instituição filosófica, sempre em relação com um de fora, como mostrou Blanchot. A necessidade de separar Nietzsche de sua ganga deformadora e fascistizante foi suprida pela revista Acéphale e pelos trabalhos de Jean Wahl, Georges llataille e Pierre Klossowski. No início dos anos de 1970, é importante, segundo Deleuze, sobretudo estabelecer uma relação entre os aforismos niet~ zschianos e uma exterioridade que lhe dá seu sentido libertador. O que é preciso resgatar é a intensidade própria desses "estados vividos", o nomadismo que isso induz e seu humor: ''Aqueles que leem Nietzsche sem rir, e sem rir muito, sem rir com frequência e às vezes morrer de rir, é como se não lessem Nietzsche"29• Máquina de guerra em favor do nomadismo e contra todas as formas de recodificação, o nietzschianismo torna-se uma via possível de libertação dos servilismos, dos confinamentos burocráticos, uma verdadeira escola da vida. Nesses anos pós-68, pode-se falar de um "momento Nietzsche", no qual sua obra conhece um verdadeiro sucesso junto a um número 30 enorme de leitores • Esse impulso encontra em A Genealogia da Moral um ponto de apoio, sobretudo quando Nietzsche evoca os fundadores de civilizações originais que "chegam como o destino, sem causa, sem razão, sem consideração, sem pretexto, aparecem com a rapidez de um relâmpago, terríveis demais, súbitos demais, convincentes demais, outros 31 demais para ser até mesmo objeto de ódio'' • Deleuze encontra ali, com Nietzsche, uma fOnte de inspiração essencial para sua própria te32 mática da "nomadologia" . Já presentes antes de 1968 em Deleuze, as análises em termos de

117

nomadismo assumirão com Guattari urna dimensão revolucionária, como assinala Mano la Antonioli:n, dimensão que continuará ganhando amplitude:1'1•

Bergson: o impulso vital Assistente na Sorbonne de 1957 a 1960, Deleuze pede licença do CNRS. Acaba conseguindo a licença entre 1960 e 1964, o que lhe permite, como vimos, orquestrar seu retorno a um Nietzsche revisitado. De 1964 a 1969, é encarregado de ensino na universidade de Lyon'". Não se pode dizer que ele tenha ficado fascinado com essa nomeação, em que lhe dão um posto de professor de moral: "Eis-me em Lyon, lyonizado, instalado, moralizado, professor de moral, etc. Fiquei muito feliz de vê-los, o senhor mesmo e a senhora Wahl, antes de 36 minha partida'' • Ele participa com humor ao seu amigo François Châtelet os tormentos que causa a preparação de sua tese: '1\h! l\!linha tese é uma sopa onde tudo boia (o melhor deve estar no fundo, mas é o que menos se vê)'m. Ele foi escolhido depois que o colegiado de professores descartou dois concorrentes perigosos, mas conhecidos demais por suas opções ideológicas:Jules Vuillemin, de um lado, e Henri Lefebvre, de outro: "Deleuze era jovem, sem rótulo, inclassificável apesar do diabolismo de 38 Nietzsche que o ensolarava" • Deleuze encontra no departamento de filosofia um fenomenologista bastante conhecido, Henri Maldiney: "Tudo começou com uma conferência sobre a razão em que os colegas ficaram um pouco deslocados, mas Maldiney tratou do seu tema, o que, aliás, marcou o início de uma amizade 39 entre os dois homens" • Deleuze é muito sensível ao fato de que a notoriedade intelectual de Maldiney não se traduz em uma posição institucional sólida. Na época, ele tinha apenas o estatuto precário de professor substituto, apesar da repercussão internacional de seus trabalhos, e era marginalizado dentro do departamento de filosofia: "Deleuze defendia Maldiney contra as autoridades universitá~

118

Gilles Deleuze & Félix Guattari

Dosse 10

rias,. , confirma Chris YounCs. Eles tinham na época uma grande cumplicidade, e Maldiney conseguiu inclusive arrastar o pobre Deleuze, que mal respirava, em excursões alpinas! Já François Dagognet, ex-aluno de Canguilhem, ocupa uma posição institucional sólida no departamento, como também no âmbito nacional, como presidente do CNU'' a partir de !967. As relações entre os dois homens logo se deterioram. Quando Deleuze chega a Lyon, é inicialmente acolhido de forma calorosa por Dagognet, que deseja integrá-lo à vida da universidade. Contudo, Deleuze se mantém muito distante, e mesmo desdenhoso, em relação a ele. Disso resulta um profundo rancor que degenera em conflito aberto por causa de Maldiney, firmemente defendido por Deleuze. Entre seus colegas, Deleuze convive também com uma celebridade acadêmica no campo da história da filosofia na pessoa de Genevieve Rodis-Lewis, que dá aula sobre Platão, Malebranche e sobretudo Descartes, do qual é a grande especialista. Quando estoura Maio de 68, Rodis-Lewis não compreende por que está sendo contestada, assim como os outros, e afirma: "Eu ensino Platão!". Deleuze, ao contrário, se regozija com a contestação e zomba da reação de medo dos colegas, principalmente de Rodis-Lewis, cujos trabalhos versam agora sobre os discípulos de Descartes, os chamados de "pequenos cartesianos". A uma pergunta de seu amigo Alain Roge:r, que quer saber como estão as coisas em Lyon na efervescência de Maio de 1968, se não há violência demais, Deleuze lhe responde que sim, "os estudantes são muito violentos: eles desfilam nas ruas contra a senhora Rodis-Lewis carregando um cartaz onde está escrito 'Basta de pequenos cartesianos'"'n. Em Lyon, Deleuze faz amizade com a filósofa]eannette Colombel, professora de classe preparatória, intelectual comunista que se situa na linha de Sartre. Os dois casais, Fanny e Gilles Deleuze e Jeannette Colombel e seu

"N. de T.: Conseif'National des Universités.

marido, usufruem da vida cultural lyonesa, ritmada pelos espetáculos de 1\oger Planchon e de Michel Auclair no Thêatre de la Cité. Vão frequentemente ao cinema, e correm para ver os filmes de Jean-Luc Godard logo que lançados, Pierrot le Fou, A Chinesa: ''Assisti nessa época a quase todos os filmes citados em L'fmage-temps. Ah! Mônica Vitti e Antonioni, 42 os primeiros Fellini, os filmes de Bergman" • Chris Younês, que teve Deleuze como professor durante quatro anos em Lyon, recorda de seu uso da história da filosofia, bem diferente do que faziam seus colegas: "Com ele, a gente vivia de verdade Nietzsche, Espinosa, 43 Bergson, Leibniz" • Entre 1964 e 1969, Deleu .. ze se emancipa progressivamente da história clássica da filosofia e, embora insista sempre em seus autores prediletos em aula, já desenvolve temáticas mais pessoais. Em particular, atribui enorme importância à noção de acontecimento como surgimento do inesperado, com a necessidade, que ele retém do estoicismo, de se mostrar digno dele e de conseguir encarná-lo. Fascinado por toda uma reflexão em torno da noção de acontecimento, ao longo desses anos, "Deleuze falava o tempo todo de ]oe Bousquet""''. A reedição pela Gallimard de Traduit du Silence"' em 1967lhe dá a oportunidade de inverter a posição temporal dare16 lação do homem com sua ferida' • Outra grande temática desenvolvida por Deleuze em Lyon, e que vem de seu trabalho sobre Nietzsche, é a do eterno retorno como retorno do diferente, o que implica uma valorização da afirmação e uma crítica da lógica do ressentimento ou da negatividade: "Essa é a essência do que ele nos transmitia em Lyon e que assumirá um contorno um pouco diferente depois"47. Seus alunos lyoneses estão estupefatos com a maneira bastante escrupulosa de Deleuze se manter muito próximo dos textos que evoca, de penetrar no mais profundo de sua lógica própria. Ainda que Deleuze permaneça um pouco à parte de seus colegas de Lyon, é uma autoridade incontestável e incontestada em face do enorme público que acorre às suas aulas. Em propedêutica, ele se dirige a duas

centenas de estudantes reunidos em um anfiteatro e, quando toma a palavra, "é carismático a tal ponto que se ouvem as moscas voancIo'"" . Deleuze já atrai numerosos estudantes vindos de outras especializações e, como de costume, dá a impressão de improvisar as aulas que, na verdade, foram cuidadosamente preparadas, a ponto de se dirigir a seu público sem recorrer a anotações: "Ele nos mantinha em suspense com um evidente talento de narrador, ao mesmo tempo muito próximo e muito distante, muito dândi. Com ele não tinha moleza, nem 49 favoritismd' . Esse período lyonês de Deleuze é marcado, antes da publicação de sua tese, pelo lan50 çamento de sua obra sobre o bergsonismo . Esse ensaio resulta de uma longa gestação. Todos se recordam que Bergson foi um autor de referência para ele nos anos 1940, enquanto seus companheiros François Châtelet ou Olivier Revault dA.llones manifestavam sérias reservas em relação a esse filósofo, considerado excessivamente idealista. Na Libertação e até os anos 1950, quando reinam incontestáveis os "3 H" (Hegel, Hussrl, Heidegger), não há realmente lugar para Bergson. Mesmo assim, Deleuze continua a trilhar seu caminho com uma fidelidade impressionante. Em 1956, Merleau-Ponty lhe oferece a oportunidade de escrever o capítulo "Bergson" na obra que diri1 ge, Les Philosophes Célebrel • Nessa apresentação, Deleuze começa por afirmar que se reconhece um grande filósofo por sua capacidade de inventar conceitos. No caso de Bergson, as noções de "duração'' e de "memória", de "impulso vital'' ou de "intuição" estão indissoluvelmente ligados à sua contribuição. Filósofo que tem como principal imperativo colocar claramente o problema que pretende resolver, Bergson sugere um método fecundo para descartar os falsos problemas graças à sua doutrina da intuição. Deleuze discerne em Bergson duas características da intuição. Bergson torna possível a aparição da coisa, e, ao mesmo tempo, ela se apresenta como um retorno. A maior implicação de uma tal concepção é a superação do dualismo

119

entre mundo sensível e mundo inteligível que, segundo Bergson, fazem parte de um mesmo movimento: "A distinção de dois mundos foi substituída portanto por Bergson pela distin52 ção de dois movimentos" • Nesse texto ele 1956, já estavam presentes os prolegômenos da futura tese de Deleuze sobre a diferença como absoluto, que tem sua fonte nas posições bergsonianas. De fato, segundo Deleuze, Bergson desloca o questionamento clássico e sem resposta possível do tipo "por que alguma coisa ao invés de nada?" para "por que tal coisa e não tal outra?", o que remete à questão da diferença, de uma verdadeira metafísica da diferença: "Isso significa que o ser é a diferença, e não o imutável ou o indiferente, nem a contradição que nada mais é que um falso movimentO'":'. A saída possível da aporia que insiste em opor de maneira binária o uno e o múltiplo é fazer valer a diferença enquanto diferença. Bergson tem uma preocupação particular em operar as cesuras certas, em distinguir bem nas realidades híbridas da matéria os elementos que as compõem. Nesse aspecto, apoia-se em Platão ao comparar o filósofo a um bom cozinheiro que faz os cortes seguindo as articulações naturais. A intuição é o instrumento do filósofo, seu método de divisão, de construção de dualismos pertinentes que não cinclem tanto as coisas, mas suas tendências, suas inscrições mutáveis na duração conforme as linhas de diferenciação da matéria. É, portanto, na realização da virtualidade que está o impulso vital. Deleuze encontrava ainda em Bergson esse primado da diferença, que será inclusive o tema de sua tese: "O impulso vital é a diferença na medida em que ela »54 passa ao ato . Entre a virtualidade e sua atualização, o que liga na duração passa pela memória. É por ela que o passado se prolonga no presente. A meffiória preserva o que foi e suas potencialidades que sobrevivem no atual. Deleuze enfatiza essa contribuição essencial de Bergson que desalinha a concepção tradicional do tempo e rompe com a lógica simples da sucessão de momentos separados uns dos outros: "O passado não se consti-

120

tu i depois de ter sido presente, ele coexiste consigo como presente"55 . A valorização do virtual no atual, que faz coexistir em um mesmo momento passado e presente, conduz Bergson a preconizar o impulso criador, o abandono dos hábitos:

"Um tema lírico percorre toda a obra de Bergson: um verdadeiro canto em louvor do novo, do imprevisível, da invenção, da liberdade'''". Esse ano de 1956 é decididamente muito bergsoniano para Deleuze. Além de sua contribuição à obra dirigida por Merleau-Ponty, ele publica um longo estudo, que já fora objeto de exposição em 1954 perante a Associação dos Amigos de Bergson, sobre "a concepção da di-

ferença em Bergson"'". Deleuze extrai Bergson da ganga do psicologismo em que se acreditava poder encerrá-lo e insiste na dimensão ontológica da obra. Sobre esse ponto, essencial, ele se apoia na leitura que Hyppolite já havia feito de Bergson, que era confrontado com He58 gel sobre a questão da diferença • O artigo tematiz~ essa conexão essencial entre a vida e o princípio de diferenciação: ''A vida é o processo 59 da diferença' • Seja na ordem vegetal, animal ou humana, os processos de diferenciação estão no cerne da emergência da multiplicidade das espécies. Ainda que a perspectiva seja es-

sencialmente monista, e não dualista, Bergson distingue uma especificidade da história propriamente humana, ligada à dimensão da consciência: "Se a diferença mesma é bioló60 gica, a consciência da diferença é histórica'' • Bergson também representa inicialmente uma alternativa à dialética hegeliana, que valoriza a negação e a contradição, ao passo que ele defende uma concepção da diferença sem negatividade. Com isso, permite sair do finalismo causal, de uma teleologia histórica, para ressaltar os jogos de séries temporais imbricadas e que abrem para um devir marcado pela indeterminação. Esta não remete a uma noção

frouxa e vaga. Concluindo esse intenso estudo, Deleuze escreve: "O bergsonismo é uma filosofia da diferença, e de realização da diferença: há a diferença em pessoa, e esta se realiza como novidade"(:!, apreciação que poderia se ., 62 aplicar muito be'tn a ele também .

Gilles Deleuze & Félix Guattari

---------------------------Como assinala Anne Sauvagnargues, "Bergson orienta Deleuze para uma filosofia da 63 diferença, como operação da vida" . Deleuze encontra justamente em A Evolução Criadora a realização desse programa: "O impulso vital 64 é a duração que se diferencia'' • Deleuze não se limita a uma simples repetição da temática bergsoniana, mas opera um deslocamento decisivo do vitalismo ao diferencialismo. Em seu curso de 1960, ele aproxima Freud e Bergson, que assumem a mesma postura ao atribuir a liberdade à novidade e a memória a uma função voltada para o futuro: "Mais passado == mais futuro e, portanto, liberdade. A memória é sempre uma contração do passado no presente"65. Para Deleuze, não se trata de recair em uma fOrma de dualismo, mas de ressaltar as linhas da diferença segundo os movimentos de diferenciação. Ao dualismo clássico na tradição filosófica entre o sujeito da representação e o objeto representado, que a fenomenologia retoma por sua conta, Bergson e depois Deleuze opõem outra via, monista, segundo a qual a consciência não seria "consciência de qualquer coisa'', pois a consciência é qualquer coisa. Quanto à experiência, ela é feita apenas de mistos nos quais o sujeito evolui, o que implica da parte do filósofo recorrer à intuição como método: "É papel da intuição decompor os mistos, encontrar os 'puros'"66. Quando Deleuze publica em 1966 O Bergsonismo67, é encarregado de um curso na universidade de Lyon. O próprio título de sua obra se reveste de um tom provocativo, em ruptura com a doxa em vigor sobre Bergson. O que prevalece a propósito de Bergson é a interpretação ultracrítica, panfletária, feita antes da guerra por Georges Politzer. Com o pseudônimo anticlerical de François A.rouet, Georges Politzer publicou em 1929 um livro bastante 68 corrosivo contra o bergsonismo • Militante comunista fuzilado em Mont-Valérien, Politzer torna-se uma celebridade no pós-guerra, e sua concepção do bergsonismo domina a maior parte dos meios intelectuais. Politzer não somente reduz o bergsonismo a uma fOrma de psicologismo ultrapassado, como faz

dele a expressão de uma corrente ideológica da burguesia: "Toda sua vida [de Bergson], assim como as indicações que deu de sua moral, que ainda não nasceu e não nascerá jamais, nos permitem compreender que ele se entregou tota!mente aos vaIores burgueses ""' . segundo Régis ]olivet, Bergson era considerado "cão morto" pela vanguarda filosófica dos anos 1940 e 1950. Portanto, ainda nos anos de 1960, o bergsonismo era suspeito de ser o tapa-sexo de uma burguesia revanchista. O fato de Deleuze assumir o "ismd' de bergsonismo nesse contexto representa um extraordinário golpe de força: "Com Deleuze, é a operação de retorno do bergsonismo de uma ideologia para uma doutrina filosófica. Ao mesmo tempo, chamar seu livro de O Bergsonismo é também um gesto de deboche aos próprios bergsonianos, estigmatizando-os por terem constituído uma espécie de religião. Há ali uma jogada de 70 gênio já no título na obra'' . Desde as primeiras linhas, Deleuze investe contra o lugar comum segundo o qual a intuição, em Bergson, estaria ligada a uma forma de espontaneidade infrarreflexiva. Ao contrário, ele vê ali o próprio método do bergsonismo e "um dos métodos mais elaborados da ülosofiàm. Deleuze se apropria dessa doutrina. Ela exige a maior precisão, e sua primeira regra, que Deleuze não cansa de evocar como a tarefa mesma da filosofia, é colocar bem os problemas, o que ele já havia dito em seu livro sobre Hum e. Com Bergson, avança-se mais um passo ao denunciar os falsos problemas. O verdadeiro e o falso devem ser postos à prova não mais pelo mero exame das soluções apresentadas, mas no próprio nível das questões levantadas. Assim, colocar o problema certo não depende da capacidade de desvendar o que é, mas da capacidade de inventar. Uma das regras básicas de Bergson decorre do imperativo de discernimento das verdadeiras articulações entre categorias diferentes por natureza. Desse ponto de vista, Bergson utilizará o dualismo, e Deleuze fará o mesmo com frequência, não para fazer prevalecer um sistema filosófico binário, pois, ao contrário, a

121

doutrina de Bergson, assim como a de Deleuze, permanece resolutamente monista. Todo o método bergsoniano consiste, de fato, em restaurar as diferenças de natureza nos mistos que a experiência nos fornece, e é a intuição que serve de guia nesse processo de discriminação. Assim, a percepção coloca de imediato a consciência em pé de igualdade na matéria, enquanto a memória nos situa de imediato no campo do espírito. Por outro lado, a intuição erigida em método de discriminação privilegia o tempo em relação ao espaço, pois a duração é para Bergson o lugar próprio do processo de diferenciação, de alteração. Portanto, a intui~ ção bergsoniana é mesmo um método rigo~ rosa por sua capacidade de problematizar, de diferenciar e de ternporalizar. Um dos principais deslocamentos feitos por Deleuze em relação às interpretações tradicionais de Bergson foi o de considerar que a essência de sua doutrina não é representada nem pelo impulso vital, nem pela memória, mas pela lógica da multiplicidade. Assim, diferentemente dos bergsonianos, ele dedica longos desdobramentos à exposição de seu primeiro ensaio de 1889 caído no esquecimento,

Ensaio sobre os Dados Imediatos da Consciência72, onde encontra os fundamentos de urna teoria das multiplicidades: "Não se trata para Bergson de opor o Múltiplo ao Uno'"'. A noção de multiplicidade possibilita abandonar a dialética hegeliana- que, segundo Bergson, parte de uma abordagem abstrata demais, desligada da experiência - e substituí-la por uma percepção flna das singularidades. A temática mais clássica desenvolvida por Deleuze em sua obra diz respeito à memória, na medida em que ela induz- uma concepção do tempo que não opõe mais um passado consumado cortado do presente, mas um tempo imbricado, graus coexistentes da duração. Se o presente é do domínio da psicologia, o passado, por sua vez, remete à ontologia pura: "A lembrança pura só tem significação ontológica''74, afirma Deleuze que, nesse plano, segue o ensinamento de seu mestre Hyppolite, quando este criticava as interpretações psicologizan-

122

tes de Bergson. Em ruptura com as teses do historicismo alemão de Hanke e com as da escola historiadora francesa de Langlois, Seignobos e Lavisse, Bergson lança uma concepção

do tempo muito inovadora, fundada na concepção de um passado que nunca é verdadeiramente consumado na medida em que persiste no presente do qual não é indissociável. A filosofia da vida definida por Bergson pretende transcender os limites do causalismo

mecanicista: ''A atualização tem como regras, não mais a semelhança e a limitação, mas a di-

ferença ou a divergência, e a criação"7';. Essa via de escape dos fluxos criativos da vida que Deleuze desvenda em Bergson constitui um veio que ele continuará aprofundando ao longo de

sua obra. Para reiniciar o movimento, para deslocar as formas e fazer valer as forças, fftlta ainda poder pensar o descontínuo, as possíveis rupturas. Aqui também Deleuze encontra suporte em Bergson, pois "a inteligência só con76 cebe claramente o descontínuo" • O que conta é o ato prestes a se realizar, o processo em curso inovando e liberando de vires: "Há mais em um movimento do que nas posições sucessivas atribuídas ao móvel, mais em um devir do que nas formas atravessadas uma a umàm. Nesse processo que é a vida mesma em seu impulso conjugam-se a matéria, que representa o polo da necessidade, e a consciência, que é o polo da liberdade. Esse caminhar para a criatividade passa por um método subtrativo - é o que Deleuze reterá mais tarde das teses de Bergson no primeiro capítulo dejVfatéria e Memória (1896), ao preparar suas obras sobre o cinema nos anos 1980. A consciência não se junta ao mundo. Ela lança suas redes para capturá-lo; ela é o próprio mundo por subtração. Tem-se aqui a definição da consciência não como feixe luminoso que junta, mas, ao contrário, como algo de menos, que subtrai: "É uma mudança radical de regime metafórico. Não se está mais na luz dirigida para as coisas, nem no arpão fenomenológico, mas sim na tela escura onde se 78 projeta a matéria do menos" • Contudo, essa apropriação das teses bergsonianas é as.Sociada,,~~omo sempre, da parte

Gilles Deleuze & Félix Guattari

de Deleuze, a uma leitura singular. Como disse de todos os autores que explorou, ele acaba por lhe fazer "um filho por trás". Bergson, apesar de seu estatuto privilegiado no Panteão deleuziano, não escapa à regra. Como dis~::e o especialista na obra de Bergson, Frédéric Worms, "o que quer que se diga, Bergson é espiritualista, mesmo que eu me insurja contra esse rótulo" 79• Contudo, o Bergson de Deleuze é um Bergson sem a consciência, um Bergson do qual se teria subtraído o espírito, o que de algum modo, não é pareo. Segundo Bergson, uma coisa só existe se a memória faz sua síntese temporal, e mes~ mo o corpo sozinho não se sustenta no Ser. O corpo só se sustenta então a partir de uma subjetividade, de um ato imanente ao tempo e à experiência, mas se trata de um ato. Deleuze, porém, deixa totalmente na sombra de seu comentário esse aspecto importante das teses bergsonianas. Isso o leva a desconsiderar toda uma parte da obra: "Ele não fala de seu livro essencial As Duas fõntes da Moral e da Religião, o que é surpreendente, pois essa obra traz já no título a noção de distinção de natureza. Estranha ausência, que certamente se deve 0 ao tabu da consciência"s . A duração, segundo Bergson, é um ato subjetivo, enquanto, para Deleuze, o movimento é inverso: o sujeito é um efeito da duração. A consciência se apresenta, portanto, como uma simples contração de instantes. Deleuze extrai assim uma parte da obra de Bergson para abandonar outra que não julga essencial. Apesar disso, sua leitura contribuiu muito para o retorno de Bergson ao cenário fllosófico, para sua legitimação junto a uma nova geração de filósofos: "O filho que Deleuze fez por trás em Bergson é um filho genial, de que todos necessitam. Quanto a mim, adoto esse bastardo, fornece-lho o pão, a moradia, a educação; foi o que tentei fazer" 8 J.

Um pensamento da afirmação: Espinosa Espinosa ocupa um lugar privilegiado na obra de Deleuze. Em !977, Deleuze o designará

como o autor de que tratou mais e que teve papel fundamental sobre ele: "Foi sobre Espinosa que trabalhei mais seriamente seguindo as no r~ mas da história da filosofia, mas foi ele que mais me fez sentir o efeito de uma corrente de ar que sopra nas suas costas toda vez que você o lê, de uma vassoura de bruxa em que ele o faz montar. As pessoas nem começar'am ainda a compreen82 der Espinosa, e eu não mais do que os outros" • Muito mais tarde, em !99!, quando da publicação de O que é a filosofia?, Deleuze presta uma vibrante homenagem a Espinosa, que é apresentado como "o príncipe dos filósofos. Talvez o único a não ter assumido nenhum compromisso com o transcendente, a tê-lo perseguido por 83 toda parte" ; "Espinosa é também o Cristo dos filósofos, e os maiores filósofos não passam de apóstolos, que se afastam ou se aproximam desse mistério. Espinosa, o devir-f1lósof0 infinito. Ele mostrou, traçou, pensou o 'melhor' plano de imanência, isto é, o mais puro, aquele que não se 84 entrega ao transcendente" • Espinosa é o tema da tese complementar de Deleuze, ''A ideia de expressão na filosofia de Espinosa', defendida em 1968 sob a orien85 tação de Ferdinand Alquié . Esse trabalho de pesquisa, que de fato começou bem antes, já está praticamente concluído no final dos anos 1950. Deleuze tem, na verdade, uma divergência bastante radical com seu orientador, que defende Hrmemente o dualismo cartesiano contra o monismo espinosista. Contudo, Deleuze encontra em Alquié algumas sugestões que lhe parecem fundamentais, como a ideia de considerar as "noções comuns" como "ideias biológicas", e não como essências geométricas abstratas". Em 1970, Deleuze publica uma segunda obra sobre Espinosa em forma 87 de antologia e, em 1978, escreve um artigo 88 sobre a atualidade de Espinosa . Alguns anos mais tarde, publica um ensaio que retoma 89 parcialmente os dois textos anteriores . En~ tre 1980 e 198!, consagra todo o seu curso de Vincennes a Espinosa, ao qual ainda voltará 90 posteriormente em Crítica e Clfnica, em 1993 • Essa penetração no mundo de Espinosa, no interior mesmo das questões colocadas por ele,

123

no próprio húmus das controvérsias que teve de enfrentar, já é uma ruptura decisiva realizada por Deleuze em face da reputação acadêmica de um filósofo considerado o mestre de um sistema ao mesmo tempo desencarnado e inacessível. Deleuze ressuscita Espinosa e, ao mesmo tempo, esse dom de fazer reviver passa por ele mesmo. É preciso dizer que toda uma tradição filosóflcadifundia a imagem de um espinosa puro metafísico, impraticável, por não levar em conta a questão da liberdade: "Se ele foi tão desacreditado a ponto de se fazer do 'Espinosismo' uma injúria, ou até um rótulo diabólico, é porque se viu de imediato (ainda que para deformá-las e caricaturá-las) as implica91 ções ateológicas e amorais de sua metafísicâ' • Para Hegel, Espinosa é o criador de um sistema puramente teórico, e, depois dele, Kojeve considera que não se pode fazer nada com Espinosa, cuja filosofia é sustentada por um sistema morto, que exclui tanto a liberdade quanto a subjetividade. Deleuze tira Espinosa desse aprisionamento: "Fazendo dele o grande 'herdeiro' de Nietzsche, o grande vivente, Deleuze 92 reverte completamente as coisas" • "O fllósofo pode habitar diversos Estados, frequentar diversos meios, mas à maneira de um eremita, de uma sombra, viajante, locatário de pensões mobiliadas'm. Durante toda sua vida, Espinosa se mostrou preocupado em manter sua independência e só pediu das au~ toridades para ser tolerado, o que mais tarde constituirá uma regra de vida do próprio Deleuze. Entretanto, no século XVII, mesmo nesse meio efervescente de Amsterdã, o uso da liber~ dade não é algo simples, e Espinosa teve essa amarga experiência. Sua grande obra, a Ética, que lhe custou quinze anos de trabalho, não pôde ser publicada em vida, pois mexia demais com as convenções. Espinosa morre em 1677 sem ter conseguido torná-la pública. A forma como foi recebida pelo Conselho Presbiteriano de Leyde confirmou os temores do filósofo. O julgamento foi implacável: esse "livro que, desde o princípio do mundo, e talvez até agora, é ímpar em impiedade". Fez-se de Espinosa, resistente a qualquer submissão, um anacoreta,

124

Cilles Deleuze & Félix Gualtari

Dosse

uma espécie de espectro desencarnado. Contudo, há urna grande distância entre tal representação e a realidade desse fllósofo, percorrido "pela própria Vida", segundo Deleuze'''. Seu pensamento é em primeiro lugar e acima de tudo um pensamento da vida, de sua potência,

do triunfo dos afetos de alegria contra os afetos tristes. É esse aspecto fundamental da mensagem espinosista que Deleuze ressalta sempre: "A vida não é uma ide ia, um problema de teoria em Espinosa. É uma maneira de ser, um mes95 mo modo eterno em todos os atributos" •

Espinosa pertence plenamente ao seu tempo, portanto seu sistema não tem nada de desencarnado. Expressa até o paroxismo das

questões próprias a uma modernidade que passa de uma relação com um universo considerado fechado, finito, no pensamento clássico, a uma relação com um universo que se descobre infinito. A grande pergunta do século XVII é como pensar o infinito. As teses de Espinosa levarão essa pergunta ao extremo, recusando o face a face entre uma finitude e uma infinitude graças à invenção de uma nova categoria, a do infinitamente pequeno, que se pode apreender a partir ele séries. Nesse plano, Espinosa apresenta uma concepção singular do indivíduo como composição, potência e graus. O indivíduo não é mais visto então como substância, mas como relação independente de seus termos. Em segundo lugar, o indivíduo é antes de tudo potência, e não forma; ele tende ao seu limite. Espinosa propõe aqui o conceito de conatus, segundo o qual "cada coisa tende a perseverar em seu ser". O indivíduo tende, portanto, ao seu limite: "A potência é isso: o esforço na medida em que ele tende para um limite"96• Em sua tese complementar, Deleuze tematiza um problema que julga central para Espinosa, o da expressão, termo utilizado no livro primeiro da Ética e que serve de ponto de partida para Deleuze: "Entendo por Deus um ser absolutamente infinito, isto é, uma substância que consiste em uma infinidade de atributos, e cada um exprime uma essência 97 eterna e infi~üta" • O problema da expressão, segundo Dêleuze, condensa a diflcil relação

unitária entre a substância e a diversidade de seus atributos. É pela expressão que oespinosismo consiste em um monismo. Diferentemente da dimensão do "explicar", o "exprimir" reveste-se de uma dimensão ontológica cuja importância está em opor ao cartesianismo as potencialidades de uma filosofia da natureza: ''A expressão não deve ser, portanto, objeto de demonstração; é ela que põe a demonstração 98 no absoluto" • Espinosa não chegou verdadeiramente a tematizar essa noção de expressão em sua obra, corno admite Deleuze: ''A ideia de expressão em Esplnosa não é objeto nem 99 de definição, nem de demonstração" • Visto que os atributos só podem consistir em afirmações, estas são expressivas: ''A filosofia de Espinosa é uma filosofia da afirmação pura. A afirmação é o princípio especulativo do qual depende toda a Ética"' 00• O tema da potência está no cerne do espinosismo. A potência está em atividade por toda parte, e nesse campo o entendimento não tem privilégios em relação aos seus obje~ tos, que desenvolvem a mesma potência para existir. A potência é o equivalente da essência. Todos os seres são animados pela potência de existir, que é para o homem "uma parte da potência infinita, isto é, da essência, de Deus ou 101 da Natureza" • Essa potência divina se desdo~ bra em uma potência de existir e de agir, de pensar e de conhecer. Essa natureza divina é fundada "ao mesmo tempo na necessidade e 102 na possibilidade" • Deleuze mostra em que Espinosa toma distância de Descartes e de seu dualismo fundado na adequação entre a ideia e a coisa que ela representa. Com isso, o cartesianismo se condena a permanecer no nível da forma e não atinge a potência. Para Espinosa, a ideia adequada não tem a significação de uma cor~ respondência entre a ideia e a coisa, mas "é precisamente a ideia como que exprime sua 3 causa"w . Deleuze estabelece uma ligação entre Espinosa e seus trabalhos sobre Hume. Ele caracteriza o método espinosista como "empirista'' a partir do momento em que Espinosa desloca o questionamento cartesiano

do claro e do distinto para substitu.í-lo por um método que não se pergunta mais se há ideias inadequadas, e sim como se formulam ideias adequadas: "Nisso, a inspiração espinosista é 1 profundamente empirista'' 1o. • Aspecto essencial ao qual Deleuze voltará com frequência posteriormente é a questão colocada por Espinosa sobre o que pode um corpo enquanto poder de afetar e de ser afetado: "Não se sabe o que pode o corpo, ou o que se pode deduzir da mera consideração de sua natureza''105. Do que é capaz a potência própria ao humano não pode ser predeterminado, na medida em que ao polo da atividade corresponde sua contraparte, passiva, de ser-afetado. Essa potência leva a existência aos seus limites ex~ trem os, e é chamada de conatus, o esforço para perseverar no ser. Deleuze confere a essa força o nome de "desejo" e insiste no fato de que este é determinado por afeições. Essa temática será fundamental em Deleuze quando - primeiro para se apropriar dele e depois para combatê~lo -vai ao encontro do discurso psicanalítico, opondo~ lhe outra via, uma via f1losófica, que leva em conta essencialmente a questão do desejo, mas de forma não freudiana. A retomada desse conatus/ desejo provém, segundo Espinosa, dos encontros. Tais encontros ou têm como efeito nos tornar mais ativos, redobrando assim nossa potência, e então causar alegria ou, ao contrário, são portadores de afetos tristes e nos condenam à impotência, à passividade, obstruindo nossa capacidade de ação. O homem dispõe portanto, enquanto ser afetado, de uma capacidade ele discernir o que o torna triste ou alegre. Ele tem condições de discriminar entre os encontros bons e os maus. É na esfera prática que essa lucidez sobre si pode difundir suas luzes: "Triunfamos quando conseguimos afastar esse sentimento de tristeza e, portanto, 06 destruir o corpo que nos afCta'>~ • Disso resulta uma ética que convida a não sucumbir no ódio ou na polêmica, assim como em qualquer outro afeto triste, para que prevaleça sempre a potência própria de agir e de criar. Quando Espinosa constata a incapacidade de conceber o que pode um corpo, esse é para

125 107

Deleuze um verdadeiro '"grito de guerra" , pois inverte a prevalência atribuída até então às ações e reações da alma sobre as do corpo. O corpo, segundo Espinosa, ultrapassa o conhecimento que se pode ter dele, pois encarna uma maneira de ser de um dos dois atributos, a extensão, feita de velocidades e de lentidões compostas entre elas. O que faz mover o corpo tem a ver apenas com a imanência. Espinosa situa-se em um plano que não é o da oposição moral entre o Bem e o Mal, mas o plano ético do tipo de afetos que determinam o conatus: "No limite, o homem livre, forte era~ zoável vai se definir plenamente pelo domínio 10 de sua potência de agir" 1'. Lá onde o encontro - o que Deleuze chamará, depois de seu encontro com Guattari, de corte de fluxo - é essencial para perseverar no ser, é porque o "Eu posso' está ligado à capacidade de ser afetado, e isso depende do encontro com outro, na medida em que ele pode alterar a identidade do Mesmo. Em 1977, quase dez anos após a publicação de sua tese complementar. Deleuze é convidado pelo Centre lnternational de Synthêse por ocasião do tricentenário da morte de Espinosa. Ele faz uma conferência: "Espinosa e 09 nós»~ . Com essa fórmula, Deleuze exprime seu próprio estilo de começar pelo meio das obras filosóficas para intensificar o agenciamento entre o leitor atual e o filósofo solicitado. Esse "começar pelo meio' possibilita, por outro lado, uma melhor inteligibilidade de Espinosa: até então, os comentadores giravam em torno dos dois atributos da substância se~ gundo Espinosa, que são a extensão e o pensamento. De fato, só podemos conhecer dois dos atributos da substância, que, por sua vez, provém do divino por seu caráter infinito: a extensão e o pensamento. "Já Deleuze se instala no meio do sistema e circunscreve ali a substância, os atributos que se exprimem, e recompõe todo o sistema de Espinosa a partir da noção de expressão"n°. O que é não é a substância, mas a exprime sem nenhum caráter hierárquico, o que faz de Espinosa um pensador da imanência em ruptura com todo pensamento

126

Cilles Deleuze & Félix Guattari

Dosse

emanativo. O Ser remete ao Uno, à

univocida~

de, quando todos os atributos estão em uma situação ele perfeita igualdade. Nessa comunicação, Deleuze já exprime o

deslocamento que confirmará em 1981 quando da publicação ele sua nova obra sobre Espinosa, isto é, o ensino essencialmente prático de sua Ética, que não consiste em um tratado de moral, mas em um ensaio de etologia: ''A eto~ logia é em primeiro lugar o estudo das relações de velocidade e de lentidão, dos poderes de afetar e de ser afetado que caracterizam qualquer coisa"lll. Essa questão de velocidades diferenciais é essencial para Deleuze, que se apoia em Espinosa para não definir uma coisa ou um indivíduo por sua forma, por seus órgãos ou suas funções, nem como substância ou sujeito, mas por sua longitude e sua latitude. Ele retoma de Espinosa a distinção entre esses dois modos de individuação, que são a existência enquanto conjunto divisível em partes extensivas e a essência enquanto parte intensiva. Sua concepção do corpo é ele ordem cinética, opondo relações de velocidade e de lentidão de cada um de seus elementos. Essa distinção servirá mais tarde, tanto a Deleuze quanto a Guattari, para pensar em termos de cartografia do corpo. A primeira leitura de Espinosa que Deleuze publica em 1968 não é verdadeiramente superada pela segunda publicação, de !981. No entanto, pode-se compartilhar a constatação de François Zourabichvili, que aponta um deslocamento do olhar que dirige a Espinosa "o herói filosófico do segundo Deleuze"w Quando Deleuze publica essa segunda obra sobre Espinosa, estamos no pós-68 e depois da publicação dos dois livros mais importantes escritos com Guattari, O Anti-Édipo e Mil Platôs. O resultado é que desta vez· a ênfase é colocada na dimensão prática dessa filosofia Espinosista, assim como em suas afinidades com a de Nietzsche. O Espinosa revisitado então por Deleuze é o fi. lósofo de uma arte de viver, de uma maneira de ser que permite combinar em uma harmonia as solicitações tanto do afeto como do conceito para intensificar a coincidência de mais razão e mais alegria. Phra se impor, essa maneira de

i

viver deve travar três combates: contra o poder e suas proibições, contra a transcendência que cava um fOsso entre o pensamento e suas potencialidades e, finalmente, contra "uma concepção nociva das relações teoria-prática (proeminência da primeira sobre a seguncla)"m. Espinosa torna-se a referência fundamental de um pensamento plenamente imanente. Deleuze retoma, mas desta vez após uma breve apresentação de sua viela, o tema da diferença entre moral e ética, pela qual Espinosa causou escândalo em sua época. Sua filosofia prática é de fato apresentada como um triplo desafio lançado ao reino da consciência, dos valores e das paixões tristes, que lhe vale um triplo motivo de acusação ele materialismo, de imoralismo e de ateísmo. A analogia com Nietzsche impressiona Deleuze, que afirma de imediato a pertinência dessa aproximação um tanto quanto diabólica. "Tudo tendia para a 114 grande identidade Nietzsche-Espinosa" • Espinosa serve então de máquina de guerra para Deleuze contra o estruturalismo e contra o psicanalismo. Espinosa permite exaltar as forças da vida contra toda cultura de culpabilidade, contra todo pensamento que parte da falta, da ausência: ''A alegria ética é o correlato da afir~ 5 mação especulativa"n • Tudo se opera na existência como experimentação das boas ou más combinações, e só elas podem fazer aflorar o que é bom ou mau: "Essa é portanto a diferença final do homem bom e do homem mau: o homem bom, ou forte, é aquele que existe tão plenamente ou tão intensamente que conquistou a eternidade em vida e para quem a morte, sempre 116 extensiva, sempre exterior, é pouca coisa" • Essa exteriorização da morte, que é apenas um acidente, para Espinosa, é outra convicção que Deleuze nunca deixará de defender e de opor ao "ser-para-a-morte'' de Heidegger. A morte, diz Espinosa, só envolve as partes extensivas, "a realidade da parte intensiva subsiste"m. Disso resulta uma dupla eternidade, ao mesmo tempo a das relações que definem a singularidade de cada um e a da essência particular que caracteriza aquilo que desaparece. É isso que

permite a Espinosa afirmar que se experimenta em vida uma forma de eternidade, que ele opõe à imortalidade dos teólogos. Nessas condições, "a ideia de pulsão de morte para ele é grotesca''08, afirma Deleuze, visando também Freud. Em 1993, Deleuze volta a Espinosa para distinguir três níveis, três rítmicas, correspondentes aos três gêneros de conhecimento na Ética, cuja primeira leitura pode levar a pensar em um fluxo contínuo: "Os Signos ou afetos; as Noções ou conceitos; as Essências ou 119 perceptos" • O livro se desenvolve, portanto, segundo rítmicas diferentes, mais ou menos intensas, contraídas ou dilatadas, que fazem com que o mundo dos "postulados", "demonstrações'' e "corolários" se suceda segundo sua própria lógica contínua, enquanto que o elos "escólios" transcorre nos estratos inferiores, revelando.ali suas paixões e suas violências, as dos afetos secretos da obra em uma ordem descontínua, e o Livro V segue um ritmo bem diferente, procede por raios luminosos. O modo demonstrativo se modifica então radicalmente, contraindo-se para dar livre curso a uma velocidade superior. Depois ele ter pago seu tributo à corporação dos filósofos de ofício ao publicar essas monografias, ao mesmo tempo consolidando a base vitalista em que vai se apoiar, Deleuze passa a difundir suas próprias teses filosóficas, em 1968· 1969, falando agora em seu próprio nome aquilo com que está rompido. Afirma, então, sua singularidade de pensamento e de escrita, de estilo.

Notas 1. Prospecto da Societé fi:ançaise d'études nietzschéennes, citado por Jacques LE RIDER,

Nietzsche en F'rance. De la fln du XJ;( sikcle au temps présent, PUF, Paris, 1999, p. 185. 2. Jean WAHL, La Pensée philosophique de Nietzsche des années 1885-1888, La Sorbonne, CDU, Paris, 1959; I:Avant-demi6re pensée de Nietzsche, La Sorbonne, CDU, Paris, 1961. 3. Nietzsche, 1844-1900, Études et témoignages da cinquantenaire, ed. Martin Flinker, 1950.

127

4. Gil!es DELEUZE, Nietzsche et La phiLosophie, PUF, Paris, 1962 (doravante cítado Nph).

5. Gilles DELEUZE, Nph, p. 2. 6. Jbid., p. 3. 7. NIETZSCH E, La Généalogie de La morale, Il, §2, trad. H. Albert, Mercure de France, 1900. 8. Gillcs DELEUZE, Nph, p. 25.

9. Jbid., p. 78. 10. Gilles DELEUZE, "La méthode de dramatisation", Bulletin de la Societéfi'ançaise de philosophie, n. 3, jul.-set. de 1967, p. 89-118; reproduzido em lD. p.13H62. Jean WAHL," Nietzscbe et la philosophie ".Re11. vue de métaphysíque et de la morale, n. 3, 1963, p. 353.

12. Jbid., p. 373. 13. Na carta que envia ajean Wahl datada de 6 de junho de 1963, ele sugere que sejam convidados onze conferencistas: da França, Beaufret ou Polin, Delay, Foucault ou Laplanche, Gabriel Mareei, Jean Wahl; da Alemanha, Hei degger, Fink, Lowith; da Suíça, Starobinski, Hans Barth; e da Itália, Vattimo. 14. lvlichel FOUCAULT, "Nietzsche, Freud, Marx", Cahiers de Royaumont, n. \11, Minuit, Paris, 1967; reproduzido em Dits et É'crits, tomo I,. Gallimard, Paris, 1994, p. 564~579.

15. Gilles DELEUZE, "Conclusions sur la Volonté de puissance et J'éternel retour", Cahiers de Royaumont, n. VI, Nietzsche, Minuit, Paris, 1967, p. 275-287: reproduzido em lD, p. 163-177. 16. lbid., p. 165. 17. Gilles DELEUZE, Nietzsche, PUF. 1965. Essa obra aparece na coleção "Philosophes" e contém uma apresentação da vida do autor, uma apresentação de sua filosofia, um glossário com os principais personagens de Nietzsche e sobretudo uma antologia com extratos de sua obra.

18. Gilles DELEUZE, Michel FOUCAULT, "Introduction générale", CEuvres philosophíques completes de Nietzsche, Gallimard, 1967, t. V, Le Cai Savoir, hors-texte, p. I-IV; reproduzido em Michel Foucault, Dits et Écrits, op. cit., t. L Gallimard, p. 561-564. 19. Jbid., p. 56]. 20. Jbid., p. 561. 21. Gilles DELEUZE, "L'éclat de rire de Nietzsche", entrevista com Guy Dumm~ Le Nouvel Obser-

\

;;''

'

128

François Dosse

vateur, 5 ele abril de 1967, reproduzida em ID, p.!78·18l. 22. Gilles Deluze, entrevista com Jean-Noel Vuarnet, Les lettres françaises, 28 fevereiro-S de março de 1968; reproduzida em ID, p. 191-192.

23. Píerre KLOSSOVVSKL Nietzsche et !e cerc!e !'icieux, Mercure de Prance, Paris, 1960. 24. jean-Míchel REY, L'Enjeu des signes, Seuil, Paris, 1971; Bernard PAUTRAY, Versions duSoleil, Seuil,Paris, 1971; Sarah KOFJ\!IAN,Nietzscheet la métaphore, Payot, Paris, 1972. 25. Essa década de Cerisy é publicada em 2 volumes: Nietzsche aujourd'hui?, vol. 1. Jntensités, vol. 2. Passion. Encontram-se ali Bernard Pautrat, Jean-Luc Nancy, Pierre Klossowskí, Jean-François Lyotard, Giltes Deleuze, Sylviane Agacinskl, Rodolphe Gasché, Êric Clemens, Roberto Calasse, Jacques Derrida,Jean-Ntichel Rey,Jean-Noel Vuarnet, Pierre Bardot, Léopold Fiam, Philippe Lacoue-Labarthe,Jean Mourel, Édouard Gaede, Sarah Kofrnan, Éric Blondel, Jeanne Delhomme, Karl Liwith, Paul Valadier, Eugen Biser, Richard Roas, Heinz Wisrnann, Eugen Fink, Norman Palma.

Gilles Deleuze & Félix Guattari

32. Ver Jean-Clet MARTIN, Variations. La philosophie de GiL!es De!euze, Payot, Paris, 1993, principalmente o capitulo "Nomadologie", p. 51-7L

33. Mano la ANTONIOLI, DeLeuze et La histoire de La philosophie, Kimé, Paris, 1999, p. 52. 34. f: o que atesta o capítulo 12 de Mil Platôs, consagrado a um "Tratado de nomadologia. A máquina de guerra".

35. Encarregado de ensino (chargé d'enseignement) significava na época professor titular mas sem ter ainda a tese de doutorado.

36. Gilles Deleuze. carta a Jean Wahl, 16 de dezembro de 1964, acervo Jean Wahl, IMEC, carta comunicada por Giuseppe Bianco.

37. Gilles Deleuze, carta a François Châtelet, 1966, acervo Châtelet, IMEC.

38. jeannette COLOMBEL. "Deleuze-Sartre:

pis~

tes", em André BERNOLD, Richard PINHAS (sob a dir.), Deleuze épars, Hermann, Paris, 2005, p. 41. 39. lbid., p. 41. 40. Chris Younês, entrevista com o autor.

41. Alain Roger, entrevista com o autor.

26. Gilles DELEUZE, "Pensée nomade", ibid., vol. 1. p. 159·174: reproduzido em ID, p. 351·364.

42. Jeannette COLOMBEL, "Deleuze-Sartre: pistes", op. cit., p. 42.

27. Ibid., em ID, p. 351.

43. Chris Younês, entrevista com o autor. 44. Ibid.

28. Ibid., p. 354. 29. Ibid., p. 359. 30. Jacques LE RIDER apresenta dados numéricos em Nietzsche en F'rance. De la fin du XIX siJcle au ternps présent, PUF, Paris, 1999: La Généalogie de la morale, a obra mais lida, vende 269 mil exemplares na tradução Albert publicada pela coleção "Idées" em 1966; 11 mil exemplares na edição OPC, em 1971; 105 mil exemplares na "Folid', edição de 1985; ou seja, um total de 385 mil exemplares. Ainsi parlait Zarathoustra, por sua vez, atinge 191 mil exemplares eLe Cai Savoir, 183.500 exemplares. Essa década de Cerisy sobre Nietzsche COITesponde ao ano de publicação de I.:Anti-(]j'dipe. Portanto, não é de se surpreender diante da afirmação do significado político contestador trazido pelo pensamento nietzschiano revisitado e pela abertura para linhas de fuga, para um nomadismo do pensamento que deve se desterritorializar e se decodificar. 31. NIETZSCHE, La Généalogie de La morale, II, §17. ···'

45. Joê BOUSQUET, Traduit du silence, Gallimard,

Paris(l941).1967. 46. "Minha ferida existia antes de mim, nasci para encarná-la", escreve Bousquet, e Deleuze comenta: ''A ferida é urna coisa que recebo em meu corpo, em tal lugar, em tal momento, mas há também uma verdade eterna da ferida como acontecimento impassível, incorpora!" (Gilles DELEUZE, D, p. 80).

55. Jbid., p. 39.

84. lbid., p. 59.

56. Jbid., p. 41.

85. Gilles DELEUZE, Spinoza et le probleme de I 'ex· pression, Nlinuit, Paris, 1968 (doravante citado SPE).

57. Gilles DELEUZE, "La conception de la différence chez Bergson", Les Études bergsoniennes, voi. IV,l956, p. 77-112; reproduzido em][), p. 43· 72.

58. Ver Giuseppe BIAl\JCO, "L'inhumanité de ia différence. Aux sources de l'élan bergsonien de Deleuze", Concepts, Gilies Deleuze, Sils Maria, Mons, 2003, em particular p. 68-73.

59. Gilles DELEUZE, "La conceptíon de la différence chez Bergson", em ID, p. 54. 60. Jbid., p. 57. 61. Jbid., p. 72. 62. Be1gson, Mémoire et vie, textos escolhidos por Gilles Deleuze, PUF: Paris, 1957.

63. Aime SAUVAGNARGUES, "Deleuze avec Bergson. Le cours de 1960 sur L'Évolution créatrice", em Frédéric WORMS (sob a dir.),Annales be1g~ soniennes !!, Bergson, Deleuze, la phénornénoio~ gie, PUF. Paris, 2004, p. 153. 64. Gilles DELEUZE. "Cours sur le chapitre lil de L'Évolution créatrice de Bergson", ibid., p. 169. 65. Jbid., p. 170. 66. Jbid., p. 186. 67. Gilles DELEUZE, B. 68. Georges POLITZER. La Fin d'une parade phi· losophique, le bergsonisme, Les Revues, 1929; reed. Pauvert, Paris, 1968. 69. Jbid., p. 1!. 70. Frédéric WORMS, entrevista com o autor.

86. Ver Ferdinand ALQUIE, Servitude et Liberté chez Spinoza, CDU Sorbonne, 1959; reed. em Leçons sur Spinoza, La Table ronde, Paris, 2003. 87. Gilles DELEUZE, Spinoza, Textes choisis, PUF, Paris, 1970. Essa publicação encontra-se na mesma coleção, ~Les philosophes", que Nietzsche, lançado em 1965, e compreende uma apresentação da vida do autor, de sua filosofia, e o ínclice de seus principais conceitos, que introduzem uma antologia de extratos de sua obra.

88. Gilles DELEUZE, "Spinoza et naus", Revue de synthJse, janeiro de 1978. 89. Gilles DELEUZE, Spinoza. Philosophie pratique, Minuit, Paris, 1981 (cloravante citado SPP). 90. Gilles DELEUZE, "Spinoza et les trais Êthíques", em CC. 91. Guillaume SíbertinMBlanc, entrevista com o autor. 92. Thomas Bénatouil, entrevista com o autor. 93. Gilles DELEUZE. SPP, p. !L 94. Ibid., p. 21. 95. lbid., p. 22. 96. Gilles Deleuze, aula de 17 de fevereiro de 1981, universidade de Paris-VIII, arquivos sonoros, BNF..

71. Gilles DELEUZE, B, p. L

97. Spinoza, Éthique, livro primeiro, definição 6, GF-Flammarion, Paris, 1965, p. 21.

72. Henri BERGSON, Essai sur les données imrnédiates de la conscience, PUF, Paris, 1889.

98. Gilles DELEUZE, SPE. p. 18.

99. Ibid., p. 15.

73. Gilles DELEUZE, B, p. !.

100. Ibid., p. 5!.

74. Jbid., p. 5!.

lO L SPINOZA, Éthique, livro IV, 4, dem., op. cit., p. 224.

47. Chris Younês, entrevista com o autor.

75. ibid., p. 100.

48. Ibid. 49. lbid. 50. Gilles DELEUZE, Le Bergsonisme, PUF, Paris,

76. Henri BERGSON, L'Évolution créatrice, op. cít., p.155.

102. Gilles DELEUZE. SPE, p. 108.

77. Jbid., p. 315.

104. lbid., p. 134.

1966 (doravante citado B). 51. Gilles DELEUZE, "Bergson, 1859-1941", em Maurice MERLEAU-PONTY (sob adir.), Les Philosophes célebres, Lucien Mazenod, Paris, 1956, p. 292-299: reproduzido em ID. p. 28-42. 52. Ibid., p. 31. 53. Ibid., p. 32. 54. Ibid., p. 37.

129

103. lbid., p. 119.

78. Élie During, entrevista com o autor.

105. SPlNOZA. Éthique,lll, 2, se., p. 137.

79. Frédéric WORt\18, entrevista com o autor.

106. Gilles DELEUZE. SPE, p. 22!.

80. Jbid.

107. Ibid., p. 234.

81. Jbid.

108. Ibid., p. 240.

82. Gilles DELEUZE, D, p. 22.

109. Gilles DELEUZE, "Spinoza et nous", Revue de synthese, Albin Michel, Paris, 1978, n. 89-91; retomado e ampliado em SPP, cap. VI, p. 164* 175.

83. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARJ, Qu'est-ce que la phiLosophie?, J\1:inuit, Paris, 1991. p. 49 (doravante citado Qph).

110. Jean-Claude Dumoncel, entrevista com o autor.

130

Fra,ncc>is Dosse

111. Gilles DELEUZE, "Spinoza et nous", SPP. p. 168. 112. François ZOURABICHV!Ll. "Deleuze et Spi· noza'', em Olivier BLOCH (sob adir.), Spinoza auXX si8cle, PUF, Paris, 1993, p. 240. 1!3. lbid., p. 238. 11.4. Gillcs Deleuze, Le Magazine littéraire, n. 257, setembro de 1988, entrevista com Raymond Bellour e François Ewald.

i; '

:r:

.Fi

,.':..!:;

!l5. Gilles DELEUZE, SPP. p. 43. 1!6. lbid., SPP. p. 59. 117. Gilles Deieuze, aula da universidade de Vincennes, 17 de março de 1981, arquivos sonoros, BNE. 118. lbid. 119. Gilles DELEUZE, "Spinoza et les trais 'Éthiques'", em CC, p. 172.

8 O deleuzismo: uma ontologia da diferença

Entre !968 e 1969, época em que Deleuze defende sua tese de doutorado, chega a hora de tornar públicas as "cores" propriamente deleuzianas. O autor de D{ferença e Repetição toma distância daquilo que constitui a principal referência filosófica preconizando uma inversão do platonismo. Por outro lado, sua intervenção ocorre em um momento filosófico, o dos anos de 1960, em que se questiona de forma radical o monumento hegeliano, que até então dominava amplamente a história da filosofia. Quer se olhe do lado do nouveau roman, das ciências humanas ou do fascínio heideggeriano, é a era 1 de um "anti-hegelianismo generalizadd' •

Inverter o platonismo e o hegelianismo

I

I

O primeiro maciço a remover para avançar suas próprias posições é o de Platão, que deve sofrer uma "inversãd'2 pela filosofia moderna. O problema que Platão coloca é de fato muito concreto. Consiste em fazer uma seleção entre os pretendentes cada vez mais numerosos a encarnar a verdade na cidade ateniense, submetendo os rivais a uma prova filosófica que permite separar o joio do trigo, "a coisa e os

simulacros'' 3 • Para conseguir essa seleção, Platão lança o conceito de Ideia, que corresponde à essência do fenômeno. É em nome dessa essência que Platão pode pretender separar os rivais e descartar os imperfeitos, os falsários, os simulacros. Contudo, Deleuze chama a atenção para um momento excepcional no final do Sofista, em que Platão, de tanto perseguir por toda parte o simulacro, descobre que não é urna simples cópia falsa, mas "que põe em questão as próprias noções de cópia e de modelo: 'No simulacro há o que contestar, e a noção de cópia e a de modelo. O modelo submerge na diferença. ao mesmo tempo em que as cópias resvalam na dissimilitude das séries que interiorizam, e é impossível dizer que uma 4 é cópia, e a outra, modelo" • Platão teria sido então o primeiro a anunciar uma possível via de inversão de seu próprio método. Ironia do destino, supremo paradoxo, o sofista que Platão injuria como encarnação do falso, do simulacro, sátiro ou centauro, não é no fim das contas o verdadeiro filósofo? Portanto, Platão ficara reduzido até ali à univocidade das teses que desenvolve no Teeteto, onde figura como o instaurador de uma ordem moral orientada para a verdade segundo o modelo imutável do reconhecimento. É

132

Dosse

preciso, portanto, seguir o próprio Platão na via que ele entreviu sem conseguir penetrar nela: "Inverter o platonismo significa aqui: negar o primado de um original sobre a cópia, de um modelo sobre a imagem. Glorificar o reino 5 dos simulacros e dos reflexos" • Em Lógica do Sentido, quando Deleuze distingue três posturas possíveis do filósofo, ele radicaliza um pouco sua crítica do platonismo, visto aqui como tradição que teria cristalizado a atitude esperada do tllósofo como aquele destinado a sair de sua caverna para se elevar aos céus do mundo ideal e partir em busca de uma verdade inacessível às pessoas comuns. A filosofia platônica é considerada então por Deleuze, na linha de Nietzsche, como a expressão de uma patologia, a de uma fuga constante para o irreal ao ritmo das ascensões impulsionadas pelo "bater de asas platônico''6 A reabertura das virtualidades históricas, das potencialidades de transformação, de revolução, passa "pela diferença e sua potência de allrmar"'. O virtual que Deleuze valoriza desde esse momento, antes de construir, muito mais tarde, uma verdadeira tllosofia do virtual', não se opõe ao real, mas ao atual: "O virtual pos9 sui uma realidade plena, enquanto virtual" • À maneira do acontecimento que corre o risco de ser subsumido, erradicado pelos esquemas explicativos, a diferença resiste à explicação. É isso que permite a Deleuze atingir o verdadeiro horizonte problemático da filosofia, pensar o paradoxo que é a grande figura. o principal tropa dos anos de 1960 contra a ilusão da superação possível das contradições: "O paradoxo 10 é o palhas ou a paixão da filosofia'' • Embora encarnem duas orientações muito diferentes, essa dellnição do ato de filosofar como resposta aos paradoxos, às tensões aporéticas, aproxima no mesmo momento Gilles Deleuze e Paul Ricceur, cuja prática filosófica não consiste tampouco em pretender superar as contradições por uma síntese totalizante. Afirmando a necessidade de pensar juntos polos incomensuráveis, Ricceur procede de fato por escapes sucessivos da.~,tensões aporéticas, inventando mediações irri~erfeitas; Deleuze, por sua vez,

busca vias de acesso mais diretas às diferenças puras. Outra proximidade de Deleuze com Ricreur situa-se na metaestabilização da postura questionadora do filósofo. Na relação entre a pergunta e a resposta, uma dessimetria atribui nos dois filósofos uma prevalência à pergunta: "Fazem-nos crer ao mesmo tempo que os problemas são dados prontos e que desaparecem nas respostas ou na solução''ll, crença que decorre, para Deleuze, de um pré-julgamento infantil do qual é preciso se livrar.

A diferença por ela mesma Deleuze denuncia uma verdadeira maldiM ção que se abateu sobre todo pensamento da diferença na tradição tllosófica ocidental. A diferença foi identificada às forças do Mal, ao erro, ao pecado e ao monstruoso. O projeto de Deleuze é reabilitar essa parte de sombra da história do pensamento. Retomando a metáfora de Platão, mas desta vez para o seu próprio projeto, Deleuze pretende conseguir "tirar de sua caverna" a dif"erença J2. Como conseguir apreender a diferença? Não por meio da fenomenologia nem do método dialético, pois pensá-la nela mesma pressupõe que se manifeste enquanto afirmação própria, e, de fato, Deleuze sustenta que, "em sua essência, a diferença é objeto de afirmação, afirmação ela mesma'' 13• Levar em conta essa essência pressupõe romper radicalmente com um pensamento da representação que subordina sempre a expressão das diferenças ao idêntico, ao modelo que se trataria de re-representar, e substituí-lo de maneira nietzschiana por uma experimentação: "Il faut montrer la différence allant diflerantw' 14 O eterno retorno seria então o "para si" da diferença, não o retorno do mesmo, mas do diferente. Não se é inevitavelmente conduzido ao Mesmo ou are-

*N. de R. 1:: A expressão Jlfaut montrer la dif}üence allant dif!érant, ao levar em consideração o contexto epistemológico deleuziano, poderia traduzir-se como «é necessário indicar a diferença dirigindo-se ao diferimento",

correr a algumas mediações capazes de redu~ zir as diferenças para pensá~las? Deleuze toma o exemplo da tempestade que irrompe quando as intensidades entre massas de ar diferentes sãO excessivamente contrastantes. A tempes~ tade é antecedida de um precursor sombrio que indica sua precipitação no céu. Este último seria o "em si" da diferença: "Chamamos de díspar a sombra precursora, essa diferença

em si, em segundo grau, que conecta as séries também heterogêneas ou disparatadas" 15 • A tradição estaria encerrada no conformismo de um modelo considerado iterável. Do Teeteto, de Platão, à Critica da Razão Pura, de Kant, um modelo de recognição orienta a filosofia para o que se tornará uma doxa, uma ortodoxia, fonte de conformismo e prisioneira das ide ias do tempo, Deleuze se pergunta qual pode ser o valor de um pensamento que não perturba ninguém. A filosofia teria funcionado até ali apenas como reconhecimento dos valores e instituições estabelecidos, como seu duplo de legitimação, seu acréscimo de alma. O projeto de Deleuze em 1968 é justamente elaborar uma ontologia. O par pergunta-proble-

ma, tal como o concebe Deleuze, deve permitir redinamizar um programa ontológico a partir de uma brecha que não se pode preencher, Para isso, é preciso partir do problema para colocar a pergunta certa. A ontologia lembra um lançar de dado. Ela não tem o estatuto de um pedestal

para se apoiar ou se recostar, mas de um devir aleatório, de uma abertura: "Os pontos singula~

res estão no dado; as perguntas são os próprios dados; o imperativo é lançar. As Ideias são as combinações problemáticas que resultam dos 16

lances" • Esses lances de dado têm uma relação com o sujeito, o "Eu", mas sempre fragmenta~ do, fendido, e deslocam as linhas da fenda na ordem da temporalidade. Uma repetição de ordem ontológica teria como finalidade distribuir a diferença entre repetição física e psíquica e produzir a ilusão que as afeta. Realizaria a própria ontologia, não de modo analógico, como ocorre com a representação, pois "a repetição é a única Ontologia realizada, isto é, a univocidade do ser" 17• Esse

programa filosófico apoia-se essencialmente em dois filósofos: Espinosa que, na Ética, dellne os atributos como irredutíveis a gêneros por serem formalmente distintos- eles são ontologicamente um enquanto substância. Deleuze partilha o monismo de Espinosa acrescentando-lhe a torção iniciada por Nietzsche, que permite realizar essa univocidade reimprimindo-lhe uma dinâmica "como repetição no eter13 no retorno" • A univocidade tal como Deleuze segue o processo de radicalização de Espinosa a Nietzsche estimula uma crítica radical a toda substância, incluída a espinosista: "Daí sua tese segundo a qual a substância como princípio de ipseidade, de ideotidade em si e para si, é segunda, derivada em relação ao devir-outro, efeito do eterno retorno" 19• Deleuze conclui sua tese com uma espécie de canto lírico, de grito filosóllco de natureza fundamentalmente ontológica: "Uma única e mesma voz para todo o múltiplo de mil vias, um único e mesmo Oceano para todas as gotas, um único clamor do Ser para todos os 20 estados" • Essa tomada de posição sem equívoco pela univocidade do ser não significa, porém, uma mino ração do múltiplo, ao contrário. Deleuze se explica na Lógica do Sentido, quando esclarece que a univocidade do ser "não quer dizer que haja um único e mesmo ser: ao contrário, os seres são múltiplos e cliferentes"21 • Eles provêm dessa entidade paradoxal que mantém juntos elementos incomensuráveis em uma síntese disjuntiva. A radicalização da diferença operada por Deleuze define uma via ao mesmo tempo próxima e diferente daquela, fenomenológica, proposta por HusserL Todo o percurso de Deleuze leva muito em conta as contribuições da fenomenologia, que se situa em um tal grau de proximidade com suas posições que se pode afirmar, a exemplo de Alain Beaulieu, que Deleuze não combate a fEmomenologia, mas "combate com ela'm. Deleuze travou uma relação ambivalente com a fenomenologia, mantendo-se à distância e ao mesmo tempo recuperando para uso próprio um certo número de noções husserlianas, como as de

134

i

I

,I

11

"síntese passiva" ou de "empirismo transcendental", Segundo seu amigo Paul Virilio, que, de sua parte, reivindica com fervor o programa fenomenológico, Deleuze gostava muito do último livro de Merleau-Ponly, O Visível e o !nvisfvef 3• Segue também Husserl, que considera o sentido como o exprimido, a expressão, e se indaga sobre o sentido da percepção que não se reduz ao objeto físico nem à vivência psicológica, Ele acaba por se perguntar: "A fenomenologia seria essa ciência rigorosa dos 24 efeitos de superfície?" • Husserl não está tão longe assim de Deleuze quando afirma que a consciência se supera em um sentido visado. Contudo, ele erra o alvo ao partir "de uma faculdade originária do senso comum encarregada de dar conta da identida25 de do objeto qualquer" , Essa incapacidade de romper com o senso comum condena o programa fenomenológico à impotência_ Embora Husserl tenha percebido bem a necessidade de romper provisoriamente com a doxa ao preconizar umaxedução eidética, ele conserva o essencial do senso comum com sua ambição de elevar o empirismo ao plano transcendental. Husserl compreendeu bem, então, uma certa independência do sentido, mas "o que o impede de conceber o senso comum como uma plena (impenetrável) neutralidade é a preocupação de guardar no sentido o modo racional de um bom senso e de um senso comum, que ele 26 apresenta erroneamente como uma matriz" • Ao contrário, Deleuze procura atingir a dimensão do pré-individual, do impessoal, que não se confunde nem com qualquer profundidade informe nem com os esforços da consciência.

Esse nível situa-se na própria superfície da emergência das singularidades, e estas últimas é que são "os verdadeiros acontecimentos 27

li ii\I

L

:·I

Gilles Deleuze & Félix Guattari

Fco,nc-ni< Dosse

transcendentais" • A outra tradição que Deleuze exuma é a estoica, na qual ele se inspira amplamente para avançar sua ideia de "conjunção disjuntiva". De fato, essa noção de conjunção é essencial nos estoicos, mesmo entre os menos lógicos entre eles. É uma corrente que raciocina a partir da evidência das i'1}plicações desta ou daquela

ação. É óbvio, por exemplo, que ir ao banho implica sair respingado, Sabendo disso, não há do que se queixar - isso é parte integrante do f8.to de ir ao banho. Trata-se de uma maneira de estrangular os julgamentos e a moral em termos lógicOs, visto que o importante é seguir as conjunções que funcionam melhor, o mais próximo possível de sua vontade_ "Bordeandd' assim seus desejos, evitam-se os riscos do ines~ perado e do desagradáveL A moral encontra-se então no entre-dois pelo qual DiogEme Laerce define a maneira como os estoicos entendem a filosofia: 'A casca é a lógica, a clara é a moral, e 28 a gema, bem no centro, é a física'' • Deleuze se sente encorajado também pela concepção estoica do acontecimento, por essa ligação levada à potência máxima entre acontecimento e lógica, por essa promoção do acontecimento sobre o atributo. Segundo os estoicos, tudo é potencialmente acontecimento, até o fenômeno mais ínfimo, o menos notável, concepção que Deleuze retoma por sua conta, que encontra ali, ainda, um ponto de apoio fundamental na distinção de natureza que ele opera entre "representação'' e "expressão'' em proveito desta última. O sábio estoico mantém-se na superfície, é animado pela lógica que lhe permite ter acesso ao acontecimento puro: "Lá o sábio espera o acontecimento. Isto é, compreende o acontecimento puro na sua verdade eterna, independentemente de 29 sua efetivação espaço-temporal" , Seguindo as análises do filósofo Victor Goldschmidt, Deleuze vê nessa postura estoica a expressão mesma do desejo de encarnação do acontecimento puro na própria carne do sábio, sua 0 vontade de "corporalizar" o ef€ito incorporaf' • Quando define as três figuras possíveis do filósofo, ele descarta duas: aquela que busca no céu a verdade e aquela que, ao contrário, crê encontrá-la nas profundezas da crosta terrestre, aquela que pensa atingi-la por um bater de asas e a que usa batidas de martelo_ A essas duas posturas, ele opõe a atitude estoica, que implica uma reorientação de todo o pensamento: "Não existe mais nem profundidade, 31 nem altura" .

O mundo das ldeias nos estoicos está na superfície. São os acontecimentos mais cotidianos, aqueles aparentemente mais insignificantes, que o estoico mostra a quem lhe faz uma pergunta, O mundo dos paradoxos, mundo dos contrastes, é mostrado por Diógenes, o Cínico, e Crisipo, o Estoico, como se pode ter conhecimento por intermédio de Diog€ne La€rce. Dessa atitude filosófica nasce um método que Deleuze qualifica de prática da perversão, "se é verdade que a perversão implica uma estranha arte das superfícíes"32. François Zourabichvili qualifica com pertinência o método deleuziano de método de perversão, que não tem muito a ver com as pequenas máquinas perversas estigmatizadas pelos psicanalistas: "Há nele um alegre perverso'm. Do mesmo modo, Deleuze descreve o capitão Achab de Melville como um perverso sublime e, em seu comentário sobre o grande sucesso de :rvlichel Tournier, Sexta-Feira ou os Limbos do Pacífico, celebra um mundo perverso sem outro. Esses usos filosóficos da perversão são múltiplos em Deleuze, Consistem "ora em desviar pedaços de teorias de toda natureza e utilizá-las para outros fins, ora ainda em relacionar um conceito às suas verdadeiras condições, isto é, às forças e aos dinamismos intuitivos que o subentendem, ora enfim, em vez de criticar de frente um tema ou uma noção, abordá-lo pelo viés de 34 35 uma 'concepção inteiramente distorcida' " . Deleuze toma uma situação concreta e observa onde se exprime um excesso de energia, onde esta foge e - ao contrário da dialética que tem como meta superar as contradições por uma síntese - procura demarcar a linha de fuga que mantém a tensão paradoxal. Por isso mesmo, renuncia à postura crítica de projeção em nome da qual se pode escolher uma linha e não uma outra. Instala-se nessa posição subentendida pela frase enigmática do Bartleby de Melville: "Eu preferia não'", Deleuze encontra as experimentações da atitude estoica sobretudo na literatura, em Herman Melville, Lewis Carroll, Francis Scott Fitzgerald, Charles Péguy, etc Nesse final dos

135

anos de 1960, está particularmente fascinado pelo poeta ]oe Bousquet e pelo ferimento de que foi vítima durante a Primeira Guerra Mundial: "É preciso chamar Joe Bousquet de estoico. O ferimento profundo que traz no corpo, ele o apreende em sua verdade eterna como acontecimento puro'm. Ferido no dia 27 de maio de 1918 no combate de Vailly, ]oe Bousquet nunca mais saiu da cama, onde os ferimentos o retiveram até sua morte em 1950. Viveu recluso em Carcassonne em um quarto com janelas fechadas, dedicando-se à escrita poética. Ele escreve: "Meu ferimento existia antes de mim, nasci para encarná-lo":c~s. Deleuze retoma também o triplo combate travado pelos estoicos: "Ninguém melhor que Deleuze enfrentou esses três combates contra a matematização da lógica, a naturalização da física e a tecnocratização da ética'm. No plano da lógica, ainda que Deleuze siga os estoicos nesse terreno, diferencia-se deles radicalmente por sua rejeição da arte de dizer a verdade da dialética e pelo pouco caso que faz da retórica como arte de bem dizer. Ao contrário, segue os estolcos na indagação sobre os atributos transformados em infinitivos (intensificar, verdejaL) e sobre os artigos indefinidos (uma vida, um devir, chove, morre-se ... ) e inclui os paradoxos, as proposições disjuntivas, O acontecimento é identificado como uma adequa40 ção entre a forma e a vida . A segunda vertente do estoicismo é a recusa da naturalização da física. Deleuze exprimiu em 1988 seu desejo de prosseguir o trabalho empreendido com Guattari e de consagrar uma obra a "uma espécie de filosofia da Natureza, no momento em que desaparece toda 41 diferença entre a natureza e o artifício" . De fato, Mil Platós não está muito distante desse horizonte de uma filosofia da natureza, subjacente a toda a obra de Deleuze e Guattari, na qual os personagens conceituais convivem com os afetos de tiques, o tornar-se animal do herói de A Metamoifose, de Kafka, as relações entre a vespa e a orquídea em Proust, ou ainda a relação com a terra em sua dupla dinâmica de desterritorialização e de reterritorialização.

i

J

136

Desse

Ora, o mundo estoico oferece ali um modelo

de plenitude interna e de vazio exteriorizado em relação ao mundo. O que prevalece não vem de outro lugar, mas da própria natureza em suas expressões mais diversas. A falta não é mais o motor, pois "a Natureza dcleuziana só é

Gilles Deleuze & Félix Guattari

mo, nem a escatologia revolucionária, nem a nostalgia passadista para preservar um dinamismo próprio à singularidade de cada ser e que respeita os seres vivos. A ética é concebi47 da, então, como uma "etologia superior" •

imanente nela mesma, é plenamente realizada

em si mesma"42 • À parte de qualquer transcendência, é no plano da imanência que a na~ tureza se dá a ler em suas formas, a partir de conexões que questionam a própria distinção entre o natural e o artificiaL Existe na verdade um fora, que Deleuze retoma de Blanchot e de Foucault, mas é um "fora mais longínquo 43 que todo mundo exterior" • Ele elimina assim

toda distinção entre interioridade e exterioridade por seu distanciamento e sua indeterminação. Esse universo assume o aspecto de um conjunto de singularidades mais ou menos conectadas, agenciadas entre elas, uma espécie de "muro de pedras livres, não cimentadas, onde cada elemento vale por si mesmo, mas 44 em relação com outros" • Desse universo plural, multicósmico e que responde a lógicas de combinação mais variadas, resulta uma "sin45 tonia da Natureza" que converge com o tema da simpatia universal entre as coisas terrestres e celestes dos estoicos. Resta o terceiro combate comum aos estoicos e a Deleuze, o da recusa da tecnocratização da ética. Uma vez libertadas as pedras do muro de seu cimento de encaixe, o mundo aparece como fundamentalmente disparatado, deixando o caminho aberto às conexões mais inéditas em um caosmo que não permite mais enraizar firmemente um universo hierarquizado de valores morais. A que corresponde o desejo da vida boa segundo Deleuze quando do lançamento de Lógica do Sentido em 1968? Que moral adotar? Mais uma vez, os estoicos são fonte de inspiração com sua moral que privilegia o acontecimento: "A moral estoica diz respeito ao acontecimento; consiste em querer o acontecimento como tal, isto é, em querer o que chega enquanto cheg,(". Toda a filosofia do acontecimento de Deleuze está ali, nessa concepção quÇ não priyilegia nem o presentis-

O cogito rompido A elaboração de uma ontologia da diferença passa por uma critica de todo pensamento que atribuiria um papel exagerado ao cogito, a toda concepção voltada a uma suposta interioridade que realizaria a harmonia entre o homem e o mundo circundante. Embora suas. perspectivas estejam muito distantes, Deleuze retoma a fórmula apresentada por Ricceur em 1965 em seu ensaio sobre Freud, Da Interpretação: "O Eu ativo, mas fendido, não é somente a base do superego, é o correlato do ego narcísico, passivo e ferido, em um conjunto complexo que Paul Ricoeur chamou acertadamente de 'cogito abortado'"". Na concepção deleuziana, a busca de processos de individuação, de afirmação da singularidade não se reduz a um ego. Ao contrário: ''A individualidade não é o caráter do Ego, mas, ao contrário, forma e nutre o sistema do Ego dissolvido"49. O indivíduo não é mais considerado então como essa entidade irredutível e indivisíveL De fato, ele não para de se dividir, de mudar de natureza, de se fazer múltiplo a partir de singularidades pré-individuais segundo linhas de intensidade. Ê na estrutura de outro e em seu modo de expressão, a linguagem, que se situa finalmente a diferença encontrada. Na base da diferença, está a força que representa o corpo que, de maneira geral, foi subestimado na tradição filosófica. Espinosa se mostrava surpreso já no século XVII por não se saber melhor que potência o corpo podia exprimir: "Espinosa abria um caminho novo às ciências e à filoso50 fia: nós nem sabemos o que pode um corpo'' • Trata-se, portanto, de libertar a força de afirmação que o corpo contém em si, a fim de "evitar viver de maneira separada ele nossos 51 modos de existência imanentes" • O corpo é

singular, sua composição não permite nenhum dos reducionismos em uso nas ciências neuronais que localizam os genes e os neurotransmissores, pretendendo reduzir o comportamento humano a uma simples transposição da materialidade subjacente do corpo humano. O corpo, segundo Deleuze, não tem a ver com um dentro: "Nenhuma linearidade demonstrativa abraça a subjetividade, pois o sujeito 52 vivente atravessa o corpo" • Ê essa fenda que provoca a virada decisiva na demonstração filosófica empreendida por Deleuze na 13• seção de Lógica do Sentido quando ela passa das lógicas formais de superfície de Lewis Carroll àquelas, vindas das profundezas, de Antonin Artaud, que exprime o sofrimento da esquizofrenia confrontada com a vida e com a morte. O que vive o esquizofrênico é justamente a ausência de superfície dos corpos: "O primeiro aspecto elo corpo esquizofrênico é uma espécie 3 de corpo-coador"s . Essa ausência de superfície deixa o caminho livre a uma proliferação de corpos vindos das profundezas: "Tudo é corpo e corporaL Uma árvore, uma coluna, uma flor, 54 uma vara penetram através do corpo'' • O cor~ po esquizofrênico assume três características: é um corpo-coador, um corpo fracionado e um corpo dissociado. Artaud pode ser confrontado ponto por ponto a Carroll, na medida em que descobriu a linguagem prodigiosa do corpo vital. É nessa 13" seção de Lógica do Sentido que Deleuze identifica em Artaud o que se tornará um conceito central de sua filosofia, o "corpo sem órgãos", mais tarde rebatizado de "CsO". Como esclarece Anne Sauvagnargues, o corpo sem órgãos não é um corpo desprovido de órgãos, mas um corpo "aquém da determinação orgânica, um corpo com órgãos indeter55 minados, um corpo em via de diféenciação" • Essa 13" seção de Lógica do Sentido é ponto nodal no percurso elo pensamento de Deleuze, na medida em que essa descoberta da potência das forças em ação no corpo dará lugar a possíveis patologias psicóticas que podem fazer ruptura nos jogos linguísticos. Quando escreve esse capítulo, Deleuze ainda não conhece Guattari, e o mundo psiquiátrico ainda lhe

137

é totalmente estranho, mas o encontro futuro parece já anunciado pelas questões colocadas. Pode-se também levantar a hipótese de que a obra construída por Deleuze a partir dali não responde mais a imperativos de ordem acadêmica dos quais já se libertou, mas torna-se uma maneira de exprimir seu próprio corpo: "Ê um tanto quanto nietzschiana como atitude essa espécie de idiossincrasia na obra a partir da qual se fala do próprio corpo. Sua obra e os diversos objetos que aborda não seriam meios diversos para amoldar o movimento corporal? O corpo vivo é dinâmico, está em movimento, e a questão é encontrar objetos que permitam 56 descrever isso'' • Deleuze percorre então com o maior interesse um campo ao qual já consagrou seu estudo muito comentado sobre Sacher-Masoch: a psicanálise. Com a figura elo psicótico, descobre um ângulo morto da prática psiquiátrica, sua insuflciência em dar conta dele, sua impotência para curar aqueles acometidos de patologias graves. Deleuze considera que a psicanálise continua prisioneira da repetição sob o triplo registro do realismo, do materialismo e do individualismo. Essa teoria da repetição permanece fundamentalmente tributária ele uma filosofia da simples representação, partindo de um princípio de identidade e de distanciamentos que se pode discernir em face de um modelo inicial. Certamente, essa repetição que se opera na psicanálise se desloca no tempo sob máscaras diferentes. Também aqui Deleuze se separa de Freud e do modo de causalidade que apresenta quando vê em ação um processo de recalque que suscita esses travestimentos do mesmo: "Não se repete porque se 57 recalca, mas se recalca porque se repete" • Da mesma maneira que Deleuze havia criticado o mecanismo da contradição na dialética hegeliana, critica o dualismo subjacente ao freudismo, que, na teoria das pulsões, atribui um primado ao modelo conflitual, à forma simples da oposição frontal, enquanto "os conflitos são a resultante de mecanismos diferenciais mais sutis"s8. Deleuze reconhece em Melanie Klein o mérito de ter explorado

138

Dosse

o teatro dos horrores tal como o vive o bebê no primeiro ano, perdido entre toda uma série de objetos introjetados ou projetados que permitem uma comunicação dos corpos pela profundidade mediada por esses simulacros: "Melanie Klein a descreve como posição paranoíde-esquizoide da criança" 5<), O esquema kleiniano, que descreve essa tentativa de conquista de uma identidade correspondente a esses objetos parciais, não está muito distante do discernimento da posição do esquizofrêni~ co que, longe de substituir o bom objeto pelo mau, opõe a ele um organismo sem partes, um corpo sem órgãos. Deleuze minimiza já na Lógica dos Sentidos a importância nodal que a teoria freudiana atribui ao complexo de Édipo. Longe de ver o risco da frustração depressiva ou da agressividade esquizoide como resultado do dese~ jo edipiano do incesto, considera este último como uma tentativa de neutralizar tais riscos em um espírito salvador. Chega a apresentar Édipo como um "herói pacificador do tipo 60 Hércules" Édipo é movido, portanto, pelas melhores intenções do mundo, mesmo que a história acabe mal. Contudo, ao contrário do que pensam os freudianos, sua ação decorre de uma "tragédia daAparêncüi'61 • É, no sentido da tradição estoica, alguma coisa que ocorre, um acontecimento puro projetado no plano da imanência. Entretanto, a psicanálise ainda é reconhecida por Deleuze, em 1969, como uma disci~ plina promissora, uma verdadeira "ciência dos 62 acontecimentos" , mas não verdadeiramente por sua capacidade de desvendar o sentido dos acontecimentos, pois o acontecimento é o próprio sentido. Nesse plano, Deleuze segue Freud em seu esforço de distinguir o acontecimento do estado das coisas no qual ele se realizou. O segundo mérito da psicanálise é descentrar o sujeito, por sua teoria da fantasia. Deleuze, como a maior parte dos intelectuais desse final dos anos de 1960, atribui um papel preemi~ nente à psicanálise e inclusive se mostra muito atento aos escritos de]acques Lacan e de Serge Leclaire para J~clarecer essas lógicas do corpo.

Gilles Deleuze & Félix Guattari

A reabilitação dos vencidos Com a arte consumada de pensar contra seu tempo, Deleuze assume uma posição diametralmente oposta das afirmações peremptórias das tradições triunfantes e reabilita as tradições esquecidas, as possibilidades não confirmadas. Revendo as controvérsias dopassado, ele ressimetriza, dando toda a atenção necessária aos vencidos, que frequentemente são portadores de devires mais interessantes do que aqueles, logo institucionalizados, dos vencedores. Enquanto a sociologia francesa se encarnou desde cedo, já no final do sécu~ lo XIX, nas teses defendidas por Durkheim e sua corrente, que se impuseram e se prolongaram no triunfo irrestrito do estruturalismo nos anos 1960, Deleuze exuma em uma longa nota de sua tese a sociologia de Gabriel Tarde, o grande vencido da controvérsia que o opôs a Durkheim: ''A filosofia de Gabriel Tarde é uma das últimas grandes filosofias da Natureza, herdeira de Leibniz", afirma Deleuze 63. Quando se sabe que Tarde escreveu que "existir é diferir" e tentou, na virada do século, restituir a dinâmica própria da diferença e apresentar "a diferença como objetivo dela 64 mesma'' , compreende-se todo o interesse de Deleuze por essa sociologia nutrida de llloso~ fia leibniziana. Tarde recusa toda coisiflcação do social. Parte da ideia de que as representa~ ções coletivas não são um dado, mas um construído, que são trabalhadas por correntes de imitação e movimentos de invenção65 : "Tarde se interessa mais pelo mundo do detalhe, do infinitesimal: as pequenas imitações, oposições e invenções, que constituem toda uma matéria sub-representativa''66 • Durkheim e sua escola acusaram Tarde de querer reduzir a sociologia a uma psicologia ou interpsicologia, tendo a pretensão de explicar o social pelo individual. "Tarde jamais se reergueu" 67• Portanto, foi excluído das ciências sociais com base em um contrassenso de grande eficácia polêmica. Contudo, ele nunca quis dizer que a imitação decorria de uma lógica individual, e sim que ela "está relacionada a um fluxo ou a uma

onda, e não ao indivíduo. A imitação é a pro-

pagação de umfluxo" 68• Daí a importância para Tarde dos cálculos infinitesimais, da estatística em geral, para apreender no estado molecular as transformações mais ínfimas no campo das crenças e dos desejos. Fazer microssocioIogia à maneira como Tarde a inventou "é f8.zer 0 estudo das ondas de propagação de crença 69 e de desejo que percorrem o campo social" . Jurista, Tarde se confrontou com as teorias biologistas sobre a criminalidade defendidas por Lombroso, que havia considerado a ideia de uma explicação social do ato criminoso, distinguindo~se de Durkheim e de sua tese da criminalidade como fenômeno "normal" no plano social, não imputável a atores singulares. Esse combate em duas frentes de batalha não contribuiu para dar visibilidade às suas teses. Contra toda forma de reducionismo, Tarde se apoia no saber biológico com a competência estatística. Como assinala Éric Alliez, o projeto de Tarde inscreve-se em uma perspectiva lelbniziana: "Não se poderia projetar outro pon70 to de partida que não leibniziano" • De fato, Tarde inspira~se em Leibniz para desenvolver uma forma de panvitalismo do infinitesimal. Durkheim conseguiu fazer com que Tarde passasse por um psicologista promotor de um método puramente individualista e submisso a um natura.lismo biológico, embora ele tenha desejado construir uma sociologia de vocação universal, mas fundada em uma abordagem que desse lugar às diferenças, às multiplici~ dades do ser vivo segundo o princípio leibni~ ziano de que uma mônada singular contém o mundo em sua totalidade. Seu problema é de início de ordem sociológica. Ele alega um vetor em ação na sociedade, uma espécie de desejo de ser específico a cada mônada, "um 71 sentido o mais próximo possível da jorça" • Uma lógica da potência de ser de ordem espi~ nosiana encontra-se em ação e orienta o desejo para um ter: "Há portanto em Tarde um poder constituinte do sociw!m. É fácil compreender que Deleuze só pode ficar seduzido por esse materialismo vitalista voltado intei-

139

ramente à liberação da pluralidade das forças, transformando a concepção de Durkheim segundo a qual a sociedade é uma coisa em vitalismo social. Quando Deleuze, em sua tese em 1968, e ainda com Guattari em 1980, in~ siste sobre a contribuição de Tarde, prega no deserto. Contudo, essa reapropriação assume um aspecto profético: contata-se na França, desde o final dos anos de 1990, um "efeito Tar~ de", tanto mais marcante à medida que, se nos permitem dizer, foi retardado. Deleuze atribui também uma grande importância a um pensador solitário, seu contemporâneo, Gilbert Simondon, que se interessa pelos fenômenos de individuação, pelo cruzamento de múltiplas culturas, tanto técnicas e científicas, quanto fllosóficas. Ele encontra em Simondon a busca de processos de individuação que traçam seu caminho a partir do encontro de duas ordens de grande~ za entre as quais se desencadeiam uma onda, uma intensidade, potencial: ''A individuação é um ato de intensidade que impulsiona as rela~ ções diferenciais a se atualizarem'''~'~. Simondon consegue explorar esse estrato pré-individual 74 como reservatório de singularidades • O indivíduo, segundo Simondon - e Deleuze -,não é um ser estável, mas o resultado de um encontro de processos, de operações e de formas, um encontro de energias diferenciais "entre afetos, ,75 perceptos e emoçoes . Simondon carregava sozinho "um mundo surpreendente, o de um grande enciclopedista dos anos de 1960 que realiza magnificamen~ 76 te a ligação entre física, biologia e tllosofia' • Além disso, era uma homem de experiência, de competência, que conhecia de dentro o mundo das técnicas. Aliás, desesperava-o a maneira como sua época havia fracassado no contato com a inovação técnica, nesse encontro marcado, pois a maioria dos utilizadores da técnica ignora completamente seu modo de funcionamento e seus desafios. Simondon era professor, mas também homem de laboratório: fazia experiências em seu próprio laboratório na Rue Serpente, testando tanto quanto possível aquilo sobre o que iria falar. N

140

Gi!!es De!euze & Félix Guattari

François Dosse

Já em

1966, Deleuze escreve uma resenha

da publicação parcial de sua tese de doutorado, defendida em !95877 . A tese de Simondon impressiona Deleuze por sua originalidade. Ele encontra, enfim, um pensador para quem o indivíduo "não é apenas resultado, mas meio de individuação"78 • Encontra também um ponto de apoio em seu confronto com Hegel graças à noção de "desaparição'', tirada do vocabulário da psicofisiologia da percepção, que lhe parece mais adequada e profunda que a noção hegeliana de oposição. Deleuze se apropria dessa teoria simondiana da individuação por diferenciação intensiva: "A individuação aparece justamente como a chegada de um novo momento do Ser, o mo79 mento do ser jasado, acoplado a si mesmo" • Ele descobre ali uma dimensão ontológica, mas uma ontologia da diferença, das multiplicidades: "O que Simondon elabora é toda uma 80 antologia, segundo a qual o Ser jamais é Uno'' • A problemática simondiana serve a Deleuze de máquina de guerra eflcaz contra a dialética hegeliana: a ideia de "desapariçãO' vai dar em De!euze o conceito de "díspar", de "disparidade constituinte", de "diferença em si": "Essa teoria do díspar prepara a síntese heterogênea e defi81 ne a diferença como diferença de diferença" • Simondon contribui finalmente para consolidar a noção de corpo sem órgãos, dando-lhe uma base nas ciências da vida. Deleuze reencontra nele essa arte dos limites que rompe o dualismo entre interioridade e exterioridade e lhe permite dizer que "o mais profundo é a pele: 'O ser vivo vive no limite de si mesmo, no seu limite ... A polaridade característica da vida 82 está no nível da membrana'" • Tal abordagem do ser vivo escapa também das explicações causais mecanicistas para substituí-las pelo primado dos processos com múltiplas variações de intensidade. Outro grande vencido exumado por Deleuze é o biólogo Étienne Geoffroy Saint-Hilaire que perdeu seu combate contra Cuvier. Aqui ainda, como a propósito do confronto entre Durkheim e Tarde, é o elemento temporal, a introduçãó:;de uma dinâmica e a atenção a um

processo aberto prestes a se realizar que retêm o olhar de Deleuze e que o fazem preferir as orientações de Geoffroy Saint-Hilaire ao estatismo da tipologia de Cuvier. Contudo, na época, é Cuvier que aparece como moderno, ao lançar as bases de novos caminhos para a biologia, ocupada em estudar a coordenação das diversas funções do organismo para cada espécie. Ao contrário desse funcionalismo, para Geoffroy Saint-Hilaire "a introdução do fator 83 temporal é essencial" • Geoffroy Saint-Hilaire é convocado por Deleuze, assim como Simondon, para dar sustentação à sua ontologia da diferença. O corpo deve se libertar do jugo das funções do organismo, e Deleuze evoca a "ge~ 84 nialidade de Geoffroy" , que, ao contrário de Cuvier, soube dar lugar às relações diferenciais entre elementos anatômicos puros. Geoffroy Saint-Hilaire afirmava em !837 que seu sonho era se tornar o Newton do infinitamente pequeno, "descobrir 'o mundo dos detalhes' ou das conexões ideais 'a curtíssima distância'"85. Nesse caso também, as diferenciações são uma questão de velocidade, de intensidade, de lentidões "que medem o movimento da atualização" 86. Opondo os argumentos de Cuvier e os de Geoffroy Saint-Hilaire, Deleuze emprega pela primeira vez em sua tese o conceito de "dobra", que retomará mais tarde e que dará o título de seu ensaio sobre Leibniz em 1988: ''A discussão encontra seu método e sua prova poética na dobragem: é possível, por dobragem, passar do Vertebrado ao Cefalópode?"87. Deleuze faz de Geoffroy Saint-Hilaire o defensor de uma concepção monista, espinosiana, que promove um plano de composição como pura multiplicidade. Sente-se então encorajado pelas teses de Geoffroy a alegar a faculdade de variações da atualização diferenciante: "Um lugar à parte deve ser atribuído à relação Espinosa/Geoffroy Saint-Hilaire, o plano de composição que fornece o ponto de partida à concepção deleuziana do plano da 88 imanência'' . Deleuze também encontra apoio para sua ontologia da diferença em Raymond Ruyer, cujo programa, exposto em 1938, é empreen-

89

der uma filosofia da diferenciação • Para Ruyer, como para Tarde, existir é diferir, pois a criação opera por diferenciações. Assim, em conferência de 1938, Ruyer opõe a relação mecânica do comportamento animal quando movido por uma causalidade forte, por exemplo, quando segue em linha reta em direção à sua comida. Ao contrário,- quando se vê diante de um perigo, um complexo de fatores vai determinar a "geodésica animal" para se afastar dele- afastamento que, segundo Ruyer, decorre de uma criação. É o encontro com o obstáculo que estimula o animal a criar, e isso, naturalmente, reforça muito Deleuze, para quem o verdadeiro pensamento não é uma operação espontânea, natural, mas vem de uma necessidade exterior, de um encontro, de um corte de fluxo que o obriga a isso. O projeto de Raymond Ruyer é articular os ensinamentos da revolução da física quântica e o domínio vital do biológico. Ele distingue dois planos que Deleuze e Guattari retomarão para outro uso, o plano "molar" dos grandes conjuntos estatísticos e o plano "molecular", do microfísico psicológico e vital. Ruyer quer ainda valorizar o nível das interações e dos fenômenos individuantes descoberto pela nova microfísica, agregando os resultados da biologia sobre o modo de funcionamento das moléculas. Para se afirmar como programa filosófico, a ontologia da diferença deleuziana precisou, portanto, rever o possível não confirmado, barrado, de alguns trabalhos da tradição excluídos da história do pensamento. Não se tratava, nem para Deleuze nem para Guattari, de transportá-los como tais, mas de traduzi-los, de transformá-los em operadores lógicos de acordo com sua própria construção filosófica.

A outra metafísica Diante da pergunta feita por Arnaud Villani: "O senhor é um filósofo não metafísico?", Deleuze respondeu: "Não, eu me sinto puro 90 metafísicd' • Provocação num momento em

141

que se declarar metafísico era considerado o cúmulo do arcaísmo? É improvável. Existe nele a ideia de construção de um sistema- poderíamos acrescentar antissistemático - e a vontade de elaborar uma nova metafísica adequada à lógica das multiplicidades. Deleuze se explica na carta enviada a]ean-Clet Martin em 1990: 'Acredito na fllosofia como sistema. O que me desagrada é a noção de sistema quando a relacionam às coordenadas do Idêntico, do Semelhante e do Análogo ... Sinto-me um filósofo muito clássico. Para mim o sistema não apenas deve estar em perpétua heterogeneidade, como deve ser uma heterogênese, o que, me parece, nunca foi tentado'm. Situando-se em tensão paradoxal entre o Uno e o múltiplo, não cedendo nem sobre a univocidade, nem sobre a pluralidade de singularidades, sua metafísica se desenvolve no plano da imanência em torno desse oximoro que é nele sua noção de "superfície metafísica", na mais pura tradição estoica: "Na realidade, a metafísica que Deleuze reivindica é menos um nome (uma 'essência') que um 92 adjetivo (uma 'maneira de ser')" • A univocidade é um princípio em Deleuze, e não pode ser diferente: "O Ser é unívoco'm, o que não significa, ao contrário do que gostaria de fazê-lo dizer Alain Badiou, que a univocidade afirmada por Deleuze remeta ao primado do Uno94 • De fato, imediatamente após ter atlrmado essa univocidade, Deleuze acrescenta: "O essencial da univocidade não é que o Ser se diga em um único e mesmo sentido, mas que ele diga, em um único e mesmo sentido, de todas as suas diferenças individuantes ou modalidades intrínsecas"95 • A metafísica de Deleuze é a do desenvolvimento da figura do paradoxo, da tensão levada ao extremo contra a doxa, o senso comum sempre tomado entre alternativas, diante de escolher este ou aquele termo, e assim se confinando facilmente naquilo que Deleuze estigmatiza como o verdadeiro inimigo da fllosofia, a imbecilidade. É inclusive o sentido mais eminente que ele reconhece no discurso filosófico: "Se o pensamento só pensa coagido e forçado, se permanece estúpido

142

Gilles Deleuze & Félix Guattari

Dosse

enquanto nada o força a pensar, o que o força a pensar não seria também a existência da im~ becilidade, ou seja, que ele não pensa enquanto nada o força?" 96 . Ainda que o horizonte metafísico pareça ter sido evacuado pelo paradigma estruturalista dominante nos anos de 1960, Deleuze mantém essa direção, essencial para ele, em suas duas obras publicadas em 1968 e 1969. Contudo, "não se deve fazer de Deleuze uma espécie de OVNl da filosofia. Ele se inscreve em uma tradição e inventa sua tradição", adverte com 97 muita pertinência Pierre Montebello • Como já vimos, há todos esses autores clássicos da história da filosofia revisitados por Deleuze,

particularmente a tríade vitalista constituída por Bergson, Espinosa e Nietzsche. Pode-se

notar também uma concordância surpreendente com aquilo que Pierre Montebello quali98 fica como sendo "o outro metafísicó' •

A ruptura moderna em todos os aspectos enquanto revolução copérnico-galileana estabelece um corte entre o mundo aqui de baixo e a autoridade celeste abrindo-se para o infinito, e uma matematização da natureza, uma evacuação do sujeito pensante. Ela submete as categorias do espaço-tempo a uma relação de exterioridade que se prolonga com o cogito cartesiano e com a crítica kantiana. Toda essa evolução provocou uma crise do pensamento metafísico e um primado concedido ao domínio propriamente científico que é autonomizado graças às suas conquistas sempre novas, mas cada vez mais separado da unidade postulada até então entre o homem e o cosmos. Na virada do século XlX para o século XX, alguns pensadores tentaram refundar essa unidade rompida entre a experiência humana e essa unidade originária: "Esse foi um momento extraordinário de criação filosófica'". A indagação sobre a unidade do Ser ressurgiu graças a uma renovação profunda da indagação metafísica. Longe de procurar refundar essa unidade por meio de uma interioridade maior do sujeito pensante, d.~ um primado do cogito, trata-se agora de pôr em evidência a heterogeneidade

pura e o primado da relação entre essas dife00 renças em uma uontologia da relaçãó,j • Avalia-se a que ponto tal pesquisa oferece, na virada do século, os prolegômenos da ontologia da diferença preconizada por Deleuze. Para esses pensadores, tratava-se, de fato, de ir mais adiante em um descentramento do homem para melhor reemergi-lo em seu meio vivo e reencontrar assim a unidade perdida, de desumanizar o homem para melhor humanizar a natureza, naquilo que Pierre Montebello qualifica de "a mais humana das metafísicas do cosmos e a mais cósmica das metafísicas do homem posteriores à revolução copernicana"101. Assim, a questão não era exumar a velha' metafísica que concede demais ao mesmo, à identidade do modelo, mas de construir uma nova metafísica, fazendo ressurgir uma filosofia da Natureza que abre espaço ao desenvolvimento de todas as diferenças, pois "o ser está efetivamente do lado da diferença, nem uno nem múltipló'w2• O problema fundamental que colocam esses metafísicos é justamente a incapacidade tanto da ciência quanto do racionalismo em geral de pensar a multiplicidade de nosso mundo. Assim. Tarde, que, corno vimos, teve uma enorme importância para Deleuze. tenta compreender a gênese das diferenças mais ínfimas: "1àrde lança a hipótese de que a natureza é a constelação cósmica das pequenas 103 diferenças monádicas" • Não se trata de virar as costas para a ciência, pois suas descobertas são absolutamente essenciais para compreender melhor tal dispersão de heterogeneidades, e sim de religá-la ao infinito do universo. Nesse plano, a explicação flsica logo topa com seus limites, pois suas leis não levam em conta as relações laterais, transversais das mônadas entre elas, nem sua ação de interpenetração: "Cada átomo é um universo em projeto", es104 creve Tarde • Procurando reencontrar uma unidade, ter acesso à univocidade do mundo, esses pensadores se agarram a todas as for~ mas de dualismo. Descobre-se ali um adversário comum a Deleuze com a ideia de que se pode superar a oposição entre matéria e espí-

rito e substituí-la pela força da afirmação da vida em todas as suas formas: "Se o ser em si é, fUndamentalmente, semelhante ao nosso ser, não sendo mais aquilo que não se conhece, 05 ele torna-se aquilo que se manifesta''t . Como diz Nietzsche, o mundo é "um mundo de reJa,,}()fi çoes A ontologia, tal como a concebe Deleuze, deve ser sempre indexada ao dever-ser. É por isso que ele se qualifica sem reservas como "empirista transcendental". o que o aproxima de Whitehead: '1\s categorias pertencem ao mundo da representação, e a filosofia foi tentada com frequência a opor a elas noções de outra natureza, realmente abertas, testemunhando um sentido pluralista e crítico da ldeia, existenciais, perceptos, e a lista de noções empírico-ideais que se encontra em Whitehead, e que faz de Process and Reality um dos maiores 107 livros de filosofia moderna • Mais tarde, em A Dobra, Deleuze se apoia mais firmemente ainda nas teses de Whitehead a propósito da natureza do acontecimento como vibração contendo uma infinidade de harmônicos. Ele encontra em Whitehead, assim como em Bergson, a pergunta para saber como uma produ~ ção subjetiva é capaz de criatividade: "Para Whitehead, o indivíduo é criatividade, formação de um Novo" 108• Deleuze é um empirista transcendental à maneira de Whitehead, com a convicção de que o abstrato não explica, mas deve ser explicado, e que não se trata de atingir as leis do universal, mas de discernir as condições da produção do novo, o que implica partir dos estados de coisas que não podem ser senão multiplicidades. Há uma grande proximidade entre esse aventureiro de devires plurais que é Whitehead, para quem "fixar limites à espe109 culação é trair o futuró' e o grande viajante "imóvel" que é Deleuze. cujas viagens são de ordem especulativa. Ele também converge com Whitehead em sua crítica de um cartesianismo que isola a razão do resto do mundo, separa-a da alma e da matéria. Tanto em um como no outro, igualmente metafísicos, cantata-se uma "insistência em fazer valer a plena realidade do virtual, ainda que não seja atual" 110•

143

Uma proximidade tão surpreendente tem a ver com essa outra metafísica que atribui um primado também à relação, sempre a conjunção, o "e", fonte de agenciamentos, das conexões mais diversas. Contudo, a analogia para no terreno do religioso, pois a metafísica de Deleuze recusa a pertinência de um discurso de ordem teológica, que ele situa em uma exterioridade absoluta em relação à indagação filosófica. Seu problema é encarnar o melhor possível o filósofo, justamente separando esses dois campos incomensuráveis e colocando apenas questões que podem retornar à filosofia. Nesse ponto fundamental, como mostra Arnaud Villani, os caminhos se separam entre um Deleuze que recusa toda transcendência e um Whitehead cuja filosofia se transforma em "soteriologia'>~lt.

O último texto de Deleuze publicado em vida, algumas semanas antes de seu falecimento, e que tem um valor quase testamentá~ rio, é ainda uma afirmação metafísica: "Pode-se dizer da pura imanência que ela é UMA 2 VIDA, e nada mais"u • Nesta última ocasião, Deleuze mobiliza um filósofo pouco citado por ele até ali: Fichte, que, em seus últimos trabalhos, sobretudo em sua Iniciação à Vida Feliz, consegue superar as aporias da separação entre o objeto e o sujeito. Como assinala o especialista do pensamento fichtiano Jean-Christophe Goddard, poderia causar surpresa ver assim Deleuze mobilizar Fichte. considerado o pensador por excelência do sujeito, mas seria ignorar a leitura que haviam feito dele os primeiros mestres de Deleuze, Jean Hyppolite ou Victor Goldschmidt. Estes últimos apresentaram a compreensão do transcendental fichtiano como campo sem sujeito da produção do sentido, como "imanência in~ tegral colocada no fundamento, como campo a~subjetivo: 'Reencontrando Fichte à véspera d·e sua morte, Deleuze simplesmente retornava ao que havia sido o ponto de partida de todo seu trabalho filosóficó" 113 • A substituição da intencionalidade pela intuição intelectiva e formadora da imagem, mediadora, também reaproxima Deleuze de Fichte em sua recusa

144

Dosse

comum do objetivismo e do pensamento da representação, substituindo-os por outra metafísica: "O que a imagem-fantasia, a imagem sonhada sem sonhador nem mundo sonhado, revela para Fichte, como para Deleuze, é o ser em si, o ser verdadeiro, o Ser-Uno como via e atividade ilimitadi,j 14•

Notas

:I' !I' it '~li li Ir

li\•

I. Gilles DELEUZE, DR, p. I. 2. !bid., p. 82. 3. Ibid., p. 85. 4, !bid., p. 168. 5. !bid., p. 92. 6. Gilles DELEUZE, LS, !969, p.l53. 7. Gilles DELEUZE, DR, p. 269. 8. Gilles DELEUZE, Le Pli. Leibníz et !e baroque, Minuit, Paris, 1988 (doravante citado Pli). 9. Gilles DELEUZE, DR, p. 269. 10. !bid., p, 293. 11. Jbid., p. 205. 12. Gilles DELEUZE, DR, p. 45. 13. !bid., p, 74. 14. lbid.,p. 79. 15, Ibid., p. 157. 16. Ibid., p. 255. 17. lbid., p. 387. 18. Ibid., p. 388. 19. Guillaume Sibertin-Blanc, entrevista com o

autor.

20. Gilles DELEUZE, DR, p. 389. 21. Gilles DELEUZE, LS, p. 210. 22. Alain BEAUL!EU, "Husserl", em Stéfan LE· CLERQ, Aux sources-de la pensée de Gilles Deleuze 1, Sils Maria, Mons, 2005, p. 84. 23. Paul VIRILIO, Voyage d'hiver, entrevista com Marianne Brausch, ed. ParenthCses, Paris,

1997, p. 47. Gilles DELEUZE, LS, p. 33. !bid., p.ll9. Jbid., p. 124. !bid., p. 125.

24. 25, 26. 27. 28. DiogEme LAERCE, citado por Gilles Deleuze, LS, p.l67. 29. Gilles DELE,UZE, LS, p. 172.

Gilles Deleuze & Félix

30. Victor GOLDSCHMIDT, Le SystBme stoicíen et l'idée de temps, Vrin, Paris, 1953. 31. Gilles DELEUZE, LS, p. 155. 32. lbid., p. 158. 33. François Zourabichvili, entrevista com o autor. 34. Gilles DELEUZE, PP, p. 229. 35. François ZOURABJCHVILI, Le Vocabulaire de Deleuze, op. cit., p. 43. 36. Gilles DELEUZE, posfácio a MELVILLE, Bar· tleby, Flammarion, Paris, 1989; reproduzido em CC, p. 89·114. 37. Gilles DELEUZE. LS, p. 174. 38. joe BOUSQUET, citado por Gilles DELEUZE, LS, p. 174. 39. Alain BEAULIEU, "Gilles Deleuze et les stolciens", em Alain BEAULIEU (sob adir.), Gi/les Deieuze, héritage philosophique, PUF, Paris, 2005, p. 50. 40. Ele não designa um objeto presente, mas ao mesmo tempo passado e por vir, quebran~ do assim todo impacto da negatividade em proposições disjuntivas do tipo: "Como dizia Crisipo: 'Se você não perdeu uma coisa, você a tem; ora, você não perdeu os chifres, portanto você tem chifres:" (Chrisippe em GILES

DELEUZE, LS, p. !61). Por essas proposições, Deleuze pretende criar movimento no funcionamento da lógica.

41. Gilles Deleuze, Le Magazine littéraire, setembro de 1988, entrevista com Raymond Bellour e François Ewald; reproduzido em PP, p. 212.

42. Alaín BEAULIEU, "Gilles Deleuze et les stolciens", op. cit., p. 63. 43. Gilles DELEUZE, Michel Foucault, :Minuit, Paris, 1986, p. 92 (doravante citado F).

44. 45. 46. 47. 48. 49. 50. 51.

Gilles DELEUZE. CC, p. 110. Gil!es DELEUZE, SPP, p. 170. Gilles DELEUZE, LS, p. 168. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, Qph, p. 71. Gilles DELEUZE, DR, p. 146, fbid., p. 327. Gilles DELEUZE, Nph, p. 44. Bernard ANDRJEU, "Deleuze, la biologie et la vivant des corps", em Concepts, Gilles Deleuze, ed. Sils Maria, Mons, 2002, p. 94. 52. !bid., p. 92. 53. Gilles DELEUZE, LS, p.I06.

54. !bid., p. 106. 55. Anne SAUVAGNARGUES, Deleuze et l'art, op. cit.. p. 87 ·88. 56. 57. 58. 59. 60. 6!.

82.

Bernard Andrieu, entrevista com o autor.

Gilles DELEUZE, DR, p. 139. !bid., p. 140. Gi!les DELEUZE, LS, p. 218. lbid., p. 234.

!bid., p. 24 I. 62. lbid., p. 246. 63. Gil!es DELEUZE, DR, p. 104, nota L

64. Gabriel TARDE, "La variation universelle", em Essais et mélanges sociologiques, Stock e Masson, 1895, p. 391. 65. Gabriel TARDE. Les Lois de l'imitation, Alcan, Paris, 1890.

66. Gilles DELEUZE. Félix GUATTARI, MP, p. 267. 67, Gilles Deleuze, curso na universidade de Pa~ ris-VIII, 7 de janeiro de 1986, arquivos sonoros, BNF. 68. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, MP, p. 267. 69. Gilles Deleuze, curso na universidade de Paris-VIU, 7 de janeiro de 1986, arquivos sonoros,

BNF. 70. Éric ALLIEZ, prefácio a CEuvres de Gabriel Tarde, vol. 1, Monadologie et sociologie, Synthélabo, Paris, 1999, p. li. 71. !bid., p. 23. 72. fbid., p. 25. 73. Gilles DELEUZE, DR, p. 317. 74. Gilbert SIMONDON, L1ndividu et sa gen6se physico-biologique, PUF, Paris, 1964. 75. f>ascal Chabot, entrevista com o autor. 76. !bid. 77, Gilbert SIMONDON, L'Jndividu et sa genese physico-biologique, op. cit.; resenha de Gilles DELEUZE, "Gilbert Simondon, l'indi· vidu et sa genese physico~biologique", Revue philosophique de la France et de l'étranger, vol. CLVI, n. 1-3, janeiro~março de 1966, p.

115·118; reproduzido em Gilles DELEUZE, ID, p. 120·124. 78. !bid., em JD, p. 120·121. 79. Ibid., p. 123. 80. Ibid., p. 124. 81. Anne SAUVAGNARGUES, "Gilbert Simon· don", em Stéfan LECLERQ (sob a dir.), Aux

sources de la pensée de Gilles Deleuze 1, op. cit., p.l96·197. Gilbert SIMONDON, L'Jndividu et sa genese physico-biologique, op. cit., p. 260. Gilles DE!.EUZE. DR, p. 278. fbíd., p. 240. fbid., p. 239. Jbid., p. 240. Gilles DELEUZE, DR, p. 278.

83. 84. 85. 86. 87. 88. François CHOMARAT, "Geoffroy Saint-Hilaire", em Stéüm LECLERQ (sob adir.), Aux sources de la pensée de Gi!Les Deleuze 1, op. cit., p. 181. 89. Raymond RUYER, "Le psychologique et le vital", Bul!etin de La Societé française de philosophie, 26 de novembro ele 1938, A. Colin, 1939, p.l59·l95. 90. Gilles DELEUZE, "Réponses à une série de questions", nov. 1981, em Arnaud VILLAl"\fi, La Guêpe et l'Orchídée, op. cit., p. 130. 91. Gilles Deleuze, carta de 13 de junho de 1990 a Jean-Clet MARTIN, Variations. La phiLosophie de Gilles Deleuze, Payot, Paris, 1993, p. 7. 92. Alain BEAULIEU, "Gilles Deleuze et les stolciens", em Alain BEAULIEU (sob adir.),

Gilles Deleuze, héritage philosophique, op. cit., p. 52. 93. Gilles DELEUZE, DI\, p. 52. 94. Ver capítulo "1977: année de tous les combats".

95. 96. 97. 98. 99. 100. 101. 102.

Gilles DELEUZE, DR, p. 53. !bid., p. 353. Pierre MontebeUo, entrevista com o autor. Pierre MONTEBELLO, üiutre Métaphysique, DDB, Bruxelas, 2003.

Ibid., p. 8. Jbid., p. 10. Ibid., p. 12.

Gilles DELEUZE, "Bergson, 1859·194!'', em M. MERLEAU·PONTY (sob a dir.), Les Philoso· phes cél8bres, Mazenod, Paris, 1956; reproduzido em lD, p. 33. 103. Pierre MONTEBELLO, L'Autre Métaphysique, op. cit., p. 113. 104. Gabriel TARDE, La Logique sacia/e, Institut Synthélabo, Paris, 1999, p. 231. 105. Gabriel TAHDE, Monadologie et sociologie, op. cit., p. 44.

146

106. NJETZSCHE, CEuves complktes, Fragments posthumes. XIV, 14 (93). 107. Gilles DELEUZE. DR, p. 364. 108. Gilles DELEUZE. Pli, p. 105. 109. WHITEHEAD, La Fonction de La Raison, et atllres essais, Payot, Paris, 1969, p. 156. 110. Arnaud VlLLANI, "Deleuze et Whitehead", Revue de métaphysique et de mora/e, abriHunho 1996, p. 247.

!li. Arnaud VILLAl\íl, "Deleuze e Whitehead", op. cit.• p. 256.

112. Gilles DELEUZE, "L'immanence: une vi e~, Philosophie, n. 47, setembro de 1995, p. 3-7; reproduzido em RF, p. 360. 113. jean-Christophe GODDARD, Fichte. L'émancipation philosophique, PUE Paris, 2003, p. 8. 114. Ibid., p.!5.

9 Maio de 68: a ruptura instauradora

Nesse mês de maio de 1968, o "movimento de 22 de março'' reúne-se todos os dias para preparar manifestações cada vez mais amplas

e combativas. Quando Anne Querrien, estudante de Nanterre, amiga de Deleuze e pesquisadora ativa do CERFI, chega com a mulher de Serge July. Évelyne, para a reunião do movimento, na noite 8 de maio, encontra a porta fechada com o seguinte aviso: "Estamos na casa de Félix". De fato, os militantes do 22 de março realizam sua reunião na sede do CERFI, no número 17 da Avenue de Verzy, no 17o. distrito de Paris.

Como um peixe na água Fortuitamente, o CERFI se dissolve no "movimento de 22 de marçó' em um momento crucial da contestação de Maio. Nessa noite de 8 de maio, o CERF! tinha previsto preparar um número especial de sua revista sobre a contestação estudantil: ''A gente tinha portanto marcado reunião com Cohn-Bendit e alguns outros na Avenue de Verzy no dia 8 à noite, e estavam todos na manifestação da HalIe-aux-Vins. A manifestação custa a se disper-

mas Cohn-Bendit está acompanhado então de 25 pessoas. e a gente decide que todos devem 1 voltar para lá, com]uly, Sauvageot, Geismar" • Daniel Cohn-Bendit e os líderes do movimento estão um pouco irritados com as manobras em curso para conter a contestação crescente. Os representantes do SNESup'', Alain Fesmar, e da UNEF, Alain Sauvageot, passaram o

dia todo negociando com os representantes do poder em busca do retorno à calma após a grande manifestação de 7 de maio, que terminou nos Champs-Élysées. Na Avenue de Verzy, procura-se desesperadamente manter vivo o movimento, quando por volta de 3 horas da manhã Alain Geismar empurra a porta. Está decomposto pelo cansaço, e pela tensão por ele vivida entre a responsabilidade sindical, que o obriga a ne~ gociar, e suas convicções revolucionárias, que o levam à inflexibilidade: "Diante dos enraivecidos do 22 de março, ele veio se explicar, tão intenso é seu desejo de mergulhar i/fico nessa 2 rava transbordante" • Geismar explica com lágrimas nos olhos que teve de admitir o inaceitável, conseguiu a libertação dos estudantes detidos, com exceção dos estrangeiros. É nes-

sar, e a gente diz: encontro na Ave nu e de Verzy, >:<

N. de T.: Syndicat National de I'Enseignement Supérieur.

148

Dosse

se momento que a assembleia geral do 22 de março decide que a jornada de mobilização de 10 de maio será a da intransigência sobre as duas reivindicações do movimento, que são a libertação de todos os estudantes detidos sem discriminação e a reabertura imediata da Sorbonne. Às 4 horas da manhã, resolve-se redigir um panfleto a ser distribuído amplamente convocando para uma grande manifestação em !O de maio- serão impressos mais de 400

mil exemplares. Félix Guattari passa amplamente à margem dessa longa noite das barricadas da Rue Gay-Lussac. Chega ao local de moto às 4 horas da manhã, sem jeito, e procurando na bruma matinal seu amigo do CERFI, François Fourquet, que acaba encontrando perto do Jussieu um pouco atordoado por causa do gás lacrimogêneo. Félix Guattari não é verdadeiramen-

te um grande comandante, os combates de rua lhe dão medo, mas exercem sobre ele um poder de fascinação: "Eu me lembro, passava de carro. Era fogo de artifício por toda parte. 3 Era incrível algumas noites!" . Mais do que os enfrentamentos físicos, o que o extasia é a tomada de palavra geral, pois "essa experiência, para os que a viveram um pouco de perto, é 4 inesquecível" • Quando a contestação se generaliza, Guattari é como um peixe na água. Ele vê se realizar o deslocamento das esperanças revolucionárias, pelo qual trabalha desde suas teses da Oposição de Esquerda, para o movimento estudantil, concebido como ponta de lança da luta social, único capaz de escapar dos aparelhos burocráticos. Ao mesmo tempo, ele está aturdido, estupefato com o caráter espontâneo dessa eclosão: "Quando 68 estoura, tenho a impressão de estar ficando maluco. Tenho uma sensação estranha, total. Encontro-me nesta Sorbonne, que me deixava enfastiado, no anfiteatro Richelieu ... Incrível, é uma experiência incrível. Não vi nada acontecendo e não compreendi nada. Depois de alguns dias é que me 5 dei conta'' . No entanto, Guattari tinha sido informado por seu bando do que se passava há alguns meseS no carrJpus de Nanterre. Anne

Gilles Deleuze & Félix Guattari

Querrien estava matriculada ali no terceiro ciclo, com a orientação de Henri Lefebvre no departamento de sociologia. Ela participa das primeiras ações do 22 de março: "Eu tinha dito a Félix que o que se passava em Nanterre era muito mais divertido que as reuniões do CERFI"6 Em abril de !968, Guattari, intrigado, vai então à universidade de Nanterre para sentir de perto um movimento que já tem seu líder carismático na pessoa de Cohn- Bendit, que alia talento de tribuno, humor devastador e senso de oportunidade inato. Guattari vai de Paris para La Borde, onde vive e trabalha, e reúne as tropas, convocando os médicos, os monitores, os estagiários, assim como os pa~ cientes, para reforçar as fileiras da revolução em marcha nas ruas parisienses. Jean Oury, diretor da clínica, embora entusiasmado com o movimento, considera irresponsável esse último ponto. Entre as "façanhas" de Guattari e seu bando durante o mês de maio, estará a ocupação do Instituto Pedagógico Nacional, na Rue d'Ulm. São os professores da FGERI que decidem essa ocupação. Guattari conhece bem, através de seu amigo Fernand Oury, as questões de ordem pedagógica, pois seus amigos da FGERI costumam trabalhar com os pesquisadores desse instituto, mas os militantes de base do movimento ignoram até sua própria existência: a ocupação desse local lhes parece um pouco bizarra. Outra ocupação, mais espetacular, é a do Théâtre de l'Odéon. Seu iniciador é jean-Jacques Lebel, ex-colaborador de Socialisme et Barbarie, convertido à arte revolucionária, aos happenings e à contracultura. Guattari e a FGERI estão por perto, são os guarda-costas dessa operação. Lebel conheceu Guattari através de jean-Pierre Muyard, decididamente o intermediador profissional - foi ele quem pôs em contato Guattari e Deleuze. Em 1966, Muyard convida Lebel para uma representação que se realiza no Museu de Arte Moderna no Palácio de Tóquio. A sessão é organizada pela clínica de La Borde, e os atores são os pacientes da clí~ nica, que foram a Paris para a ocasião e a con-

vi te de Lacan: "Félix assumia então as funções de seguidor de Lacan. Era considerado como um dos dois ou três tipos mais brilhantes em torno de Lacan"'. O contato entre jean-jacques Lebel e Guattari é de imediato caloroso e intenso. Ambos partilham a mesma busca de radicalidade antiacadêmica. Quando Lebel descobre esses pacientes· vindos de um hospital psiquiátrico que fogem às normas e que em cena são capazes de ultrapassar nos dois sentidos as fronteiras entre o estatuto de louco e de ator, ele fica literalmente fora de si. O que o deixa mais aturdido é a cena em que um paciente de La Borde se senta ao piano e começa a tocar como um músico de primeira linha. Em seguida se levanta e, com um olhar de relâmpago à Antonin Artaud, começa a gritar para os espectadores: "Finalmente sou alguém". Diante desse paciente que partilha com o público seu abismo interior, já não se sabe mais então o que emana da réplica teatralizada ou da terapia: "Eu estava perturbado, e tudo isso correspendia exatamente àquilo que nós, a partir de Mareei Duchamp e John Cage, tentávamos fazer. Por um caminho diferente, eles chegavam à mesma coisa. Transformavam sua angústia 8 em arte" No final do espetáculo, Jean-jacques Lebel se apresenta a Guattari, que lhe diz que já conhece seus happenings e se inspirou neles, e acaba por convidá-lo a engrossar as fileiras da FGERI para abrir uma nova frente poética e teatral. Ainda que Lebel tenha alguma dificuldade de convencer seus amigos artistas a trabalhar ao lado de psiquiatras, os dois homens não se separarão mais. No auge do movimento de Maio de 68, após a reabertura da Sorbonne logo tomada pelos estudantes contestatários, Lebel, que rejeita o confinamento nessa fOrtaleza do esquerdismo estudantil, propõe a ocupação do Théâtre de l'Odéon. Com esse teatro, do qual o ministro da Cultura André Malraux é frequentado r assíduo, o que se pretende atingir é a cultura oficial da República. Decidida a ocupação, Guattari faz sua parte, não sem avaliar os perigos que representa o ataque frontal a um dos símbolos do Estado. A universidade ainda passa, pois é

149

protegida das intervenções intempestivas da polícia pelas prerrogativas universitárias, mas o teatro subvencionado de Jean-Louis Barrault é outra história! Guattari põe então toda a experiência da FGERI, seus médicos, suas diver~ sas redes de militantes, a serviço da tomada do Odéon: "Muitos trabalhavam em hospitais. A gente encheu os carros de bandagens, de mer~ 9 cúrio cromo, de antibíóticos" . Outros cuidaram do abastecimento necessário para aguentar um hipotético cerco: "Tínhamos visitado o teatro sob o pretexto de ser jornalistas e reparamos que era possível subir no telhado, levar colchões, demarcando os lugares para armazenar os medicamentos e a comida"w. Depois da grande manifestação de !3 de maio, o Odéon é tomado de assalto no dia 15, e o movimento se apodera assim, sem maiores enfrentamentos, de um cenário onde artistas e intelectuais, Julien Beck, o Living Theatre, e sobretudo uma multidão de anônimos tomarão a palavra. No ha/l de entrada, o comando-chefe escreveu em vermelho a seguinte advertência: "Quan~ do a assembleia nacional se torna um teatro burguês, todos os teatros burgueses devem se tornar assembleias nacionais!". jean-jacques Lebel, Daniel Cohn-Bendit e Julian Beck explicam diante de uma plateia entusiasta, que tomou assento nas confortáveis poltronas da orquestra e nos balcões, que não se tratava de confiscar o teatro de Barrault-Renaud, mas de devolvê-lo ao público. Progressivamente, o conjunto dos assalariados adere ao movimento de contestação, sobretudo após a noite das barricadas de 10 de maio, a ponto de o país ficar totalmente paralisado pela greve e a maior parte das fábricas ser ocupada pelos trabalhadores. Embora a regra, com exceção da jornada de !3 de maio, seja a separação mantida pelos aparelhos do PCF e pela CGT entre a contestação estudantil e o mundo do trabalho, o Grupo Jovens da Hispano, que já minou a hierarquia dos responsáveis pela burocracia sindical, pode agora se manifestar abertamente. Seu líder,Jo Panaget, grande amigo de Guattari, pede aos militantes do CERFI que venham dar um golpe de mão na

150

François Dosse

Hispano, em La Garenne-Colombes. Como em toda parte, a fábrica é controlada pelo PCF e pela CGT, como tinha sido em 1936. Diante da

porta de entrada, uma grande praça serve de fórum permanente onde os militantes do 22 de março vêm distribuir panfletos, coordenar debates e informar sobre o que se passa nos campi: "Era preciso brandir a sigla do 22 de março

que era então mais bem aceita que a dos grupelhos. A força do 22 de março era tamanha que a CGT foi obrigada a compor"u. O grupo de amigos de Guattari ajuda materialmente os operários em greve: ''A gente ia à Hispano levar produtos do Loir-et-Cher, com alguns cuidados, pois era preciso entregar-lhe

ovos muito estritamente calibrados" 12 • Os jovens operários da Hispano pedem aos respon-

sáveis permissão para discutir em um quadro mais institucionalizado dentro da fábrica. Um compromisso é firmado, possibilitando a entrada de alguns estudantes do movimento no anexo da fábrica, na sede do comitê de empresa. Os representantes do aparelho constatam surpresos que os operários da base não hesitam em tomar a palavra e expressar uma revolta particularmente radical: "Eles se puseram a falar com muita violência dizendo: o que é que a gente está fazendo lá? Devíamos todos sair à rua para nos manifestar. Com uma tal violência e uma tal intensidade que os tipos do aparelho ficaram completamente desnorteados" 13. Os quadros sindicais aprenderam a lição, e no

dia seguinte prepararam a reunião de modo a monopolizar a palavra, e logo depois as portas

da fábrica se fecharam aos elementos externos. No final do mês de maio, os ventos mudam com o discurso de grande repercussão do general de Gaulle, que retoma de Colombey e de Baden-Baden, e a ampla demonstração gaullista nos Champs-Élysées. Guattari denuncia en-

tão as tentativas de controle feitas pelos grupelhos de extrema esquerda de todo matiz. Ele espera preservar o movimento do 22 de mar-

ço com sua espontaneidade, sua criatividade transgressiva, assim como todos os comitês de base surgidos durante a mobilização nos locais de trabalho e nos bairros. O 22 de março

Gilles Deleuze & Félix Guattari

"deve defender o direito dos comitês de base de se manterem independentes de qualquer 14 estrutura que pretenda controlá-los" • Guattari reconhece no 22 de março que ele aspirava desde que criou o OP: "O que é excepcional no 22 de março não é o fato de que um grupo tenha conseguido sustentar seu discurso sobre o modo de associação livre, mas sim que tenha conseguido se constituir como 'analistà de uma massa considerável de estudantes e de 15 jovens trabalhadores" . Na manhã de 6 de junho de 1968, os confrontos se deslocam para a fábrica de Flins-sur-Seine em Yvelines: cerca de mil CRS·' e policiais militares ocupam o local às 3 ho~ ras da manhã, cercando a fábrica Renault. Os operários estão em greve há dezenove dias e, apesar dos acordos de Grenelle, se recusam a voltar ao trabalho. Para fazer frente a essa forte ofensiva policial, os poucos operários isolados abandonam seus braseiros e se dirigem a Paris para buscar ajuda. Vão às Belas Artes, entram em contato com o movimento do 22 de março e com os comitês de ação parisienses. A mobilização geral é decretada para o dia seguinte, e programa-se uma assembleia no dia 7 de junho às 5 horas da manhã nas imediações da fábrica. Barreiras policiais são montadas nas saídas de Paris para impedir os militantes parisienses de chegar a Flins. Contudo, muitos conseguem escapar da vigilância policial, e os confrontos se propagam às margens do perímetro proibido com perseguições pelos campos e mesmo ao longo das duas margens do Sena. A jornada termina tragicamente, com a primeira morte de Maio de 68, a do jovem colegial Gilles Tautin, De sua parte, Félix Guattari pega o carro para ir a Flins: "Em Flins, dei carona a dois tipos muito jovens. A gente conversa: o que vocês fazem? Somos estudantes. Estudantes de quê? Eles vacilam. É... na Sorbonne. Eram operários muito jovens, talvez aprendizes. Não era para impressionar que se diziam estudantes, era porque só se julgavam dignos de ir * N. de T.: Compagnie Républicaine de Sécurité. Polícia Nacional da França.

16

combater se passando por estudantes" • Em junho de 1968, Guattari considera que os dois fatos mais significativos do movimento foram esses momentos de confronto radical em Flins e em Sochaux, por sua capacidade de romper os entendimentos de fachada: "Em Flins e em Sochaux, a CGT e os tiras apavorados: denunciavam em conjunto os elementos incontroláveis"". Em Sochaux, no dia 11 de junho, a intervenção brutal da polícia na fábrica ocupada termina com a morte de dois operários, um deles atingido por bala. O deslocamento dos estudantes para o próprio terreno das lutas operárias tem um valor transgressivo, na medida em que rompe as fronteiras bem guardadas entre os dois mundos. A onda de choque de Maio de 68 não poderia deixar de sacudir os labordianos. Eram muitos os que iam e vinham sem parar entre as manifestações parisienses e a clínica onde viviam e trabalhavam. A radicalidade da contestação antiautoritária atinge como um bu~ merangue esse universo construído contra toda forma de paralisia institucional. Esse pequeno mundo vanguardista não podia portanto ficar atrás de um movimento que havia preparado cuidadosamente. Forma-se na clínica um comitê de greve, e assegura~se uma ligação com os estabelecimentos psiquiátricos do Val-de-Loire. Mantêm~se contatos com as fábricas da região, de Blois, Vendôme e Romorantin. Os numerosos estudantes vindos de Paris e recrutados por Félix Guattari fazem a ponte com a capital e colocam seu Citroen 2 CV à disposição para abastecer a clínica, crian~ do vínculos com os camponeses das imediações. Quanto aos internos, no mês de maio há um envolvimento maior nas tarefas materiais de uma clínica constantemente abandonada pelos profissionais voltados às suas atividades militantes. Questionamentos radicais se fazem ouvir: "Do movimento vêm indagações insistentes. O que vocês fazem em Cour-Cheverny? A loucura lhes parece um fenômeno político? Por que a psiquiatria? Quais são os direitos dos 18 doentes, seus poderes? Curar, o que é isso?" O movimento de Maio empurra a clínica de

151

La Borde da psiquiatria institucional até os limites da antipsiquiatria que se desenvolve na época com as teses de Laing, Cooper, Basaglia, para os quais a própria instituição deve ser eliminada t<J. Essas posições são vistas como irresponsáveis pela autoridade local, Jean Oury, que zela pela conservação de seu instrumento de trabalho apesar da contestação de que é alvo. Isso explica suas impressões, compartilhadas, sobre esse período que, segundo ele, produziu efeitos funestos para o futuro da psiquiatria. Oury não tolera que os estagiários apareçam ao meio-dia, quando devem entrar no serviço às 9 horas da manhã, e se ponham a acusar os que já estão trabalhando de "alienados do capitalismo". Jean Oury considera que tudo fOi temporariamente destruído: "Eu disse que aquilo foi como um bombardeio"". Oury acusa seu amigo Guattari de ser o principal instigador, como também, é claro, todo seu bando, que denunciava La Borde como sendo a "Saint-Tropez da Sologne": "Era demais, eu os botei para fora'm. Incontestavelmente, Maio de 68 pôs fim à coabitação: "Em La Borde, quando alguém era feliciano não era ouryano. Era preciso escolher, visto que Oury ficou trauma22 tizado com 68" • Antes de 1968, durante a guerra do Vietnã, Guattari conseguira reagrupar nos bistrôs da região a antiga rede FTP do Loir-et-Cher por ocasião de projeções de filmes sobre a guerra. Voltando à sua prática do entrismo. Guattari e seu bando de La Borde aderem ao PCF do departamento. Foi uma entrada maciça de uns quinze militantes experientes. Com essa cobertura oficial, eles podem controlar numerosas pequenas associações, movimentos de mulheres, movimentos culturais, cineclubes ... Rapidamente, encontra-se um terreno mais amplo de ação com a luta pelo direito ao aborto, a luta do MLF* e dos médicos. Entre estes iíltimos, estão engajados particularmente os de La Borde, como ]ean-Claude Polack: "Tínhamos implantado em La Borde um método de

"N. de T.: Mouvement de libération des femmes.

152

Fra;ncrris Dosse

aborto muito apropriado cujo principal artesão foi]ean Oury'm. Na época, o PCF ainda era con~ trário a qualquer liberalização da interrupção voluntária da gravidez. Ele defendia a linha natalista tradicional, segundo a qual quanto mais numerosos fossem os proletários, mais

capazes seriam de construir as bases de uma democracia popular. A direção do PCF acaba por se dar conta de que as coisas são mais heterodoxas pelos lados do Loir-et-Cher e envia sua líder,Jeannette Vermeersch-Thorez, esposa de Maurice Thorez, para pôr ordem ali, retembrando as posições oficiais do partido. A "camarada Jeannette" já se notabilizara antes por suas posições hostis ao uso da pílula. Sua aterrissagem na região é organizada pela União das Mulheres da França, o biombo de uma organização "de massa" para as mulheres do PCF. A reunião que prometia ser tranquila,

controlada pelo partido, não transcorre tão pacificamente conforme o previsto. Inundada de perguntas, Jeannette Vermeersch eleva o tom e diz que não tem intenção de discutir política com lésbicas; 'As moças começaram a insultá-la, e ela teve de abandonar a reunião 24 no meio, debaixo de gracejos" • Isso é demais para a direção do PCF, que expulsa do partido esse bando de esquerdistas do Loir-et-Cher.

Deleuze à escuta de 1968 Durante esses dois meses de contestação, Deleuze não é um militante revolucionário como seu futuro amigo Guattari. Eles ainda não se conhecem, e suas preocupações na época parecem bem distantes. Contudo, olhando mais de perto, esse acontecimento, essa ruptura que cada um vive à sua maneira, preparará seu encontro. Em Maio de 68, Deleuze leciona na universidade de Lyon e desde o início se mostra receptivo à contestação estudantil. É um dos raros professores da universidade a declarar publicamente seu apoio, a participar das assembleias gerais e das manifestações dos estudantes lyoneses. É inclusive o único professor do departam~nto de filosofia a mar-

Gilles Deleuze & Félix Guattari

car presença no movimento. Ele simpatiza e se mantém à escuta. Sua aluna Chris Youn€slembra-se de uma assembleia geral reunindo um grande número de estudantes. Ao lado dela, uma estudante se queixa à sua colega, evocando a sorte dos estudantes assalariados que não podem se permitir passar nos exames com um filho para alimentar e um empreguinho de bedel: "Deleuze, que estava ao lado dela, ficou um pouco irritado e lhe disse: 'Mas é evidente que não se pode deter o movimento. É preciso que o movimento aconteça. Você pode ver que o 25 que está acontecendo é importante!"' • Deleuze aderiu completamente ao movimento. Quando em lO de maio de 1968 Mau- · rice de Gandillac, seu orientador de tese, passa por sua casa em Lyon, é recebido por cartazes, bandeiras vermelhas e bandeirolas presas à sacada pelos filhos de Deleuze, Julien e Émilie. Uma noite de maio, em que a família Deleuze havia convidado para jantar Jeannette Colambel e seu marido, um estudante aparece inopinadamente para anunciar que a extrema direita está preparando um projeto de intervenção violenta contra o piquete dos estudantes da universidade: "Rapidamente, Gilles e eu nos precipitamos escada abaixo para encontrar 26 nossos alunos" • No final de junho, Claude Lemoine, ex-aluno de Deleuze em 1951, agora membro de gabinete de Alain Peyrefitte na direção da ORTF* e que, portanto, se encontra no outro campo, vê chegar na estação de rádio um grupo de manifestantes entre os quais identifica Gilles Deleuze: "Eles chegam diante da minha sala, e um dos manifestantes diz: 'Queremos ver Lemoine!' Indiquei a sala ao lado, que eles ocuparam durante quatro horas. Gilles me reconheceu e achou engraçado. De minha parte, aproveitei para cair fora'm. Deleuze fixou como prioridade concluir sua tese de doutorado e defendê-la no outono de 1968. Assim, dedica o verão a ela, na propriedade familiar do Mas Révéry em Saint-Léonard-de-Noblat, no Limousin. Sente-se muito

~'N.

de 'I:: Office de Radiodiffusion-Télévision Française.

cansado e consulta um médico, que diagnostica o reaparecimento de uma antiga tuberculose refratária aos antibióticos e que abriu um enorme buraco em um de seus pulmões. Ele precisa ser hospitalizado com urgência a flm de não comprometer a defesa da tese, adiada para janeiro de 1969. Assim, Deleuze apresenta na Sorbonne, no início de 1969, uma das primeiras teses defendidas após o movimento de maio, quando os confrontos ainda estão longe de ter acabado. Sabendo que ele está muito doente, a banca decide abreviar um pouco a duração da defesa para não cansar demais o autor, pois todos reconhecem a qualidade excepcional do trabalho realizado. Sobretudo, a banca teme a chegada de visitantes não convidados e inoportunos, e se pergunta se ele poderá oficiar normalmente. Eles "tinham uma única obsessão: como evitar os bandos que estavam na Sorbonne e que tanto temiam. Lembro que o presidente da banca me disse que havia duas possibilidades. Pode-se fazer sua defesa no térreo, e há uma vantagem, que é ter duas saídas, mas o inconveniente é que há bandos que circulam mais facilmente por lá. Pode ser no primeiro andar, com a vantagem de que os bandos sobem com menos frequência, mas há também um inconveniente: uma única entrada e saída. De modo que, enquanto apresentei minha tese, em nenhum momento cruzei o olhar do presidente da banca, que estava fixado na porta para saber se os bandos iam chegar"28• Após a defesa, Deleuze manifes~ ta ao amigo François Châtelet o desejo de ser nomeado para a região parisiense: 'Ah! Dessa defesa, o que dizer? Não há mesmo nada de engraçado a recordar, o nada, o nada. Vi Alquié no dia seguinte e tive a impressão de que ele me fez uma declaração de ruptura. Tanto melhor. Mas eu preciso me estabelecer no ano que vem, em Vincennes ou em Nanterre. Prefl»29 ro t er outra caverna a permanecer em Lyon . Após a defesa, Deleuze teve de se submeter a uma operação muito delicada, uma toracoplastia. A partir de então, ele possui um único pulmão, o que o condena a perfusões constantes e a uma insuficiência respiratória até o fim de

153

seus dias. Essa operação exige também um ano inteiro de convalescença, que ele passa em companhia da esposa, longe de toda agitação, em sua propriedade de Limousin. É no vazio desse momento de debilitação vital e de afastamento obrigatório que Deleuze encontra Guattad0• Sem Maio de 68, esse encontro não poderia ter ocorrido. O acontecimento de 1968 operou neles algo como uma "ruptura instauradora" (Michel de Certeau). Seguindo o ensinamento de ]o e llousquet, muito citado por Deleuze em 1967, sua primeira obra comum, O Anti-Édipo, se enraíza no movimento de maio: ela tem a marca da efervescência intelectual do período. Comentando a publicação dessa primeira obra comum, Guattari conürma tal ancoragem: "Maio de 68 foi um abalo para Gilles e para mim, como para tantos outros: não nos conhecíamos, mas esse livro, atualmente, é uma con31 tinuação do movimento" •

Notas l. Jean-Pierre Muyarcl, entrevista com o autor.

2. Hervé HAMON, Patrick ROT:MAN, Génération, tomo 1, Seuil, Paris, 1987, p. 473. 3. Félix Guattari, entrevista com Daniele Linhart, arquivos IMEC, 1984. 4. lbid.

5. lbid. 6. Anne Querrien, entrevista com o autor.

7. Jean-Jacques Lebel, entrevista com Virginie Linhart. 8. Ibid. 9. Jbid. lO. Jbid. 11. ]o Panaget, entrevista com o autor. 12. Jean-Marie Doublet, entrevista com o autor. 13. Debate Grupo Jovens da Hispano com Félix Guattari, gravação de 29 de junho de 1968, transcrição datilografada cedida por Jo Panaget. 14. Félix GUATTARI, "La contre-révolution est une science qui s'apprend", Tribune du 22 mars, 5 de junho de 1968; reproduzido em PT,

p. 211. 15. Félix Guattari, "Extrait de discussion", 23 de junho de 1968; reproduzido em PT, p. 217.

154

Dosse

16. Ibid., p. 22!.

17. lbid., p. 223.

18. jean-Claude POLACK, Danielle S!VADON-SABOUR!N, La Borde ou le droít à la Jolíe, op. cít., p. 54. 19. Ver capítulo ''Uma alternativa à psiquiatria?M.

25. Gilles Deleuze, palavras reportadas por Chris Younes, entrevista com o autor. 26. jeannette COLOMB.EL, ''Deleuze-Sartre: pistes", em André BEfu'IOLD, Richard PINHAS (sob adir.}, Deleuze épars, op. cit., p. 43. 27. Claude Lemoine, entrevista com o autor. 28. Gilles Deleuze, A.

20. Jean Oury, entrevista com o autor. 2!. lbíd.

29. Gilles Deleuze, carta a François Châtelet, 1969,

22. Danielle Sivadon, entrevista com o autor. 23. jean~Claude Polack, entrevista com Virginie Linhart. 24. Ibíd.

30. Ver prólogo '"Nós dois' ou o entre-dois".

acervo Châtelet, JMEC. 31. Félix GUATTARI, "Entretien sur L:Anti-CEdipe",

11trc, n. 49, 1972; reproduzido em Gilles LEUZE, PP, p. 26.

DE~

II DESDOBRES: BIOGRAFIAS CRUZADAS

10 Fogo no psicanalismo

Nos anos de 1950, Guattarí, vagando pelos corredores da Sorbonne, só jura por seu mestre,

que inspira todas as suas palavras e seus escritos.

Ele conhece as teses quase de cor, estimula seu bando de companheiros a ler e, naturalmente, é um dos fiéis da cerimônia semanal do seminário. Seu fascínio e seu mimetismo são tais que, quando seu amigo Philippe Girardi o interpela nos corredores da Sorbonne, o chama de "Lacan"! Quando este último cria a Escola Freudiana de

Paris, em 1964, Guattari está entre os lugares-tenentes, e inclusive sugere a criação do que setornará o periódico interno: La Lettre de lÉcole.

Em 1964, Lacan instala seu seminário em um lugar de destaque da cultura parisiense, a prestigiosa ENS da Rue d'Ulm. Nesse caldo de cultura, amplamente dominado na filosofia pelos althusserianos, Lacan se aproxima de uma nova geração, a de Jacques-Alain Miller e Jean-Claude Milner, que serão seus guarda·costas1. Nesse período, Althusser contribui para instalar a psicanálise no centro da vida intelectual francesa e para vencer as últimas resistências dos comunistas às teses freudianas2. O retorno a Freud assume em Althusser a forma do recurso a Lacan, visto como um aliado objetivo em sua luta contra o aparelho centralizado do PCF que ele contesta do mes-

mo modo que Lacan contesta a organização oficial internacional do freudismo, a IPA". Lacan consegue obter de Félix Guattari um texto para a revista Scilicet, e, no Hnal, não o 3 publica • Contudo, quando fica sabendo que um dos seus, na pessoa de Guattari, está envolvido em um projeto de texto sobre a psicanálise junto com Deleuze, cujos trabalhos ele aprecia, a cotação daquele volta a subir repen-

tinamente: Lacan flca preocupado com o que pode sair de uma tal parceria e teme a força de convicção de eventuais críticas: "Ele passou a me interpelar nos congressos: 'Guattari, o que você acha disso? .. :"·'. A preocupação de Lacan é cada vez maior, e ele pergunta a Guattari se pode ter acesso ao manuscrito desse livro, que deve ser publicado em 1972. "Evidentemente, isso estava fora de questão! Deleuze desconfia5 va de Lacan como da peste" • Guattari se escu~ sa polidamente, alegando a vontade de Deleuze de só divulgar um texto muito bem cuidado em sua versão final. Procura tranquilizar seu antigo mentor, dizendo-lhe que permanece um lacaniano de primeira hora, que apenas sentiu necessidades de respigar em outros campos ainda não explorados por seu mestre. "'N. de T.: lnternatlonal Psychoanalytical Association.

158

François Dosse

Lacan fica mais preocupado ainda na me-

da Rue de Lille se fecha pesadamente"'. Quando

dida em que já se comenta sobre o que Deleuze

Lacan tomar conhecimento do caráter devastador da obra a propósito de suas teses, os vínculos serão definitivamente rompidos. Não apenas eles não se verão mais, como Lacan e seus próximos vão espalhar uma série de boatos sobre as práticas de Guattari para desacreditá-lo nos meios psicanalíticos. A ideia inicial de Guattari não é escrever um texto polêmico contra Lacan, mas sim superar o lacanismo. Na época, ele concebe O Anti-Édipo como uma maneira de pensar o lacanismo

diz em seu curso em Vincennes, que, naturalmente, em 1971, é dirigido às teses essenciais de O Anti-Édipo. Não podendo ter acesso ao texto, Lacan espera conseguir evitar os even-

tuais mal-entendidos e solicita um encontro com Deleuze, que se limitará a lhe dar um telefonema. Lacan retoma, então, sua tentativa de sedução junto a Guattari e o leva a um grande restaurante às margens do Serra para que lhe

explique o conteúdo misterioso desse livro a ser lançado_ Guattari trata de lhe expor os grandes eixos de O Anti-Édipo temendo o pior. Fica perplexo com a reação inteiramente positiva de um Lacan que se diz muito interessado, e lembra que criou uma escola justamente para

i: q

Gi!!es Deleuze & Félix Guattari

que fosse o lugar de expressão de divergências: "Ele me disse uma frase célebre, do tipo: 'O que conta para mim é que tenha análise"'6 . Esse discurso é falsamente tranquilizador. Lacan encara Guattari: "ü que é isso, a esquizoanálise?" . .Guattari fica no mínimo embaraçado:

"Eu me atrapalho fazendo referência a uma fórmula sacrossanta do lacanismo e me safo como posso. Autoritarismo inconcebível com o rnaftre. Sinto calor e não tenho muito apetite. Explico. O 'a' como máquina desejante, a desterritorialização, a história. Desenvolvo tudo o que me passa

pela cabeça de antropologia e de economia política.- 'Estou escutando. Muito interessante. No

fundo, Deleuze se deixou levar pela bajulação de seus alunos em Vincennes. Não sei se as coisas para vocês já estão decididas, mas acho que é

útil ter um analista...: Um segundo de emoção.

para além do próprio Lacan. Aliás, Guattari é reconhecido como analista profissional e de obediência lacaniana, membro de sua escola. Em 1975, três anos após a publicação da obra,

ele ainda mantém uma clientela de 35 pessoas. Quanto a Deleuze, no momento do encontro com Guattari em 1969, não tem a mesma

familiaridade que este último com as obras de Freud e de Lacan, mas já fez algumas incursões no campo da psicanálise. A primeira foi em 196!, quando publicou seu primeiro texto 8 sobre Sacher-Masoch , que ele enriquece mais tarde em sua apresentação de Sacher-Nlasoch 9•

Este último estudo será saudado por Lacan em pessoa em seu seminário, quando desafiará seus discípulos a realizar uma análise com a

mesma intensidade. O psicanalista Jean Laplanche, em sua aula de 23 de janeiro de 1973, reconhece que Deleuze atacou os pontos fracos de Freud, o das perversões manifestas: "Ele mostra com facilidade (e não há como não concordar com ele) que o sadismo não é um masoquismo às avessas, e vice-versa" 10•

Mas é tarde demais! Alguma coisa se quebrou.

lacan em Lyon com Deleuze Quando, no outono de !967, Lacan vai para Lyon, onde Deleuze leciona, este último o busca

será que ele não se condenou há muito tempo a uma solidão irremediável? Ê tarde. Ê hora de se separar. Ele está satisfeito com nosso encontro.

Convidado oficialmente por Jean-Paul Chartier, o decano do internato do Vinatier, Lacan já é

um ar abatido e mancando imperceptivelmen-

te, sua silhueta s~perde na obscuridade. Aporta

pois de dez minutos, avisa que está tão cansado

curso dele, que julga incoerente. Lacan, pouco

que precisa de um tempo de repouso. Jean-Paul

acostumado a esse gênero de impertinência, flca vermelho de raiva: "Eu sentia meu Lacan

praça Jean-Macé: "Nessa época, Deleuze estava completamente fascinado pela psicanálise,

sobretudo por Lacan. O jogo do objeto perdido, por exemplo, o cativava. Assim, ele havia reescrito seu pequeno Proust e os Signos em seus

Chartier, um pouco desapontado com essa par-

tida lastimável, o leva de volta ao hotel. Combina-se um almoço em Montplaisir, no Auberge Savoyard, onde se encontram, além do guru Lacan, a autoridade convidante, Chartier, Deleu-

ze, o filósofo Maldiney e o psicanalista Fédida. Logo que chega ao restaurante, Lacan pede uma garrafa de vodka e bebe metade: "Deleuze não parava de festejar: 'Que grande dia, sua vinda a Lyon deixará marcas inesquecíveis!..: Passado um instante, Lacan, que flcara mal-humorado, respondeu um enigmático 'não desse jeito'. Então Deleuze não disse mais nada. E ele era pra2 ticamente o único a manter a conversa'>~ • Em

seguida, esse pequeno grupo se ilirige à sala do centro social onde se realiza a conferência de Lacan, que, razoavelmente embriagado, joga o casaco no chão antes de tomar o microfone e jniclar sua intervenção intitulada "Lugar, origem

e finalidade de meu ensino''. Sua fala consiste em transformar o sintagma "sa vie sexuelle" em "ça visse exuelle"~', a fim de esclarecer "certas coisas",

e atlrmar que "poderá de qualquer modo produ13

colocado em posição de significante despótico,

Está tranquilo. Enfim. ele admite! Encurvado,

livros seguintes, pondo em jogo o objeto perdi11 do entre várias cenas" • Lacan chega à casa de Deleuze. recusa qualquer bebida alcoólica e, de-

responde que "isso não é específico do que se passa entre filósofos; entre marido e mulher, é 11 parecidd' ' • Lacan sai um pouco decepcionado por não ter suscitado entusiasmo maior. Não encontra em Lyon a atmosfera eletrizante de seu seminário parisiense. Seus dissabores não param por aí. Em uma pequena recepção prevista para depois da conferência, o psicanalista Henri Vermorel manifesta seu espanto a Lacan em face do dis-

zir uma pequena faísca nos espíritos" • Terminada a conferência, era preciso ou-

Talvez já estivesse quebrada desde sempre entre ele e eu. Depois, ele alguma vez teve acesso ao outro, alguma vez falou verdadeiramente com alguém? Ê o que me pergunto! Tendo se

ze está radiante com a visita de Lacan e sugere organizar um aperitivo em sua casa, perto da

na estação e o recebe com a maior deferência.

uma celebridade. Não somente seu seminário é disputado por toda Paris, como seus Escritos, publicados em !966, são um best-se//er. Deleu-

159

sar fazer perguntas ao guru: apenas Maldiney aceita o desafio, tratando da contradição sobre alguns pontos. No final dessa discussão, Maldiney fala de diálogo impossível, ou até de um duplo monólogo entrelaçado, ao que Lacan lhe "'N. de T.: A tradução para o português ["sua vida sexual" e "isso aparafusa o exual"] perde o jogo sonoro e de senti· do do original: "ça visse exue!le" joga com a homofonia em francês com bissexual.

cada vez pior. Nem o álcool fazia efeito. Foi Lacan quem encontrou a solução possível: 'Quero acabar a noitada na casa de Deleuze'. Arranjei um mensageiro para tentar convencer Deleuze, 15 que, bom apóstolo, concordou" • A essa hora tardia, 23 horas, é preciso imediatamente encontrar charutos para a diva, e cabe a Maldiney correr Lyon inteira à procura, enquanto Chartier acompanha Lacan à casa de Deleuze: "De-

leuze o recebeu muito gentilmente, e Maldiney voltou com as mãos vazias. Havia alguns in-

ternos, provavelmente Féilida. De todo modo, não houve nenhuma conversa. Lacan se lançou em um discurso de acusação paranoica contra todos os que queriam roubar suas ideias, enumerando um a um aqueles de quem era víti~ 16 mâ' • Só Deleuze tinha paciência de retomar as palavras de Lacan para transformá~las e lhes dar uma dimensão poética, sem entrar na di-

mensão polêmica do discurso: "Esse joguinho não acabava mais. Lacan não se cansava. Pelo menos tinha uma plateia servil que o suporta~ ria até o fim. Essa era sua vingança, ou no míni-

mo um desrecalque indispensável. Deleuze foi de uma enorme paciência'' 17 • Esse encontro em Lyon, compreensivelmente, não deixou uma

boa lembrança a Deleuze.

lacan-Deleuze em situação de proximidade Deleuze considera que um momento decisivo no freudismo é quando Freud deixa de

160

Gilles Deleuze & Félix Guattari

Desse

considerar como significantes apenas os acon~ tecimentos afCtivos da pequena infância para dar lugar a qualquer dimensão fantasmática: "A repetição é simbólica em sua essência, o símbolo, o simulacro, é a letra da própria re~ petição'"'. Quando Freud elabora o dispositivo da cura analítica com o objetivo de provocar no paciente o fenômeno da transferência, ele ainda está no âmbito da estrita repetição: "Se a repetição nos deixa doentes, é ela também 19 que nos cura" • Se Freud já havia mostrado que a sexualidade pré-genital se exprimia em

pulsões parciais, Deleuze vê em Lacan um continuador dessa hipótese com sua teorização do objeto a. Diferentemente do objeto real que está ou não está em algum lugar, o objeto parcial enquanto objeto virtual "tem apropriedade de ser e de não ser lá onde ele está, onde

quer que ele vá"20• Nesse plano, Deleuze se apeia no famoso seminário de Lacan sobre a carta roubada publicada nos Escritos em 1966: "Parecem-nos exemplares as páginas de Lacan assimilando o objeto virtual A carta roubada, de Edgar Allan Poe"". Lacan observa com grande interesse esse empréstimo e saúda com insistência a "elegância de Gilles Deleuze", '~nosso amigo", em seu 22 seminário de 1968 e !969 • Opõe a imbecilidade que reina na psicanálise à maneira como Deleuze mostrou que o prazer masoquista constitui o Outro em forma de um contrato. Na sessão de 12 de março, Lacan convida seu público a ler Diferença e Repetição e Lógica do Sentido: 'Acontece, por exemplo, que o senhor Gil!es Deleuze, continuando seu trabalho, lan13 ça, como suas teses, dois livros capitais": • Ele dá a entender que as teses apresentadas por Deleuze foram muito fortemente inspiradas nas suas. "Ele, em sua bonança, teve tempo de reunir em um único texto não somente o que está do cerne do que meu discurso enunciou - e não há dúvida de que esse discurso está no cerne de seus livros, pois isso é reconhecido ali como tal, e que o seminário sobre A carta roubada é a porta de entrada'' 24 • Ao mesmo tempo, Lacan reconhece a contribuição do filósofo, particul-;irmente.por ter introduzido

em sua análise as reflexões dos estoicos. Ele saúda igualmente em Deleuze aquele que conseguiu definir melhor o paradigma estruturalista: "Os senhores verão que ele diz em algum lugar que o essencial do estruturalismo, se essa palavra tem um sentido ... , é ao mesmo tempo um vazio, uma falha na cadeia significante, e o resultado disso são objetos errantes na cadeia 25 significada" • Comentando esse elogio, a psicanalista Sophie Mendelsohn considera que Lacan admira a capacidade do fllósofo de ir mais longe do que ele em seu projeto de radicalização da crítica do estruturalismo, e "é exatamente isso o que, me parece, fascina Lacan 6 leitor de Deleuze em 1969"' Para Deleuze, a repetição no campo da psicanálise revela um triplo regime: o do realismo, o do materialismo- que é submetido a um princípio mecânico interno-, o da repetição bruta e individualista- a relação entre o novo presente e o antigo é regida pelas representações do sujeito. A esse título, Freud não teria conseguido, não obstante suas descobertas, romper com uma concepção clássica da representação que submete a repetição a um princípio de identidade. Por outro lado, Deleuze critica o dualismo exageradamente acentuado da teoria freudiana, que valoriza o modelo conflitual, e o substitui por uma abordagem dos deslocamentos e travestimentos a partir de mecanismos de diferenciação mais sutis e múltiplos, mais "moleculares" que "molares". Contudo, Freud não permanece fechado em uma dialética pós-hegeliana; ele supera seu dualismo preconizando uma concepção mais flna das distâncias diferenciais, o que expressa quando afirma que o inconsciente ignora o Não, ou ainda por suavalorização de objetos parciais: "O inconsciente é diferencial, e de pequenas percepções, mas por isso mesmo difere por natureza da consciência'm. O inconsciente, segundo Freud, ignora ao mesmo tempo o negativo, a morte e o tempo. Contudo, como diz Deleuze, isso é tudo o que importa no saber psicanalítico. Como conclusão de sua tese, Deleuze evoca as repetições gestuais e linguísticas nos casos de esquizofrenia; ele vê nas iterações um

fenômeno de contração com o sufocamento dos níveis diferenciais em decorrência de um transtorno específico entre duas repetições. A esse respeito, Deleuze tem interesse no Lacan 2 que consagrou sua tese à psicose ~<. A psicanálise é vista, portanto, como um avanço para sair dos impasses do pensamento clássico invertido a partir ele uma unidade postulada e constitutiva da representação, mas Deleuze já considera que ela não pode satisfazer as exigências de uma filosofia da multiplicidade. Em sua 29' série de Lógica do Sentido, Deleuze se apoia na pertinência da noção freudiana do complexo da castração relacionado ao 29 Édipo . Contudo. desloca as forças em jogo ali, que não devem ser buscadas nem nas profundezas de um id, nem nas alturas de um superego, mas que se situam na superflcie do ego, no universo das aparências: "O célebre mecanismo de 'denegação', com toda sua importância para a fOrmação do pensamento, deve então ser interpretado como exprimindo a passagem de uma superfície à outra''30• Deleuze pretende assim romper com a concepção subjacente da psicanálise entendida como psicologia das profundezas para reconduzi-la a um plano imanente. Esse deslocamento é sugerido em sua maneira de encarar o fenômeno da fantasia. Segundo Deleuze, esta é puro acontecimento, e enquanto tal se distingue do vivido e da lógica para fazer parte de "uma superfície ideal na qual é produzida como ef€ito":ll. O discurso psicanalítico, nesse plano, é defendido por Deleuze como a expressão de acontecimentos puros: morte-incesto-castração. A psicanálise seria a grande ciência dos acontecimentos com a condição de não conceber o acontecimento como alguma coisa da qual se deveria buscar o sentido - o aconteci~ menta encarnao sentido que emerge nele em sua própria efetuação. Deleuze segue ainda Freud e Lacan em sua análise do falo como fundamentalmente marcado pelo excesso ou pela falta, verdadeiro ponto de desequilíbrio sempre à distância de sua própria origem, significante flutuante, casa vazia, agindo sobre as duas séries, pré-genital e edipiana. Também

161

aqui, Deleuze reconduz a ação a um fenômeno de superfície que tem como efeito transformar uma série em série significante e uma outra em série significada. O mais profundo é o que se situa na superfície, e Lógica do Sentido se apresenta como uma elucidação dos paradoxos do sentido e construção de uma teoria do sentido: "Esse livro é um ensaio de romance 2 lógico e psicanalítico'>3 • Nesse final dos anos de 1960, em que a psicanálise é considerada uma disciplina chave na engrenagem estruturalista, Deleuze parece tomar emprestadas a linguagem e a abordagem de seus contemporâneos. Todavia, essa adesão à linguagem do momento é apenas aparente: Deleuze já então pretende acabar com a pretensão psicanalítica de ocupar um lugar privilegiado no desvendamento do verdadeiro a partir das profundezas de uma verdade oculta que escapa a qualquer atestação, a qualquer presença, por seu caráter sempre bloqueado. Essa orientação da filosofia deleuziana é muito clara na 18a série de sua obra consagrada às "três imagens de filósofos". Deleuze estigmatiza ali duas tentações que levam o filósofo ao erro. Desde Platão, há a crença de que a verdade só pode ser elevada, fora da caverna, a um céu purificado das ilusões daqui de baixo, no universo supralunar: ''Assim, a operação do filósofo é determinada como ascensão, como conversão, isto é, como o movimento de se voltar para o princípio do 33 alto de onde ele procede" • À tendência de definir uma filosofia a golpes de asas para atingir os cumes opõe-se outra perversão, que busca a verdade no subsolo, escavando no mais profundo para desenterrar uma verdade oculta: é essa a orientação definida pelos pré-socráticos: uüs pré-socráticos instalaram o pensamento nas cavernas, a vida na profundeza. Sondaram a água e o fogo. Fizeram a filosofia a golpes de martelo, como Empédocles quebrando as estátuas, o martelo do geólogo, do espeleólogo''3'. Essa tradição origina toda a filiação hermenêutica que não cansará de perseguir a verdade sob sua máscara, e a psicanálise participa de tal busca, que De!euze considera inútiL

162

Franrr,is Dosse

Deleuze opõe a essas duas tradições aquela que encontra sua primeira expressão nos

estoicos gregos, que não esperam a salvação nem do alto nem de baixo, mas lateralmente ao acontecimento, de lá onde o sol se levanta, do oriente. A saída é a que está na ponta do bastão, na própria superfície do plano de ima-

nência. Essa reabertura da superfície como campo autônomo é a grande descoberta dos estoicos contra as ilusões que o homem busca erroneamente no alto e em baixo. É o que Deleuze qualifica de "filosofia a golpes de bastão''35; ela deve substituir a filosofia a golpes de martelo que designa, entre outros, o olhar psicanalítico. Essa perspectiva imanente singula-

riza o projeto filosófico de Deleuze e o mantém a uma distância crítica da psicanálise antes de seu encontro com Guattari. Os pontos de conexão entre as lógicas verticais encontram-se na superfície, e é, portanto, esse plano de imanência que deve constituir o local de prospecção privilegiado a partir do qual se pode pôr em ressonância as pulsões das profundezas e as imagens idealizadas. É a experiência que vive o esquizofrênico para quem só existe superfície; seu corpo virou corpo-coador, o que foi magnificamente ·expressado por Antonin Artaud, que se torna, na época da redação de Lógica do Sentido, o coador de Deleuze em terra esquizofrênica. Deleuze empresta uma metáfora que transforma em conceito absolutamente essencial, o de "corpo sem órgãos": "Sem boca Sem língua Sem dentes Sem laringe Sem esôfago Sem estômago Sem ventre Sem ânus Eu reconstruiria o homem que sou:' (O corpo sem órgãos é feito somente de ossos e 36 de san1,>ue.) Nos anos de 1969 e 1970, Deleuze trabalha sobre a questão da esquizofrenia. Em 1970, escreve o prefácio à obra de Louis Wolfson, L e 7 Schizo et les Languei • Interessa a ele a maneira como Wolfson é levado aos limites da língua segundo um procedimento que não deixa de evocar outro autor que chamara bastante a atenção 38 de Foucault, Raymond Roussel . Esse procedimento é o da proliferação esquizofrênica de palavras em êÜmbinaç_ões que se aproximam

Gilles Deleuze & Félix Guattari

no plano fónico, mas que se opõem no plano do sentido. Contudo, diferentemente de Roussel, que apresentava seu projeto como uma criação literária de dimensão poética, os afastamentos praticados por Wolfson têm em vista arrancá-la por todos os meios de sua língua materna, que ele considera opressiva. Seu projeto não é fazer uma obra de arte nem uma experiência de ordem científica, mas simplesmente dar livre curso à sua inspiração patógena. O objetivo de Wolfson é destruir para poder criar, matar sua língua materna para fazer nascer uma nova. Essa rejeição da língua decorre de uma rejeição do saber imposto e encontra em Wolfson suas reservas para se, nutrir. Dado que a vida só vale pelo saber e que ele está ligado à podridão, é preciso tentar obter outra combinação da vida e do saber ao longo da disseminação necessária das palavras segundo outras séries de significantes. Deleuze reconhece aqui a análise de Lacan privilegiando os objetos parciais: "O objeto parcial implica um fenômeno essencial de afastamento em que cada pedaço, embora inseparável da multiplicidade que o define, se afasta dos outros e 39 se divide nele mesmo" • Deleuze também retoma de Lacan a noção de forclusão paterna para significar a ausência simbólica do pai em Wolfson, dividido entre o pai real e o padrasto; "Todo simbólico é reaL Essa proposição lacaniana é ilustrada magistralmente em Le Schizo et /es Langues (Wolfson, 1970). No entanto, é 40 sempre invocada a referência de Klein" • Desse percurso, resulta uma melhora do estado do psicótico que, ao final do seu percurso de in~ venção de uma língua diferente, compreende que a vida é injustificável, pois ela não tem de ser justificada. Só a aventura das palavras é possível e viável para ele: "O saber não é mais significado, mas insuflado na palavra; a coisa não é mais designada, mas imbricada, encai41 xada na palavra" • No momento em que Deleuze e Guattari começam a trabalhar na elaboração de O Anti-Édipo, Lacan se afasta da linguística estrutural e se volta para uma formalização mais avançada de seu pensamento, com as figuras

topológicas e o materna. Realiza então a simbiose entre o conceito de mitema lévi-straussiano, a palavra grega mathema (que significa conhecimento) e o continente da matemática. Ele espera assim abandonar definitivamente o caráter ainda descritivo demais do que passa a classificar de "linguisteria", para chegar, pela formalização total a esse significante puro, a essa abertura inicial a partir da qual se formam os "nós", qualificados desde 1972 de "borram eanos". Depois de ter suturado temporariamente o destino da psicanálise ao das ciências sociais, é a escapada para as ciências exatas: "Só restava, único alimento do ermitão no deserto, 42 a matemática'' • Assim, em seus seminários, Lacan multiplica as figuras topológicas: os grafos, os toros, e manipula no tablado rolos de barbante e fitas de papel que corta e recorta para mostrar que não há nem exterioridade, nem interioridade nos nós borromeanos. O mundo é fantasia para Lacan: situa-se fora da realidade intramundana, e sua unidade só é acessível a partir do que falta ao discurso; "A matematização só atinge um real, um real que não tem nada a fazer com aquilo que o conhecimento tradicional sustentou, que não é o que ele acredita, 43 não a realidade, mas sim fantasia" • Tentando pensar a totalidade e a interioridade da falta ao que é, Lacan pensa no interior de um espaço que elimina as categorias de dentro e de fora, de interior e exterior, e de toda topologia esférica. Aproximando-se da noção de estrutura tal como a entendem os matemáticos, Lacan dá mais um passo no sentido da abstração. da ideia de um objeto solto, ligado a uma operação de ideação particular pela qual se podem deduzir as propriedades gerais de um conjunto de operações, e definir o campo em que os enunciados demonstráveis engendram as propriedades dessas operações. Tal escapada para o formalismo, de resto, afasta Lacan do Édipo, cuja importância ele relativiza antes da publicação de O Anti-Édipo. Lacan começara a criticar o uso freudiano do Édipo, a desmitologizar sua figura tutelar para remetê-la ao

163

primado da estrutura significante do simbólico, particularmente nos seminários do final dos anos de 1960: "Lacan se fixou à estrutura significante, e a questão do Édipo vai para um lugar que pretende completar a função do pai, a um lugar que até se poderia dizer que é o do 44 buraco na estrutura" •

Um dispositivo de trabalho a duas vozes Já vimos como era o dispositivo muito singular de escrita mediante o qual Deleuze e Guattari empreenderam a redação de O Anti-Édipo. Sabe-se, portanto, que a questão identificar "quem escreveu" não é pertinente, na medida em que os dois autores pensaram juntos seus conceitos por meio de trocas de cartas e de sessões de trabalho. No começo da atividade comum, antes de sua primeira estada em Dhuizon, em 29 de julho de 1969, Deleuze envia a Guattari uma longa carta. Ele lembra ao amigo que dispõe de seu artigo 45 "Máquina e estruturà' e de suas notas sobre Schreber. À pergunta que lhe coloca Deleuze sobre os mecanismos capazes de levar "a cru" ao inconsciente, Guattari responde que se tra46 ta da máquina • Lendo as numerosas notas preparatórias, avalia-se a que ponto a contribuição de Guattari foi essencial na preparação da obra, particularmente nos dois campos em que Deleuze espera dele maior competência, o da psicanálise e o dos incidentes militantes, políticos, de seu trabalho crítico. Seria preciso acrescentar a isso o trabalho de Guattari sobre a obra do linguista dinamarquês Hjelmslev, Lacan é criticado por ter recalcado toda forma de polivocidade em nome do "sujeito da ciêncià' que é a ordem simbólica: "Lacan errou ao identificar, no nível do processo primário, o deslocamento da condensação com a metáfora e a metonímia de Jakobson. Ele linguistiza, diacroniza, esma47 ga o inconsciente" • O inconsciente, segundo Guattari, não é, portanto, estruturado como a linguagem, como tenta demonstrar Lacan.

164

Dosse

Opondo~se ao imobilismo da estrutura, do sistema e de sua taxonomia para substituí-lo pela produção de fluxos, de dinâmicas dester~ ritorializadas, Guattari preconiza que se volte a atenção à biologia, não à linguística, para encontrar modelizações úteis: "A escrita cerebral está diretamente em contato com o que, do exterior, é diagramático, É o órgão de afiliação maquínica. A escrita cerebral está diretamente

em contato com os sistemas maquínicos do corpo: percepção, sistema motor, neurovegetativo, etc:''18• A famosa afirmação de Lacan segundo a qual "um significante representa o sujeito para outro significante" também é contestada por Guattari, pois, para ele, o que é representado pelo significante não é em nada o sujeito, mas "o representado da repressão 'incestuante'". "Pode-se até chamar isso de sujeito, mas é então o 'sujeito da repressão', e não o 'sujeito do desejó, Não há, de fato, 'sujeito de desejó, há produção do desejo segundo uma máquina de 49 siino" • Nessas notas preparatórias, Guattari preconiza o uso de uma infinidade de conceitos que se encontram na obra final, com algu~ mas exceções apenas, como aquela, emprestada a Simondon, da "transduçãó', ou ainda as noções de "transcursão'' e "transcursividade", mas que podem ser todas agrupadas sob a te~ mática já antiga da "transversalidade". Guattari fornece a Deleuze elementos de sua prática analítica, menciona sonhos de seus pacientes e o que se pode excluir das categorias edipianas. Entre muitos casos, há o do ex~ militante político e estudante de ciên~ elas políticas de cerca de 30 anos que foi trabalhar no jornal [sensacionalista] Détective: 'Mtes das férias eu brigo com ele ... Recuso-me a continuar a análise (à qual ele é fortemente apegado, ainda que de forma ambivalente) se continuar assim. Volta das férias. Abandonou tudo: o emprego, as mulherzinhas materna50 loides e fraternais, etc:' • Uma vez consumada essa mudança de rumo, seu paciente lhe relata um sonho que parece girar em torno de figuras parentais, de cadáveres, de uma irmã monstruosa. Apàl:Cntemente, tudo deve ter lugar

Gi!les Deleuze & Félix Guattari

no dispositivo edipiano, mas, para Guattari, é preciso estender a interpretação além da série familiar: "Esse sonho traz a resposta à minha intuição de antes das férias: a fidelidade à sua mãe (ele nunca abandona a casa da família), é essa fidelidade à territorialidade dos três filhos (jardim dividido em três), Seu objeto é o bura~ co, o de sua irmã e o seu, que será obstruido pelos fluxos de terra misturada. É o buraco para as mortes produzidas elas próprias como um fluxo transflnito de cadáveres ... Nada a fazer, 51 nesse caso, com o Édipo!" • Em 14 de novembro de 1970, Guattari chega a enviar a Deleu~ ze, a título confidencial, uma carta de uma de suas pacientes sobre a sexualidade feminina, que deve contribuir para sua reflexão sobre as dif€renças entre homossexualidade masculina e feminina. Por isso é um absurdo acusar os autores de O Anti~Édipo, como farão alguns quando de sua publicação, de não ter vínculo com a prática analítica e de se deixar levar por um mero "delírió' desconectado, A prática labordiana está lá, onipresente, nas orientações sugeridas por Guattari. Assim, em uma anotação de 1° de outubro de 1970, ele afirma que não é absurdo "es~ quizofrenizar" a neurose, pois não existe uma verdadeira neurose que não esteja apoiada em uma psicose. Enquanto a psiquiatria clássica tende a neurotizar a psicose, a esquizoanálise deve fazer o contrário: "Parece-me que é muito mais fácil cuidar de um esquizofrênico do que de um neurótico, Fácil, desde que se trabalhe 52 em tempo integral" , Cabe a Guattari dar a De~ leuze um exemplo concreto de transformação do meio hospitalar com o estabelecimento em La Borde de famílias artificiais batizadas de "comunidades terapêuticas de base" ou "unidades de atendimento", cujo objetivo é captar o imaginário de pacientes, assim como de membros do pessoal da clínica, tirando~os dos re~ ducionismos familiar-edipianos que a relação clássica entre doente e médico induz. Guattari relata a Deleuze o caso de seu primeiro esquizofrênico em La Borde, cujo tratamento lhe tomava até cinco horas por dia. Esse paciente se identificava com o escritor preferido de seu

terapeuta, Kafka, e Guattari o fazia copiar O Castelo, gravando suas leituras até que readquirisse sua singularidade própria e, finalmente, curado, partisse para Israel com a esperança de contribuir concretamente para a pacificação das relações entre israelenses e árabes. A esquizoanálise, tal como Guattari a concebe em sua prática de analista, visa favorecer as rupturas existenciais, romper as amarras, os simulacros, às vezes ao preço de uma certa brutalidade assumida e reivindicada, Isso dá, por exemplo, nesta expressão profundamente sincera de Guattari: '"Não confunda - não sou nem seu pai, nem sua mãe ... Estou me lixando para você!' Se o senhor preferir, retomo implicitamente sua frase: 'Não me interesso pelas pessoas a não ser na medida em que elas 53 produzem alguma coisà" • Cabe a Guattari passar ao ato quando a situação fka insuportável para ele, como no caso daquela paciente médica que lhe conta sua vida no divã como se fosse um romance. Ele se levanta, pega um livro e começa a ler ostensivamente. Na sessão seguinte, é a paciente que se desculpa: "É ver~ 54 dade, é idiota, eu falo ... como um livro'' • A outra vertente absolutamente essencial das relações de trabalho de Deleuze com Guat~ tari situa-se no plano político, a propósito da transformação das práticas coletivas. A ancoragem de O Anti-Édipo no movimento de 1968 é afirmada claramente em uma entrevista comum que seus autores concedem em 1973 a Michel-Antoine Burnier, então diretor da revista Actuel, A dupla lógica da desterritoria~ lização e da reterritorialização não é um simples binarismo opondo o bem e o mal, pois dos dois lados a política do desejo pode ser traída: "De um lado, a desterritorialização carece dos agenciamentos das máquinas desejantes. De outro, a reterritorialização os aliena, os edipia55 niza, os arcaíza" • Em face desse duplo perigo, como Guattari considera as lutas emancipado~ ras? Articulando uma reterritorialização que seja compatível com um projeto revolucionário fundado em um plano de consistência subjetiva autogerida, ou seja, graças a novos processos de subjetivação. Lá se encontra a

165

preocupação maior manifestada por Guattari, que foi sempre pela articulação das lutas cole~ tivas a novas formas de subjetivação. O Anti~.Édipo é, de fato, antes de tudo, o re~ torno violento do recalcado do lacanismo. O retorno a Freud realizado por Lacan privilegiara o Signiflcante, o Simbólico, a concepção de um inconsciente esvaziado de seus afetos. Essa abordagem é radicalmente contestada por De~ leuze e Guattari, que opõem à Lei do Mestre, cara a Lacan, a necessária liberação da produção desejante, Eles substituem o "Eu pensó' por um "Eu sinto" mais originário e que nada mais é que a produção de um devir, Contudo, os autores de O Anti~ Édipo reconhecem em Lacan o mérito de ter mostrado justamente como o inconsciente é urdido de uma multiplicidade de cadeias significantes. A esse respeito, eles admitem uma abertura lacaniana que permite a passagem de um fluxo esquizofrênico capaz de subverter o campo da psicanálise, principalmente graças ao objeto a: "O objeto a faz sua irrupção no interior do equilíbrio estrutural à maneira de uma máquina infernal, a 56 máquina desejante" • A maior contribuição de Lacan foi ter feito a passagem da psicanálise do aparelho edipiano à máquina paranoica. Há um significante maior que subsume os signos, que os mantém no sistema de massa e que organiza sua rede: "Esse me parece o critério do delírio paranoico, é o fenômeno da rede de sig57 nos, onde o signo remete ao signo'' . A obra não ataca tanto Lacan quanto seus discípulos e a psicanálise em geraL Lacan ensaiou um início de desmitologização do Édipo, mas não transpôs o Rubicão, e os autores de O Anti-Édipo ridicularizam a maneira como ele se safou: "Fantástica e genial regressão: era preciso fazer isso, 'ninguém me ajudou', para se livrar do jugo do Édipo e conduzi~lo ao pon~ to de sua autocrítica. Mas é como a história dos resistentes que, querendo destruir uma torre, equilibraram tão bem as cargas de expio~ sivos que a torre saltou e voltou a cair no pró58 prio buraco" • Nesse plano, Deleuze e Guattari compartilham os sarcasmos de Michel Foucault com a psicanálise. Eles se apoiam na

166

Gilles Deleuze & Félix Guattari

Dosse 59

História da Loucura na Idade Clássica para estabelecer uma ligação de continuidade entre a psiquiatria do século XIX e a psicanálise na redução comum da loucura a um "complexo parental", na importância da figura da confissão de culpabilidade que resulta do Édipo: "Então, ao invés de participar de um projeto de liberação efetiva, a psicanálise participa da obra da repressão burguesa mais geral, aquela que consistiu em manter a humanidade europeia sob o jugo de papai-mamãe, e não em acabar

com esse problema"60• A psicanálise, segundo Deleuze e Guattari, procede por reduções e limita sistematicamente o desejo a um sistema fechado de representações: ''A psicanálise não Ütz senão elevar o Édipo ao quadrado, o Édipo de transferência, Édipo de Édipo [... ].É a invariante de um des61 vio das forças do inconsciente" , Eles estabelecem um corte entre o capitalismo, que tem

interesses comuns com a psicanálise, e os movimentos revolucionários, que caminham do lado da esquizofrenia. Para eles, não há Sujeito Significante, não há lugar delimitado por qualquer transcendência, há apenas processos. Deleuze e Guattari criticam sobretudo o pai do estruturalismo, Claude Lévi-Strauss, cuja importância foi fundamental na própria definição dada por Lacan ao inconsciente estruturado como uma linguagem. Eles opõem duas lógicas divergentes encarnadas uma pela máquina desejante e a outra pela estrutura anoréxica: "O que se faz do próprio inconsciente, a não ser reduzi-lo explicitamente a uma forma vazia, de onde o próprio desejo está ausente expurgado? Uma tal forma pode definir um pré-consciente, seguramente não 62 o inconsciente" • Todavia, Lévi-Strauss cai de novo nas graças dos autores para a definição deles da esquizoanálise, quando se trata de minorar o lugar do Édipo. Deleuze e Guattari se apoiam então no mito de referência do primeiro volume das Mitológicas, O Cru e o Cozido'", para seguir a demonstração de Lévi-Strauss segundo a qual o verdadeiro culpado da história do incesto do fllho com a mãe é na realidade o pai que quis se vthgar. O pªi será punido e mor-

to por isso: "Édipo é, sobretudo, uma ideia de paranoico adulto, antes de ser um sentimen64 to infantil de neuróticd' , deduzem Deleuze e Guattari. Da teoria lacaniana do desejo, eles retêm apenas um dos dois polos: o do objeto parcial, o objeto a. Ao contrário, recusam a referência a um "grande Outro", que, por sua vez, parte de uma falta. Para eles, não falta nada ao desejo, "é antes o sujeito que falta ao desejo, ou 65 o desejo que carece de sujeito fixo" • Contudo, um estatuto à parte é atribuído a Lacan no questionamento da pertinência do discurso psicanalítico. Ainda que acusado de substituir a família que falta, de desrealizar a produção do desejo sob as máscaras de um crer, de um imaginário de representação, de utilizar Édipo como forma de reterritorialização na fOrma da castração, Lacan é visto como aquele que tentou tirar a psicanálise de suas aporias. Outra marca de Guattari é a preocupação de ancorar a busca do inconsciente em seu tecido social, coletivo: "Devemos passar por um paralelo entre a produção desejante e a produ6 ção social'm , Nem por isso a maneira como os marxistas clássicos se contentam em justapor as duas dimensões é satisfatória. Não se pode partir da ideia de que haveria, de um lado, uma produção social e, de outro, uma produção do desejo: "Na verdade, a produção social nada mais é do que a própria produção desejante em 67 condições determinadas" • Portanto, há coextensão do campo social e do desejo na concepção que se desenvolverá em O Anti-Édipo. A diferença entre máquinas técnicas de produção e máquinas desejantes não é uma diferença de natureza, mas de simples regime, de relação de grandeza. Essa concepção do inconsciente como máquina de produção é considerada por Deleuze e Guattari como o fundamento mesmo de sua demonstração: "A ideia fundamental talvez seja esta: o inconsciente 'produz'. Dizer que ele produz signlflca que é preciso parar de tratá-lo, como se fez até agora, como uma espécie de teatro onde se representaria um drama privilegiado, o drama de Édipo. Não achamos

que o consciente seja um teatro, mas sim uma 68 fábrica'' . Com base no desejo, já não se encontra mais então a falta, a Lei, mas a vontade de produzir, de afirmar sua singularidade, sua potência de ser. Por isso, o objetivo de O Anti~Édipo não é absolutamente uma restauração do marxismo, um "retorno a Marx", como se diz na época. Deleuze é muito claro em sua aula de Vincennes: "Nossa tentativa não está ligada nem 69 ao marxismo nem ao freudo-marxismo" • Identifica três grandes diferenças em relação ao procedimento marxista. A primeira está no fato de que Marx parte de uma teoria das necessidades, enquanto, "ao contrário, nosso problema se colocava em termos de desejos"70. A segunda diferença está na oposição que o marxismo estabelece de infraestrutura e superestrutura, enquanto que, segundo Deleuze e Guattari, não há esfera ideológica cortada do resto da sociedade, mas somente organizações de poder: "O que se chama de ideologias 71 são enunciados de organizações de poder" , A terceira diferença consiste em deixar de lado a vontade de recapitulação do marxismo, que visa a uma espécie de compêndio da memória, de desenvolvimento unitário das forças produtivas: "Nosso ponto de vista é completamente diferente. Concebemos a produção de enunciados não absolutamente em forma de um desenvolvimento, de um compêndio da memória, mas, ao contrário, a partir de uma potência que é a de esquecer... Creio que essas três diferenças práticas fazem com que nosso problema jamais tenha sido o de um retorno a Marx, ao contrário, nosso problema é muito mais o esquecimento, incluído o esquecimento de Marx. Todavia, no esquecimento, peque72 nos fragmentos sobrenadam" • De sua parte,Deleuzefornece a noção- retomada de Artaud- de "corpo sem órgãos", que serve de plano de imanência para recapitular todo o processo do desejo. Deleuze insiste na grande oposição entre o plano de consistência do desejo do corpo sem órgãos e os extratos que o ligam. Ele distingue três extratos. O primeiro é o da organização e consiste em fazer

167

do corpo sem órgãos um organismo. O segun~ do extrato é o da significação. Nesse nível "vai se falar de ângulo de significância'm. O último, no ponto de intersecção dos dois outros, pode ser definido como o extrato da subjetivação. É apenas com O Anti-Édipo que o "corpo sem órgãos" passa a ter lugar em um pensamento da imanência, e esse conceito torna-se, então, uma peça decisiva do maquinário conceituaL Aliás, Deleuze e Guattari não limitam seu uso apenas ao plano da teoria do desejo, mas o estendem ao campo social e histórico. Com O Anti-Édipo impõe-se uma concepção totalmente imanentista, a do "corpo sem órgãos", que será a própria fonte do movimento que anima as palavras e as coisas. O "corpo sem órgãos" é concebido como uma máquina de guerra crítica e clínica das instituições e se torna uma nova ferramenta para a elaboração de uma filosofia política. Guattari contribui de maneira decisiva para enriquecer esse conceito já utilizado por Deleuze, mas cujo alcance é renovado e enriquecido por novas dimensões no cruzamento do desejo e do poder: o "corpo sem órgãos" é guarnecido por Guattari de uma dimensão que ele não tinha em Lógica do Sentido e que contém uma aposta polêmica de crítica das teses lacanianas. Guattari opõe à posição mestra do Significante em Lacan o jogo de forças de intensidades variáveis de um "corpo sem órgãos" cujo campa de aplicação não é programado como o de um organismo em torno de funções delimitadas. O próprio cerne da demonstração freudiana, o triângulo edipiano, é o objeto essencial da crítica de Deleuze e Guattari, que denunciam ali um reducionismo familialista: "Como a psicanálise faz, desta vez, para reduzir a neurose a uma pobre criatura que consome eternamente 74 o papai-mamãe e nada mais?" . A psicanálise traz em si, portanto, um monocausalismo terrivelmente empobrecedor, e o paciente se presta a receber ordens da parte do terapeuta: "Diga 75 que é Édipo, senão vai levar uma bofetada" . Se o esquema edipiano parece não responder às questões da neurose, é menos adequado ainda para resolver as psicoses, seja a paranoia ou a

168

Gilles Deleuze & Félix Guattari

Frenrr>is Dosse

esquizofrenia. Visto que o esquizofrênico justamente fugiu do universo parenta! no qual não

acredita mais, é completamente impróprio a uma explicação edipiana, por isso lançado em um lugar fora da prática psicanalítica: "Freud não gosta dos esquizofrênicos, não gosta de sua resistência à edipianização, ele tende mais 76

a tratá-los como animais" • Ao contrário do que poderiam levar a crer

algumas leituras apressadas, a intenção de Deleuze e Guattari não é fazer a apologia da esquizofrenia. Sua vontade de esquizofrenizar o inconsciente visa libertá-lo do jugo edipiano e familialista da prática psicanalítica. Para superar o triângulo edipiano, a experiência da psicoterapia institucional da clínica de La Borde é mobilizada com a distinção entre grupos-sujeitos e grupos assujeitados, que põe em questão a própria ideia de fantasia individual. A esquizoanálise que os autores querem pro~ mover não visa resolver o Édipo, mas se propõe a "desedipianizar o inconsciente para atingir os Verdadeiros problemas"77 • Não se delira papai-mamãe, mas se delira o mundo: "Todo delírio tem um conteúdo histórico-mundial, 78 político, racial" • A esquizoanálise se propõe, portanto, a defender uma psicanálise ao mesmo tempo social e política, aberta a todos os fluxos, a todos os cortes significantes. A esquizofrenia brandida como programa universalizante por Deleuze e Guattari não é a doença que leva esse nome, mas a ideia de um processo sem limites, a capacidade sempre renovada de transgredir os limites, de libertar das prisões. É esse processo que parece em ação em uma certa literatura anglo-saxã que Deleuze aprecia particularmente: Hardy, Lawrence, Lowry, Miller, Ginsberg, Kerouac, que carregam o mundo neles e têm a capacidade de delirá-lo, de romper as amarras e embaralhar os códigos, de facilitar os fluxos. É também o caso daqueles capazes de deixar a língua gaguejar, de se empreender na invenção de um estilo novo de linguagem que rompa com a gramaticalidade, com a sintaxe, para permitir que escoe melhor o fluxo do desejo de exprimir, como Artaud: ''Artaud é a realizâção da Jireratura, justamente

porque é esquizofrênico, e não porque não é. Faz muito tempo que ele derrubou o muro do significante: Artaud, o Esquizo'"'.

Uma tentativa de antropologia histórica A segunda vertente de OAnti-Édipo é constituída por uma tentativa de antropologia que possa sustentar a tese da ancoragem histórica dos processos esquizofrênicos. Deleuze e Guattari distinguem três fases sucessivas: Selvagens, Bárbaros e Civilizados. Embora Deleuze tenha limitado rigorosamente a preparação da obra a um tête-à-tête com Guattari, aceitará uma mudança na regra que tinha estipulado solicitando a opinião de alguns antropólogos próximos de seu amigo. A minoração ou relativização cultural do Édipo já era visível em certos antropólogos desde o final dos anos de 1960. O casal Ortigues, ligado a um trabalho de campo realizado em Dakar e dirigido pelo etnopsiquiatra 1-Ienri Collomb, que tentava aplicar os métodos da psicoterapia institucional na África, publica em 1966 uma obra que causa grande burburinho: Édipo Africano80• A tese defendida pela obra provoca a indignação de Guattari e de Oury, que julgam infundado fabricar o Édipo na África. Guattari recorre aos amigos Alfred Adler e Michel Cartry para contestar o livro. Michel Cartry, que, como vimos, tinha uma forte relação com Guattari, também conhecia Deleuze por ter assistido às suas aulas de Hlosofia sobre Hume quando cursava a Sorbonne em 1957. Quando Guattari está trabalhando em O Anti-Édipo, pede a ele, assim como a Alfred Adler e Andras Zempléni, que esclareça as questões de ordem antropológica. Esses etnólogos estão bem a par das questões psicanalíticas: Michel Cartry fez análise com Serge Leclaire, e Alfred Adler, com Jean Laplanche, e ambos foram assíduos nos seminários de Lacan. Michel Cartry volta então da África, seu campo de estudos. É convidado para Dhuizon, onde Guattari lhe explica seu projeto. Cartry vai regularmente à Rue de Condé, à

de Guattari, duas a três vezes por mês no início dos anos de 1970, ou sozinho, ou com Alfred Adler e Andras Zempléni, para sessões de trabalho. Cartry e Adler, amigos e ambos africanistas, acabam de escrever um artigo importante que será publicado na revista ele 81 Claude Lévi-Strauss, l.'Hornrne, em 1971 • O artigo subverte de tal modo os postulados do estruturalismo que Lévi~Strauss convoca os autores. O tema é um grande mito dogon que reduz o Édipo a quase nada. Adler e Cartry mostram no artigo que o mito condicionante dos dogons não atribui um lugar importante ao personagem da mãe nas relações parentais. Ela permanece excluída ou como simples objeto de alianças laterais: "Raciocina-se como se o mito pusesse em cena pessoas defmidas como pai, mãe, filho e irmã, ao passo que esses papéis pertencem à ordem constituída pela 82 proibição ... o incesto não existe" . Segundo Adler e Cartry, o anti-f:dipo já estava nas teses de Lacan, pelo menos da maneira como o liam. Lacan, aliás, havia sido grande amigo de Mareei Griaule, que já mandara Édipo pelos ares nos anos de 1950". O artigo de Adler e Cartry tem a dimensão de um verdadeiro livro, 90 páginas da revista L'l-Iornrne: "Parecíamos crianças aguardando o veredicto de Deleuze logo que foi lançado'''". No essencial, o diálogo se desenvolve com Guattari, mas Deleuze aceita se envolver nas discussões: "Se possível, ficaria feliz de encontrar A., Z., Cartry"85. Um pouco mais tarde, Deleuze escreve a Guattari que "as observações de Adler e Cartry são muito preciosas para nós". Deleuze e Guattari submetem suas hipóteses de antropologia histórica à leitura crítica de seus amigos etnólogos, o que tem como efCito corrigir o passo aqui e ali, como reconhece Deleuze em sua correspondência com Guattari: "Estou plenamente feliz com seu sentimento de que nosso texto caminha bem e com a opinião de Cartry, que nos será cada vez mais preciosa (suas observações já me fazem corrigir detalhes, e com mais forte razão mais tarde, por isso é preciso manter contato com ele), o que não impede 86 que o essencial seja nosso acordo a dois" •

169

A exceção que constitui o envolvimento dos etnólogos, depois de Deleuze ter impedido de forma intransigente a entrada dos sociólogos do CERFI no seu gabinete de trabalho, decorre essencialmente de considerações táticas. De fato, essa ainda é a época do estruturalismo, cujo núcleo é constituído pela antropologia estrutural de Lévi-Strauss. Essa dimensão de confronto no cume explica a mudança aceita por Deleuze para sair elo isolamento de seu gabinete de trabalho: "Era preciso subverter Lévi-Strauss por seus discípulos, mesmo que à força. É evidente que todo esse capítulo, quando estiver pronto, precisará ser lido por um etnólogo (Cartry? Ou então seu especialista nos uólofes*? Melhor Cartry)"". Os amigos etnólogos se mantêm céticos diante da tripartição sugerida por Deleuze e Guattari- Selvagens/Bárbaros/Civilizados -, mas estão contentes por poder discutir suas descobertas com Deleuze: "O que era ao mesmo tempo simpático e gratificante é que ele pegava nossos artigos e os trabalhava a partir dali"88 • Evidentemente, os amigos etnólogos beneficiam Deleuze com seu saber antropológico. Eles o fazem ler Marcel Griaule, assim como um dos mestres de Evans-Pritchard, o inglês Meyer Fortes, e também Pierre Clastres, por quem Deleuze tinha uma admiração irrestrita devido a seu trabalho sobre os índios guayakis;;9• Adler e Cartry procedem geralmente por pequenas sínteses sobre pontos precisos e delicados e as enviam a Deleuze: "Essas sínteses chegavam a nós, e ficávamos sempre muito surpresos com o que se tirava dali. Ha~ via um verdadeiro trabalho que se reportava às próprias fontes" 90• Eles põem em discussão, entre outras coisas, um conceito em voga na época a propósito da África tradicional, o da "sociedade segmentáriél', isso é, sociedades o r~ ganizadas em enorme escala, mas sem Estado cehtral. Essa noção de segmentaridade, aliás, é antiga, e já está presente em Durkheim: "Ela havia interessado muito a Deleuze, que se per* N. de H. T.: Uo!of ou Wolof é um grupo étnico encontrado no Senegal, em Gâmbia c na Mauritânia.

170

guntava se as sociedades segmentárias eram algo a elaborar localmente, em um universo étnico determinado, ao lado das formações estatais, ou se eram na verdade o produto de grandes deslocamentos de Estados africanos muito antigos dos quais não se teriam encon~ 91 trado vestígios" • Por outro lado, a famosa frase de Lacan segundo a qual "não existe pai, só pai morto' é explicada do ponto de vista etnológico por Alfred Adler, para quem uma tal afirmação não tem nenhum mistério em relação às práticas das populações que estudou no Chade. De fato, o acesso ao estatuto de pai nessas populações só pode ser obra de filhos iniciados e se situa, pois, após uma passagem pela morte simbólica do pai: "Portanto, essa frase significa simplesmente que não se pode ter acesso ao estatuto de pai em vida'm. Nas entrelinhas desse capítulo, "Selvagens,

Bárbaros, Civilizados", os autores encontraram um operador que desenha os contornos de três configurações de que se dotou a história da humanidade: são os processos de codificação e decodificação, de territorialização e de desterritorialização dos fluxos de desejo que irrígam o universo social. A máquina adota uma primeira forma como máquina territorial assentada sobre a valorização da terra concebida enquanto unidade primitiva, suporte fundador da história da humanidade. É o tempo da codificação absoluta que marca os espíritos e os corpos. Tatuar, excisar, incisar, cortar, sacrificar, mutilar, todas são práticas que remetem a "um ato de fundação pelo qual o homem passa de um organismo biológico a um corpo pleno, uma terra, na qual os órgãos se acoplam, atraídos, repassados, miraculados segundo as exigências de um socius'm. A ruptura que faz a passagem dos selvagens aos bárbaros situa-se na criação de um Estado déspota, de uma máquina estatal que impõe sua codificação ao socius. O déspota impõe uma nova aliança, não mais lateral, mas vertical, e seu povo deve segui-lo no deserto. A antiga codificação subsiste, mas é submetida a novas lógicas que se colocam a serviço da máqljína esJa!al. Esses dois primei-

Gilles Deleuze & Félix Guattari

ros regimes têm em comum uma canalização estrita de todos os fluxos que permanecem sobrecodificados: "A sobrecodificação, tal é a operação que constitui a essência do Estado"94. Uma das principais mutações dessa ruptura histórica se traduz no primado atribuído à grafia sobre a voz. A escrita se impõe com o déspota e seu corpo de funcionários de Estado. O sistema gráfico se alinha sobre a voz que constitui seu modelo. Deleuze e Guattari seguem aqui as análises de ]acques Derrida e sua crítica ao logocentrismo e ao fonologismo 95 da civilização ocidental . É nesse momento que a lei designa sem signiflcar e se pode falar de arbítrio do signo em relação ao que ele · significa. Depois de ter-se apoiado, entre outras, nas teses marxistas para dar conta dessas duas primeiras fases, Deleuze e Guattari utilizam Fernand Braudel para destacar as forças em ação na era dos civilizados que mantêm em funcionamento contínuo fluxos decodificados que ultrapassam os limites das codificações estatais. Ora, o capitalismo representou o sistema mais capaz de responder a esse desejo de decodificação generalizado. Daí a ligação entre capitalismo e esquizofrenia que aparece como subtítulo da obra, pois os dois fenômenos visam liberar os fluxos por todos os meios. Retém-se ali o caráter universalizante do capitalismo, que decodifica para melhor se situar em uma escala mundial e assim responder à sua axiomática da maxlmização das leis de mercado: "A civilização se define pela decodificação e pela desterritorialização dos fluxos na produção capitalista'"- Isso daria margem a pensar que, por força de liberar os fluxos, a evolução do capitalismo corresponde a uma decodificação libertadora de fluxos do desejo, mas não é verdade, senão o capitalismo seria considerado como a utopia enflm realizada da libertação da humanidade. A razão é que a esquizofrenia é o próprio limite do capitalismo, seu limite exterior, e o capitalismo tem o cuidado de inibir essa tendência: "O que ele decodifica com uma mão, axiomatiza com a outra'm.

Daf a preocupação dos autores de "esquizofrenizar" para avançar no sentido da decodificação generalizada. Sem dúvida, a burguesia deu um passo decisivo como classe que conseguiu decodificar as castas, mas a sociedade moderna se debate entre duas forças contraditórias: o imperioso desejo de decodificar sobre as ruínas da máquina despótica e seu sonho de recodificar, de reterritorializar os fluxos e toda a história contemporânea: "Oscila-se entre as sobrecargas paranoicas reacionárias e as cargas subterrâneas, esquizofrênicas e revolucionárias"98. Deleuze e Guattari fazem do Édipo a recapitulação de três momentos históricos que ocupam o lugar do imaginário das antigas sobrecodiflcações no coração da modernidade capitalista. Essa reapropriação para controlar o socius se faz em nome de uma cultura da culpabilização, de uma cultura do ressentimento nutrido pelo mito edipiano. Ela é difundida por três heróis da codificação: Lutero, que deslocou o objeto do crer para o foro íntimo; o economista Ricardo, que reterritorializa no âmbito da propriedade privada dos meios de produção, e Freud, que reduz a essência do desejo ao âmbito estrito do homem privado "Em vez dos grandes fluxos decodificados, os pequenos córregos recodificados na cama da mamãe. A interioridade em vez de uma nova relação com o de fora'm.

Para uma esquizoanálise A obra termina com uma introdução ao que pode ser a esquizoanálise e retoma, então, os dois polos, paranoico e esquizofrênico, para afirmar de imediato que Édipo se situa do lado do polo paranoico. Embora a psicanálise leve a crer que o desejo incestuoso vem da criança, na verdade "o pai paranoico edipianiza o 0 filhd'w • Segue-se um desdobramento binário que se apoia em uma oposição entre um polo negativo, paranoico, e um polo positivo, esquizofrênico. Enquanto o primeiro tende a se situar em grandes conjuntos, as massas, em uma direção molar, o outro se deixa transportar

171

para as singularidades e partículas do molecular. Disso resulta um novo contraste entre um investimento que no primeiro caso, paranoico, molar, é o do grupo assujeitado, enquanto no segundo caso, esquizofrênico e molecular, se chega ao grupo-sujeito. A linha divisória entre esses dois polos passa de maneira transversal sobre o corpo sem órgãos que é a substância imanente, tal como a concebe Espinosa. As máquinas desejantes estão do lado do polo molecular, ocupadas em fluxos generalizados seb:rundo múltiplas conexões. São consideradas à maneira de um significante vazio, pois não significam nada e não representam nada além do que se faz delas, à maneira como ]acques Monod concebe a originalidade das sínteses realizadas na biologia molecular. Pode-se identificar aqui um traço característico da busca de Deleuze e Guattari, que utilizam novas oposições binárias em uma época ávida delas: língua e palavra, signlflcante e significado, socius e inconsciente, paradigma e sintagma, metáfora e metonímia, mas desta vez na perspectiva de abrir essas binaridades à multiplicidade, à disseminação, à fragmentação generalizada. A libido é remetida à energia específica liberada pelas máquinas desejantes. No momento em que]acques Derrida denuncia o logocentrismo da cultura ocidental, Deleuze e Guattari atacam o falocentrismo do freudismo, para o qual, depois de ter antropomorfizado a sexualidade, só haveria um sexo, o masculino, a partir do qual a mulher se definiria como falta, para finalmente culminar em uma comunicação puramente negativa devido à castração. É nessa ausência que a libido encontraria sua origem comum no homem e na mulher, e a castração seria assim seu motor essencial. Para Deleuze e Guattari não basta, portanto, defender os direitos de uma sexualidade feminina dominada, também ali é preciso pluralizar a libido: ''A fórmula esquizoanalítica da revolução desejante será acima de tudo: a cada um seus sexos" 101 • A preocupação da esquizoanálise é abrir o jogo endógeno da caixa preta analítica para fora, para uma ancoragem no tempo histórico

172

·~·

i::•. ;.· !Et

li

I!, .

~,..-•-

de um mundo do sujeito libertado da opressão das diversas formas de reterritorialização que se operam sob o jugo da culpabilização, da falta, das forças da morte: "O instinto de morte celebra as núpcias da psicanálise com 102 o capitalismo'' • A valorização dos processos de produção na esquizoanálise coloca-a do lado de uma techne, de uma micromecânica. A esquizoanálise parte do postulado de que o desejo não é de modo nenhum uma superestrutura, mas sim parte integrante do mundo da produção, do campo social que ele irriga em todos os pontos. Para isso, ela dispõe de diversos índices dos quais a sexualidade é apenas um campo limitado na análise dos tipos de investimento do desejo. Segundo Deleuze e Guattari, a esquizoanálise, pela reabertura que possibilita, viabiliza a elucidação de um campo muito mais extenso que a psicanálise. Seu campo de investigação é muito mais amplo que o estrito contexto familiar, pois ela se vale de todas as formas de sociabilidade, inclusive atribuindo um primado a tudo o que emana do campo social no sentido amplo em relação ao investimento na célula familiar. A psicanálise traduz, sobretudo, uma relação de forças, e nesse plano Deleuze converge com a demonstração de Robert Castel sobre o "psicanalismo": ela é uma relação de poder denegada pelos próprios psicanalistas. A transferência, apresentada como a fonte desse poder, não passa de um engodo, segundo Deleuze, para quem o contrato tácito decorre de uma troca de fluxo de libido do paciente, que instala o poder elo analista em troca de uma palavra que possa exprimir suas fantasias: "Como todo poder, ele tem como objetivo tornar impotentes a produção do desejo e a formação de enunciados, em suma, neutralizar a libido" 103•

Notas L Ver R. CREMANT (Ciément ROSSET), LesMatinées structuralistes, Laffont, Paris, 1969 2. Louis ALTHUSSER, "Freud et Lacari', La Nouvelle Critique, n. 161-162, dez. 1964/jan.1965. 3. Ver capítulo{Nós dqis ,?U o entre-dois''.

GiHes Deleuze & Félix Guattari

4. Félix Guattari, entrevista autobiográfica com Eve Cloarec, arquivos IMEC. 5. Ibid. 6. !bid. 7. Félix GUATTARI. "Journal 1971", 6 de outubro de 1971, La Nouvelle Revuejrançaise, outubro

de 2002, n. 563, p. 349-350. 8. Gilles DELEUZE, "De Sacher-Masoch au masochisme",Arguments, n. 21, 1961. 9. Gilles DELEUZE, Présentation du Sacher-Masoch. Le froid et Le cruel, seguido do texto integral de La Vénus à lajourrure, Mnuit, Paris, 1967 (citado SM). 10. Jean LAPLANCHE, Problématiques 1, l'angoisse (aula de 23 de janeiro de 1973), PUF, Paris, 1980, p. 296. 11. Jean-Paul CHARTIER, "La rencontre Lacan-Deleuze ou une soirée de Lacan à Lyon à l'automne 1967", em Le Croquant, n. 24, outono-inverno 1998-1999, p. 25. 12. !bid., p. 26. 13. Jacques LACAl"\1, "Place, origine et finde mon enseignement", ibid., p. 44. 14. !bid., p. 64.

15. 16. 17. 18. 19. 20. 2!.

jean-Paul CHART!ER, ibid., p. 28. lbid., p. 29. lbid., p. 29. Gil!es DELEUZE, DR, p. 28. !bid., p. 30. Ibid., p, 135. !bid., p. !35.

22. Jacques LACAN, Le Séminaire, livro XVI, D'un Autre à l'autre (1968-1969), Senil, Paris, 2006, p. 134. 23. lbid., p. 218. 24. !bid. 25. Ibid., p. 227. 26. Sophie MENDELSOHN, "J Lacan-G. Deleuze. Itinéraire d'une rencontre sans lendemain", L'Évolution psychiatrique, vol. 69, abr.-jun. 2004, p. 365. 27. Gilles DELEUZE, DR, p.143. 28. jacques LACAl"\1, De la psychose paranoi'aque dans ses rapports avec la personnalité, Le François, Paris, 1932; reed. Seuil, Paris, 1975. 29. Gilles DELEUZE, "Les bonnes intentions sont forcément punies", LS, p. 236-244. 30. !bid., p. 242.

Jbid., p. 246. Gilles DELEUZE, LS, p. 7. Jbid., p. 152. Jbid., p. 153. Jbtd., p. 158. Antonin Artaud, 1948, citado por GUies DELEUZE, LS, nota 8, p. !08. 37. GHles DELEUZE, prefácio a Louis WOLFSON, Le Schizo et les langues, Gallimard, Paris, 1970, p. 5-23; reed. Gil!es DELEUZE, CC, 1993, p. 18-33. 38. Michel FOUCAULT, Raymond Roussel, Gallimard, Paris, 1963. 39. Gilles DELEUZE, prefacio a Louis WOLFSON, Le Schizo et les langues, op. cit., p. 15.

3!. 32. 33. 34. 35. 36.

40. Serge COTTET, "Les machines psychanalytiques de Gílles Deleuze", La Causejreudienne, revue de psychanalyse, SeuiL n. 32, fevereiro de 1996,p.15-19.

4!. Gilles DELEUZE, prefácio a Louis WOLFSON, Le Schizo et les langues, op. cit., p. 23. 42. Catherine CLEMENT, Vies et légendes de Lacan, Le Livre de poche, Paris, 1986 (1981), p. 35. 43. jacques LACAN,Le Séminaire, livro XX,Encore (1973-1974), Seuil, Paris, 1975, p. !!8. 44. Catherine Mllot, entrevista com o autor. 45. Félix GUATTARI, "Machine et structure", exposição destinada à Escola Freudiana de Paris, 1969, publicada por Change, 1972, reproduzida em Psychanalyse et transversalité, Maspero, Paris, 1972. 46. Deleuzc considera a resposta "bela e rigorosa. Ela levanta todo tipo de problemas: 1) O mais fácíl: será preciso estudar, de um lado, o tipo de máquina esquizofrênica ou paranoica ... Seria preciso mostrar que, como toda máquina, a máquina esquizofrênica a) é inseparável de um tipo de produção, aqui o propriamente esquizofrênico, a definir; b) é inseparável de um modo de transcrição ou de registro ... Há algumas indicações, belas na minha lembrança, sobre a produção de uma tabela esquizofrênica, em um livro recente de Michaux. Será preciso rever essas páginas; e sua experiência de La Borde deve nos fornecer todo tipo de análises alegres e precisas sobre os seguintes pontos: a produção esquizofrênica; a maneira muito particular como o uso e consumo se

173

relacionam com a produção; os modos muito particulares de registro ... Em tudo isso, definir portanto uma economia propriamente esquizofrênica ... 2) Ainda uma questão anexa: o senhor começa sua carta lemhrando que a oposição manifestação-subjacência não funciona mais para o esquizofrênico. Se isso consiste em dizer que o complexo invadiu a consciência ao preço de uma perda de realidade, ou mesmo ao preço de um aniquilamento do simbolismo - idade, sexo, etc.-, que seja. Mas isso só é verdade em parte, como lembra Lacan em sua tese, pois há todo um sistema ele transformações que intervêm e que fazem, por exemplo, com que a homossexualidade não seja 'manifestada', etc. 3) Começa a mais difícil. O senhor define a máquina por um corte, ou melhor, pela existência de múltiplos cortes ... 4) Finalmente, o que mais me preocupa é a coerência de seu conceito de antiprodução .. :· (Gilles Deleuze, carta a Félix Guattari, arquivos IMEC, 29 de julho de 1969.

47. Félix Guattari, em Stéphane NADAUD, Écrits pour I.:Anti-CEdipe, op cit., p. 98. 48. !bid., p. 102. 49. !bid., p.148. 50. lbid., p. 152-153. 51. Ibid., p. 154-155. 52. !bid., p. 203. 53. lbid., p. 212-213. 54. Ibid. 55. Jbid., p. 272. 56, Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, AO, 1972, p. 99. 57. Gilles Deleuze, aula na universidade ele Paris~ VIII, 12 de fevereiro de 1973, retomada e desenvolvida em Mil Platôs, "Sobre alguns regimes de signos". 58. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARJ, AO, p. 319. 59. Michel FOUCAULT, Histoire de la fatie à l'âge classique, Gallimard, .Paris, 1971. 60. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, AO, p. 59. 61. G. Deleuze, "Entretien sur Unti-CEdipe", com Catherine Backês-Clément, Lílrc, n. 49, 1972, reproduzido em PE p. 29. 62. Gilles DELEUZE, Félix GUKfTARJ, AO, 1972, p.220. 63. Claude LÉVI-STRAUSS, Mythologiques, Le Cru et le Cuít, Plon, Paris, 1964. 64. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, AO, p. 235.

174

François Dosse

65. AO. p.34. 66. !bid.. p. 16. 67. Jbid., p. 36. 68. Gilles DELEUZE, "Capitalisme et schizophrénic", entrevista com Vittorio Marchetti, Tempi

moderni, n. 12, 1972; reproduzido em ID, p. 323. 69. Gilles Deleuze, aula na universidade de Paris-VIII, 28 de maio de 1973. 70. 7L 72. 73.

!bid. Ibid. Ibid. Gilles Deleuze, aula na universidade de Pa-

ris-VIII, 14 de maio de 1973. 74, Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, AO, p. 27. 75. 76. 77. 78. 79. 80.

Ibid., p. 54. !bid., p. 30. Ibid., p. 97. !bid., p. 106.

Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, AO, p. 160. Marie-Cécile e Edmond ORT!GUES, CEdipe africain, Plon, Paris, 1966. 81. Alfred ADLER, !vlichel CARTRY, "La TransiresSion et sa dérision", L'Homme, julho de 1971. 82. Ibid., citado em Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, AO, p. 189. 83. Mareei GRIAULE, "Remarques sur l'oncle utérin au Soudan", Cahiers internationaux de sociologie, janeiro, 1954. 84. Alfred Adler, entrevista com o autor. 85. Gilles Deleuze, carta a Félix Guattari, arquivos IMEC, 5 de abril de 1970. A é Alfred Adler e Z., Andras Zempléni.

86. Gilles Deleuze, carta a Félix Guattari, não da~ tada, arquivos IMEC 87. !bid, 88. i\1icherl Cartry, entrevista com o autor. 89. Pierre CLASTRES, Chroniques des Indiens Guayakis, Plon, Paris, 1972. 90. :Michel Cartry, entrevista com o autor.

91. !bid. 92. Alfred Adler, entrevista com o autor. 93. GUies DELEUZE, Félix GUATTARI, AO, p. 169,

11 .

/

O Antt-Edipo

94. Ibid., p. 236. 95. Jacques DERniDA, De la grammatologie, Minuit, Paris, 1967; L'Écriture et La Différence, Seuil, Paris, 1967. 96. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARJ, AO, p. 291.

97. 98. 99. !00. 101. !02.

!bid., p. 292. !bid., p. 310. !bid., p. 322. Ibid., p. 327. Ibid., p. 352.

!bid., p. 400. 103. Gilles DELEUZE, "Quatre propositions sur la

psychanalyse" (1973), em Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, Politique et psychanalyse, Biblioth€que des mots perdus, 1977 (sem paginação); reproduzido em ID, p. 382. Por sua vez, quando de seu colóquio italiano, Guattari faz uma conferência sobre ~As lutas do desejo e a psicanáli~ sd' (Félix GUATTARI, "Les luttes de désir et la psychanalyse", exposição feita no primeiro en· contro "Psicanálise e políticà', 11ilão, maio de 1973; reproduzida em RJV!, p. 29-43), na qual ele destaca a dimensão política de O Anti-Édipo.

Na primavera de 1972, um aerólito cai sobre o continente do saber e sobre o mundo político. Apenas quatro anos após a explosão de Maio de 68, OAnti-Édipo ainda traz a marca e o efeito de sopro, senão de enxofre. Nesse ano, a agitação ainda é diária, e o movimento de 1968 continua vivo nos espíritos. O esquerdismo político é então bastante ativo e até consegue, em certas circunstâncias, transcender suas divisões, como por ocasião do enterro do militante maoísta Pierre Overney, que reúne 200 mil pessoas em 4 de março de 1972. No mesmo ano que se assiste ao lançamento de O Anti-Édipo, Guattari publica uma coletânea de seus escritos, prefaciada por De~ leuze, que retraça seu itinerário intelectual e político, Psicanálise e Transversalidade 1 • Seu amigo psiquiatra Roger Gentis, que foi cedo para Saint-Albain, em 1956, e que foi um dos criadores do GTEPSI, acaba de publicar, em -1971, Les Murs de !'Asile, o que lhe vale receber a incumbência, junto com Horace Torrubia, de uma coleção de psiquiatria pela Maspero. A primeira obra em que ele pensa é o livro de Guattari sobre a transversalidade; "Um dos primeiros livros que lhes enviei (mas sem dúvida o teriam publicado de qualquer maneira) foi o livro de Félix Guattari sobre a transver-

salidade; essa é uma das publicações da qual tenho muito orgulho, sobretudo por que não fiquei tão entusiasmado pelo que Félix escreveu em segu1.da...,,.

A linha de fuga que permite evitar o perigo do terrorismo O Anti-Édipo é um dos momentos fortes de cristalização de um movimento que poderia ter resvalado, como ocorre um pouco mais tarde na Itália e na Alemanha, em direção ao terrorismo por deter a fase de refluxo que tomou conta dele'- A organização mais próxima da tentação terrorista, a Gauche Prolétarienne (GP), desaparece em 1973. Será que se podem ver aí os efeitos dissolventes, abrasivos da esquizoanáli~ se sobre a paranoia militante? Não se pode afirmar isso, mas, se a teoria do desejo teve o efeito de fazer morrer a pulsão coletiva de morte des~ sa juventude militante maoísta, terá sido útil. A máquina de guerra em que se transformara a GP e Benny Lévy, vulgo Victor, seu chefe mais em vista, era um dos alvos favoritos de Guattari, que escreve em seu Diário, em 1972; "Decididamente, a GP tornou~se uma coisa muito gran~ de!. .. O pior, para mim, é ainda que ele tenha

!

I

176

Dosse

adotado esse pseudônimo de Victor: o nome de meu avô mineiro em Montceau-les-Mines!... Esses maoístas são os inimigos irredutíveis do movimento revolucionário naquilo que é sua essênçia: a liheração da energia desejante ... A dissimulação de Victor é inesgotável"'1• Outro líder maoísta, Robert Linhart, não está enganado quando ataca Guattari e seu bando do CERFI no Libération, no final de 1974, sob o título "Esquerdismo à venda'!". Ele de fato estigmatiza, por trás dos ataques a pessoas, os efeitos deletérios de O Anti-Édipo e menciona a obra já no subtítulo de seu ato acusatório: "Consequências inesperadas de O Anti-Édipo ou como aprendi a ser um bom vendedor e a não mais me atormentar"5. Serge July, diretor do jornal, aprova a operação em nome de uma necessária crítica do que se configurou como o pós-esquerdismo no momento em que o giscardismo tira algumas de suas ideias das forças vivas da contestação: "Não é mais segredo para ninguém. A famosa 'mudança' giscardiana tira suas ideias da contestação ... Tanto mais que alguns esquerdistas jogam o jogo. Com esse artigo de Robert Linhart, será preciso abrir e manter uma rubrica sobre os destinos do pós-esquerdisrno"6 Robert Linhatt vê O Anti-Édipo como a fonte de todos os males do maoísmo agonizante. O livro autorizaria principalmente a releitura de Freud à luz dos ensinamentos de Taylor para fazer os proletários engolirem a ideia de que realizam seu desejo produzindo: "Se o operário conseguir gozar sendo mais eficiente, ele será 7 revolucionário" • O CERFI só asseguraria as baixas necessidades do capitalismo, braço armado de O Anti-Édipo, qualificado alternadamente de livro ''essencialmente autoritário'', "delírio paranoico", "livro de direita" e "projeto totalitário"8, que tem como meta a integração dos esquerdistas envelhecidos na sociedade burguesa.

Um sucesso editorial estrondoso A imprensa, por sua vez, se dá conta do acontecimento, pois o sucesso já esperado é imediato - er11 ttrês dia.~ se esgota a primeira

Gilles Deleuze & Félix Guattari

tiragem! Le Monde dedica duas páginas à obra. Rolland Jaccard, que faz a abertura do dossiê, considera que o livro se reveste de aspectos proféticos em sua meta de esquizofrenizar a sociedade. O grande artigo de apresentação cabe a um amigo de Deleuze, seu antigo aluno na Sorbonne nos anos de 1950, o escritor Rafael Pividal, na época professor de filosofia em Paris-VIL Ele saúda um livro que retoma as indagações sobre a pertinência do discurso psicanalítico de um Reich e de um Marcuse, mas restituindo-as ao seu contexto histórico, o do capitalismo. Pividal ressalta que a invocação da esquizofrenia não consiste em fazer a apologia da doença do mesmo nome, mas em valorizar uma máquina que, "ao invés de organizar as letras do alfabeto para fazer pa~ lavras, decompõe as palavras para fazer um alfabeto. Picasso não fez outra coisa. Mas se~ rão Beckett, Kafka e Artaud que vão servir de 9 exemplo" , A maneira como Le Monde percebe a obra revela de imediato a disparidade de tratamento entre seus dois autores. Saúda~se ou critica-se Deleuze, mas tende-se a ignorar Guattari. Essa tendência apenas se confirma na continuidade, chegando, às vezes, ao desaparecimento puro e simples do nome de Guattari nas referências aos livros em coautoria com Deleuze. O colega e grande amigo de Deleuze em Vincennes, François Châtelet, testemunha seu entusiasmo diante do que julga ser o combate de um novo Lucrécio, esforço para compreender o que leva os homens a se baterem para aumentar sua servidão como se fosse a própria salvação. A essa questão fundamental, há duas respostas, uma dada por Marx e outra por Freud, e "é elas que Deleuze e Guattari combatem, não para atacá-las, mas para lhes devolver essa força que o desdobramento idealista 10 quer tirar delas" • François Châtelet organiza em sua luxuosa residência da Rue Clauzel, no 9º Distrito de Paris, uma grande reunião que dura a noite inteira, com seu amigo Deleuze, Guattari e cerca de 30 pessoas: "Essa reunião foi muito intensa. Parecia um grande salão do 11 século das Luzes" •

Os ataques às vezes são rudes. Assim o filó~ sofo Kostas Axelos se dirige a Deleuze: "Honorável professor francês, bom esposo, excelente pai de duas crianças encantadoras, amigo fiel, progressista que exige profundas refOrmas em todos os âmbitos onde grassam exploração · e opressão ... você gostaria que seus alunos e seus filhos seguissem na 'vida afetiva' a via da sua vida ou, por exemplo, a de Artaud, de que 12 tantos escribas tiram partido?" • O tom é abertamente crítico do lado do psicanalista André Green, ao qual voltaremos, e do psiquiatra Cyrille Koupernik, para quem o remédio preconizado por Deleuze é pior que o mal: ''Isso pelo que Deleuze substitui o Édipo, ou seja, em última análise, por um desejo biológico in umano, a-humano, protopessoal, me parece, no fim das contas, mais terrível. É a imagem no espe13 lho da entropia que obcecou Freud" Em Le Figaro, é o filho de François Mauriac, Claude Mauriac, engajado nas lutas do GIP ao lado de Michel Foucault, jean-Marie Dornenach e Gilles Deleuze, que julga o "livro notável": "F, preciso ler, reler, meditar, atento 11 · às reações que ele não deixará de suscitar" ' • Em L'Express é Madeleine Chapsal que ressalta sua radicalidade, sua intenção revolucionária em uma varredura que não esquece nenhum canto. Esse livro, "pleno de imagens e de imaginação, faz sonhar. Urna vez que o espaço é liberado por seus cuidados, Deleuze e Guattari se instalam no centro e começam a expor suas 15 novidades. E há para todos os gostos" • Em La Quinzaine Littéraire, Maurice Nadeau organiza em torno dos dois autores um debate mediado por François Châtelet com o psicanalista Serge Leclaire, o psiquiatra Horace Torrubia, o etnólogo Pierre Clastres e ainda Roger Dadoun, Rafael Pividal e um estudante, P. Rose. O confronto de três horas é transcri~ to em forma de 60 páginas datilografadas das quais a revista publica alguns extratos. Del eu~ · ze e Guattari explicam a maneira como conce~ · beram esse trabalho comum. O tom da discussão é positivo e de modo nenhum polêmico. Serge Leclaire, representante da psicanálise, é bem lacaniano, mas a oposição não é frontal,

177

na medida em que O Anti-Édipo concede um lugar particular a um artigo dele sobre ''A reali16 dade do desejo'' , considerado como precursor da ideia de um inconsciente-máquina.

Teses discutidas do lado dos analistas Lacan, muito contrariado com a publicação desse livro, pois vê novamente abortar sua tentativa de ser sancionado por um grande filósofo, ordena aos membros da Escola Freudiana que mantenham total silêncio, que não comentem nem participem de nenhum debate. A censura é de praxe, o que não deixa de chocar alguns, como a jovem psicanalista Catherine Millot, filósofa de formação que se filia à Escola Freudiana. Na época, ela se encontra no divã de Lacan: "Lacan estava realmente furioso e tinha dado ordem para que não houvesse debates organizados de sua escola em torno desse livro. Ele próprio ficara em silêncio e não dissera uma só palavra no Seminário. Algum tempo mais tarde, fez uma alusão a ele em um escrito, mas chamava Deleuze e Guat~ 17 tari de águia de duas cabeças schreberiana" • ·É uma maneira de reduzir o livro a um delírio semelhante à paranoia que se apoderara de Schreher, o paciente de Freud. Segundo Catherine Millot, Lacan tomou O Anti-Édipo como "um ataque pessoal ainda mais ofensivo tendo em vista que havia tentado uma reaproximação com Deleuze, a quem estimava'>l 8. De fato, é ele o principal alvo dessa máquina de guerra contra a psicanálise, ele e seus numerosos discípulos. Além de seu despeito, será que Lacan. modificou suas orientações depois dos golpes recebidos de O Anti-Édipo? Fundamentalmente não, porém, segundo Catherine Millot, desde 1972, ele parece ter insistido mais em uma relativização do Édipo: "O seminário de Lacan do ano seguinte era intitulado 'Os Nomes do Pai'. Seria uma resposta a Deleuze e Guattari? É possível. Não querendo ser vítima do Édipo, a pessoa poderia se condenar a ficar vagando, e, aliás,

178

Gilles Deleuze & Félix Guattari

Fre,ncni
Deleuze e Guattari não haviam pregado o nomadismo? Depois houve o grande período dos nós borromeanos, e Lacan volta à questão das relações do Édipo com a estrutura. É a propÓ· sito de]oyce que Lacan lança essa ideia de que o complexo de Édipo era um sintoma como qualquer outro''". Lacan consagra de fato todo o ano universitário de 1975-1976 a um seminário sobre ]ames ]oyce intitulado "O Sinthome". que remete à noção de sintoma. Ele analisa ali

a vocação literária de ]oyce como uma forma de redenção pela escrita. Outra jovem psicanalista, filiada à Escola, discípula indisciplinada de Lacan, recusa a censura e decide escrever. Em Les Lettres Françai.'"s, Élisabeth Roudinesco resenha O Anti-Édipo. Ela assistiu à gênese da obra, pois segue os cursos de Deleuze desde sua chegada à universidade de Vincennes, em 1970. Agora está dividida entre a admiração por Deleuze e

o fascínio por Lacan, mas não pode endossar a crítica frontal da psicanálise. Por isso, o tom do artigo é muito cáustico, sobre um fundo afetuoso. O título é por si só significativo da acolhida irônica da proposição: "O navio desgovernado do esquizofrênico desembarca no país de Al 20 Capone" • Élisabeth Roudinesco dimensiona a escrita a dois e não hesita em ligar os autores sob a sigla "D.a:· em seu artigo. Ela chega a

afirmar que "o um é o outro sem que o ser seja, 21

no entanto, a questâo" • Roudinesco vê nesse texto polêmico uma atualização do procedimento de Reich em sua vontade de ligar o desejo e o socius, a sexualidade e a luta de classes. Ela reconhece em O Anti-Édipo "um belíssimo romance; como Totem e Tabu ou como Moisés, é a mais bela apologia de Édipo que existe"". Ela considera que os autores erraram de alvo, pois Lacan não é menos obcecado do que eles pelo complexo de Édipo. Se esse livro tem um sentido, é o de um romance de Édipo, portador de uma mitologia de reposição, a do delírio maquínico, da

ruminação de um ego mecanizado. Entretanto, Élisabeth Roudinesco recomenda aos analistas, assim como aos marxistas, a leitura desse "belo livro'\22. Aindague essa obra hostil

à psicanálise provoque de imediato um impasse sobre a neurose, e particularmente sobre a flgura da histeria, ausente dessa grande pesquisa: "Esse abandono da histeria é na verdade o abandono da psicanálise. D.G. não esconde 24 isso: joga~se contra ela a carta da psiquiatria'' • Apesar dessa crítica veemente, Deleuze convida sua aluna Êlisabeth Roudinesco para um encontro no bar do Pont Royal para prolongar o diálogo. Nada contente com a acolhida dela em Lettres Françaises, ele o inicia de forma irônica: "Então, Simone Simon, estão me atacando?". Deleuze tinha dado esse apelido a Élisabeth Roudinesco por sua incrível semelhança com uma célebre atriz do mesmo nome: "Respondi: 'Sim, não concordo com esse reichismo. Não concordo com a ideia de que vão resolver as coisas com medicamentos e que isso vai dar nos grandes laboratórios"'25• De modo muito flrme, mas com a maior ama~ bilidade, Deleuze lhe responde: "Tudo isso é muito gentil, mas no momento a senhora só é capaz de imitar ou criticar seus mestres. Pense 26 em encontrar seu objeto!" • Os psicanalistas não podiam deixar de se sentir contestados na essência de sua prática. É André Green que vai se colocar à frente da defesa da psicanálise, primeiro no Le i'donde, depois em um texto mais desenvolvido, na Revue Française de Psychana/yse. André Green analisa a intervenção de Deleuze e Guattari em termos estratégicos, como uma reação. um contra-ataque da filosofia dirigido contra o avanço freudo~lacaniano realizado no mundo das ideias. Contudo ele reconhece um grande mérito em Deleuze e Guattari, que é o de ter abandonado a tese lacaniana segundo a qual o inconsciente é estruturado como uma lin~ guagem, e flca feliz por se tratar novamente de afeto, de pulsão, que é o atributo do campo psicanalítico. Nessa crítica do lacanismo, Green se encontra na mesma linha que os autores de O Anti-Édipo, de valorizar uma economia do desejo em relação a uma lógica formal da cadeia signiflcante. Ele reconhece a dificuldade, na tradição freudiana, de pensar a articulação entre as estruturas individuais e as sociais, e

ainda que Marcuse tenha tentado isso, não conseguiu convencer os analistas. Green pretende aplicar à obra o princípio que promove colocando a seguinte questão acerca dos conceitos sugeridos: "A que serve isso?". Chega-se à equação de que é preciso uma revolução, mas esta não pode ser feita sem a psicanálí~ se, pois falharia no seu objetivo: "É necessário antes de tudo abrir os olhos de Marx, cego ao desejo, e cegar Freud e Édipo, e mandar para o ,2J inferno o comp 1exo . Assim, os autores se desvencilham do Édipo, conservam o desejo, modificando-o, abolindo a falta, a frustração, a castração, a lei, transformando-o em desejo puro, em signif1cante vazio que pode se investir por toda par~ te: "Faz-se então que o desejo entre na máquina de produção e que a máquina de produção 28 entre no desejó' • André Green não segue Deleuze e Guattari nessa via por julgar que eles confundem a experiência da satisfação, que de fato pode ser vista como liberta de toda falta, com o desejo, ao qual sempre falta seu objeto, pois ele consiste em trazer de volta uma satisfação ausente. A maneira como os autores jogam para o alto o medo da castração decorre, segundo Green, de uma negação de toda a experiência clínica. Ele observa que a concepção do desejo em Deleuze e Guattari de algum modo está relacionada à maneira como funciona o perverso, no qual a desqualificação é parte integrante do desejo: ''A singularidade do objeto do desejo enquanto pessoa vem atrás do traço que ela apresenta, e que será busca29 do de forma anônima e intercambiável" . Para Green, em última análise, o aparelho conceitu~ ai de Deleuze e Guattari inspira-se sobretudo no primeiro Freud, o de antes da descoberta da psicanálise, aquele do Esboço para uma Psicologia com o Uso de Neurologistas (1895). Em matéria de avanço conceitual, O Anti-Édipo seria na verdade uma regressão a um Freud an30 terior a Freud: "O Anti-Édipo é o Ante-Édipo" • No meio dos psicanalistas. a intervenção de Deleuze e Guattari continua causando rebuliço. Dois analistas, Bela Grunberger e Janine Chasseguet-Smirgel, voltam a atacar. Eles já

179

haviam publicado um livro sobre Maio de 68 11 com o pseudônimo de André Stéphane: , cuja tese central era a de que os contestadores do movimento tinham resolvido mal seu Édipo. Os militantes de 196R teriam regredido à fase anal e passariam o tempo semeando "merda" nas ruas, emporcalhando os muros. Em um discurso confuso invocando Freud, os autores acusavam o movimento de mergulhar em um tal narcisismo que, na falta de satisfação, ele se encarnou no desejo de regressões bárbaras de tipo nazista! No gênero reducionista, nunca se chegara a esse ápice. Em 1972, os dois analistas, com o mesmo pseudônimo, não podiam deixar de voltar à carga em se tratando de Édipo, capitalismo e revolução. Aos seus olhos, a crítica da psicanillise que OAnti-Édipo desenvolve lhes dá razão e esclarece suas posições, tornando evidente o divórcio entre esquerdismo e psicanálise. Para eles, em Deleuze e Guat~ tari "se vê a cama da mamãe fazer a cama do capitalismo"'". Os autores de O Anti-Édipo são acusados de negar a realidade e qualquer autoridade para um mundo sem coerção, o dare~ volução permanente. Os dois psicanalistas não escondem sua satisfação de celebrar, enfim, as núpcias contrárias à natureza entre um certo esquerdismo e a psicanálise. Janine Chasseguet-Smirgel prosseguirá sua reflexão sobre O Anti-Édipo organizan~ do uma jornada de estudo em 3 de junho de 33 1973 Ali se saberá que ninguém escapa a Freud e que, portanto, Deleuze e Guattari são freudianos involuntariamente à maneira do senhor Jourdain"', que fazia prosa sem saber. Essa é a tese desenvolvida por Françoise Paramelle, que retoma alguns conceitos utilizados sobretudo no capítulo "Psicanálise e familialismo" para fazer a crítica. Ela considera que a definição apresentada da esquizofrenia como fluxo não organizado e disjuntivo é errônea, pois o que é descrito como um modo de realização no mundo é na verdade um fechamento em si. A noção de inconsciente codificado por

"N. de T.: Protagonista de O bwguês fidalgo, de MoliCre.

i '

180

Édipo parece-lhe um contrassenso, pois o inconsciente ignora qualquer código: "Os autores concebem o inconsciente mais de acordo com a fórmula lacaniana, isto é, estruturado como uma linguagem" 34 • Ao invés de "edipianizar", o analista tem como tarefa, ao contrário, ir ao encontro das fixações de seu paciente: "Desedlpianizar, tal nos parece ser o objetivo 35 do psicanalista que invoca Freud" • Em última análise, segundo Françoise Parametle, os autores são de fato def€nsores dos pontos de vista freudianos.

Os apoios de Girard, Lyotard, Foucault

i! ,,

. ·.j·. !\

r~ ~' f

lb,.,.,..,

Gilles Deleuze & Félix Guattari

François Dosse

As grandes revistas intelectuais abrem um grande espaço para O Anti-Édipo. Assim, a Critique confia a resenha da obra ajean-François Lyotard e a Renê Girard, O primeiro expressa sua admiração diante dessa torrente que desloca Uin grande volume de água com uma força energética que arrasta tudo à sua passagem: "É um pantógrafo que capta a energia elétrica na linha de alta tensão e permite transformá-la em rotação de rodas sobre os trilhos, e para o viajante em paisagens, em fantasias, em músicas, em obras, que por sua vez são transformadas, destruídas, arrebatadas"'". Jean-François Lyotard previne os leitores da falsa interpretação que pode suscitar o título da obra ele Deleuze e Guattari, que não é um livro polêmico e destrutivo, mas uma afirmação, um ato positivo, posicional. O livro subverte principalmente aquilo que não critica, o marxismo, e carrega alguns cadáveres, como o proletariado, a luta de classes e a mais-valia. Lyotard aproxima o procedimento crítico de Baudrillard ao de Deleuze e Guattari, mas assinala também as diferenças essenciais: Baudrillard situa-se na esf€ra da troca, da circulação e da tentativa de construção de um freudo~marxismo, enquanto que Deleuze e Guattarl, ao contrárío, dão ênfase aos fenômenos produtivos e a uma alteração do que está na essência do marxismo, assim como doJreudisrlJ;O.

De sua parte, René Girard é mais crítico em face de uma obra que não atribui nenhu~ ma pertinência ao mito e à tragédia, mas con~ corda com Deleuze e Guattari quanto ao fato de que não se deve ver na pequena infância o lugar de emergência de toda patologia social. Ele não os segue quando se trata de demolir a crença religiosa e julga que Deleuze e Guattari enunciam na verdade "uma nova forma de pie~ dade, particularmente etérea, a despeito das aparências'm. Embora aprove a disposição de~ les de compreender um certo delírio societal, oferece outra grade de leitura que continuará desenvolvendo, a do desejo mimético aquém de qualquer representação e de qualquer objeto singular38• A partir desse modelo, René Girard renuncia a toda ancoragem ftsiológi~ ca ou psíquica do desejo, assim como a todo pansexualismo, para situar o desejo mimético apenas no plano da relação dialógica, do devir recíproco. Nesse aspecto, ele converge Com o nietzschianismo de Deleuze e Guattari: "Diferentemente de Freud, que permanece aferrado em seus pais e suas mães, Nietzsche é o primeiro a desvincular o desejo de qualquer objeto"~w. Em última análise, René Girard considera que Deleuze e Guattari são bastante indulgentes com Édipo. que sai intacto de seu texto polêmico, e até engrandecido: O Anti-Édipo é ele próprio, "com toda evidência, edipianizado até o umbigo, pois é inteiramente estruturado sobre uma rivalidade triangular com os teóricos da psicanálise"40. Para René Girard, a obra de Deleuze e Guattari tem o mérito de exprimir o impasse em que se encontram as disciplinas que julgam poder encontrar uma saída unificadora em torno dos postulados da psicanálise, mas ela é apenas a recapitulação em crescente de formas culturais anteriores, mais do que o passo adiante que permita · para trás os horizontes aporéticos. A revista Esprit atribui igualmente grande importância ao lançamento de O Anti-Édipo, • que é objeto de um dossiê constituído de presença mais positiva das teses da.obra41 • Os psicanalistas Jean Furtos e Roussilon se mostram reticentes quando De~

reuze e Guattarí esquecem o nível molar para valorizar apenas o nível molecular. Julgam esse esquecimento empobrecedor, ao passo que teria sido mais útil articular os dois níveis. Por seu lado, o sociólogo jacques DonzeloL í'az a apologia do que considera ser uma "antissociologia''42. Ele vê a obra como a justaposição de blocos erráticos de saberes que criam um coágulo no fluxo de sua escrita. Com O Anti-Édipo, a psicanálise deve sofrer o assalto do pensamento nietzschiano. Superando as opo~ sições frontais entre descrições funciona!istas e análises estruturais, mas também a oposição entre infra e superestrutura, assim como a maneira como se evita o problema do Estado, Deleuze e Guattari permitem escapar de algumas aporias comuns, próprias às análises sociais. Ao invés de se perguntar, sem conseguir responder à questão, "O que é a sociedade?'", os autores de O Anti-Édipo têm o mérito de substituí~ la por uma interrogação interpeladom: "Como vivemos em sociedade?, pergunta concreta que suscita outras: Onde vivemos? Como habitamos a terra? Como vivemos o 43 Estado?" • O social já não é mais, então, um campo neutro atormentado com lógicas internas, mas o lugar de investimentos que são fontes de variações. Jacques Donzelot estabelece uma aproximação entre o "grupo em fusão" de Sartre e as "revoluções moleculares" de Deleuze e GuattarL Com sua noção de territorialidade, os autores oferecem seu conceito mais rico, que possibilita escapar das distinções entre elementos ditos marginais e outros do âmbito do essencial. Jean-Marie Dornenach, diretor de Esprit, fecha o dossiê com um artigo mais crítico, ainda que recomende a leitura de O Anti-Édipo como uma distração. Segundo ele, a inventividade que se encontra ali é revigorante e diverte mais que Lacan: "Deixemo-nos entregar por um instante a essa chacota. Não se tem mais 44 oportunidades assim de rir" • Mas rir não é subscrever, e Domenach recusa se pôr de joediante do que ele julga ser urna técnica de indicando o tipo de fórmulas in1pcrst1rs sem demonstração e repetidas à sa-

181

ciedade: "Sei muito bem que criticar em nome da lógica um livro que se apresenta como uma apologia do discurso delirante parece inadequado"45. Quanto à sua teoria do desejo, poderia ser, mas o desejo jamais é definido: "Critico nesse livro, na falta de enfrentar o mal, ter-se omitido diante do sofrimento. Pode-se dizer por uma agradável metáfora 'máquina dese~ 46 jante'; é mais difícil dizer "máquina sofrente'" . Na influente e seletiva revista literária das edições Gatlimard, Les Cahiers du Chemin, dirigida por Georges Lambrichs, é o escrito de Roger Laporte que coloca seu talento a serviço da desmontagem da obra. Denunciando um livro de rara violência, ele se pergunta: 17 "De quem se zomba? Quem se humilha?"' , e responde: "É a criança que subsiste em cada um de nós que D. G. procura humilhar"", em particular substituindo o trio pai-mãe-filho por aquele mais encoberto em cada um, Pa~ pai-Mamãe-eu. Reger Laporte julga que o tom adotado pelos autores decorre menos de uma tendência esquizoide do que de uma linguagem "paranoico-perversa"49 • Se O Anti-.Édipo provocou assim um enorme barulho, não se pode dizer, em compensação, que a obra tenha levado a qualquer mudança da prática psicanalítica e psiquiátrica. É até muito surpreendente que ele não tenha sido objeto de um verdadeiro debate lá onde nasceram muitas de suas teses, a clínica de La Borde, onde o lançamento de O Anti-Édipo é visto como um não acontecimento. Jean Oury 0 confirma isso: "Não. Não se falou a respeito"r' • A psicanalista Nicole Guillet, embora muito próxima de Guattari, confessa inclusive que não leu o livro até o fim: 'Assim como a maneira como Félix trabalhava era preciosa para mim, me ajudava multo, o que ele escrevia não me servia para nada, e por isso não li seus li. . ,sJ vr9s por mtCiro . Guattari está plenamente consciente de que a grande repercussão de O Anti-Édipo não atinge o público-alvo, os psicanalistas. Pura ilusão esperar modificar sua prática: "Os psicanalistas se mantiveram impermeáveis a ele. É inteiramente normal: vá pedir aos açouguei-

182

Desse

ros que, por razões teóricas, parem de vender

carne. Ou que se tornem vegetarianos! As pessoas pedem mais e mais. E têm razão de pagar

caro por isso, porque funciona. Mais ou menos como uma droga. E depois, isso garante uma certa promoção social que não é de se desprezar. O Anti-Édipo provocou apenas uma pequena corrente de ar"52 • A crítica mais violenta, além daquela mais tardia já mencionada de Rabert Linhart, parte de um ex-aluno de Deleuze na universidade de Vincennes, Michel Cressale, que já em 1973 publica um ensaio corrosivo contra 1 ele5: . Estudante elegante, homossexual seguro da sedução que exerce, Michel Cressole se

propõe a escrever um livro sobre seu mestre Deleuze para expor seu pensamento. Deleuze fica lisonjeado, mas acha que seu aluno deve caminhar por suas próprias pernas e se recusa a ajudá-lo na realização da projeto. Desse mal-entenclida resulta a demolição do ídolo da véspera. O sarcasmo é inevitável nesse opúsculo vingativo: O Anti-Édipo é apresentando como a bíblia de uma nova seita de adeptas

da esquizoanálise que, além do mais, só fazem "lembrar esses batalhões de ópera que repetem 'marchemos' sem se mexerem do lugar, 54 criando apenas a ilusão de um movimento" •

Esse livro teria simplesmente juntado ao par marxista-freudiano um bufão que se pretende-

ria artista. Desse texto polêmico resulta uma troca epistolar publicada na própria panfleto

entre seu autor e Deleuze. Em seu desejo de acabar com o Deleuze "tal como se fala dele", o tom de Cressale é o de um acerto de contas. Ele acrescenta, citanda a cantora da moda, Sheila: "Você está par 55 fora, papai, como diz a canção'' • Denuncia o

curso de Vincennes como um grande barnum* onde se aglutina todo tipo de demandas pato-

gênicas a um mestre que está acuado. sufocado em pequenas salas enfumaçadas. Ao mesmo tempo, Cressole invoca um uso possível de O Anti-Édipo como um "joguete fantástico'' cala"N. de T.: Rcferênóià ao Oran~e Circo Barnum, famosos por suas excentricidades.

Gilles Deleuze & Félix Guattari

cada à disposição da juventude par dais "cientistas malucos"56. O ex-aluno de Deleuze parece enfim sugerir-lhe, nessa história de amor não correspondido, que promova sua pessoa e sua obra: "E se os esqulzo1i:ênicos, por sua vez, se tornassem seus empresários? Seu jaleco preto de operário já é o equivalente ao vestido rosa de corpete plissado de Marilyn Monroe, e suas unhas compridas, aos óculos escuros da Garbo''57. Deleuze dá a essa interpelação brutal e arrogante uma resposta plena de sutileza e ironia: "Você é charmoso, inteligente, malévolo, e mesmo inclinado à ruindade. Um esforço 58 a mais .. :' . Acusado de vampirizar os esquizofrênicos, Deleuze, que tem o gosto das transposições, avisa de forma bem-humorada ao seu contraditar que se converteu alegremente à paranoia, fazendo-o saber assim que errou o alvo. Atacado no plano de sua aparência física, ele esclarece primeiramente que seu jaleco preto não tem nada de um jaleco de operário, pois é um jaleco de camponês, e dá uma explicação a propósito de suas unhas compridas: "Como você volta várias vezes às minhas unhas, vou explicar. É sempre possível dizer que era minha mãe quem as cortava, e que isso está ligada ao Édipo e à castração (interpretação grotesca, mas psicanalítica). Pode-se notar também, observando a extremidade de meus dedos. que me faltam as impressões digitais geralmente protetoras, e tocar com a ponta das dedos um abjeto, sobretudo um tecido, me causa uma dor nervosa que exige a proteção 59 de unhas compridas" • A obra, que não tem apenas detratores, encontra um aliada de peso em Michel Foucault. O Anti-Édipo assume aos alhos dele um estatuto inteiramente singular, o de um puro acontecimento que excede o abjeta livra, de uma fulgurância que deve ser apreciada sua faculdade afetante: "O Anti-Édipo, nne• nr>L-< ticamente não se refere a quase nada sua própria e prodigiosa inventividade livro, ou melhor, coisa, acontecimento, chegou a fazer enrouquecer até na vida ca mais cotidiana esse murmúrio, porém tanto tempo interrompido, que resvalou

61

divã para o sofá" ). Entusiasta, Foucault redige o prefácio da edição americana da obra, lança61 daem 1977 . Ele percebe no que julga ser um grande livro a demonstração de uma arte de viver em três registros: ars crotica, ars thcorctica, ars politica. O resultado é um verdadeiro acontecimento do pensamento com esse livro: "Eu diria que O Anti-Édipo (que me perdoem seus autores) é um livro ético, o primeiro livro ético que se escreveu na França depois de 62 muito tempd' • Foucault identifica três tipos de adversários desse livro: os profissionais da revolução, que pregam o ascetismo para fazer triunfar a verdade; os técnicos do desejo, que são os psicanalistas e semiólogos, que buscam por trás dos signos os sintomas, e, finalmente, o verdadeiro inimigo, o fascismo, não apenas o que os historiadores denominam sob esse vocábulo coma tipo de regime político, mas o fascismo incubada em cada um de nós. O principal mérito dessa obra é oferecer aos seus leitores uma introdução à vida não fascista, da qual Michel Foucault retém alguns princípios fundamentais. Entre eles, está sobretudo a postura de alerta contra os atrativos do poder, o que implica resistir a qualquer forma de enclausuramento unitário, favorecer a ação, o pensamento e o desejo, fazendo-os proliferar e se libertar da categoria da negativa. Verdadeira guia apto para modificar a vida cotidiana das pessoas, O Anti-Édipo não deve ser lido, porém. como a nova teoria "tantas vezes anunciada: aquela que vai englobar tudo, aquela que é absolutamente totalizante e tranquilizadora'' 63. As teses de Deleuze e Guattari são também defendidas firmemente par um sociólogo próxima a Michel Faucault, Robert Castel, que saúda a contribuição "inestimável a uma sociologia crítica da psicanálise" 64 trazida por D
183

talvez não estivesse errado ao axiomatizar o saber psicanalítica em torno do complexo de Éclipo, mas partilha o ponto de vista de Deleuze e Guattari quando eles mostram como a psicanálise rctcrritorializa na esfera privada "uma estrutura antropológica fundamental cuja gênese deve ser buscada do lado do socius: esse é o alcance fundamental de O Anti-Édipo"65•

O Anti-Édipo a distância Oito anos após a publicação de O Anti-Édi-

po, Deleuze vê esse acontecimento editorial como um fracasso. Maio de 68 e seus sonhos se afastam do horizonte. Ficou um gosto amargo para aqueles que se deixaram transportar pela esperança e que agora se agarram às sobras do conservadorismo. É essa amargura que De~ leuze expressa a Catherine Backes-Clément: "O Anti-Édipo é pós-68: era um período de efervescência, de busca. Hoje há uma reação muito forte a isso. É toda uma economia do livro, uma nova política que impõe o conformismo atual... o jornalismo passou a ter cada vez mais poder sobre a literatura. Depois, uma massa de romances redescobre o tema familiar mais banal e desenvolve ao infinito todo um papai-mamãe: é preocupante quando se encontra um romance pronto, pré-fabricado, na família que se tem. É realmente o ano do patrimônio, e quanta a isso O Anti-Édipo foi um fracasso completo" 66 • Contudo, Deleuze apresenta o dossiê de O Anti-Édipo diante de seus alunos da universidade de Paris-V1ll-Vincennes admitindo que, entre as críticas formuladas, nem todas eram injustificadas. Em O Anti-Édipo, Deleuze e Guattari afirmam: "Somos ainda competentes demais, gostaríamos de t8.lar em nome de uma incompetência absoluta. Alguém nas perguntou se alguma vez tínhamos visto um esquizofrênico, não, não, nós nunca tínhamos 67 • " . De leuze repete com humor diante dos v1sto alunos essa tirada espirituosa, levada a sério por muitos críticos da obra, e relata que uma psiquiatra particularmente agressiva lhe teria

l,,.

184

Dosse

perguntado: "Vocês já viram esquizofrênicos?" Ele comenta: "Achei essa pergunta insolente. Para Félix Guattari, que trabalha em uma c!íni, ca onde há muitos, e para mim, pois há poucas pessoas no mundo que não viram esquizofrênicos. Por lsso respondi: 'Eu, jamais', e ela então escreveu nos jornais que nunca tínhamos visto esquizofrênicos. Era muito chato''68, O que Deleuze retém com um eixo forte da demonstração de O Anti,Édipo, e que de, veria permanecer como uma aquisição, é que "o delírio é imediatamente um campo de in69 vestimento sócio-histórico" • O eixo crítico do causalismo familialista tal como o pratica a psicanálise é, portanto, uma vertente essencial da demonstração da obra que diz que não se delira sua família, mas o mundo. Contudo, Deleuze pretende corrigir um pouco o alvo, reagindo a algumas leituras da obra que sobrevalorizaram apenas a linha esquizofrênica como intrinsecamente liberadora, experimentando todo tipo de linhas de fuga entre as mais perigosas, Na "verdade, é preciso romper a segmentaridade que diva os indivíduos em universos fechados, em espaços estritamente circunscritos, e a esquizofrenia se define como uma tentativa de cartografia das linhas de fuga possíveis em relação a essas segmentações. Contudo, toda linha contém seus perigos. A linha de fuga não é em si criativa e liberadora: ela pode ser um desmoronamento quando se transforma em linha de abolição, de destrui, ção, e nisso o psicótico dito esquizofrênico não é idealizado em seu sofrimento como doente. Do mesmo modo, no plano histórico-mundial, as sociedades podem adotar perigosas linhas de fuga: "Se dou um conteúdo ao fascismo, é tipicamente uma linha de fuga que vira linha 70 mortuárii' . Essa teoria das linhas é objeto de uma elaboração entre 1976 e 1980, que encon, tra suas primeiras expressões em Diálogos e se desdobra em Mil Platôs. Deleuze deixa bem clara, portanto, a dis, tinção entre a entidade clínica que segue uma linha de abolição e de morte e a esquizofrenia como processo de vida. É a oportunidade para ele de reafirma~:~eu vitalismo fundamental,

Gilles Deleuze & Félix Guattari

sua ojeriza a qualquer afeto mórbido. O pro, cesso em questão decorre de uma linha vítal, e é nisso que não tem nada de negativo: "Quando ouço a ideia de que a morte pode ser um processo, todo o meu coração, todos os meus 71 afetos sangram" • Não se trata, então, de simetrizar vida e morte corno dois polos alternativos do processo. Para Deleuze, o culto da morte decorre do fascismo, e ele opõe a esse desvio a concepção espinosista segundo a qual a morte só pode vir de fora. Daí a crítica minuciosa da ideia da pulsão de morte no Capítulo IV de O Anti,Édipo. Mais tarde ainda, em 1988, por ocasião de O Abecedário, Deleuze voltará ao que julga ser um mal,entendido a propósito da acepção dada à noção de desejo em O Anti,Édipo. Ele esclarece que a intenção não tinha nada a ver com o todo desejante, mas era a passagem de uma concepção abstrata do desejo a uma abordagem construtivista que leve em conta o agenciamento concreto no qual ele se exprime: "Não há desejo que não passe por um agenciamento. Desejar é construir um agen~ 72 ciamento" • Em compensação, Deleuze confirma a lógica do ataque contra a psicanálise e lembra, nessa ocasião, as três principais crí~ ticas que lhe são dirigidas: o inconsciente não é um teatro, mas uma fábrica de produção; o delírio não é absolutamente aquilo que a psi~ canálise entendeu, pois o delírio incide sobre o mundo inteiro; o desejo constrói agenciamen~ tos múltiplos, Sobre esses três pontos funda, mentais, Deleuze diz que não tem o que modificar e prediz uma redescoberta desse livro que comporta uma concepção mais ajustada do inconsciente. No diálogo com Claire Parnet, ele evoca também os outros mal,entendidos que de, ram lugar a uma leitura da obra em termos de culto da espontaneidade, ou ainda de culto da esquizofrenia. Nos dois casos, são graves contrassensos, e ele afirma, nessa ocasião, sua preocupação permanente de fazer com que seus alunos em Vincennes não sejam atraídos por uma forma de delírio que os teria reduzido ao estado de farrapos: "Esse livro é de uma pru,

dência extrema: não se tornem farrapos. Para 73 nós, o terror era criar produtos de hospital" • Trinta anos após a publicação de O Anti-Édipo, a atualidade da obra é mais uma vez destacada pelo filósofo Éric Alliez, que vê nesse momento uma reviravolta da biofilosofia deleuziana, que, graças à fecundação proporcionada por Guattari, se torna urna biopolítica, "fazendo passar ao plano de imanência a desterritorialização relativa do capital para conduzi-la ao absoluto e atingir nesse ponto crítico a liberação da imanência no aqui-agora"7'1. Inversamente, o sociólogo jean-Pierre Le Goff estigmatiza O Anfi,Édipo como fonte de desvios do esquerdismo político'". Ele vê em O Anti-Édipo um elogio do inconsciente como triunfo da anticultura, como regressão voluntária ao infrassignificante, lugar anterior à partilha entre o bem e o mal, e, portanto, à produção em sua imediaticidade. Ele denun, cia o caráter elitista dessa concepção que atribui apenas a u.m pequeno número de eleitos a chance de enfrentar o caos do Ser: ':Apenas os esquizofrênicos, os delinquentes, os marginais e, de alguma maneira, os artistas e os mílitantes revolucionários têm alguma chance de chegar a isso''i6• Quanto ao resto da humanidade, ele estaria condenado a vagar em sua impotência e em suas pulsões fascistoides ... Dessa equação, depreende,se que Deleuze e Guattari aparecem como dois inimigos da cultura, instrumentalizando a jovem geração para abatê, la. Em outro registro, desta vez filosófico, ]e, an,Christophe Goddard estabelece uma liga, ção entre o Bergson de As Duas Fontes da Moral e da Religião e as teses de O Anti,Édipo, que ele concebe como uma verdadeira mística da doença mental, em que os psicóticos substituem a comunidade de santos77• Segundo Goddard, essa obra erige a esquizofrenia à condição de método. Não evidentemente o que se entende por esse vocábulo como doença mental: 'Assim como o Cristo de Espinosa, o esquizofrênico deleuziano é o filósofo por excelência, e a esquizofrenia é conhecimento metafísicd'78 • A noite patológica torna-se fonte

185

de luz, liberando um possível contato com o princípio concebido como impulso vital. De maneira bastante surpreendente, O Anti-Édipo tornou-se um recurso importante para os Gender Studie_r.;. Nos Estados Unidos, numerosas correntes que pretendem superar a bipolaridade sexual encontram nesse livro sustentação para suas teses pelo nm da opressão totalitária dos dois sexos, contestando assim com o Édipo a insistência na castração. Na França, essas teses encontràm seguidores em alguns psicanalistas lacanianos, o que é particularmente perceptível em Jean Allouch, que, como membro da escola lacaniana de psicanálise, dirige ao mesmo tempo a revista LVnebévue e uma coleção nas edições Epel, consagrada à difusão de estudos gays e lésbicos norte-americanos e da queer theory, "Les Grands Classiques de l'Érotologie Moderne". Assim, psicanalistas lacanianos "que não estavam especialmente interessados em O Anti-Édipo na época de seu lançamento se 79 tornam foucaultianos ou deleuzianos" • A distância das intensas controvérsias da época da publicação da obra, a psicanalista Catherine Millot reconhece nela agora um certo mérito, o de "ter explorado uma concepção não deficitária da psicose. Para além de urna idealização da esquizofrenia que pode parecer ingênua, O Anti,Édipo sensibiliza para o fenômeno da psicose, sua dimensão criativa, a liberdade, a originalidade e a inventividade de que os psi, cóticos são capazes, ao passo que, é preciso dizer, a neurose com seus recalques parece nesse 80 aspecto bastante inibida • François Zourabichvili, por sua vez, insiste na necessidade de uma leitura literal da obra que está em consonância com a preocupação dos autores de construir um plano de imanência. Na medida em que a imanência só pode ser enunciada se realizando, ela supõe uma prática singular da linguagem que abandona os tropas clássicos em voga no auge do estruturalismo, como a metáfora e a metonímia, e os substitui por máquinas: "Não é por metáfora que se fala da máquina: o homem é má-

186

Dosse

quina desde que esse caráter seja comunicado por recorrência ao conjunto do qual ele faz 8 parte em condições bem determinadas" r. A máquina não é nem exterior ao homem, nem projeção de sua interioriclade. Ela ocupa um espaço mediano que deixa o campo do sentido

e pertence a um espaço semântico a ser compreendido literalmente e diferente do sentido

próprio, como assinala François Zourabichvili. Deleuze e Guattari põem seus leitores à

prova de imediato, desde as primeiras palavras do livro: "Isso funciona por toda parte, ora sem interrupção, ora descontínuo. Isso respira, isso produz calor, isso come. Isso de-

feca, isso beija. Que erro ter dito o isso. Por toda parte são máquinas, não metaforicamente; máquinas de máquinas, com suas acoplagens, suas conexões. Uma máquina-órgão está ligada a uma máquina-fonte: uma emite 82 um fl uxo que a outra corta" . A. ss1m, quan d o Deleuze e Guattari escrevem no mesmo parágrafo que "o presidente Schreber tem raios do

céu Do cu, Anus solar", não se deve ver aí uma simples metáfora, mas ler um sentido literal que faz a teoria de sua própria literalidade.

Para que os compreendam bem, os autores acrescentam ainda: "Tenham certeza de que isso funciona; o presidente Schreber sente alguma coisa, produz alguma coisa e pode fa-

zer a teoria disso. Alguma coisa que produz: 3 efeitos de máquina, e não metáforas"s • A máquina desejante não remete, portanto, a um desejo que funcionaria como uma máquina. Esse oximoro visa na verdade a uma dupla ruptura com o rebatimento tecnicista e com a leitura fenomenológica segundo a qual o

desejo seria tensão própria de um sujeito em relação a um objeto ou a um outro sujeito. É o encontro, o corte do fluxo que é criador da máquina desejante e instaurador de um fazer engendrado pelo pensamento.

Notas !. Félix GUATTARJ, PT.

2. Roger GE:NTIS, Un psychiatre dans !e siBcle, Érês, Paris~2005, p. 1-28.

Gilles Deleuze & Félix Guattari

3. Ver capítulo "A revolução molecular: Itália, Alemanha, França".

24. Jbid., p. 203. 25. Élisabeth Roudinesco, entrevista com o autor.

4. Félix Guattari, ]ournal, notes, 1o de abril de 1972, arquivos IMEC.

26. l\lisabeth ROUDJNESCO, Généalogies, Fayard, Paris, 1994. p. 54. '1:/. André Grcen, "Héflexions critiques", Revue française de psychanalyse, vol. 36, n. 3, 1972, p. 494.

!i Rohert LTNHART, "Gauchismc à vendrc?", U-

bération, 7 de dezembro de 1974. 6. Serge]ULY,Libération, 7 de dezembro de 1974. 7. Robert LINHART, "Gauchisme à vendre?", art. cit. 8. Jbid. 9. Rafael PNIDAL, "Psychanalyse, schizophrénie, capitalisme", Le Monde, 28 de abril de 1972. 10. François CHATELET, "Le combat d'un nouveau Lucrece", Leiv'Jonde, 28 de abril de 1972. 11. Noel! e Châte!et, entrevista com o autor. 12. Kostas AXELOS, "Sept questions à un philosophe'', Le Monde, 28 de abril de 1972. Embora Kostas Axelos fosse um amigo filósofo muito próximo de Deleuze desde meados dos anos 1950, sua relação se romperá subitamente a partir dessas questões: "Depois dessas questões no Le Monde, não nos vimos mais. A gente se telefonou, mas compreendi que era uma recusa" (Kostas Axelos, entrevista com o autor). 13. Cyrille KOUPERN!K, "Um delire intelligent mais gratuit",LeMonde, 28 de abril de 1972. 14. Claude MAURIAC, "L'CEdipe mis en accusatlon", LeFigaro, 1° de abril de 1972. 15. Madeleine CHAPSAL, "CEdipe connais plus ", L'Express, 27 de março-2 de abril de 1972. 16. Serge LECLAIRE, "La réalité du désir ", Sexualité humaine, Aubier, Paris, 1970. 17. Catherine MILLOT, comunicação sobre DlntiCEdipe, Centre Pompidou, '1\bécédaire pour Gilles Deleuze", "Revues Parlées", 2 de novembro de 2005. 18. Jbid. 19. Catherine Millot, entrevista com o autor. 20. Êlisabeth ROUDINESCO, "Le bateau ivre du schizo débarque chez Al Capone", Les Lettres Françaises, 19 de abril de 1972; reed. com o título "CEdipe et la schizophrénie", em Élisabeth ROUDINESCO, Un discours au réel, "Rep€res", Mame, Paris, 1973, p.l95-204. 21. lbid. Un discours au réel, op. cit., p.195. 22. Ibid., p. 199. 23. Ibid., p. 203.

28. Jbid., p. 494. 29. Jbid., p. 495-496. 30. Jbid., p. 497. 31. André STÉPHAi\JE, L'Univers contestationnaire, Petit Biblioth€que Payot, Paris, 1969. 32. André STÉPHAi\JE, "La fin d'un rnalentendu", Contrepoint, n. 7-8, ag.-nov., 1972, p. 244. 33. Janine CHASSEGUET-SMIHGEL (sob adir.), Les Chemins de l'Anti-CEdipe, Privat, Toulouse, 1974. 34. Jbid., p. 73. 35. Jbid. 36. jean-François LYOTARD, ''Capitalisme énergumene", Critique, nov.l972, p. 925; reproduzido emjean-François LYOTARD, Des dispositifS pulsionne/s, 10/18, Paris, 1973, p. 7-52. 37. René GIRARD, "Syst€me du délire", Critique, nov. 1972, p. 92!. 38. Renê GIRARD, Mensonge romantique et verité romanesque, Grasset, 1961. 39. René GIRARD, "Syst<:me du délire", art. cit., p. 965. 40. Ibid., p. 976-977. 41. Jean FURTOS, Renê ROUSSILON, "LAnti-(Edipe. Essai d'explication", Esprit, dez. 1972, p. 817-834. 42. jacques DONZELOT, "Une anti-sociologie", Esprit, dez. 1972, p. 835-855. 43. lbid., p. 849.

44. Jean-Marie DOMENACH, "CEdipe à l'usine", Esprit, dez. 1972, p. 856. 45. Ibid., p. 857. 46. Ibid., p. 863. 47. Roger !.APORTE, "Gilles Deleuze, Félix Guattari: Capitalisme et schizophrénie, Lftn" ti-CEdipe", Les Cahiers du chemin, Gallimard, Paris, n.16, 15 de outubro de 1972, p. 96. 48. Jbid., p. 97. 49. Jbid., p. 104. 50. Jean Oury, entrevista com o autor. 51. Nicole Guillet. entrevista com o autor.

187

52. Félix GUATTARJ, RM, p. 3!. 53. l\1ichel CRESSOLE, Deleuze, Éclitions Universitaires, Paris, 1973. 54. Jbid., p. 9!. 55. Jbid., p. 103. 56. !bid.. p. 104. 57. Jbid., p. 105. 58. Gilles Deleuze, "Lettre à un critique sévere", em Michel CRESSOLE, Deleuze, op. cit.; reproduzido em Gilles DELEUZE, PP, p. 11. 59. Jbid., p. 13. 60. Michel FOUCAULT, "Cours au College de France du 7 janvier 1976", em Dits et écrits, Gallirnard, Paris, 1994, torno III, p.l62-163. 6!. Michel FOUCAULT, prefácio a Gilles DELEUZE, Félix GUATTAR!, Anti-CEdipns: Capitalism and Schizophrenia, Viking Press, New York, 1977, p. XI-XN; reproduzido em Dits et écrits, Gailimard, Paris, 1994, tomo III, p. !33-136. 62. Dits et écrits, op. cit., p. 134. 63. Jbid. 64. Robert CASTEL, Le Psychanalysme, Maspero, Paris, 1973; nova ed. Champs-Flammarion, Paris, 1989, p. 83. 65. Jbid., p. 275. 66. Gilles DELEUZE, entrevista com Catherine Backes-Clément, reed . .Lflrc, 1980, p. 99-102; reproduzido em Gilles DELEUZE, RF, p. 162-163. 67. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, AO, p. 456. 68. Gilles Deleuze, aula de 27 de maio de 1980 na universidade de Pafis-VIII, arquivos audiovisuais, BNF. 69. Jbid. 70. Jbid.

71. Jbid. 72. Gilles Deleuze, A, letra D. 73. Jbid. 74. Êric ALLIEZ, ~L'Anti-CEdipe - Trente ans et quelques apres", Radical Phi!osophy, n. 124, março-abril2004. 75. jean-Pierre LE GOFF.Mai 68. L'héritage impossible, La Découverte, Paris, 1998. 76. Jbid., p. 343. 77. Jean-Christophe GODDARD, Mystique et Jolie. Essai sur la simplicité, Desclée de Brouwer, Bruxelas, 2002.

188

Dosse

78. Ibid.. p. 45. 79. Catherlne Millot, entrevista corno autor. 80. Ibid.

81. Gilles DELEUZE. Félix GUATTARI.AO. p. 464. 82. Ibid., p. 7. 83. Ibid.

12 A máquina contra a estrutura

Entre os anos de 1966 e 1969, Deleuze e Guattari estão ambos muito próximos dos autores e dos trabalhos estruturalistas e ao mesmo tempo muito conscientes de seus impasses, recusando qualquer enclausuramento de sentido, qualquer rebatimento sobre um pensamento binário e fechado tanto aos processos de temporalização quanto à dimensão pragmática da linguagem.

Uma máquina de guerra contra o estruturalismo Guattari, por seu lacanismo, enquanto membro da Escola Freudiana, participa plenamente da difusão do estruturalismo em sua versão psicanalítica. Quanto a Deleuze, sua vontade de ultrapassar os limites da filosofia o torna muito receptivo à efervescência em curso nas ciências humanas. A figura do esquizo~ frênico não para de interrogá~lo, seja sob sua forma clínica, seja sob sua forma literária. Contudo, nem um nem outro se satisfaz com uma simples adesão às teses dominantes da época. Pouco antes de seu encontro em 1969, pode-se considerar que a posição que expressam já é uma forte crítica do estruturalismo.

Quando Guattari toma a palavra diante da plateia da Escola Freudiana de Paris em 1969, já havia rompido com a evolução formalista e logicista de Lacan. Ele não é mais o sucessor presumido do Mestre, que o preteriu em favor de seu genro ]acques-Alain Miller e de seu círculo ulmiano, que acaba de lançar os Cahiers pour ll!nalyse. Assim, Guattari falará de "Má1 quina e estrutura" , O alvo é designado, e sua intervenção poderia muito bem se intitular "Máquina contra estrutura". Ele identifica ali os ângulos mortos da grade de análise estrutural, e a noção de máquina que apresenta como operatória é destinada a pensar o recalcado do estruturalismo, à articulação dos processos de subjetivação e do acontecimento histórico. É o primeiro texto de Guattari que se refere a Deleuze, a quem ainda não conhece, mas do qual leu e apreciou a tese, Diferença e Repetição, e Lógica do Sentido, que cita logo de início, invocando a defmição deleuziana da estrutura. Contra a estrutura, que se define por sua capacidade de troca de elementos particulares, a máquina proviria da repetição, mas no sentido entendido por Deleuze, isto é, a repetição como diferença, "como conduta e como ponto de vista referidos a uma singularidade intro2 cável, insubstituível" • Partindo das teses de

190

Dosse

Deleuze, Guattari sente necessidade da noção de máquina para introduzir esse elemento diferenciante que reintroduz do acontecimento e do movimento: ''A temporalização penetra a máquina por todos os lados, e não se pode situar-se em relação a ela a não ser à maneira de um acontecimento. O surgimento da máquina marca uma data, um corte não homogêneo em uma representação estrutural"3. Chama a

atenção aqui a proximidade de posição e de discurso, já então, antes de se encontrarem. Guattari se faz porta-voz de uma filosofia do acontecimento, que é a significação essencial de Lógica do Sentido, de Deleuze. Nessa intervenção matricial, encontra-se uma noção derivada da noção de máquina, e que se tornará igualmente central no dispositivo deleuzo-guattariano, a de "máquina de guerra". Guattari endossa a orientação deleuziana de uma filosofia em ruptura com a ideia de representação, e situa seu conceito de máquina nessa perspectiva: ''A essência da máquina é justamente essa operação de despreendimento de um significante como representante, como 'diferenciante', como corte causal, heterogêneo na ordem das coisas estruturalmente estabelecidà''1. Para sair dos impasses do panlinguismo da semiologia estrutural, Guattari sugere reabilitar o ato de palavra como significante: ''A voz, como máquina de palavra, corta e funda a ordem estrutural da língua, e não o contrárid' 5 • Assim, ele inverte completamente a perspectiva estrutural que fizera prevalecer o sistema da língua como único nível científico excluindo a palavra, remetida ao puro contingente. É o sujeito que interessa a Guattari, e ele o concebe como clivado, lacerado, na intersecção, no entre-dois, em tensão entre estrutura e máquina: "O ser humano é tomado no entrecruzamento da máquina e da estrutura" 6• Permanecendo no interior das categorias lacanianas e ao mesmo tempo se propondo a dinamizá-las, Guattari retoma de Lacan a análise dos objetos parciais, o objeto a, e o utiliza como máquina de guerra contra o equilíbrio estrutural. De fato, ele irrompe ali onde não se espera, à man~ira de. u.!lla verdadeira "máqui-

Gilles Deleuze & Félix Guattari

7 na infernal" . Ele se torna o irredutível, o inassimilável na estrutura, e é rebatizaclo por Guat8 tari de "objeto-máquina 'à" . É o elemento que impede de pensar em círculo, desconstrutor de equilíbrios estruturais que frustra as tentativas de representação de si, descentranclo o indivíduo "até a borda dele mesmo, no limite 9 do outro" . Essa busca de uma conexão que seja de grupos, de entidades coletivas, não somente converge com as primeiras preocupações de Deleuze sobre a questão da instituição e de suas relações ambivalentes com o desejo 10, como terá um fecundo devlr no deleuzo-guattarismo, com a noção de grupo sujeito e de agenciamento coletivo de enunciação. Essa perspectiva crítica do estruturalismo assume para Guattari uma significação não apenas especulativa como também eminentemente política. Trata-se de tirar os ensinamentos de Maio de 68, de redinamizar as estruturas desestabHizadas pela irrupção do acontecimento. Como reativar a máquina revolucionária que demonstrou suas capacidades de abertura em Maio de 68'! Essa é a pergunta propriamente política de Guattari: "O projeto revolucionário, como maquinação de uma subversão institucional, teria de revelar essas potencialidades subjetivas e, em cada etapa das lutas, preveni-las contra sua 'estruturalização".~ 1 • Se Maio de 68 possibilitou o triunfo institucional do estruturalismo na universidade 12 , o acontecimento 68 também produziu um pensamento 68 que não tem nada de estrutural e que, ao contrário, põe em crise, de maneira decisiva, um paradigma abandonado um pouco rápido demais por aqueles mesmos que tinham visto nele a expressão de um novo olhar na modernidade e que agora proclamam jamais ter participado do banquete estruturalista. Se Guattari encontra matéria para argumentos nas duas obras publicadas por Deleuze em 1968 e 1969, é porque a orientação filosófica de Deleuze se distingue do paradigma que domina absoluto nessa época. Em sua tese, Diferença e Repetição, Deleuze se mostra vigilante em face de qualquer redução do

acontecimento à insignificância que o estruturalismo corre o risco de praticar. Ao contrário, ele prega pela recusa da alternativa entre estrutura e acontecimento, mas por sua articulação: ''Assim como não há oposição estrutura-gênese, não há oposição entre estrutura e 1 acontecimento, estrutura e sentidd.t: • Contudo, Deleuze reconhece no estruturalismo sua eficácia em dar conta das multiplicidades. Seu teatro não tem nada a ver com o da represen14 tação, é um "teatro de multiplicidades" que, longe de buscar uma síntese ideal de recognição, de representação adequada do identitário, persegue os problemas no interior mesmo dos movimentos de experimentação. Segundo Deleuze, o estruturalismo continua prisioneiro das categorias de identidade e de oposição, e não é capaz de colocar os bons problemas. Assim, a linguística, que é a ciência-piloto do paradigma estruturalista, na sua componente Saussure-jakobson que transformou em modelo heurístico as regras da fonologia em seus aspectos estruturais, se fecha em suas lógicas binárias e privilegia os termos negativos, "assimilando as relações diferenciais 5 entre fonemas a relações de oposiçãd.~ . O estruturalismo saussuriano mutila a positividade potencial da diferença, segundo Deleuze, que opõe a ele o ensinamento de um outro linguista, marginal entre os linguistas, mas cuja importância ele não cansará de afirmar, Gustave Guillaume: ''A substituição do princípio de oposição distintiva por um princípio de posi~ ção diferencial é a contribuição fundamental 16 de obra de Guil!aume" • Com ele, dispõe-se de uma verdadeira exploração transcendental da Ideia do inconsciente linguístico que desta vez não perde seu objeto. Em sua aula sobre a semiologia do cinema de !9 de março de 1985, Deleuze declara seu entusiasmo pelas teses de Guillaume: "O que é o significado de potência em Guillaume'? É o movimento: que confirma17 ção! É um dia de festa. Que encontro!" . Ele o apresenta como o último dos grandes linguistas filósofos, cuja tese, recusada pela maioria dos linguistas, é sustentar que uma palavra enquanto unidade significativa mínima tem

191

um único sentido, que ele chama de "signifi18 cado de potêncià' • Essa dimensão remete a uma matéria ideal que preexiste ao discurso, mas da qual não se pode prescindir: "É a ressurreição da filosofia que chega nas costas da 19 lingu.ística e é detestada pelos linguistas" • O psicomecânico da linguagem que é Guillaume não está na verdade muito distante, por suas hipóteses sobre a linguagem, dos objetivos deleuzianos. Ele sempre criticou os outros linguistas por se limitarem aos fatos visíveis: "Os pensamentos de Guillaume e de Deleuze convergem na afirmação de que o virtual/poten20 cial é tão real quanto o atual/ efetivo" • A afirmação de sua ontologia da diferença conduz Deleuze, em sua tese, a atribuir a maior importância às teorias apresentadas por aqueles que se apresentam como os mestres do estruturalismo em todas as suas facetas nos anos de 1960. Assim. ele reconhece em Freud o mérito de ter insistido sobre uma sexualidade pré-genital, que consiste em pulsões parciais, e em Lacan o de ter prolongado essa descoberta com seu objeto a. Para ele, Lacan teve ainda o mérito de dissociar a relação com o tempo do objeto real e do objeto parcial, este último tendo como propriedade ser e não ser lá onde ele é. Apesar desses avanços, a psicanálise permanece prisioneira, segundo Deleuze, de uma filosofia da representação do sujeito, submetendo sua teoria da repetição a um princípio de identidade no passado, ou de analogia, de semelhança no atual. Da mesma maneira que saúda a contribuição de Lacan, ele saúda a leitura de Althusser e dos althusserianos da obra de Marx: ''Althusser e seus colaboradores estão, portanto, cobertos de razão ao mostrar em O Capital a presença de uma verdadeira estrutura e ao recusar as in21 terpretações historicistas do marxlsmo" • As relações entre Althusser e Deleuze são multo boas: em 1964, Althusser convida Deleuze para dar um curso na ENS, na Rue d'Ulm. Este último declina da oferta, pois na época está se instalando em Lyon: "Obrigado por sua carta e sua proposta. É uma pena, é uma pena. Não fui nomeado em Grenoble, onde era mal rece-

192

Gilles Deleuze & Félix Guattari

François Dosse

leuze tenta identificar, para além da diversidade de domínios explorados, alguns critérios comuns aos estudos estruturais, quer se ocupem do campo linguístico, quer do literário, antropológico, psicanalítico ou sociológico. A primeira característica é a centralidade da dimensão simbólica que faz a ligação entre o real e o imaginário: a descoberta desse terceiro termo é atribuída ao estruturalismo e, reação de Deleuze é muito positiva: "Fico feliz tanto nesse domínio quanto nos outros, é a por ter-me enviado seus três livros. Você não linguística que figura como ciência piloto. O poderia me dar prazer maior. Não terminei segundo critério é de localização ou de posiainda, mas não somente os artigos que eu já tição. O sentido dos elementos da estrutura tem nha lido e que admirava, como tudo o que não a ver unicamente com sua posição, e Deleuze conhecia (sua elucidação do conceito de 'pro· saúda a maneira "rigorosa" corno Lévi-Strauss blema', que é uma preocupação comum que demonstrou isso. Encontram-se ali as bases tenho com você), e depois o fetiche e a análise mesmas da ambição estruturalista que é se do papel exato da alienação, tudo isso já me tornar uma topologia, uma lógica do relacio~ parece tão importante que sinto sua influênnal. Deleuze se sente, portanto, muito próximo cia. Dos seus colaboradores, eu conhecia um dessa maneira de valorizar o que ele chama de pouco Macherey, a quem estimo. O conjunto plano de imanência. O terceiro e o quarto cridesses três livros e seu estilo me impressiotérios apresentados por Deleuze o aproximam nam ... (Sim, creio que esses livros são de uma ainda mais do paradigma estrutural, pois se grande profundidade e beleza. Gostaria muito ,23 trata da valorização do diferencial e do singu· ) de conversar com você sobre e1es. . estrutura é uma multiplicidade"", lar: "Toda O belo texto de Deleuze sobre "Em que se 21 afirma Deleuze, que faz aqui uma leitura do reconhece o estruturalismo?" ' , que seu amigo paradigma estrutural que o coloca do lado de François Châtelet publicará em sua História da sua própria ontologia da diferença, o que fica Filosofia, em !972, foi escrito na realidade em evidente quando afirma que "da estrutura se 1968, portanto antes do encontro com Guatta· ,27 dirá: real sem ser atual, ideal sem ser abstrata . ri, e submetido a Althusser: "Envio-lhe anexo Ele aprova Lévi-Strauss por conceber que o ino texto de que lhe havia falado sobre o estru· consciente é sempre vazio e tributário apenas turalismo. Como eu disse, minha ambição ali de suas leis estruturais. Ainda se está longe da era uma vulgarização mais rigorosa do que a apreciação muito negativa que será feita mais que se faz comumente. Mas já não tenho mais tarde, após o encontro com Guattari, quando a mesma tranquilidade, mesmo modesta. Pois estigmatizarão conjuntamente essa concep~ tenho a impressão ora de permanecer em uma ção, qualificando-a de concepção anoréxica do grande obscuridade, ora de dizer as mais cominconsciente. Ainda se está em um momento pletas besteiras (particularmente no parágrafo em que o estruturalismo é apresentado em sua flnal sobre os 'últimos critérios'). Mas lhe envio positividade. O quinto critério é a serialidade, porque, de um lado é uma questão sua, de ouque permite dar uma mexida na estrutura. De~ tro para que me diga se é publicável. Faça-me leuze se sente ali a tal ponto em situação de a camaradagem de lê-lo, de maneira muito que organiza sua obra Lógica do proximidade pessoal. Escrever alguma coisa ruim pode ser Sentido em 34 séries diferentes. O sexto crité· sempre formador, mas publicar não. Talvez 2 rio, absolutamente essencial para o estrutu~ seja preciso suprimir a última parte"' "· ralismo, é o princípio da casa vazia, o famoso Nesse texto absolutamente fuhdamental grau zero da língua, do inconsciente. Deleuze em que apre{i'enta o P!'radigma estrutural. De·

bido, faço meia volta e vou para Lyon exercer a estranha função de professor de moral. Vou morar lá. Se bem que, apesar de toda minha vontade, eu não poderia dar aula na Escola. Fico feliz que você e alunos da Escola tenham desejado me ter lá, diga a eles. Acredite na mi· 22 nha inteira amizade" . Althusser envia a Deleuze suas obras e as de seu grupo em 1965. A

assinala que ele sempre falta em seu lugar, e que é essa falta que suscita o movimento: "Não 28 há estruturalismo sem esse grau zeró' • Encontra-se em Lógica do Sentido a ambivalência em tace do estruturalismo já pre~ sente em sua tese, essa mistura de fascinação por um método que permite, em torno de um ponto zero, de uma casa vazia, fazer circular o sentido em um plano de superflcie. Deleuze ainda vê a estrutura como o equivalente de uma máquina. O texto de Guattari "Máquina e estrutura" deixará Deleuze apaixonado, tanto mais quanto este último inclusive avança no plano da crítica do estruturalismo. De fato, Deleuze afirma ainda em 1969: "A estrutura é verdadeiramente uma máquina de 29 produzir o sentido incorporal" • Esses estudos linguísticos, antropológicos, psicanalíticos que giram em torno de uma casa vazia, que pode ser tanto o lugar da morte, o valor zero, o significante flutuante, põem em questão o esquema de causalidade, pois a causa está ausente de seu lugar. Deleuze proclama então que "a importância do estruturalismo em filosofia, e para todo o pensamento, se mede nisso: que ele deSloca as fronteiras":JO. "É, portanto, uma satisfação que hoje ressoe a boa nova: o sentido não é jamais princípio ou origem, é produto. Ele não deve ser descoberto, restaurado nem reempregado, mas deve ser produzido por novos maquinários. Ele não pertence a nenhuma altura, não está em nenhuma profundeza, 31 mas é efeito de superfície'' . Deleuze vê nessa orientação uma libertação da transcendênM cia, uma valorização do plano da imanência, e identifica nela o possível maquinário produtor de sentido que ele deseja ver se desenvolver em uma proliferação livre para fazer emergir as singularidade pré~ individuais. Em Lógica do Sentido, Deleuze segue bem de perto os trabalhos estruturalistas aos quais consagra vários capítulos qualificados de séries, mas ao mesmo tempo prossegue sua própria elaboração metafísica. Ele se apoia particular· mente nos trabalhos de Benveniste para distin· guir as três formas que pode assumir uma pro~ posição: a relação de designação de uma coisa

193

individual que é o díctico'', em segundo lugar a manifestação e em terceiro lugar somente a significação. A esses três níveis explorados pelos linguistas, Deleuze acrescenta uma quarta dimensão que é a do sentido e que os estoicos descobriram com a questão do acontecimento: "O sentido é o exprimido da proposição, esse incorporai na superfície das coisas, entidade complexa irredutível, acontecimento puro que 32 insiste ou subsiste na proposição" • Na abordagem sugerida por Deleuze, que se inspira em parte nos trabalhos dos linguistas, conectando-os à sua própria orientação Dlosófica, o signo e o sentido não são mais dois estratos diferentes ou dois horizontes alter~ nativos. Ao contrário, estão indissoluvelmente ligados: "Como diz Bergson, não se vai do sentido às imagens, e das imagens ao sentido: 33 instala-se 'de pronto' no sentido" . Encontra-se mergulhado em um já·lá do sentido ao qual se regride em uma proliferação sem limites evidenciada tanto por Frege no plano da lógica quanto por Carroll no plano da escrita literária. Aquilo a que Deleuze reage de maneira crítica é a alternativa diante da qual se apresenta, de um lado, a via de uma regressão indefinida e, de outro, a de uma duplicação estéril, de uma fixação definitiva do sentido: "o um ou o outro''34, que prevalece ainda com a fenomenologia husserliana. O atributo do acontecimento puro é justamente superar todos os dualismos e se abrir para o horizonte dos objetos impos~ síveis, dos paradoxos que chegam ao absurdo e aos oximoros do tipo quadrado redondo, matéria in extensa, montanha sem vale ... "que são 'objetos sem pátria', no exterior do ser... Eles são o 'extra~ser', puros acontecimentos ideais 35 inefetuáveis em estados de coisas" . Afirmando o caráter paradoxal da regressão, Deleuze indica que a força só pode ser serial. Ela reto· ma a distinção estrutural entre significante e significado, mas atribui a eles outra acepção,

"N. de R.T.: No original. déictique. Dêítico ou díctico. Diz-se de todo elemento linguístico que faz referência à situção na qual ele é enunciado. por exemplo, pronome, tempo verba!, demonstrativo. advérbio, etc.

194

Dosse

chamando de significante todo signo desde

que comporte um elemento de sentido e de significado o que serve de correlato a esse as~ pecto de sentido: "Portanto, o que é significado 36 jamais é o próprio sentido" , mas o conceito. Aquilo em que Deleuze insiste, sempre com a preocupação de afirmar uma filosofia do paradoxo, do duplo, da tensão mantida no oximoro, é a copresença do sentido e do não senti~ do, que não estão em uma relação de exclusão do falso pelo verdadeiro. Deleuze opera uma inversão do "panlinguismo" de sua época. No momento em que todo mundo proclama que tudo é estruturado como uma linguagem, que tudo parte da linguagem, Deleuze atribui uma importância menor à linguagem do que àquilo que prevalece segundo ele, o acontecimento: "São os acontecimentos que tornam a linguagem possível"". O começo não é da ordem do sistema linguístico, mas do ato da palavra, e nisso Deleuze se distancia do saussurismo domin~nte por essa reabilitação da palavra como significante: "Começa-se sempre na ordem da 38 palavra" • O acontecimento se torna com Deleuze o horizonte transcendental da linguagem, suas condições de possibilidade.

Inverter o estruturalismo pelas ciências humanas O "agenciamento Deleuze-Guattari" que se estabelece ao longo do ano de 1969 radicaliza a postura crítica de um e de outro, mas assume uma feição nitidamente polêmica, desdobrando-se um com o outro no início dos anos de 1970. As primeiras palavras de O Anti-Édipo são significativas de uma recusa de qualquer enclausuramento estrutural, ainda que essas proposições façam signo em face da ausência de pertinências do sujeito, do "Eu", em proveito de lógicas maquínicas polimorfas. Afirmam o primado absoluto das multiplicidades em relação ao binarismo estruturaL O Anti-Édipo é concebido como uma verdadeira máquina de guerra conva o estruturalismo e contribui fortemente p&fa aceler-ar a desconstrução em

Cilles Deleuze & Félix Guattarí

curso do paradigma desde 1967 e 1968. Funciona como máquina infernal, fazendo explodir de dentro o paradigma estruturalista. Ao formalismo dos estudos estruturais, De~ leuze e Guattari opõem, por sua própria escrita comum, o contraponto da experimentação. O projeto deles é opor as ciências sociais ao paradigma estrutural, apoiando-se principalmente em uma releitura dos avanços realizados pela antropologia, semiótica, psicanálise, história, quando essas disciplinas emprestam caminhos transversais em relação ao esquema estrutural para desfazer este último. Trata-se de praticar a dois o método de "perversão" elaborado por Deleuze para sair do enclausura- ' menta estrutural. Segundo Deleuze e Guattari, as máquinas são de todas as ordens: técnicas, cibernéticas, de guerra, econômicas, significantes, desejantes, institucionais, mas podem ser também literárias. É uma verdadeira senha que se propõe destronar a outra senha da época, que é a noção de estrutura. Ela se torna de tal modo central que, quando Deleuze publica uma nova edição de seu Proust e os Signos em 1970, acrescenta uma segunda parte intitulada 'A máquina literária''. Ela inclui uma descrição das "três máquinas" de Em Busca do Tempo Perdido. O Anti-Édipo começa com um capítulo consagrado às máquinas desejantes, noção que será abandonada por seus autores em Mil Platôs, alguns anos mais tarde, com toda cer~ teza porque esse conceito terá feito seu ofício de desestabilizar a noção de estrutura que não é mais necessário questionar em 1980, quando o paradigma estruturalista não passa de uma lembrança.

Inverter a semiologia estrutural O adversário designado de O Anti-Édipo a psicanálise "estruturalizada" por Lacan - se apoia na concepção saussuriana da língua. De~ leuze e Guattari empreendem, portanto, uma crítica violenta da teoria saussuriana do signo. Chegam a denunciar ali "a sombra do despotis-

mo oriental. Saussure insiste sobre isso: que o arbitrário da língua funda sua soberania como uma servidão ou uma escravidão generaliza~ 39 da a que seria submetida a 'massà" . Por outro lado, a relação significante/signiflcado em Saussure é dissimétrica, em proveito de uma prevalência absoluta do significante. O que antes era apresentado como positivo, a casa vazia que opera por dobragens sucessivas de todas as ordens, é visto agora como tributário de uma concepção do campo linguístico definido por Saussure como uma transcendência girando em torno de um significante mestre. A essa linguística do signiflcante, Deleuze e Guattari opõem uma linguística bem diferente, a dos fluxos. Sobre esse ponto, a contribuição de Guattari é manifesta, como atestam suas notas preparatórias à escrita de O Anti-Édipo'10• De fato Hjelmslev, inventor do que denomina "glossemática", iniciou uma linguística ainda mais formal que a de Saussure. O uso que Deleuze e Guattari fazem dela tem pouco a ver com a glossemática, e o sentido das noções de Hjelmslev é ligeiramente alterado. O verdadeiro objetivo é se servir dessa leitura como uma máquina de guerra antissaussuriana para dar lugar a uma linguística verdadeiramente pragmática. Para isso, eles encontram em Hjelmslev o advento de um verdadeiro plano de imanência que corresponde ao seu desejo de uma linguística "álgebra imanente das línguas"' 1 O que Deleuze e Guattari retomam prin~ cipalmente desse linguista, interpretando-o à sua maneira, é a distinção entre o plano da expressão e o do conteúdo, que funcionam de maneira totalmente reversível: "Dada sua definição funcional, é impossível sustentar que seja legítimo chamar uma dessas grandezas de 42 expressão e a outra de conteúdo'' • Esse distinção está ligada a estratos, a planos de consistência que quebram o binarismo saussuriano. Haveria de fato apenas um plano de consistência se desdobrando em múltiplos estratos. Hjelmslev teria o mérito de libertar o estudo da língua de seus jugos, de abrir ao máximo para a teoria do signo que tem vocação para englobar tudo. Guattari vê ainda nos Ensaios

195

de Hjelmslev os prolegômenos de sua teoria do agente coletivo da enunciação, e com isso a superação possível da dicotomia saussuriana entre a língua e a palavra. Hjelmslev é envolvido assim na construção da máquina semi ótica criada por Deleuze e Guattari contra a semio~ logia estrutural, o que é manifesto no próprio texto de O Anti-Édipo: ''A linguística de Hjelmslev opõe-se profundamente ao projeto saussuriano e pós-saussuriano, porque abandona qualquer referência privilegiada, porque descreve um campo puro de imanência algébrica que não se deixa mais sobrevoar por nenhu~ ma instância transcendente, nem mesmo em 43 retirada" • Essa teoria imanente da linguagem permite fazer escoar forma e substância, conteúdo e expressão, "seguindo fluxos de desejo, e corta esses fluxos, seguindo pontos-signos 44 ou figuras-esquizes" • Entre 1972 e 1980, data da publicação de Mil Platôs, Deleuze e Guattari descobrem um outro teórico da língua para opor a Saussure, o semiótico Charles Sanders Peirce, fundador do pragmatismo, e que definiu o pensamento 45 como signo • Segundo Peirce, o pensamento se desdobra a partir de um triângulo semiótico (signo-objeto-interpretante), que remete a um diálogo indefinido das interpretações. Peirce realiza com isso um descentramento da linbruística, que só figura agora como subconjunto parcial de uma semiologia geral, e submete as regras da linguagem ao seu uso. O sentido se revela sob sua função prática. Sua outra grande inversão consiste em não mais pensar o mundo como físico, mas como fundamentalmente semiótico. De sua parte, Deleuze e Guattari re~ cusam a alternativa entre físico e semiótico. Em Mil Platôs, a orientação pragmática é particularmente afirmada como alternativa ao saussurismo. Desta vez, a palavra prevalece como expressão de um fazer, e o enunciado, enquanto unidade elementar da linguagem, é 46 concebido como uma "palavra de ordem" • A linguagem se apresenta como essencialmente informativa, ainda que seja em primeiro lugar a acima de tudo performativa. Deleuze e Guattari apoiam-se firmemente nas teses de John

196

Dosse 47

Austin a propósito das relações intrínsecas entre ação e palavra nos performativoS, como também nos trabalhos de Oswald Ducrot.

Essa crítica radical do estruturalismo linguístico é encontrada apenas em escritos de Guattari ao longo dos anos 1970. Em uma aula dada em 1973 a estudantes da Columbia Uni· versity em Paris, no "Reed HalJ", por incumbên· cia de Sylvere Lotringer, Guattari desenvolve o tema de uma micropolítica do desejo. Desde suas primeiras palavras, ataca "as análises estruturalistas [que] tentam mascarar a dualida· de fundamental entre o conteúdo e a expressão, dando atenção apenas à expressão, pondo en-

tre parênteses o conteúdo'''18• Ele considera que antes de ser estruturados por regras da lingua-

gem, os conteúdos são estruturados por uma

:'""''";; ~:

multiplicidade de níveis micropolíticos. Nessa aula de 1973, Guattari engloba à sua crítica as teses althusserianas: "Para nós, não há por que se apegar à oposição entre a ciência e a ideolo~ gia, sobretudo da maneira obsessiva dos althus· serianos ... Por isso recusaremos aqui a validade de um corte epistemológico radical entre um campo conceitual de pura cientificidade e uma 49 ideologia puramente ilusória e mistificadora'' • Diante de uma plateia de economistas, Guattari intervém na universidade Dauphine em um colóquio organizado pelo !RIS e nessa ocasião compara o estruturalismo a uma doença: "Não há razão para que as ciências econômicas escapem da doença que, há certo tempo, devasta as ciências da linguagem, a antropologia, a psicanálise, etc.: nomeei o 50 estruturalismo" . Um pouco mais tarde, em 1979, ataca a fórmula de Chomsky segundo a qual o "vazadouro da pragmática" recolhe tudo o que é insignificante. O próprio título de seu capítulo, "Sair da língua', assinala seu desejo de propor uma linha de fuga em relação ao panlin· guismo da época, com a intenção de reconectar o estudo da língua às outras facetas do universo social. A esse respeito, ele denuncia uma linguística que é dotada de um modelo episte· mológico, o das ciências exatas, e que as imitou para se legitimar. pomo ciência. O efeito dessa pretensão terá sfllo o de virar as costas para os

Gil!es Deleuze & Félix Cuattari

traços contingentes sócio-históricos: "É como se o socius tivesse de se dobrar à linguagem!"51 • Por força desse corte e dessa depuração, os lin52 guistas se tornaram "imperialistas"! . Não há língua em si, martela Guattari, que se apoia nos trabalhos dos historiadores, o que será retomado em Mil PLatôs, para mostrar que a língua em seu processo de homogeneização assume um caráter essencialmente político 53. A maior ou menor estabilização de uma língua depende, portanto, de equilíbrios de poder e pressupõe sua historicização. Os agenciamentos estão em primeiro: "Os agenciamentos de fluxos e de códigos são primeiros em relação às diferenciações de forma e de estrutura''54 • Em 1979, Guattari já se proclama partidário de uma pragmática geral incluindo diversas semiologias, temática retomada em Mil Platôs que também enfatiza a dimensão política do funcionamento das línguas. Embora Deleuze e Guattari estabeleçam uma correlação com um socius particular, essas semióticas não se identificam com um momento histórico particular, e não se trata de opor a um estruturalismo estático, puramente sincrónico, um conlinuum evolucionista, mas, ao contrário, de valorizar o primado das misturas, das hibridades. São os agenciamentos que constituem as condições mesmas de inteligibilidade desses regimes de signos. O que faz pas· sar de um sistema de signos a outro é sempre o acontecimento fundador que corta os fluxos, põe em marcha em caminhos não traçados. Assim, em epígrafe nesse "quinto platõ', encontram-se fixadas duas datas: 587 a.C. e 70 d.C., as duas destruições do Templo que obrigam os judeus a partir. O profeta judeu encarna então a passagem imposta pela destruição do Templo do pensamento à ação, incitando à marcha o povo israelita. Ele se torna o personagem epônimo de um caso concreto de análise de semiótica transformacional capaz de passar de uma semi ótica significante a uma semiótica de subjetivação. A pragmática para Deleuze e Guat· tari não é um simples suplemento anímico da linguística, "mas, ao contrário, o elemento de base do qual depende todo o resto" 55 •

A esquizoanálise contra a psicanálise A máquina desejante deve abrir caminho nas estruturas para fazer explodir o significante mestre defendido pelos lacanianos. A interpretação psicanalítica se desdobra a partir da noção de falta primeira, de ausência, enquanto os cortes subjetivos, verdadeiros cortes de fluxos, partem, ao contrário, segundo os autores, de um excedente. Epistemologicamente ao lado de seu objeto, a psicanálise é também estigmatizada como esíbrço de normalização, de repressão, prosseguindo a obra de confinamento e de retraimento em si inaugurada pela psiquiatria no século XJX: "Ao invés de participar de um esforço de libertação efetiva, a psicanálise participa 56 da obra de repressão burguesa mais geral" • A psicanálise seria, na realidade, apenas um familialismo que se dotou de um discurso pseudocientífico. A máquina desejante deve, quanto a isso, mandar pelos ares o jugo edipia· no para melhor libertar as forças produtivas do inconsciente e esquizofrenizá-las. Ao lado dos desenvolvimentos argumentativos opostos às teses psicanalíticas, encontram-se em textos dos dois autores palavras de ordem tiradas do movimento de Maio de 68 do tipo: "Somos to· dos esquizofrênicos[ Somos todos perversos! Somos todos libidos viscosas demais ou flui57 das demais" • A conversão constante pelos analistas de toda manifestação inconsciente em Édipo mostra que a psicanálise traz em si uma metafísica que deve sofrer uma crítica materialista. Promotores de um método de disjunção conjuntiva, nossos autores denunciam na prática psicanalítica o uso sistemático de disjunções exclusivas, do ''ou ... , ou .. :', que ignora totalmente o esquizofrênico, que o torna estranho ao discurso freudiano. A esquizoanálise pretende reconectar o inconsciente ao social e ao político. A grade de leitura edipiana decorreria ao mesmo tempo de uma forma de reducionismo mecanicista e de um procedimento de simples aplicação. A aparelhagem estrutural do lacanismo teria de fato como função recalcar o desejo, fazer

197

renunciar a ele e assim aperfeiçoar no plano terapêutico a obra do aparelho de repressão: "Estendendo-lhe o espelho deformante do in· cesto (veja, era isso que você queria?) se deixa o desejo envergonhado, atordoado, metido em uma situação sem saída, e se o convence facil58 mente a renunciar a 'si mesmd" • Pôr novamente o desejo em movimento, torná-lo produtivo é a função primeira da máquina desejante, que deve substituir a estrutura edipiana confinante. É preciso ainda desfazer a unidade estrutural postulada da máquina. A diferença situa-se no nível das máquinas molares e das máquinas moleculares, e o essencial é que o desejo seja da ordem ela produção, quer esta se efetue na escala micro ou macro. Entretanto, a unidade estrutural em torno da teoria da falta impõe um conjunto molar: "É essa a operação estrutural: ela dispõe 59 a falta no conjunto molar" . Essa polaridade entre o molar e o molecular é introduzida por Guattari e vem essencialmente ele sua prática no campo da psicoterapia institucional em La Borde. É de início um meio de desmontar as lógicas molares de estratificação, de burocratização e de rotinização das organizações, liberando a cada momento os fluxos moleculares e suas intensidades capazes de enfraquecer os códigos do polo molar: "A distinção do macro e do micro é muito importante, mas talvez ela pertença mais a Guattari do que a mim. Nlinha é mais a distinção de duas multiplicidades. Essa é es· 60 sendal para mim" • Guattarl sugere a Deleuze opor a alteridade molecular e a alteridade mo· lar à alteridade imaginária de Lacan, que reali· zou "uma Hnguistização de conjuntos molares, recusa do genetismo habitual. Tudo é condu· zido a um estruturalismo com base no modelo linguístico. Tem-se uma alteridade absoluta, estrutural, linguística e sem garantia"61 • Embora Lacan tenha o enorme mérito de descobrir com o objeto a algo da ordem do molecular, que enquanto objeto parcial sempre escapa, excede a estrutura, ele permanece prisioneiro desta última. Definindo-se como um procedimento materialista, a esquizoanálise

i

I I

I

198

Gilles Deleuze & Félix Guattari

Dosse

pretende, ao contrário, opor aos jogos endógenos da estrutura a intervenção significante de um de fora. A esquizoanálise apresenta~se antes de tudo como defensora de um modo de experimentação. Como um "mecânico, um micromecânico''62, o que se precisa captar em cada um não é um segredo profundamente enterrado, mas máquinas desejantes que funcionam de maneira singular com seus rateios, suas ace-

lerações, seus cortes de fluxo, seus devires: "Não são as linhas de pressão do inconsciente que 63 contam, ao contrário, são as linhas de fuga'' • Definindo o inconsciente como uma multiplicidade de intensidades e de excessos, Deleuze e Guattari põem em circulação novamente o que tinha sido o recalcado do estruturalismo. Nesse plano, pode-se considerar, com Joel Birman, que a clínica defendida por Deleuze e Guattari visa reintroduzir a problemática económica da metapsicologia freudiana, sua parte pulsional abandonada pelo lacanismo. Opostas frontalmente à concepção formalista, puramente simbólica de um inconsciente que funciona como uma estrutura segundo o modelo linguístico, Deleuze e Guattari "afirmaram em O Anti-Édipo que o inconsciente é atravessado de um extremo ao outro pela pulsão, ou, em outras palavras, que não poderia existir inconsciente sem intensidades"64. A máquina desejante recoloca no circuito a pulsão com seus excessos, sua mobilidade e suas rupturas, suas capacidades disjuntivas. A esquizofrenia, nesse quadro, oferece o duplo interesse de demonstrar a incapacidade do discurso psicanalítico, mesmo estruturalizado, como seu Édipo ao quadrado, de descobrir e de cuidar da patologia. Mas o esquizofrênico tem também o interesse de encarnar essa figura da impessoalidade singular que buscam Deleuze e Guattari para opô-la ao mesmo tempo à estrutura dessingularizada e ao personalismo.

Uma antropologia política contra a antropologia estrutural A relação com Lévi-Strauss é nitidamente menos polêMica do .que com Lacan em O

Anti-Édipo, cujo alvo principal é a prática psicanalítica. Contudo, tomam-se distâncias evidentes da antropologia estrutural. Deleuze e Guattari apoiam-se em Edmund Leach, para quem a ausência de estrutura caracteriza todo um conjunto de dados empíricos diretamente observados - o que não significa, em Leach; que não exista estrutura, mas somente que a estrutura é princípio de seu próprio desequilíbrio. Deleuze e Guattari recusam assim a ideia de sociedades frias, de sociedades primitivas sem história, fundadas na simples reprodução do mesmo: ''A ideia de que as sociedades primitivas são sem história, dominadas por arquétipos e sua repetição, é particularmen65 te fraca e inadequadá' . Embora Lévi-Strauss não seja tido como responsável por essa concepção, foi ele quem dividiu as civilizações em sociedades quentes, que funcionam sobre o modelo da termodinâmica, e sociedades frias, com funcionamento de relógio, mecânico, protegendo-se pela repetição de qualquer elemento aleatório que possa provocar mudança. Deleuze e Guattari pretendem também inverter a demonstração clássica de Lévi-Strauss, segundo o qual a universalidade da troca de mulheres estaria ligada à vontade de evitar o fechamento na sociedade em si mesma: "Longe de ser a extensão de um sistema inicialmente fechado, a abertura é primeira, fundada na heterogeneidade de elementos que compõem as prestações, 66 e compensam o desequilíbrio deslocando-0' • Deleuze e Guattari contestam a lei universal descoberta por Lévi-Strauss da proibição do incesto que se encontraria como lei intangível de toda sociedade em qualquer latitude. Eles afirmam que a própria ideia dessa proibição não pode ser pertinente, pois "o incesto não existe" 67 em inúmeras sociedades primitivas • Deleuze e Guattari se apoiam nas pesquisas de Meyer Fortes sobre as lógicas territoriais que se constata serem primeiras em relação às trocas de mulheres: "O problema não é o da circulação de mulheres ... Uma mulher circula por ela mesma. Não se dispõe dela, mas os direitos jurídicos sobre a progenitura são fixados

em proveito de uma pessoa determinada"Nl. Portanto, a terra, com suas segmentaridades territoriais, é primeira em relação às trocas matrimoniais e às estruturas do parentesco. Os sistemas de alianças e as regras de parentesco são relegados ao segundo plano em relação às codificações territoriais do socius. Ao contrário da tese lévi-straussiana, Deleuze e Guattari afirmam: "Um sistema de parentesco não é uma estrutura, mas uma prática, uma práxis, 69 um procedimento e mesmo uma estratégia'' . A própria ideia de fechamento potencial de um sistema de parentesco resulta do erro de perspectiva que consiste em separar as práticas matrimoniais de seu substrato econômico e político. Pierre Clastres mostrou a propósito dos índios guayakis que não existem nômades puros, pois há sempre acampamento para estocar, mesmo que em pequenas quantidades, 10 para se alimentar, para se casar, etc.' • A crítica de ordem epistemológica que Deleuze e Guattari dirigem aos defensores da antropologia estrutural. assim como a toda semiologia estrutural, é a de privilegiar a esfera da troca, da circulação, em detrimento da produção e da reprodução sociaL Entretanto, para eles, também aqui, a máquina se opõe à estrutura, pois ela é seu elo duro: "Uma estrutura mole jamais funcionaria, nem faria circular, sem o elemen71 to duro maquínico que preside as inscrições" . Todas as atividades percorrem o vivido por segmentá-lo espacial ou socialmente, combinando tipos de segmentaridades lineares, binárias, circulares. Contudo, foram os africanistas não estruturalistas como Meyer Fortes, Evans-Pritchard e alguns outros que conseguiram mostrar como o sistema político das sociedades primitivas sem Estado foi capaz de incorporar os sistemas e as segmentaridades territoriais, apoiando-se e apropriando-se das relações de parentesco segundo um sistema híbrido e flexível. Deleuze e Guattari identificam uma binaridade em ação, mas opõem as sociedades primitivas de segmentaridade flexível às sociedades modernas de segmentaridade dura. Evocam, para sustentar sua tese, a reforma na Grécia antiga de Clístenes, o Ateniense, que

199

construiu um espaço político da cidadania so~ brecodificando os segmentos linhageiros a fim de chegar a um espaço homogêneo. Esses dois tipos de segmentaridades estão emaranhados, e assim se podem identificar flexibilidades no próprio cerne dos sistemas mais burocráticos 72 - como mostrou Kafka • Ao contrário, observam~se também núcleos de arborificação, de endurecimento no interior das sociedades primitivas. Essas travessias de segmentaridade são o atributo de toda sociedade ou de todo indivíduo e fundam o caráter dominante do político: "Tudo é político, mas toda política é ao mesmo tempo 73 macropolftica e micropolftica" . A micropolítica que resulta dessas observações e desse primado atribWdo à dimensão do político se impõe como noção essencial com a publicação de Mil Platôs, onde ela substitui o conceito de esquizoanálise, funcionando como seu equivalente. À antropologia estrutural, Deleuze e Guattari opõem em O Anti-Édipo toda uma antropologia histórica e política que se desdobra segundo a bipolaridade entre a lógica dos fluxos de decodificação e a dos processos de recodificação. Se o estruturalismo não é o bom procedimento para estudar as sociedades primitivas, o funcionalismo não se sai melhor quando se pergunta para que serve tal ou qual instituição, e acredita encontrar o sentido na função. Contudo, credita-se aos etnólogos uma vantagem em relação aos psicanalistas que permaneceram na questão de saber o que isso quer dizer. A esquizoanálise substitui essas falsas questões por uma atenção aos usos: 74 "Como isso funciona é a única questão" • É isso o que colocam Deleuze e Guattari e que os leva a diferenciar três tipos de sociedades - Selvagens, Bárbaros e Civilizados -, segundo os graus de desterritorialização dos fluxos. Eles constroem, portanto, uma verdadeira antropologia política, na qual se atribui um papel motor a esse processo ao mesmo tempo progressivo e descontínuo de decodificação, de falha dos códigos e de liberação dos fluxos. A cada etapa, as estruturas estatais centrais, despóticas ou feudais, se mostram incapazes de resistir às forças de decodificação

200

,,

"""'

{~

~:

..

·'j'

'""""

François Dosse

que subordinam as formas institucionais estatais para subjugá-las. Pouco a pouco, os fluxos de todas as ordens impõem suas leis: "Fluxos de propriedades que são vendidas, fluxos de dinheiro que circula, fluxos de produção e 75 de meios de produção" • A característica da máquina progressista será de ter sido capaz de conectar todos esses fluxos decodificados, de fazê-los jogar juntos em uma mesma partição para constituir sistema. Essa restituição da história da humanidade não se apresenta absolutamente como uma nova teleologia, na medida em que é animada pela contingência de acontecimentos que faz com que os devires sociais se bifurquem em um ou outro sentido. "Seguramente, nem o capitalismo, nem arevolução, nem a esquizofrenia passam pelas vias 76 do significante" • O que define as civilizações é seu grau de codificação ou de decodificação dos fluxos. O que diferencia os fluxos capitalistas dos fluxos esquizofrênicos é que estes últimos permanecem bloqueados, pois o capitalismo recodlfica e impõe limites que não devem ser transpostos. A modernidade capitalista não se enganou com sua política do "grande confinamente!' analisada por Foucault. Se o capitalismo vê na esquizofrenia traços característicos de sua própria tendência a decodificar, a desterritorializar, vê nela também seu limite exterior, e não pode funcionar "com a condição de inibir essa 77 tendência" . Assim como toda sociedade que comporta essa parte de tensão entre os dois polos principais, que são a tendência à desterritorialização e à reterritorialização, o capitalismo permanece fundamentalmente ambivalente. Segundo Deleuze e Guattari, três máquinas sociais teriam então se sucedido, cada uma ten~ do sua dominante. A primeira, a dos selvagens, é a máquina territorial subjacente que tenta codificar os fluxos no corpo pleno da terra. Depois, a máquina imperial dos bárbaros sobrecodifica os fluxos no próprio corpo do déspota e de seu aparelho burocrático de poder. Finalmente, a máquina moderna, civilizada, capitalista, decodifica os fluxos e realiza a imanência. Exemplifica-se, assim, no plano concreto da realização histórica da h:Úmanid'!..de, o desdobramento

Gilles Deleuze & Félix Guattari

de uma teoria geral dos fluxos, das multiplicidades e do primado das máquinas produtivas

que recobraram uma dinâmica, uma axiomática, e que, portanto, romperam as amarras com as leituras puramente sincrônicas, estruturais, que valorizam os invariantes, as permanências, e remetem os acontecimentos à insignificância.

Notas L Félix GUATTARI, "Machine et structure", exposição de 1969, publicada na revista Change, n. 12, Seuil, 1972, reproduzida em PT, p. 240-248. 2. Gilles DELEUZE, DR, !968,p. 7. 3. Félix GUATTARI, "Machine et structure", PT, 2003, p. 24]. 4. Jbid., p. 243. 5. Ibid. 6. !bid. 7. Ibid., p. 244. 8. Ibid. 9. !bid. 10. lnslincts et institutions, textos escolhidos e apresentando por G. Deleuze, Classiques Hachette, Paris, 1953. 1!. Félix GUATTARI, "Machine et structure", PT, p. 248. 12. Ver François DOSSE, Histoire du structuralisme, tomo 2, ''L'institutionnalisation: la conquête de l'université", p. 173-182. 13. Gilles DELEUZE, DR, p. 247. 14. Ibid., p. 248. 15. Ibid., p. 263. 16. Ibid., p. 265. 17. Gilles Deleuze, aula na universidade de Paris-VIII, 19 de março de 1985, arquivos sono~ ros, BNF. !8. O "significado de potência", segundo Gustave Guillaume, é a dinâmica inconsciente que organiza a polissemia de um lexema dado. Portanto, a significação de uma palavra enquanto discurso é sempre um agenciamento ou um arranjo entre a palavra de língua (significado de potência) e o contexto. 19. Gilles Deleuze, aula na universidade de Paris-VIII, 19 de março de 1985, arquivos sonoros, BNF. 20. Pierre Blanchaud, entrevista com o autor.

21. Gilles DELEUZE, DR, p. 241. 22. Gilles Deleuze, carta a Louis AJthusser, acervo Althusser, arquivos IMEC, 29 de outubro de 1964. 23. Gllles Deleuze, carta a Louis i\Jthusser, acervo Althusser, arquivos IMEC, 28 de fevereiro de 1966. 24. Gilles DELEUZE, ''Ã ,quoi reconnalt-on le structuralisme?", em François CHÂTELET (sob a dir.), Histoire de la philosophie, tomo VIII: Le XX' Siecle, Hachette, Paris, 1972, p. 299-335; reproduzido em ID. p. 238-269. 25. Gilles Deleuze, carta a Louis Althusser, acervo Althusser, arquivos IMEC, 24 de fevereiro de 1968. 26. Gilles DELEUZE. ''Ã quoi reconnaít-on le structuralisme'?", reproduzido em ID, p. 247. 27. !bid., p. 250. 28. Ibid., p. 261. 29. Gilles DELEUZE, LS, p. 88. 30. Ibid., p. 89. 31. !bid., p. 89-90. 32. Ibid., p. 30. 33. Ibid., p. 4!. 34. Ibid., p. 45. 35. Ibid., p. 49. 36. Ibid., p. 5L 37. Ibid., p. 212. 38. !bid. 39. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARl, AD, p. 245. 40. Félix GUATTARI, Écrits pour L'Anti.. fEdipe, textos organizados por Stéphane NADAUD, op. cit. 4!. Louis HJELMSLEV, Prolégomútes à une théorie du langage, Minuit, Paris, 1968, p. 11 42. Ibid., p. 85. 43. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, AO, p. 288. 44. Ibid., p. 288. 45. Charles Sanclers PEIRCE, Écrits sur le signe, Seuil, Paris, 1978. 46. Gilles DELEUZE, Félix GUATTAR!, MP, 1980, p. 95. 47. john AUSTIN, Quand dire, c'est faire, Seuil, Paris, 1970. 48. Félix GUATTARl, "Pour une micro-politique du désir" (1975), Rlvl, p. 241.

49. Ibid., p. 274. 50. Félix GUATTARI, "La valeur, la monnaie, le symbole", RM, p. 291. 51. Félix GUATTARI, L'fnconscient machinique, ed. Recherches, 1979, p. 23 (doravante citado !neM). 52. fbid., p. 24. 53. Michel de CERTEAU, Dominique )ULIA, )acques REVEL, Une politique de La Langue, Gallimard, Paris, 1975. 54. Félix GUATTARI, !neM, p. 13. 55. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, MP. p. 184. 56. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, AO, p. 59. 57. Ibid., p. 80. 58. Ibid., p. !42. 59. !bid., p. 366. 60. Gilles Deleuze, "Réponse à une série de questions", nov. 1981, em Arnaud VILLANI, La Guêpe et l'Orchidée, op. cit., p. 131. 6!. Félix GUATTARI, Écrits pour L'Anti-CEdipe (14/1!/1970), op. cit., p. 185. 62. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, AO, p. 404. 63. Ibid., p. 405. 64. Joêl BIR.i\1AN, "Les signes et leurs exces. La clinique chez Deleuze", em Êric ALLIEZ (sob a dir.), Gilles De!euze. Une vie philosophique, op. cit., p. 485. 65. lbid., p. 177. 66. Gilles DELEUZE, Félíx GUATTARI, AO, p. 176. 67. Alfred ADLER, Michel CARTRY, "La Transgression et sa dérision", L'f!omme, julho, !97!. 68. Meyer FORTES, em "Recherches voltalques", 1967, p. 135-137. 69. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, AO, p. 173. 70. Pierre CLASTRES, Chronique des Jndiens Guayakis, Plon, Paris, 1972. 7!. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, AO, p. 222. 72. Ver capítulo ''A literatura 'menor' sob um olhar cruzado". 73. Gilles DELEUZE, Félix GUAT'l'ARI, MP. p. 260. 74. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, AD, p. 213. 75. Ibid., p. 265. 76. !bid., p. 29!. 77. Ibid., p. 292.

Gilles Deleuze & Félix Guattari

13 A literatura "menor" sob um olhar cruzado

No caminho não traçado que conduz Deleuze e Guattari de O Anti-Édipo a Mil Platôs entre 1972 e 1980, há uma etapa importante, umcponto forte, que é a publicação de seu Kajka, em 1975 1 O acontecimento dessa publicação não está ligado tanto à leitura muito original e renovadora de uma obra literária pela qual ambos têm grande admiração. É sobretudo a ocasião de experimentar conceitos-chave que em seguida poderão desdobrar e desenvolver em Mil Platôs. Por esse novo livro, De-

leuze e Guattari passam também da postura crítica, denunciativa, que é a de O Anti-Édipo em face da psicanálise, para uma posição afirmativa, a de seu próprio procedimento, singular, testando-a no confronto com uma grande obra literária.

"É um rizoma, uma toca" Kafka é, de fato, a ocasião da primeira ocorrência do conceito de "rizoma", que

se encontra já nas primeiras linhas da obra: "Como entrar na obra de Kafka? É·um rizoma, uma cova. O Castelo tem 'entradas múltiplas' das quais não se conhecem bem as leis de uso e de distribuição. O hotel de América tem inúmerâS portas"' principais e auxilia-

res ... Portanto, pode-se entrar por qualquer extremidade"'. Sabe-se que esse princípio da multiplicidade de entradas possíveis, de conexões em todos os pontos portadores das significações mais diversas, essa escolha do rizoma de brotação horizontal contra a árvore de ramificações hierárquicas dará lugar, em 1977, a uma publicação epônima3 e fornecerá a introdução de Mil Platôs. Se o conceito de rizoma é particularmente adequado para compreender o mundo labiríntico de Kafka, é também uma nova arma contra toda forma de interpretação psicanalítica. O adversário é claramente designado desde a primeira página da obra: "O princípio das entradas múltiplas impede sozinho a introdução do inimigo, o Significante, e as tentativas de interpretar uma obra que se propõe de fato apenas à experimentação"'1. Obra de transição entre dois maciços, Kajka vê igualmente emergir outro conceito essencial que vai irrigar os mil platôs por vir: o de agenciamento, que dá o nome a um ca5 pítulo da obra • Do mesmo modo que o conceito-chave de O Anti-Édipo era o de máquina desejante, Mil Platôs poderá ser lido, alguns anos mais tarde, como uma verdadeira teoria do agenciamento. A meio percurso, Kajka ainda utiliza bastante o conceito de máquina,

apresentando o próprio Kafka como uma máquina de escrita. Mas já se tem o início do deslocamento por vir. O agenciamento se torna a realização da máquina graças às conexões que possibilita. Os dois conceitos fundamentais da filosofia de Deleuze e Guattari, o agenciamento e o rizoma, têm origem, portanto, com essa leitura de Kafka, no confronto com a literatura como lugar mesmo da experimentação. Como de hábito, Deleuze toma com Guattari o caminho inverso de todas as análises, leituras e exegeses de especialistas da obra de Kafka. De fato, é comum na tradição literária apresentar essa obra como a própria expressão de um mundo desesperado, absurdo, confrontado com lógicas burocráticas, com a obsessão que leva a se chocar sem eficácia contra o muro da incompreensão. Entretanto, Deleuze e Guattari, bem ao contrário, apresentam um Kafka cômico, alegre, sempre do lado do desejo, confrontado com as lógicas infernais da máquina burocrática sob suas três formas - stalinlsta, nazista e liberal americana - em uma perspectiva crítica mais eficiente que muitas enunciações estritamente políticas. Além do estudo de caso sobre Kafka, a obra se apresenta como um manifesto contra toda forma de leitura arquetípica que visaria impor ao texto tal ou qual interpretação. O estudo a substitui pelo primado da experimentação. "Não acreditamos a não ser em uma experimentação de Kafka, sem interpretação nem sígnificância, mas somente protocolos de experiêncià'6. Na continuidade de O Anti-Édipo, o alvo é a redução psicanalítica. Sua interpretação do caso Kafka é reprovada de formaradical, não somente porque empobrece terrivelmente a abordagem da obra, mas porque se apoia em um contrassenso. Ela parte de fato de um documento atestado, a carta dirigida ao seu pai em 1919, na qual Kafka o acusa de todos os seus males, de sua inaptidão para a vida assim como para a escrita, responsabilizando-o por seus fracassos e parecendo "edipianizar" toda sua relação com o mundo. Contudo, para Deleuze e Guattari, o que Kafka significou nessa carta é outra coisa. Essa hipertrofia

203

do Édipo é para ele um meio de se esquivar dele, de escapar. Ele tenta realizar, portanto, o oposto do que acreditam os psicanalistas: "Desterritorializar o Édipo no mundo, em vez 7 de se reterritoria!izar no Édipo e na família" • Os freudianos teriam passado à margem da ironia subjacente a essa hipertrofia voluntária do Édipo. Assim como em O Anti-Édipo, a grade de leitura é acusada de valorizar demais o peso do Significante e de negligenciar a eficácia da máquina, aqui literária. Deleuze e Guattari a substituem por uma teoria política da literatura articulada a uma concepção da escrita impessoal, resultante de um agenciamento coletivo. Essa abordagem da criação transforma radicalmente o estatuto da escrita literária que, por sua capacidade de afetar, está ligada a uma sintomatologia, a uma verdadeira captura de forças transformadas em formas e que se 8 cantata ser uma clínica . Deleuze e Guattari situam-se resolutamente no campo da experimentação e se erguem contra a literatura que permanece nos limites estreitos dos cânones consagrados pela tradição, opondo a ela a força criativa de uma literatura dita "menor". A demonstração de Deleuze-Guattari apoia-se aqui em uma análise do contexto de um império dos Habsburg em plena deliquescência, que favorece os movimentos centrífugos, acentua os processos de desterritorialização e provoca um retorno às formas de reterritorialização. É essa tensão extrema que suscita um clima propício à eclosão de vozes singulares, não apenas a de Kafka, mas também as de seus contemporâneos, como Einstein, que leciona em Praga, o flsico Philipp Frank, os músicos dodecafônicos, os cineastas expressionistas, como Robert Wiene ou Fritz Lang, sem contar o Círculo Linguístico de Praga ou ainda Freud em Viena mesmo, com o nascimento da psicanálise. Nesse imenso império em declínio, onde o alemão é a língua oflcial, a do poder, da administração central, há muitas outras línguas dominadas. Kafka encontra~se no cruzamento de várias línguas: a língua tcheca enquanto natural de Praga, o alemão, que é a

204

Gi!les Deleuze & Félix Guattari

Fc;l nc·ni• Dosse

língua oficial do Império Austro-Húngaro, e o iídiche, enquanto judeu. Segundo Deleuze e Guattari, "uma literatura menor não é a de uma língua menor, mas a de uma minoria formada em uma língua 9 maior" . A língua menor é definida, portanto, por seu hibridismo no interior mesmo da língua maior. Assim, para Kafka, o alemão será sua língua de expressão literária, mas um alemão singular: "Kafka define nesse sentido o impasse que barra aos judeus de Praga o acesso à escrita e faz de sua literatura uma coisa impossível: impossibilidade de não escrever, impossibilidade de escrever em alemão, impossibilidade de escrever de outro modo'' 10• É preciso então, literalmente, exprimir sua alteridade, sua estranheza em relação à língua dominante: "Estar em sua própria língua como um estrangeiro; é a situação do Grande Nadador de Kafkà'"- Essa exterioridade do interno faz com que atuem no interior da escrita os dois processos que Deleuze e Guattari tefl)atizarão sobretudo em Mil Platôs, o da territorialiZação e o da desterritorialização: "É para os judeus de Praga o sentimento de uma distância irredutível com a territorialidade 12 primitiva tcheca" • A literatura menor, mais do que qualquer outra, caracteriza-se por sua essência política: "Cada problema individual é imediatamente conectado à políticà>l:{ e, nesse sentido, tal literatura não pode se dobrar às codificações restritivas do triângulo edipiano da psicanálise. Finalmente, a literatura menor não é própria de um sujeito de enunciação individual, mas tenta exprimir pela escrita- sem poder se erigir em porta-voz - a palavra do povo, de um povo sempre ausente. Essa literatura põe em obra agenciamentos coletivos de enunciação. É nessa literatura menor que Deleuze e Guattari encontram os recursos mais vivos, as forças mais eficazes suscetíveis de desestabilizar as convenções e os poderes constituídos. Embora a literatura menor assuma uma dimensão imediatamente contestatória, a relação menor/maior não depende apenas de uma dialética de tipo hegeliano, em que o menor teria vocação de ifJ.:.'Oerter 'o .,.maior. Ao contrário,

o menor se pensa em seu devir enquanto variação intensiva capaz de transformar o maior, mas seu devir só pode ser minoritário segundo a definição mesma que lhe dão Deleuze e Guattari: "O menor se sustenta da existência do maior do mesmo modo que o corpo sem ór4 gãos reclama o organismo"f • Com isso, Deleuze e Guattari escapam do dualismo a que o par maior/menor parece, no entanto, remeter naturalmente. Pode-se ver aí a marca do ensinamento de Canguilhem, que havia definido o "anômalo" como uma diferença constituinte entre o normal e o patológico que não remete tanto ao modelo de norma5 lidade, mas sim à expressão do insólitot • Da mesma maneira, Deleuze e Guattari tinham definido em O Anti-Édipo um terceiro termo entre o capitalismo e a esquizofrenia: o de uma linha de fuga esquizocriativa, simplesmente diferente segundo sua intensidade própria. Por esse par maior/menor, Deleuze e Guattari entendem finalmente "articular três níveis teó~ ricos: uma ontologia da potência vital e do devir, uma epistemologia da cultura envolvendo uma lógica da variação, e uma poesia política sob a aparência de uma teoria da dominação e 6 do devir~revolucionário'.t • Desde O Anti-Édipo, Deleuze e Guattari tinham iniciado um trabalho de recusa radical do saussurismo dominante que alimentava uma leitura binária, dualista da língua, pensa17 da como em princípio separada da palavra • Embora não tenham se apropriado ainda, o que será o caso em JWil Platôs, das contribuições da pragmática- a de Austin, Searle ou, na França, Oswald Ducrot -,já estão à espreita de tudo o que possa redistribuir as cartas, refazer o jogo na língua para restituir sua polifonia. É nessa perspectiva que Deleuze se aproxima de um linguista que leciona nos departamentos de psicologia e de inglês da universidade de Vincennes, Henri Gobard, do qual prefacia o 18 livro lançado em 1976 • Tendo já tomado conhecimento da obra quando escreve Kajka com Guattari, Deleuze se apoia no modelo de Gobard, onde encontra uma articulação possível dos fatores sociais com o funcionamento da língua.

Ao dualismo saussuriano, Gobard opõe uma tipologia que se organiza em torno de quatro funções da linguagem e distingue, o que Deleuze retém, uma língua vernacular, materna ou rural, que representa para Kafka a língua de sua comunidade territorial- o tcheco; uma segunda língua "veicular, de troca, de comér9 cio, de circulação, por excelência urbana"t , que tem como função arrancar do território, desterritorializar reterritorializando-a em suas funções econômicas - para Kafka, é o alemão. Um terceiro nívellinguístico é constituído pela língua "referencial, nacional e cultural, que opera uma recopilação ou uma reconstituição 20 do passado" . Nesse nível, a desterritorializa~ ção se transforma em reterritorialização cultural, e para Kafka se trata ainda do alemão, sobretudo o de Goethe. Finalmente, há a língua "mítica, que remete a uma terra espiritual, 2 religiosa ou mágicà' \ ligada a todas as funções precedentes por uma reterritorialização religiosa- o hebraico para o autor do Processo. Deleuze e Guattari tomam emprestada de outro linguista, Vidal Sephiha, sua defini22 ção muito ampla da noção de intensivo , que passa a ser todos "os elementos linguísticos, por mais variados que sejam, que exprimem tensões interiores de uma língua'm. Deleuze e Guattari identificam uma multiplicidade desses "tensores" (um termo tirado de )ean-François Lyotard) em Kafka. Como escreve o próprio Kafka em seu Diário: "Nenhuma palavra - ou quase - escrita por mim concorda com a outra, ouço as consoantes rangendo umas contra as outras com um ruído surdo de ferragem, e as vogais cantando como negras de 21 exposiçãd' ' ~'. Nessa linguagem que tende

'"N. de R. T.: No original et les voyelles çhanter comme des nêgres d'exposition. Dado que a frase anterior reporta-se à noção lioguístíca de "intensivo", !"eferindo-se às tensões internas da língua - e assim são, por exemplo, os prefixos extra ou hyper que reforçam uma noção já expressa-, diz-se também da expressão parler petit negre como de uma língua que é falada de maneira indevida, imprópria. Em uma tradução não literal poderia ler-se: e as vogais cantar/ soar [assim como uma] falácia em [uma] exposição/[ ao] expressar-se. Ou ainda: "e as vogais cantar em uma impropriedade que se expressa".

205

sempre aos extremos, o "proceder kafkiano" consiste em uma intensificação do alemão que despoja essa língua das significações da qual é portadora. A metáfora enquanto uma imagem representativa dá lugar então à metamorfose que é seu contrário, pois "não há mais sentido pró25 prio nem sentido figurado" . Assim, os devires-animais em Kafka não remetem a qualquer referente mitológico ou arquetípico, mas "correspondem somente a gradientes transpostos, 26 a zonas de intensidade liberadas" , Assim, se Gregório se torna uma barata em A metamorjàse, essa não é somente uma maneira de fugir de seu pai, mas de vencer lá onde seu pai fracassou para "fugir do gerente, do comércio e dos burocratas, para atingir essa região onde a voz não faz mais que zumbir'm. À analogia estrutural, Deleuze e Guattari opõem uma verdadeira teoria dos devires, que encontra vários exemplos na obra de Kafl
O acontecimento Kafka Guattari é acometido por uma verdadeira paixão por Kafka. Dado que o Diário deste último revela a impressão de viver como em um sono - "Ele levava muito em conta seus sonhos"29 -, Guattari prepara no início dos anos 1980 uma antologia dos "65 sonhos de Kafkà'. Sugere uma leitura que não seja de ordem psicanalítica, para trabalhar mais concretamente os pontos de singularidade que se encontram na expressão desses sonhos. Muitos anos depois do lançamento de Kafka, em 1982, Guattari manifesta a Jack Lang seu desejo de organizar alguma coisa por ocasião do centenário do nascimento do escritor. O ministro da Cultura ficou radiante: "Obrigado por seu bilhete a propósito de Kafk.a. Concordo. Você pode tomar a iniciativa? Se aceitar tomar a frente, eu ficaria feliz", res-

206

Cilles Deleuze & Félix Cuattari

Dosse

30

ponde-lhe Jack Lang • É criado um comitê de manifestações sobre Kafka, com um presidente de honra, Jorge Luis Borges, e um presidente executivo, Guattari, que vai se dedicar à orga~ nização de uma grande exposição no Centre Beaubourg. A exposição "Le Siêcle de Kafkà' se realiza de 7 de junho a 1Q de outubro de 1984, sob a responsabilidade do crítico de arte Yasha David e de Guattari. Guattari, que é seu idealizador, pretende fazer surgir como acontecimento a parte moderna de um Kafka do século XXI. Pretende fazer dessa exposição uma manifestação plural que reúna exposições temporárias, programas

em vídeo, peças de teatro, fllmes, conferências. Nos cadernos pessoais de Guattari, sente-se a preocupação meticulosa de evitar as instrumentalizações publicitárias e mundanas. A exposição deve ser uma resposta ao paradoxo de Kafka, que é de ser ao mesmo tempo um autor secreto, da intimidade, da solidão, e de ter dado origem a um qualificativo muito usado. Para restituir esse paradoxo, é preciso dar a ver e a ouvir todas as facetas do efeito Kafka: "O mais íntimo do efeito Kafka diz respeito também ao maior número. Esse é o desafio que 31 gostaríamos de assumir" • Guattari não mede esforços para o êxito dessa manifestação: "Ele convidou Jorge Luis Borges para fazer uma conferência sobre Kafka nesse contexto. Noite sublime durante a qual o Cego Vidente falou de sua descoberta dos textos de Kafka. Isso não impediu que a direção de Beaubourg se recusasse a pagar a viagem e a hospedagem de Borges! Foi Félix que pagou 32 então do seu bolso!" Guattari prevê também numerosas leituras e teatro com a participação da companhia de Jean-Luc Borg (Le théâtre par !e bas) e de Philippe Adrien, cujo encontro é decisivo: Adrien faz uma representação dos Sonhos, de Kafka, muito inspirada na leitura deleuzo-guattariana. Aliás, um pouco mais tarde, em 1• de março de 1988, Guattari convidará Philippe Adrien para intervir em seu seminário sobre o tema ''A improvisaçãO', que inspirou amplamente sua representação teatral de Sonhos.

É o dramaturgo Enzo Cormann que escreve os diálogos da peça encenada por Philippe

Adrien no Théâtre de la Tempête em 1984, resultado de vários meses de improvisação de 14 atores dirigidos por Adrien. Cormann conhece Gattari nessa ocasião. Philippe Adrien, então diretor do Théâtre des Quartiers de Ivry, coordena um estágio sobre o tratamento cênico dos sonhos de Kafka. Ele convida Cormann a se engajar da aventura na qualidade de escritor: "Durante os seis meses de elaboração, Félix vai regularmente ao teatro nos ver trabalhar'm. Ao mesmo tempo, François Pain, amigo de Guattari, prepara um filme baseado em Sonhos. Quando Cormann convida Guattari a jantar com toda a pequena trupe, faz um jogo de palavras involuntário: "Tu es là quand? ~·. pergunta ele. "Lacan? A gente saberia!"**, responde Guattari. Nasce entre os dois homens uma verdadeira cumplicidade. O sucesso de Sonhos já era esperado, e o tra34 balho recebe o prêmio da Crítica em 1985 • Em 1983, no momento mesmo do centenário, Guattari reaviva sua paixão por Kafka: "Eu 35 me apeguei a Kafkcl' • Recorda nessa ocasião que seu primeiro paciente, o primeiro esquizofrênico de quem cuidou em La Borde, era um jovem judeu que tinha se identificado totalmente com o autor de Sonhos. Guattari * N. de L A pergunta "Tu es là quand?" (Você vai Já quando?) produz o mesmo som que "Tu es Lacan'?" (Você é Lacan?). ""N. de R. T.: Na resposta à pergunta homofônica Tu es là quand? que pode ser ouvida corno Tu es Lacan?, Guattari responde com uma expressão ambígua: Ça se saurait. O vocábulo francês ça pode aqui, além do pronome demonstl·ativo neutro (isto, isso, aquilo), fazer referência à segun· da tópica da noção freudiana id que, sob o ponto de vista dinâmico do aparelho psíquico. é considerado como o primeiro reservatório da energia psíquica pulsional e Jibidinal. A resposta poderia ficar, então, com sentidos duplos: ''O id [ça] saberia isso [a respeito] dissd', ou,~ Isso [ça] se saberia". O vocábulo use" poderia, ainda, ser reflexivo em relação ao ça. Assim, O ça se saberia/saber-se-ia, o que. sem dúvida, ampliaria ainda mais o deciframento daresposta de Guattari na medida em que ele poderia também querer referir-se às teorias lacanianas a respeito do conceito de "identidade" na função do eu (sujeito).

207

se dedicou muito a esse paciente catatônico,

3. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, Rhizorne,

difícil. emparedado no seu silêncio, e o tirou de sua psicose fazendo-o escrever. O paciente escrevia sobre Kafka: "A esquizofrenia de meu paciente, meu próprio processo esquizofrênico e Kafka. Tudo isso se comunica ainda em 36 uma relação de impressãd' • Encontram-se nas notas manuscritas de Guattari muitas análises sobre este ou aquele aspecto da obra de Kafka. Ele testa assim a pertinência da noção de intensidade e de "blocos de infância" no primeiro capítulo do Castelo, observando que o castelo não é apreendido em uma peça única, mas por toques sucessivos. Sucedem-se, portanto, diversos tipos de regimes de intensidade que não permitem reduzir a leitura ao triângulo edipiano, com alguns elementos intensivos presentes em toda a obra de Kafka, como "a cabeça baixa, como forma de conteúdo. e o retrato, como forma de expressão'm. Em uma carta a Milena, Kafka lhe relata seu terror de infância, a de um bloco de lembranças ligadas que o perseguiu durante toda a descrição da chegada ao castelo: é a chegada à escola, garoto, passando diante dos balcões ensanguentados do açougueiro, que transformava a escola em objeto de terror. Em outro lugar, em suas reflexões sobre A Metamorfose, Guattari comenta o caráter inacabado das obras de Kafka: "É como se Kafka estivesse sempre querendo iniciar um retorno a uma Ítaca edipiana, mas nunca consegue ... O edipismo de Kafka não resiste à sua máquina literária. Ele não chega a sobrecodificar suas produções. Salvo, talvez, em A Metamorfose ... Uma carga esquizofrênica faz explodir o compromisso edipiano. O pai encontra coragem de jogar a maçã em Gregório; ele o reedipianiza pela violência. Símbolo talvez da queda da 38 maçã, do pecado original" •

N:linuit, Paris, 1977; ver capítulo "1977, ano de todos os combates".

Notas 1. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, Kajka. Pour une littérature mineure. N:linuit, Paris, 1975 (doravante citado K). 2. Jbid., p. 7.

4. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, K, p. 7. 5. Ibid., p.l45-157.

6. Jbid., p. 14. 7. Jbid., p. 19.

8. Gilles DELEUZE. CC. 9. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, K, p. 29. 10. Ibid., p. 29, referência à carta de Kafka a Brod, junho de 1921, Correspondance, p. 394. !1. Jbid., p. 48. 12. !bid., p. 30. 13. lbid., p. 30. 14. Anne SAUVAGNARGUES, Deleuze et /'art, op. cit., p.l40. 15. Georges CANGUILHEM, Le Normal et !e Pa-

thologique, PUF, Paris, 1966. 16. Guillaume Sibertin-Blanc, "'Pour une littérature mineure': un cas d'analyse pour une théorie eles normes chez Deleuze", 12 de março de 2003, UMR 8163, universidade de Lille 3, grupo de estudo coordenado por Pierre Macherey, Savoirs, textes, langage. "La philosophie au sens large", texto on-line. 17. Ver capítulo "A máquina contra a estrutura". 18. Gilles DELEUZE. "L'avenir de la linguistique", prefácio a Henri GOBARD. L:Aliénation linguistique (analyse tétraglossique), Flammarion, Pa-

ris, 1976; reproduzido em Gilles DELEUZE, RF, 61-65. 19. Gilles DELEUZE, ''L'avenir de la linguistique",

op. cit., RE p. 61. 20. lbid., p. 6!. 21. Ibid., p. 61. 22. Hai'm-Vidal SEPHIHA, "Introduction à l'étude de l'intensif", Langages. n. 18, Larousse,

maio-junho 1970, p. 104-120. 23. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, K, p. 41. 24. Franz KAFKA, ]ournal, 13 de dezembro de 1910, Grasset, Paris,l913, p.l7.

25. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, K, p. 40. 26. lbid., p. 24. 27. lbid., p. 25. 28. Jbid., p. 68. 29. Félix Guattari, "Les rêves de Kafka", arquivos IMEC; reproduzido em Le Magazine littéraire,

Kajka, /e rebelle, dezembro de 2002.

208

Dosse

30. jack Lang, carta a Félix Guattari, 30 de agosto

de 1982, arquivos IMEC. 31. Félix Guattari, notas, Cahiers Katka, arquivos !MEC.

32. jean-jacques LEBEL, Poésie directe, Opus international éditions, 1994, p. 49. 33. Enzo CORMANN, "Comme sans y penser", Chimêres, n. 23, Félíx Guattari, vol. 2, verão de 1994. 34. A peça será montada mais tarde na Itália, em Bolonha, por um amigo de Guattari, o pintor Gianmarco Montesano.

Casamento dos pais ele Félix Cuattari, Jeanne e Louis, 19'19 (acervo Emmanuelle Cuattari).

35. Félix GUATTAR!, "Kafhi', programa de Jean Daive, France Culture (1983), 24 de agosto de 2003. arquivos INA. 36. Jbid.

37. Félix Guattari, KNotes sur les Intensités et la fonction 'Blocs d'enfance' dans !e premier chapitre du Château", notas manuscritas, arquivos !MEC.

38. Félix Guattari, "Notes sur La Métamorphose", notas manuscritas, arquivos IMEC.

Os três irmâos Guattari, da esquerda para a direita: Jean, Paul e Félix sobre a cadeira 1 1932 (acervo Emmanuelle Guattari}.

Gi!les Deleuze com seu irmão Georges. Gilles está à direita diante da vila alugada por seus pais todo verão em Deauville, 1928 (acer\(;0 Fanny ~eleuze).

Gilles e Georges De!euze. Gilles está à esquerda, 1935. (acervo Fanny Deleuze).

Os três irmãos, da esquerda para a direita: Félix, Paul, Jean (acervo Emmanuelle Guattari).

Félix Guattari (criança) com seus pais diante da fábrica Mon-Bana, "1935 (acervo Emmanuelle Guattari).

Os três irmãos, da esquerda para a direita: Jean, Paul, Félix, 1953 (acervo Emmanuelle Guattari).

Clínica de La Borde, anos '1960 (acervo Emmanuelle Guattari).

O jornalista Wilfred Burchett (primeiro jornalista a ter entrado em Hiroshima) com seus filhos na clínica de La Borde ao lado de Félix Guattari (à esquerda), 1965 (acervo Bruno Guattari). Félix Guattari em La Borde (acervo Bruno e Emmanuelle Guattari).

Clínica de La Borde hoje (foto pessoal).

f''"''~

i;

~r.

·l".' flt' ,.,......

Gilles Oeleuze com seu filho Julien, com 1 ano, no terraço do Mas Révéry, 1961 (acervo Fanny De!euze).

Gilles Deleuze. V'1agem à Grécia: férias na ilha de Skyros, 1970 (fotografia t'1rada por Karl Flinker, acervo Emmanue!le Guattari).

Gilles Deleuze, sua mulher, Fanny, e seus dois filhos (Julien e Émilie) em férias na Grécia, 1970 (acervo Emmanuelle Guattari).

Gilles e Fanny Deleuze na residência de Félix Cuattari em Dhuizon, na propríe~ dade de Vaugoin, em Sologne, próximo

da clínica de La Borde, julho de 1969 (fotografia tirada por Félix Guattari, acervo Emmanuelle Guattari).

Nicole Guattari, a primeira esposa de Félix Guattari, em 1967 (acervo Bruno Guattari).

·•'

Arlelte Donati, anos 1970 (acervo Bruno Guattari). O casal Félix Guattari e Nicole Guattari com sua filha Emmanuelle (acervo Emmanuelle Guattari).

Félix Guattari com sua esposa Nicole em férias à beira-mar (acervo Emmanuelle .._ Guattari).

~; ' '

'j:

i

H Gilles Deleuze ao telefone, na Rue de Condé, na casa de Félix Guattari (acervo Emmanuelle Guattari).

Gilles Deleuze e Félix Guattari diante da televisão, na Rue Conclé, com o filho de Félix, Bruno Guattari, '1969 (acervo Emmanuel/e Guattari).

Gilles Deleuze jogando xadrez na casa de Félix Guattari. Ao seu lado, Stephen Guattari, '1970 (fotografia tirada por Félix Guattari, acervo Emmanuelle Guattari).

Rádio Tomate. Ao centro: Félix Guattari. À esquerda: Franco Piperno, '1981 (acervo Em manuel/e Guattari).

Félix Guattari em seu escritório em Dhuizon no Loir-et-Cher, 1982 (acervo Emmanuelle Guattari).

Félix Guattari (acervo Félix Guattari/Arquivos IM EC).

Gilles Deleuze em fevereiro ele 1986 (fotografia tirada por Gérard Uferas, já publicada em Le Magazine Uttéraire, setembro de ·r988, p. 30).

Gilles Deleuze, 1986 (fotografia: Héléne Bamberger/Gamma/Eyedea).

Gilles Deleuze e Félix Guattari, 1980 (fotografia: Marc Gantier/Gamma/Eyedea).

14 Mil Platôs: uma geofilosofia do político

Gilles Deleuze com Félix Guattari, quando do lançamento de O Anti-Édipo, na Editora Minuit, em 1972 (fotografia: Xavier Martin).

Após a fase polêmica de O Anti-Édipo, Deleuze e Guattari publicam em 1980 uma obra cuja riqueza e originalidade ainda não foram totalmente exploradas: Mil Platôs. Essa segunda vertente de Capitalismo e Esquizofrenia é, depois da fase crítica de O Anti-Édipo, a parte proposicional, positiva. Nesse livro, que desenvolve uma filosofia das lógicas espaciais, Deleuze e Guattari rompem radicalmente com o historicismo do século XIX que produziu uma teodiceia, uma cronosofia teleológica dominante durante boa parte do século XX Substituem a hegelianização do tempo por uma abordagem espacializante das forças múltiplas qúe ali se manifestam. Uma grande unidade liga os dois volumes. O Anti-Édipo pretendia mostrar que, contrariamente à maneira como o estruturalismo a concebe, a psicose não decorre de uma distribuição estrutural, mas de um processo: "É verdadeiramente uma interpretação dinâmica, processional, nem personológica, nem estruturalista rel="nofollow">~. O delírio está presente como apreendido imediatamente em um campo de investimento sócio-hi§tórico que, em Mil Platôs, é objeto de uma cartografia das micropolíticas que permitem restituir os modos de articulação entre os processos de subjetivação e os aparelhos institucionais, fazendo emergir a produtividade potencial dos grupos-sujeitos.

O próprio título da obra indica uma abordagem geográfica, o platô, como zona plana, horizonte indeflnido, sem limites, zona intermediária, central, zona de intensidade. Deleuze gostava de dizer- talvez como uma piada- que esse título correspondia às paisagens de suas terras em Limousine, o platô de Millevaches, que ele apreciava das janelas de sua propriedade de Saint-Léonard-de-Noblat. Sobretudo, essa ausência de começo e de fim do platô faz eco ao conselho sempre repetido por Deleuze, segundo o qual é preciso começar "pelo meio'. Depois de terem rompido as rigidezes da instituição familiar com O Anti-Édipo, Deleuze e Guattari tomam os caminhos não traçados, as linhas de fuga, os percursos nômades para explorar tudo o que possa revelar diferenças e conexões inéditas. Portanto, o título não tem nada de metáfora, mas anuncia uma metamorfose: "Platô tem um sentido preciso em geografia, em mecânica, em cenografia: platô de erosão e de sedimentação, platô da mudança de velocidade e de desaceleração, plano de distribuição e de rodagem"'. Contudo, Mil Platós não tem como referência direta a disciplina geográfica; mas tem como horizonte uma verdadeira física "no sentido da (meta)física bergsoniana, ou melhor, de geogra3 fia da physis" •. O tratamento da informação em

210

Gi!les Deleuze & Félix Guattari

François Dosse

termos de lógicas espaciais tem como efeito um

modo inteiramente original de uso do tempo. Cada plat6 tem uma data precisa, indicada em epígrafe, que remete a um acontecimento que dá nome ao capítulo. É uma maneira de relembrar a importância do acontecimento para sua

filosofia, mas segundo urna lógica que não tem 4 mais nada de cronológico nem de evolutivo • Mil Platôs, assim como O Anti-Édipo, é uma travessia no coração das ciências humanas, que faz funcionar a pleno regime as contribui-

ções de um procedimento transversaL Essa travessia é, no entanto, a expressão de uma filosofia. À pergunta de Catherine Clément sobre o gênero a que pertence esse novo livro, Deleuze responde sem arnbiguidade: "Filosofia, nada mais que filosofia, no sentido tradicional da palavra'5. O livro prossegue o projeto de uma nova metafísica, de uma cronologia da diferença, e, ao mesmo tempo, o corpus que lhe serve de suporte é constituído pelo trabalho de linguistas, antropólogos, psicanalistas, etnólogos ... Seus autores" se propõem como objetivo criar conceitos operatórios - uma "mecanosfera" - que possam mudar nossa relação com o mundo. A construção dessa "mecanosfera" procede de um método enunciado no texto inicial, Rizoma, desenvolvido ao longo de toda a obra. Trata-se de um procedimento resolutamente construtivista e pragmático que parte da delimitação de um plano de consistência ou platô, prossegue inscrevendo nesse plano duas séries de pontos, para em seguida pôr em conexão assimétrica alguns desses pontos de séries diferentes. Essa linha rompida deve funcionar em outro plano ou platô conexo, onde sofre a atração de uma nova linha de fuga; essa rede de ações/reações é indefinida no rizoma, cujas conexões não têm finalidade predeterminada. A afirmação da produtividade dessa diagonal do pensamento, dessa transversalidade em ato tem como efeito um livro fervilhante, de uma rara densidade: "É o livro que eu levaria para uma ilha deserta, porque é um livro não inumano, nem sobre-humano, mas quase a-humano. É qma máquina múltipla de devi·· res múltiplos'~.

As teses desenvolvidas em Mil Platôs produzem um efeito de sideração. Muito aguardadas, os leitores apaixonados pela leitura de O Anti-Édipo precisaram de oito anos de paciência para conhecer a continuação. Contudo, apesar dessa expectativa, o sucesso não foi o que se previa. O livro foi considerado difícil demais, desconcertante. Enquanto O Anti-Édipo, por seu alvo designado, se tornara de imediato um best-seller', Mil Platôs é publicado em 8 um clima de indiferença . Denso demais e na contracorrente nesse ano de 1980, em pleno período de triunfo dos "novos filósofos' e de conceitos "firmes como dentes ocos", a sofística elaborada por Deleuze e Guattari não podia· tornar-se um acontecimento nesse momento. A acolhida do livro é mais discreta. Por trás dos elogios, irrompe uma certa confusão. Na revista Critique, é Arnaud Villani, especialista no pensamento deleuziano, quem escreve, mas cinco anos após a publicação da obra. Ele saúda um livro "essencial no 'aplanamento' de um espaço por textos e pensamentos semprecedente"'. No Le Matin, Catherine Clément se diz "desconcertada", mas esclarece: "Estardes10 concertada é justamente o que era preciso" • Insistindo sobre a noção essencial de nomadismo que percorre toda a obra, ela saúda uma irrupção de múltiplas figuras da anormalidade, desde os fora-da-lei e o imperativo de pensar de outro modo. No Le Monde, Christian Delacampagne qualifica os dois volumes de Capitalismo e Esquizofrenia de "suma filosófica sem igual na produção contemporâned'u, ao mesmo tempo em que adverte os eventuais leitores das dificuldades que vão encontrar em face dessa nova publicação que abarca a história mundial: "O 12 leitor sai atônito, embasbacado e perplexo'' • Libération, ao contrário, dá a máxima importância a Mil Platôs, fazendo uma entrevista com Guattari antes da publicação, na qual 13 ele enfatiza a dimensão política da obra • No momento em que o livro é lançado, o jornal organiza uma longa entrevista com Deleuze em que ele explica que "o título Mil Platôs remete a essas individuações que não são pessoais nem coisas" 14 • À observação de Robert Maggiori se-

gundo a qual Mil Platôs se apresentaria paradoxalmente com uma organização acrónica, heteróclita à maneira de um antissistema, de um patchwork, ao mesmo tempo em que traz uma visão do mundo, outro sistema filosófico, Deleuze responde que é fácil constatar a falên~ cia generalizada da maior parte dos sistemas de saber, mas sobretudO porque permanecem fechados em si mesmos, conflnados em seus limites: "O que Guattari e eu chamamos de rizo15 ma é justamente um caso de sistema aberto" • Se existe um conceito nodal de Mil Platôs que constitui sistema, é o do agenciamento. À pergunta de Catherine Clément sobre a unidade dessa obra particularmente heteróclita, Deleuze responde: "Seria talvez a noção de agenciamento 16 (que substitui as máquinas desejantes)" • Esse conceito, de fato, irriga todos os plat6s e, por sua capacidade de conectar os elementos mais diversos, abre para uma lógica geral que Guattari qualifica frequentemente de '(liagramática' nesses anos. O conceito de agenciamento tem a vantagem, em relação à noção abandonada de "máquina desejante", de sair do campo da psicanálise para pór em relação todas as formas de conexões, incluídas as do âmbito do não humano, e liberar suas forças. Basta colocar juntos elementos singulares e heterogêneos para se dispor de um agenciamento particular. Pode ser a vespa e a orquídea, mas também o cava~ lo, o homem e o estribo, ou ainda o cavalo~ homem-arco ... Todas as combinações são possíveis entre máquinas técnicas, animais e humanos. São sempre processos de subjetivação, de individuação que estão no horizonte. Um tal objetivo pressupõe não somente desvios, mas também reconectar o homem com a natureza, com a physis. Na verdade, não há mais distinção pertinente, no nível das ligações de agenciamento, entre natureza e artifício. Assim, Deleuze e Guattari vão dar a maior importância à etologia para restituir a maneira como os animais constroem seus agenciamentos com a natureza e entre eles. Esse conceito, de uso muito amplo, sem limites, é ideal para construir um sistema aberto. Designa a relação que se estabelece entre um conjunto de

211

relações materiais e um regime de signos correspondente. Longe de se perpetuar, o agenciamento se póe novamente em movimento: ele é sempre afetado por uma dose de desequilíbrio na medida em que é afeto a um campo de desejo no qual se constitui. Nesse sentido, o agenciamento é o equivalente ao papel que desempenhava em O Anti-Édipo a noção de máquina desejante. Consiste também em uma maneira de exprimir que o desejo é uma questão apenas de encontros, de cortes de fluxo. Os agenciamentos não decorrem, portanto, de binaridades clássicas, como as que opõem indivíduo e coletivo, ou significante e significado, ou ainda signo e sentido. Deleuze e Guattarl defendem dois grandes eixos de agenciamento, que se subdividem cada um em suas variantes: um eixo original comportando o segmento do conteúdo e o da expressão. Segundo esse nível, ele é agenciamento maquínico do corpo, de ações e de paixões e agenciamento coletivo de enunciação, de atos e de enunciados. Outro eixo, vertical, comporta aspectos territorializados e pontos de desterritorialização. Isso está longe das análises marxianas althusserianas, ainda dominantes na época, que atribuem ao econômico um valor de infraestrutura determinante em última instância. Aqui, tudo se conecta entre séries heterogêneas sem jogo de causalidade mecânica, sem determinismo, segundo as diversas linhas de fuga do sistema macropolítico. Outros tipos de agenciamentos, desta vez territoriais, definem a função do ritornelo'~. Assim, os cantos de pássaros marcam seu território. Essa mesma função territorializante é encontrada na Grécia antiga ou nos sistemas hindus, e "o ritornelo pode ter outras Junções, amorosa, profissional ou social, litúrgica ou cós17 mica: ele sempre carrega a terra consigo" • As rítmicas que pontuam a vida dos animais assim como a dos humanos é uma maneira de enfrentar o caos e suas ameaças de esgotamento. Des-

*N. de R. T.: No vol. 4, p. 115-170, da obra de Gil!es Deluze e Félix Guattari,Mi!Platôs- Capitalismo e EsquizQ{renia. São Paulo, Ed. 34. 1997 [trad. de Suely Rolníck], encontramos um desenvolvimento detalhado da noção de ritornelo.

212

Gilles Deleuze & Félix Guattari

Fr"nn>i• Dosse

se agenciamento entre um meio que responde 18

ao caos nasce um "ritmo-caos ou caosmos" • Na linguagem comum, um rito melo é uma pequena música que se repete, um refrão, um estribilho, uma forma de eterno retorno que, simultaneamente, fabrica tempo, o "tempo implicado" de que falava o linguista Gustave Guillaume. Ele traz, sobretudo, uma dinâmica contraditória em sua relação com a territorialidade. Ele tende a um retorno ao território conhecido para habitá-lo e assim conjurar o caos. É o famoso Canto da Terra, de Mahler, com seu final: a coexistên-

cia de dois motivos, um melódico evocando os agenciamentos do pássaro, o outro rítmico, 9 profunda respiração da terra, eternamente"t • O ritornelo é também o sinal de uma partida para uma desterritorialização, uma expatriação, uma viagem, efetuando esse vai-e-vem entre o partir e o voltar, dando a tonalidade desse entre-dois, do entrelaçamento entre dois territórios. Sua própria circularidade evoca o fato de que não há corp_eço nem fim, mas somente variações infinitas: "o' ritornelo vai em direção ao agenciamen20 to territorial, instala-se ali e vai emborâ' • Embora seja difícil distinguir o que é de Deleuze e o que é de Guattari, o conceito de ritornelo vem mais de Guattari que é músico e sempre tocou piano. Aliás, em 1979, ele dedicou 21 um texto pessoal ao ritornelo • De saída, ele enfatíza a conjuração do tempo que passa, da angústia de morte, do risco do caos, do medo de perder o controle que exprimem os ritornelos, essas rítmicas produtoras de um tempo habitado, territorializado: "Todo indivíduo, todo grupo, toda nação se equipa assim de uma gama de base de ritornelos conjuratórios":n. Esse modo de semiotização do tempo que esses estribilhos praticam é percebido também pelo etnólogo Pierre Clastres, que evoca o canto solitário de um índio diante da noite, lançando um desafio ao tempo que passa e ao processo de "sujeição 23 do homem à rede geral de signos" • Nossas sociedades modernas se complexificaram e perderam essa relação de imediaticidade com a expressão de suas angústias. São inclusive portadoras de uma ilusão de domínio em razão de seus sólidos ··~quipamentos maquínicos.

Contudo, a noção de território pode ser enganosa, como todas as noções de Deleuze e Guattari: "O território é na verdade um ato, que afeta os meios e os ritmos, que os 'territorializa'"21• Esse conceito está ligado fundamentalmente a uma pragmática, e portanto não é passivo, mas expressivo. Nesse sentido existe uma relação endógena entre território e ritmo: "O ritornelo é o ritmo e a melodia territorializados, porque tornados expressivos - e tornados expressivos 25 porque territorializantes" • A esse processo de territorialização é preciso opor, segundo os autores, outro pala, o de uma desterritorialização do ritornelo, um soltar no cosmos, para "abrir 0 26 agenciamento a uma força cósmica" • Em todO agenciamento, a linha molar entra em interpenetração com a linha de fuga do sistema graças à Unha de desterritorialização molecular. Nossos autores não pretendem absolutamente defender uma forma de determinismo geográfico que considerava como inevitável o nascimento da filosofia no mundo grego. Simplesmente ligam o encontro de dois fenômenos heterogêneos um com o outro: o do meio grego e o do plano da imanência do pensamento. Para que o agenciamento tomasse forma, foi necessário o encontro entre essas duas formas de desterritorialização. Hegel e Heidcgger, na visão de Deleuze e Guattari, permaneceram historicistas em sua leitura do nascimento da filosofia na Grécia. Os autores" de Mil Platôs situam a geografia do lado do contingente, muito longe das orientações da escola geográfica vidaliana e dos usos que á historiador Braudel faz da geografia, que, para ele, tem mais a função de fazer prevalecer permanências, as estruturas, a loJogrJíssinoa duração. Para Deleuze e Guattari, ao contrári
A relação com o território dá um fundamento nacionalista às diversas correntes de pensamento, às "opiniões" filosóficas. Deleuze e Guattari citam esses arquétipos segundo os quais os franceses tendem a se reterritorializar na consciência, no cogito, enquanto os alemães não renunciam ao Absoluto para reconquistar o plano de imanência grego desterritorializando a consciência: "Na trindade Fundar-Contruir-Habitar, são os franceses que constroem e os alemães que fundam, mas os ingleses é que 28 habitam" • A experimentação é antes de tudo filosófica e define o que é pensar. Ela resulta dessa tensão entre territorialização e desterritorialização. Assim como o conhecido trem do

western, "a filosofia se reterritorializa três vezes, uma vez no passado nos gregos, uma vez no presente do Estado democrático, uma vez no 29 futuro no novo povo e na nova terra" • Para sair da axiomática cristã do tempo escatológico, Deleuze e Guattari investem contra a rostidade,.. em um platô, o sétimo, que tem como data de referência o ano zero, o do nascimento de Cristo. O objetivo dessa crítica é duplo: sair do europeucentrismo, da dominação do homem branco moderno sobre o resto da humanidade como encarnação do progresso e do universal e, ao mesmo tempo, confrontar-se com as teses f€nomenológicas. Como já visto, Deleuze sempre adotou uma via· alternativa ao programa fenomenológico. Nos anos de 1970, um de seus representantes, Emmanuel Levinas, vê no rosto a injunção do Outro, o próprio fundamento da ética, a própria exposição da humanidade do homem: "O rosto do próximo me significa uma responsabilidade irrecusável, precedendo qualquer consentimento livre, qualquer pacto, qualquer contrato"30 • Ao contrário, para Deleuze e Guattari, o rosto está estreitamente ligado à singularidade do momento espaciotemporal em que ele emerge e por isso perde qualquer pretensão ao universal. Ademais, prosseguindo a construção de sua metafísica, Deleuze e Guattari entendem a

*N. de T.: No original visagéité. de visage (rosto).

noção de rostidade em todas as formas de expressão natural e animal. Com a preocupação de irem mais longe na naturalização do humano e na humanização da natureza, rompem com qualquer antropomorfismo: ''A ponto de que, se o homem tem um destino, será sobretudo escapar ao rosto, desfazer o rosto e as rostificações, tornar-se imperceptível, torna-se clandestino":$!. Recorda-se de Foucault dizendo que escrevia para não ter mais rosto: "Como eu, há outros, sem dúvida, que escrevem para não ter mais rosto. Não me perguntem quem eu sou e não me digam para permanecer o mesmo: é uma moral de estado civil, ela rege nossos documentos. Que ela nos deixe livres na hora de escrever":1 ~. Para os nossos autores, o rosto pertence a uma máquina de signos particular, já estigmatizada no quinto platô, que trata dos regimes de signos. Essa máquina tem o defeito de se circunscrever à mera redundância e de garantir o triunfo do Significante mestre. Não somente toda a história do cristianismo encarna o corpo místico em um rosto, o de Cristo, como também o poder despótico encarnao corpo do poder em seu chefe. Em sua preocupação constante de reavivar a chama da desterritorialização, Deleuze e Guattari investem contra o propósito de rostificação, que é um meio de subjugar ao significante e de impor a lei da transcendência. Guattari já havia consagrado um capítulo inteiro de seu livro de 1979, O Inconsciente Maqufnico, a esse conceito: "Rostidade significante, rostidade diagramática"'. O principal alvo é então o capitalismo e uma micropolítica de fechamento: "O paradigma último da rostidade é um 34 'é assim"' . Ele investe também contraLacan por ter atribuído ao rosto, com sua análise da fase do espelho, um papel matricial na constituição mesma do "Eu'', no momento de sua entrada na ordem simbólica. Portanto, a rostidade é inseparável das estratégias de poder: ela funciona ·como um "sinalizado r de normalidade" 35• Arostidade serve para inscrever um modo de dominação fundado no primado da subjetividade e na ideia de sua autonomia. Nos três planos, semi ótico, político e artístico, a rostificação é um 36 modo de dominação: "O rosto é uma política'' •

~~;n ...........

214

Gilles Deleuze & Félix Guattari

Fra,nco1s Dosse

Se o rosto exprime um impulso de territoria~ lização, esta última comporta também linhas de resistência, linhas de fuga, É sobre essas linhas

de fuga que se pode elaborar outra política. Para fazer isso, é preciso remontar à máquina abstra~ ta produtora de rostidade. "Os rostos concretos nascem de uma máquina abstrata de rostidade'm, constituída de um pequeno sistema binário que opõe o muro branco do signiflcado ao buraco negro da subjetividade: "O sistema buraco negro-muro branco já não seria então um 38 rosto, seria a máquina abstrata que o produz" •

Deleuze e Guattari, conscientes em 1980 dos riscos que comportam certos mal-entendidos, como puderam constatar com as interpretações de O Anti-Édipo, alertam também contra os perigos próprios ao fato de querer se desfazer do rosto: "Desützer o rosto não é uma coisa simples. Corre-se o risco da loucura: será que é por acaso que o esquizofrênico perde ao mesmo tempo o sentido do rosto, de seu próprio rosto e do rosto dos outros, o sentido da paisagem, o sentido da lin!,ruagem e de suas significações dominantes?"39. É preciso evitar que as linhas de destruição não sejam elas próprias tomadas como objetivos enquanto linhas mortíferas. Evidentemente, podem-se invocar civilizações primitivas que, ao contrário dos europeus, não opõem o rosto à cabeça como continuidade do resto do corpo. Elas não têm necessidade do rosto, o que não as impede de ter as cabeças mais humanas. Contudo, Deleuze e Guattarl não pregam um "retorno a ..:·, às semióticas pré-significantes: "Nunca conse!,ruiremos ser o negro ou o índio, ou 40 mesmo o chinês" • A regressão ao passado é um caminho barrado, estéril e um engodo. É preciso, ao contrário, partir do que é, do rosto sobrecodificado do período capitalista para identificar melhor suas linhas de fuga potenciais. A semiótica que está por vir, por ser criada, é a "das cabeças pesquisadoras onde os pontos de desterritoriali41 zação se tornem operatórios" •

Lógicas espaciais Outra polarização utilizada no esmiuçamento das lógiC~S espaciais é aquela, es-

sendal, entre espaços lisos e estriados, entre espaços nômades e sedentários. De natureza diferente, esses espaços só existem pelas relações recíprocas entre si: de um lado, um espaço não polarizado, fundamentalmente aberto, não mensurável, povoado de singularidades, e de outro, um espaço sobrecodificado, métrico, hierarquizado; de um lado, o modelo do bordado com seu motivo central (espaço estriado), e de outro, o do patchwork (espaço liso) com acréscimos sucessivos de tecido sem limites predeterminados. O exemplo escolhido para designar o espaço liso, o patchwork, revela que esse espaço não significa homogeneidade. De resto, essa oposição não se limita ao mundo terrestre, pols o espaço marítimo também é atravessado por tal binaridade: "Espaço liso por excelência e, no entanto, aquele que se vê mais cedo confrontado com as exigências de 42 um estriamento cada vez mais estrito" • Não há, portanto, uma oposição simples entre o liso, de um lado, e o estriado, de outro. Não há, portanto, sobredeterminação do lugar para qualificar o espaço, de forma que se pode viajar sem se mexer, no lugar - Deleuze qualifica a si pró~ prio como "viajante imóvel". Essa tensão define duas modalidades micropolíticas, e ao mesmo tempo duas estéticas, o háptico, próprio ao espaço liso, espaço de contato, de tocar, de imediaticidade, e a arte ótica, própria ao espaço estriado, remetendo a uma visão do longínquo, da perspectiva: "Cézanne falava da necessidade de não mais ver o campo de trigo, de não ficar próximo demais dele, de se perder, sem referência, 43 num espaço lisd' • EmMilPlatós, desenvolve-se sobretudo a vertente micropolítica a partirdessa tensão entre polo estriado e polo liso com a dupla polaridade que opõe a máquina de guerra, de um lado, e o aparelho de captura encarnado pelo Estado, de outro (platôs 12 e 13). Nossos autores não param de utilizar oposições binárias, mas, como já dissemos, não para apregoar um pensamento dualista, e sim, ao contrário, para rompê-lo e substituí-lo por um pensamento da multiplicidade percorrido por binaridades pluralizadas. Embora o senso comum tenha o hábito de pensar que a máqui-

na de guerra é um subproduto do aparelho de Estado, nossos autores enfatizam a diferença radical, de natureza, entre esses dois polos. Não somente a máquina de guerra não provém do aparelho de Estado como toda sua dinâmica se opõe à lógica estatal. Criação de nômades, as máquinas de guerra foram inventadas para resistir, para lutar contra o aparelho de Estado concebido como um aparelho de captura. As máquinas de guerra tomaram corpo em um tipo de espaço particular, o espaço liso (os desertos, as estepes, os mares). Deleuze e Guattari falam dessa oposição em um capítulo que se apresenta como a escrita de um "Tratado de nomadologia: a máquina de guerra". Esse título acena, de maneira ao mesmo tempo séria e irônica, a um outro tratado, o de Espinosa'", que adquire aqui o es45 tatuto de "fonte para uma nova disciplina" • A máquina de guerra não se define, contra toda expectativa, pela guerra. Ela se caracteriza de três maneiras. Primeiro, há a composição aritmética dos homens que a compõem a contrario da organização territorial do aparelho de Estado. Segundo, "o aparelho de Estado inventou um tipo de atividade: o trabalho'"". Evidentemente, na máquina de guerra também se trabalha, mas a atividade regrada é uma ação livre. Finalmente, no plano da expressão, o aparelho de Estado se manifesta pelas ferramentas e pelos signos, enquanto a máquina de guerra se define antes por suas armas. A questão fundamental do Estado é saber como se apropriar da máquina de guerra, como capturá-la e subjugá-la, enquanto a máquina de guerra tenta resistir às lógicas estatais e preservar seu dinamismo próprio. A máquina de guerra exprime toda a ambivalência da linha de fuga que consiste em fazer fugir, em explorar todas as linhas de desterritorialização. Pela exterioridade significada da máquina de guerra em relação ao Estado resulta o fato de que o Estado não se concebe sem uma relação com um de fora do qual se nutre, enquanto a máquina de guerra vive um agenciamento social cujo modelo matricial é o 47 nomadismo, daí o "Tratado de nomadologia' •

215

O caso de um povo sem terra: o povo palestino A esse respeito, Deleuze e Guattari veem na causa palestina o exemplo dramático e atual de um possível espaço~tempo que seria encarnado pela Organização pela Libertação da Palestina (OLP). Essa sensibilidade aos "povos sem terra'', desterritorializados, está na origem do engajamento de Deleuze e Guattari ao lado da causa palestina. Guattari foi amigo próximo do escritor judeu israelense flan Halévi, representante da OLP na Internacional Socialista. Ao chegar a Paris, em 1975, Ilan Halévi entra em contato com Guattari, por saber de seu enga~ jamento contra a guerra da Argélia, e o convence facilmente a apoiar a causa dos palestinos: "Nem terceiro-mundista, nem eurocentrista. Curioso de tudo e de todos, mas desprovido de voyeurismo ... Félix era desse tipo de internacionalista, e era essa disposição primeira que informava sua atitude a respeito da Palestina e 48 seu engajamento na causa palestina'' • Guattari coloca então a sede do CERFI à disposição para o primeiro encontro secreto de personalidades israelenses e palestinas que se realiza em fevereiro de 1976. Dois anos mais tarde, é convidado a ir aos territórios ocupados para se encontrar com militantes palestinos e israelenses ligados à OLP. Entre 1977 e 1978, Ilan Halévi organiza um seminário em Vincennes sobre o confisco de terras árabes em Israel. que Guattari acompanha com paixão e assiduidade. Por ocasião de um desses debates, o intelectual palestino Elias Sanbar, que conhecia Halévi e um pouco Guattari, está presente na sala. Sua fala não estava prevista, mas, no fogo das controvérsias, acaba fazendo uma longa intervenção improvisada sobre as técnicas de guerra dos maquis palestinos nos anos de 1930: "Félix estava na sala e me perguntou como estava pensando em retornar a Paris. Disse que de metrô, e ele propôs me acompanhar de carro. Alguns dias mais tarde, o telefone tocou e o interlocutor me disse: 'Olá, sou Félix Guattari, será que posso visitá-lo? Gostaria de discutir com o se49 nhor'. Então ele foi à minha casa" .

'

'.!

216

François Dosse

Gilles Deleuze & Félix Guattari

Nesse ano de .l978, Deleuze e Guattari preparam Mil Platôs e estão em plena reflexão sobre as máquinas de guerra, os aparelhos de captura. Guattari havia convencido Deleuze

da necessidade de travar relações com

San~

bar, depois de ter ouvido seu discurso em Vin-

cennes sobre as técnicas de guerra nômades. Desse encontro entre Sanbar e Deleuze nasceu uma intensa amizade até os últimos dias: "Ele se atinha sempre ao essencial. Não havia des-

perdício. Ele se atinha sempre ao núcleo das coisas. Era alguém que levantava as questões 50 antes que você levantasse. Era incrível" • Após esse primeiro encontro, Deleuze intervém pela primeira vez no plano público sobre o conflito israelense-palestino nas colunas 11 do Monde' • Essa tomada de posição se segue a uma vasta operação do exército israelense no sul do Líbano, que fez várias centenas de vítimas nos campos palestinos e na população libanesa e provocou o êxodo de dezenas de milhares de libaneses para Beirute. Deleuze toma partido dos palestinos: "Os palestinos, gente sem terra nem Estado, são incômodos para 2 todo mundo"fi . Nesse artigo, Deleuze denuncia o fato de não se propor nada além da morte como perspectiva para os palestinos e apela à comunidade internacional para que eles sejam reconhecidos como interlocutores legítimos "pois [vivem] em um estado de guerra pelo 53 qual certamente não são responsáveis" • Guattari, por sua vez, ajuda llan Halévi a organizar um colóquio, em 1979, sobre sionismo, antissemitismo e racismo. A publicação de Míl Platôs constitui para ele, em 1980, um recurso importante: "Esse livro incomparável em que, pela primeira vez depois de muito tempo nas letras francesas, filósofos assumem seu papel, que 54 consiste em tornar o mundo inteligível, a sério" • Em 1980, Elias Sanbar tem como projeto criar uma revista de reflexão sobre a questão palestina. Ele amplia os contatos, expõe seu projeto já bem definido, mas sempre encontra as portas fechadas; "Ligo para Deleuze e lhe pergunto como sair dessa. Ele responde: 'Não sei, 55 mas vou pedir a]érôme Lindon que o receba'" , Elias Sanbar vai\líntão à ,_ditara Minuit. Lindon

começa por lhe expor as dificuldades da edição francesa e acrescenta que a Palestina não é realmente a especialidade da editora: "Depois ele me pergunta o que espero fazer nessa revista, e eu lhe falo durante uns quinze minutos de meu projeto. Logo que concluo, Lindon me diz: 'A editora Minuit vai acolhê-lo. Faça-me só uma página, que seria mais ou menos o editorial de sua revista'. Envio-lhe imediatamente o projeto. No dia seguinte, às 7h15, recebo um telefonema: 'F, Jérôme Lindon, li seu texto, as coisas 56 estão andando"' • Foi assim que nasceu a Revue dÊtudes Palestiniennes, em outubro de 1981. Pouco após o seu nascimento, uma jornalista do Libération, Blandíne ]eanson, manifesta a Elias Sanbar seu desejo de que o jornal repercuta essa nova publicação e lhe pergunta se Deleuze não poderia escrever um texto. Elias Sanbar e Deleuze decidem publicar uma longa entrevista, que intitulam em comum acordo "Os índios da 57 Palestina" : "Era formidável, fantástico para a revista. E essa ideia dos peles-vermelhas ema53 nava de nossas conversas" • Nessa entrevista, Sanbar traça um paralelo entre a situação dos palestinos e a dos índios da América: "Nisso ele está certo de que a história do estabelecimento de Israel é uma repetição do processo que deu 59 origem aos Estados Unidos da América" • Alguns anos depois, enquanto o conflito se eterniza nos combates cada vez mais dramáticos da guerra do Líbano de 1982, Deleuze escreve um texto em que celebra a causa pales60 tina saudando seu líder Yasser Arafat : "A causa palestina é antes de tudo o conjunto de injusti61 ças que esse povo sofreu e continua sofrendo" . Arafat só podia falar de "vergonha" em face dos massacres de Sabra e Chatila; Deleuze, por sua vez, critica a transformação do maior genocídio da história perpetrado pelos nazistas em um Mal absoluto considerado em uma versão religiosa desistoricizada. Ele expressa com um grande radicalismo sua rejeição à política israelense; "Israel jamais escondeu seu objetivo, desde o início: esvaziar o território palestino ... É um genocídio, mas onde o extermínio físico per62 manece subordinado à evacuação geográfici' . Segundo Deleuze, para resistir à determinação

israelense e à cumplicidade internacional, que encobriu pudicamente sua política, foi preciso encontrar "um grande personagem histórico que se diria, de um ponto ele vista ocidental, 6 quase saído de Shakespeare, e ele foi Arafat" ". Essa tomada de posição de Deleuze é, com certeza, um grande consolo para o intelectual militante da causa palestina que é Elias Sanbar, encarregado na Delegação Palestina da difícil questão dos refugiados palestinos no momento das grandes negociações de paz organizadas em Camp David por Clinton, em 1991; "Durante as negociações, eu ligava para Deleuze e lhe dizia: 'Você sabe, isso é muito violento para mim, pois tive de negociar com pessoas que fizeram mal aos meus. Isso não fica evidente, e eu lhe digo que encontrei um antídoto durante as negociações. À noite, antes ele dormir, para me redimir perante mim mesmo, todas as noites leio alguns parágrafos da Ética, de EspinoS< • Além de suas discussões sobre a poesia, as conversas deles giravam em torno do deslocamento no espaço, do fora-do-lugar e do fora-do-tempo produzidos pelo desenraizamento, e que conduz os palestinos a uma espécie de invisibilidade, a uma forma de dissolução no espaço e na duração. A obra de Deleuze e Guattari é um recurso essencial para Sanbar: "São textos que acompanham minha vida'". Quando publica em 2004 Figures du Palestinien, ele o dedica "a Gilles Deleuze em homenagem e indefectível amizade"66: "Esse livro foi o tema de nossa última discussão. A última vez que falei com ele foi a propósito desse livro, e não pudemos ir até o 67 fim, pois ele teve uma crise de sufocação'' •

Uma pragmática política em escala mundial A noção de máquina de guerra é particularmente apropriada para pensar a questão palestina, na medida em que esse povo não tem nem território, nem Estado. Para além da causa pales~ tina, tal noção tem como função se indagar sobre os meios de conjurar a formação de um aparelho

217

de Estado portador de burocracia e de servidão. Ela está também no centro da reflexão sobre a vida de grupos cujo modo de existência efêmero conduz a se questionarem permanentemente, à maneira como a psicoterapia institucional pretende submeter a instituição ao tratamento clí~ nico ao mesmo tempo em que cuida elos doentes. Há ainda a ideia de evitar o enfraquecimento de todas as tentativas de transfOrmação social em revoluções traídas, confiscadas. Multiplicar máquinas de guerra aparece, então, como um meio de criar contrapesos eficazes para evitar essas armadilhas. Trata-se de fazê-las proliferar, de multiplicá-las ao infinito para que as instituições oficiais, molares, percam sua razão de ser em proveito de microrredes moleculares. O etnólogo Pierre Clastres reforça as teses de Deleuze e Guattad''- Ele mostra, de fato, ao contrário do esquema evolucionista, que o Estado não se revela como a resultante do desenvolvimento das forças produtivas, nem como resultado da diferenciação das forças políticas. Surge de um golpe, por efração, como um acontecimento puro, quando se atinge o limite mínimo de agrupamento de uma comunidade de 300 indivíduos. Ele mostra também, e principalmente, que essas sociedades primitivas, não são apenas "sem Estado", mas que sua máquina de guerra é empregada para lutar "contra o Estado". São "sociedades contra o Estadci'. Embora exista uma onipresença da guerra, são as máquinas de guerra que controlam todas as formas de violência se confrontando com o Estado, tentando manter a segmentaridade dos grupos, enquanto o Estado necessita sempre pacificar para se instalar. A figura do nômade não remete apenas ao nomadismo clássico, mas se apresenta como um personagem conceitual que permite restituir a singularidade da máquina de guerra. É um espaço de mobilização, e não de apropriação. Ocupa-se sem se instalar nele. Desenvolve-se ali sem capitalizar. A exterioridade da máquina de guerra assim concebida e atestada pelos trabalhos de etnólogos pode ser observada também no campo da epistemologia, com a existência de um certo tipo de ciências que se perpetuaram em

218

François Dosse

Gilles Deleuze & Félix Guattari

em intervenções de convidados" 75• Para uma centena de convidados previstos, cerca de 20 pessoas participaram regular e ativamente. Quando da primeira sessão de seu semi-

um modo menor, lateralmente e exteriormente em relação à física. Essa ciência nômade teria várias características: um modelo hidráulico

devem ser capazes de constituir máquinas de guerra para evitar seu desaparecimento.

criador de fluxo, e não sólido; um modelo de devir e de heterogeneidade, e não de estabilidade;

ção de micropolíticas plurais e resistentes para que não desapareçam na axiomática estatal72•

um modelo turbulento em um espaço aberto e, finalmente, um modelo problemático, e não teoremático. A partir dessa binaridade, opõem-se sempre duas tradições científicas: de um lado, as ciências da repetição, da iteração; de outro,

Nesse final dos anos de 1970, Deleuze e Guatta-

as da itineração, das ciências ambulantes. A

do na integração da classe operária à sociedade

criatividade estaria na vertente das ciências nômades, ambulantes, que têm como função in~

capitalista e a necessidade para o proletariado

ventar os problemas, enquanto as ciências reais

de se desprender de sua posição de classe.

teriam o encargo de oferecer soluções científi-

Para regular essa tensão entre os dois po-. los, que são os aparelhos de captura e as máquinas de guerra e deHnir uma nova micro~

agenciamento coletivo de enunciação para aclarar algumas hipóteses, mas esse conceito serve também para definir o que Guattari entende por esquizoanálise: "É o estudo de incidências de agenciamentos maquínicos em uma problemá-

política na junção da esfera ética e do campo

tica dada"

político, Deleuze e Guattari enfatizam uma noção cara ao primeiro: o contrato social. É

vismo coletivo para testar seus conceitos e mostrar por que os operadores são indispensáveis

graças ao contrato que o aparelho de captura

em sua prática. Ao longo desses anos, ele mobili-

avança, submetido em uma ambivalência que

za as competências mais diversas, realizando na prática a transversalidade que tanto invocava. De início, Guattari sugere pluralizar a noção de inconsciente. Quando de sua apresentação, ele

cas a eles. Disso resulta uma complementaridade potencial, mas que acaba por ocultar o primeiro momento, o da inovação, logo encoberto pela eficácia do procedimento. da solução encontrada pela ciência de Estado: "Ao contrário,

existe apenas a ciência real para dispor de uma potência métrica que define o aparelho dos 69

concéitos ou a autonomia da ciência'' • As máquinas de guerra têm também a ftmção de fazer circular o sentido, de transgredir

os limites, de sair dos cercados graças às linhas de fuga em uma deriva literal. As máquinas de guerra devem permanecer ativas, pois são con-

frontadas com o Estado, definido por nossos autores como um aparelho de captura. Ao invés de retomar a noção marxlsta e althusseriana de

modo de produção, Deleuze e Guattari definem as formações sociais como "processos maquí-

nicos"70. Distinguem a propósito disso associedades primitivas cujos mecanismos de funcionamento são os da conjuração-antecipação, as

sociedades com Estado definidas por seus instrumentos de polarização, as sociedades nôma-

des por suas máquinas de guerra. Enquanto o Estado se empenha em capitalizar, em se apropriar, a máquina de guerra tem uma "potência de metamorfose"71 • Essa noção de captura, própria das sociedades com Estado, encontra sua origem longínqua na mitologia indo-europeia,

e designa o polo da soberania. Essa propensão à captura e à sobrecodificação do aparelho de Estado coloc.á o problema das minorias, que

O desafio é político. Está em jogo a preserva-

ri referem-se explicitamente ao movimento da autonomia italiana, a Franco Berardi ("Bifo")73, a Toni Negri e às análises do marxista italiano

Mario Tronti sobre o papel do aparelho de Esta-

de só desenvolver sua estratégia crítica depois

não pode ser atribuída a uma simples dependência voluntária ou forçada. Toda essa ar~ ticulação do si em uma escala cada vez mais planetária, a do mapa-múndi, torna imperati~ vo repensar uma micro política que possa levar em consideração as lógicas espaciais, uma geofilosofia capaz de localizar e de pensar a infinidade de pontos constitutivos de diversas forças de vida do rizoma mundial. Daí a necessidade de cartografar esses elementos e não se contentar em calcá~los em um estado de fato, mas de experimentar, de se confrontar com o real social multiplicando as vias de acesso.

É nesse esforço de cartografia que Guattari prossegue depois de 1980, em seu próprio seminário, dando lugar a um livro, Cartografias 74 Esquizoanaliticas, publicado em 1989 • A or·

nário, em 9 de dezembro de 1980, Guattari dá o tom: "Para mim, ele só terá sentido fesse seminário] se funcionar. Quer dizer, para ser bem preciso, se os diferentes avanços históricos que proporei aqui servirem efetivamente para as 76 pessoas" • O conceito-chave do seminário - o

de agenciamento - vem de Mil Platôs, que acaba de ser lançado. Trata-se em primeiro lugar do

77 •

Ele se engaja ali em um construti-

já lança a hipótese, que, como explica, poderia ser uma fantasia, de distinguir um inconsciente relativo de um inconsciente absoluto, este último remetendo a uma consciência sem objeto.

Na segunda sessão, ele aprofunda essa hipótese apresentando quatro inconscientes diferentes: subjetivo, material, territorial ou corporal e maquínico, que "seria o dos campos possibilistas, o das micropolíticas moleculares"78• A orientação pragmatista desse seminário é altamente afirmada, às vezes contra a tradição psicanalítica: ''A dimensão do ato foi (é o caso

ganizadora das sessões desse seminário é Da-

de dizer!) excluída pela psicanálise: basta falar de 'passagem ao ato' para, de algum modo, considerar que se está fora do campo da análise.

nielle Sivadon, que cuida ao mesmo tempo da programação, dos convites e da decifração das

Já para a esquizoanálise, essa dimensão do ato, justamente, se torna inteiramente central"79•

proposições sustentadas: "Durante o primei~

Por outro lado, uma atenção fina à contingên-

ro período de 1980 a 1985, era essencialmente Félix que falava de suas cartografias, e depois, no segundo período (1985-1992), na Rue

cia e à singularidade das situações conduz a

reabilitar o conteúdo, o significado, que até então parecia fadado a desaparecer sob as lógicas

Santi-Sauveur, funcionava-se mais com base

significantes. A própria experiência corporal

219

de Guattari, seus sonhos, suas angústias são válidos nesse seminário onde tudo é bom para pensar. Ele evoca ali, por exemplo, sua primeira cólica renal (ele terá muitas e bastante graves) como a expressão corporal de um buraco negro ameaçador que o remete à sua angústia do tempo passando e da finitude da existência80• Além de seus temas prediletos sobre a psicanálise, Guattari abre seu seminário a outras dis-

ciplinas. Em 1983, ele faz intervir uma etnóloga, Barbara Glowczewski. que realizou um trabalho sobre os sonhos dos aborígines da Austrália. Ela mostra que o sonho não traduz tanto uma projeção individual quanto uma elaboração mítica

coletiva e que liga não menos que 500 etnias diferentes em torno de um dream comum a todas: "O sonho é o presente e há muito tempo. Para mim, esse tempo, que é ao mesmo tempo o presente e há muito tempo, não é um tempo históri~ co, mas um tempo de metamorfose. É um tempo dinâmico, mas de transformaçãd'81 •

O filósofo Éric Alliez, assim como a velha guarda labordiana, Jean-Claude Polack e Danielle Sivadon, intervêm várias vezes no seminário de Guattari. Intervenções no terreno da criação cultural favorecem uma reflexão sobre

a espontaneidade, em torno da temática da improvisação no campo do teatro com Philippe 82 Adrien , no campo do jazz com Yves Buin, so~ bre a improvisação em Thelonious Monk83 , ou ainda sobre a improvisação na ópera com o an-

tigo companheiro do CERFI, Michel Rostain'''. Guattari convida também seu amigo Enzo Cor~ mann sobre o tema do "Esquizoteatro". O tema comum a todos é identificar o traço de processos de subjetivação onde quer que ele se revele.

Na busca dos modos de subjetivação, Guattari os articula aos territóriOs, aos ambientes,

segundo linhas lógicas que qualifica de ''diagramáticas". A questão que ele se coloca em Car-

tografias Esquizoanalíticas, em continuidade com as teses de Mil Platôs, é: "Como se pode falar hoje de produção de subjetividade?"85• Esta, às voltas com a tensão entre o assujeitamento e o grupo-sujeito, é tributária de agenciamentos maquínicos. Ora, cada vez mais meios técnicos científlcos interferem no homem, e esse estado

220

François Desse

de coisas concretiza na prática a análise do so-

cius em termos de agenciamentos maquínicos: "Nenhum âmbito de opinião, de pensamento, de imagem, de afetos, de narratividade pode pretender hoje escapar ao controle invasivo da 'assistência por computador' dos bancos de da86 dos, da telemática" • No momento do que ele qualifica de advento do "Capitalismo Mundial Integrado" (CMI), Guattari pesquisa sobre os processos de individuação, sobre as forças alternativas de subjetivação. Longe de qualquer olhar nostálgico acerca das origens perdidas, Guattari se volta aos devires inéditos e às esperanças de inovação, de criação e de articulações novas entre o homem e a máquina. A filósofa Manola Antonioli tem razão de

destacar a pertinência e a atualidade dessas noções de pensamento espacializante de Deleuze e Guattari no momento da mundialização: "O pensamento deverá cada vez mais se abrir aos espaços, às dimensões, aos territórios, reconhecer sua dimensão essencial de espaça~ menta e não· mais se limitar a uma meditação 87 sobre sua história e a história dos conceitos" • Em um período marcado pelo fim das certezas, é preciso habitar de outra maneira nossos espaços lisos e estriados, e abandonar o imaginário das possíveis identidades fechadas - individuais, orgânicas, naturais ou estatais-, para compreender melhor que estão sempre abertas a um de fora, só têm uma realidade fragmentar e um devir imprevisível: ''A abertura da 'mundialidade' só será possível em um mundo em arquipélago, mundo de múltiplas interfaces, que multiplica as trocas, as passagens e os encontros"88. Nessa perspectiva criadora, Mil Platôs é uma caixa de ferramentas, de valor ressaltado por Manola Antonio li, ainda muito pouco 89 explorada, essencialmente ética e política • Um filósofo americano da universidade do Estado da Louisiana, John Protevi, trabalhou com um geógrafo, Mark Bonta, a partir dos conceitos de Mil Plat6s, e publicou um livro sobre a geofilosofia de Deleuze e Guattari90• O que apaixona sobretudo john Protevi é fazer a ponte entre as humanidades e a cultura científica que geralmentE:{ se ig11o!am. Para ele, o

Gilles Deleuze & Félix Guattari

capítulo mais sugestivo é ''A geologia da moral", pois "expressa o desejo de forjar uma ontologia que, com o mesmo conceito, pode tratar de sis91 temas físicos, orgânicos e sociais" . Ele escreve sobre o furacão Katrina utilizando o conceito deleuzo-guattariano de momento de emissão de singularidades, ligando-o à noção americana de mudança de comportamento (pattern). Em suas análises de geofilosofia, a noção de reterritorialização no próprio poder da desterritorialização funciona muito bem nessas zonas de instabilidade à margem do Mississipi, fragilizadas pela ocorrência regular de ciclones. O importante é considerar as zonas de sensibilidade que maximizam a possibilidade de comportamentos de adaptação. Deleuze e Guattari permitem elaborar uma espécie de fisiologia política, utilizando dados científicos, mas em uma perspectiva não mecanicista. A geografia é utilizada aqui como um recurso não determinista, não atribuído a causalidades· simples, pois, com as cartograflas virtuais dos sistemas sociais, resta sempre um papel irredutível do acaso e da "emissão de singularidades". John Protevi e seu colega geógrafo utilizam tanto fatores geomorfológicos, climatológicos e oceanográficos quanto fatores sociotécnicos para estudar os agenciamentos sociopolíticos. Mil Platôs apresenta~se, portanto, como uma pragmática política generalizada em que os conceitos transversais constituem o elemento de base do qual depende todo o resto. A micro política a construir deve definir as linhas de fuga que correm sob as segmentaridades duras para desestratificá-las. Contudo, "o modelo de micropolítica continua sendo o dos acontecimentos de Maio de 68'm. Mil Platôs privilegia, em detrimento da teleologia histórica, blocos de devir ancorados enquanto fenômenos moleculares em seu ambiente especial, como faz o acontecimento Maio de 68: "Maio de 68 na França era molecular, e suas condições tanto mais perceptíveis do ponto de vista macropolítico ... Todos aqueles que julgavam o acontecimento em termos de macropolítica não entenderam nada, porque alguma causa 93 de inatribuível fugia" •

Notas 1. Gilles Deleuze, aula de 27 de maio de 1980, universidade de Paris-VHI, arquivos sonoros,

BNF. 2. Arnaud VILLANI, "Géographie physique de lv!ille P!ateaux", Critique, 455, abril de 1985, p. 333. 3. Jbid., p. 345. 4. A 20 de novembro de 1923 sucede-se 587 a.C., depois 28 de novembro de 1947, o ano zero, 1874, 1933 ... , esses pontos altos têm como efeito inverter o tempo, desorientá-lo, abandonar qualquer axiomática para que Chronos dê lugar aAiOn. 5. Gilles Deleuze, "Une tentative d'agencement. entre les savoirs et la pratique quotidienne". entrevista com Catherine Clément, Le Matin, 30 de setembro de 1980. 6. Isabelle Stenghers, entrevista com Virginie Linhart. 7. Foram vendidos 63 mil exemplares de O Anti-Édipo entre seu lançamento em 1972 e o início de 2007. 8. Quando muito, foram vendidos 30.500 exemplares de Mil Platôs entre o lançamento em

!980 e 2007. 9. Arnaud VILLANJ, "Géographie physique de Mille Plateaux", art. cit., p. 331. 10. Catherine CLÉMENT, ''L'expression nomade de la modernité", Le Matin, 30 de setembro de !980. 11. Christian DELACAMPAGNE, "Deleuze et Guattari dans leur machine délirante", Le Monde, 10 de outubro de 1980.

!2. Jbid. 13. "Petites et grandes machincs à inventer la vi e", de Félix Guattari, entrevista com Robert Maggiori, Libération, 28-29 de junho de 1980. 14. Gilles Deleuze, "Entretien sur Mil/e Plateaux", com Christian Descamps, Didier Éribon, Robert Maggiori, Libération, 23 de outubro de 1980; reproduzida em PP, p. 40. 15. Jbid.

16. Gilles Dcleuze, "Une tentative c\'agencement entre les savoirs et les pratiques quotidiennes", entrevista com Catherine Clément, Le Matin, 30 de setembro de 1980. 17. Gilles DELEUZE, Félix GUATTAR!, MP, p. 384.

221

!8. !bid., p. 385. !9. Ibid., p. 418. 20. Ibid.. p. 396. 21. Félix GUATTARI, "Le temps eles ritournelles", !neM, p. !09-153. 22. !bid., p. !09. 23. Pierre CLASTRES, La Societé contre l'État, Minuit, Paris, 1974, p.107 e seguintes. 24. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARl, MP, p. 386.

25. 26. 27. 28. 29.

!bid., p. 389. !bid., p. 433. lbid., p. 92. Ibid., p. !0!. lbid., p. !06. 30. Emmanuel LEVlNAS, Autrement qu'étre ou au-delà de L'Essence, Nijhoff, J-Iaia, 1974, p. 141. 31. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARl, MP, p. 209. 32. Michel FOUCAULT, L'Archéologie du savoir, Gallimard, Paris, 1969, p. 28. 33. Félix GUATTARI. !neM, p. 75-!08. 34. Ibid., p. 77. 35. Jbid., p. 78. 36. Gilles DELEUZE, Félix GUATTAR!, MP, p. 222. 37. Ibid., p. 207. 38. Ibid. 39. Ibid., p. 230. 40. Ibid., p. 23!. 4!. Ibid., p. 233. 42. /bid., p. 598. 43. Ibid., p. 615. 44. SPINOZA, CEuvres 111, Traité théoiogico·politique, co!. "Épiméthée", PUF, 1998. 45. Guillaume Sibertin-Blanc, seminário "Deleu~ ze, Spinoza e as ciências sociais: leituras de MiL Platôs de Deleuze e Guattari", CERPHI, ENS, sessão de 13 de maio de 2006. 46. Gilles Deleuze, aula na universidade de Paris- VIII, 6 de novembro de 1979, arquivos sonoros, BNF. 47. Ver Guillaume SJBERTJN-BLANC, "État et généalogie de la guerre: l'hypothêse de la 'machine de guerrc' de Gilles Deleuze e Félix Guattari'', Asterion, n. 3, setembro de 2005. 48. Ilan HALÉVI, "Un internationaliste singulier", Chimáes, n. 23, verão de 1994, p.l20. 49. Elias Sanbar, entrevista com o autor. 50. Ibid.

222

Dosse

51. Gilles DELEUZE, "Les gêneurs", LeMonde, 7 de abril de 1978.

52. !bid.; reproduzido em RF, p. 147. 53. lbid., p. 149. 54. Ilan HALEVJ, "Un internationaliste singulier", art. cit., p. 123. 55. Ibid.

56. Ibid. 57. Gilles DELEUZE, "Les Indiens de Palestine", entrevista com Elias Sanbar, Libération, 8-9 de maio ele 1982; reproduzida em RF, p.l79-184.

. t.::

58. Elias Sanbar, entrevista com o autor. 59. Elias SANBAR, "Les Indiens de Palestine'', art. cit., p. 181. 60. Gilles DE.LEUZE, "Grandeur de Yasser Arafat" (escrito em setembro de 1983), Revue d'études palestiniennes, n. 10, inverno de 1984; reproduzido em RF, p. 221-225. 61. Ibid., p. 221. 62. lbid., p. 222. 63 . lbid., p. 223. 64. Elias S
67. Elias Sanbar, entrevista com o autor. 68. Pierre CLASTRES, La Societé contre l'État, op. cit. 69. !bid., p. 463. 70. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, MP, p. 542. 71. Ibid. 72. ''Nào há luta que não se ütça através de todas

75. Daniel\ e Sivadon, entrevista com o autor.

76. Félix Guattari, apresentação do seminário, 9 de dezembro de 1980, arquivos IMEC.

77. Ibid. 78. Félix Guattari, seminário de 13 de janeiro de 1981, arquivos IMEC.

79. Félix Guattari, seminário de 28 de abril de 1981. arquivos !MEC. 80. "Um dia, houve uma cena que cristalizou

15 O CERFI em suas obras

tudo: eu estava no trem que tomava toda quinta-feira e ia no vagão-restaurante; o garçom se aproxima e me diz: 'Senhor, vou apertar sua mão porque é a última vez, estou me aposentando: Meu Deus! É apavorante!" (Félix Guattari, seminário de 8 de dezembro de 1981,

arquivos !MEC.) 81. Barbara Glowczewski, "Espaces de rêves", seminário ele Félix Guattari, 18 de janeiro ele 1983, arquivos IMEC.

82. Philippe Adrien, seminário de Félix Guattari, 1o março de 1988, arquivos IMEC.

83. Yves Buin, seminário de Félix Guattari, 15 de novembro de 1988, arquivos IMEC.

84. Michel Hostain, seminário de Félix Guattari, lO ele janeiro de 1989, arquivos IMEC.

85. Félix GUATTAR!, CZ, p. 9. 86. Jbid. 87. Mano la .At'JTONIOU, GéophiLosophie de Deleuze et Guattari, L'fiannattan, Paris, 2003, p. 9-10. 88. Jbid., p. 256. 89. Manola ANTONIOLI, "La machination politique de Deleuze et Guattari", em Alain BEAULIEU (sob adir.), Glles Deleuze, héritage philosophique. op. cit., p. 73-95.

essas proposições insolúveis, e que não construa conexões revolucionárias contras as conjugações da axiomática'' (ibid., p. 591).

90. Mark BONTA, john PROTEVI, Geophilosophy A Cuide and GLossary, Edinburgh University

73. Ver capítulo "A revolução cultural à prova". 74. Félix GUATTARJ, Cartographies schizoana.Lytiques, Galilée, Paris, 1989 (doravante citado CZ).

91. John Protevi, entrevista com o autor. 92. Philippe MENGUE, Gilles DeLeuze ou le syst8me du muLtiple, Kirné, Paris, 1994, p. 227. 93. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARl, MP, p. 264.

Press, 2004.

Depois de sua criação, em 1967, o CERFI e sua rede de pesquisadores permanecem um pouco apáticos. Embora os membros do CERFI sejam como peixe na água da contestação radical, a verdadeira ''decolagem" da atividade só ocorre em 1970. À primeira vista, a ocasião parece fortuita. Com dois pequenos contratos assinados para uma pesquisa sobre o projeto de implantação de uma televisão educativa na Costa do Marfim e outra na rede da FNAC, Anne Querrien, então secretária geral do CERFI, passa na escada, quando vai apanhar a correspondência, por uma mulher, funcionária do ministério do Equipamento, com o primeiro número especial de Recherches debaixo do braço': "Ela me interpela e diz que seu chefe, Michel Conan, que está encarregado de implantar a missão de pesquisa no ministério do Equipamento, gostaria de nos ver" 2• Essa proposta desperta o entusiasmo no pequeno grupo, que começava a se colocar seriamente o problema de sua sobrevivência. Como é que um punhado de agitadores esquerdistas, de promotores da esquizoanálise, poderia interessar aos mais altos responsáveis do Estado? Para responder a tal pergunta, é preciso levar em conta a personalidade original de Michel Conan e seu interesse pelas

questões intelectuais. lvlichel Conan, urbanista, estará na base de uma volta do interesse pela história dos jardins e da arquitetura da paisagem na França. No ministério, Michel Conan dispõe então de um orçamento considerável, da ordem de 4 a 5 milhões de francos anuais. Ele mobiliza as competências de pesquisadores em sociologia, da sociologia das organizações de equipes de Michel Crozier aos marxistas especialistas em sociologia urbana, como Christian Topalov. Dois anos após a explosão de Maio de 68, Jacques Chaban-Delmas é primeiro-ministro. O poder procura compreender as razões da contestação. Está disposto a empregar os meios financeiros necessários e a utilizar as competências dos pesquisadores em ciências sociais para escrutar em profundidade as disfunções das instituições, identificar as aspirações não satisfeitas e oferecer soluções às situações de bloqueio. O objetivo é evitar uma nova deflagração, segundo o adágio de que é melhor prevenir do que remediar. Uma delegação do CERFI comandada por Guattari vai ao ministério para um encontro com Michel Conan. A delegação pretende dizer que o CERFI, em suas pesquisas, critica o Estado e sua avaliação errada das transformações

224

Dosse

necessárias da sociedade. Contudo, é esse mes~

mo Estado que nesse dia lhes propõe contratos e dinheiro para ajudar a identificar as zonas em que ele poderia intervir para atender melhor às necessidades e à decisao pública. O CERFI. sem dúvida, estava preparado para essa posição crí-

tica no interior da própria instituição com a experiência labordiana, e era isso o que interessava particularmente a Michel Conan. Entretanto, dada a proximidade imediata de Maio de 68, o grupo podia temer sua absorção pura e

simples nas lógicas estatais, ao passo que o engajamento no CERFI tinha como uma de suas razões essenciais recusar a via da funcionarização para preservar sua independência.

Eis então que o sonho de uma pesquisa coletiva remunerada de súbito se torna realidade. A imaginação pode assim se apoderar do poder. O primeiro contrato assinado refere~se à organização da cidade nova de Évry em !971 e ao projeto de implantação de um hospital psiquiátrico. Por outro lado, o CERF! vacila em responder a· uma licitação de um grande programa de pesquisa sobre a demanda social de equipamentos coletivos. É um contrato enorme tanto pelo número de setores em questão quanto pelos valores envolvidos - I milhão de francos. O CERFI se beneficia de um prestígio internacional que compensa amplamente sua pequena base institucional, graças ao apoio de Guattari, mas também de Deleuze e de Foucault.

Um grupo de pesquisa autogerido Enquanto grupo independente e autogerido, o CERFI tenta trabalhar de maneira diferente, sobretudo pondo em prática seus princípios de esquizoanálise. Nas reuniões, discutem-se as pesquisas em curso, mas também a implicação subjetiva de cada um, de sua libido, de seus desejos. 'lodos os meses, a questão dos salários é reexaminada, e o que é um problema menor se torna uma questão importante quando as grandes somas do contrato sobre os equipamentos coletivos entram nos caixas doCE~.

Ci!les Deleuze & Félix Guattari

A "grande missa" do Centro ocorre na terça-feira: Guattari está em Paris nesse dia e assim pode coordenar a reunião. Nela se decidem os projetos de pesquisas e as somas atribuídas a eles. À "máfia" composta pelo pequeno grupo ele permanentes atribui-se um salário reajustado a cada dois meses (a taxa de inflação na época é de duas cifras). Esse núcleo de pesquisadores convive regularmente nas instalações do CERFI. A pequena comunidade de trabalho, que colocou a libido no posto de comando, é perpassada por todo tipo de psicodramas, de crises de lágrimas, de altercações. O maná caído do céu do Estado atrai muita gente, e as reuniões de terça-feira se tornam · grandes oportunidades para expor e propor a todos projetos frequentemente rocambolescos: "Todos os esquerdistas de Paris baixam ali com projetos cada um mais esdrúxulo que o outro. Félix os apoia cegamente. Compra-se uma câmera para um, uma moto para o outro, e diminuímos o movimento ao preço de vários conflitos"": ''A gente dava dinheiro para qualquer um que nos procurasse dizendo: 'Preciso de 5 mil francos para um aborto amanhã. -Você nos devolve quando puder, aqui estâ, e 4 eles não voltavam nunca mais" • Um dia, conta Michel Hostain, professor de fllosofia, um bando de toxicômanos propõe ao CERFI fazer uma pesquisa sobre a droga. Eles conseguem obter um contrato sobre o tema utilizando o aparelho logístico do Centro e pegam o dinheiro: "Eles se drogaram como loucos. Os tiras inclusive vieram procurá-los na nossa sede onde estavam alojados'''. Em 1973, o CERFI está no auge: graças à sua fonte de riqueza e à repercussão de O Anti-Édipo, o grupo mantém 75 pessoas com um salário-base de 1.500 francos por mês. Além dos pesquisadores contratados, o CEHFI garante o financiamento de alguns grupos internos cuja atividade apoia, mesmo sabendo que não será lucrativa. É o caso do grupo "Vídeó', de François Pain, mas também do grupo "Cos-. tura', coordenado pela estilista Agnes B., que começou no CERFI antes de fazer fortuna, ou ainda do grupo "Canto", de Michel Hostain. A

partir de 1972, o CERFI conta com a cooperação de François Fourquet, cujo envolvimento é tanto mais importante na medida em que ele acaba de deixar a clínica de La Borde onde cuidava da administração. O CERFI deixou a Avenue de Verzy. O endereço oficial da revista é a Hue Buffon, no 5º Distrito, em um lugar bem pequeno nos fundos de um prédio, uma espécie de porão que havia servido de esconderijo durante a guerra da Argélia. E lá que Olivier Quérouil, estudante de linguística, faz sua entrada em 1970, e que se implanta um "psico-clube", pilotado por Françoise Dolto e sob a responsabilidade de Nicole Guillet. Essa iniciativa visa utilizar a competência psicanalítica sem passar pela cura procedimento que muitos consideram longo e caro demais. Em torno de Anne Querrien, Gérald Grass, Olivier Quérouil e, de tempos em tempos, Jean-Claude Polack e alguns outros, trata-se de suscitar uma transferência (como na cura analítica) por meio da correspondência: as pessoas compravam o direito de enviar dez cartas a esse grupo de "psicanalistas" para se abrir depois de ter-se beneficiado de uma primeira carta gratuita. Olivier Quérouil torna-se o gestor desse psico-clube antes de se ocupar mais tarde das finanças do CERFI. No outono de 1971, o grupo se instala no número 103 do Boulevard Beaumarchais, em um belo apartamento burguês pertencente ao fabricante de aviões Mareei Dassault, que não deve ter gostado muito de abrigar um tal "bando'' de contestadores. É lá que desfila toda a Paris esquerdista em busca de ajuda financeira para projetos de toda ordem. O grupo de semipermanentes passa de 7 membros a um grande laboratório de 20 pessoas. A partir de 1972, o sucesso de O Anti-Édipo atrai a multidão e alguns recrutas distintos, como Guy Hocquenghem. A "máfia' de permanentes trabalha com afinco, pois não basta debater nas reuniões, é preciso também fazer as pesquisas, redigir os relatórios e obter novos contratos. Após a publicação de O Anti-Édipo, Guattari não consegue mais dar conta do número de pessoas que desejavam fazer esquizoanáli-

225

se com ele. O Boulevard Beaumarchais com 0 CERFI servirá de instrumento para responder a uma demanda em pleno crescimento. Guattari solicita a ajuda de Anne Querrien e François Pain, aos quais se junta Danielle Rouleau, que têm em comum não serem nem médicos nem psicólogos: 'Assim, recebemos pessoas no quadro do CERFI que nos contaram coisas que teriam contado a um psicanalista, e nós fizemos 6 a rede, a ligação" • Às vezes, as conexões realizadas acabam tendo efeitos positivos. Elas permitem a certas pessoas perturbadas com sua obsessão do momento reencontrar uma certa alegria de viver. Contudo, o grupo de responsáveis, constituído por muitos não especialistas que nunca fizeram qualquer curso de psicologia, é bastante frágil. Danielle Rouleau, em particular, vive isso com muita angústia, a ponto de ter de parar a experiência: "O que me impressionou é que funcionava e poderia ter sido uma prática. Mas implicava poder demais" 7• O alvoroço no Boulevard Beaumarchais é tamanho que, para alguns, a mudança para o subúrbio, em Fontenay-sous-Bois, no outono de 1974, é um verdadeiro alívio. A mudança tornou-se inevitável por causa das reclamações dos vizinhos, que não queriam mais essa agitação cotidiana. No momento de deixar o Boulevard Beaumarchais, os membros do CERFI têm em vista vários projetos. Guattari retorna de uma viagem dos Estados Unidos dizendo-se muito seduzido por uma solução verdadeiramente comunitária. Trata-se mesmo de um amplo projeto que consistiria em transformar uma garagem de concreto de cinco andares em habitat coletivo: "Pessoalmente, isso me deixava apavorada", confessa Florence Pétry'. Um segundo projeto é sugerido por C]aude Harmelle, que tinha militado em Dijon, na UNEF, nos BAPU'', e integrara o CERFI em Paris. Considerando que a época dos apartamentos privados era coisa passada, ele sugere que todos joguem as chaves do próprio apartamento em seu chapéu e que cada membro '* N. de T.: UNEF- Union Nationale des Êtudiantes de France; BAPU- Bureau dhide psychologique universitaire.

226

Frencr>is Dosse

Gilles Deleuze & Félix Guattari

do CERFI escolha ao acaso seu lugar de estadia cotidiana: "Achei isso muito corajoso, pois ele

tinha um belíssimo apartamento"9• Finalmente, a solução adotada é mais clássica: consiste em encontrar uma grande casa com terraço e jar~ dim em Fontenay-sous-Bois. Esse lugar jamais

foi verdadeiramente investido como experiência comunitária. Ninguém chegou a se instalar ali efetivamente, a não ser por algumas noites. A grande transformação afeta, sobretudo, a famosa reunião de terça-feira, pois o descentra10 mento espacial reduziu a participação •

Esclarecer as decisões do Estado O número mais importante da revista do

CERFI, Recherches, é o que inaugura a série sobre os equipamentos coletivos 11 • É muito significativo do lugar reivindicado pelo grupo no domínio das ciências sociais. Além disso, conta com o apadrinhamento e com a participação excepcional de Deleuze e de Foucault. Possibilita ler também intervenções "militantes", que nada mais são que os estados de alma, os desejos pessoais e as frustrações dos pesquisadores do grupo: "Falar do desejo, do inconsciente, etc., nas ciências sociais é específico do CERFI"". Sobre a questão dos equipamentos coletivos, o grupo retoma a distinção lacaniana entre "demanda" e "desejo": ''Afirmávamos que a demanda de equipamentos era determinada principalmente pela oferta de equipamentos, e a representação social, decorrente dela, e que saber o que as pessoas desejavam era bem mais 13 difícil" • O desejo coletivo se pluraliza em uma infinidade de desejos individuais e, antes de tudo, o dos pesquisadores, aos quais a revista Recherches dá a possibilidade de uma expressão pública do que geralmente é escondido, recalcado, considerado insignificante e conflnado aos bastidores do gabinete do sociólogo'''. A apresentação do número, coassinada por François Fourquet e Lion Murard, reconhece a paternidade das teses foucaultianas deleuzianas e guattarianas. A equipe do CERFI não se limitou ao usqpuramente livresco de seus "pa'~

,_

drinhos": convidou Deleuze e Foucault a participar dos debates no quadro da preparação do número. A revista publica alguns extratos dessas discussões informais a três entre Gilles, Michel e Félix. Deleuze propõe desconstruir o caráter molecular da noção de equipamento distinguindo três formas específicas: as estruturas de investimento, as estruturas de serviço público e as estruturas de assistência. Por sua vez, Foucault, tomando o exemplo da estrada, distingue as funções de produção da produção, de produção da demanda e de normalização. Em cada um desses níveis, percebe-se um par de oposições: o agente do poder/o bandido para a primeira função, o agente da. alfândega/ o contrabandista para a segunda, e o engenheiro/vagabundo para a terceira. Significativo também da evolução do CERFI, cuja referência teórica era constituída até então pela dupla Marx-Freud, esse número de 1973 toma certas distâncias do marxismo: "Nossa firmeza sobre os princípios do marxismo enfraqueceu um pouco ao longo de nossa viagem"''. Sob o impulso de Lion Murard e François Fourquet, outro recurso torna-se então essencial para pensar as lógicas do mercado, do capitalismo: o historiador Fernand Braudel, verdadeiro "papa' dos Annales, que ocupa na época, em 1973, uma posição hegemônica na corporação historiadora. Pouco depois dessa realização coletiva, Fourquet escreve um livro pessoal que publica sob o número 14 da revista, com o título L'fdéal Historique 16• Ele inclusive apresenta o projeto desde a primeira linha como a tradução "de uma crise pessoal e de uma transformação profunda de minhas relações com a prática militante, com a psicanálise e com o saber histórico"17. L'JdéalHistorique é de fato uma crítica em regra à postura militante e, em particular, à dos althusserianos maoístas, como Robert Linhart, em nome das teses sartrianas e sobretudo nietzschianas, às quais é preciso acrescentar a inspiração histórica que Fourquet vai buscar em Fernand Braudel. Ele deduz desse percurso crítico que "só existem a libido e a »18 potencia . A

,

Fourquet pretende sobretudo se demarcar do meio do CERFI e das teses deleuzo-guattarianas de O Anti-Édipo em sua defesa de um certo ideal militante. De fato, ele aponta ali uma concepção implícita do ideal militante derivada do ideal moral. que, segundo ele. nada mais é que o prolongamento do ideal ascético de Nietzsche em uma forma moderna. Ele toma distância de tal concepção, tanto quanto considera que Deleuze e Guattari projetam essa moral em sua concepção de inconsciente: haveria um inconsciente bom e um mau, o que é propriamente absurdo, pois, como mostrou Freud, o inconsciente não conhece o tempo nem a moral e, portanto, se situa para além do bem e do maL Fourquet exprime essa crítica em termos um pouco velados, mas decifráveis. Dá uma extensão existencial a esse distanciamento, ao deixar Paris em 1976 com uma grande mala carregada com as obras completas de Nietzsche. Vai viver à margem da montanha de Ardeche, mas prossegue seus trabalhos de pesquisa para o CERFI, que o obrigam a ir regularmente a Paris. À parte o ensaio de Fourquet, Recherches tem como ambição testar na prática a noção de agenciamento coletivo de enunciação. Ainda que a revista não abandone as assinaturas individuais, privilegia um real trabalho coletivo de reflexão, e não se contenta em ser uma caixa postal para onde se enviam artigos depois justapostos de qualquer jeito. O objetivo do grupo é particularmente ambicioso, pois visa dar à luz uma nova subjetividade coletiva: "Cada um deve assumir a subjetividade coletiva, ao mesmo tempo em que preserva a sua. Há momentos em que isso pode ser muito pesado"19. Assim, na prática, não está em questão no CERFI organizar o trabalho segundo um esquema racional que leve em conta as qualificações de cada um, menos ainda recorrer a competências externas. Portanto, não há postos de executivos, nem secretários, nem administradores profissionais: "Tratava-se igual e fundamentalmente de estar juntos, de criar 20 uma forma de vida comunitária" , No imediato pós-68, é uma maneira de retardar a queda

227

das folhas mortas e de continuar a viver intensamente uma utopia em ato. A única lei que o CERFI reconhece é aquela, sagrada, do grupo e de seus interesses militantes. Fourquet serecorda de que eles tinham adotado e transformado o lema da Companhia de Jesus, Perinde ac cadaver ("Obedecer como um cadáver"), e que o CERFI entendia, com o mesmo sentido da disciplina, como um chamado à ordem: "Como militante,/ militar/ ou combatente"".

A arte do escândalo Após a publicação de O Anti-Édipo, em 1972, Guy Hocquenghem, antigo militante da JCR'', militante dos movimentos de luta dos homossexuais e, sobretudo, fundador do Front Homosexuel dl\.ction Révolutionnaire (FHAR), chega um dia ao CERFI com o livro de Deleuze e Guattari debaixo do braço exclamando ter enfim encontrado a teoria de que precisava. Ele não chega sozinho, mas com toda uma equipe do FI-lAR, e pede ao CERFI que aceite conflar a ele a responsabilidade de um número da revista sobre as homossexualidades. Solicita a participação da "máfia'', mas somente Anne Querrien se dispõe. Esse número de Re~ cherches será o mais célebre e o mais provocador de toda a história da revista, a ponto de ser objeto de diligências judiciais - o número será apreendido. Quando dessas diligências, em abril de 1973, Félix Guattari participa de um colóquio no Canadá. Ao voltar, encontra a porta fechada a cadeado pela polícia, que procedeu a uma investigação. Todos os papéis e roupas foram revirados e vasculhados em seu domicílio parisiense, enquanto outra brigada fazia uma investigação da mesma ordem em seu local de trabalho, na clínica de La Borde. Esse número é lançado em março de 1973 2 com o título Três Bilhões de Perversoi • Foi essencialmente obra do FI-lAR (mais do que do CERFI, que, com uma certa distância brincalhona, chamava-o de número "dos pede"N. de T.: Jeunesse communiste révolutionnalre.

228

Dosse Cilles Deleuze & Félix Cuattari

rastas"), mas essa "Grande enciclopédia das homossexualidades" (subtítulo do número) conta com a participação e caução de grandes autoridades da vida intelectual francesa. É fácil concluir isso a se considerar os nomes de

alguns participantes: Deleuze, Guattari, Jean Genet, Michel Foucault, Jean-Paul Sartre, Jean-Jacques Lebel... Apesar disso, o poder julga que exagero é exagero, e o número é apreendido. Como diretor da publicação, Guattari é processado e condenado a 600 francos de multa por "ultraje aos bons costumes". A sentença exige a destruição de todos os exemplares de um número que constitui, segundo os juízes, uma "exposição detalhada das torpezas e dos desvios sexuais", a "exibição libidinosa de uma minoria de perversos". Guy Hocquenghem recebeu manifestamente carta branca para fazer o que quisesse com seus companheiros do FHAR e desenvolver à vontade algumas experiências homossexuais explosivas com árabes, detentos, mineiros, entre outros: "A gente utilizOu a estrutura dessa revista chamada Recherches. Durante um ano a gente podia fazer tudo o que quisesse, era uma espécie de grupo de criatividade, porque na verdade a gente se empenhava em fazer uma outra revista. É muito importante ocupar o terreno de um outro ,23 qu ai quer . Guattari explica na apresentação do núme~ ro que foi preciso pôr em questão os métodos tradicionais das ciências humanas para se livrar das fOrmas de censura que poderiam comprometer o êxito desse projeto de enciclopédia das homossexualidades. Era preciso contornar o objetivismo que esse tipo de pesquisa costuma invocar, como o do relatório Kinsey, publicado no pós-guerra, sobre o "comportamento sexual dos americanos", assim como se livrar das armadilhas da interpretação psicanalítica, que reduz a diversidade do vivido a uma grade preestabelecida. Lembrando que a homossexualidade é ain· da em 1973 objeto de discriminações, publica-se nesse número uma petição em protesto contra o afastamento de um professor assistente de histql:ia nolkeu piloto de Saint-Quen-

tin,Jean-Claude Boyer, por ter assumido publicamente sua homossexualidade e sua filiação ao FHAR. Antes que a sanção fosse aplicada, ele foi interpelado por seu diretor deste modo: "Pederasta ordinário, raça ordinária! Vamos ver se o seu sindicato de pederastas vai defendervocê!"24. Em uma carta de 1974 ao tribunal Guattari explica que deu ao FHAR a possibilidade de expressar o desejo dos homossexuais de sair de seu gueto, seja aquele que os confina a uma patologia ou aquele que se limita a exaltar sua diferença. Além disso, diante da 17• Câmara Correcional, ele defenderá o caráter fundamentalmente político desse processo: "Ele condena uma nova abordagem da vida cotidiana e do desejo e as novas formas de expressão que irromperam a partir de 1968"25, Esse confronto com a justiça entre 1973 e 1974 é uma guinada ao mesmo tempo para o CERFI e para o movimento esquerdista em geral. Soa a hora do refluxo e do recolhimento, em boa ordem para uns, na confusão para outros: "Em 1974, a festa acabou em todos os planos"". A era de Chaban-Delmas, cujo gover· no se empenhava em fazer uma radioscopia da sociedade francesa para melhor modiflcá-la, se encerrou. Para o CERFI, com a chegada de Valéry Giscard d'Estaing ao poder, é o fim dos grandes contratos com o Estado. Em 1975, o ministério do Equipamento propõe incorporar certos pesquisadores do CERFI, mas isso se aplica apenas aos profissionais da pesquisa, diplomados em sua área respectiva: somente 27 5 em 25 assalariados nessa época • Evidentemente, essa incorporação implicaria renunciar à independência do CERFI e deixaria para trás a maioria do grupo: "A posição tomada foi a recusa. Michel Rostain e eu assinamos um texto no Le Monde que me fechou as portas do CNRS definitivamente, pois dizíamos que não era bom que pesquisadores se transfOrmassem 28 em pesquisadores por toda vida'' • Em 1974, a conjunção de vários elemen· tos - um grupo inchado, os efeitos do número_ proibido, as dificuldades financeiras crescen· tes ligadas ao flm dos grandes contratos. a evolução política desfavorável após a derrota

de François Mitterrand para Valéry Giscard d'Estaing - concorre para uma inflexão. Decidiu-se pluralizar o CERFI e implantar unidades finaoceiramente autônomas: ''A partir de 1974, o CERFI foi fragmentado em subgrupos organizados em unidades de produção, a saber: um contrato/um grupo, um grupo/um orçamento... A palavra de ordem era como se dizia: 'Um, dois, três Vietnã' durante os anos de 1960... Eu dizia: 'Um, dois, três CERFI!"29• Para fazer frente à liquefação dos capitais, Lion Murard e Michel Rostain se encarregam das finanças do CERFI. até então assumidas em alternância, embora a verdadeira instância decisória fosse a reunião-AG de terça-feira. A nova dupla está firmemente determinada a racionalizar as despesas, a equilibrar o orçamento, o que representa uma responsabilidade de arbitragem na decisão de sustentar este ou aquele projeto. Pouco a pouco, o modelo de funcionamento coletivo vai se transformando. As AG da terça-feira caem em desuso. Guattari deixa de participar regularmente delas: "O CERFI está então um pouco esvaziado de sua substância central que era vista agora apenas como uma espécie de caixa que tirava dinheiro dos grupos periféricos para alimentar arevista":lo. Essa transformação interna do CERFI corresponde à mudança para o subúrbio, em Fontenay, em setembro de 1974. Assim, o CERFI instalou subgrupos em torno de atividades particulares, como o CERFl-Música, coordenado por Michel Rostain, ou segundo uma lógica de descentralização que deu origem, entre outros, ao CERFISE (CERFI Sudeste). Esse CERFI local é implantado em Marselha, em 1974, em torno de um dos pionmros da política da cidade na França, Michel Anselme, antigo militante maoísta do Partido Comunista Marxista-Leninista da França (PCMLF), que já havia estado várias vezes a La Borde. Nesse meado dos anos de 1970, a pedido do prefeito de Marselha, Gaston Defferre, e do administrador público do HLM''', ele traba"'N. de 1'.: Habítation à Loyer Modéré, conjunto habitacio-

nal, moradia destinada a !Zunílias de baixa renda.

229

lha junto com seus amigos em uma primeira restauração em uma das cidades do subúrbio de Marselha. Há também entre as atividades do CERFI. o grupo vídeo-cinema, coordenado por François Pain. Além de sua atividade clássica de cineasta, que o levou a realizar diversos fllmes sobre La Borde, Pain estende o princípio da análise institucional, propondo a instituições estágios para ensinar as pessoas a filmar, de dentro, suas instituições de trabalho. O grupo intervém principalmente em Nantes, em 1974, em uma estrutura de hospitalização em apartamentos disseminados na cidade. Esse centro de psicoterapia de Nantes invoca a análise institucional mas François Pain, com seu ''grupo vídeo", põ~ em evidência urna série de graves disfunções.

Grandes sucessos editoriais A mudança por que passa o CERFl em !974 e 1975 se traduz, portanto. em urna multiplicação das atividades periféricas, mas também por uma atividade editorial que não se limita mais à revista. É o momento em que se inicia uma política de edição de livros com a criação da coleção "Encres" [Tintas] nas edições Recherches e com a reedição na coleção de bolso "10/18" de alguns números que tiveram uma certa repercussão. Essa atividade editorial corresponde também à chegada na equipe do CERFI de Florence Pétry. Militante do Grupo Informação Prisão (GIP), ela ouve falar do CERFI e em 1973 passa a frequentar as famosas AG da terça-feira. Programadora visual, ela trabalha em edição comoj(ee-/ance e participa de operações de sensibilização de professores universitários para o 10/18: ''Ao chegar a esse grupo do CERFI, senti que havia ali uma produtividade que precisava de uma caixa deressonância''31. Seu primeiro contato com Guattari é bem frio e mesmo conflituoso: motivada para cuidar da edição no grupo, ela se depara num primeiro momento com uma recusa sem meio-termo da parte dele. A própria evolução da revista se orienta cada vez mais para obras

230

François Dosse

coletivas: "Minha contribuição pessoal foi, sem dúvida, perceber que se podia passar da revista para o livro coletivo, e para isso era preciso um olhar externo'm. No momento da chegaM da de Florence Pétry, cuida-se da reedição do número proibido Trois Mi/liards de Pervers. A segunda tiragem de lO mil exemplares desse número da revista Recherches esgota rapidamente. Pouco tempo depois, há o lançamento por Recherches, transformada em editora, dos primeiros títulos da coleção "Encres": La Révolution Moléculaire, de Félix Guattari, e La Force du Dehors, de Georges Préli, ambos publicados em 1977. O sucesso é imediato, como já se esperava, e reafirma o grande prestígio que a revista já tem na época, esse momento bendito de boa saúde da edição em ciências humanas33• As livrarias pedem a revista, cujas tiragens alcançam facilmente as dos livros. Os quiosques do Boulevard Saint-Michel colocam em pilha La Révolution Moléculaire e L'Jdéal Historique, de Fourquet, ao lado do Le Monde. Em La Quinzaine Littéraire, Maurice Nadeau manifesta seu entusiasmo pelas teses de Guattari, que vê como o surgimento de uma voz e de um pensamento novos. Contudo, até 1976, a distribuição ainda é muito artesanal. Os quiosques e livrarias fazem as encomendas diretamente à editora, que pratica a venda por consignação. Florence Pétry põe François Fourquet e Lion Murard em contato com a distribuidora da Gallimard, a Sodis, o que permite multiplicar a capacidade de difusão dos trabalhos do CERFI. A reedição em bolso, pela 10/18, de alguns títulos como Les Équipements du Pouvoir,

L'Jdéal Historique, La Révolution Moléculaire prolongam os sucessos de Recherches. No âmbito do livro de bolso em ciências humanas e em literatura, o papel de Christian Bourgois é absolutamente essencial no período. Desde o início dos anos de 1970, ele é o chefe de orquestra dos sucessos editoriais que produz por suas escolhas ambiciosas. Quando lança Boris Vian pela 10/18, seu amigo Pauvert, cético, tenta dissuadi-lo. Ele vende rapidamente várias cente'i1as de" milhares de exemplares.

Ci!les De!euze & Félix Cuattari

Quanto ao ensaio, mesmo árido, de Ernest Mandei, Traité d'Économie Marxiste, ele vende 200 mil exemplares. Christian Bourgois conquista um enorme público de jovens e estudantes. Aliás, ele se cerca de numerosos conselheiros estudantes ou assistentes que muitas vezes lhe possibilitam fazer contato com certos autores. É por essa via que se aproxima de Jean-François Lyotard e Cornelius Castoriadis (cujo pseudônimo é então "Chaulieu"). Nesse início dos anos de 1970, Christian Bourgois recebe a visita de Deleuze, que o procura sem nenhuma outra intenção a não ser conhecê-lo. Quanto a Guattari, Christian Bourgois tem um encontro com ele logo após· a publicação de O Anti-Édipo em 1972, no momento em que o CERFI inicia suas grandes pesquisas que despertam o maior interesse do editor. Christian Bourgois e o CERFI fecham um acordo para algumas reedições em bolso de Recherches ao final de um café da manhã que reuniu, em torno do editor, Lion Murard, François Fourquet, Claude Rouot e Florence Pétry. Razões familiares aproximam o editor Christian Bourgois de Guattari: sua primeira mulher, Agnes B., viveu em meados dos anos de 1970 com Jean-René de Fleurieu (filho de Marie-Claire Servan-Screiber, que se tornou senhora Mendes France), com quem ela secasou e teve dois filhos: "JVlinha relação com Félix estava ligada a La Borde, à sua relação com Agnes, à minha relação com os filhos de Félix'"'. Respeitoso do território dos outros, Christian Bourgois considera Deleuze e Guattari como autores da editora lvlinuit. Jérôme Lindon é hostil a qualquer reedição em bolso. Contudo, ele fará uma pequena exceção ao seu princípio intangível por amizade, permitindo a Christian Bourgois reeditar, em 1973, Logique du Sens pela !0/18, para uma única tiragem. Toda a efervescência intelectual das décadas de Cerisy encontra assim, com o 10/18, uma vertente editorial: "10/18 era o desejo Eu tinha vontade de que esses livros existissem 35 e eles tinham vontade de me oferecê-los" • A atividade de Recherches ganha amplitude, principalmente sob o impulso de Lion

rard e de Patrick Zylberman, que envolvem a editora em projetos ambiciosos, que, de resto, suscitam resistências no grupo, dado que essas iniciativas visam cada vez mais a uma política clássica de autores. A maior e mais prestigiosa publicação realizada pelas edições Recherches serão os cinco volumes da Histoire des Passions Françaises (1848-1945), de Theodore Zeldin, a partir de 1977. A tradução e a compra dos direitos de publicação desse monumento exigiram um investimento desproporcional aos recursos do CERF!. Aliás, Olivier Quérouil, responsável pela gestão do Centro, se opõe tlrmemente a uma tal aventura, mas sem sucesso. Os temas explorados pelo CERFI que deram lugar a publicações são numerosos, e, a distância, pode-se mensurar a contribuição de cada uma dessas pesquisas. É possível discernir três grandes setores de prospecção privilegiados entre as múltiplas publicações de Recherches a partir de 1971. Em primeiro lugar, a 36 loucura , o verdadeiro domínio de competência do CERFI, que tem como ponto de ancoragem a clínica de La Borde, lugar de estágio da maioria dos membros do grupo. Um segundo domínio, muito amplo, pode ser agrupado sob a denominação foucaultiana de "mundos disciplinares": trata-se da interrogação sobre o passado e o presente das instituições do Estado em uma abordagem inspirada em Foucault, Deleuze e Guattari, como o vetor da fixação territorial, da normalização, das discíplinas e e da [normalização] setorial. O CERFI opõem frontalmente a expressão do desejo às lógicas do poder segundo uma abordagem binária da qual Fourquet toma uma certa distância crítica em 1982, quando escreve uma síntese dos trabalhos do CERFJ. Nesse momento, ele considera o Estado como uma instituição evidenten1ente central, mas não única, cuja função é recuperar, mais do que reprimir: "O imperativo primeiro do Estado-captor é captar, não estancar; canalizar, não fazer barragem; concentrar, 37 não bloquear" • Nesse processo, o emaranhamento das forças dominantes e dominadas é ta] que não é mais possível propagar uma lógica exógena à sociedade civil, como é o caso

231

na maioria dos trabalhos do CEHFI. Apesar disso, as pesquisas concretas, a valorização das experiências e a atenção ao discurso dos atores permitem que os estudos do CERFI preservem seu valor e seu interesse não obstante um paradigma que mostrou seus limites. Uma terceira vertente de publicações do CERFI é consagrada à questão da sexualidade, o que não surpreende da parte de uma corrente qualificada de "desejante", porque coloca no posto de comando a satisfação dos desejos de todas as ordens e, portanto, a supressão de todos os obstáculos. O pleno período de questionamento das tradições é propício também a uma recepção maciça de teses apresentadas nesses números dedicados à liberação sexual. Por volta de 1979 e 1980, o paradigma crítico está em crise generalizada nas ciências humanas: o marxismo e o estruturalismo mostram cada vez mais seus limites. O contexto político evolui e muda a situação com a escalada do tema dos direitos humanos ligada à chegada na Europa Ocidental de dissidentes soviéticos com seus relatos do Gulag. Começa-se a ter uma ideia da extensão dos massacres perpetrados pelo regime de Pol Pot, no Camboja, que atingem as dimensões de um genocídio. Tudo isso contribui para sérias reavaliações e, antes de tudo, para o questionamento das utopias que inspiraram os estudos críticos nos anos de 1960 e 1970. O CERFI está abalado. O tempo das fraturas decisivas chegou para uma organização que perdeu seu centro, substituindo-o por pequenos grupos descentralizados, e do qual o apartamento de 250m' do Boulevard Beaumarchais é apenas uma longínqua idade de ouro. O CERFI está reduzido de fato a sobreviver em um minúsculo dois cômodos perto de La Nation, na Rue Pleyel. É nesse contexto que Lion Murard e Patrick Zylberman tomam a iniciativa de redigir um texto dirigido aos outros membros do CERFI para propor alguns questionamentos radicais das orientações passadas e fazer sugestões para o futuro. Sem uma apresentação diplomática, esse texto considera que a revista na sua forma atual, "nos parece superadi'38 •

232

Desse

O diagnóstico sobre a situação da revista é irrefutável e severo: "Moribunda, Recherches pode morrer calmamente, ser enterrada o mais cedo possível ou mudar de direção - e de mãos. Três eventualidades, portanto, das 39 quais apenas a última merece exame" . As divergências se acumularam depois de alguns anos. Em primeiro lugar, a rejeição das orientações representadas pelo FHAR é muito explícita e muito radical: "Nosso projeto, que ainda precisa ser explicitado, era exatamente o oposto da fórmula futurista e fascista de Hocquenghem: 'Somos pelo superf\cial, pela 0 violência e pelo sexd"~ • O projeto substitutivo desejado por Lion Murard e Patrick Zylberman visa, ao contrário, assumir uma ética da responsabilidade, se abrir para o estrangeiro e, portanto, sair de um certo egocentrismo franco-francês: "Vozes nos disseram indignadas de sua cólera diante da miséria dessa Li~ chtenstein intelectual que é a França, de sua 41 xenofo~·)i_a, de seu egocentrismo" • O que propõem é uma verdadeira "revolução na revolução'': fim da referência ao CERFI na revista, abandono por Guattari da gerência, controle da secretaria de redação pelo irmão de Lion Murard, Numa, assim como uma nova constelação de autores que seriam vinculados à nova revista: ]ean-Marie Doublet, François Ewald, Condominas Filho, Mareei Gauchet, Krzysztof Pomian, etc. A grande discordância que eclode nesse final dos anos de 1970 entre Lion Murard e Patrick Zylberman, de um lado, e Guattari, do outro, está ligada também à recusa do fundador do CERFJ de condenar claramente uma extrema esquerda italiana e alemã que prega aviolência armada. Llon Murard, ao contrário, exige entre 1979 e 1980 uma condenação clara e nítida do terrorismo: "Eu acrescentava ao meu texto: 'Não é, Félix?', Félix me ligou, furioso, como se pode imaginar, mas esse era apenas um texto interno. Ele ameaçou me mandar seus advogados. Depois de 20 anos de trabalho conjunto, isso me deixou perplexo. Resolvi por 42 fim reescrever as cinco linhas incriminadas" • Esse texto não é ·aiscutido.em reunião plenária

Gilles Deleuze & Félix Guattari

- mais um sintoma do estado de decomposição do grupo- e provoca um agravamento da crise interna. Anne Querrien, no contexto do ano de 1980, considera que a necessidade de uma reorientação da revista no sentido da defesa dos ideais democráticos deve ser no mínimo discutida. Além disso, ela está cada vez mais crítica quanto ao funcionamento bem pouco democrático de uma revista cujo diretor detém todos os poderes, mas sem se envolver efetivamente. Apesar de sua fidelidade indefectível a Guattari, ela está dividida e receptiva à ideia de uma reorganização da revista proposta por Murard e Zylberman. Depois de escrever um texto de compromisso, em outubro de 1980, ela recebe um telefonema de Guattari, que a acusa de tomar partido de seus adversários e deixa claro que não quer mais vê-la: "Comecei a tremer como uma louca e quando vi estava 43 em Sainte-Anne" • Dá para imaginar a perturbação de Anne Querrien quando se sabe que a esfera afetiva e a do trabalho se misturam totalmente no grupo do CERFL As atividades de pesquisador, para os que se empenham como ela, não têm horário e exigem uma dedicação permanente; a isso se acrescentam as relações afetivas, o trabalho analítico, a transferência ... Circunstância agravante, Anne Querrien faz análise com Félix Guattari e tem o hábito de lhe contar no divã os problemas de funciona~ menta do CERFL Guattari já lhe havia dito, o que a deixara apavorada: "Quando vejo uma árvore morta e coisas brotando, olho as coisas brotando e não me importo nem um pouco que essa árvore esteja morta no meio, porque se eu cortasse as coisas que estão brotando, tudo estaria morto"'14 • O CERFI não se recupera dessa divisão interna. Em 1981, Félix Guattari se afasta e deixa a direção da revista a Liane Mozêre. Além disso, Recherches não é mais apresentada como a revista do CERFL São publicados mais alguns números, até o 49, em abril de 1983, simbolicamente colocado, para esse canto do cisne, sob a codireção de Félix Guattari e de Liane Mozêre.

Na hora do balanço, pode-se avaliar a que ponto essa experiência coletiva foi rica. Ela certamente pagou um preço alto pela recusa de constituir uma equipe institucionalizada. Contudo, fazia parte do espírito do CERFI estar permanentemente em busca de si mesmo, em caminhos não traçados, constituídos por suas próprias crises. O CERFI: grupo de pesquisadores em ciências sociais? Movimento de ideias? Movimento intelectual? Justaposição de desejos? Escola de pensamento? Experiência comunitária, tipo falanstério? Cooperativa de produção científica? Se cada um viveu o CERFI com sua singularidade própria, conectada ao grupo de maneira tanto mais intensa na medida em que não havia um suporte institucional unificante, a galáxia de planetas diferentes tinha, no entanto, um centro de gravidade, um sol chamado Guattari: "É um teatro no qual muitos afetos são representados, muitos rearranjos de relações ... Creio que o CERFI é isso, mais do que tudo, é a instalação de um 5 cenárid''; • Sua originalidade reside nesse entrelaçamento voluntário de desafios teóricos e da experiência prática, da dimensão intelectual e dos afetos, do socius e dos desejos individuados. Uma tal articulação não era simples, mas possuía alguma coisa de heroico da parte daqueles que a tentaram. Em muitos domínios, o CERFI foi inovador, e o resultado de suas pesquisas, valioso. Quando se toma a metodologia de investigação adotada pelo CERFI, restituindo-a ao espírito dominante dos anos de 1970, é surpreendente ver a que ponto ela anuncia a virada pragmática que o conjunto das ciências sociais experimenta no final dos anos de 1980. Quem melhor refletiu sobre sua prática de pesquisa foi, incontestavelmente, François Fourquet, em duas ocasiões importantes'16 • Sem dúvida por sua postura crítica em face de uma concepção do sujeito desconectado do socius, mas ao mesmo tempo em busca de processos de subjetivação, ele é levado a dar crédito aos atores e ao maior respeito ético à palavra deles como recurso de sentido e espaço privilegiado de suas prospecções.

À escuta dos atores Para escrever sua f/isto ire de la Psychiatrie de Secteur, lançada em 1975, François Fourquet e Lion Murard entrevistam os psiquiatras e administradores que foram os atores dessa 47 transformação da prática psiquiátrica : 'Aparecemos essencialmente como encenadores de enunciados que reunimos segundo uma certa ordem, e foi esse trabalho de montagem 48 que nos deu o maior prazer" • É no posfácio que Fourquet coloca os problemas metodológicos próprios a esse levantamento. Ele explica as duas particularidades dessa pesquisa que relativizou a parte dos arquivos escritos em proveito de depoimentos gravados dos atores dessa história. Portanto, o trabalho do pesquisador consistiu essencialmente na elaboração de um questionário e na montagem dos extratos coletados para estabelecer o texto definitivo. Inspirando-se nos métodos do jornalismo e da sociologia, o método poupa os autores da obra de ter de escolher entre a estrutura e o indivíduo: "Não se trata de substituir a Estrutura pelo Indivíduo e de dizer: são os indivíduos 49 que fazem a história'' • Onde encontrar então o verdadeiro motor dessa história da psiquia~ tria para agenciar suas evoluções? Fourquet diz ter pensando primeiro em termos de "matrizes históricas". Por exemplo, o autor da circular de 1960, o Dr. Aujaleu, inscreve suas decisões em uma espécie de matriz gaullista, que comporta ao mesmo tempo sua vertente teórica e prática e age sobre o indivíduo para além da consciência que ela possa ter. Haveria, portanto, um jogo complexo durante o qual se poderia articular a matriz gaullista de um Dr. Aujaleu, a matriz comunista de um Dr. Lucien Bonnafé, ou ainda a matriz protestante de um Dr. Georges Daumézon, ou a matriz 'Albergues da juventude" do Dr. Oury e de Guattari,, "E depois isso não funcionou. Nossas matrizes acabaram irritando a nós mesmos. No flm das contas, elas lembravam os patterns do cultura50 lismo americano, além disso com a libidd' • Em 1980, Fourquet publica, desta vez sozinho, uma nova pesquisa sobre a contabilidade

234

Dosse

nacional que prolonga sua reflexão sobre os usos das fontes orais51 . Como já dissemos, em 1976 ele troca Paris por Ardeche e só volta a se estabelecer em Paris em 1994. Nesse meio tempo, não fica inativo. Vai e volta para realizar sua pesquisa junto ao maior corpo do Estado: "Eu subia até Paris vestindo um casacão de lã e calçando tamancos, e desembarcava desse jeito na casa de Pierre Mendes France 52 e dos outros!" • Nesse traje ridículo bem pou~ co acadêmico, não há necessidade de cultivar a distância do pesquisador, ela é flagrante e singular. Graças ao papel que atribui às fontes orais, Fourquet consegue a proeza de tornar audível um tema particularmente árido e austero como o da contabilidade nacional, e apre-

senta essa história como sendo narrada por 53

seus atores . De fato, a fonte principal, mas não exclusiva, é constituída pelas entrevistas realizadas com essas 26 personalídades entre 1978 e 1980. Depois de ter obtido um certo número d_e.entrevistas, ele retorna para explorar suas fontes em Ardeche: "Se o pesquisadorescuta bem, descobre coisas magníficas, ao passo que com o discurso erudito se chega em geral a elementos emasculados, anestesiados"54 . Sua pesquisa ressalta a mutação fundamental de mentalidade econômica entre a fase malthusiana de antes da guerra e o voluntarismo produtivista do pós-guerra ligado a um controle maior do Estado sobre os mecanismos econômicos para garantir uma maximização dos fatores de crescimento. Valendo-se de sua experiência sobre a psiquiatria de setor, Fourquet prossegue seus trabalhos na continuidade de uma pesquisa que "me havia mostrado a superioridade extraordinária de uma história contemporânea contada por seus próprios atores sobre uma obra que se diz científica e que frequentemente se limita a recobrir a palavra dos atores com uma reescrita erudita, misturando, sem discernimento possível para o leitor, a informação primária dada pelos atores e o comentário dos pesquisadores"55• Entre a postura de superioridade do erudito que se supõe ~,aber e que se julga em condições de desvenda'f a má:fé~ a justificativa artifi-

Gilles Deleuze & Félix Guattari

cial e o pós-ato no discurso dos atores, e a ideia segundo a qual para compreender o outro é necessário primeiro escutar e assimilar sua própria lógica como pertinente, Fourquet tem muita consciência da tensão inevitável dopesquisador que não deve ceder nem de um lado nem do outro, mas, ao contrário, apreender os dois extremos da cadeia. São essas tensões criativas entre querer e saber, socius e libido, conhecimento e poder que conseguiram fazer viver os pesquisadores do CERFI, até a carne, levando-os ao paroxismo.

Notas l. 'Architecture et programmation, psychiatrie", Recherches, n. 6, junho de 1967.

2. Arme Querrien, entrevista com o autor. 3. Lion Murarei, entrevista com o autor.

4. Michel Rostain, em]anet H. MORFOBD, "Ris-

to ire clu CERFJ", EHESS/DEA, out. 1985, p. 139. 5. lbid., p. 178. 6. Anne Querrien, entrevista com o autor. 7. lbid. 8. Florence Pétry, responsável pela revista Recherches, entrevista com o autor. 9. lbid. 10. Depois de três anos, em fevereiro de 1978, o CERFI volta finalmente a Paris, no 12fl Distri~ to, Rue Pleyel. ll. "Généalogie du Capitall. Les équipements du pouvoir'', Recherches, n. 13, dezembro de 1973. 12. François FOURQUET, ''L'accumulation du pouvoir ou !e désir d'État", Recherches, n. 46,

setembro de 1982, p.15. 13. lbid., p. 15. 14. Assim, fica-se sabendo o que é condenado na companheira do jornalista do Monde Da· niel Vernet (Marie-Thér€se Vernet-Stragiotti}: consagrar-se demais à conjugalidade do casal, territorializar-se demais. Essa história é de fato reveladora de uma fl:ente de luta da época contra todas as formas de f€chamento no ca~ sal. Ora, a companheira de Daniel Vernet teve a audácia de programar o período de férias do casal pouco antes do t€chamento do número pelo qual ela tinha assumido a responsabilida-

de! Ela é convocada por dois membros da "máfia" na véspera de sua partida, e o caso se torna mais grave, pois Marie-Thér€se tinha aceitado redigir o relatório final, e sua atitude "pequeno-burguesa" compromete esse engajamento.

15. François FOURQUET, Lion MURARD, apresentação, Recherches, n. 13, dezembro de 1973, p.J. 16. François FOURQUET, L'Jdéal historique, Recherches, n. 14, janeiro ele 1974. reecl. UGE, 10/18, Paris, 1976. 17. lbid.: reecl. UGE, !0/18, p. 7. 18. lbid., p. 8. 19. Anne Querrien, emjanet H. MORFORD, "His* to ire du CERFI", op. cit., p. 63. 20. janet H. MORFORD, ibid., p. 75. 21. François Pourquet, em Janet H. MORFORD, ibid., p. 94. 22. Trois milliards de pervers, Recherches, n. 12,

março de 1973. 23. Guy Hocquenghem, entrevista comjean-Pierre Joeker e Alain Sanzio, Masques, março de

198l,p.16. 24. Texto assinado por F. Châtelet, H. Weber, D. Bensai:d, G. Deleuze,J.-F. Lyotard, R. Shérer, G. Lapassade, F. Guattari, R. Lourau, F. Lourau, G. Hocquenghem, M. Juffe, P. Barjonnet, C. Hen· nion. 25. Félix Guattari, '"freis milliards de pervers à la

barre" (1974), em RM, p.ll8. 26. Anne Querrien, entrevista com o autor. 27. Trata~se de François Fourquet, Lion Murarei, Uane Moúre, Michel Rostain e Anne Querrien. 28. Lion Murarei, entrevista com o autor. 29. J\tlichel Rostain, emjanet H. MORFORD, «Histoire du CERFl", op. cit., p. 139. 30. Anne Querrien, ibid., p. 112-113. 31. Florence Pétry, entrevista com o autor. 32. lbid. 33. O n. 22 de Recherches, Co-ire, 1976, realizado

por René SCHÉRER e Guy HOCQUENGHEM vendeu 7 mil exemplares em um ano e meio. O n. 25, Le Petit Travailleur injàtigable, 1976, rea-

lizado por Lion MURARD e Patrick ZYLBER· MAN, com 4 mil exemplares na primeira edição e 4.500 na segunda edição, vendeu tudo. 34. Christian Bourgois, entrevista com o autor.

235

35. lbid. 36. Principalmente com os Cahiers de l'lmmuable ele Femanei DELIGNY (n. 18, 20 e 24, em 1975 e 1976); Psychiatrie: !e secteur impossible (n. 17, março de 1975): l!istoires de La Borde (n. 21,

abril de 1976): L)tsile (n. 31, fevereiro de 1978): Déraisonances (n. 36, março de 1979). 37. François FOURQUET, ''L'accumulation du pouvoir ou !e désir d'État", Recherches, n. 46, setembro ele 1982, p. 64. 38. Lion Murard, Patrick Zylberman, texto datilografado passado ao autor por Lion Murarei; ele é dirigido ao CERFI a Anne, Liane, Félix, Michel, François, Numa, Olivier, Claude H., Georges, Claucle R., Gérard, Lu c, Philippe, Florence, Françoise. 39. lbid. 40. lbid. 41. lbid. 42. Lion Murare\, entrevista com o autor. 43. Anne Querrien, entrevista com o autor. 44. Félix Guattari, citado por Anne Querrien, em janet H. MORFORD, "Histoire du CERFI", op. cit., p.163. 45. Félix Guattari, em janet H. MORFORD, "Histoire clu CERFI", op. cit., p. 218. 46. François FOURQUET, Lion MURARD, Histoire de la psychiatrie de secteur, ed. Recherches, Paris, 1980 (já publicado com o titulo Psychiatrie: le secteur impossible?, Recherches, n. 17, março de 1975): François FOURQUET, Les Comptes de la puissance. Histoire de la comptabilité nationale et du plan, ed. Recherches, col.

"Encres", Paris, 1980. 47. Dr. Aujaleu, Dr. Pierre Bailly-Salin, Dr. Lucien Bonnafé, Dr. Georges Daumézon, Félix Guattari, Dr. Robert-Henri Hazemann, Sra. Laurenceau, Srta. Mamelet, Dr. .Mignot, Dr.Jean Oury, Dra. Danielle Sabourin-Sivadon, Dr. Paul Sivadon, Dr. Horace Torrubia, Dr. François Tosquelles, Dr. Charles Vaille.

48. François FOURQUET, Lion MURARD, "Pré· sentation", Histoire de la psyclúatrie de secteur, op. cit., p. 6. 49. François FOURQUET, op. cit., p. 314. 50. lbid., p. 316. 51. François FOURQUET, Les Comptes de la puissance. Histoire de la comptabilíté nationale et du plan, op. cit.

236

52. François Fourquet, entrevista com o autor. 53. Claude AJphandéry, Henri Aujac,jean Beinard, Louis-Pierre Blanc, François Bloch-Lainé, Jean Denizet, René Froment, Pierre Gavanier, Claude Gruson, Êtienne Hirsch, Édouard Malinvaud. Jean Marczewski, Pierre Massé, jacques Mayer, Pierre Mendes France, Renê

Mercier, Símon Nora, François Perroux, Charles Prou,jean Ripert, Michel Rocard,Jean Saint-Grours,jean Serisé, Pierre Uri,André Vanoli, André Vincent. 54. François Fourquet, entrevista com o autor. 55. François FOURQUET, Les Comptes de la puissance, op. cit., p. XI.

16 A "revolução molecular": Itália, Alemanha, França

Em 1976, o País !lasco está agitado, sobretudo do lado espanhol, onde o ETA está engajado em uma luta armada contra o poder madrilense. É a época em que Félix Guattari sonha em construir uma federação de todos os movimentos de contestação regional capaz de abrir frentes secundárias e enfraquecer o Estado-nação. Apesar de suas redes, ele não consegue realizar esse projeto, no mínimo peIigoso, na fronteira do combate democrático e das ações terroristas.

O Maio de 68 italiano: 1977 Em compensação, Guattari e seus amigos vivem no movimento italiano um verdadeiro banho de juventude. Uma década depois de ter estado no centro do movimento de Maio de 68, ei-los nas ruas de Bolonha observando, petrificados, estupefatos, irromper a revolução molecular de seus sonhos, um movimento contra os aparelhos de todo tipo, que se expressa em uma linguagem totalmente nova e com métodos até então inéditos. Em 1977, enquanto é lançado o ensaio Revolução Molecular, de Guattari, a Itália assiste à deflagração de um movimento cujo radicalismo e cuja violência

quase relegam o Maio de 68 francês à categoria de desfile de estudantes. A Itália de 1977 vive uma crise sem precedente. Os indicadores econômicos são desesperadores. A cada mês o país afunda um pouco mais. Contam-se 2 milhões de desempregados, e as previsões dos responsáveis não permitem esperar nada de bom desse lado: em janeiro de 1977, o ministro da Indústria em pessoa anuncia, à guisa de votos de ano novo, mais 600 mil desempregados para fevereiro. A taxa de inflação de 25% ao ano faz despencar a lira, que perde 38,9% em relação ao dólar em três anos. Paradoxalmente, é nesse país que está perdendo seus empregos e suas referências que explode um amplo movimento de contestação, não para exigir uma melhor distribuição dos empregos, trabalho para todos, salários indexados à alta dos preços, mas sim, menos classicamente, minar ·as bases do sistema atacando de frente o valor trabalho, a propriedade, a delegação de poder e de palavra. Se a crise econômica e social é de grande amplitude, a situação política, por sua vez, está totalmente bloqueada. O governo Andreotti pilota o país sem bússola. Quanto à grande força alternativa muito influente, o Partido Comunista Italiano (PC!) dirigido por Berlinguer,

238

Gil!es Deleuze & Félix Guattari

Fmncc
apela à recuperação nacional, à ordem moral e à aceitação da austeridade. Em nome de um necessário "compromisso histórico", o PCI se transforma em partido de governo. Nessa épo~ ca, os comunistas italianos tomaram distância do grande irmão soviético. Eles são, então, a facção ativa e desejada do "eurocomunismo''. Ao mesmo tempo, seu alinhamento atrás das autoridades italianas e a busca de uma aliança com um partido tão comprometido quanto a

Democracia Cristã têm como efeito dramático não mais oferecer uma escapatória para

a grande massa de excluídos (os emarginati) atingidos de frente pela crise e privados de qualquer esperança.

Esse clima pesado alimenta os radicalismos, as explosões espontâneas e a violência dos enfrentamentos. Enquanto em maio de 1968 o movimento se expressava, no fim das contas, em uma linguagem antiga, a do marxismo-leninismo, versão trotskista ou maoísta, a contestação italiana, a dez anos de distância, busca- novas inspirações. Toda uma série de correntes da extrema esquerda italiana encontrará nas teses deleuzo-guattarianas, e particularmente em O Anti-Édipo, cuja tradução italiana aparece em 1975, uma linguagem nova, sobretudo em torno da noção de "máquina desejante". Os Trinta Gloriosos são agora uma lembrança longínqua, e os estudantes não têm mesmo a menor esperança de utilizar seus diplomas. Visto que não há mais futuro, as correntes alternativas, autônomas, põem a mudança de vida no presente. Querem inventar um novo aqui e agora em espaços coletivos de convívio, lugares autogeridos, comunidades propícias à libertação do eu. Em relação a 1968, assiste-se a uma alternância de geração. Outro componente da situação italiana contribui para o radicalismo dos enfrentamentes, a persistência na Itália de um partido fascista, o MS!", que não somente pode se apoiar em tropas ativas, como também dispõe {' N. de R. 'I:: sigla MSI é para Movimento Sociale italiano. Ele foí um partido de extrema direita que surgiu a partir de uma "nostalgia" do fasci&',t}lO.

de redes de cumplicidade no mais alto nível do aparelho de Estado que podem servir de forças suplementares para cercear qualquer veleidade de contestação social. A essa situação já explosiva acrescenta-se a estratégia de uma Democracia Cristã acuada, que quer ins~ tnunentalizar a violência fascista como meio de intimidação em face do movimento social e de justificação de uma repressão rígida dos movimentos de extrema esquerda. Assim, a divisão das tarefas é pensada em todos os detalhes: os fascistas cometem atentados seguidos, e a política persegue os militantes de extrema esquerda, apontados como responsáveis e entregues à ira popular, com um PCI que não in~ tervém ou que até aplaude a repressão que se abate sobre seus rivais. A explosão de uma bomba em Milão em 12 de dezembro de 1969 na Piazza Fontana, que deixa 16 mortos e 80 feridos, é considerada um "traumatismo original" por Isabelle SommÚ:·!r. No dia seguinte a esse ato terrorista, a polícia procede à prisão de 27 militantes de extrema esquerda. Outros atos de terrorismo se seguem: um trem que descarrila em 22 de julho de 1970 (6 mortos, 50 feridos), uma bomba em Brescia durante uma manifestação antifascista (8 mortos, 94 feridos), uma bomba em um trem em 4 de agosto de 1974 (12 mortos, 105 feridos). A "estratégia da tensão,. não para de avançar ao longo dos anos de 1970, e com ela o número de vítimas. O escândalo da Loge P2M vem à tona, revelando à opinião pública o alto grau de infiltração das redes fascistas no seio do poder. Enquanto os dirigentes italianos se comprometem com os piores inimigos da democracia, e o PC! se faz de chantre do "compromisso histórico", para os excluídos e contestadores de todas as tendências não resta senão a via da oposição radical. Quando o secretário-geral da grande central sindical italiana, a CGIL, Luciano Lama, se apresenta na universidade de Roma, é posto para fora sem qualquer condescendência, o que dá lugar a ** N. de R. T.: O escândalo da "LOGE P2» deve seu nome a urna organização (foge) maçônica criada em 1877.

intensos confrontos entre os estudantes, as forças policiais e o serviço de ordem do PC!. Quanto à existência da extrema esquerda italiana, ela viveu entre 1968 e 1977 uma verdadeira mutação que, em alguns, se configurou como uma busca criativa e, em outros, como recurso ao terrorismo. As organizações de tipo leninista oriundas de 1968, rio essencial, desapareceram do horizonte políticot. Sobre seus escombros, brotou um movimento que reivindicava a autonomia operária, reunindo inúmeros coletivos dos quais alguns eram muito poderosos nas maiores empresas italianas, como Fiat, Pirelli, Alfa Romeo, Policlinico ... Sua particularidade é recusar por principio as formas tradicionais de delegação do poder e da palavra. Encontram-se aí muitos militantes da antiga organização Potere Operaio. Em 1977, os "índios Metropolitanos", a ala mais criativa do movimento, enfatizam a necessidade de transformar as relações entre os indivíduos e utilizam como principal arma a gozação e a ironia em face do sistema. Organizam-se e deslocam-se como tribos de "peles-vermelhas" pelas grandes cidades da Itália e lutam pela liberalização da droga, pela "requisição de imóveis vazios, pela criação de rondas antifamílias para livrar os menores condicionados por seus pais, por um quilômetro quadrado de verde para cada habitante, pela devolução aos países de origem de 2 todos os animais presos nos zoológicos" • Esses movimentos contestatórios não precisam, como em 1968, clamar a necessidade da aliança estudantes-operários: ela existe de fato entre os estudantes, os jovens operários, os numerosos subproletários e desempregados que se reconheciam na emergência de um movimento que defende sua autonomia em relação a todas as formas de manipulação. Até 1977, as ações da autonomia operária se multiplicam, e muitas delas são da esfera do delito de direito comum nos fatos e da ação política nas intenções: são ocupações de casas parti~ culares, autorredução das tarifas nos serviços públicos, expropriações e assaltos a bancos. O ano de 1977 é o ponto culminante dessa agitação, com uma "progressão de 77,62% dos

239 3

ataques contra os bens em relação a 1976" . Jovens, estudantes, operários e marginais, eles constituem um proletariado juvenil que desestabiliza o sistema, pregando a ação imediata para mudar sua existência de excluídos. A tensão não para de crescer entre esse movimento incontrolável e um poder acuado. A essa situação acrescenta-se um fator agravante que havia poupado a França de Maio de 68 e do pós-Maio: o terrorismo, praticado cada vez mais correntemente por algumas organizações da ultraesquerda italiana. As Brigadas Vermelhas (Brigate Rosse), surgidas em 1970, benefldam~se de uma penetração real nas fábricas, particularmente no feudo de Agnelli, a Fiat, em Turim. Em 1972, desempenham um papel fundamental nas greves selvagens que perturbam o grupo industrial, pois semeiam o pânico nos contramestres e nos operários não grevistas, lançando o movimento dos "lenços vermelhos". Ao longo dos anos de 1970, as BR se orientam para o terrorismo, e os sequestras visam principalmente juízes e políticos. Além das BR, essa ala terrorista conta ainda com uma organização surgida em 1984, os Núcleos Armados Proletários (NAP), que reúnem militantes de extrema esquerda e antigos presos comuns. Essas duas organizações pregam a luta armada na clandestinidade e o terrorismo. Em 1977, não há um mês em que não ocorram se~ questros, explosões, assassinatos. Outros preferiram palavra e diálogo ao P-38'''. Aproveitando o flm do monopólio da RAJ, aprovado em 1976, uma profusão de rádios livres se apoderou das ondas, abrindo-as à possibilidade da expressão da contracultura. Entre esses inúmeros polos de agitação cultural, a Radio Popolare é transmitida para Milão com uma audiência e capacidade de mobilização impressionantes. Em dezembro de 1976, elas .transmitem ao vivo os distúrbios durante a abertura da Scala e, em março de 1977, "anunciam a morte de uma mulher que teve

"'N.de R. T.:A P-38, é uma arma de fogo (Walther pistol38) de fà.bricação alemã, criada na I! Guerra Mundial.

'· ~

240

Dosse

recusado um aborto terapêutico; nos minutos 4 seguintes, 5 mil mulheres saem às ruas" • Entre todas as rádios da contracultura, a Rádio Alice não é das menores, lançada por um antigo dirigente de Potere Operaio de Bolonha, Franco Berardi, vulgo "Bifo''. Essa rádio é transmitida para Bolonha, cidade estudantil, mas também vitrine do compromisso histórico, com sua municipalidade comunista. Conta com uma audiência muito grande e com um público apaixonado e bastante ligado a essa voz dissidente. Bifo está fazendo o serviço militar, aos 23 anos, quando descobre Psicanálise e Transversalidade. A reflexão de Guattari sobre a psicanálise e sobre a maneira como ela modiftca a relação com a política desperta seu entusiasmo de militante. No prefácio a um livro sobre essa rádio, Guattari escreve; ''A Rádio Alice entra no olho do tufão cultural - subversão da linguagem, aparecimento de um jornal, 'A/Traverso', mas está também diretamente envolvida na ação política que deseja 'transversalizar'"'- Em 1976, Bifo foi preso por "instigação moral à revolta': 'A Rádio Alice tinha uma importância incrível em nível nacionaL Era muito ouvida. Nas fábricas, havia grupos de operários que entravam em suas oficinas 6 com o rádio e o ligavam na Rádio Alice" Em 1977, a situação é muito mais tensa. Em 8 de fevereiro de 1977, a maioria das grandes universidades italianas é ocupada pelos estudantes em protesto contra a reforma universitária. No final do mês, uma assembleia nacional do movimento estudantil que serealiza em Roma dá lugar a violentos confron~ tos. Em 11 de março de I 977, um militante da Lotta Continua, Francesco Lo Russo, é morto pelos carabineiros, o que motiva uma manifestação de mais de 100 mil pessoas, no dia seguinte, nas ruas de Roma. Eclodem tiroteios, a cidade está em estado de sítio. Do lado de Bolonha, a situação também é muito tensa: "Em março de 1977, passou-se da fase de ocupação à fase de criação de 'zonas livres'. Decidiu~se que uma parte da cidade seria interditada aos tiras, aos fascistas, e ergueram-se barricadas. A 7 polícia atirou e ·W,1atou u~ estudante" • A no-

Gi!!es Deleuze & Félix Guattari

tícia dessa morte é difundida imediatamente em Bolonha através da Radio Alice, o que leva a um ajuntamento de lO mil pessoas. Em 12 de março, "às 22h25, a polícia ocupa a rua onde fica a Rádio Alice, zona onde até então não havia acontecido nada, fecha bares e restaurantes, lança gases lacrimogêneos e se apresenta com fuzis apontados e coletes à prova de 8 bala diante desse "perigoso covil'" • A rádio é fechada, os carabineiros fazem oito prisões por instigação à delinquência e associação subversiva, mas não consegue pôr as mãos em Bifo. No dia seguinte, 13 de março, Bolonha está em estado de sítio. Três mil carabineiros e policiais em blindados ocupam a zona universitária a pedido do prefeito democrata-cristão. O administrador comunista da cidade, Zanghari, exorta as forças da ordem à repressão mais severa: "Entre 11 e 16 de março ocorre em Bolonha uma espécie de insurreição. Todo o centro está cercado de barricadas, com bairros controlados por estudantes, mas também muitos jovens operários. Um depósito de armas foi saqueadd'9• Os funerais do estudante morto dão lugar a violentos confrontos. Em 16 de março, a Democracia Cristã e o PCI organizam em conjunto uma grande passeata com 150 mil pessoas contra a violência, enquanto, por sua vez, 15 mil estudantes desfllam nas ruas de Bolonha. Uma ação rápida da polícia culmina com a prisão de 300 pessoas em Bolonha. Em 13 de maio, o ministro do Interior adota medidas anti terroristas; a partir de então, os autores de atentados terroristas seriam condenados à prisão perpétua. Bifo, em fuga, vai para Milão, depois Turim, e atravessa a fronteira francesa. Chega a Paris em 30 de maio com o ardente desejo de encontrar Guattari, cujos textos tanto apreciou. O pintor Gianmarco Montesano, amigo de Bifo e do filósofo Toni Negri, o leva até Guattari. Esse artista pintor é um antigo militante de Potere Operaio, encarregado pela direção de sua organização de abrir o movimento italiano a uma dimensão europeia e, portanto, de estabelecer contatos a fim de constituir redes de uma esquerda alternativa. Ele está em Paris há algum tempo e conheceu na ENS Yann Moulier-Boutang, que

prepara a agregação de ciências sociais; os dois fundam o grupo "Camarades", que publica uma brochura difundindo informações e análises com o título "Materiais para a intervenção". É nesse grupo que Montesano encontra a socióloga Daniele Guillerm: "Quando propus a 'Camarades' traduzir coisas sobre o movimento na Itália, Rádio Alice ... ela me propôs discutir com 10 Félix" • Desse encontro nasce o livro prefaciado por Félix Guattari sobre a Radio Alice". No início, Guattari não conhece muita coisa sobre a situação italiana, fora o movimento da anti psiquiatria com o qual mantém relação estreita. No plano político, seu primeiro informante é Montesano: "Meus primeiros encontros com Félix eram totalmente instrumentais"1.2. Para além da motivação maior de constituir uma rede militante internacional eficaz, logo nasce urna cumplicidade, e Guattari dedica atenção crescente à situação italiana. Ele acolhe Montesano em sua casa, na Rue Conde, local de passagem de todas as clissidências e marginalidades. Quando Bifo, que conhece bem Montesano, está foragido em Paris, não tem nenhuma dificuldade de encontrar Guatari. Assim, Bifo encontra Guattari várias vezes desde o mês de junho de 1977 e de imediato se torna seu amigo. Em 7 de julho, vai para a casa de uma amiga em Paris: quem o espera diante da porta é a polícia italiana. Bifo é detido e encarcerado em La Santé, depois em Fresnes. Guattari organiza rapidamente uma rede de apoio para sua libertação. É nessa ocasião que ele se dedica com alguns amigos a criar o Centro de Iniciativas para Novos Espaços de Liber1 dades (CINEL( , cujo primeiro objetivo é garantir a defesa dos militantes persegnidos pela justiça. Esse grupo publica um jornal, encontra uma sede na Rue de Vaugirard e se mobiliza imediatamente pela libertação de Bifo. O processo, em que está em jogo o exame do pedido de extradição por parte das autoridades judiciárias italianas, é aberto apenas alguns dias após a prisão. Embora perseguido como animador de uma rádio ·livre, o motivo da extradição faz dele um chefe de gangue

241

responsável por um sequestro em Bolonha. A defesa dos advogados franceses, entre eles Me Kiejman, não tem dificuldade de demonstrar a fragilidade das razões oficiais do processo aberto. Em 11 de julho, Bifo é considerado não extraditável e acolhido na França como refugiado político: "Na tarde de minha saída da prisão, foi redigido um apelo contra a repressão na Itália para ser assinado por inte14 lectuais franceses" • Bifo, ao ser libertado, instala-se na casa de Guattari, na Rue Conde. Ele acaba de conhecê-lo e já o considera como 5 um "irmão mais velho»~ • Os dois amigos redigem o apelo condenando a repressão que se abate sobre o movimento na Itália e acusam frontalmente o poder democrata-cristão, mas também a política de compromisso histórico do PCI. Essa iniciativa suscita de imediato uma verdadeira reação de exasperação nacional do lado italiano, onde os intelectuais e os políticos atacam violentamente os franceses por ingerência em assuntos que não conhecem e lhes negam o direito de se erigirem em donos da verdade.

A reação de Bolonha Para reagir contra a política repressiva e retomar a iniciativa, toda a extrema esquerda italiana se reúne para um grande encontro e colóquio na cidade de Bolonha nos dias 22, 23 e 24 de setembro de 1977. O PC!, que administra a cidade, diz que é provocação, e seu secretário~geral, Enrico Berlinguer, denuncia os "portadores da peste". Esperavam-se predadores, mas se assiste, ao contrário, a um encontro de três dias de dimensões dantescas para uma cidade média corrio .Bolonha, ocupada por 80 mil pessoas na maior calma, sem saques, sem violência, o que, considerados o clima de tensão e a dimensão da multidão reunida, é Uma proeza. Bifo passa esses três dias se informando ao telefone sobre o que se passa na cidade, para onde não pode ir sob o risco de prisão. Todo o bando de Guattari está' lá, nas ruas de Bolonha, em estado de estupefa-

242

Dosse

Gilles Deleuze & Félix Guattari

18

ção. Estão presentes todas as componentes da extrema esquerda italiana, da ala terrorista à corrente da autonomia operária, passando pe~ los "fndios Metropolitanos", pelas feministas, pelos homossexuais, pelas "lésbicas verme~ lhas" ... Os militantes do PC! mantêm discrição

gotas"

na sua própria cidade-símbolo do compro-

de pacificação dos movimentos de extrema es-

misso histórico contestado e ainda fornecem alojamento, durante três dias, a essas dezenas de milhares de jovens. Um acordo tácito foi fechado com as BR para que evitassem qualquer

querda, e ao mesmo tempo se desfila diante da

violência. Habilmente, as BR respeitaram esse

pela campanha dos italianos contra os intelectuais franceses, decide com Yann Moulier-Bou-

pacto, mas aproveitaram de sua manifestação de força para recrutar em massa nessa oportunidade única que lhes foi oferecida de desfilar publicamente na total impunidade: "Isso ocorreu, evidentemente, à nossa revelia, não

se havia considerado essa possibilidade"

243

----------------------------------------------------------------------------

16

.

Du-

rante essas três jornadas, circula-se dia e noite pelas ruas de Bolonha, debate-se por toda parte, sobretudo no Palácio dos Esportes, onde milhares de pessoas vão ao fórum permanente discutir tática, estratégia, abolição do trabalho ... Das janelas da sede da administração de Bolonha, os hierarcas do PC! assistem impo-

tentes a essa maré humana multicolorida. "Foi a primeira vez que se viu uma manifestação de 20 mil jovens mulheres que faziam o símbolo

de seu sexo com a mão e que gritavam. Era ele uma belezat Era a primeira vez que se via essa possibilidade: um poder de mulheres!", recor17 da Gérard Fromanger, inebriado • Guattari representa o herói em Bolonha. Considerado um dos inspiradores essenciais

do esquerdismo italiano, ele assiste a esses destiles na maior felicidade por ver suas teses se

tornarem uma força social e política. No dia seguinte ao encontro, a grande imprensa diária e semanal estampa sua foto na capa e o apresenta como o iniciador e o idealizador dessa mobilização. Guattari se torna de súbito o Daniel Cohn-Bendit da Itália: "Quando ele caminhava pelas ruas de Bolonha, todo mundo se precipitava para cumprimentá-lo, tocá-lo, abraçá-lo.

Era uma coisa louca, inusitada. Era Jesus Cristo caminhando sobre as águas. Quanto a mim, estava muito conteiife porqug recebia algumas



Durante esses três dias, Hervé Maury

também se encontra em Bolonha, no mesmo hotel que Guattari, Christian Bourgois e Maria Antonietta Macciocchi: "Eu estava com Fran-

çois Pain como Fabrício em Waterloo, não estava entendendo nada. Era uma enorme festa

prisão para libertar os camaradas, e eu vejo de 19 súbito os jovens sacarem os P-38" • O editor Christian Bourgois, mortificado

tang ir a Bolonha para se explicar. Ele participa dos desfiles ao lado do líder da Liga Comunista Revolucionária, Henri Weber: "Encontramos nessa cidade de Bolonha dezenas de pessoas dizendo que tínhamos provocado tudo isso, com um sentimento de medo, não de nós, mas isso podia degenerar, e teríamos sido comple~ mente irresponsáveis. Recebi nesse momentO uma grande lição de política italiana, pois não víamos os comunistas. Eles estavam nos corredores dos prédios ao longo do caminho, nos pátios internos. A polícia vigiava a cidade, mas 20 ficava forá' • Entre a delegação francesa em Bolonha encontra-se, portanto, Yann Moulier-Boutang, um instigador essencial da solidariedade franco-italiana, que muito cedo se ligou aos italianos elo movimento autônomo, no qual se reconhecia politicamente. Militante ativo desde 1968 em Censier, em grupos, ele propõe já em 1970 receber camaradas italianos. Comunista mais libertário, pertence então à corrente Cahiers de Mai, semanário oriundo do movimento de Maio de 68 que será publicado até !974. Em 1972, ele organiza um encontro em]ussieu com representantes da Lotta Con~ tinua e do Potere Operaio. Entre 1973 e !974, mobiliza~se em grupos de imigrantes, enfatizando o caráter autônomo de seu movimento: essa idei a de autonomia vem dos italianos. Ela implica levar em consideração a singularidade de cada grupo. Política significa também que cada grupo defina seus objetivos próprios. A partir dessa concepção, o movimento social é

concebido não em torno de uma unidade formal, mas a partir da conexão de multiplicidades. É trabalhando sobre essa apropriação pelo movimento francês das orientações italianas e mílitando ao lado de Montesano que Yann Moulier-Boutang conhece Guattari em 1977 e se engaja na criação do CINEL pela libertação de Bifo. É muito natural que esteja em Bolonha em setembro: "Foi sobre essa questão do apelo de Bolonha que encontrei Félix pela primeira 21 vez, na Rue de Condé" • Ele viajou com o artis~ ta Gérard Fromanger. No cortejo, nem todos os componentes têm a mesma postura de bom menino: vários milhares de brigatistas, com seus bonés de lã encobrindo a cabeça e o pescoço, brandem armas. Essa demonstração de força, em última análise, foi favorável à recuperação de boa parte do movimento pelas BR. É verdade que a festa não degenerou em violências, mas pode~se considerar esse desafio de Bolonha como um fracasso, pois, para além da eufOria do mo~ mento, o encontro não ofereceu nenhuma alternativa clara ao movimento, que foi deixado de novo à própria sorte, de novo confrontado com a repressão e com o isolamento.

A placa de chumbo na Alemanha O movimento de contestação na Europa está às voltas com uma repressão mais inten~ sa, e os diversos governos se munem de um arsenal jurídico adequado para ter mais eficácia em sua política repressiva. Na França, é a lei antidepredadores ele 8 de junho de 1970; na Itália, uma lei promulgada pelo presidente da República em agosto de 1977, trazendo novas "disposições em matéria de ordem pública", agrava o instrumento jurídico central da repressão italiana: a lei real que data de 1975 e já permite praticar a detenção por tempo in~ determinado. Resta, portanto, organizar a vigilância em face das violações das liberdades, e o CINEL, pronto para alertar a qualquer momento os intelectuais, está atento a qualquer eventualidade.

Apenas dois meses após os acontecímen~ tos de Bolonha, dois alemães chegam à sede do CINEL. Guattari e Fromanger os recebem: "Eles nos dizem: gostaríamos que vocês fi~ zessem por nós o que fizeram pelos italianos em Bolonha, pois estamos enlouquecendo":n. Buscam apoio internacional para milhares de comunidades alternativas de Berlim cuja vida está cada vez mais difícil devido à tensão com um Estado que suspeita de que qualquer marginal tenha ligação com o bando de Baader. Guattari já havia se comprometido a ir ao Brasil, para se encontrar com o líder do Partido dos Trabalhadores, Lula. Então, recorre ao seu amigo Gérard Fromanger para atender ao pedido dos alemães. Fromanger, que não se sente preparado para tal missão e não fala uma palavra sequer de alemão, qualifica a proposta de Félix de "loucura", mas se resigna. Toma um avião para Berlim com um de seus camaradas do CINEL, Gilles Herviaux. Na escala em Frankfurt, eles têm a dimensão do clima de terror que reina na Alemanha ao ver fotos de terroristas procurados coladas por toda parte: "Chegamos ao aeroporto de Berlim: ninguém. Nós nos perguntamos o que estávamos fazendo ali. Devíamos partir de volta quando, várias horas depois, vimos no fundo do aeroporto um sujeito com um cachecol enrolado no pescoço que ia até os pés e uma moça de belos cabelos lou23 ros encaracolaclos" • São justamente seus contatos, e Fromanger e Herviaux se encaminham até o centro de Berlim para uma reunião onde, diante de 60 pessoas, lançam as bases de uma grande concentração em Frankfurt para a qual se prevê a reunião de 100 mil pessoas. Para prepará~ la e romper o cerco que pesa sobre as comunidades berlinenses, trata~se de reunir, dois meses mais tarde, 1 mil pessoas em Ber~ lim: "De fato, somos 27 mil durante três dias e trêS noites, inventando um código chamado 24 de 'Tunix' (Não fazer nada, não se mexer)" • Os alternativos ele Berlim, permanentemente sob suspeita de terem ligações com a RAF (Facção Exército Vermelho) não podiam sequer se movimentar livremente em seu próprio bairro, e

·I

244

Dosse

suas mulheres eram o tempo todo insultadas, tratadas de "putas nojentas". Bastava que se juntassem três na rua, e a polícia sacava suas metralhadoras leves, revistava-as da cabeça aos pés, encaminhando as moças para a delegacia. Durante esses três dias, a polícia subitamente e milagrosamente desapareceu, e o movimento pôde respirar de novo: "Como pintor,

eu tinha inventado um truque com as cores: 10 mil pequenas bombas coloridas, quentes e frias. Cada um ficava com duas ou três e toda vez que passava diante de um tanque: pimba! Diante do muro: pimba! Os tanques logo fica· ram todos coloridos. Depardon tirava fotos. Félix estava lá, como também Foucault e Deleuze"25. Assim como em Bolonha, Berlim abriga um fórum permanente no enorme anfiteatro da Universidade Politécnica, que chegou a reunir até 5 mil pessoas. O CINEL encontra-se também nos postos avançados da mobilização de 1977 pela liber· tação do advogado de Ulrike Meinhof'', Klaus Croissant, detido na prisão de La Santé por ocasião de sua visita a Paris. O CINEL decide, junto com a Liga dos Direitos do Homem, or· ganizar um encontro no Palácio da MutuaJité para defender o advogado. A sala fica superlotada: 6 mil pessoas. Contudo, essa mobilização não é suficiente para impedir a extradição de Croissant, solicitada pelas autoridades alemãs: "Em um corredor estrito do Palácio da Justiça de Paris, estávamos amontoados desde o iní~ cio da tarde diante da porta da sala precavidamente abarrotada de policiais em trajes civis, onde a Corte de Apelação deveria se pronun· ciar 'publicamente' sobre o recurso do refugia-

do Klaus Croissant recusando sua extradição para a Alemanha. Era impossível entrar, então por que ficar ali'! Cabisbaixos, alguns se reti· raram discretamente. Mas isso estava fora de questão para Félix, cavalo de batalha, um gra· cejo nos lábios e os óculos prestes a voar. Éra-

mos algumas dezenas os que, como ele, persistimos durante longas horas, para não ceder, para no final ficar sabendo que o recurso havia sido rejeitado. Assim era Félix ... Estava sempre pronto a fazer d·e'tudo'"' . .Na noite da extradi·

Gilles Deleuze & Félix Guattari

ção, um pequeno grupo chega à sede da Liga dos Direitos do Homem para protestar diante da prisão de La Santé. Desse grupo fazem parte alguns advogados, como Jean·Jacques de Fé !ice e Michel Tubiana, assim como Foucault. No decorrer das reuniões do CINEL, na Rue Vaugirard, um bom número de contestadores, durante a mobilização contra a extradição de Croissant, começava a tomar como exemplos as posturas terroristas das BR italianas ou do bando de Baader na Alemanha, o que o jurista Gérard Soulier deplora na época. Ele se abre com Guattari sobre o problema de consciência que lhe cria esse desvio, confessa-lhe que não pode e não quer seguir em hipótese nenhuma, e se diz prestes a deixar o ClNEL: "Félix me diz: 'De jeito nenhum, é muito importante que você fique'. E eu compreendi nesse momento que ele estava fazendo psicoterapia coletiva, e se não houve derrapagem de tipo Itália/Alemanha foi graças a isso, pois esse era o ltigar 23 da catarse" • A propósito dessa questão dos desvios terroristas, Éric Alliez confirma a posição muito firme de Guattari, embora Bernard-Henri Lévy o tenha acusado de ter tido mais do que fra· quezas pelas posições dos terroristas: "Era preciso, nos anos de chumbo italianos, por exemplo, ir a campo, como eu fiz, nas universidades de Roma ou de Bolonha, falar com os possíveis adeptos das Brigadas Vermelhas para dissuadi-los de se desviar. Mas, discutir diretamente com os brigatistas, debater com os próprios assassinos como fazia Guattari na época, não, 29 mil vezes não'' • É verdade que Guattari não condenou publicamente em 1977 e 1978 as ações dos brigatistas italianos ou da RAF na Alemanha. Esse silêncio parece explicar-se pelo trabalho subterrâneo que Guattari realiza para dissuadir, mais do que para condenar, os que estivessem tentados a se passar para o terrorismo, explicando-lhes a que ponto uma tal escolha é grave para os outros e conduz a envenenar a si mesmo. Ele teria, portanto, desempenhado um papel importante nesse plano e principalmente em seu apartamento da Rue de Conde que nesses anqs é a rota de passa-

gero de todos os marginais: ''A forma como Félix abrigou, acolheu essas pessoas! Félix me dizia: 'Estou me lixando que eles nos espionem'. Ele acolhia pessoas perseguidas como ratos e tentadas pela luta armada. Acrescentava: 'A gente deveria ser reembolsado pela previdên· 30 cia social'" • Outro companheiro de Guattari nas mobilizações do CINEL, Jean Chesneaux, confirma: "Se as aventuras armadas estilo Brigadas Vermelhas ou Facção Exército Vermelho foram evitadas na França, isso se devia em boa parte aos seus contatos terapêuticos com os marginais e os autônomos tentados pela violência direta. Félix me disse aliás que convivia com essas pessoas intencionalmente, pois, ao invés de fabricar seus coquetéis Molotov, ele os colocava no seu divã de psicanalista'':ll.

Os anos de chumbo italianos A execução pelas Brigadas Vermelhas do presidente do conselho, Aldo Moro, em 1978, acentua a repressão e reforça os processos judiciais na Itália. O CINEL ainda se encontra nos postos avançados. F, o caso quando as autoridades judiciárias italianas pedem a extradição de Franco Piperno, preso em Paris em 18 de setembro de l 978, e de Lanfranco Pace, suspeitos de estarem ligados ao assassinato de Moro. O mandado não foi aceito, e um último pedido de extradição é justificado em nome de delitos de direito comum. Todavia, não há nada nos autos, pois esses militantes italianos nunca tiveram ligação com os meios terroristas. Na Itália, um apelo aos magistrados italianos é assinado por numerosas personalidades, entre as quais Leonardo Sciascía, Alberto Moravia, Umberto Eco, etc. Na França, o CINEL coleta assinaturas 32 contra a extradição • Piperno, antigo militante do Potere Operaio, seria preso antes de se tor~ nar o que é hoje, professor da universidade de Catane e grande físico nobelizável. O caso mais rumoroso nesse final dos anos 1970 é a detenção de outro antigo dirigente do Potere Operaio. Toni Negri não tem mais ligação com o meio terrorista dos brigatistas. Ami-

245

go de Gianmarco Montesano, é, como ele, partidário da autonomia operária. Filósofo, Toni Negri tem a estatura de um líder político importante, já autor de várias obras. Chega a Paris em 1977 e através de Montesano encontra Guattari, que no momento prepara o encontro de Bolonha. Seus textos, embora não defendam as BR, não deixam de exaltar a violência armada. Pesa sobre Toni Negri um mandato de prisão como líder do grupo Autonomia e mais particularmente do grupo Rosso de Milão. Professor de ciências políticas e sociais na universidade de Pádua, ele teve de fugir para escapar à prisão, primeiro para a Suíça, onde permaneceu apenas três meses, depois para Paris, onde chegou em setembro de 1977. Ele encontra refúgio na casa de Guattari, na Rue de Conde. Tornam-se amigos, e Toni Negri costuma passar seus fins de semana em Dhuizon, próximo de La Borde. Yann Moulier-Boutang o convida então, por meio de Louis Althusser, para coordenar um seminário sobre os Grundrisse de Marx na 33 ENS, publicado em 1979 . Toni Negri também assiste às aulas de Gilles Deleuze em Vincennes: "Ouvir Gilles Deleuze era uma espécie de limpeza do que estava predeterminado no meu cérebro ... Tornei-me espinosista no decorrer de suas aulas"", Em 1978 e 1979, Negri comete a imprudência de dividir seu tempo entre a França e a Itália. Até que em 7 de abril de 1979 é preso pelas autoridades italianas, assim como Oreste Scalzone, outro líder do Potere Operai o: são acusados de serem a fachada legal das BR e de estarem envolvidos no assassinato de Aldo Moro. São encaminhados imediatamente à "prisão especial", o equivalente dos QHS (quar· téis de alta segurança) franceses. Ele ficará encarcerado quatro anos e meio, e, ao final do processo, em 1983, o tribunal do júri de Roma o condena a 30 anos de prisão, e Scalzone, a 20 arios, por constituição de associação subversiva e de grupo armado. O CINEL, evidentemen· te, com Guattari à frente, se mobiliza de pronto: ''A ideia de que Negri seja chefe das BR é tão ridícula como se alguém dissesse que em 1937 35 Trotski era chefe da KGB" •

246

François Dosse

O CINEL envia seus militantes para visitarem Toni Negri e Oreste Scalzone na prisão. É um momento de intensa atividade para o CINEL, que se vê confrontado com o número crescente de pedidos de extradição e de prisões: ')\gregarn-se juristas ao CINEL, advogados: ]ean-Pierre Mignard, Jean-Denis Bredin, Georges Kiejman, o juiz Yves Lemoine, alguns do PS, como François Loncle e o senador Parmentier. A gente se mobiliza, colhe assinaturas de textos, interpela as personalidades, des36 monta peças de acusação" • Imediatamente após sua detenção, quando o processo ainda não foi iniciado, Deleuze defende a inocência de Toni Negri em uma carta aos juízes, publicada em La Repubblica, em 10 31 de maio de 1979 . Surpreende-o que se possa perseguir alguém e encarcerá-lo sem que se tenha nada de palpável no auto de acusação e faz uma analogia - retomada mais tarde por Carla Ginzburg quando do processo de seu

amigo A~riano Sofri - com os interrogatórios feitos pela Inquisição. Deleuze enuncia alguns princípios: ')\ntes de tudo, a justiça deveria se

conformar a um certo princípio de identidade"38. Entretanto, nesse caso, a acusação não dispõe de provas palpáveis para fundamentar seus processos. Em segundo lugar, o inquérito

e a instrução devem ser sustentados por um mínimo de coerência, segundo o principio de disjunção ou de exclusão, enquanto a acusação "procede por inclusão, adicionando os termos 39 contraditórios" • O acusado não pode ter estado em um lugar e em outro ao mesmo tempo, como afirma a imprensa italiana, que atribui a Toni Negri um dom de ubiquidade, pois ele estaria presente no mesmo momento em Roma, Paris e Milão. Finalmente, Deleuze responde por antecipação às críticas veementes feitas pelos italianos aos intelectuais franceses, acusando-os, a propósito do documento de Bolonha, de se imiscuírem naquilo que não lhes diz respeito, assinalando que "Negri é um teórico, um intelectual importante tanto na França 40 como na Itália" • Pouco depois, por ocasião do lançamento pelo editor Bourgois em 1979 da obra de Toni N'egri, Mwx, au-delà de Marx,

Gilles Deleuze & Félix Guattari

Deleuze volta à carga no Le J11atin de Paris para reafirmar a inocência de seu autor. Ele convida os juízes que investigam sobre as intenções de

Negri e seu grau de envolvimento no caso Moro a ler sua obra, que "é literalmente urna prova de 41 inocência" , pois as teses defendidas atestam que ele só pode ser hostil a um tal assassinato. Guattari vai diversas vezes à Itália para visitar Toni Negri na prisão, e os dois homens se correspondem durante mais de quatro anos. Essa ligação mantida graças à escrita é, sobretudo, um grande conforto para Negri, que se impacienta e se desespera na prisão. Em maio de 1980, Guattari faz uma nova visita ao prisioneiro Negri e lhe sugere uma troca de cartas mais regular. Dois meses depois, Toni Negri lhe expri-

me sua prostração: "Estive bem mal- começo a me sentir cansado na prisão e de estar em uma

situação psicológica que acaba se transformando em preguiça:·" No final do ano de 1980, Toni Negri é transferido para a prisão de Rebibbia em Roma para ser submetido aos primeiros interrogatórios desde sua detenção, isto é, depois de 17 meses de encarceramento ... Ele acaba de ler na prisão a última obra de Deleuze e Guattari: "Li, finalmente, quase inteiro, Mil Platôs. É um livro importante, talvez o mais importante que 43 eu tenha lido nos últimos 20 anos" • Para ajudar o amigo a suportar o choque, Guattari lhe propõe em 1982 escrever um livro a quatro mãos com base em sua correspondência. Toni Negri aceita com prazer essa proposta que permite tirá-lo da rnorbidade da vida carcerária e espera assim se beneficiar da experiência de escrita comum de que Guattari já dispõe com Deleuze: "Você tem mais experiência que eu no que se refere ao trabalho em dupla, e creio que a montagem final é você que 44 deve fazer" • Em junho de 1983, Toni Negri é libertado antes de uma condenação formal, por ter sido eleito deputado europeu do Partido Radical italiano. No momento em que deixa a prisão, a classe política se mobiliza para obter a suspensão de sua imunidade parlamentar. Convencido de que será mandado novamente para a prisão, Toni Negri recorre a Guattari. Em se-

ternbro de 1983, urna maioria de quatro votos - 300 votos contra 296 - se pronuncia no Parlamento italiano pela retirada de sua imunidade parlamentar: "Parto para a Córsega em um navio que muito provavelmente foi pago por 45 Félix" • Ele entra clandestinamente em Paris, com a ajuda de Gerard Sculier e Guattari. Ele prossegue então face a face com Guattari o trabalho já bem avançado do livro comum: "De 1983 a !987, eu me charnavaAntoine Guattari. Era ele que pagava tudo. Mudei-me da Place d'Italie para o Boulevard Pasteur, depois para 46 a Rue Monsieur-le-Prince" , para apartamentos que Guattari conseguia: "Félix realmente me assistiu como um irmão. Ele me ajudava por 7 toda parte"'; • A Rue Condé continua sendo a rota de passagem do movimento. É lá que Toni Negri conhece Daniel Vernet, jornalista do Le Monde, Serge July e Régis Debray: "Foi lá que se 18 construiu a 'doutrina Mitterrand'' • Não é uma tornada de posição externa a propósito da Itá49 lia. É uma construção interna" • Les Nouveaux Espaces de Liberté é publicado em 1985. Começa por defender o "comunismo", um termo marcado de infâmia, mas deixando claro que, ''de nossa parte, nós o concebemos como a via de uma libertação das sin50 gularidades individuais e eoletivas" A ruptura em relação ao esquema marxista tradicional consiste em afirmar que "comunidade e singu51 laridade não se opõem" • Esse ensaio reafirma o enraizamento da experiência naquilo que se passou em 1968 e que dá o título ao segundo 52 capítulo:')\ revolução começou em 1968" • O movimento de Maio de 68 não foi somente um movimento de emancipação política, mas a expressão de uma verdadeira vontade de libertação, ao mesmo tempo radical e plural. O que alguns chamam de morte do político nada mais é que o parto de um novo mundo, de uma nova política: o sucesso da reação nos anos de 1970, a aparição de um "No Future", ligado ao estabelecimento de um CMI que impõe sacrifícios ao conjunto do planeta. Com o CMI, os indivíduos em geral são mais subjugados à medida que incapazes de localizar o po~ der. O mercado mundial é apresentado como

247

um instrumento eficaz de "enquadramento" da pobreza, de "contenção'' da marginalização. Apesar desse enquadramento do universo social em escala mundial, a revolução, e portanto a esperança, não acabou. O final da obra é constituído por duas contribuições pessoais, uma de Guattari sobre "Liberdades na Europà' e a outra de Toni Ne~ gri, "Carta arqueológica". Mais uma vez, pode-se ter a medida do que, para além de sua luta comum, distingue uma abordagem aberta a questionamentos profundos em Guattari e uma vontade de se agarrar a qualquer preço à tradição revolucionária clássica em Toni Negri. Guattari explica que suas lutas em defesa dos direitos de Bifo, Croissant, Piperno, Pace, Negri o levaram a rever seu julgamento "sobre a importância que se devia atribuir a essas liberdades pretensarnente formais e que me parecem hoje como inteiramente inseparáveis 53 de outras liberdades de 'terreno'" . Guattari se congratula com o papel positivo que desempenham na França organizações como a Anistia Internacional, a Liga dos Direitos do Homem, France Terre d)\sile, a Cirnade*, etc. Ele sugere falar "de graus de liberdade, ou melhor, de 54 coeficientes diferenciais de liberdade" . Essa pluralização da noção de liberdade soma-se à preocupação de não apresentar o Estado como um monstro exterior à sociedade - o poder, corno o desenvolveu Foucault, está por toda parte, e antes de tudo em nós mesmos, e 55 "é preciso 'se virar com o que se tem"' . Já Negri, em sua contribuição, se permite expressar seu apego inabalável ao leninismo. Se a repressão e o reforço do arsenal não cresceram na França no mesmo grau que na Alemanha e na Itália, não foi por urna ancoragem mais sólida na tradição democrática. Simplesmente, a França não conheceu verdadeiros movimentos terroristas, fora alguns marginais. Contudo, a vontade de erradicação do perigo esquerdista, a lei antidepredadores de junho de 1970 e a repressão brutal de certas ~· N. de T.: Organização ecumênica de deí€sa dos direitos dos migrantes.

248

Dosse

manifestações na França contribufram para que o clima internacional dos anos de 1970 adquirisse o caráter pesado de anos "de chumbo". Em 19 de setembro de 1979, um dos melhores amigos de Guattari, o cineasta François Pain, é detido e preso. É perseguido por fatos que remontam a mais de seis meses: partici~ pou da manifestação dos metalúrgicos de 23 de março de 1979 que acabou em confrontos e pancadaria. François Pain se viu entre a Répu~ blique e a Opéra no bulevar saqueado por "autônomos" que quebraram e pilharam todas as vitrines das lojas luxuosas. François Pain, que caminha então pela calçada diante da loja Lan-

cel, recebe uma bolsa na cara e, quando a pega nas mãos para examinar a natureza do projétil, é fotografado no meio de um grupo de encapuzados. Essa foto aparece no semanário de extrema direita Minute. Já bem conhecido da polícia por suas ligações com os esquerdistas italianos, como também por sua ação em favor das rádios livres, é imediatamente identificado e preso pelo roubo de uma bolsa que a polícia jamais encontrou! Bela oportunidade de fazer Guattari pagar, por intermédio de François Pain, por suas atividades de apolo aos italianos. Quando do interrogatório, François Pain está convencido de que o prenderam porque estava voltando de Roma onde havia ajudado a pôr em abrigo alguns militantes procurados pela polícia italiana. "Quando me apresentam a foto da bolsa, foi um alívio ... Dou uma gargalhada!"". O CINEL entra em ação sem demora, e a defesa de François Pain é assumida por Je-

an-Pierre rv:I:ignard e uma assistente de Georges Kiejman. Em uma das reuniões do CINEL, uns e outros, muito exaltados, fazem as propostas mais esdrúxulas para chamar a atenção da opinião pública. A uma certa altura, alguém no fundo da sala grita: "Grana para Pain!". Guattari comenta: "Genial, é exatamente a campanha que vamos fazer". François Aubral recorda que nesse momento "o tipo que está ao meu lado me diz: 'Escute, se continuarem assim, ele vai passar o resto da vida na prisão, sou Henri Le57 crerc, sou eu que o defendo" • François Pain é processado em'P\imeiro.lugar em nome da lei

Gil!es Deleuze & Félix Guattari

antidepredadores: seu encarceramento dura quatro meses e meio. Seu amigo Guattari, que o visita regularmente na prisão da Santé, decide lançar, simultaneamente à campanha por sua libertação, uma batalha contra a detenção preventiva que permite ao juiz manter François Pain na prisão por seis meses antes da abertura do processo. O Instituto Nacional do Audiovisual, onde François Pain trabalha, intervém em sua defesa, e o CINEL multiplica os testemunhos de moralidade: "Ri muito quando me contaram que ]ean-Luc Godard queria testemunhar com uma pedra de açúcar roubada em um bistrô e jogá-la no juiz. O juiz a pegaria, e ele diria: 'É uma receptação, pois o açúcar foi 58 roubado'" • A campanha de opinião funciona bem, e não há um dia sequer sem menção ao caso na imprensa. Em fevereiro de 1980, François Pain pode finalmente deixar a prisão. Convencido de que era o verdadeiro alvo através de seu amigo, Guattari pagou-lhe, a ele e à sua companheira Marion, "uma estadia de 15 dias no sul do Marrocos para [lhe] dar prazer"59 • Em 1979, Guattari é visado pessoalmente, desta vez por uma operação policial que procede a uma investigação em La Borde no âmbito do inquérito sobre o sequestro do bilionário fienri Leli8vre por ]acques Mesrine, o inimigo público número um. A polícia não encontra nada, o que não impede o diário J:Aurore de dar a manchete, da autoria de Pierre Dumas, "A via esquerdista", e de pretender revelar as relações entre determinados bandidos e o meio esquerdista! Esse jornal destaca o caso de um certo Charles Bauer que Guattari teria ajudado a se reinserir a pedido de seu amigo Pierre Goldman, e que depois se tornou cúmplice de Mesrine.

Do bobo da corte à liberação das ondas Em março de 1980, o Charlie-Hebdo lança a ideia de uma possível candidatura de Coluche* à eleição presidencial. Em outubro de 1980, o * N. de T.: Comediante de sucesso.

que era inicialmente apenas urna brincadeira, assume outro contorno: as primeiras sondagens revelam que as intenções de voto em Coluche situarn~se em torno de 17%. Para ir até o fim, é preciso reunir 500 assinaturas de elei~ tos. Se para os grandes partidos políticos isso é mera formalidade, para os candidatos sem apoio partidário não. Nesse mês de outubro de 1980, o jurista Gérard Soulier recebe um telefonema de seu amigo Guattari: " - Você não pode imaginar, me diz ... Ele não ia direto ao assunto ... - O Gilles Deleuze me ligou ... Sabe o que ele me disse? Que apoia a candidatura de 60 Coluche!" • Gérard Soulier fica radiante com isso. Não apenas aprecia, e muito, o humor de Coluche, como esperava secretamente por essa candidatura havia pelo menos seis meses. Soulier começa então a redigir a famosa peti~ ção do "candidato dos nulos". Toda uma série de intelectuais, por trás dos duetistas Deleuze e Guattari, adere a Coluche, sobretudo a rede do C!NEL e, em particular,Jean~Pierre Faye: "Félix manda me chamar e me diz: 'A gente decidiu com Gi!les apoiar o direito à candidatura de Coluche'. A direita dizia que Coluche arruinaria a França, a esquerda dizia que a arruinaria, e ele precisava de suas 500 assinaturas. Respondi: 'Coluche? Quem é'?' e ele 61 replicou: 'É o Pêre Duchesne'" '~. ]ean~Pierre Faye, autor de uma obra sobre o P8re Duches~ ne, sabe muito bem a que ponto o personagem pode ser corrosivo para o sistema político francês. Ele concorda e passa a participar ativamente das reuniões com Coluche. Para compreender esse engajamento e a força de sua dinâmica, deve-se recordar a pane política desse outono de 1980, com a quase certeza da reeleição para sete anos de Valéry Giscard-d'Estaing. Acredita-se que François Mitterrand está prestes a repetir a derrota de 1974, aparentemente incapaz de forçar o destino da

"'N. de T.: Le Pere Duchesne é o título de um jornal que surgiu durante a Revolução Francesa, e que foi utilizado por muitos autores. O personagem que dá nome à publicação representa o homem do povo, sempre empenhado em denunciar os abusos e as injustiças.

249

esquerda. Para alguns, a solução é rir, e é esse o sentido da dinâmica eternera que acompanha a candidatura de Coluche: "Coluche chega então e vira um bobo da corte, porque ele tem talentd'62, explica Paul Virilio, que encontra Guattari nessa ocasião e que se tornará seu editor. No final dos anos de 1970, fazer uma emissão de urna rádio não autorizada pelo Estado, o que é o caso de algumas rádios privadas, como Europe l, Radio Luxemburg ou RCM, é um ato delituoso passível de severas medidas judiciais. François Pain, especialista nessas tecnologias, está bastante envolvido, junto com seu amigo Guattari, na implantação dessa rede alternativa que difunde à revelia da polícia: "Criei uma rede de fornecimento de emissores de rádio que passavam clandestina63 mente, vindos da Itália" . A rede italiana está ligada, é claro, à Radio Alice em Bolonha, onde um técnico muito competente fabricava excelentes emissores, que François Pain recebe regularmente na estação ferroviária de Lyon. Tão logo detectadas, as emissões das rádios livres são distorcidas pela polícia. Contudo, o número delas cresce, as iniciativas proliferam, atestando um real desejo de tomar a palavra, dez anos após Maio de 68. Guattari simpatiza com um profissional muito envolvido na luta pelas rádios livres, que em setembro de 1977 criou a Associação pela Liberdade das Ondas (ALO). A associação divulga um apelo em favor da liberalização das ondas assinado por 18 personalidades, entre as quais Deleuze, Guattari e Foucault De sua parte, François Pain consegue agregar as pequenas rádios associativas a partir de um grande encontro entre as rádios emissoras que se realiza em 1978. Desse encontro, nasce uma associação, a ALFREDO, que agrega essa miríade de pequenas redesM. Tendo-se tornado majoritária no movimento das rádios livres, a corrente que se reconhece nas posições de Guattari funda a Federação Nacional das Rádios Livres Não Comerciais. Um dos filhos de Guattari, Bruno, que tem 20 anos em 1978, também se lança nessa aventura. Em 1979, enquanto a repressão se abate sobre qualquer tentativa de rádio livre, Bruno apro-

250

Gilles Deleuze & Félix Guattari

Dosse

veita a autonomia universitária de Jussieu para criar uma rádio locaL A partir dessa experiência de pequeno alcance, ele amplia suas ambições com a Radio Paris 80, que atinge seu público e à

Criada no final de 1980, em plena campanha presidencial, a Radio Tomate agrega principalmente militantes do C!NEL: '1\ gente

tari e François Pain crlam a Radio Libre Paris,

transmite inicialmente da cozinha do Félix, até encontrar uma espécie de adega no edifício da Fondation de France, na Rue Lacép8de" 66•

que se torna, em dezembro de 1980, a Radio To-

A rádio transmite 24 horas por dia e difunde

mate, Bruno Guattari cuida da programação. O aparelho repressivo é reforçado: a lei de

ao mesmo tempo animações culturais sobre cinema, música, teatro e programas mais so~

julho de 1978 prevê uma multa de 10 mil a 100

ciopolíticos de debates e de análise. Guattari

mil francos para qualquer infração, acrescida de uma pena de prisão de um mês a um ano. Essas medidas não refreiam a determinação

tem um horário reservado na programação,

qual ele fornece o material. Quando Félix Guat-

daqueles que querem liberar as ondas. A efer-

vescência chega ao ápice com o grande festival '1\nti-Brouille 78" [Antidistorção], organizado durante o verão de 1978 no parque de Hyêres,

onde os participantes podem assistir gratuitamente a 48 horas ininterruptas de música com a participação dos melhores cantores do momento, como Jacques Higelin, Téléphone ... Contudo, para muitas pequenas estações, os

riscoS são excessivos, e elas se veem forçadas a abandonar a parada no outono de 1978 ou passar à clandestinidade. Quanto às personalidades como Guattari, está fora de questão para o poder cobrir-se de ridículo, jogando-as

na prisão, mas elas não se livram dos tribunais. Um advogado amigo de Gérard Soulier, Michel Tubiana, futuro presidente da Liga dos Direitos

do Homem, assume a defesa da maioria dos casos relacionados às rádios livres: "A gente os ridiculariza frequentemente. Ocorreu mais de uma vez de se dar uma entrevista, ao sair da audiência, com uma rádio emissora no carro. Vou me lembrar para o resto da vida o que se passou na 17a Câmara Correcional. Fizemos desfilar umas 40 testemunhas, e a sessão, que havia começado às !3h50, só terminou às 23h. O advogado da TDF [Telediffusion de France],

que reclamava perdas e danos, termina sua argumentação pedindo um franco simbólico de indenização. A 17a Câmara é uma sala bem comprida e está abarrotada de gente; então, alguém joga uma moeda de 1 franco do fundo da sala em direção ao advogado e ela vai rolando

até cair aos selifpés! Momento muito lúdico" 65 •

consagrado aos debates políticos, na segunda-

-feira à tarde. Podem-se ouvir também repor~ tagens sobre os squatters~' ou ainda sobre o africano que anima a noite com ''A árvore de palavras"'""~. A parte dedicada à informação é bastante consequente, e Gisele Donnard, militante ativa do CINEL, cuida um pouco desse

setor por ocasião de debates regulares sobre a Polônia, sobre a guerra do Líbano, sobre a

questão árabe-israelense. Contudo, o material não tem a qualidade necessária para permitir uma boa escuta, e o alcance da recepção ainda é pequeno, se bem que a Radio Tomate jamais conquistou o público que poderia atingir.

251

organização rizomática que engloba estações e indivíduos, o movimento de rádios livres desenvolveu-se como uma verdadeira máquina 67 de guerra no campo audiovisual" • Quando François :Mitterrand é eleito pre-

revista Recherches será dedicado a isso, sob a responsabilidade de uma soviética nascida em

sidente da República, em 10 de maio de 198!,

sibilidade de demonstrar a eficácia de uma micropolítica, dotando-se de suportes organizacionais mínimos e simplesmente ligados à ação, com isso abandonando esquemas tra-

decide abrir as ondas, o que beneficia todos aqueles que falavam na sombra. Contudo,

outros problemas surgem. É preciso principalmente operar agrupamentos para continuar emitindo. Com quem a Radio Tomate é chamada a coabitar? Um primeiro projeto

1936 em Moscou, Natalia Gorbanevska'ia, in-

cumbida de reunir os textos

72 .

O C!NEL representou para Guattari a pos-

dicionais. Foi o equivalente político do CERFI,

cuja atividade era voltada às ciências humanas. Um pouco à maneira do movimento de

designa a Radio J [Rádio Judaica], mas há

22 de março, trata-se de um agrupamento de

pró-palestinos demais na Radio Tomate para que esse casamento funcione sem atritos. Depois, é a Radio Solidarnosc, "mas lá eram os antissemitas, e a coisa terminou em pancadaria ... Finalmente, encontramos um lugar só ' ,68 para nos Uma hipótese mais séria pesa sobre a concepção associativa das rádios livres, com a chegada em massa nas ondas de rádios comerciais, cujos recursos são bem outros: "Na superfície do aquário, estão os peixes miúdos dos radiomaníacos, mas abaixo estão os gran-

personalidades vindas de horizontes diferentes em torno de um objetivo comum, no caso servir de desmancha-prazeres no clima pesado dos anos de chumbo. Sem uma verdadeira organização, sem programa, mas simplesmente com um local regular de reunião, a "máquina'' CINEL conseguiu sensibilizar e mobilizar, mas

também provar sua eficácia política em certas situações de urgência.

Notas

Essa experimentação nas ondas correspende, no entanto, a um prolongamento na prática das teses enunciadas por Deleuze e

des tubarões da publicidade""- Para defender

1. Potere Operaio data de 1969, mas se autodis-

sua concepção de rádios de experimentação social, Guattari convida o ministro da Cultura,

Guattari. Há ali, de fato, um modelo de ins-

jack Lang. com o qual mantém boas relações,

solveu em 1973. Essa organização, que teve uma influência real. tinha como dirigentes, entre outros, Toni Negri, Orestc Scalzone, Franco Piperno, Nanni Balestrini, Sergio Bologna. Lotta Continua, surgida na mesma épo~ ca, também se autoliquidou um pouco mais tarde, em novembro de 1976. 2. Fabrizio CALVI, Jtalie 77, le ''Mouvement'; les intellectue!s, Seuil, Paris, 1977, p. 29. 3. Isabelle SOMMIER, La violence politique et son deuil. L'apres-68 en France et en Italie, PUR,

crição rizomática transversal que rompe com as lógicas, sejam estatais, sejam comerciais. Como em todo rizoma, as conexões podem se produzir em qualquer ponto, o que proporcio-

na cartografias bem surpreendentes e sempre originais, como a que liga a Radio Bastille à sua vizinha Radio Onz'Débrouille, que, por sua vez, colabora com a Radio Fi! Rose: "Graças a essa

"' N. de T.: Palavra de origem inglesa que designa os inva*

sares de imóveis desocupados. .,,;, N. de R. T.: No original, L'arbre à pa!abres. O vocábulo francês pafabre corresponde, na sua primeira acepção, a um uso pejorativo de um discurso enfadonho. Na África, no entanto, relaciona-se a um debate costumeiro entre os homens de uma pequena cidade. Assim, o verbo palabre, ainda em uso africano, significa queixar-se, pedir justiça. Este último significado parece-nos o adequado à tradução do conteúdo deste texto.

para debater ao vivo na Radio Tomate com ele, jean-Pierre Faye e François Pain. Parte do de70 bate é publicada em La Quinzaine Littéraire • Nesse final do ano de 1981, o ponto de vista

do ministro e o de Guattari não estão muito distantes: "Esta não pode ser a liberdade da raposa no galinheiro ... Sim à liberdade desde que não seja em proveito dos poderosos, que seja

Rennes, 1998, p. 102.

uma liberdade para aqueles que inventam ou têm coisas a dizer"71 •

4. Fabrizio CALVI, Italie 77, le ''Mouvement'; les intellectuels, op. cit., p. 34.

A conquista de liberdades novas também

5. Félix GUATTARl, prefácio, COLLECTIF AI TRAVERSO, Radio Alice, radio libre, ed . jean-Pierre Delarge, Paris, 1977, p. 6.

passa por cima do muro que separa o mundo comunista e a Europa Ocidental. No final dos

anos de 1970, muitos dissidentes soviéticos e da Europa do Leste encontram refúgio na França. O CINEL e o CERFI contribuem para

difundir o relato de sua experiência nos campos de concentração. Inclusive um número da

6. Franco Berardi (IHfo), entrevista com Virginie Linhart. 7. Ibid. 8. Les Untare/li, Recherches, n. 30, novembro de

1977, p.l9.

252

Dosse

Gilles Deleuze & Félix Guattari

9. Franco Berardi (Bifo), entrevista com Virginie

tian Descamps, jean-Claude Polack, Daniel

Linhart.

Guérin,jack Lang,Jean-Pierre Faye, Michel Tubiana, Christian Bourgois, Alain jouffroy, Yann

10. Gianmarco Montesano, entrevista com Virginie Llnhart.

Moulier-Boutang,jérôme Lindon, Gérard Fromanger, Mony Elkhai"m, jean-jacques Lebel, Daniel Cohn-Bendit, René Schérer, Bernard Noel, Matta,jean Chesneaux...

11. COLLECT1F A/TRAVERSO, Radio Alice, radio libre, op. cit. 12. Gianmarco Montesano, entrevista com Virginie Linhart.

13. Encontram-se no CINEL, ao lado de Félix Guattari, entre outros, o jurista Gérard Soulier, o pintor Gérard Fromanger, Yann Moulier-Boutang, Éric Alliez,Jean-Pierre Faye,Jean Chesneaux c Gilles Deleuze.

14. Franco Berardi (Bifo), entrevista com Virginie

33. Toni NEGRI, Marx, au-delà de lvlarx, Christian Bourgois, Paris, 1979. 34. Toni Ncgri, "Surpris par la nuit", programa de Alain Veinstcin, France Culture, 23 de abril de 2002, arquivos do INA. 35. Yann Moulier-Boutang. entrevista com Virginie Linhart.

Linhart. 15. Ibid.

36. Gisêle Donnard, entrevista com Virginie Li- ·

16. Franco Berardl (Bifo), entrevista com Virginie

37. Gi!les DELEUZE, ~Lettera aperta ai guidieri di

nhart. Negri", 10 de maio de 1979; reproduzida em

Linhart.

17. Gérard Fromanger, entrevista com o autor. 18. Gérard Fromanger, entrevista com Virginie Li'""''

,;.

1~·1·1:11;11

~~~tj:;::;:

'I

1;. d~W'

li:'

~· .~!

.~·é~!t.:: ~~·~lil>lt:!

•,

!~t ~JJ>.I

'Í'"'''''"

nhart.

19. Hervé Maury, entrevista com o autor. 20. ChristianBourgois, entrevista com o autor. 21. Yann Moulier-Boutang, entrevista com Virgi-

38. 39. 40. 41.

zembro de 1979; reproduzido em Gilles DE-

LEUZE, RF, p. 161.

nie Linhart.

22. Gérard Fromanger, entrevista com o autor. 23. Ibid. 24. Ibid. 25. Ibid. 26. Ulrike Meinhof foi considerado o cérebro da RAF. Nascido em 1934 em Oldenburg, estudou filosofia, sociologia e pedagogia nos anos 1950. Torna-se jornalista e participa da libertação de Andreas Baader em 14 de maio de 1970, como também ele alguns atentados.

27. Jean CHESNEAUX, L'Engagement des intellectuels 1944-2004. ltinéraire d'un historien franc-tireur, Privat, Toulouse, 2004, p. 259-260. 28. Gérard Soulier, entrevista com o autor. 29. Bernard-Henri Lévy, entrevista com Eric Conan, Denis Jeambar e Renaud Revel, L'Express, 10 de janeiro de 2005.

30. Éric Alliez, entrevista com o autor. 3!. Jean Chesneaux, entrevista com o autor. 32. Entre os inúmeros signatários, além ele Félix Guattari e Gilles Deleuze, estão Gérard Soulier, Pierre Halbwachs, Claude Bourdet, Georges Casalis, Louis M,âgon, ~o~~s Althusser, Chris-

Gilles DELEUZE, RF, p. 115-159. lbid., p. 156. Ibid., p. 157. Ibid., p. 158. Gilles DELEUZE, Le Matin de Paris, 13 de de-

42. Toni Negri, carta a Félix Guattari, 18 de julho ele 1980, Trani, arquivos IMEC.

43. Toni Negri, carta a Félix Guattari, 28 de novembro de 1980, Roma, arquivos IMEC.

44. Toni Negri, carta a Félix Guattari, 10 de julho 45. 46. 47. 48.

49. 50. 51. 52. 53. 54. 55. 56.

de 1982, Rebibbia, Roma, arquivos IMEC. Toni Negri, entrevista com o autor.

Ibid. Toni Negri, entrevista com Virginie Linhart. A chamada "doutrina Mitterrand» refere-se ao compromisso do presidente da República, François :tvlitterrand, em 1985, ele não extraditar antigos militantes italianos de extrema esquerela que tinham rompido com seu passado elos "anos ele chumbo". Toni Negri, entrevista com o autor.

Félix GUKfTARI, Toni NEGRI, NEL, p. 7. Ibid., p.l2. !bid., p.l5. lbid., p. 98. Ibid., p. 103. Jbid., p. 108. François Pain, entrevista com o autor.

253

57. François Aubral, entrevista com o autor. 58. François Paio, entrevista com o autor.

66. Gisêle Donnard, entrevista com Virginie

59. Ibid.,

67. Matthieu DALLE, "Les radios libres, utopie deleuzo-guattatíenne", French Cultural Studies, vol. 17, n. L fevereiro de 2006, p. 67.

60. Gérard Sou!ier, entrevista com o autor.

61. 62. 63. 64.

jean-Pierre Faye, entrevista com o autor. Paul Virilio, entrevista com Virginie Linhart. François Pain, entrevista com o autor. ALFREDO: sigla que mistura ALO (Association pour le liberté des oneles) e FRED (Federatio di Radio Emetrice Democratice), a federação elas rádios associativas italianas.

65. Mchel Tubiana, entrevista com o autor.

Linhart.

68. François Pain, entrevista com o autor. 69. Félix GUATTARI, Libération, 27 de agosto de

1981. 70. 'Entrctien avec jack Lang sur les radios líbres", La Quinzaine Littéraire, 16-30 nov., 1981. 71. Ibid. 72. Naus, dissidents, Recherches, n. 34. out. 1978.

Gilles Deleuze & Félix Guattari

17 Deleuze e Foucault: uma amizade filosófica

A afirmação lúcida de Michel Foucault ao declarar em !969 que "um dia, talvez, o século será deleuziano'>t foi muito repetida. Por sua vez, "Gillés tinha uma profunda admiração 2 por Michel Foucault" • Embora se encontras-

sem muito, estivessem lado a lado em lutas comuns, nunca chegaram a trabalhar juntos. Contudo, no momento da última homenagem prestada a Foucault em La Salpêtri€re, diante

de algumas centenas de pessoas em estado de choque em face desse desaparecimento prematuro, foi Deleuze quem tomou a palavra e leu um trecho do prefácio de O Uso dos Pra-

zeres. Uma certa concorrência na encarnação do magistério do pensamento crítico sem dúvida atiçou alguns desacordos de fundo, pelo menos do lado de Foucault. Paul Veyne, uma pessoa próxima de Foucault, atesta esse estado de espírito em seu amigo: "Tive a sensação de uma rivalidade de Foucault em relação a 3 Deleuze" • Foucault, exasperado de ver a obra de Nietzsche a tal ponto ligada à leitura feita por Deleuze, apoquentava seu amigo Veyne, dizendo~lhe que o que ele gostava em Nietzs4 che era "o Nietzsche de Deleuze" • Não se pode dizer que esse sentimento de ciúme e desconfiança fosse compartilhado por Deleuze, que nuncaJ;tleixO!J- d.~ afirmar sua proxi~

midade com Foucault: "Não trabalhei com Foucault, mas acredito que existem muitos pontOs de correspondência entre nosso trabalho (com Guattari) e o dele, mas fomos como que mantidos a distância por uma grande diferença de 5 método e mesmo de objetivci' • Prosseguia a propósito da hipótese de sua rivalidade: "Vou lhe dizer: que Foucault exista com essa personalidade tão forte e tão misteriosa, que tenha escrito tão belos livros, com um tal estilo, isso só me deu 6 alegrid' . A rivalidade com Foucault era impen~ sável para Deleuze, pois por ele sentia apenas admiração: "Talvez nos tenhamos conhecido tarde demais. Eu tinha um enorme respeito por ele. Um novo ar chegava. As coisas mudavam. Era atmosférico. Havia uma emancipação~Fou~ cault... O gesto de Foucault era admirável: de metal e de madeira seca, de belos gestos"'. A história de sua cumplicidade começa cedo. O primeiro encontro data de outubro de 1952, em Lille. Como professor no liceu de Aliens, De~ leuze e seu amigo Jean-Pierre Bamberger vão a uma conferência de Foucault, assistente de psi~ cologia na universidade de Lille. No início dos anos de 1950, Foucault está bem próximo do PCF, e Deleuze não se engana: "O que ouvi era 8 muito nitidamente de orientação marxista'' • Terminada a conferência, Bamberger convida

. ambos para jantar em sua casa. Esse primeiro encontro, glacial, parecia não ter futuro. A oportunidade seguinte só surgirá dez anos mais tarde, em 1962. Foucault, professor em Clermont-Ferrand, está concluindo seu Raymond Roussel e Nascimento da Clfnica. Quanto a Deleuze, acaba de publicar seu Nietzsche, que fascina muito Foucault. Como Jules Vuillemin foi eleito para o College de France, há uma vaga a ser preenchida na universidade de Clermont-Ferrand. Foucault sugere a Vuillemin o nome de Deleuze para substituí-lo. Sondado para o cargo, Deleuze vai a Clermont, onde passa o dia com Foucault, que não o via desde o jantar em Lille. "O encontro é muito bom, e todo mundo está contente. A candidatura de Deleuze era unanimidade no departamento de fllosofia, e Vuillemin fará com que seja aprovada igualmente pelo voto unânime do Conselho da Faculdade"'. Contudo, essa perspectiva de colaboração entre Foucault e Deleuze no mesmo departamento não se concretiza: o ministério já havia decidido entregar o cargo a alguém da hierarquia do PCF e membro do comitê político, Roger Garaudy. Nesse meio tempo, Deleuze é nomeado para a universidade de Lyon, mas a pequena guerrilha contra Garaudy aproximou os dois homens: "Eles se veem regularmente quando Deleuze vai a Paris. Ainda que isso não os torne íntimos, suas ligações são suficientemente fortes para que Foucault empreste seu apartamento ' d ; ,[0 a Deleuze e a esposa quan o esta ausente . Nesse início dos anos de 1960, Foucault e Deleuze trabalham juntos, para a Gallimard, na edição das Obras Completas de Nietzsche, que deve modificar radicalmente a leitura que se fez dele até entãou. Os dois se reencontram nos dois grandes momentos desse "retorno a Nietzsche'', o colóquio de Royaumont, em 1964, e depois o de Cerisy, em 1972. Ambos es~ tão ligados a Pierre Klossowski, que traduziu A Gata Ciência em 1964, e esse é seu primeiro grande encontro no terreno da fllosofia. Deleuze conhece Klossowski há muito tempo, e o reencontrou nos círculos de Marie-Magdeleine Davy durante a guerra. Quando publica seu

255

Nietzsche e o Círculo Vicioso, em 1969, Klossowski o dedica a Deleuze em homenagem a seu

Nietzsche e a Filosofia. A reflexão paralela de Klossowski fornece tanto a Foucault quanto a Deleuze uma problemática comum, diretamente inspirada na obra dele". Esta é colocada sob o signo de um prolongamento da literatura transgressiva que cruza a ficção e a filosofia à maneira do simulacro: "Por meio dessa mimesis paradoxal, ao mesmo tempo atualizante e exorcizante, o simulacro se torna o ponto de inversão das 13 relações entre o profano e o sagrado" • É importante interrogar a identidade factícia das coisas e dos seres suscitando a ruptura que o simulacro e a proliferação de máscaras possibilitam. Encontra-se ali o tema foucaultiano da morte do homem, que o tornará famoso e ao mesmo tempo causará escândalo em As Palavras e as Coisas: "Toda a obra de Klossowski tende para um objetivo único: assegurar a ,[,1 perda da identidade pessoal, disso 1ver o eu . Assim, Foucault e Deleuze fundamentam seu nietzschianismo - e seu anti-hegelianismo - utilizando o simulacro como máquina de guerra contra um pensamento da identidade e da representação. Deleuze saúda no último ensaio de Klossowski, "O Baphomet" (dedicado a Foucault), uma narrativa que permite escapar do dilema moral e teológico entre o Bem e o Mal, mostrando que os dois sistemas não são alternativos, mas simultâneos, e desse modo constituem "uma continuação grandiosa de 15 Zaratustra'' • Separadamente- Deleuze está em Lyon, e Foucault, em Sidi-Bou~Sald, na Tunísia-, eles compartilham o mesmo entusiasmo por Maio de 68. Em sua aula sobre Foucault, Deleuze in~ siste na importância do acontecimento para compreender os desafios da filosofia foucaultiana que não são apenas teóricos, mas de ordem prática. Evocando esse acontecimento fundador em !986, Deleuze recorda seu alcance internacional, a exuberância indescritível e 16 impensável no deserto dos anos de !980 • Ele situa o operador dessa ruptura no questionamento das diversas formas de centralismo.

256

Fr<mrn;<

Dosse

Quando se discute a criação da universidade de Vincennes, durante o verão de 1968, Foucault, sondado para implantar o departamento de filosofia, recorre naturalmente a Deleuze, que é obrigado a recusar temporariamente por razões de saúde. É o momento em que Deleuze publica Diferença e Repetição e Lógica do Sentido, que Foucault acolhe como uma verdadeira revolução filosóüca. Expressa seu entusiasmo diante do que qualifica como uma "fulguração que levará o nome de Deleuze: um novo pensamento é possível; o pensamento, de novo, é possível. Ele não está por vir. Prometido pelo mais longínquo dos recomeças. Ele está ali, nos textos de Deleuze, saltando, dançando diante de nós, entre nós; pensamento genital, pensamento intensivo, pensamento afirma17 tivo, pensamento acategórico" • Foucault já percebe muito bem, em 1969, que a filosofia de Deleuze é em primeiro lugar e acima de tudo, como mostrará François Zourabichvili, uma "fil · "18 . Mostra que a 1 oso fiIa d o acontecimento questão fundamental colocada por Deleuze é a de saber o que é pensar e situa o pensamento 9 na "disjunção afirmadá>~ do acontecimento e da flmtasiaY.'. Como em eco, Deleuze afirma em 20 de maio de 1986, ao finalizar sua aula sobre Foucault: "Uma única coisa preocupou Fou~ cault o tempo todo: o que quer dizer pensar'/"20•

A aventura do Grupo de Informações sobre as Prisões Essa proximidade filosófica conhece no início dos anos de 1970 um prolongamento político com a criação do Grupo de Informações sobre as Prisões (GIP) por Foucault e o engajamento de Deleuze ao seu lado. O GIP "N. de R. T.: No originalfantasme. Seria interessante examinar as diferenças de conteúdo pelos quais passa esse conceito, sobretudo no uso da epistemologia psicanalítica francesa, naquílo que se refere à tradução e ao emprego (julgado ou não "apropriado"') referindo-se uso de "fantasia" ou de "fantasma". Ver artígo clássico de Laplanche,]. & ].B. Pontalis: Pantasme originaire.jantasme des origines, origine

dufantasme. (Les Tilthps Modernp;, n. 215, p. l833-1868).

Gilles Deleuze & Félix Guattari

nasce quando da dissolução da GP (Gauche Prolétarienne) em maio de 1970 pelo ministro do Interior, Raymond Marcellin. O poder endurece nesse momento sua politica de repressão da agitação esquerdista no pós-68 e prende numerosos militantes da organização dissolvi~ da, como J\lain Geismar. Em setembro de 1970, militantes presos fazem uma greve de fome de 25 dias para obter o estatuto de preso político, que não obtêm. Em janeiro de 1971, começa uma nova greve de fome com apoio mais amplo da opinião pública. Uma audiência requisitada por Alfred Kastler, Paul Ricceur e Pierre Vidal-Naquet junto ao ministro da justiça, René Pleven, resulta na promessa de uma comissão para estatuir sobre a condição carcerária e, por fim, depois 34 dias de jejum por alguns, "os advogados Henri Leclerc e Georges Kiejman anunciam, em 8 de fevereiro de 1971, em uma coletiva de imprensa na capela Saint-Bernard, a suspensão da 21 greve de fome" e a obtenção de um regime especial de detenção. Durante essa coletiva de imprensa, três intelectuais de renome, 111:iche1 Foucault, Pierre Vidal-Naquet e o diretor da revista Esprit, jean-Marie Domenach, anunciam a criação de um "Grupo de Informações sobre as Prisões". Na origem, esse grupo é di~ retamente oriundo da corrente maoísta e tem como objetivo proteger do arbítrio os militantes processados da GP. Os antigos da GP haviam criado na verdade uma Organização dos Prisioneiros Políticos (OPP) sob a responsabilidade de Serge July e depois de Benny Lévy. Na prática, o GIP logo será autônomo. Sem ter combinado com ele, Daniel Defert lança então o nome de Foucault para cuidar de uma comissão de pesquisa sobre as condições nas prisões. Foucault aceita e, "no final de dezembro, reúne em sua casa aqueles que julgava capazes ou de constituir ou de preparar uma comissão de pesquisa sobre as prisões"22• Rapidamente se estabelece o método de pesquisa: a advogada Christine Martineau está concluindo um livro sobre o trabalho na prisão e já elaborou com a filósofa Danielle Ranciere um questionário, que agora é preciso fazer chegar

aos detentos: "Nosso método era a pesquisa operária de Marx''23 • Finalmente, por iniciativa de Foucault, o projeto de uma comissão de pesquisa, um pouco desgastado pelas pesquisas populares realizadas pelos militantes maoístas após 1968''', se transforma no GIP. O grupo se organiza de maneira totalmente eles~ centralizada (um grupo por prisão). Em pouco tempo, esse modelo parisiense se propaga nas prisões de província onde há militantes. Deleuze logo flca seduzido por esse tipo de organização ao mesmo tempo guiada por uma resistência prática, efCtiva, e que rompeu com toda forma de aparelho burocrático centrali~ zando, definindo~se como uma microestrutura: "O GIP desenvolveu um dos únicos grupos esquerdistas a funcionar sem centralização ... 25 Foucault soube não se conduzir como chefe" • Pretextando uma tensão crescente desde o motim na prisão de Clairvaux em setem~ bro de 1971, em que dois prisioneiros, Buffet e Bontens, tomaram como reféns um carcereiro e uma enfCrmeira, o ministério da justiça decidiu nesse ano, a título de punição coletiva, e para acalmar a angústia dos carcereiros, suprimir as encomendas de Natal para o conjunto dos detidos. Essa decisão teve como efeito atiçar o fogo da contestação nas prisões: durante o inverno entre 1971 e 1972, contabilizam-se 32 movimentos de revolta, alguns deles chegando à destruição de celas e à ocupação dos telhados. Na noite de Natal, o GIP organiza uma manifestação diante da prisão da Santé, em Paris, da qual participam Foucault e Deleuze. Ao longo de dezembro de 1971, ocorrem violentos confrontos, sobretudo na central elétrica da prisão ele Toul, que deixam uma quin~ zena de feridos entre os detentos. Os intelectuais do G!P são chamados às vezes a se deslocarem à província. É o caso em Nancy, onde o motim foi duramente reprimi~ do, e 6 dos 200 amotinados são levados aos tribunais. Deleuze, Daniel Defert, Hélene Cixous, jean-Pierre Faye, Jacques Donzelot fazem o trajeto para participar de uma manifestação de protesto. Foucault, detido depois de ter intervindo para prestar socorro a um imigrante

257

que estava sendo espancado no metrô, não pode estar lá. Na praça central da cidade, Jean~Pierre Faye conversa com um jornalista de L'Est Républicain, que lhe diz que essa manifestação não tem o menor interesse. Faye o acon~ selha a esperar mais alguns minutos antes de julgar: "Mal proferi essas palavras proféticas e 26 os policiais caíram em cima de nós" • Deleuze sobe em um banco para discursar, logo cortado pelo ataque da polícia, e afirma: "Meu chefe não está aqui, por isso vou falar no lugar dele". Com a polícia atacando, Deleuze, debilitado por suas dificuldades respiratórias, passa muito mal e se vê obrigado a deitar no chão em um estado de semi coma. O jovem Jacques Donzelot, amigo de Foucault, fica junto dele, muito preocupado: "Quando recobrou a consciência, ele me disse: 'Ah! Você está aí? Que gentil!"m. Quando Donzelot está para defender sua 28 tese sobre ''A polícia das famílias" em Pa~ ris-VIII sob a orientação de Jean-Claude Passeron, Deleuze lhe propõe fazer parte da banca: '1\marelei de súbito e, incapaz de dizer qualquer coisa, disse simplesmente: 'Por que eu f3.ria um resumo, visto que você já me leu?', e Deleuze retruca: 'Não faz mal, vou resumir a tese no seu lugar'. Fantástico!"29 . Quando da publicação da tese, foi Deleuze quem sugeriu a Donzelot escrever um prefácio para ele. Entretanto, aumenta a tensão entre os dois amigos, Foucault e Deleuze. Donzelot acaba de defender uma tese muito foucaultiana e quando diz a Foucault que vai ter um prefácio de Deleuze, ouve como resposta: "Tenho horror disso, não suporto que um velho venha meter sua marca no trabalho de 30 um jovem" • No fim das contas, para não ferir a suscetibilidade de Foucault, Deleuze escreve 31 não um prefácio, mas um po~fácio • Em 17 de janeiro de 1972, para protestar contra a repressão nas prisões, o GIP consegue reunir em uma mesma manifestação Sartre e Foucault. Um pequeno grupo de personalidades adotou como objetivo penetrar no interior do ministério da Justiça, na Place Vendôme, para conceder ali uma entrevista coletiva à im~ prensa. Toda essa gente importante se senta no corredor do ministério para ouvir Foucault,

258

Desse

Cilles Deleuze & Félix Guattari

que se põe a ler a declaração dos prisioneiros de Melun. A polícia intervém calmamente sob os

urros e gritos de "Pleven na prisão!" ou "Pleven assassino!"~'. "Os policiais se enervam. Sartre resiste. Foucault resiste. Faye resiste. Deleuze re-

meiro grupo de questões parte do comunicado publicado pela chefia policial em 30 de maio,. Se o comunicado é tão inverossímil é porque

siste e não para de rir. Os policiais acabam por

não se espera que acreditem nele. Há outro objetivo, que é a intimidação ... ,:J6. No outono de !97!, um jovem argelino des-

vencer nossa resistência e conseguem empur-

trata a zeladora de seu prédio na Goutte d'Or,

32

rar o grupo até a calçada'' • Finalmente, posta para fora dos muros do ministério protegido

por uma fileira tripla de policiais com capacetes e armas, a entrevista coletiva à imprensa se realiza nos escritórios da agência noticiosa de Libération, na Rue Dussoubs. Pouco tempo depois, em 31 de janeiro de 1972, Deleuze escreve em Le Nouvel. Observateur: "O que os prisioneiros esperam de nós.. :m. Ele lembra suas reivindicações sobre o levantamento da censura, sobre o tribunal, sobre

a "solitária", sobre a exploração do trabalho e sobre a liberdade condicional, e vê na expressão dos prisioneiros algo de inteiramente novo

que não diz respeito mais à "confissão pública', 34

mas -a·úma "crítica personalizada" • Foucault, nessas manifestações, se mostra bastante

atento e preocupado com o estado de saúde de seu amigo Deleuze, Assim, em 16 de dezembro de 1972, durante os confrontos com as forças

O marido da zeladora vê a cena, saca a espin-

garda e mata, acidentalmente, diz ele, o argelino Djellali. Esse caso revela o contexto de tensão racial crescente no bairro, e manifestações denunciam um crime racista. Foucault toma a iniciativa de uma nova comissão de pesquisa em que se encontram, entre outros, Deleuze,

Jean Genet, Claude Mauriac e Jean-Claude Passeron. Em 27 de novembro, Sartre e Foucault

Foucault e um pequeno grupo após um ataque policial: "Vocês viram Deleuze,., Espero que não tenha sido preso ... Eis como se preocupa Michel Foucault- muito pálido' 35 • Ném das ações voltadas às prisões, o GJP

organização capaz de renovar as relações entre teoria e prática, ressituando-as em um quadro mais concreto, local e parcial: "Para nós, o intelectual teórico deixou de ser um sujeito, uma 39 consciência representante e representativa" •

se mobiliza em casos de repressão e de racismo. Na primavera de 1971, estoura o caso Jau-

Foucault considera, de sua parte, que o papel

bert. Jornalista do Nouvel Observateur, Nain ]oubert é testemunha de violência policial durante uma manifestação de antilhanos, É

discurso da Verdade acabou, pois a democra-

formada uma comissão de informações. No dia 21 de junho de 1971, realiza-se uma coletiva de imprensa. Após uma intervenção de De-

nis Langlois, Deleuze toma a palavra: "Um pri-

universal do intelectual como encarnação do

,., N. de T.: Renê Pi~€n. ministr.o da justiça.

contrário, Deleuze e Guattari produzem conceitos, máquinas, e testam o que elas podem dar na realidade social. Guattari inscreve sua reflexão em toda uma série de práticas sociais lígadas à militância, na psicoterapia institucional e ainda em vários organismos de pesquisa,

como o CERFI, todos lugares de experimentação de conceitos elaborados em conjunto com

Deleuze, Contudo, Foucault se deixa convencer por Deleuze, apesar das reservas em face de

das publicações do CERFI. Assim, Foucault colabora em dois números da revista Recherches: Les Équipements du Pouvoir (n. 13, dez, de 1973) e Trais Milliards de Pervers (1973t. Ao mesmo tempo, no ano letivo de 1971 e 1972, Deleuze participa do seminário de Foucault no College de France. Foi nessa ocasião que se examinou de todos os ângulos o caso de Pierre Riviêre, que degolou a mãe, o irmão e a irmã no século XIX, aos 20 anos, e que deixou um relato, parcialmente publicado em 1836.

O momento das fraturas O outro momento de mobilização conjunta de Foucault e Deleuze foi, um pouco mais tarde, o caso Klaus Croissant, em 1977. O ad-

vogado do bando de Baader na Nemanha chega a Paris em li de julho de 1977 para pedir

de poder. Cabe a eles delimitar os focos de po-

pelos terroristas, Logo que chega a Paris, as autoridades alemãs pedem sua detenção e extradição, Em 30 de setembro, ele é preso pela polícia francesa. O advogado Gérard Soulier, amigo de Guattari e muito ativo no CINEL, ficou sabendo da notícia pelo Le Monde quando se preparava

idêntica: "De um lado, Foucault parte de experiências e de práticas e conceitualiza. Deleuze

Ele salta

prensa com a participação do presidente da Liga dos Direitos do Homem, Henri Nogueres,

tização da sociedade permitiu a toda categoria social exprimir melhor suas insatisfações sem ter necessidade dos intelectuais. Estes últimos devem se concentrar na luta contra as formas der e retraçar sua genealogia. Se nesses anos os dois amigos se aproximam no terreno da prática política, sua concepção do engajamento não é exatamente



Punir e trabalha sobre a analítica do poder, Ao

Guattari e do desejo de manter distância de

7

42

do sofá, pega o anuário dos advogados e liga para Jean-Jacques de Felice, Tubiana e Antoi-

seus grupos, a participar de alguns números

Simone Signoree • Essas intervenções militantes de 1971 e !972 permitirão a Deleuze e Foucault travar um diálogo sobre a maneira como definem as no-

para dormir: "Isso me despertou!"

experimentam" • Assim, Foucault, que passa um tempo em Sainte-Anne e se interessa pela psiquiatria, cria o GIP, depois escreve Vigiar e

tomam a frente de um encontro na Goutte

da ordem, Claude Mauriac encontra-se com

guardas, Em uma reunião presidida por Claude Mauriac, Foucault anuncia que está sendo

40

d'Or em nome de um 'Apelo aos trabalhadores do bairro', assinado por Deleuze, Foucault, Michel Leiris, Yves Montand,Jean Genet, Sartre e

vas tarefas dos intelectuais em face do poder. É durante esse encontro de 1972 que Deleuze retoma a frase de Guattari: "Somos todos grupúsculos"38. Deleuze vê no GIP um novo tipo de

embarcado em carro-cela e espancado pelos

e Guattari inventam máquinas de guerra e as

259

asilo político - ele é denunciado em seu país como "agente" de Baader, instrumentalizado

ne Com te, que organizam uma coletiva de im-

De sua parte, Alain Peyrefitte, então ministro

da Justiça, declara em 26 de outubro de 1977 que "não é possível que a França se torne uma terra de asilo para terroristas". No início de novembro, realiza-se na 10a Câmara da Corte de Apelação de Paris a audiência que deve estatuir sobre o pedido de extradição. Em !6 de novembro de 1977, enquanto uma pequena multidão se posiciona diante da prisão de Santé, Foucault e Deleuze estão lá quando a polícia ataca. Croissant é reconduzido à fronteira alemã. Desta vez, as discordâncias entre os dois amigos estão prestes a abalar sua relação de amizade. Embora estejam juntos no protesto contra a extradição de Croissant, Foucault se recusa a assinar a petição da qual participam Deleuze e Guattari, pois a considera excessivamente complacente com os terroristas da

RAF. Foucault pretende limitar seu apoio estritamente ao advogado Croissant43 . Claude Mauriac se recorda de ter ligado para Foucault

"a fim de lhe perguntar como ele havia reagido ao telefonema de Guattari a propósito da extradição pedida para o advogado de Baader, Klaus Croissant. Já então, sem ter combinado antes, tínhamos nos recusado a assinar um texto, concordando com um não absoluto à extradição, mas recusando ambos a assumir o 44 que se dizia, no mesmo texto, daAlemanha'' •

Anos depois, o biógrafo americano de Foucault, ]ames Miller, perguntou a Deleuze o que poderia ter afetado de maneira tão irreversível essa amizade. Deleuze destacou três pontos, em 7 de fevereiro de 1990, cinco anos após o falecimento de Foucault: "L É evidente que não há uma resposta única. Um de nós pode ter dado uma resposta num dia ou outra num outro dia, não por inconstância. Esse é um âmbito em que as razões são múltiplas, e nenhuma é 'essencial'. Justamente porque nenhuma dessas razões é essencial, elas são sempre várias

260

Dosse

ao mesmo tempo. A única coisa importante é que durante muito tempo eu o havia seguido filosoficamente e, em certos momentos, já não

tinha mais as mesmas avaliações que ele sobre vários pontos. 2. Isso não provocou um 'esfriamento' entre nós, nem uma 'explicaçãó. Passamos a nos ver com menos frequência, como

por força das coisas. Com isso, ficava cada vez mais difícil nos revermos. Curiosamente, não foi por desentendimento que deixamos de nos ver, mas, ao contrário, foi por não IlOS vermos mais que se instalou talvez uma espécie de incompreensão ou de distância. 3. Posso lhe di· zer que lamento constantemente, e cada vez mais, não vê-lo. Então, o que me impediu de ligar para ele? Ê nisso que intervém uma razão mais profunda ou mais essencial que as outras. Com ou sem razão, achei que ele desejava mais solidão, para a sua vida, para o seu pensamento, que ele tinha necessidade dessa solidão, mantendo relações apenas com seus íntimos. Penso agora que deveria ter tentado revê-lo, mas acl10 que não o fiz por respeito. Ainda sofro por não tê-lo revisto, tanto mais que não creio que houvesse razões externas" 45• Essa carta diz muito, mas de modo alusivo. Para compreender o porquê dessa ruptura radical, é preciso voltar a alguns pontos de desacordo. Em primeiro lugar, nesse ano de 1977, há duas tomadas de posição diametralmente opostas acerca dos novos filósofos, defendidos por Foucault e violentamente rejeitados por 16 Deleuze' • Além do caso Croissant, é preciso acrescentar sua divergência profunda quanto à questão palestino-israelense. Sobre esse ponto, Edward Said deu uma entrevista a ]a· mes Miller em novembro de 1989. Said consi· dera que o conflito do Oriente Médio foi uma das principais causas da ruptura: "Ele obtivera essa informação do próprio Deleuze"47, o que Deleuze não contradisse quando Miller lhe colocou a questão. Enquanto Deleuze escreve um artigo louvando Yasser Arafat 48, Foucault denuncia a resolução da ONU que compara o . . • 49 swmsmo a um racrsmo e, em 1978, em plena crise libanesa, ataca o totalitarismo da Síria e da URSS e poupa .a política israelense. -{' -.

Gilles Deleuze & Félix Guattari

Uma nova divergência política surge por ocasião da troca de poder em 1981, com ache. gada da esquerda. Deleuze está seduzido e mesmo entusiasmado com os inícios da presidência de Mitterrand. Acha que se deve deixar os 80 • cialistas trabalharem e demonstrar benevolência. Foucault, de sua parte, julga que é preciso criticá-los como todo poder, ou até mais, e isso porque os comunistas entraram no governo de Pierre Mauroy. Quando Jacques Donzelot encontra Deleuze pela última vez, "foi em 1981, no Panthéon. Ele estava do lado de Mitterrand. Cruzo com ele, estava indo no outro sentido. Ele me diz: 'Ê fantástico o que está acontecendo!', e eu lhe respondo que não, é um político cínico que deu sorte. Ele estava fascinado" 50• Essa diferença de apreciação explode por ocasião do golpe de Estado do general ]aruzelski na Polônia em 1981, destruindo os sonhos do dirigente do Solidarnosc, Lech Walesa. Foucault redige com Bourdieu um documento condenando as fraquezas do novo governo socialista diante de mais um golpe de força stalinista. Deleuze, contatado para assiná-lo, se recusa e assina um documento concorrente, emanado de jack Lang e retocado por ]eanMPierre Faye, denunciando a repressão na Polônia e ao mesmo tempo elogiando a ação de Mitterrand. A todas essas divergências de ordem política, é preciso acrescentar diferenças notórias nas orientações filosóficas, ainda que insuficientes para explicar a ruptura do vínculo entre Deleuze e Foucault. Depois de ter expressado sua mais viva admiração quando do lançamento de Diferença e Repetição e de Lógica do Sentido, Foucault flca perplexo ao to· mar conhecimento em 1972 de O Anti-Édipo. Ê verdade que ele escreve, em 1977, um prefácio para a edição americana, onde apresenta O Anti-Édipo como o primeiro livro ético escrito depois de muito tempo. Entretanto, segundo seu amigo Donzelot, esse prefácio não traduziria o verdadeiro sentimento de Foucault quanto ao livro de seu amigo; "Foucault não gostou de O Anti-Édipo. Ele me disse várias vezes"" . Q uan do ]acques Donzelot escreve, de sua parte, uma resenha entusiasmada em

Espril 2, Foucault se sente aliviado por não ter de fazê-lo: para ele, esse livro é "um efeito de linguagem, é Celine. Ele [Foucault] partiu com meu texto para dar a uma revista americana e com isso pode se redimir de não ter escrito nada a respeítdm. Em 1976, Foucault pretende acertar as contas com a psicanálise, com Lacan e com sua teoria da falta, ao publicar o primeiro vo4 lume de uma História da Sexualidade 5 • Nessa obra inaugural, ele ataca o desejo no sentido freudiano e contradiz as teses segundo as quais a sociedade seria cada vez mais repressiva desde a Idade Clássica. Foucault mostra que não se assiste a uma rarefação progressiva dos discursos sobre o sexo, mas, ao contrário, à sua proliferação. Deleuze e Guattari foram de fato apanhados no olho do furacão pela crítica fou· caultiana do desejo e dos "desejantes". Deleuze reage, aliás, enviando uma carta pessoal a Foucault, por intermédio de François Ewald, na qual argumenta ponto por ponto. Nessa carta, que será publicada bem mais tarde, em 1994, 55 sob o título de "Desejo e prazer" , Deleuze se pergunta se é possível pensar como equivalentes aquilo que para ele provém do "corpo sem órgãos-desejos" e para Foucault do "corpo·pra· zeres". Ele recorda nesse texto a virulência da rejeição da noção de desejo em Foucault: ''A úl· tima vez que nos vimos, l\!lichel me disse, com muita gentileza e afeição, mais ou menos o seguinte: não consigo suportar a palavra desejo; ainda que você a empregue de outra maneira, não posso me impedir de pensar ou de viver que desejo = falta, ou que o desejo se diga re· 56 primido" • Por sua vez, Deleuze considera, de maneira espinosiana, que os prazeres não são senão obstáculos no caminho do desejo de ser, do conatus, da realização de si, do perseverar no Ser, e, portanto, só podem conduzir à per· da. O prazer, para ele, interrompe o "processo 57 imanente ao desejó' • Ferido, Foucault não responde. Ele vê ali uma razão a mais para romper com seu amigo: "Pouco depois, Foucault decidiu subitamente 58 nunca mais ver Deleuze" • Para compreender o que mais chateou Foucault na acolhida mui-

261

to cética de Deleuze, é preciso recordar que, sem dúvida, seu livro configura um sucesso de público evidente e imediato a ponto de ser preciso reimprimir 22 mil exemplares além da tiragem inicial de 22 mil. A imprensa também lhe reservou uma apreciação muito favorável. Ao contrário, a tese central do livro, que põe em questão o combate antirrepressivo, derrapa no entourage de Foucault. Não se compreende bem como toda uma década de lutas de emancipação em nome de minorias sexuais deveria reverter do lado do desenvolvimento de um biopoder. As criticas e incompreensões se fazem ouvir, e o Esquecer Foucault de Baudrillard, vem coroar um contexto que fragiliza o fllósofo um pouco abalado, pois todo o edifício que programara é abandonado. Ele só publica o segundo tomo de sua História da Sexualidade em 1984, ou seja, após sete anos de silêncio e em bases totalmente renovadas. Essa questão do desejo é tanto mais central na ruptura com Deleuze na medida em que no cerne de seu encontro está o mesmo imperativo de pensar o desejo 59. Segundo De· leuze e Foucault, Freud e Lacan teriam fracassado em pensar o desejo ao reduzi-lo à falta e ao proibido: "Mas se os dois fllósofos se encon· tram, mais do que nunca, em uma causa comum, estão também irredutivelmente distantes"60. Em 1983, Foucault é muito claro sobre essa divergência em uma longa entrevista com Gérard Raulet, que lhe pergunta se ele admi· tia um certa proximidade com Deleuze: "Essa proximidade iria até a concepção do desejo deleuziano?". Foucault responde de maneira 61 categórica e lapidar: "Não, justamente nãd' • De fato, eles não dão as mesmas respostas a um questionamento que lhes é comum. Aínda que compartilhem a preocupação de construir uma ética de vida não fascista e concordem também sobre a falta de naturalidade e de espontaneidade do desejo sempre preso em agenciamentos, o projeto de Deleuze e Guattari é pensar o desejo como concatenação em agenciamentos e em uma perspectiva resolutamente construtivista: ''A genialidade filosófica de Deleuze é inventar um novo vitalismo,

262

Gilles De!euze & Félix Guattari

Dosse

buscar as condições não de possibilidade, mas 62 de realidade entre expressão e construção" • Entra em jogo mais uma vez no plano de suas concepções diferentes do desejo a apropriação pessoal de Nietzsche, que Deleuze retém sobretudo para a questão do desejo em A Vontade de Potência- enquanto que o que mais interessa aFoucault é a questão da verdade emA

Genealogia da Moral. À ancoragem nietzschiana do desejo em Deleuze é preciso acrescentar a potência de ser espinosiana. Ele introduz a potência de ser

em uma ontologia. Em sua aula sobre Foucault, em janeiro de 1986, Deleuze volta à concepção foucaultiana do desejo/prazer, apresentando sua recusa da noção de desejo e seu apego à ideia do corpo e de seus prazeres como a expressão de uma sexualidade sem sexo com que ele termina sua obra A Vontade de Saber. Essa vontade de substituir uma concepção "molar", centrada no sexo, por uma abordagem "molecular" de prazeres multifOrmes encontra sua fonte de inspiração, segundo Deleuze, em Proust, quando este define três universos em Sodoma e Camorra: o dos grandes conjuntos de amores heterogêneos, um segundo em que o mesmo é remetido ao mesmo, o homem ao homem, a mulher à mulher. Proust inclui um 6 terceiro nível "transversal e não mais vertical" :~ em que todo homem tem uma componente fe~ mini na e toda mulher uma componente mas~ culina, mas que não se comunicam entre elas, daí a necessidade imperiosa de ter os quatro termos e agenciamentos moleculares. Pulveri~ zando o tema da culpabilidade, Proust "chega 64 até a falar de prazeres locais" •

A Verdade Com o lançamento de A Vontade de Saber, um novo diferencial opõe Foucault e Deleuze, o da reativação do tema da verdade. Como lembra jacques Donzelot, "Deleuze me chamou a atenção sobre isso muitas vezes: 'Jacques, o que é que você acha disso? Michel está completamente louco. 04.que é ~ss~ coisa ultrapassada da

verdade? Ele nos reconduz a essa coisa ultrapas~ sada, a veridicção! Ahhh! Não é possível!"65• Na carta que envia a Foucault, Deleuze manifesta explicitamente sua preocupação com o ressurgimento dessa temática em seu amigo: "O peri~ go é: será que Michel retrocede a um análogo do 'sujeito constituinte', e por que ele tem necessidade de ressuscitar a verdade, mesmo que faça 66 dela um novo conceito?" • Para Foucault, não se trata de retroceder à tradicional oposição frontal entre o verdadeiro e o falso. Falando da concepção do verdadeiro em Heidegger e em Wittgenstein com Paul Veyne, certa noite, Foucault acrescenta "textualmente (pois eu anotei sua frase) que a questão é: de onde vem que a ver-· dade é tão pouco verdadeira?"". Se ele pretende exumar um conceito adormecido na tradição, é "para fazê~ lo atuar em outro cenário, ainda que 68 ao preço de se voltar contra si mesmo" • Contudo, Deleuze expressa na carta de 1977 sua perplexidade quanto aos meios desse retorno. Partindo da ideia de que os d.ispositivos de poder assim como os dos contrapoderes são portadores de verdade, Foucault subordina a questão da verdade à do poder. Coloca-se "o problema do papel do intelectual em Michel, e sua maneira de reintroduzir a categoria de verdade, pois, ao renová~ la completamente e ao subordiná~ la ao poder, ele encontrará nessa renovação uma matéria retornável 69 contra o poder. Mas isso, eu não vejo como" • Tentando compreender o uso foucaultiano do verdadeiro em sua aula do ano letivo de 1985 e 1986, Deleuze percebe uma disjunção que está se operando em Foucault entre o domínio do ver e o do dizer, entre o visível e o enunciado. É a partir dessa tensão paradoxal que se joga o jogo do verdadeiro, pois falar não é ver. As duas posições são acordadas à verdade entre os dois amigos filósofos. Foucault acaba por encontrar no desígnio de verdade a função mesma da filosofia: "Não vejo muitas outras definições da 70 palavra 'filosofia' a não ser essa" • Inversamente, para Deleuze, não é a verdade que determina a importância de uma afirmação ou de um conceito, "ao contrário, sua importância e sua 71 novidade é que determinam sua 'verdade"' •

Em muitos níveis, há uma contradança entre Foucault e Deleuze, principalmente nos autores-recursos comuns dos quais fazem usos diferentes e às vezes inconciliáveis. Assim, De~ Jeuze, ao abandonar os retratos da história da filosofia, em Lógica do Sentido, inspirou-se for~ temente no estoicismo. Por sua vez, Foucault se apropriou das teses esioicas em todas as suas últimas publicações. Ele já havia retomado por sua conta, alusivamente, desde 1970, em A Ordem do Discurso, o horizonte estoico de Lógica do Sentido, quando afirmou ser preciso conferir uma "materialidade" própria aos enunciados, que seria da ordem de uma materialidade incorporaL Deleuze e Foucault têm um adversá~ rio comum, o platonismo, e se apropriam dos mesmos aspectos do estoicismo, tais como o primado do acontecimento: "Foucault e Deleuze assinalam também que essa arte estoica do acontecimento visa a uma inserção de si na imanência do mundo e do tempo'm. Contudo, o uso que fazem dos estoicos é diferente: o de Deleuze se inscreve mais em uma história filosóflca da filosofia, que vê neles um deslocamento de toda a reflexão na qual "a filosofia 7 se confunde com a ontologià' :~. Deleuze busca mais do lado dos primeiros estoicos, enquanto Foucault privilegia os estoicos da época da Roma imperial, Epicteto ou Marco Aurélio, que têm reputação de moralistas. Contudo, sua relação comum com o pen~ sarnento grego é mediada, tanto para um como para o outro, pela obra de Nietzsche, para quem o filósofo, a partir dessa idade grega, é aquele que afirma a vida: ''A vontade de potência em Nietzsche é afirmar a vida, e não 74 mais julgar a vida como o Desejo~soberano" . O interesse de Foucault pelos gregos em O Uso dos Prazeres também deriva de Nietzsche, mas avança em proposições muito pessoais. Foucault pergunta quem pode ser esse homem livre escolhido para ser o pastor da comunidade civil na cidade grega da Antiguidade. "Somente aquele que sabe governar a si mesmo está apto 75 a governar os outros" . De1euze d'ISCerne ai' a tese central de Foucault, em ruptura com seus trabalhos anteriores: esse governo de si é desli-

263

gado do saber, mas também do poder, para se 76 tornar uma verdadeira "arte de si" . Essa força de subjetivação não é primeira, pois permanece dependente da singularidade do "diagrama grego". A proximidade entre Focault e Deleuze, ainda grande a propósito da referência estoica, é bem menor quando se compara a filosotla fundamentalmente afirmativa, resolutamente espinosiana de Deleuze, em um procedimento metafísico assumido a partir se Espinosa, e a de Foucault, fundamentalmente kantiana, que integra a negatividade às vezes até o ceticismo: "Para mim, seus livros são grandes livros céticos. A verdade de Foucault está ali, em um ceticismo moderno articulado a uma forma de engajamento inteiramente misteriosdm. Isso não significa que Espinosa não tenha contado para Foucault: "Daniel Defert me disse que Foucault tinha utilizado Espinosa, que estava na cabeceira de seu leito de morte. Ele o estava 78 relendo'' • Contudo, tanto quanto Deleuze segue Espinosa com a ideia de uma temporalidade, de uma eternidade própria ao conatus que escapa ao chronos, Foucault prefere praticar descontinuidades, rupturas radicais no tecido temporal. Nesse plano, Deleuze está do lado de uma ontologia da potência que não para de crescer, enquanto Foucault está mais próximo do criticismo kantiano. Em seu curso de 1985 e 1986, Deleuze diz, aliás: "Há um neokantismo 79 particular em Foucault" • Por ocasião do que designa como seu ''pequeno passeio" em Kant, Deleuze presta uma vibrante homenagem à 80 luz kantiana que considera extraordinária • Foucault encontra essa abertura kantiana"", segundo Deleuze, por sua maneira de distinguir o ver e o falar, cuja diferença de natureza não permite reduzir uma climensão à outra. Se não se pode cobrir essa distância, como se pode ter conhecimento dela? Deleuze vê nessa questão kantiana uma analogia entre a situação de Kant, dividido entre suas duas faculdades, o entendimento e a intuição, e a de Foucault, às "N. de R. T.: No origínal. béance, significa abertura/fenda.

264

Frcmcoís Dosse

voltas com essas duas dimensões heterogêneas que são o visível e o enunciável. Em linhas de frente invertidas, visto que sempre se opôs um vitalismo deleuziano consi-

derado como perigoso a um neokantismo mais respeitoso dos limites em Foucault, Deleuze, em várias ocasiões, qualifica de perigosas as posições foucaultianas. Ele se explica: "Perigoso, sim, porque há uma violência em Foucault. Ele tinha uma extrema violência controlada, dominada, tornada coragem. Ele tremia de violência em certas manifestações. Ele percebia o intoleráveL. E seu estilo, pelo menos até os úl-

timos livros, que conquistaram uma espécie de serenidade, é como um chicote, uma correia,

com suas torções e distensões" 31 • Deleuze compartilha o ponto de vista de Paul Veyne sobre um Foucault guerreiro, pronto a transformar a história do pensamento em máquina de guerra, em uma abordagem polemológica fascinada pela morte. Deleuze, por sua vez, está mais do lado da astúcia, da inteligência grega, daMetis, do rir, do.humor devastador.

jogos de espelhos O jogo de espelhos entre essas duas obras que caminham em sua singularidade própria, mas sobre temáticas geralmente muito próximas, é percebido pela filósofajudith Revel em vários momentos de suas discussões como uma relação ao mesmo tempo muito forte e sempre enviesada. Um e outro têm uma relação de proximidade com a história, mas em posturas diferentes, com um Foucault mais kantiano, que se coloca a questão das condições de possibilidade, enquanto Deleuze se situa no plano das condições de realidade. Foucault fica exultante ao descobrir os fundamentos de uma política da diferença em Deleuze em 1968-1969, que ressoa como sua busca da figura do outro, da alteridade, que deu lugar à sua História da Loucura (1961). Foucault se sente, portanto, reforçado em sua posições, e Deleuze lhe permite definir uma via de saída de um estrutural\fmo que _:e negará mais tarde,

Gílles Deleuze & Félix Guattarí

mas que em 1967 ainda defendia com o maior ardor. A experiência da esquizofrenia apaixo~ na a ambos como via de saída da codiilcação binária estrutural: "Ela permitia aparentemente narrativas que eram ao mesmo tempo ma~ nuais de decomposição de código"82• Em suas aulas no início dos anos de 1970, Foucault desenvolve a ideia de uma medicalização da sociedade, de uma psiquiatrização do social, de um devir institucional de práticas de poder que é preciso contra-arrestar por práticas anti-institucionais de saber. Essa posição não está distante das teses de Deleuze e Guattari enunciadas em 1972, em O Anti-Édipo, e principalmente das práticas da psicoterapia institucional de La Borde"'. Contudo, o que parece uma perspectiva comum não é, pois o ho~ rizonte de interrogação de Foucault está concentrado então na questão do poder, enquanto o interesse de Deleuze e Guattari consiste nos processos de subjetivação: os grupos-sujeitos, os sujeitos coletivos de enunciação ... "Depois Foucault se volta à subjetivação, o que é o caso desde Vigiar e Punir, e então se diz que eles vão se cruzar, mas isso não acontece"8' 1• Judith Revel, que estudou de perto os ecos do pensamento de um no outro atesta os efeitos da ruptura do final dos anos 1970, quando Foucault se engaja no terreno da ética: "Quando se observam as ocorrências a partir de 1977 e 1978, não há mais referências de um ao outro. Há um verdadeiro silêncid's:'. Ao contrário, no plano do uso frequente da metáfora espacial, Foucault e Deleuze, assim como a maioria dos pensadores dessa geração, estão muito próximos, o que corresponde neles a uma vontade ele sair do hegelianismo e de uma filosofia subjacente da história por meio da espacialidade e suas lógicas próprias: a do plano de imanência para Deleuze~Guattari, com seus estratos e seus espaços lisos, seus buracos, suas linhas de fuga, que permitem uma cartografia dos fenômenos. Quanto a Foucault, ele define a história geral que apregoa como o possível desdobra86 mento de um "espaço de dispersão" • Como assinala Deleuze, sob os termos genealogia e arqueologia em Foucault, está em questão

também uma geologia, com seus lençóis de arrastamento, seus deslizamentos de terreno, suas descontinuidades. Aliás, Deleuze deflne Foucault como um "novo cartógrafo". Sem dúvida, o modo de posicionamento de Foucault e de Deleuze em face ela história é muito diferente, como Deleuze afirma sem ambiguidade em !988: "Sempre gostamos (Félix e eu) de uma 87 história universal, que ele detestava" .

Dois filósofos do acontecimento Foucault e Deleuze se libertaram de uma fllosofia da história no sentido de uma teleologia hegeliano-marxista para dar lugar a uma fllosofia do acontecimento. Ambos, de maneira di~ ferenciada quanto à sua relação com a história, com os historiadores e com o arquivo estarão sempre esquadrinhando o surgimento do novo, as fulgurâncias que subvertem os hábitos e as ideias prontas. É nas fases de crise, de mutação que se podem perceber esses momentos de cristalização tão essenciais para a compreensão daquilo que está em jogo na história social assim como na história do pensamento. É, aliás, o que afirma o próprio Deleuze ao abordar o pensamento de Foucault a partir de seus deslocamentos, de suas passagens, que atestam momentos de crise cuja travessia é esclarecedora das tensões produzidas por um pensamento entre a virtualidade e a atualidade. Em sua atenção ao novo, Foucault é herdeiro de toda filiação da escola epistemológica francesa, a de Bachelard, de Canguilhem e da genealogia nietzschiana. A partir dessa tradição, ele apregoa uma abordagem descontinuísta do tempo, privilegiando os cortes radicais que chama temporariamente de episteme (termo que abandona depois de As Palavras e as Coisas"). A partir de Nietzsche, Foucault substitui a busca de origens temporais e de causalidades por um positivismo crítico, procurando demarcar as descontinuidades graças a um esquema das potencialidades materiais. Em segundo lugar, Foucault pretende demarcar a singularidade dos acontecimentos fora de

265

sua finalidade declarada. Finalmente, a acontecimentalidade permite minorar a figura do sujeito consciente e sua ilusão de dominar o tempo: ''A história efetiva faz ressurgir o acontecimento naquilo que ele pode ter de único e 89 de agir" • Foucault opõe às três modalidades platônicas da história seu próprio uso, elesconstrutor, dos mitos históricos. Ele substitui a história-reconhecimento pelo uso paródico da realidade; a história-continuidade por um uso destruidor da identidade, e a história-conhecimento por um uso destruidor de verdades. Nessa perspectiva, a história-síntese total é, segundo ele, um embuste, pois "uma possível tarefa implica que se questione tudo o que pertence ao tempo, tudo o que é formado nele ... de maneira que apareça o rasgo sem cronologia e 90 sem história de onde provém o tempo'' • Deleuze e Guattari, de sua parte, também enfatizam em sua concepção do envenemenciar o caráter de surgimento de uma novidade, de começo, de origem em si mesmo. Em Diálogos, Deleuze fala de "fulguração de superfície"". Em O que é ajilosofla?, Deleuze e Guattari se apoiam em Péguy ( Clio) para explicar que há duas maneiras de ver o acontecimento. Registrar sua efetuação na história, seu condicionamento, e remontar ao acontecimento, instalar-se nele e passar por todas as componentes e singularidades. Mil Platôs enuncia em 1980 a importância das escansões evenemenciais, pois cada um dos treze platôs é situado sob o signo de uma data inaugural: ''A História não se desembaraçará das datas. Talvez seja a economia, ou a análise financeira, que melhor mostre a presença e a instantaneidade desses 92 atos decisórios em um processo de conjunto" • Essa ideia do acontecimento não tem nada de presentismo. Ao contrário, a filosofia como criação de conceitos deve estar em ruptura com sua época. Ela é fundamentalmente inatual e intempestiva segundo a concepção nietzschiana compartilhada com Foucault: 'Age contra o tempo, portanto sobre o tempo, e, esperemos, em benefício de um tempo por vir'm. Deleuze distingue história e devir. A criação do novo é sempre inatual e constitui um devir.

266

F'"'n''''' Dosse

Este último, sem dúvida, tem necessidade da

de validade do saber. Trata-se de "restituir ao discurso seu caráter de acontecimento"96 segundo relações de descontinuidade: "O~ discursos devem ser tratados como práticas e jamais se reduz a ele. descontínuas'm. A esse respeito, Foucault se Foi assim com o acontecimento vivido com apresenta como um positivista feliz, e isso intensidade por Deleuze, Guattari e Foucault, desde A Arqueologia do Saber, em 1969, com a Maio de 68, que não pode ser compreendido preocupação de prospectar o que é o suporte apenas no eixo dos fatos históricos do afunda~ enunciativo para ele mesmo, em sua positivimenta, pois isso significaria omitir o essencial, dade e em sua efetividade. seu aspecto criativo. O acontecimento é um deDeleuze expressa esse excesso em relação safio à concepção tradicional da história. É pro· ao dizer do acontecimento assinalando seu priamente sua crise. Deleuze e Guattari defencaráter singular. Ele se apoia na demonstração dem tal posição na medida em que, para eles, sobre Duns Scot e retoma dele o conceito de o que acontece não poderia ser explicado pela hecceidade pelo qual define a individualidade história. O tempo põe em crise a causalidade evenemencial. Disso resultam duas caracteríssob a qual reina um acaso irredutível que a torticas essenciais. De um lado, o acontecimento na ontologicamente secundária, sem negá-la. se define pela coexistência simultânea de duas Em Lógica do Sentido, Deleuze recusa dois mo· dimensões heterogêneas em um tempo em que dos de abordagem do acontecimento: o esseno futuro e o passado não param de coincidir, de cialista, platônico, que subsume a pluralidade se sobrepor um ao outro, simultaneamente dos acontecimentos em um acontecimento distintos e indiscerníveis, Em segundo lugar, o puro, mas também a abordagem circunstanciaacontecimento é o que ocorre. e sua dimensão lista, segundo a qual o acontecimento se reduz emergente ainda não está separada do passa~ ao acidente atestado. Ele responde a isso dando do. É uma intensidade que vem e que se dis· ênfase à pluralidade dos acontecimentos como tingue simplesmente de outras intensidades. O "jatos de singularidades"94, e também ao fato de acontecimento ideal, definido como tal por De· que o acontecimento enquanto tal abre para leuze em Lógica do Sentido, é portanto uma sinum questionamento: "O acontecimento por si gularidade ou um conjunto de singularidades. mesmo é problemático e problematizante"95 • Para pensar o acontecimento, Deleuze e Em A Dobra, Deleuze responde à pergunta de Guattari consideram que este deve ser deWhitehead: "O que é um acontecimento?". Se· clinado em dois modos temporais distintos. gundo ele, o acontecimento se manifesta como Primeiro, há sua efetuação em um estado de uma vibração em harmonias infinitas, séries coisas, em um presente. O acontecimento está extensivas, o surgimento do novo, ao mesmo ligado então a um tempo particular chamatempo público e privado, potencial e atual, mar· do de Chronos e pelo qual fixa as coisas e as cado por intensidades. pessoas segundo um certa medida. Ao mesmo É possível, nessas condições, pensar o tempo, o acontecimento não se reduz à sua acontecimento e confiná-lo em seu dizer? O efetuação, e por isso a necessidade de consiacontecimento excede sua discursividade. derar uma segunda dimensão temporal para Foucault, depois de A Arqueologia do Saber, ele, que Deleuze e Guattari qualificam de Aiôn, muda sua orientação para um programa geuma eternidade paradoxal pela qual alguma nealógico que supervaloriza o nível discursivo coisa de incorporai, de inefetuável, transborda com A Ordem do Discurso, sua aula inaugural e se abre para o tempo indefinido do aconteci· no College de France. Ele desenvolve o progra· menta, "uma linha flutuante que não conhece ma de uma problematização da vida, do crime, a velocidade e ao mesmo tempo não deixa de da loucura por rí;{eio do e.~ame das condições divisar o que ocorre em um já-lá e em um ainhistória, de estados de coisas, para não perma~ necer totalmente indeterminado, e, ao mesmo tempo, escapa dela. O devir irrompe no tempo

Gilles Deleuze & Félix Guattari

da-não-lá, um tarde-demais e um cedo-demais simultâneos, alguma coisa que ao mesmo tem98 po vai se passar e que acaba de se passar" • Essa ênfase no acontecimento remete em Deleuze e Guattari à esfCra do agir, segundo os ensinamentos da filosofia prática de Espi99 nosa, mas também dos estoicos - um caminho estoico que, em um elã vitalista, tende a ser digno do que ocorre, a se apoiar e valorizar todo clarão que possa revelar o que ocorre: um acontecimento, uma velocidade, um devir. Um Eventum Tantum pode ser imperceptível e, no entanto, mudar tudo: "Fazer um acontecimento, por menor que seja, a coisa mais delicada do mundo, o contrário de fazer um drama, ou de fazer uma história. Amar os que são assim: quando entram em um lugar, não são pessoas, caracteres ou sujeitos, é uma variação atmosférica, uma mudança de cor, uma molécula imperceptível, uma população discreta, uma bruma ou uma névoa. Tudo mudou, na verdade. Os grandes acontecimentos, eles também, não são feitos de outro modo: a batalha, a re· volução, a vida, a morte ... As verdadeiras Enti100 dades são acontecimentos" •

Deleuze, leitor de Foucault Ao longo de todo seu percurso, Deleuze es· teve sempre muito atento à obra de Foucault e o resenhou regularmente. Em particular, fez dois estudos, em 1970 e em 1975: um sobre A Arqueologia do Saber e o outro a propósito de Vigiar e Punir101 • Sobretudo, consagra todo seu curso de 1985 e 1986 a Foucault e no verão pu· blica seu Foucault. O fato de se consagrar à obra de Foucault imediatamente após seu falecimento atesta a força da ligação e o difícil trabalho de luto empreendido por Deleuze, que perde ali mais que um amigo. Quando lhe perguntam por que um livro sobre Foucault, ele responde de forma muito clara: "Por necessidade para mim, por admiração por ele, por emoção de sua mor·ct a"102. A maneira . de . te, d essa ob ra mterromp1 Deleuze fazer o luto do desaparecimento de

267

Foucault foi mostrar a lógica própria de seu pensamento, procurando a coerência deste através das crises, dos sobressaltos, dos deslocamentos incessantes que ele atravessa. Seguindo as lições de Martial Guéroult, Deleuze defende a ideia de que não se pode extrair a parte de uma obra de seu conjunto. É preciso recuperar tudo e restituir sua lógica, seu gesto: "A lógica de um pensamento é como um vento que sopra às nossas costas, uma série de lufadas e de sacudidelas. Imaginava-se estar no porto e se vê lançado em mar aberto, para usar uma frase de Leibniz. É eminentemente 103 o caso de Foucault" • Deleuze refaz, portanto, todo o percurso da obra de Foucault e encontra nela simultaneamente uma profunda unidade e deslocamentos importantes. Toda a obra dele, segundo Deleuze, é articulada com base na distinção de natureza entre o ver e o falar, entre o visível e o enunciáveL Nesse aspecto, é fundamentalmente dualista e desdo· bra essas duas dimensões irredutíveis uma à outra: "Para ele o primado dos enunciados não impedirá jamais a irredutibilidade histórica do 104 visível, ao contrário~ • Entretanto, Deleuze demarca evoluções notórias em Foucault. Até a publicação de A Arqueologia do saber, em 1969, o que domina a obra deste é a questão do saber. Depois, com Vigiar e Punir e A Vontade do Saber, Foucault se lança em uma nova dimensão, a do poder. Deleuze se indaga sobre o que o levou a passar de um registro ao outro e sugere que o problema de Foucault é o do duplo, e "o enunciado é o du· 05 pio de qualquer coisa idêntica a ele"' • O saber sendo a integração de relações de forças, ele se serve de uma dupla partição, a das relações de forças constitutivas do poder que se somam às relações de formas que constituem o saber. As singularidades próprias emanam de uma rela· ção endógena do saber com o poder, Contudo, essa relação em espelho entre sa· ber e poder vai dar em uma apor.ia. Para restabelecer uma dinâmica, é necessário que intervenha um terceiro eixo, que Deleuze considera como já-presente. mas em modo menor, e que ocupa o último Foucault, o de suas duas últi·

268

François Dosse

mas obras, com o estudo dos modos de subjetivação, que se julgou abusivamente como o retorno do sujeito. Essa dimensão da subjetivação "estava presente em Foucault, mas não

por ela mesma, entremeada no saber e no po106

- maiOr . que F·oucau lt se co loca d er" . A questao

então é saber como o poder e o saber tentam reconquistar esse terceiro eixo, o da subjetivação, para se reapropriar dele no interior de sua própria lógica. Assim, reencontra-se uma dinâ-

mica, pois ''quanto mais o poder se apodera da subjetivação, mais se formam novos modos de 107 subjetivação" • Será que se pode dizer que Deleuze, do mesmo modo que procedeu quase sistematicamente com outros filósofos da tradição, lhe fez um filho pelas costas com seu Foucault, justapondo-o às suas próprias posições? Essa é de algum modo a opinião de Potte-Bonneville, que vê na obra de Deleuze a melhor porta da entrada na obra foucaultiana, um belo convite para ler e para esclarecer, mas, ao mesmo tempo; Uma operação "de encobrimento, de ocultação de alguns aspectos do pensamento de Foucault. Assim, a questão da história desaparece completamente, o que é bem estranho para falar de Foucault"'os. Quando o especialista da obra de Foucault, Frédéric Gros, publica um estudo consagrado à imagem que Deleuze retém de Foucault, vê 09 nela uma "ficção metaffsica'>\ • Ele não reconhece ali nem seu Foucault nem seu latim e lembra que compreender Foucault não significa para Deleuze proceder a um comentário esclarecido sobre sua obra: "Compreender um autor, para Deleuze, é de certa maneira fimdá-lo antes de tudo ... é se lançar mais à me0 tafísica inerente a uma obra''ll • Isso seria também poder sonhá-lo, e sonhá-lo como duplo do que ele foi, como metafísico. Frédéric Gros reconhece, sem dúvida, a extraordinária coerência que traz à luz a leitura feita por Deleuze da obra de Foucault, que estaria ligada ao fato de que, "lendo Foucault, Deleuze encontra as aquisições de sua leitura de Bergson"ll 1. Contudo, depois de redigir esse artigo em 1995, Frédéric Gros pcltle avali<:!:F o acerto de certos

Gilles De!euze & Félix Guattari

eixos da leitura deleuziana: "O livro de Deleuze é um verdadeiro livro filosófico. Tudo o que ele enuncia sobre a relação entre os enunciados e as visibilidades mostra que compreendeu alguma coisa de muito forte, e que eu reencontrei nos últimos cursos de Foucault no College de France, mas que Deleuze não pode fazê-lo, a saber, a ideia de que ele constrói uma ética direta procurando estabelecer uma correspondência entre a trama visível dos gestos e dos logo i; dos enunciados. É surpreendente ver como Deleuze, que não teve acesso a esses cursos no College de France, pode ter feito uma leitura 1 12 tão correta" • Como escreve Robert Maggiori quando do lançamento do Foucault de Deleuze, este último "não explica Foucault, que se explica muito bem ele próprio em seus livros, nem o comenta, pois já está assoberbado de comentários.lvlineiro respeitoso da rocha que resiste a ele, e hábil em se desfazer de todas as escórias, Deleuze escava até encontrai· na produção de Foucault o que é mais produtivo e aumenta as possibilidades de pensamento"w.

O desaparecimento No decorrer de 1984, começa a circular em Paris o rumor de que Foucault está muito doente: de quê? Não se sabe, mas alguns têm conhecimento de sua hospitalização. Deleuze se preocupa com o estado de saúde do amigo com quem não tem mais contato desde o final dos anos de 1970: "Quinze dias antes da morte de Foucault, Deleuze me ligou muito preocupado para perguntar se eu tinha notícias dele, dizendo: 'Você sabe o que está acontecendo? O que ele tem?'. Eu não sabia de nada, a não ser que ele estava hospitalizado. E Deleuze acrescenta: 'Mas talvez não seja nada, e Foucault saia do hospital e nos procure para dizer que está tudo bem"' 11 '~. Quanto a Foucault, segundo Didier Éribon, um de seus desejos mais intensos, ao saber que estava condenado, seria se reconciliar com Deleuze. Contudo, eles não se viram mais. O fato de Daniel Defert ter pedido a Deleuze para tomar a palavra nas obsé-

quias de Foucault atesta essa vontade de reaproximação para além da separação da morte. Deleuze, que detestava os colóquios, abre uma exceção para o amigo Foucault e participa do encontro internacional organizado em janeiro ele 1988 em sua homenagem, intitulando 0 sua intervenção de "O que é o dispositivo?" s. Em um curso que consagra a ele entre 1985 e 1986, Deleuze evoca a morte de Foucault a propósito da valorização do "On"'', do "Ele", de sua crítica de toda personologia. Em L'Espace Littéraire, Blanchot desdobrava o "Se morre" como acontecimento, concebendo que a morte só pode vir de fora. Reencontra-se esse tema do "Se morre" reinterpretado por Foucault que "morreu como pensou a morte»116 . "f'·oucau l t nos dizia uma coisa que se refere diretamente a ele"w, a morte não é o acontecimento irredutível, último, esse momento limite tal como o concebem os moralistas e os médicos. Portanto, nunca se acaba de morrer: "Foucault vive a morte à maneira de Bichat. Ele morreu assim. Ele morreu tomando seu lugar no 'Se morre' e em forma de 'mortes parciais"'us. Para além de suas diferenças e desacordos, para além do desaparecimento de ambos, seria absurdo falar de um "foucault-deleuzianismo"? Já se viu que essa expressão não poderia ser cristalizada, pois ela encobriria a singularidade de cada um, suprimiria os objetos de discórdia por uma falsa aparência em nome de um ecumenismo estéril. Assim, é preferível falar, à maneira da relação entre Deleuze e Guattari, de "síntese disjuntiva". Além da herança filosófica, sua proximidade se mede pelo uso que fazem da literatura. O trabalho clínico sobre a literatura é comum a ambos e os distingue da corporação dos filósofos ,., N. de R. T.: O texto original refere-se à crítica de Foucault a todo tipo de ''personalização., e, como taL à valorização dos pronomes pessoais indefinidos on e il que designam uma pessoa ou um grupo de pessoas de maneira indeterminada (nós, a gente, alguém, se). Por exemplo, On est tous égaux devant la Loi, traduz-se [Nós] Somos todos iguais perante a Lei: On meurt, traduz-se Morre-se ou não/ se morre; Il se f~lit qu'il y a de la peur à cet endroit. traduz-se [Acontece que] existe medo nesse lugar, etc ..

269

de ofício, que frequentemente limita seu corpus ao saber fllosófico acadêmico. Sabe-se como o grito de Artaud em Lógica do Sentido desconstrói as engenhosas conexões de superfície de Lewis Carroll, e Deleuze reencontra Artaud no cerne mesmo das indagações de Foucault: "O impensado como duplo do pensamento, tudo enfim de As Palavras e as Coisas é o tema do duplo, próprio a Foucault, que ele reinterpreta e que conheceu com Artaud, Heidegger, Blanchot"u9. Foucault vê ali uma experiência próxima à de Artaud, que atingiu no pensamento alguma coisa que se furta ao pensamento e que 120 se torna no escritor um "impoder vital" • Esse tema da duplicidade aparece em um dos primeiros livros de Foucault, que trata de !21 um outro escritor, Raymond Roussel . Sobre a distorção entre o ver e o dizer, Foucault também encontra inspiração na literatura. A relação com a língua, com a vontade de praticá-la em seus !imites, que é comum a Foucault e a Deleuze, pode ser expressada por esta frase de 122 Roussel: "Fender as coisas, fender as palavras" • Uma das intuições de Roussel é construir dois enunciados a partir de uma diferença infinitesimal, mas que modifique fundamentalmente 123 seu sentido global • Para Foucault, assim como para Deleuze, a literatura não tem valor ilustrativo ou exótico, mas um valor de experimentação, de ato de criação, e como a filosofia consiste, segundo Deleuze, em inventar conceitos, a literatura a acompanha nessa criação. Dessa relação Foucault-Deleuze, pode-se extrair bem mais que uma base comum: um devir do foucaultismo trazido por Deleuze. Com seu texto "Post-scriptum sobre as sociedades de controle", publicado em 1990, Deleu124 ze prolonga o gesto de Foucault • Como Foucault, Deleuze é interpelado pela atualidade e pela necessidade de pensar o que muda. Ele parte do historicismo proposto por Foucault. Deleuze distinguiu um modelo de sociedade fundado na soberania no qual o poder se revela por sua capacidade de matar. Depois, na época moderna, nos séculos XVIII-XIX, impôs-se um modelo disciplinar determinando os limites da atividade humana segundo o esquema de

Gilles Deleuze & Félix Guattari

270

um "grande confinamento", que levou a uma generalização dos universos fechados com sua disciplina alcançando cada partícula do corpo social. Sobre o modelo do panóptico, multiplicaram-se as construções de presídios, casernas, escolas, fábricas, etc. O poder não tem mais a função de matar, mas de disciplinar os corpos, de fazê-los viver, de otimizar suas potencialidades e de deixá-los morrer.

transformaçôes que quebram as velhas rigidezes disciplinares para dar lugar aos chips, aos telefones celulares, que permitem ter um controle permanente sobre cada um em um espaço aberto onde não se distingue mais a interioridade e a exterioridade, o que conta "é que estamos no começo de alguma coisa" 129, Novas formas de subjetivação e de resistência ao controle devem seguir vias inéditas.

Foucault começara a perceber a emergência de um novo modelo social girando em torno do biopoder e de uma biopolítica das populações, um pouco defasada em relação às lógicas disciplinares. Deleuze aprofunda essas intuições e discerne em 1990 o advento de um novo tipo de sociedade: o das sociedades de controle. Elas teriam se instalado depois da Segunda Guerra Mundial, que termina com a crise generalizada de todos os meios de confina125

mento: "Trata-se apenas de gerir sua agonia" • Deleuze é premonitório nessa análise que desenvolve já em seu curso sobre Foucault De f8.to, Déleuze percebe nessa gestão da vida em multiplicidades abertas e indefinidas, o que só veio a se confirmar, uma gestão bem diferente, a do controle, e uma transformação do sujeito de direito. Este não se limita mais à pessoa como na era humanista, pois implica todas as outras populações além das humanas - os cereais como os rebanhos de vacas, os carneiros, as aves de criação e qualquer outro ser vivo. O sujeito de direito se torna, na sociedade de 126 controle, o vivo: "O vivo no homem" • Não há mais necessidade de confinamento, "pois se sabe que a tal hora os encontrará todos na estrada. Os cálculos de probabilidades são bem melhores que uma prisão"m. Desde os anos de 1980, Deleuze constata a fragmentação de todo o tecido de confinamento, e particularmente o da fábrica, que não para de se decompor sob os golpes do trabalho temporário, do trabalho no domicílio ou ainda dos arranjos do tempo de trabalho. Na escola, vive-se em um mundo menos disciplinar, mas os controles ali se multiplicam: "Os indivíduos se tornaram 'dividuais', e as massas, amostras, 128 dados, mercadosf'bancos::.' • Em todas essas

Notas !. Michel FOUCAULT, "Theatrum philosophicum", Critique, n. 282. nov. 1970; reproduzido em Dits et écrits, tomo Il, Gallimard, París, 1994, p. 76.

2. 3. 4. 5.

Fanny Deleuze, entrevista com o autor. Paul Veyne, entrevista com o autor.

!bid. Gilles Deleuze, «Fendre les choses, fendre les mots", entrevista com Robert Maggiori, Libération, 23 de setembro de 1986; reproduzido

em PP, p. 117. 6. Ibid., p. 117. 7. Gilles Deleuze, A. 8. Gilles Deleuze, palavras reportadas por Didier ÉRIBON, J\1ichel!:'àucault, Flammarion, Paris,

1989, p. 83. 9. Ibid., p. 162. 10. Ibid., p. 163. 11. Ver capítulo 3, ''A tríade vitalista''.

12. Michel FOUCAULT. "La prose d)\ctéori', NRF, n. 135, março de 1964, p. 444-459; reproduzido em Dits et écrits, tomo I, Gallimard, Paris, 1994,

p. 326-337; Gilles DELEUZE, "Klossowski ou !e corps-langages", Critique, n. 214, março de 1965; reproduzido em LS, p. 325-350. 13. Philippe SABOT, "Foucault, Deleuze et les simulacres", Concepts, 8, Sils Maria, 2004, p. 6.

14. Gilles DELEUZE, LS, p. 329. 15. Ibid., p. 348. 16. Gilles Deleuze, aula de 28 de janeiro de 1986. universidade de Paris-VIU, arquivos sonoros,

BNF. 17. Michel FOUCAULT, "Theatrum philosophicum", art. cit., Dits et écrits, tomo II, op. cit., p. 98. 18. François ZOURAB!CHVJLI, Deleuze. Une phi· losophie de l'événement, PUF, Paris, 1994.

19. Michel FOUCAULT, "Theatrum philosophicum'', Dits et écrits, op. cit., p. 85. 20. Gilles Deleuze, aula de 20 de maio de 1986, universidade de Paris-VUI, arquivos sonoros,

BNF. Philippe ART!ERES, Laurent QUÉRO, Mi21. chelle ZANCAR!NI-FOURNEL. Le Groupe d'information sur les prisions, Archives d'une Lutte 1970-72, IMEC, 2005, p. 28. 22. Daniel DEFERT, ''L'émergence d'um nouveau front: les prisions", em Le Groupe d'iriforrnation sur les prisions, op. cit., p. 317. Essa reunião com cerca de vinte pessoas reúne em torno de Foucault, entre outros, Daniel Defert, Casamayor, ]ean-Marie Domenach, Louis Joinet, Frédéric Pottecher, Christian Revon, Jean-Jacques de Felice, Christine Martineau, Danielle RanciE:re, Jacques Donzelot.

23. Ibid.,p. 318. 24. Particularmente pelo caso de Bruay-en-Artois em 1972. Foi encontrado nas proximidades ela vila operária o corpo de uma adolescente de 16 anos, filha de um mineiro, Brigitte Dewevre, nua e mutilada. O juiz Pascal logo tratou de acusar a personalidade local, o notário Pierre Leroy. O diário maoísta La Cause du peuple considera que apenas um porco burguês poderia ter cometido um tal crime, e instala-se um tribunal popular em nome da necessária justiça popular. 25. Gilles Deleuze, aula de 28 de janeiro de 1986, universidade de Paris-VIII, arquivos sonoros,

BNF. 26. Jean-Pierre Faye, entrevista com o autor. 27. Jacques Donzelot, entrevista com o autor. 28. Jacques DONZELOT, La police des familles, Minuit, Paris, 1977.

29. Jacques Donzelot, entrevista com o autor. 30. rvlichel Foucault, palavras reportadas por Jacques Donzelot, entrevista com o autor. 31. Deleuze escreveu então um belo postado com o título ''A ascensão do social" (Gilles DELEUZE, 'L'ascension du social", posfacio a]acques

DONZELOT, La police des familles, op. cit., p. 213-220). 32. Alain JAUBERT, Michel Foucault, une journée particuliere, Aedelsa ed., Lyon, 2004, p. 15. 33. Gilles DELEUZE, Le Nouvel Observateur, 31 de janeiro de 1972.

271

34. Jbid.; reproduzido em ID, p. 286. 35. Claude J\1AURIAC, Mauriac et Fils, Grasset, Paris, 1986, p. 388. 36. Gilles Deleuze, arquivos da universidade Paris-Vlii-Vincennes, BDIC.

37. Informações Didier ÉRIBON, Michel Foucault, op. cit., p. 254. 38. Gilles DELEUZE, "Les intellectuels et le pauvoir", L'Arc, n. 49,4 de março de 1972; reproduzido em ID, p. 289.

39. 40. 41. 42. 43.

Ibid., p. 289.

Judith Revel, entrevista com o autor. Ver o capítulo "O CERFI em suas obras". Gérard Soulier, entrevista com o autor. Posteriormente se saberá, mas bem mais tarde, que essa personalidade democrática, advogado de seu estado, era, na verdade, um agente da Stasi. 44. Claude MAURIAC, Mauriac et Fils, op. cit., p.

294. 45. Gilles Deleuze, carta de 7 de fevereiro de 1990 a ]ames Mille1~ em ]ames MILLER, Michel Foucault, Plon, Paris, 1993, p. 346. 46. Ver capítulo "1977: o ano de todos os combates".

47. ]ames MILLER, Michel Foucault, op. cit., p. 345. 48. Gilles DELEUZE, "Grancleur de Yasser Arafat", Revue d'études palestiniennes, n. 10, inverno 1984, p. 41-43 (texto de setembro de 1983); reproduzido em RF, p. 221-225. 49. Michel FOUCAULT, Le Monde, 17-18 de ou tubro de 1976, reproduzido em Dits et écrits, op. cit., tomo Il, p. 96. 50. Jacques Donzelot, entrevista com o autor. 51. Ibid. 52. Ver capítulo "Fogo no psicanalismo''. 53. Jacques Donzelot, entrevista com o autor. 54. rvlichel FOUCAULT, La Volonté de savoir, Gallimard, Paris, 1976.

55. Gilles DELEUZE, "Désir et plaisir", Le Magazine littéraire, outubro de 1994, n. 325; reproduzido em RF, p. 112-122. 56. Ibid., RF. p. 118-119. 57. Ibid., p. 119. 58. ]ames MILLER, Michel Foucault, op. cit., p. 345. 59. David RABOUIN, "Entre Deleuze et Foucault: penser !e désir", Critique, junho-julho de 2000, n. 637-638, p. 475-490.

272

Gilles Deleuze & Félix Cuattari

60. Ibid., p. 485. 61. Michel Foucault, entrevista com Gérard Raulet, "Structuralisme et post-structuralisrne'', Telos, v. XVI, n. 55, primavera de 1983, p. 195-211;

reproduzido em Dits et écrits, op.cit., tomo IV, p. 445. 62. Éric Alliez, entrevista com o autor. 63. Gilles Deleuze, aula de 21 de janeiro de 1986, universidade de Paris-VIU, arquivos sonoros,

BNF. 64. !bid. 65. jacques Donzelot, entrevista com o autor. 66. Gilles DELEUZE. "Désir et plaisir", Le Magazine littéraire, art. cit., p. 59; reproduzido em RF,p.ll3. 67. Paul VEYNE, "Le dernier Foucault et sa morale", Critique, n. 471-472, agosto-setembro de 1986, nota I, p. 940. 68. Hervé COUCHOT, "Philosophie et verité:

quelques remarques sur un chassé-croisé", Concepts, 8, Sils Maria ed., 2004, p. 29. 69. Gilles DELEUZE, "Désir et plaisir'', art. cit., p. 62; reproduzido em RF, p. 118. 70. .i\iich€1 Foucault, introdução ao curso do ano letivo de 1978 no Collége de France, 11 de janeiro de 1978, gravação pública, citado por Hervé COUCHOT, UPhilosophie et verité: quelques remarques sur un chassé-croisé", art. cit., p. 39, nota 1. 71. Hervé COUCHOT, ibid., p. 43. 72. Thomas BÉNATOUIL, UDeux usages du stolcisme: Deleuze et Foucault", em Frédéric GROS e Carlos LÉVY, Foucault et la philosophie antique, Kimé, Paris, 2003, p. 31. 73. Gilles DELEUZE, LS, p. 210. 74. Gilles Deleuze, aula sobre Foucault, universidade de Paris-VIII, 6 de maio de 1986, arquivos sonoros, BNF. 75. !bid.

76. Michel FOUCAULT, L'Usage d.es plaisirs, Gallímard, Paris, 1984, p. 90. 77. Mathieu Potte-Bonneville, entrevista com o autor. 78. Judith Revel, entrevista com o autor. 79. Gilles Deleuze, aula sobre Foucault, universidade de Paris-VIII, arquivos sonoros, BNF. 80. "Kant foi o primeiro a definir o ser humano em função dE1 uma abertura que o atravessa" ·'i),·

(ibid.). Kant realiza o acontecimento da filosofia moderna diferenciando duas dimensões heterogêneas e ressaltando a disjunção irredutível entre a receptividade e a espontaneidade, entre a intuição e o conceito, e erigindo a finitude em princípio constituinte: "Com Kant, aparece alguma coisa que não podia aparecer antes" (ibid.).

81. Gilles DELEUZE, "Un portrait de Foucault", entrevista com C!aire Pernet, 1986; reproduzido em PP, p. 140. 82. judith REVEL, "Foucault lecteur de Deleuze: De J'écart à la difference", Critique, n. 591-592, agosto-setembro de 1996, p. 734. 83. Ver o capítulo "La Borde, entre mito e realidade". 84. judith Revel, entrevista com o autor. 85. Ibid. 86. Michel FOUCAULT, Dlrchéologie du savoir, Gallimarcl, Paris, 1969, p. 19. 87. GHles Deleuze, entrevista com Raymond Bel1om e François Ewald, Le Magazine littéraire, setembro de 1988, p. 24. 88. "Ê preciso despedaçar aquilo que permitia o jogo conso!ador dos reconhecimentos. Saber, mesmo na ordem histórica, não significa 'reencontrar' e, menos ainda 'nos reencontrar'. A história será 'efetiva' na medida em que introduza o descontínuo em nosso próprio ser. Ela dividirá nossos sentimentos, dramatizará nossos instintos; multiplicará nosso corpo e o oporá a ele mesmo ... É que o saber não é feito para compreender, é feito para cortar" (Michel FOUCAULT, ''Nietzsche, la généalogie, l'histoire", em 5. BACHELARD (dir.), Hommage à]eanHyppolite, PUF, Paris, 1971; reproduzido emDits et écrits, tomo II, op. cit., p. 147-148). 89. Michel FOUCAULT, "Nietzsche, la généalogie, l'histoire", em S. BACHELARD (dir.),Hommage àjeanHyppolite, op. cit., p.l61. 90. Michel FOUCAULT, Les Mots et les Choses, Gallimard, Paris, 1966, p. 343. 91. Gil!esDELEUZE,D.p.SO. 92. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, MP. p. 103. Essa data de 20 de novembro de 1923 está lígada à inflação galopante após 1918 na Alemanha: "A cortina cai em 20 de novembro de 1923", escrevia o economista]. K. Galbraith (]. K. GALBRAITH, CArgent, Gallimard. Paris, 1976, p. 259).

93. NIETZSCHE, Deuxi?Jme considération intempestive. prefácio.

94. Gilles DELEUZE. LS, p. 68. 95. Ibid., p. 69. 96. Michel FOUCAULT, L'Ordre du discours, Gallimard, Paris, 1971, p. 53. 97. !bid., p. 55. 98. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARJ, MP, p. 320. 99. "Não ser inferior ao acontecimento, tornar-se o filho de seus próprios acontecimentos" (Gilles DELEUZE, D, p. 80). 100. Ibid., p. 81. 101. Gilles DELEUZE, "Um nouvel archiviste", Critique, n. 274, março 1970; "Écrivain non: un nouveau cartographe", Critique, n. 343, dezembro de 1975: artigos reproduzidos e revistos em Foucault, Minuit, Paris, 1986, p. 11-30 para o primeiro artigo, p. 31-51 para o segundo (doravante citado F). 102. Gilles Deleuze, entrevista com Didier Éribon, Le Nouvel Observateur, 23 de agosto de 1986; reproduzido em PP, p. 129. 103. !bid., p. !29. 104. Gilles DELEUZE, F, p. 57. 105. Gilles Deleuze, aula sobre Michel Foucault, universidade de ParisMVIII, 17 de dezembro de 1985, arquivos sonoros, BNF. 106. Gilles Deleuze, aula sobre Michel Foucault, universidade de Paris~Vm, 6 de maio de 1986, arquivos sonoros, BNF. 107. Ibid. 108. Mathieu Potte-Bonneville, entrevista com o autor. 109. Frédéric GROS, "Le Foucault de Deleuze: une fi.ction métaphysique", revue Philosophie, n. 47, setembro de !995, p. 53-63. 110. fbid., p. 54. 111. !bid., p. 63.

273

112. Frédéric Gros, entrevista com o autor. 1.13. Robert MAGGIORI, "Gilles Deleuze-Michel Foucault: une amitíé philosophique", Libération, 2 de setembro de 1986. 114. François Regnau!t, entrevista com o autor. 115. Gilles DELEUZE, 'Qu'est-ce qu'un dispositif?", em Michel Foucault philosophe, Seuil, Paris, !989, p. 185-195. 116. Gilles Deleuze, aula sobre Michel Foucault, universidade de Paris-VIII, 26 de novembro de 1985, arquivos sonoros, BNF.

117. !bid.

118. Ibid. 119. Gilles Deleuze, aula sobre Foucault, universidade de Paris-VIII, 22 de abril de 1986, arquivos sonoros, BNF. 120. Ibid. 121. Michel FOUCAULT, Raymond Roussel. Gallimard, Paris, 1963. 122. Raymond ROUSSEL, Cornment )'ai écrit certains de mes livres, UGE, 10/18, 1977. 123. Exemplo: "Les lettres du blanc sur les bandes du vieux billard"; "Les lettres du blanc sur les bandes du vieux pillard". [N. de T. Que poderiam ser traduzidas como: UAs letras de giz nas bandas do velho bilhar"; e ''As cartas do branco sobre os bandos do velho pilhado r".] 124. Gilles DELEUZE, "Post-scriptum sur les societés de contrôle", I:Autre]ournal, n.l, maio de 1.990; reproduzido em PP, p. 240-247. 125. !bid, p. 241 126. Gilles Deleuze, aula sobre Foucault, universidade de Paris-VIII, 8 de abril de 1986, arquivos sonoros, BNF. 127. Jbid. 128. Gilles DELEUZE, "Post-scriptum sur les societés ele contrôle", PP, p. 244. 129. Ibid.., p. 246.

Gilles Deleuze & Félix Guattari

18 Uma alternativa à psiquiatria?

La Borde foi confundida frequentemente com a antipsiquiatria, apresentado~se a clínica de Loir-et-Cher como a expressão francesa dessa 'C6rrente. Basta ouvir seu diretor, Jean Oury, para se convencer de que um fosso separa a psicoterapia institucional e as teses da antipsiquiatria. Em La Borde, pratica-se a psiquiatria e se assume isso: "Ele [Félix] ficou fascinado, mais ou menos na mesma época, pelos anti psiquiatras. É daí que vem a nuvem que se formou, na cabeça mal informada das pessoas, entre La Borde e a antipsiquiatria. Isso sempre me deixa com raiva»>. Oury considera que os antipsiquiatras são "estetas muito perigosos. Eu gostava bastante do Basaglia por seu caráter impulsivo, mas não por sua política. Os doentes saíam de manhã, voltavam à noite, e o hospital ficava fechado. Os doentes desapareceram fisicamente. Talvez seja isso que a antipsiquiatria concerta, suprimem-se os doenM tes, eles desaparecem"2•

Antipsiquiatria A antipsiquiatria surgiu na Itália com Franco Basaglia, que, a partir de 1961, decidiu abandonar ·"f princípio do confinamento

dos doentes mentais, abrir todos os serviços de seu hospital e organizar assembleias gerais abertas a todos. Após um primeiro momento de espanto, Basaglia foi seguido pelos psiquiatras de seu hospital, que contabilizou mais de 50 reuniões por semana. Foram registrados progressos importantes com doentes que vegetavam no hospital há 15 ou 20 anos. Alguns inclusive puderam voltar para casa graças à melhora de estado. Após essa primeira etapa, Basaglia decidiu estudar experiências psiquiátricas em outras partes da Europa. Em 1965, foi a La Borde em companhia de outro representante da antipsiquiatria italiana, Giovanni Jervis. Basaglia mostrou-se crítico diante das práticas da psicoterapia institucional, que julgou excessivamente reformistas, integradoras e conformistas. Seu objetivo declarado na época é destruir a instituição. O movimento que Basaglia lança mais tarde, "Psichiatria Democratica', defende, aliás, o fechamento puro e simples dos hospitais psiquiátricos. No clima de radicalização política da Itália dos anos de 1960, a corrente da antipsiquiatria é um ator não desprezível. Guattari não segue Basaglia até suas posições extremistas. Em 1970, ele se pergunta se não se trata de uma "fuga adiante", de urna tentativa de "caráter

desesperadó
275

uma mistura de dogmatismo neobehaviorista, de familialismo e do puritanismo mais tradicional. Mary Barnes, enfermeira, empreende a "viagem" da esquizofrenia e faz uma regressão até o limite da morte. O familialismo em que ela se fecha a conduz a negar a realidade social à sua volta. Qual terá sido a contribuição da antipsiquiatria? Levar ao paroxismo esse desvio familialista e, ao invés de enquadrá-lo em uma relação entre o paciente e seu psiquiatra, dar-lhe um possível desdobramento coletivo e teatral que terá exacerbado todos os efeitos. Segundo Guattari, a direção da cura não foi no bom sentido. Mary Barnes não necessitava de um a mais-de-família, e sim de um a mais-de-sociedade. Na Alemanha, a anti psiquiatria também conquista adeptos do lado do SPK (Coletivo Socialista de Pacientes), nascido na policlínica da universidade de Heidelberg, em torno do doutor Hubber. Constituem-se grupos terapêuticos reunindo cerca de 40 doentes com seu médico, e eles denunciam a instituição psiquiátrica como um instrumento de opressão. A direção da universidade decide acabar com esse movimento contestatório. Em julho de !971, usando como pretexto as desordens causadas pela circulação de doentes na cidade e em seu entorno, assim como algumas trocas de tiros, 300 policiais armados de metralhadoras leves ocupam as instalações do SPK, enquanto helicópteros vigiam a cidades e se procede a buscas. Médicos e doentes são presos, e o SPK desaparece. O doutor Hubber e sua mulher são mantidos na prisão durante vários anos, e seus advogados, imediatamente dissuadidos, por pressões e intimidações, de assumir sua defesa, que só poderá ser feita por advogados de ofício. É sobretudo a dimensão política do combate do SPK que atrai Guattari, mais do que a def€sa de sua prática psiquiátrica: "Produziu-se alguma coisa de totalmente novo que constitui uma saída da ideologia e a passagem para uma verdadeira luta política. Isso é importante nos militantes do SPK, e não o fato de saber se eles confundem alienação social e

276 alienação individual, ou se seus métodos terapêuticos são discutíveis ... Como no dia 22 de março em Nanterre, o SPK se mobilizou em torno de uma luta real - e a repressão não se 8 enganou!" • Quando do processo, Guattari e Deleuze se deslocaram até Heidelberg. Um aluno de Deleuze em Vincennes, Pierre Blanchaud, encontra-se no saguão da universidade. Vindo para Heidelberg aos 19 anos para fugir a um curso de letras clássicas e viver plenamente o pós-68, ele acredita nesse dia que se trata de uma aparição irreal: "Vejo diante de mim Deleuze e Guattari! Então exclamo: 'Deleuze, o que é que você está fazendo aqui?' Ele me responde: 'O acaso!"'9 • É brincadeira, evidentemente, pois essa estada tem um objetivo militante, tanto mais que Deleuze detesta as viagens ... Na realidade, Deleuze e Guattari vão manifestar sua solidariedade ao SPK juntamente com um grupo de psiquiatras holandeses, italianos e franceses. No mesmo instante, E_ierre Blanchaud os acompanha ao campus, onde um grupo de estudantes de extrema esquerda convoca à mobilização contra a repressão. Pierre Blanchaud confia a Deleuze seus problemas de dinheiro - ele vive de maneira muito precária em Heidelberg: "Ele me disse: 'Eu preciso te deixar algum então?', e me deixou 400 francos, que era muito na época, e deu para eu sobreviver por duas semanas. Ele me dissera: 'Você me pagará quando ficar rico'. Muitos anos mais tarde, quando consegui meu cargo de Lektor" na Alemanha em 1983, escrevi uma carta me propondo a reembolsá-lo, mas ele me respondeu: 'Não, escute, é uma recordação de viagem, eu, que viajo tão pouco' .. :' 10• Se o "momento antipsiquiátricd' faz adeptos da Itália, na Inglaterra e na Alemanha, esse não é nem de longe o caso na França. Essa "exceção'' está relacionada, sem dúvida, aos avanços permitidos no quadro da psiquiatria de setor, à implementação das teses da psicoterapia institucional e às clinicas como La Borde. Há alguns grupos na França que pregam a antipsi* N. de T.: Assistente estrangeiro adjunto a um professor de línguas vivas em um estabelecimentO de ensino.

Gilles Deleuze & Félix Cuattari

quiatria, corno o GIA (Groupe de lnformation Asiles), que pretende reunir os psiquiatrizados e suas famílias contra o aparelho psiquiátrico: ''Para nós, não existe boa psiquiatria, psiquiatria de esquerda, que se oponha a urna psiquiatria burguesa ... O que há são apenas graus na repressão, no isolamento, no embrutecimento, na privatização e na medicalização da loucura"11. Vários outros pequenos grupos surgem na mesma época, como os "Cahiers pour la Folie", "Garde-fous", "Marge", "Tankonalasanté", "Breche", "Le Vouvray", "Psychiatrie en Liberté de Saint-Dizier", "La Gratte", mas todas essas organizações permanecem confinadas na marginalidade. No início dos anos de 1970, Guattari, em visita aos Estados Unidos, conhece Mony Elkaim, psiquiatra de origem marroquina que adquiriu notoriedade internacional por sua prática no campo da teoria familiar fora da instituição. Mony Elkaim organizou luga~ res abertos de reinserção em um dos bairros mais carentes de Nova York, o South Bronx. Ele trabalha particularmente com a United Bronx Parents, associação fundada em 1966 por iniciativa de pais de alunos da comunidade porto-riquenha que foram educados contra as práticas discriminatórias. No mesmo setor, militantes revolucionários decidem ocupar um andar do Lincoln Hospital em Nova York, e empreendem o que cbamam de Linco/n Detox Program, um programa de desintoxicação para drogados que recebem doses de metadona ao mesmo tempo em que participam de seminários de conscientização política. A ideia deles era que as autoridades difundiam intencionalmente a droga a fim de enfraquecer a determinação revolucionária. No início, esses programas causaram a desconflança das insti~ tuições oficiais, que acabaram por aceitá-los e ajudá-los financeiramente. Mony Elkaim, interessado pelas relações entre as questões de saúde mental e os problemas sociais, trabalha portanto nesse quadro nos Estados Unidos quando conhece Guattari: "Encontrei-o na casa de amigos que moravam em Manhattan, ele estava com Arlette na épo-

ca, e o contato foi extremamente caloroso. De imediato, convidei-o para ficar no meu apartamento no Bronx State Hospital e me insta12 lei em outro lugar" • Guattari encontra sobre a mesa do apartamento um artigo de Mony Elkafm, ''Antipsiquiatria, para uma revisão epistemológica", em que critica a visão caricatura! de uma corrente que atribui mecanicamente a causa da doença mental à sociedade, à família: "Félix me diz: 'Você sabe, nossos pensamentos estão muito próximos, apesar de virmos de horizontes muito diferentes'. Dito isto, foi a uma livraria francesa de Manhattan 13 comprar O Anti-Édipo para me dar" • O ponto de concordância entre eles, que está na origem de uma aventura internacional, é que ambos consideram a dimensão política fundamental em sua abordagem das questões psiquiátricas. Mony Elkaim trabalha de fato para tirar a psiquiatria familiar elo campo estrito do familialismo, conectando-a ao ambiente social. É o caso particularmente em Nova York na época em que mantém ligação com os grupos revolucionários, os Black Panthers e os Young Lords. Elkaim dirige uma equipe composta por profissionais, psiquiatras, psicólogos e trabalhadores sociais, mas também por pessoas recrutadas ao acaso, em encontros na rua, e formadas na prática graças aos créditos federais. Muito seduzido por esse novo amigo e por seu trabalho pioneiro, Guattari retorna muitas vezes a Nova York: eles se veem, trocam suas experiências mútuas e, ao mesmo tempo, frequentam as boates de jazz de Manhattan.

A "Rede Alternativa à Psiquiatria" Antes de seu retorno à Europa, em 1974-1975, Mony Elkaim organiza um grande colóquio no Bronx sobre o tema "Formar os trabalhadores da saúde mental nos guetos urbanos", com a intenção de agrupar diferentes escolas psiquiátricas. Além das delegações de Nova York, da Filadélfia, de Chicago e de algumas outras cidades americanas de vanguarda, Guattari, Robert Castel, Giovanni]ervis parti-

277

cipam desse colóquio, cujo sucesso foi ainda maior porque Mony Elkaim conseguiu créditos para garantir entrada e alimentação gratuitas, embora muita gente do Bronx tenha comparecido apenas para comer em um ambiente particularmente festivo. Mony Elkaim pratica a psiquiatria na Bélgica em um bairro pobre de Bruxelas, quando em 1975 decide, com Guattari, juntar as experiências alternativas, reunir todas as escolas psiquiátricas dissidentes em uma rede internacional. Elkafm ocupa então uma posição importante no campo da teoria familiar. Quanto a Guattari, é muito receptivo às teses sistêmicas do amigo, que têm o mérito de conceber a terapia em termos de grupos, e não de indivíduos dessocializados. Assim, em janeiro, em Bruxelas, decidem juntos lançar uma "Rede Alternativa à Psiquiatria". Por esse engajamento, Guattari pretende ir mais longe que as teses da psiquiatria institucional: "Com essa Rede Internacional, é como uma página virada. Não se pretende mais 'ir para'! Procura-se que as coi14 sas partam dos próprios interessados" • O modelo nesse campo é um pouco a experiência do South Bronx. Para Guattari e Mony Elkaim, trata-se também de romper, com essa rede, o isolamento em que vivem alguns inovadores, sujeitos à repressão ou ao confOrmismo. É o que ocorre particularmente no berço da antipsiquiatria no norte da Itália, onde a experiência lançada em 1969 e levada a Reggio Emília por Giovanni jervis está a ponto de ser abandonada, pois enfrenta muitos obstáculos políticos. Quanto ao SPK, acabamos de ver como ele foi removido pela força em 1971. Nessa época, na Inglaterra, David Cooper desistiu, e Ronald Laing está fascinado pela Índia. Contudo, a esperança renasce na Espanha do fim do franquismo. Em setembro de 1975, uma reunião de internos dos hospitais psiquiátriCos da Espanha em Santiago de Compostela convida a Rede Alternativa à Psiquiatria a participar de seus trabalhos e ajudá-los a enfrentar a repressão. Na origem desse encontro, está a decisão do governo espanbol de dispensar 11 internos, os dois médicos chefes e o diretor

278

Fra1ncr>is Dosse

administrativo considerados culpados de ter aderido a reformas aventureiras. Em 1973, eles haviam iniciado um processo de renovação das estruturas do hospital psiquiátrico Consco de Santiago de Compostela, que permanecera uma verdadeira penitenciária psiquiátrica, "doentes acorrentados, espancados por qual~ quer motivo, amontoados na palhà' 15• Em 1975, Mony Elkaim consegue reunir em torno dele Guattari, Castel e Franco Basaglia, que compareceu apesar de seus desentendimentos como o primeiro, graças à intervenção do segundo. A denominação inicial, "Alternativa ao setor" logo foi considerada limitada demais, e adotou-se a proposição de Basaglia de "Rede Alternativa à Psiquiatria" 16• Guattari se envolveu muito nessa rede bastante ativa na defesa de Franco Basaglia e dos antipsiquiatras alemães: "Félix era um militante incrível, sempre prestes a me ajudar a redigir um texto, cartas. Ele era de uma disponibilidade extraordinária na época. Vinha regularmente a Bruxelas participar de nossas atividades 17:' A Rede organiza numerosos encontros in~ ternacionais após a reunião constitutiva de Bruxelas, em Paris (março de 1976), Trieste (setembro de 1977), Cuernavaca no México (setembro de 1978), San Francisco (setembro de 1980). O objetivo dessas reuniões não era construir uma nova ortodoxia, mas estar à escuta do que se faz em outros lugares. Em suas intervenções dentro da Rede, Guattari se atém absolutamente a essa atitude isenta de proselitismo. Nesse campo, a ciência não pode se erigir como uma autoridade unificante, pois as práticas eficientes só podem emergir de uma micropolítica cuja natureza sin~ guiar não se limita mais à sua escala de análise sobre pequenos grupos, mas ao fato de que ela implica um diálogo permanente e um processo contínuo de elaboração com a escala macrossocial. Não de trata, portanto, de constituir grupos isolados, separados do resto da sociedade em nome de uma lógica alternativa. Os encontros internacionais aliam a seriedade das intervenções e o aspecto engraçado de uma rede não institucional animada por personagens poü\jo habituados a certas restri-

Gilles Deleuze & Félix Guattari

ções. É o caso particularmente de David Cooper, que desempenhou um papel importante no itinerário intelectual de Mony Elkaim com seu livro Psiquiatria e Antípsiquiatria 18• Mony Elkaim também aprecia bastante Franco Basaglia, do qual é muito próximo: "Franco era um homem de rara delicadeza. Passando por Bruxelas, ocorria de bater na minha porta en~ tre dois aviões para me trazer uma flor. Quando eu dormia na casa dele em Veneza ou em Trieste, às vezes me trazia o caf€ da manhã na cama e me contava seus sonhos da noite"l9• Um dos últimos grandes encontros internacionais da Rede teve lugar na Califórnia, em San Francisco, um mês após a morte de Basaglia, em setembro de 1980. Por iniciativa desse encontro, o grupo "Pacientes contra o assalto psiquiátrico" acolhe em domicílio seus convidados. Mony Elkaim e Guattari ficam no mesmo quarto, povoado de baratas. "Para mim, é impossível dormir com baratas! Fiquei empuleirado numa 20 cadeira a noite toda!" . Logo que amanhece, Mony Elka:im sai em busca de um hotel, apesar dos protestos de Guattari, que teme constranger seus anfitriões. Quando da seção plenária, no momento em que Elkaim passa a palavra a Guattari, a delegação italiana se levanta para deixar a sala em sinal de protesto. Elkaim se irrita e lhes pede uma explicação. Seus representantes esclarecem, então, que não se pode aceitar alguém que aplica eletrochoques nos doentes, fazendo referência ao que se pratica efetivamente em La Borde. Elka'im responde que Félix não é médico, e isso não passa de fantasia. Então, eles se desculpam e voltam ao lugar.

Acusações de pedofilia Depois de 1980, as atividades da Rede diminuem. Acontecem apenas mais alguns enw contros, como o de 1983, na Iugoslávia. Nessa ocasião, é Claude Sigala quem apresenta sua experiência de cuidar de crianças em dificuldade na França, fora dos quadros instituídos. Ele acaba de sofrer pessoalmente os anátemas da repressão, o que lhe valeu uma pena de prisão

a partir do final do ano de 1982. Depois de ter obtido o diploma de educador especializado e de ter feito curso de psicologia aplicada, Claude Sigala trabalhou cerca de dez anos em instituição. Insatisfeito com sua prática, hostil às compartimentações e arredio às relações hierárquicas, ele se encontra com Guattari, Fernand Deligny, Roger Gentis, Maud Mannoni, e decide lançar-se em proposições alternativas. No final de 1986, Fernand Deligny e Maud Mannoni lhe encaminham duas crianças, e ele cria uma associação, o Coral, em Aimarges, perto de Nimes, no sul da França. Trata-se de uma comunidade de adultos e de crianças que tem como objetivo acolher em meio aberto crianças com problemas. O princípio é constituir um "lugar de vida" propício à reinserção e ao desabrochar da criança, que poderiam assim escapar ao confinamento psiquiátrico. Essa associação adere naturalmente à Rede Alternativa à Psiw quiatria. Em 1982, Claude Sigala organiza os primeiros estados gerais dos "lugares de vida" em Nimes. O caso ganha amplitude. São implantados vários "lugares de vida" no Sudeste, para acolher crianças psicóticas, autistas ou deficientes. Esses centros, conveniados com a Seguridade Social, inspiram-se um pouco no espírito do trabalho de Fernand Deligny com crianças, mas com uma dimensão mais diretamente política. Nessas comunidades de adultos e de crianças, coloca-se o delicado problema do tipo de relações possíveis e de seus limites. Claude Sigala "tentou promover relações corporais entre os educadores e as crianças como um modo possível de relação'm. Chega-se às fronteiras de um tabu, o da pedofilia. Guattari dissuade Claude Sigala de seguir essa via, que corre o sério risco de comprometer a legitimidade de sua experiência e de levá-la a um impasse. Com essa associação, Claude Sigala atrai alguns educadores que revelam ser pedófilos. Em março de 1982, sua associação é processada com base no testemunho de um menino. Esse menino, encaminhado pelo DDASS'' do Gard ao Co"N. de T.: Direction Départamentale des Affaires Sanitaires et Sociaies.

279

ral, era particularmente perturbado. Ele vivia chamando a atenção por suas fugas e, um dia depois de ter sido acusado de violação de uma menininha de Aigues-Vives e de uma tentativa de atear fogo à vegetação, denuncia o Coral de tê-lo violado. No final do ano, Sigala é preso e processado por ter acobertado essas práticas. Apresenta-se, então, a associação Coral como ligada a uma rede internacional de pedofilia que comercializa fotografias pornográficas. Essa acusação é desconsiderada nos autos do processo, mas o juiz mantém Claude Sigala na prisão: "É urgente que você veja os autos do processo. Meu confinamento não se justifica EM NADA:', escreve ele a Guattari''. Além de seu amigo, Claude Sigala conta com o apoio de Edgar Morin, de Bruno Frappat, do Canard Enchainé, e de alguns outros: "Precisam me tirar do buraco, Félix, por todos os meios: estou ficando Louco, tenho medo de tanta injustiça e de tanta sujeira. Você sabe como eu gosto do Coral e da ação que realizei... Minhas filhas estão completamente perturbadas ... Minha mulher está em pânico: eis o verdadeiro atentaddm. Em um texto a ser enviado a Guattari e escrito na prisão, Claude Sigala esclarece sua posição acerca da pedofilia: "O que me interessa nas minorias sexuais não é a perversão ... Percebi muito rápido que o Coral era um lugar que interessava aos pedófilos, não particularmente por acolher crianças, mas sobretudo por sua estrutura libertária e autogestionária que atribui um lugar preponderante aos menores. Sempre soubemos colocar os limites do respeito do Outro ... Ver na pedofilia o indivíduo que persegue crianças para 'se aproveitar delas' é uma imagem reducionista pouco fundamentada e que só q)fresponde a uma situação que acredito ser extremamente rara. Não sou absolutamente defensor desses perversos. O que me parece mais frequente são pessoas que amam as crianças, dando-lhes a dimensão da liberdade ... A criança tem necessidade de Amor. Amar, é preciso insistir, não é 24 possuir, ao contrário, é deixar o outro feliz .. :' • Ao final, Claude Sigala é inocentado e, ao sair da prisão, prossegue suas atividades no

Gi!!es Oeleuze & Félix Guattari

280

Coral; em maio de 1992, reúne os segundos estados gerais com a participação do psiquiatra Roger Gentis, de Guattari, Maud Mannoni, Edgar Morin, do psicanalista Tony Lainé e do filósofo Cornelius Castoriadis. Nesse meio tempo, publica uma obra prefaciada por Guattari25, do qual se sentia próximo a ponto de lhe propor, em 9 de agosto de 1992, ou seja, vinte dias antes da morte dele, escreverem um livro a dois: "Eu gostaria que nossas ideias, práticas e teorias fossem compreendidas pelo maior número de pessoas. Você sabe que seus livros atingem uma parcela ínfima dos intelectuais e estudantes. Proponho trocarmos uma série de cartas que depois publicaremos em uma coleção de bolso""'.

Gourgas tomada de assalto

:1';0··~····

Outro caso que atinge de perto Guattari, ligado à Rede Alternativa à Psiquiatria, eclode em sua propriedade de Gourgad, no Gard, em 1977. Recorda-se que Guattari havia adquirido em 1967 essa grande fortaleza ao pé de Cévennes, no território da comuna de Monoblet, onde havia instalado temporariamente Fernand Deligny. Essa fortaleza servia ao mesmo tempo de lugar de veraneio para alguns pensionistas de La Borde, para os animadores do CERFI, mas sobretudo de lugar de encontro para todos os componentes do movimento contestatório e para todas as marginalidades. Em 1977, enquanto o amigo de Guattari, Louis Ohrant, militante operário da primeira hora, estava instalado em Gourgas com a mulher e os três filhos e cuidava da gestão do local, a comunidade antipsiquiátrica do povoado de Routier, no Aude, assim como algumas outras comunidades do mesmo tipo estabelecidas no Sudeste comunicam a Louis Ohrant que pretendem se fixar em Gourgas. Assim, uma primeira delegação solicita que ele deixe o local ou, pelo menos, que se limite a um pequeno apartamento. Essa primeira tentativa se depara com uma recusa clara e nítida. Guattari, proprietário do loc\\l, não toma partido, e em

suas "Cartas de longe" apregoa que é preferível o entendimento e um acordo amigáveL Visto que o entendimento cordial é manifestamente irrealizável. a comunidade de Routier, com o apoio dos militantes parisienses do movimento antipsiquiátrico "Marge", desembarca em Gourgas e ali se instala. Não sendo o proprietário, Louis Ohrant não dispõe de nenhum recurso judiciário e é obrigado a ceder o lugar. Apesar de tudo, os novos ocupantes deixam a ele, à sua família e dois ou três amigos um pequeno apartamento de dois cômodos.

A internacionalização da rede A Rede cresce ao longo dos anos 1980 e adquire uma dimensão mais internacional. Em dezembro de 1986, pela terceira vez, a rede latino-americana de alternativa à psiquiatria se reúne em Buenos Aires. Guattari intervém sobre a questão da mudança de paradigma que não afeta somente as práticas sociais do campo ''psi", mas o conjunto dos procedimentos de subjetivação em ligação com as revoluções informática, robótica, telemática e da engenharia genética. Guattari vê ali a passagem de um paradigma técnico-científico "a um paradigma ético-estético, isto é, implicando uma responsabilidade moral, um engajamento micropolítico e cobrando, a propósito de cada caso concreto, uma atitude criativa, que eu reportaria ao tema genérico da ressingularização das práxis'm. O principal efeito social é uma generalização da precariedade, o fim do trabalho garantido que afeta até os funcionários dos países desenvolvidos. Nessa época, a corrente alternativa à psiquiatria perdeu duas de suas grandes figuras com o falecimento de Franco Basaglia e de David Cooper. Entretanto, conseguiu conquistar uma posição forte e dinâmica em Trieste com o sucessor de Basaglia, Franco Rotelli. A Rede tende a se abrir a outras realidades nacionais, difundindo novas experiências realizadas na Grécia, na Iugoslávia, na Espanha e na América Latina. Ela pode oferecer ajuda em termos

de divulgação de informações e de uma maior eficácia nas intervenções. Um dos terrenos de intervenção privilegiados é a Grécia. Em 1987,os psiquiatras de equipe de Trieste, coordenada por Franco Rotelli, intervêm no hospital de Salônica. Guattari aproveita um encontro internacional da antipsiquiatria para visitar esse serviço totalmente renovado com a colaboração deles. Dois anos depois, em 1989, eclode um escândalo na mídia. Em uma das mais belas ilhas do Dodecaneso, a ilha de Leros, subsiste uma penitenciária psiquiátrica onde foram confinados 1.200 doentes: "Um campo de concentração, sem a presença de um pessoal cuidador, sem sequer um psiquiatra. As imagens apresentadas na TV eram pavorosas: corpos nus, rostos descarnados e petrificados no medo e na angústia por trás das grades, e o odor fétido parecia atravessar a tela" 2 ~. Franco Rotelli decide montar uma equipe internacional - italiana, holandesa, irlandesa e alemã- para investigar Leras. Cada grupo é composto de 12 pessoas, e o conjunto é de responsabilidade da Comunidade Econômica Europeia. Guattari viaja de Paris para Atenas em 8 de outubro de 1989. O dossiê de imprensa que lhe foi passado pelo jornalista Éric Favereau no avião é verdadeiramente estarrecedor: doentes em um campo de prisioneiros confinados em gaiolas de ferro, 85% deles amarrados, em camisa-de-força. Relatam-se ali os tratamentos sofridos: espancamentos, jatos de água para "acalmar" e um "saldo de cinco a seis dúzias de mortos por ano. Nenhuma alta há 30 anos!". Do Pireu, Guattari e seus amigos tomam o navio para a ilha de Kos, fazem escala em Kalymnos e desembarcam em Leras em 9 de outubro em um navio privado. Chegando ao hospital de reputação sinistra e esperando o pior, Guattari descobre no fim das contas uma realidade ordinária, sem dúvida escandalosa, mas não mais que qualquer outra, infelizmente banal; "Devo confessar antes de tudo que aqui não é pior que em outros lugares. Inclusive é exatamente como a maioria dos asilos franceses há 25 anos"29• A visita às alas revela claramente o

281

exagero da mídia, que apostou no sensacionalismo: "O fato está ali: não há mais doentes rolando na lama. já houve; ninguém nega; mas não há 30 mais já faz vários meses" • Um dos psiquiatras de Leras, Lucas jannis, foi adepto de Basaglia e espera ansiosamente a vinda da missão italiana para avançar na reabilitação do lugar, que esbarra em muitas resistências. Em compensação, como o advertira Franco Rotelli, um escândalo pode esconder outro: o hospital de Daphni, a 5 Krn de Atenas, onde se encontram 1.900 pessoas, é inegavelmente pior que o de Leras. Guattari empreende então difíceis negociações para poder visitar o local com seus amigos. Quando conseguem, em 11 de outubro, descobrem uma imensa indústria hospitalar com 16 serviços distribuídos em 33 pavilhões. O responsável pelo local, que orienta a visita nesse labirinto, o doutor Savas Tsitouvides, tenta escamotear o pior. Contudo, não conta com a vigilância de uma coordenadora da equipe de Trieste que trabalha há um ano em Atenas. Chiara Strulti "cochichou no nosso ouvido: 'Peçam o pavilhão 1!'. Éric Favereau insiste: 'E o pavilhão 11!' Não tendo mais como re~ cuar, lá fomos nós. Um horror! 95 homens- se o nome pode se aplicar a eles - andam em círculos, urram, alguns completamente nus, outros amarrados ... É um amontoado indescritíveL.. Para reerguer meu moral, Chiara Strulti me diz que em outro pavilhão eles soltaram crianças ' 1"3) que estavam amarradas ha quatro anos. . Fazendo um balanço da Rede Alternativa à Psiquiatria em 1990, Guattari considera que, em face das ambições do início, em 1975, poucos objetivos foram alcançados. A Rede não conseguiu, sobretudo, mudar as políticas nacionais em matéria de psiquiatria, com exceção da Itália. Entretanto, levando-se em conta o período de refluxo dos anos de 1980, desses ''anos de inverno", é excepcional que o grupo ainda esteja de pé. Além disso, a Rede conseguiu constituir um verdadeiro bastião de resistência a certas práticas com as equipes de Trieste, que se irradiam não somente pelo resto da Itália, mas também pelo sul da Europa e pela América Latina.

282

Dosse

Guattari considera, no início dos anos 1990, que é oportuno relançar a Rede Alterna-

tiva à Psiquiatria, pois alguns acontecimentos recentes podem assegurar seu êxito. Em primeiro lugar, a queda do Muro de Berlim em 1989 e, com ele, de todos os regimes comunistas, coloca frontalmente o problema dos usos da psiquiatria pelos regimes totalitários: "Seria desejável que a Rede Alternativa à Psiquiatria, ou o que resta dela, estivesse aqui na posição 32 de interlocutor" • Colocando o problema essencial da formação, ele sugere que o hospital de Trieste, sede do movimento, se torne um "centro internacional de formação" 33• Nesse local se conceberia uma formação profissional e que, sobretudo, poderia ser difundida a não especialistas, como é o caso nas cooperativas de Trieste. Partindo da ideia de que a questão não é formar para reproduzir, Guattari concebe a formação como uma autopoiese, tal como a define Francisco Varela, o que pressupõe que, em cada nível, os protagonistas da saúde mental usufruam de um "máximo de liberdade"34. Não se trata, para Guattari, de reviver o velho mito autogestionário, que corre o risco da autarquia. A verdadeira formação e o relançamento da rede passam pela necessária articulação entre o teórico e a travessia de experiências singulares, inspirando-se nas teorias da auto-organização 35 •

Ci!les Deleuze & Félix Guattari

6. Félix GUATTARI, "Mary Barnes ou l'CEdipe antipsychiatrique", Le Nouvel Observateur, 28 de maio de 1973: reed. em Félix GUATTARI, fu\1, p.125-136. 7. Ibid, p. 127. 8. Félix GUATTAR1, RM. p. 152-153. 9. Pierre Blanchaud, entrevista com o autor. 10. Ibid. 11. GIA, brochura: Psychiatrie, la peur change de camp, em Gardes Fous; reproduzido em Alain JAUBERT, Jean-Claude SALOMON, Nathalie WEIL, lan SEGAL, Cuide de la France des luttes, Stock, Paris, 1974, p. 371. 12. 13. 14. 15.

16.

17. 18. 19. 20. 21. 22.

23. 24. 25. 26.

Notas !. Jean OURY, em Jean OURY, Marie DEPUSSÉ, À quelle heure passe le train ... , Calmann-Lévy,

2003, Paris, p. 223. 2. Jean Oury, entrevista com o autor. 3. Félix GUATTARJ, "Guérilla en psychiatrie", La Quinzaine littéraire, n. 94, maio de 1970; reproduzido em Félix GUATTARI, PT, p. 263. 4. Ronald LAING, La Politique de l'expérience, Stock, Paris, 1969; David CO OPER, Psychiatrie et antipsychiatrie, Seuil, Paris, 1970. 5. Recherches, n. 7, "EnfMce alienée I", setembro de 1967; Recherches, n. 8, "Enfance alienée li", dezembrÇ>,de 1968. '4,

27.

28.

29.

Mony Elkalm, entrevista com Virginie Linhart. Ibid. Félix GUATTARI, RM, p.149. Ibid., p. 155. Ver Mony ELKA'iM (sob adir.), Réseau-Alternative à la psychiatrie. Collectif international, 10/18, Paris, 1977. Mony Elkalm, entrevista com Virginie Linhart. David CO OPER, Psychiatrie et antipsychiatrie, op. cit. Mony Elka'im, entrevista com Virginie Linhart. Ibid. jean-Claude Polack, entrevista com o autor. Claude Sigala, carta a Félix Guattari, 22 de janeiro de 1983, arquivos IMEC. Ibid. Claude Sigala, carta a Félix Guattari, 4 de fevereiro de 1983, arquivos IMEC. Claude SIGALA, Vivre avec, éd. du Coral.l987. Claude Sigala. carta a Félix Guattari, 9 de agosto de 1992, arquivos IMEC. Félix Guattari, "Un changement de paradig~ me", intervenção no Painel "Análise crítica do modelo médico e bases epistemológicas para novas práticas", 3° Encontro da "Rede latino-americana de alternativa à psiquiatrià', Buenos Aires, 17 a 21 de dezembro de 1986. texto datilografado, arquivos IMEC. Félix GUATTARI, 27 de setembro de 1989, Paris, "Le Journal de Léros~, texto datilografado, arquivos IMEC; reproduzido em Chim6res, n. 18, inverno de 1992 e 1993, p. 36. Félix GUATTAR1, 9 de outubro, "Le journal de Léros", ibid., Chimkres, p. 44.

30. Félix GUATTAR1, JO de outubro, "Le Journal de Léros", ibid., Chimáes, p. 46. 31. Félix GUATTARI, 11 de outubro, "Le journal de Léros", ibid., Chim8res, p. 51. 32. Félix Guattari, texto datilografado sobre "La Réseau~Alternative à la psychiatrie", 1990, arquivos IMEC.

283

33. Félix Guattari, carta manuscrita a Maria Grazia e a Franco sobre a Rede Alternativa à Psiquiatria, arquivos IMEC. 34. Ibid. 35. Ver Franciso VARELA, Autonomie et connaissance (!980), Seuil, Paris, !989.

Gilles Deleuze & Félix Guattari

19 Deleuze em Vincennes

No fim de 1969 - o ano decisivo de seu encontro com Guattari -, Deleuze foi nomeado professor titular no departamento de filosofia dã."ri.ova universidade experimental de Vincennes, criada no outono de 1968. Deleuze assume o lugar de Michel Serres, que está deixando o campus. Se Deleuze atravessou Maio de 68 na periferia do movimento, em Lyon, a partir do ano letivo de 1970 e 1971, ele mergulha no centro do "reator".

O caldeirão de Vincennes Esse microcosmo, que não tem nada em comum com a tradição universitária acadêmica, é um verdadeiro caldeirão, situado em pleno bosque de Vincennes, ao lado de um cam~ po de tiro. O ministério da Defesa cedeu por tempo limitado à prefeitura de Paris um terreno para a construção a toque de caixa de uma universidade experimental, aberta já no início do ano letivo de 1968 e 1969. Essa nova universidade, Paris-VIll, espécie de anti-Sorbonne, faz da pluridisciplinaridade sua religião, recu-

sa os cursos tradicionais de preparação para concursos a fim de permitir o florescimento de capacid~des de pesquisa. O curso magis-

trai, com pouquíssimas exceções, é proscrito, e a palavra circula nos grupos que trabalham em pequenas salas de aula. O academicismo

e a tradição sorboniana são barrados nessa universidade que se pretende resolutamente contemporânea e se apropria das tecnologias

mais sofisticadas e dos métodos mais avan~ çados das ciências do homem para assegurar a renovação das antigas humanidades. A disposição interior da faculdade é fantástica, verdadeira joia da coroa de um regime gaullis~ ta desgastado que oferece ali uma vitrine: há tapetes em todos os anfiteatros; cada pequena sala de aula é equipada com uma televisão ligada a uma central; a decoração é assinada por Knoll, e tudo cercado de verde, sem os ruídos da cidade, perturbado apenas pelos tiros longínquos dos treinamentos de recrutas. Os mais contestadores do movimento de Maio de 68 encontram refúgio em Vincennes. Cruza-se ali com muitos maoístas. As forças vivas da contestação de 1968 se reuniram ali, encurraladas nessa universidade confinada, abalada, onde a agitação pode se expandir com toda a liberdade, ao abrigo da sociedade,

Desde os primeiros anos, a faculdade-vitrine cai no esquecimento: o poder deixa Vincennes asfixiada pela penúria, sobrevivendo nos limites da pauperização. Privada de meios materiais suficientes, a escola vivenda um afluxo de inscrições que excede amplamente sua capacidade de acolhimento. As paredes logo são arrebentadas pelos estudantes para descobrir se a polícia não instalou microfones. Contudo, Vincennes será sempre animada pelo desejo de todos os seus membros, ciosamente empenhados em preservar as liberdades conquistadas, a qualidade das trocas, e essa palavra libertada que é uma aquisição fundamental de Maio. Por trás da vitrine, por trás da agitação militante de uns e do hedonismo explícito de outros, há os trabalhos e os dias, o labor subterrâneo que se pretende o mais moderno, o mais científico de todas as faculdades de letras da França. Aliás, a universidade ganha rapidamente projeção internacional. Se Paris não é a França, Vincennes poderia ser o mundo. É o decano da Sorbonne, o anglicista Raymond Las Vergnas, que cuida da instalação dessa nova universidade. Em outubro de 1968, uma comissão de orientação com 20 personalidades se reúne sob sua presidência, entre as quais Roland Barthes, Jacques Derrida, Jean-Pierre Vernant, Georges Canguilhem, Emmanuel Le Roy Ladurie, etc. Doze pessoas são designadas para formar o núcleo de cooptação, que se encarregará da nomeação do conjunto do corpo docente: professores, professores-assistentes e assistentes. O grande projeto é fazer de Vincennes um pequeno MIT~', uma universidade à americana, um modelo de modernidade, um enclave de projeção internacional cuja ambição declarada é a interdisciplinaridade. A notícia mais espetacular é, incontestavelmente, a nomeação para o comando do departamento de filosofia de uma das estrelas da hora: Michel Foucault. Responsável pelo recrutamento, ele convoca de início seu amigo De-

285

leuze, que, muito doente, só vai para Vincennes dois anos mais tarde. já Michel Serres aceita de imediato participar da aventura de Vincennes. No outono de 1968, Foucault dirige-se à ENS de Ulm, por intermédio dos editores da revista Cahiers pour lf!nalyse, com um objetivo preciso: recrutar althussero-lacanianos para Vincennes. É assim que ele consegue convencer a filha de Lacan,Judith Miller, e Alain Badiou,Jacques Ranciere, François Regnault. A tonalidade dominante será estruturalista-maoísta, mas há outras nomeações que permitem não estar exclusivamente sob o comando dos "maos": as de Henri Weber da LCR'''' e Étienne Balibar, filósofo althusseriano e membro do PCF. Para garantir que o conjunto funcione sem atritos, Foucault convoca um homem da conciliação: François Châtelet. Foucault intervém na implantação do centro experimental, além do departamento de filosofia. Ele quer afastar os psicólogos em favor dos psicanalistas, que assim poderiam fundar um departamento só para eles, dispondo de todos os créditos e nomeações. A ideia de um tal departamento, instalado por Foucault, vem de Jacques Derrida. O psicanalista Serge Leclaire é quem assume sua direção, com o aval de Lacan. Embora Lacan não esteja em Vincennes, o lacanismo se introduz em massa ali, e desse modo a psicanálise passa a fazer parte oficialmente de uma universidade literária: todos os professores do departamento de psicanálise são membros da Escola Freudiana de Paris e coordenam nada menos que 16 seminários. O departamento de filosofia anuncia na assembleia geral constitutiva, de li de dezembro de 1968, a linha a ser seguida: sua vocação não é "fabricar cães de guarda'', mas prosseguir a luta política e ideológica. O exercício da filosofia deve obedecer estritamente a esse imperativo. As tarefas do departamento são definidas em março de 1969. Consistem em apreender a natureza exata da "Frente Filosófica'' e em esM tudar a ciência como desafio da luta de elas-

bastante satisfeita por ter circunscrito o mal no meio de uma floresta que constitui seu cor~ dão sanitário.

**N. de T.: Liga Comunista Revolucionária, seção francesa "'N. de R. T: Massachusetts lnstitute ojTechnology.

da fV Internacional.

286

Gilles Deleuze & Félix Guattari

Fre,nnoi< Dosse

ses, contribuindo assim para "a entronização nas massas estudantis da preponderância teórica do marxismo-leninismo'd. O poder quis dar a Maio de 68 e à contes-

tação esse concentrado do "revolucionarismo", mas em janeiro de 1970 começa a se alarmar com a radicalidade demonstrada por esse departamento de fllosofia, tão fora das normas acadêmicas. O ministro da Educação Nacional, Olivier Guichard, denuncia em janeiro de

1970 o caráter "marxista-leninista'' dos ensinamentos filosóficos em Vincennes e a atribuição excessivamente indulgente de notas aos estudantes. Em uma entrevista concedida ao L'Express, ]udith Miller, militante da Esquerda Proletária, declara placidamente: "Certos grupos decidiram por um controle dos conhecimentos por meio de uma prova, outros optaram pela atribuição do diploma a todo estudante que desejava tê-lo'''. O departamento de filosofia se vê privado da habilitação nacional de seus diplomas. Foucault protesta e justifica a orientação muito engajada dos filósofos de

Vincennes. Em 1970, ele deixa Vincennes, não por ter sido relegado a um colégio de secundário, conforme os rumores que circularam no campus, mas porque acaba de ser eleito professor do College de France. Deixa a direção do departamento de filosofia para François Châtelet, único professor titular capaz de fazer navegar esse barco desgovernado. Os efetivos estudantis estão se esvaindo rapidamente ao sol do Oriente Vermelho: 416 inscritos em filosofia no primeiro ano (!968-1969), 247 em 1970-1971 e 215 em 1971-1972, o que representa a perda da metade dos alunos, enquanto a universidade passa ao mesmo tempo de 7.900 estudantes em 1968 para 12.500 em 1971 e 19723.

Lutas internas É nesse contexto de crise aguda, de batalhas intramaoistas pela conquista de uma posição hegemônica, que Deleuze chega entre 1970 e 1971 e COJ\sagra seus primeiros cursos

a temas um pouco em defasagem com o espírito ambiente: "Lógica e desejo'' e "Lógica de Espinosa". O percurso realizado por Deleuze em seus cursos em Paris-VIII é bastante rico, sempre em conexão com suas publicações. Ele começa em 1970-1971 por temas que vão alimentar O Anti-Édipo: os códigos, os fluxos, a codificação e a decodificação, o double bind, a libido e o trabalho, a psicanálise e seus mitos, o corpo sem orgasmos e sem intensidades, a axiomática, o capitalismo, Marx e Freud, a esquizofrenia. Rapidamente entra em sintonia com seu público, sem que para isso tenha de ceder sobre o conteúdo muito tllosófico de seu ensino. Sua notoriedade já adquirida quando chega a Vincennes, seu talento de pedagogo e o rumor que circula em Paris sobre o caráter excepcional de seu curso lhe valem em pouco tempo um público muito numeroso. As pessoas se espremem para ouvi-lo na pequena sala onde dá sua aula de terça-feira, recusando-se terminantemente a falar em um anfiteatro. Tendo chegado a Vincennes no outono de 1970, Deleuze só sairá ao se aposentar, no final de 1986, início de1987. Ele ficou imediatamente seduzido pelo público heterogêneo de Vincennes, que convém magnificamente a um ensino que pretende ultrapassar o corpus clássico da filosofia para se abrir às ciências e às artes. Vincennes lhe parece realizar um salto no tempo: "Quando ia a outra faculdade, tinha a impressão de cair em pleno século XIX"". À diversidade das competências e dos centros de interesse de seus alunos, é preciso acrescentar a particularidade de Vincennes de não exigir o baccalauréate de ter uma grande proporção de estrangeiros. Estes últimos são atraídos pela qualidade das publicações de Deleuze e fascinados por sua personalidade: "Em ondas, há de repente 5 ou 6 australianos que estavam lá não se sabia por quê. Os japoneses eram constantes: 15 ou 20 5 todos os anos, os sul-americanos, os negros .. :' • Quando Deleuze chega ao departamento de filosofia, dirigido por seu grande amigo François Châtelet, o clima ainda está muito agitado. Ao longo de todo mês de junho de 1971, e ainda

no reinício das aulas no outono de 1971, a universidade está semiparalisada por uma greve muito determinada do pessoal, que mobiliza simultaneamente os temporários, os serviços administrativos, técnicos e de reprografia em protesto contra a insuficiência de meios, a precariedade dos status e as remunerações muito baixas. Em 23 de junho de 1971, o departamento de filosofia se declara solidário a essa greve, e entre os signatários destacam-se, ao lado do responsável pelo departamento, Châtelet, os outros nove professores titulares, entre os 6 quais Deleuze • Esse movimento, que motivou a demissão coletiva do conselho da universidade e de seu presidente, Claude Frioux, em ll de junho, só levará a um protocolo de acordo em 9 de novembro de 1971. Em 1974, o departamento de filosofia é sacudido por outro conflito. F. sobretudo o momento da chamada à ordem do departamento vizinho, de psicanálise, estruturalmente ligado aos filósofos, que fOi reorganizado sob a autoridade da direção da Escola Freudiana de Paris, e portanto de Lacan, por intermédio de seu genro. O fato é que, em 1974,Jacques-Alain Mil! e r é designado para a chefia dos professores de psicanálise de Vincennes. O jornalista Roger-Pol Droit divulga o caso no Le Monde, qualificando o apoderamento de expurgo e 7 denunciando o espírito vichista da manobra • Esse apoderamento familiar não agrada a Deleuze e Lyotard, que redigem juntos um panfleto divulgado em dezembro e publicado em 8 Les Temps Modernes Deleuze e Guattari qualificam o caso de "operação stalinista', verdadeira inovação em matéria universitária, pois a tradição proíbe que pessoas privadas intervenham diretamente na universidade para proceder a destituições e nomeações: "Todo terrorismo é acompanhado de lavagem: a lavagem do inconsciente não parece menos terrível e autoritária que a lavagem cerebral"9• Retomado agora por Jacques-Alain Miller, o departamento de psicanálise de Vincennes trabalha em favor de Lacan em uma estrita ortodoxia. Em 1969, Lacan prevenira: "Vocês encontrarão seu mestre". Os estudantes imagina-

287

vam ingenuamente que ele estava pensando em Pompidou, mas se tratava dele próprio. A psicanálise de Vincennes volta a ser, então, uma estrutura de ordem que terá justificado a agitação para restaurar a hierarquia. Com o êxito do "golpe'', Lacan define o que deve ser o ensino em Vincennes, na linha do que, a seu ver, era o desejo de Freud, ou seja, o ensino da linguistica, "linguística - que se sabe ser aqui a maior... Que a linguística tenha como campo o que chamo de la langue para dar suporte ao inconsciente, ela procede de um purismo que assume formas variadas, justamente de 10 ser formal" • À linguística acrescentam-se a lógica, a topologia e a antifilosofia, "como eu in titularia naturalmente a investigação daquilo que o discurso universitário deve à sua su11 posição 'educativa'" • Ao mesmo tempo, o departamento de filosofia é agitado pela questão dos encarregados de curso. Cada um tendo convidado pessoas de suas relações pessoais para se inscreverem como professores, o número de encarregados explode: são bem uns 50, dos quais a maior parte nem se dá ao trabalho de se deslocar para dar aula. A direção do departamento, sob a responsabilidade de Châtelet, decide não renovar o contrato firmado com muitos deles que não honraram seu compromisso. Essa decisão é tomada no mesmo momento em que se procede à normalização no departamento de psicanálise, por iniciativa de Alain Badiou, Jacques Ranciere, François Regnault e Jean Borreil. Ela é interpretada como um início de caça às bruxas por Deleuze e Lyotard, alertados pelos excluídos que denunciam ali um golpe de força bolchevique: "Eles organizaram uma espécie de greve de fome no curso de Deleuze"12. Cria-se um movimento dos encarregados de curso que recebe o apoio de Deleuze e Lyotard. Chatêlet, que inicialmente avalizara essa decisão, acaba voltando atrás. A batalha foi longa, e as feridas, difíceis de cicatrizar. François Regnault, que faz parte dos vencidos, decide ir para o departamento de psicanálise a convite de Jacques-Alain Miller, embora não tenha nada de psicanalista profissional.

288 Quanto a Badiou, Ranciere, Linhart e Weber, constituem no departamento de filosofia um ef€mero "Setor" que pretende uma autonomia relativa em face da direção. A verdadeira consequência dessas querelas intestinas é a autonomia do departamento de filosofia, um recolhimento dos professores em seus centros de interesse particulares. Quanto ao diretor, Châtelet, consulta os colegas pelo telefone antes de cada decisão, para grande alívio de todos: "Havia então dois tipos de AG'': a AG feira, que ocorria no departamento, e as AG decisórias, que ocorriam fora da universidade"13. Entre essas AG. em plena crise dos departamentos de filosofia e de psicanálise, o caso de Gérard Miller é submetido a discussão. O irmão de ]acques-Alain Miller é encarregado de curso do departamento de filosofia: a AG dos filósofos, muito irritada contra esse novo golpe, decide votar a revogação de seu contrato em um ambiente bastante exacerbado: "Nesse momento, após a votação, Deleuze toma a palavra para dizer: Acho que a gente acabou de fazer uma coisa repugnante!', e consegue retomar a AG, que de imediato reconsiderou sua posição e renovou o contrato 14 de Gérard Miller" • Essa atitude atesta a preocupação maior de Deleuze com a equidade, pois não se pode dizer que ele tivesse a menor complacência com a corrente lacano-maoísta. Dizer que durante os anos de 1970 o departamento de filosofia de Vincennes atravessa uma crise de reconhecimento politico não explica tudo. Quando ele não se desmoraliza por discórdias internas, é atingido de frente por um poder que lhe devota um ódio às vezes não dissimulado, como é o caso quando a ministra das Universidades, Alice Saunier-Selté, declara em 16 de junho de 1978, ou seja, quinze dias antes de anunciar a mudança de Paris-VIU para Saint-Denis, em um jantar-debate: "Não se pode fazer o que quiser, deve-se evitar o excesso de indulgência. É um fato que em Vin15 cennes se diplomou um cavalo'' •

'* N. de T.: Assemblei'~;geral.

Gilles Deleuze & Félix Guattari

Para se contrapor a esse ódio e à hemor~ ragia de alunos que afeta o departamento de fHosofia, Châtelet e Deleuze têm a ideia de criar um Instituto Politécnico de Filosofia. Tal denominação, um pouco pomposa, soa estra~ nha nessa faculdade, mas a nova "instituição'' permite conceder diplomas que proporcionem um mínimo de reconhecimento social aos seus titulares. A ideia era exigir que as teses defendidas tratassem de objetos concretos de criação, literária, musical ou cinematográfica. Certamente, o número de teses atestadas por esse Instituto foi limitado: "Sem dúvida, Deleuze havia superestimado as potencialidades criativas dos estudantes. Sua ideia sempre foi favorecer a invenção e o fato de trabalhar fora das regras universitárias. Mas a maioria dos estudantes se sente evidentemente mais à vontade na representação'J! 6• Entretanto, o Instituto, implantado pouco antes da transferên- . cia para Saint-Denis, funcionou com eficácia. Numerosos estudantes, sobretudo estrangeiros, podem assim adquirir um diploma reconhecido pelo mercado de trabalho. Desde que chegou a Vincennes, Deleuze se sente muito próximo de seu velho amigo François Châtelet Eles se veem bastante fora do campus universitário. Contudo, não se pode dizer que seu corpus de autores seja similar: entre a paixão de Châtelet pela história, por Hegel e pela filosofia política, e o panteão filosófico de Deleuze, há um mundo. Mesmo assim, em meados dos anos de 1970, eles resolvem dar um curso conjunto, com jean-François Lyotard e Christian Descamps. Deleuze e Châtelet tinham uma profunda estima um pelo outro: "Sempre ouvi François me dizer que o maior filósofO era Deleuze. Tinha uma grande admiração por ele e achava que era ele quem mais tra17 zia um novo olhar sobre esse século" , recorda sua esposa Noêlle, que se inscreve em Vincennes para preparar sua tese sob a orientação de Deleuze. Ela faz sua defesa diante de uma banca composta por seu orientador, Deleuze, ao lado de Roland Barthes e de Nicos Poulantzas. Noelle Châtelet conheceu seu marido aos 19 anos, em 1962, quando ele tinha 35: "Lem-

bra-me de ter me surpreendido com essa paixão, enquanto eu era uma menina ingênua, muito inocente. François me respondeu, o que me ajudou muito depois: 'Eu amo o que você vai ser'" 18• Châtelet, em sua aula, era como Sócrates, um mestre em maiêutica, apaixonado pela transmissão intelectual. Quinze dias antes de morrer, ligado às suas máquinas respiratórias e sem poder falar mais verdadeiramente, ele ainda desejou, uma última vez, dar aula em casa: "De repente, ouvi sua voz que ganhava vida novamente. Sua última aula foi sobre a felicidade" 19 • François Châtelet viveu um verdadeiro calvário. Atingido pelo câncer devido ao tabagismo, foi submetido a uma traqueostomia e ficou imobilizado em casa nos últimos dois anos, totalmente dependente de máquinas de oxigênio. Em 1962, recebe a seguinte carta de seu amigo Gilles: "Penso em você em Évreux. No fim das contas, você é uma prova viva da existência da alma, era verdadeiramente ela que o segurava quando seu corpo escapava. Impressionou-me que, no pior momento e quando estava sofrendo, você continuava sendo o mesmo, era o único sinal que podia nos dar. Você é um homem maravilhoso, Noelle também, maravilhosa (evidentemente, percebo que meu vocabulário é restrito) ... Os alunos têm um enorme apego por você: falta-lhes alguma coisa, isto é, alguém, você. Que o mal termine rápido! As etapas de sua cura, depois de sua convalescença, depois de sua invenção de um modo de vida que o proteja mais, você saberá fazer tudo isso. Isso começa pela Normandia, mas tem também as características de uma incrível viagem interior. Fanny e eu o abraçamos e o amamos":w. Em 1983, dois anos antes de seu falecimento, François Châtelet está no hospital entre a vida e a morte, e o prognóstico é mais que reservado no serviço de reanimação. Ele recebe, então, a visita de seu amigo Deleuze, que o convence a aceitar a traqueostomia e a continuar vivendo. Sua cumplicidade se situa também ali, no terreno do sofrimento, de um corpo que carece de ar, de graves insuficiências respiratórias: "Quan-

289

do Gilles foi visitar François na reanimação, ele lhe disse: 'Enquanto você puder segurar uma caneta, você ainda pode viver'. É o filósofo pedindo ao outro filósofo para continuar. Isso signiflca que enquanto você ainda pode fazer filosofia, é preciso viver'm. Durante esses dois últimos anos, os Châtelet recebiam praticamente todos os domingos o casal Deleuze: "Gilles falava de filosofla com François. Depois dizia: 'Passemos às coisas sérias', e ele nos ensinou a jogar belote-bridge, porque achava que a belote normal não era para o nosso nível*. Era o único momento em que eu chamava Gilles de 'Gilou'. Ele era meu parceiro, e Fanny, a parceira de François"22 . Deleuze faz uma bela homenagem ao amigo falecido. Quando retoma seu curso, logo após a morte dele, dirige-se aos alunos para lhes dizer que "a homenagem que se deve prestar a ele é reler seus livros para avaliar sua força. Ele realmente construiu uma obra'm. No Libération, Deleuze escreve: "Ele continua sendo uma estrela, não no sentido de star, mas no sentido 24 de constelaçãd' • Nesse artigo, Deleuze traça o percurso de seu amigo desde a época em que ambos eram estudantes. Ele recorda, o que ficou esquecido, sua primeira competência de filósofo lógico quando se falava dele como provável sucessor de Cavaillês e de Lautman, depois do apaixonado pela história sob a ipfluência de um dos introdutores de Hegel na França, Éric Weil. Deleuze expressa sua admiração e emoção com a releitura de seu livro "fitzgeraldiand', Os Anos de Demolição, e saúda também o grande capitão que ele foi para o comando do navio ele Vincennes: "O departamento de filosofia em Paris-VIII se apoiou nele. Foi ele quem verdadeiramente geriu esse departamento difícil, e seu sentido da política passava sempre por um sentido da negociação dura, isto é, de 25 modo nenhum do compromisso" • Pouco depofs, Deleuze fará uma conferência sobre seu amigo na qual celebra uma magnífica filosofia da imanência, da relação potência/ato: "É nisso "'N. de T.: A belote é um jogo de cartas simples e muíto popular.

290

Fra>nccris Dosse

Gi!les Deleuze & Félix Guattari

26

que Châtelet é aristotélico'' • A natureza desse ato em Châtelet é conduzida por seu raciona-

lismo, pois uo ato é a razão":", concebida como processo, e não como simples faculdade. De-

leuze recorda que a primeira publicação de seu 28 amigo foi consagrada a Péricles e que ele tirará de seu herói a lição de que o racionalismo empírico e pluralista se desenvolve na ágora de uma "história do presente"29. À dimensão de política responde em contraponto a criação musical: "O que Châtelet mais gostava era de uma ópera de

Verdi sobre Péricles"30• Com o desaparecimento de Châtelet, o departamento de filosofia é assumido pouco a pouco por seu amigo René Schérer, que ele conheceu muito cedo, no momento da preparação da agregação entre 1946 e 1947. Quando nomeado em 1948 na Argélia, em Oran, Châte· let é acolhido por Schérer, que o precedeu em um ano. Por intermédio de Châtelet, Schérer conhece Deleuze no flm dos anos de 1940 e o reenco!}tra em Paris ao retornar à França em 1954. 'No ·momento da criação de Vincennes, Châtelet exige que Schérer esteja lá. Se até então Schérer se sentia um pouco distante dos trabalhos de Deleuze, a publicação de O Anti-Édipo acelera sua aproximação: "É a partir daí que há de minha parte uma espécie 31 de adoção do pensamento de Deleuze" • Essa aproxima-ção passou também por Guattari, pelo CERFJ, pela participação de Schérer ao lado de Guy Hocquenghem em alguns números da revista Recherches32 Quando a posição de Schérer ficou tragilizada a propósito do caso do Coral em 1982, que terminou com uma impro· núncia em 1985:n, Deleuze se engajou imediatamente em sua defesa. Com o desaparecimento do capitão Châtelet, Deleuze confla o navio a Schérer: "Em um instante me vi com a responsabilidade desse departamento de fllosofia. Eu tinha ido visitar Deleuze, e, não sei por que, ele me constituiu como mais competente que eu era nas funções administrativas das quais ele não gostava muito, fiando-se na minha apreciação"34. No momento da aposentadoria de Deleuze em 1987, sua proximidade é tanta que 35 De!euze confia~1us doutorandos a Schérer •

A outra grande figura fllosóflca de Vincennes, também próxima de Deleuze, é François Lyotard, vindo do grupo Socialismo ou Barbárie. Sua cumplicidade com Deleuze se estabelece em torno de Nietzsche e da década de Cerisy de 1972: "Eles chegaram juntos e partiram juntos, com uma leitura de Nietzsche muito 36 próxima" • Lyotard saúda com entusiasmo a 1 publicação de O Anti·Édipo'" • A publicação por 8 Lyotard de Economia Libidinaf é o momento da maior proximidade: 'Ao mesmo tempo, essa associação era uma espécie de mal-entendido. Lyotard não estava de modo nenhum na esquizoanálise", considera a fllha de Lyotard, a 9 filósofa Corinne Enaudeau:' . Ela acha que seu pai, ao contrário de Deleuze é um verdadeiro político: "Há ali uma divergência efetiva. Lem· bro-me de meu pai chegando em casa enraivecido com Deleuze, que se eximia de tudo e não fazia nada. Ele o imitava: 'Escute, jean-François, você sabe, eu acho que não tenho nada a dizer sobre a decisão a ser tomada .. : Deleuze era a criança, e havia os pais: Châtelet e Lyo~ tard, convocados a cuidar de qualquer questão 40 institucional" • Apesar desses poucos momentos de irrita~ ção, Deleuze e Lyotard eram muito ligados, e suas obras foram recebidas entre 1972 e 1979 como a expressão de uma exigência comum. Chegaram a ser considerados como duas modalidades possíveis e compatíveis de uma mesma filosofla da diferença. Entretanto, com 41 a publicação de A Condição Pós-Moderna , consuma-se a ruptura: Deleuze não suporta ver seu amigo defender posições radicalmente relativistas, e Guattari zomba dessa rejeição de 42 toda metanarrativa: "Não mais vagas; vogas" ~'. Fica claro então que eles estão em duas linhas fllosótlcas muito diferentes, e quando 13 Lyotard publica Le Différend , não menciona mais a obra de Deleuze-Guattari. Lyotard já não segue Deleuze em seu monismo e opõe a ele um procedimento dualista em nome de Kant, de Freud e, sobretudo, da virada linguis· "'N. de R. T.: No origina!. Plus de vagues, des vogues. mais vagas (ondas). [mas sim] vogas (modas)".

~Não

tica da filosofla anglo-saxã, apoiando-se es· sencialmente em Wittgenstein. Resta-lhes em comum seu anti-hegelianismo, sua oposição à dialética reconciliadora que Lyotard aniquila em Le Différend. Apesar dessa degradação de suas relações a partir de 1979, Lyotard pre· serva uma grande estima por Deleuz,e, que expressa sem reserva quando do falecimento deste. Lyotard escreve: "Sempre achei que ele era um dos dois gênios de nossa geração filo~ 44 sófica'' • Sua filha, muito surpresa de ver o pai utilizar esse tipo de superlativo a que estava pouco acostumado, pergunta quem é o outro. Ele responde que se trata de Jacques Derrida e acrescenta: "porque os dois tinham compreen~ 5 dido toda a história da fllosofia aos 19 anos"'f •

Deleuze pedagogo Vincennes é sobretudo o lugar onde se desenvolve entre 1970 e 1987 o talento excepcio· na! de pedagogo de Deleuze. Ele atribui grande importância à aula de terça-f€ira- o essencial de sua semana gira em torno da preparação dela. Um amigo da família, Pierre Chevalier, que viveu entre 1973 e 1983 na Rue de Bizer· te, na casa dos Deleuze, lembra-se do cuidado que ele dedicava à preparação das aulas de Vincennes: "Eu via Deleuze trabalhar desde o domingo de manhã, às vezes desde sábado. A aula era muito amadurecida durante três dias e antes de ministrá-la era como uma pre46 paração física, como antes de uma corrida" • Quando chega então na terça-feira de manhã, ele de fato não mais necessita da pequena ficha com anotações que tem na mão, porque sabe sua aula de cor. Contudo, dá a impressão de um pensamento prestes a se expressar, pura improvisação e elaboração mental em harmonia com seu público. Por esse procedimento, ele chega ao essencial, suscitando um efeito de estupefação e de encantamento dos estudantes, conduzidos por seu rigor intelectual. Uma aula, segundo ele, é "uma espécie de matéria em movimento musical, em que cada grupo apreende o que lhe convém. Não é tudo que

291

convém a qualquer um. Uma aula é emoção. Se não há emoção, não há inteligência, ne47 nhum interesse, não há nada'' . Claude Jaeglé restitui magnificamente a polifonia, os diversos registros de voz que 48 atravessam o corpo do professor Deleuze • O silêncio de sua plateia heterogênea revela a força de efeito de sua vocalização e dramaturgia. Ele conduz seu público aos cumes que frequenta e, para se assegurar de que está sendo acompanhado, pergunta regularmente: "O que isso quer dizer?": "Os segundos durante os quais Deleuze capta um conceito no ápice de um desenvolvimento racional provocam um suspense de reflexão em todo o auditório, e é no cerne dessa apneia subjetiva que se exerce 19 a transmissão do pensamento" .jaeglé identifica nele várias figuras e, entre elas, a do gaiato que não se interessa verdadeiramente pela fllosofla: "O gaiato produz na voz de Deleuze 50 um timbre nasalado, vivo, malicioso'' • Um dia, Deleuze se surpreende ao encontrar a porta de sua sala de aula aberta e explica aos alunos que a administração elaborou todo um dispo· sitivo de regras estritas para evitar a pilhagem de cadeiras praticada pelos alunos das salas vizinhas: "Impôs-se um esquema totalmente estranho. Supostamente, quando chego, deve procurar um vigia. Dou ao vigia uma pequena ficha redonda, e ele me dá a chave da sala, mas fica com a flcha. Depois de ter fechado a sala, 51 levo a chave, e ele devolve minha fichi' • Um outro dia, quando lhe propõem uma peque· na sala quase insalubre nos pré-fabricados de Paris·VIII em Saint-Denis, em 17 de janeiro de 1984, ele traça um quadro magnífico da sala muito modesta que lhe atribuem: "Fui ver a sala: é um palácio onde conheceremos o bem-estar. Imaginem um pequeno pátio, um tufo de grama no meio de um pátio quadrado. Em torno, há construções com um único andar, to~ das muito charmosas, em acre e verde. Portas se abrem para fora, o que, para qualquer acidente com fogo, salva nossa vida ... A sala é ni· tidamente maior que aqui. O teto é mais baixo, o que favorece a concentração. Possui grandes baias com janelas duplas: não há problemas de

292

Gilles De!euze & Félix Guattari

Dosse

barulho, nem de aquecimento. Estaremos bem

ali, e se nos perseguem, vamos para a garagem. Viveremos dias felizes, saudáveis, seremos livres. O único problema é atravessar o bulevar... É um palácio pré-fabricado, salas de estudo onde ninguém se atrasa. A atmosfera logo os cobre de serenidade, e dizer que isso existia e a 52 gente não sabia .. :' . Não muito distante do gaiato, tem-se o c/own, que joga com repetições e torna audível a pontuação dos longos desenvolvimentos filosóficos. É o "testemunho rítmico" que lança "Poorrquêê?". Ao lado do clown, há o moribundo, o agonizante, que vive seus últimos momentos e do qual se ouvem os estertores e os borborigmos. Ele geme seus ''Aaaah" com "essa voz senil em que cada palavra parece um gorgolejd'"'. Todos esses personagens acompanham o sedutor, o encantador Gilles Deleuze, cuja "voz é um 54 charme, um canto eficaz" • Todas essas vozes formam uma dramaturgia que põe em cena o teatro [llosófico de Deleuze, que representa todos os personagens ao mesmo tempo diante de um auditório petrificado e seduzido. Entre seus alunos, Deleuze conta com um fiel dos fiéis, que leva a presunção a ponto de tomar a palavra longamente a cada aula, contradizendo o mestre. Georges Comtesse se impôs corno interlocutor obrigatório cujas reações afetam o público, mas que se beneficia de urna cortesia acolhedora de Deleuze. Presente sistematicamente em todas as aulas, tendo lido todas as publicações do mestre e se apropriado de seu discurso e de seus conceitos, Corntesse se vangloria de acompanhar o pensamento de Deleuze, interrogando-o, formulando objeções, para pô-lo à prova. Nesse início dos anos de 1970, entre esses estudantes fascinados por Deleuze, está Elisabeth Roudinesco, membro da Escola Freudiana de Paris desde 1969, que percebe bem o caráter devastador de suas proposições sobre a psicanálise. Deleuze encontra-se em plena preparação de O Anti-Édipo. Evidentemente, Roudinesco não pode concordar com esse questionamentoradical do significante mestre ao qual se opõéa força dos fluxos, com esse

questionamento do Édipo, da falta, do uno em nome do múltiplo, e ao mesmo tempo está cativada: ''Exaltado mas sempre tolerante, Deleuze era o filósofo mais socrático que se possa imaginar. Longe de se fazer o ídolo de um culto religioso, ele fascinava sua plateia tornando-se o parteiro terno e bárbaro do desejo dos que o ouviam ... Ele falava sem anotações a quem o ouvisse, como se o livro que trazia nele estivesse inscrito por toda eternidade no mais íntimo 55 de sua alma" • Essa admiração não impede Elisabeth Roudinesco de receber a publicação de O Anti-Édipo com grande severidade crítica56, Nessa massa que se espreme às terças-feiras, um exegeta escrupuloso de Deleuze assiste aos cursos nos primeiros anos de 1970. Trata·se de Philippe Mengue, já professor em exercício na École Normale do Bourget, na formação de futuros professores e professoras de primário, dividido entre sua adesão às teses lacanianas e a fascinação por Lyotard e Deleuze: ''A primeira vez que encontrei Gílles Deleuze foi na universidade de Vincennes, que acabara de ser 57 criada. Foi um choque!" • Quando vai à aula da terça-feira, o ritual é sempre o mesmo. Deleuze chega, e a sala já está cheia de estudantes, a ponto de se ter dificuldade de entrar. O lugar onde Deleuze deve ficar já está tomado por uma infinidade de gravadores. Ele então interpela a plateia: "Vocês são gentis. Sinto prazer em ver que há tanta gente, mas eu precisaria pelo menos de um lugarzinho onde possa colo58 car meus livros" • Ele trazia sempre debaixo do braço um grande número de volumes que empilhava cuidadosamente e nos quais se encontravam fOlhas de anotações que nunca tocava. Quando em 1973 Philippe Mengue, cansado de lecionar psicopedagogia na Éco]e Normale, expressa ao diretor sua insatisfação e o desejo de ensinar metafi'sica, ouve como resposta que não pode esperar nada mais que um meio posto de filosofia no Midi. Ele aceita e deixa Paris. Depois de ter defendido sua tese sobre o sadismo sob a orientação de Lyotard, em 1986, diante de uma banca presidida por Deleuze, ele se dedica a escrever sobre a obra de seu mestre, a quem consagra dois livros59•

As razões mais diversas levam os estudantes a convergir para as aulas de Deleuze. O atual professor de filosofia de Nanterre,Jean-Michel Salanski, acaba de sair de sua agregação de matemática quando se apaixona pela filosofia graças aos trabalhos de Lyotard, mas também ao descobrir Diferença e Repetição. Vindo também de Lyotard, Richard Pinhas opta por Deleuze no momento da ruptura entre seus dois mestres. Após o falecimento de Deleuze, desempenha um papel fundamental na difusão de suas teses, criando um site na Internet no qual disponibiliza on-line um número crescente de aulas dadas em Vincennes em francês, inglês, espanhol e alemão. Pinhas acompanha com constância todas as aulas de Deleuze em Vincennes de 1970 a 1987 e frequentemente o busca em casa para levá-lo de carro à universidade. Pinhas sempre discute as aulas antes, no trajeto, e prossegue a discussão durante o almoço após a aula. Ele se beneficiou da relação não sacralizada de Deleuze com o livro: "Ele me deu não poucas obras raras, exemplares anota60 dos, com dedicatórias .. :' . Para não transportar um número muito volumoso de livros, Deleuze não hesitava em arrancar as páginas de que necessitava para suas aulas. A proporção de militantes políticos que assistiam às aulas caiu sensivelmente com o tempo. Estimada em um terço no início, ela se dilui para dar lugar a uma plateia composta essencialmente de aprendizes filósofos nos anos 1980. Richard Pinhas viveu ao lado de De!euze, durante esses anos de ensino, uma encarnação da tradição filosófica grega da amizade. No campo do saber filosófico, Deleuze não é nada diretivo e repete sempre que se deve tomar para si aquilo de que se necessita: "Li Espinosa tarde, com uns 30 anos, e ele me dissera: 'Chegará o dia em que você terá realmente necessidade dele, e nesse momento isso realmente lhe fará bem'. De fato, cinco anos antes, isso não 61 teria tido o mesmo efeito sobre mim" • O estudante de língua alemã, Pierre Blanchaucl, na época com apenas 18 anos, é também um fiel de primeira hora das aulas de 1970 a 1972. Seu pai, autodidata, lhe fala de Deleuze

293

durante o verão de 1968, depois de ter descoberto com paixão seu Nietzsche e a filosofia. Em comum acordo, pai e filho decidem acompanhar a aula de Deleuze em Vincennes na terça-feira e a de Foucault no College de France na quarta-f€ira: "Eu não entendia quase nada, mas me sentia bem. Era uma festa. Ele tinha uma maneira tão gentil de falar! Havia uma fascina62 ção reaL Gostei dele de imediato" • Durante seus últimos anos de ensino, entre 1984 e J987, Deleuze assiste ao afluxo de alguns filósofos de ofício. Entre eles, aquele que será um dos mais promissores especialistas do pensamento de Deleuze e cujo destino foi tragicamente interrompido em 2006: François Zourabichvili. Ele acompanha os dois últimos anos do curso de Vincennes, e quando a PUF lhe encomenda uma obra sobre Deleuze, tro63 ca algumas palavras com ele • Estudante de filosofia na Sorbonne, François Zourabichvili é imediatamente conquistado por Deleuze, que na época consagra seu curso a Foucault, depois a Leibniz: "Para estar nas primeiras dez flleiras, era preciso chegar uma hora antes, e uma vez, intrigado com o fato de que eram sempre os mesmos que ficavam ao lado dele, tive vontade de saber a que horas chegavam essas pessoas. Cheguei quase três horas an64 tes, e eles já estavam a cinco ou seis" • Zourabichvili aprecia particularmente a maneira lancinante que Deleuze tem de voltar às mesmas coisas. Nele, isso não é da ordem do refrão, mas uma maneira de aglutinar novas dimensões ao seu enunciado inicial em forma de uma ladainha que exerce uma eficácia pedagógica excepcional: os ouvintes podem não compreender a lição do dia, mas, ao ver retornar o mesmo tema com outras configurações, acaba por se apropriar dele. O detonador que conduziu François Zourabichvili a Deleuze foi a leitura de Proust e os Signos na classe preparatória à ENS no verão de 1982: "Eu o li e fiquei muito surpreso, pois não se parecia com nada do que eu lia no campo da crítica literária. Tinha um forte teor filos6fico"65. Ele experimenta depois a mesma fascinação com seu Nietzsche e relê sem parar as

294

Desse

duas primeiras páginas, seduzido pela maneira de ir diretamente aos fatos por meio de frases concisas, eficazes e fáceis de memorizar. Entra assim em Deleuze com afinidade estilística e interesses comuns, pois consagra seu mestrado a Espinosa66• Procurando trabalhar sobre um filósofo contemporâneo, François Zourabichvili faz, portanto, a escolha, evidente para ele, de Deleuze, e segue seus últimos cursos a partir de 1985. Causa surpresa na Sorbonne que alguém tão sério e competente possa ter escolhido Deleuze, que não é considerado em seu meio como um verdadeiro filósofo. No seu círculo, ele era qualificado no melhor dos casos de brilhante comentador eclético e de dandy: "Assumi o desafio de mostrar que se tratava de uma verdadeira filosofia. Minha questão era detonar a bomba deleuziana na filosofia" 67• Mesmo nesse último período, os filósofos não são os únicos a assistir às aulas de Deleuze. No último ano, entre 1986 e 1987, consagrado a Leibniz, um funcionário que trabalha em urrf centro de reinserção que lhe causa tédio instala-se regularmente ao lado de François Zourabichvili, Tendo partido em busca de conteúdos mais estimulantes em Vincennes, ele decidiu aportar no curso de Deleuze: "Isso lhe causava prazer, e, certa vez, a coisa tinha sido muito árdua a propósito do cogito cartesiano e de Kant. Ele se vira para mim e me diz: 'Não sei muito bem do que se trata, mas gosto bastante'. Tinha-se de fato a impressão de 68 que ele se dirigia a todo mundo" • Indo ouvir seu amigo Deleuze em Paris-VIII, Elias Sanbar teve uma experiência da mesma ordem: "Havia uma senhora idosa que vinha a todas as aulas, e fazia um certo frio nesse dia. Nos intervalos, a maioria dos estudantes saía para fumar, e eu fiquei. Dirijo-me a essa mulher para lhe perguntar se estava preparando alguma coisa, pois ela nunca faltava a uma aula. Ela me responde: 'O senhor sabe, ele me ajuda a viver'. Existe de fato algo nesse pensamento que ajuda as pessoas a viver" 69• Entre os jovens filósofos desse último período de Paris-VIU, David Lapoujade assiste ao curso sobre Foucimlt entre 1985 e 1986, e, no

Gil!es Deleuze & Félix Guattari

final do ano letivo, Deleuze o convida para ir à sua casa. A partir de então, Lapoujade se torna um familiar, primeiramente na relação professor-aluno. Depois de quatro anos de trocas regulares, ele é convidado para ir a Saint-Léonard-de-Noblat, na propriedade de Deleuze em Limousin. Os dias de verão ali se desenrolam tranquilamente entre pequenos passeios, partidas de xadrez e jogo de cartas: "Ele passava muito tempo em sua correspondência, pois respondia sistematicamente, com sua 70 letra trêmula" • Deleuze também dedica momentos para o trabalho ali, e a maior parte dos artigos inéditos publicados em Critica e Clínica foi escrita em Limousin. Fora isso, "Limousin era a vida de família, de repouso, de jogos de salão entre amigos, de pequenos passeios, mas 71 de carro" • Os íntimos desses momentos de calma, além da família, são essencialmente Jean-Pierre Bamberger, Pierre Chevalier, Claire Parnet e David Lapoujade. Nessa pequena sala de Paris-VIII, ao lado do mestre, encontra-se invariavelmente um estudante japonês que, por mais de dez anos, ocupa o mesmo lugar todas as terças-feiras, ao custo de levantar muito cedo. Hidenobu Suzuki chegou à França em 1974, vindo de Tóquio, para aperfeiçoar seu conhecimento de francês, e não conhece nada de filosofia na época. Inscreve-se na Sorbonne nova onde encontra aquilo que satisfaz seu gosto pela literatura francesa: "Um dia, um amigo japonês que encontro na Sorbonne me deu o Kajka 72 de Deleuze e Guattari" • Grande apaixonado por Kafka, do qual leu a maioria das obras no Japão, e muito seduzido pela novidade dessa abordagem, ele fica sabendo algum tempo mais tarde que Deleuze dá aula em Vincennes. Decide fazer o curso do ano letivo de 1978 e 1979, O campus ainda está agitado, e a aula de Deleuze sofre constantes intervenções in~ tempestivas. Pessoas chegam para dizer que é absolutamente necessário ajudar seus camaradas em dificuldade e pedem ajuda financeira para esta ou aquela causa: "Quase toda vez Gilles circulava seu chapéu pela sala e tirava notas de seu bolso enquanto o chapéu circula-

va. Eu achava isso muito generoso e descobria alguém que não ficava absolutamente em sua torre de marfim"n. Uma tal atitude contrasta muito profundamente com as práticas universitárias japonesas. Hidenobu, que vem da extrema esquerda japonesa, descobre fascinado que trabalhos de ordem universitária como os de Deleuze e Guattari podem ter um prolongamento prático: "Ir à sua aula tornou-se uma 71 paixão para mim" . • Tendo observado desde o primeiro dia que havia muitos gravadores em torno de Deleuze, Hidenobu coloca o seu, um Sony de última geração. Ele se torna uma insti~ tuição por si só, e, quando um próximo de Deleuze lamenta não ter podido assistir a esta ou àquela aula, este último o aconselha a procurar o estudante japonês para que lhe empreste 75 o cassete . Na terça-feira, 2 de junho de 1987, chega o dia tão lamentado por todos da última aula. O acontecimento é ao mesmo tempo programado e negado por Deleuze, que considera que se trata apenas de uma penúltima aula, como de um penúltimo copo, mas não deixa de fazer dele um acontecimento, e as câmeras, somando-se aos já habituais gravadores, marcam presença. Esse momento é descrito por um dos representantes dessa diáspora internacional fascinada por Deleuze, o estudante italiano Giorgio Passerone, tradutor de Mil 76 Platôs • Vindo de Gênova e do movimento de extrema esquerda da autonomia italiana, Passerone acompanha as aulas de Deleuze desde 1977: "Depois mergulho em O Anti-Édipo e decido que há ali uma linha de vida e faço minha dissertação de mestrado sobre a ideia da diferença em Deleuze'"'. A situação italiana se deteríorava com a progressão do número dos que decidem se engajar na luta armada das BR, enquanto outros, desesperados, se entregam às drogas pesadas, e então Passerone pede uma bolsa de estudos, instala-se na França e faz os cursos de Deleuze: ''As aulas de terça-feira sempre funcionaram assim, uma produção-laboratório em torno do operador Deleuze: fazer uma leitura dos filósofos que capte sua originalidade"78•

295

Assim, essa última aula não apenas coroa o trabalho empreendido sobre Leibniz, mas todo o ciclo de sua vida de professor, sobre o tema da harmonia, uma harmonia que deve emergir do conceito filosófico de "acordo da alma e do corpo". Como de hábito, Deleuze se volta parao universo criativo para mensurar o que poderia dar uma experimentação dessa harmonia. Evoca a renovação da noção de harmonia na música barroca: "Cabe aos 'músicos' do seminário desenredar essa história de transformação da 79 noção de harmonia" • Ele recorre à competência de musicólogos como Pascale Criton para esmiuçar a hipótese de uma mudança de estatuto da harmonia, que não se fundamentaria mais em intervalos regulares, mas em acordes. Essa transformação que seria trazida pela música barroca estaria em sintonia com o que Leibniz entende com sua ideia de harmonia, que distingue três maneiras de problematizar as relações entre o corpo e a alma: a influência que remeteria à melodia, a assistência que corresponderia aos contrapontos e o consentimento a uma concepção do acorde. É com essa questão aberta que termina sem terminar seu ensino, pois ele se abre a novas explorações. Deleuze encerra essa última aula afirmando: "Essa história da música me proporciona pontos de partida em que eu não teria pensado sem esta sessão de trabalho''80•

Notas 1. Proposição ele orientação sobre o ensino ele filosofia, março de 1969, arquivos "Vincennes", BDIC. 2. judith Miller, entrevista com Madeleine Chapsal e :tvllchele ManceaLL-x, L'Express, 16 de março de 1970. Essa declaração provocadora suscita uma reação imediata. Em 3 de abril de 1970, Judith :Miller recebe uma carta do ministro revogando sua indicação para o ensino superior e mandando-a de volta para o secundário. 3. Ciffas extraídas ele Charles SOULIÉ, "Le destin d'une institution ctavant-garde: histoire du département de philosophie de Paris VIII", Histoire de l'éducation, janeiro de 1998, n. 77, INRE p. 57.

Dosse

296

4. 5. 6. 7. 8.

9. !0. li. 12. !3. 14. !5.

Gilles Deleuze, A. lbid. Arquivos "Vincennes", BDIC. Roger-Pol DROIT, Le Monde, 15 de novembro de !974. Gilles DELEUZE, jean-François LYOTARD, 'A propos du département de psychanalyse à Vincennes", Les Temps modernes, n. 342, janeiro de 1975, p. 862-863; reproduzido em Gilles DELEUZE, RF, p. 56-57. Jbid, p. 57 Jacques LACAN, "Peut-être à Vincennes", Ornicar?, n.l, janeiro de 1975, p.3. Jbid., p. 5. Jacques RanciE:re, entrevista com o autor.

Jbid. Jbid.

Alice Saunier-Se!té, declaração publicada em Ouest-France, 19 de junho de 1978; reproduzida em Pierre MERLIN, L'Université assassinée. Vincennes 1968-1980, Ramsay, Paris, 1980, p. 82. !6. René Scherer, entrevista com o autor.

17. 18. !9. 20.

Noi:Hle Châtele, entrevista com o autor.

Jbid. lbid. Gilles Deleuze, carta a François Châtclet, 3 de maio de 1982, acervo Châtelet, IMEC.

2!. Noelle Châtele, entrevista com o autor. 22. Jbid. 23. Gilles Deleuze, aula de 7 de janeiro de 1986, universidade de Paris-VIII, arquivos sonoros, BNE 24. Gilles DELEUZE, "li était une étoille de groupe", Libération, 27 de dezembro de 1985, p. 21-22; reproduzido em RF, p. 247. 25. Jbid., p. 249. 26. Gilles DELEUZE, Périclês et Verdi. La philosophie de François Châtelet, Mlnuit, Paris, 1988, p.8. 27. Jbid., p. 9. 28. François CHÂTELET, Périclês, Club français du livre, Paris, 1960. 29. Gilles DELEUZE, Péricles et Verdi, op. cit., p. 20. 30. Jbid., p, 25. 31. René Schérer, entrevista com o autor. 32. Ver o capítulo"() CERFI em suas obras". 33. Ibid. '!,"'

Cilles Deleuze & Félix Cuattari

34. Renê Schérer, entrevista com o autor. 35. Entre os numerosos doutorandos que De~ Jeu:::e deixou como herança a Schérer estão Yvonne Thoros, jean-Clet Martin, Giorgio Passerone... 36. Christian Descamps, entrevista com o autor. 37. Ver capítulo "Fogo no psicanalismo". 38. jean-François LYOTARD, L'Économie libidinale, fvlinuit, Paris, 1974. 39. Corinne Enaudeau, entrevista com o autor. 40. lbid. 4!. jean-François LYOTARD, La Condition post~ moderne, Nlinuit, Paris, 1979. 42. Félix Guattari, palavras reportadas por Jean Chesneaux, entrevista com o autor. 43. Jean-François LYOTARD, Le Différend, Minuit, Paris, 1983. 44. ]ean-François LYOTARD, Libération, 5 de novembro de 1975; reproduzido em Mis8re de la philosophie, Galilée, 2000, p.l94. 45. Jean-François LYOTARD, palavras reportadas por Corinne Enaudeau, entrevista com o auto r. 46. Pierre Chevalier, "Gilles Deleuze: avez-vous des questions à poser?", France Culture, 20 de abril de 2002, programa de Jean Daive e Clotílde Pivin, arquivos INA. 47. Gilles Dcleuze, A, letra P, "Professem''. 48. Claude JAEGLÉ, Portrait oratoíre de Gilles DeLeuze aux yeu.xjeunes, Paris, PUF, 2005. 49. Jbid.,p.18-19. 50. Jbid.,p. 24. 5!. Gilles Deleuze, em ''Gilles Deleuze: avez-vous des questions à poser?", France Culture, 20 de abril de 2002. 52. Gilles Deleuze, aula de 17 de janeiro de 1984, arquivos sonoros, BNF. 53. Claude JAEGLÉ, Portrait oratoire de Gilles De~ leuze aux yeux)a unes, op. cit., p. 32. 54. Jbid., p. 33. 55. Elisabeth ROUDINESCO, Généalogies, Fayard, Paris, 1994, p. 53. 56. Ver capítulo "Fogo no psicanalismo". 57. Philippe Mengue em Yannick BEAUBAT!E (sob adir.), Tombeau de Gilles Deleuze, Mille Sources, Tulle, 2000, p. 49. 58. Gilles Deleuze, palavras relatadas por Philippe Mengue, entrevista com o autor.

59. Phílippe MENGUE, Gil!es Deleuze ou Le systi:me du multiple, Kimé, Paris, 1994; Deleuze et la question de la démocratie, Kimé, Paris, 2003.

60. 6!. 62. 63.

Richarcl Pinhas, entrevista com o autor.

Jbid. Pierre Blanchaud, entrevista com o autor. François ZOURABICHVILl, Deleuze. La philo-

sophie de l'évenément, op. cit. 64. François Zourabichvili, entrevista com o autor. 65. Jbid. 66. François ZOURABICHVILI, Spinoza: une physique de la pensée, PUF, Paris, 2002; Le Conser-

vatisme paradoxal de Spinoza: enfance et royauté, PUF, Paris, 2002. 67. Françoís Zourablchvili, entrevista com o au~ to r. 68. lbid. 69. Elias Sanbar, entrevista com o autor. 70. David Lapoujade, entrevista com o autor.

297

7!. Jbid.

72. Hidenobu Suzuki, entrevista com o autor. 73. Jbid. 74. !bid. 75. O conjunto dessas gravações está disponível na sala audiovisual da BNF: 177 aulas, 400 horas- de 1979 a 1987. Frédéric Astier publicou o inventário delas: Les Cours enregistrés de Gi!Les Deleuze: 1979-1987, Sils Maria éditions, Mons, 2006. 76. Giorgio PASSERONE, ''Le dernier cours?", Le ivlagazine littéraire, n. 257, setembro de 1988, p. 35-37. 77. Giorgio Passerone, entrevista com o autor. 78. Giorgio PASSERONE, "Le dernier cours?", art. cit., p. 36. 79. Jbid., p. 36. 80. Gilles Deleuze, aula ele 2 de junho de 1987, universidade de Paris-VIII, arquivos sonoros, BNF.

Gilles Deleuze & Félix Guattari

20 1977: o ano de todos os combates

A meio caminho entre O Anti-Édipo (1972) e o segundo volume de Capitalismo e Esquizofrenia, Mil Platôs (1980), Deleuze e Guat-

tari escrevem um pequeno texto de menos de cem páginas absolutamente essencial, de valor programático: Rizoma1• Esse texto serve para afirmar a multiplicidade de entradas possíveis em uma obra: "Nenhuma entrada tem privilégiO', "Portanto, pode-se entrar por 2 qualquer saída" • O rizoma é concebido assim como uma teoria da recepção, da leitura, e

justifica a parte ativa do leitor em relação ao autor e à sua suposta intencionalidade. É considerado como a expressão possível de uma teoria pragmática da leitura: "O rizoma, como teoria da leitura, leva em conta, portanto, o ato de leitura e faz da recepção uma produção ativa, uma verdadeira transformação e uma captura da obra"3 • O conceito torna-se por si só uma forma manifesta de seu pensamento novo. Reves~ te-se de um aspecto polêmico enquanto máquina de guerra contra a tradição ocidental da verticalidade, alternativa à famosa árvore do conhecimento. Propõe também outra manei~ ra de pensar segundo as linhas da horizontalidade, do plano de imanência, sobre o modelo vegetal de plant&,~· rizomáticas, cujas ramifica-

ções são ao mesmo tempo proliferantes e horizontais. Com essa analogia, eles pretendem romper com um raciocínio que vai do tronco aos ramos da árvore conforme um esquema causal e linear, para substituí-lo por um modo de pensamento que não tem ponta original nem extremidade final, mas muitas conexões significantes. Ao mesmo tempo, conseguem fazer com que toda ruptura possa se tornar significativa, em todos os pontos. Deleuze e Guattari opõem simultaneamente ao pensamento do Uno, que se enraíza profundamente para se desenvolver segundo uma lógica binária, um pensamento do múltiplo, um "sistema-radícula", produto do fracasso do enraizamento e que se desenvolve já em uma lógica da dobra que Deleuze tematizará mais tarde nela mesma a partir de Leibniz: ''A dobragem de um texto sobre outro, constitutiva de raízes múltiplas e mesmo adventícias (dir-se-ia uma estaca), implica uma dimensão suplementar à dos textos considerados. É nessa dimensão suplementar da dobragem que a 4 unidade continua seu trabalho espirltual" • Ao cosmo-raiz se opõe a afirmação de uma caosmo-radícula, e por isso não basta recolher do múltiplo, mas é preciso produzi-lo: "O múlti5 plo, é preciso fazê-/o" •

Opondo os bulbos e os tubérculos às raízes, Deleuze e Guattari utilizam como sempre uma lógica dualista para combater melhor o binarismo. Ao mesmo tempo, alertam seus leitores contra toda simplificação abusiva em termos de oposição entre o bem e o maL pois pode haver aí o melhor no rizoma, como a batata, e o pior, como a erva daninha. O rizoma induz um método, alguns princípios. Lá também foram muitas as simplificações que viram nisso a justificativa de um certo laxismo intelectual que se contentaria com colagens, enquanto o método pregado é o da ascese. Fazer o múltiplo exige sobriedade, contração, subtração e supressão das facilidades do Uno para estabelecer conexões transversais produtivas de per~ tinências inéditas. Os primeiros desses princípios são os de conexão e de heterogeneidade: "Qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qual~ quer outro, e deve sê-lo"'- Outro princípio, o da multiplicidade, é uma contribuição específica reivindicada por Deleuze em uma perspectiva bergsoniana: ''A distinção do macro e do micro é muito importante, mas pertence talvez mais a Félix do que a mim. Meu, é mais a distinção de dois tipos de multiplicidades. É isso o essencial para mim: que um desses dois tipos remeta a micromultiplicidades, o que é apenas uma consequência. Mesmo para o problema do pensamento, e mesmo para as ciências, a noção de multiplicidade, tal como é introduzida por Riemann, me parece mais importante que a da microfísici'7 • A multiplicidade é con~ cebida assim como substantivo, e não remete mais ao Uno como pode fazer o múltiplo. Sem objeto nem sujeito, a multiplicidade tem apenas divisões ou grandezas diferentes: "Pode-se falar então de um pLano de consistências das multiplicidades"'. De sua parte, Guattari traz a esse conceito um possível desdobramento de seu tema da transversalidade, que pode se ramificar segundo linhas inéditas. Outro princípio essencial, o da "ruptura significante ... Um rizoma pode ser rompido, quebrado em qualquer lugar"'. A relação fecundante da vespa e da orquídea serve de ilustração

299

a esses possíveis agenciamentos múltiplos de elementos heterogêneos entre eles. Nesse caso preciso, o animal e o vegetal se desterritoriali~ zam e se reterritorializam para estabelecer uma ramificação surpreendente de dois seres vivos, sem que haja uma medida comum entre um e outro. O rizoma não tem a ver com um decalque do já-lá, nem com qualquer ascendência genealógica; ele se abre para o inédito, para a captura, sempre em direção a novas linhas de fuga, em direção a uma abertura para um de fora. Os outros princípios do rizoma estão ligados à prevalência da cartografia sobre a decalco ma~ nia e sua reprodutibilídade ao infinito, como percebem em ação nas duas ciências~ piloto do estruturalismo, que são a linguística e a psicanálise. Disso resulta uma lógica bem diferente: ao invés de representar códigos subjacentes, ela provém inteiramente da experimentação; ela inova, conecta campos heterogêneos, provoca um deslocamento do real, multiplicando as entradas possíveis, os ângulos de visão. A linguística e a psicanálise cometem o erro de impor à complexidade do real suas respectivas grades de interpretação, imutáveis enquanto modelos de significação. À leitura reducionista e gradista, os autores opõem o procedimento cartográfico de um Fernand Deligny quando este último faz suas crianças autistas desenharem para reconstituir seus itinerários não traçados. Do privilégio atribuído à árvore, Deleuze e Guattari fazem inclusive um invariante civilizacional característico elo Ocidente. Assim, regionalizam um modo de pensamento considerado até então universal e lhe opõem uma outra relação com a natureza, oriental, que se vê confrontada com a estepe e com o jardim, com o deserto e com o oásis, e cujas culturas são as dos tubérculos. Eles encontram nos trabalhos de Jean Haudricourt sustentação para essa oposição entre o enterrar oriental dos tubérculos e as semeaduras das plantas de grão da agricultura ocidental. É essa abordagem do mundo vivo que sugerem nossos autores. Não pretendem inaugurar uma nova ciência, mas sim uma inflexão do olhar, que deve se desenvolver em planos horizontais, como nos convidam os platôs: "Chamamos de

300

François Desse

Gi!les Deleuze & Félix Guattari

platô toda multiplicidade conectável com outras práticas subterrâneas superficiais, de ma-

neira a formar e a estender um rizoma" 10• É um campo de experimentação segundo novas regras que Deleuze e Guattari inauguram com esse ensaio que lhes serve de manifesto antes de se tornar a introdução ao segundo volume de Capitalismo e Esquizofrenia, uma verdadeira caixa de ferramentas de múltiplas utilidades. Esse pensamento da experimentação é importante em todos os campos de

atividade. Anne Sauvagnargues enfatiza sua contribuição no campo da estética para recuperar a criação artística como captura de

forças e recusa do corte clássico entre a arte 11

e a vida ou entre a obra e sua interpretação . Pode-se também definir a partir desse conceito uma nova forma de pensamento que não corresponde mais à busca de uma mimese entre a suposta realidade objetiva e a ideia que se faz dela segundo o esquema da representação. Não se partirá mais tampouco em busca de origens, de suportes ontológicos que ofereçam urna base sólida de verdade, e serão privilegiados os cruzamentos de fluxo, os encontros, discernindo neles o que são impasses ou, ao contrário, fecundas aberturas de certas linhas de fuga segundo a técnica da clínica. Com o rizoma, pode-se ainda abrir o continente do saber científico, pois pensar o pensamento em termos de ligações está em consonância com as descobertas neurobiológicas. Pelo caráter multidimensional desse conceito, mede-se a força de interpelação de que ele se reveste. Sua apresentação cursiva em uma pequena obra, muito mais acessível que será depois o imponente mas sempre dissuasivo Mil Platôs, faz desse pequeno manifesto mais proposicional que polêmico um desafio que suscitará o contra-ataque daqueles que se sentem visados por essa nova orientação.

O "fascismo da batata" Alain Badiou, colega filósofo de Deleuze em Vincennes, ond~>ifeciona por trinta anos, é um

que compreende de imediato a força atrativa desse opúsculo. Antigo discípulo de Sartre, e depois de Althusser, ele comanda na época um pequeno grupo de maoístas e dirige a revista Cahier Yenan, que empresta seu apoio ao "Grande Timoneiro'. Em 1977, já sentindo a forte concorrência e incomodado com o sucesso de O Anti-Édipo, que fez do curso de Deleuze um must do departamento de filosofia de Vincennes, Badiou decreta, desta vez, que com o Rizoma é demais. Deleuze figurará nas fileiras dos "inimigos do povo". Em Cahier Yenan, Badiou assina um artigo, "O fluxo e o partido', que tem como alvo O Anti-Édipo, e ainda um segundo, sob o pseudônimo ele Georges Peyrol, em que o ataque é dirigido a Rizoma com um título bastante sugestivo: "O fascismo da batatà'. No primeiro artigo, Deleuze e Guattari são denunciados como defensores de uma filosofia do desejo que "tem quase a mesma virtu12 de sonífera do ópio" . Eles teriam se tornado os representantes de um moralismo dos mais vulgares que consistiria em demonstrar a duras penas, à custa de uma "balbúrdia cultural", de um "inchamento do bíceps subversivO', que a liberdade está do lado do bem e da necessidade do mal, anunciando assim um simples retorno a Kant, esquecendo os ensinamentos do rnarxismo-leninismo que continua sendo a en13 carnação da "seriedade da ciência'' • Por trás desse caráter lúdico da escrita de O Anti-Édipo, Badiou desmascara sem dó o verdadeiro ros~ to dos inimigos do povo: "Qual é a última palavra para esses adversários que odeiam toda política revolucionária organizada? Leiamos: realizar 'esse processo que já está realizado na medida em que procede' (O Anti-.Édipo, p. 459), Em suma, correr como um pus ... Olhemos para eles, esses velhos kantianos com cara de quem está brincando de quebrar os bibelôs da cultura. Olhemos para eles; o tempo urge, e eles já . ,}4 sentem a poeira . Na segunda parte do ato de acusação, escrito sob a máscara de um pseudônimo, trata-se desta vez de qualificar as posições do colega e de seu comparsa Guattari de "pré-fascistas". O que se encontra de fato por trás do

5

múltiplo do rizoma? "O déspota revisionista'>~ • Badiou percebe que o alvo de Rizoma é o Uno que se divide em dois, a famosa máquina dialética de triturar quando serve de estratégia do camarada Lin Piao: "Deleuze e Guattari não serão considerados analfabetos. Será preciso 16 então considerá-los escroques" . Suas malversações estariam a serviço de um combate travado contra o pensamento dialético, visando aos justos interesses do povo. Sua redução do Uno do proletariado ao Uno da metafísica seria a prova tangível de seu profundo conservadorismo: eles perseguiriam a detestável escolha de classe necessária para realizar a justa revolução proletária. Finalmente, Deleuze e Guattari convidariam seus leitores a se acantonarem em um papel pacífico de espectador separado à maneira de Haymond Aron, ou seja, a traírem a classe operária: "Ficar no seu canto, essa é a máxima das multiplicidades rizomáticas"17. Sob essas aparências de bons moços que fazem pensar no jardim da aclimatação, "Deleuze e Guattari são ideólogos pré-fascistas. Negação da moral, culto do afirmativo natural, repúdio ao antagonismo, estética do múltiplo permitindo subsistir fora dele, como sua condição política subtrativa e seu fascínio 18 indelével, o Uno do tirano" • O ato de acusação é inapelável. Esse ataque violento coroa anos de "guerrilha'' verbal comandada por Badiou e suas tropas maoístas contra Deleuze desde o início dos anos 1970 no campus de Vincennes. Nos momentos mais fortes do enfrentamento, Deleuze nunca consegue terminar sua aula: ele pega o chapéu, faz sinal de que está abandonando a partida. Na maioria das vezes, essas intervenções de sabotagem são obra dos "homens" de Badiou, mas o Mestre chega a se dirigir à aula de Deleuze para interrompê-lo, o que reconhece no livro que consagra a ele em 1977: "Para o maoísta que sou, Deleuze, inspirador filosófico disso que chamávamos de 'anarco-desejantes', é um inimigo tanto mais temível na medida em que é interior ao 'movimento' e que seu curso é um dos pontos altos da universidade. Jamais temperei minhas polêmicas, o consen-

301

so não é meu forte. Ataco com as palavras da artilharia pesada de então. Uma vez, eu mesmo dirijo uma 'brigada' de intervenção em sua .. !9 aua l . Alain Badiou e Judith Miller chegaram a criar em l 970 uma unidade de valor cuja função consiste em controlar o conteúdo político dos outros cursos do departamento de fllosofia. Alain Roger, ex-aluno que se tornou amigo de Deleuze, lembra ainda de um Deleuze contra~ riado, pois é seu dia de controle pela "brigadà' de Badiou: "Preciso ir lá pois tenho o bando do 20 Badiou" • Deleuze reage a essas intervenções com a maior calma e evita o confronto direto. Contudo, os opositores geralmente chegam em massa, às vezes uns dez, com a firme intenção de brigar: "Bom, Deleuze, é muito agradável o que você faz, mas você fala sozinho diante de uma plateia de admiradores subjugados! Veja a corte que tem diante de você. Eles estão de boca aberta! Não dizem nada! É essa sua prá~ tica. Defina para nós sua práticàm. Philippe Mengue recorda da virulência desses acusadores que "tentavam colocar Deleuze em contradição com ele mesmo e chegavam com textos de Nietzsche, fazendo perguntas que julgavam incômodas para Deleuze'm. Com frequência, a "brigadà' acabava por impor a "lei do povo', ordenando aos estudantes presentes que se retirassem sob o pretexto de uma assembleia geral no anfiteatro ou de qualquer outro ato de apoio às lutas dos trabalhadores. Deleuze reagia calmamente, fingia falar no mesmo sentido, utilizava a arma da ironia. Deleuze não é, aliás, o único alvo das "brigadas" de Badiou:]ean-François Lyotard, outro "desejante" também ftgura na lista daqueles que é preciso importunar para garantir a salvação de suas ovelhas. Mesmo o homem da conciliação, chefe do departamento desde a saída de Foucault, François Châtelet está no quadro de caça. Contudo, ao longo dos anos !970, a vindita maoísta vai se atenuando ao ritmo do declínio progressivo das tropas submetidas ao pensamento de Mao. Assim, as aulas de Deleuze são cada vez mais poupadas dessas incursões dos adoradores do livrinho vermelho.

302

Dosse

Entretanto, quando Deleuze falece em !995, Badiou lhe presta uma homenagem vibrante. Depois, chega a se apresentar como digno sucessor de Deleuze no magistério de filosofia de Paris-VIII, com a condição de reler a obra de Deleuze com base em critérios da "boa fllosofia'. Dois anos após a morte de Deleuze, consagra a ele uma obra que pretende enfim atestar uma relação de proximidade, embora só tenha havido conflito enquanto Deleuze 2 era vivo :~. Na verdade, o tom se tornou menos polêmico a partir de final dos anos 1980. Mesmo que Badiou ainda se refira a Stalin e a Pol Pot, o maoísmo foi enterrado por todos. De sua parte, Deleuze se aposentou em 1987. Badiou encontra então alguns méritos em seus novos livros, como o ensaio sobre Leibniz publicado em !988, A Dobra, do qual faz uma resenha elogiosa para o Annuaire Philosophique. Deleuze,

sempre cortês, lhe agradece calorosamente, o que leva Badiou a pensar que eles formam "sem nun_ca ter decidido isso (ao contrário!) uma espéCie de tandem paradoxal"24 •

Inicia-se, então, um confronto epistolar tardio a partir do lançamento de O Ser e o Acontecimento, de Badiou, em !988. Essa troca, que ocorreu entre !992 e 1994, trata essencialmente de questões de filosofia da matemática e de epistemologia. A iniciativa é do próprio Badiou. Seu objetivo, aliás alcançado, é assegurar e assumir uma certa continuidade deleuziana em Paris-VIII, onde numerosos estudantes de filosofia querem consagrar suas teses a Deleuze e encontram em Badiou as competências requisitadas. Assim, em 1991, Badiou sugere a seu ex-colega a ideia de uma controvérsia, exatamente quando este último conclui a redação de O que é ajilosofia?. Deleuze recusa, mas de maneira argumentada, e Badiou lhe responde por seu turno. De todo modo, resulta dessas trocas uma importante correspondência até o final de 1994, data em que as duas partes decidem em comum acordo encerrá-la. Deleuze recusa qualquer publicação e dá sumiço a essa correspondência, como faz com todos os vestígios que possui, par~ não deixar à posteridade nada além de suas obras publicadas. Já Badiou

Gi!les Deleuze & Félix Guattari

dispõe da correspondência integral das duas partes, mas não pode publicá-la. O exercício a que Badiou procede em sua obra de homenagem de 1997 consiste em tirar um retrato de Deleuze que seria digno dele e que não teria nada a ver com o dos deleuzianos, e menos ainda com o de Guattari, uma espécie de Deleuze puro, um extrato de Deleuze passado na peneira, uma ideia de Deleuze sem Deleuze. "Qual Deleuze?", pergunta-se Badiou. Resposta: o seu. Descobre-se, então, com espanto que Deleuze propõe um conceito renovado do Uno: "É ao advento do Uno, renomeado por Deleuze o Uno-todo, que se consagra, em sua mais elevada destinação, o pensamento"25, e ele fundamenta seu argumento na seguinte citação tirada de seu contexto: "Um único clamor do Ser para todos os sendos"26, que dará lugar ao título de seu livro. Badiou julga poder discernir na obra de Deleuze não um grito filosófico para libertar o múltiplo, mas uma vontade de elaborar uma metafísica do Uno. Esse horizonte sublime pressupõe afastar de Deleuze seus inúmeros discípulos e sua relação com qualquer posteridade pós-68: "Esse 'autômato purificado' está sem dúvida muito mais próximo da norma deleuziana que os barbudos de 68 que levavam a tiracolo de forma ostensiva seu grande desejo'm. Remeter Deleuze ao Uno, eis a estratégia de Badiou em oposição a todo pensamento de Deleuze, que situou as multiplicidades no próprio cerne de sua construção filosofia: "Seu Ser, seu Uno, seu Todo são sempre artificiais, e não na~ turais, corruptíveis, evaporados, porosos, frag~ mentáveis, quebráveis. A diversidade do diverso foi substituída pelos filósofos pelo idêntico ou 28 pelo contraditórici' • Em sua aula de lO de dezembro de !985 sobre Michel Foucault, Deleuze se pergunta o que poderia ser uma posição dualista e diferencia três tipos de dualismo. Em primeiro lugar, o que considera ser o verdadeiro dualismo e que significa afirmar a existência de duas dimensões incomensuráveis uma à outra. Ele toma como exemplo o dualismo objetivo e substancial de Descartes quando este diferencia a substância pensante e a substância esten~

di da, ou ainda o dualismo subjetivo de um Kant quando distingue a faculdade de receptividade e a de espontaneidade. A esse verdadeiro dua~ lismo, convém acrescentar um outro uso que vale como etapa provisória em direção ao Uno. Nesse caso, o que se visa é a unidade profunda graças ao próprio movimento de desdobramento. Desta vez Deleuze toma como exemplo Espinosa, que distingue do atributo do pensamento e o da extensão para atingir a unidade da substância. Do mesmo modo, Bergson é bastante conhecido por ser um mestre das duali~ dades que opõem duração e espaço, matéria e memória ou ainda as duas fontes da moral e da religião, mas todos são gestos metodológicos preparatórios para a restituição ele um horizonte de unidade. Esses pensamentos permanecem fundamentalmente monistas, e o abalo provocado pela tensão dual conduz ao triunfo final do elã vital que funda a unidade. O dualismo praticado por Foucault e Deleuze é de uma ordem bem diferente. Deleuze atribui a ele uma importância primordial, a ponto de afirmar que é isso o que mais o aproxima de Foucault, ainda que este último não empregue muito o termo "multiplicidade", preferindo em seu lugar "dispersão' ou "disseminação''. Qual é então essa terceira maneira de dualismo praticada por Deleuze e Foucault? Esse dualismo é, como em Espinosa e Bergson, uma etapa preparatória, mas o horizonte não é mais construir o Uno, e sim levar às multiplicidades, ao pluralismo. O que Deleuze retém da multiplicidade é, diferentemente do adjetivo "múltiplo'', o fato de se tornar um substantivo, uma "multiplicidade", e não mais um simples atributo. A multiplicidade pode então ser pensada por ela mesma, e todo esforço de Deleuze conduz a isso, da mesma maneira que em sua tese Diferença e Repetição se tratava de pensar a diferença por ela mesma. A multiplicidade é, portanto, a única máquina de guerra que pode servir, não mais para reencontrar o Uno, mas para combatê-lo: "A única maneira de fazer uma crítica do Uno é pela multiplicidade, pelo múltiplo. Não posso destruir o Uno sem subs29 tancializar o múltiplo" •

303

Em compensação, Badiou acerta quando qualifica de "ascético" o pensamento de Deleuze, quando o remete ao seu parentesco com os estoicos. Contudo. logo depois de destacar esse rigor próprio ao gesto deleuziano, Badiou afirma que a filosofia de vida pregada por Deleuze é de fato uma "filosofia da morte"30. Como poderia ser animado por qualquer pulsão mortífera aquele que é animado pelo conatus espinosiano e que afirma em 1988: "Tudo o que escrevi era vitalista, pelo menos espero, e constituía uma teoria dos signos e do 31 acontecimento''? • Contra a evidência, Badiou persiste: "Essa identidade do pensar e do morrer é dita em um verdadeiro cântico à morte, onde Deleuze resvala sem esforço no traço ele Blanchot":12 . Nas palavras de seus alunos de Paris-VIU, Deleuze não abria mão de uma atitude polida, apesar elas interrupções intempestivas dos partidários de Badiou, mas também dos numerosos esquizofrênicos que assistiam às suas aulas. Contudo, certa vez ficou furioso quando encontrou em sua mesa um panfleto de um "comando da morte" incitando ao suicídio. Em sua aula de 27 de maio de 1980, afirma que a morte só pode vir do exterior e não pode em nenhum caso ser pensada como processo: "Quando ouço a ideia de que a morte possa ser um processo, é todo meu coração, todos os meus afetos que sangram":n. A pulsão de morte lhe causava horror tlsicamente, e tudo nele resistia a ela para fazer triunfarem as forças da vida e da criatividade. Prosseguindo na mesma linha de estabelecimento de um Deleuze irreconhecível, E adiou faz dele o homem de um pensamento sistemático e abstrato, pouco preocupado com a singularidade dos casos, para fazer prevalecer seu sistema de um pensamento produtor de conceitos "que eu não hesitaria em declarar mónótonos"?A. Seguramente, o retrato de corpo inteiro realizado por Badiou tem pouca semelhança, como ele próprio admite, com aquilo que designa como a doxa que se constituiu. Para dar um toque final, como a cereja no bolo, Badiou qualifica Deleuze de pensador aristo-

304

Gilles Oeleuze & Félix Guattari

François Dosse

A leitura que Badiou propõe da Dobra confirma isso nessa hipótese que leva a considepor debates e discussões, que considera uma um passadista que põe em jogo as rar Deleuze atitude anticlemocrática. dobras e os desdobres da tradição, do já-lá em Ao longo de sua demonstração, Badiou reuma memória que se oferece como forma de duz a singularidade de Deleuze, identificando enquanto que ele, Badiou, seria subjetivação, suas posições como um mero desvio da ontoloo único dos dois a ser verdadeiramente recepgia heideggeriana. Ao contrário de suas pretenaos começos absolutos, aos verdadeiros tivo sões de pensar contra seu tempo, Deleuze teria acontecimentos. A sensibilidade extrema de sido, no fim das contas, nada mais que uma todas as formas de criatividade raDeleuze a pálida reprodução de um século dominado por em todos os domínios constitui, segundo dical Heidegger. Ao assimilar a filosofia a uma ontolocampos de experimentação que atesBadiou, gia, o que Deleuze visaria é o Ser. Nesse sentido, tam os desdobres do Ser. Deleuze se aproximaDeleuze haveria escapado da ruptura moderna de Kant e não teria compartilhado a natureza ria de Badiou em um pensamento metafísico do Ser e de seu fundamento ontológico, mas crítica de sua filosofia. Teria permanecido um teria permanecido à margem, mostrando-se pensador resolutamente clássico, como Badiou incapaz de preconizar um pensamento radical se reconhece, ele próprio, nessa postura. Conem sua novidade. Posando de digno herdeiro tudo, ele se distancia de Deleuze quando este da questão da Verdade, Badiou faz de Deleuze último atribui ao virtual uma posição estratéum tempo imóvel. O leitor um o defensor de gica, pois se mantém então prisioneiro de uma pouco acostumado a ler Deleuze ficará estupetranscendência: "É também o conceito que me 35 mais uma vez com o embuste praticado fato sepa:t_-_a__dele mais abruptamente" . Eis nosso por Badiou quando, recusando radicalmente pensador da imanência arremessado no fracasa singularidade de Deleuze e sua relação priso mais evidente de seu projeto filosófico. vilegiada com Nietzsche, o apresenta como o É sobre essa questão do virtual que cochantre do dever de memória, o defensor do meça em 1993 a troca epistolar, quando Bafardo memorial, coroando sua filosofia como diou escreve a Deleuze para lhe dizer que 33 "injunção memorial a sempre recomeçar" • essa categoria do virtual mantém uma forma Deleuze seria, portanto, um antinietzschiano! ele transcendência. "Deleuze logo reconhece O cenário dessa disputatio opõe o mestre da que nos encontrávamos ali no cerne de nossa Verdade e do acontecimento que seria Badiou controvérsia'':-16• Em sua resposta, Deleuze inao defensor da tradição memorial e do culto siste sobre a realidade do virtual. A partir dos do Falso que seria Deleuze. Como bom maargumentos trocados nessa correspondência, oísta, Badiou permaneceu fiel à lógica da deBadiou procede a uma inversão espantosa. puração, à tábua rasa do passado contra aqueApoiando-se no fato de Deleuze afirmar que a les que, ainda em um livro recente, qualifica indizibilidade dos lances de dados permanece 39 como "renegados" • ligada a um único e mesmo lançador, Badiou Nesse retrato-caricatura, nenhum leitor opõe sua concepção da irredutibilidade de sério de Deleuze pode encontrar qualquer secada um dos lances de dados, toda vez diferenmelhança que seja. Uma tal manobra de defortes no plano ontológico. Badiou tira daí a lição mação-recuperação é singularmente violenta, de que ele próprio se encontra no campo da mais ainda que uma polêmica frontal. Os dedefesa do múltiplo, do acontecimento como leuzianos não se deixaram enganar. Reagiram ruptura, enquanto que Deleuze se encontraria a esse retrato de um pseudo~Deleuze por trás do lado do Uno, do contínuo, do eterno retorno do qual se reconhece sem margem de erro um do mesmo: "Para Deleuze, o acaso é o jogo do Badiou-Badiou. A réplica mais áspera veio de Todo, sempre re-jogado tal e qual. Para mim, 37 Arnaud Villani, grande conhecedor da obra de há multiplicid&de (e raridade) dos acasos" . crático e vê como prova disso desprezo dele

Deleuze, que contesta o próprio procedimento de Badiou, que consiste em pretender discutir teses de um outro filósofo sem precisar levar 10 em conta o que ele efetivamente pensou' • Segundo Villani, Badiou pressupõe em De41 leuze uma "desonestidade inata" , na medida em que teria cultivado conscientemente a ambiguidade para poder manipular melhor e para não desencantar seus discípulos. Em um dossiê da revista Futur Antérieur, Villani contesta violentamente a imagem de um Deleuze filósofO fascinado pela morte. Badiou concebe um Deleuze partidário do Uno contra o múltiplo, uma forma de "filosofia de uma perna só", nos diz Villani, enquanto que, ele sua parte, Badiou, como bom discípulo de Mao, continua a caminhar sobre as duas pernas. No mesmo dossiê, o deleuziano português ]o sé Gil reage ao que qualifica como um "livro maldoso''.12, percebendo bem a lógica da demonstração implacável que vem lembrar ao leitor que lá onde Deleuze fracassou, Badiou teve êxito, e que só resta, portanto, deixar de lado as obras de Deleuze para ler melhor as de Badiou. A contrario, Gil põe em evidência o movimento endógeno do pensamento de Deleuze, suas inflexões como aquela, decisiva, segundo suas próprias palavras, quando ele constata o quase fracasso do projeto ontológico. É nesse sentido que o encontro com Guattari é capital: a partir desse momento, ele passa a trabalhar não mais nos conceitos, deixando que estes últimos se façam "irrigar e ultrapassar pelo movimento que lhes dá origem e que vem de outro lugar, e ao 41 qual eles imprimem direções e velocidades" : • No mesmo espírito que Badiou, o filósofo Guy Lardreau publica em 1999 um opúsculo com um título sugestivo, O Exercício Diferido 4 da Filosofia ·', cujo objetivo é demonstrar como Deleuze não realizou suas promessas, que encontrariam a realização em Badiou. Lardreau concebe explicitamente sua intervenção como um complemento do livro de Badiou: "Deleuze, o clamor do Ser. É o livro que permite apreender de viés a metafísica de Deleuze, pois ele 4 a apreende de frente" s. É evidente que entre Lardreau e Deleuze persiste o contencioso da

305

denúncia por Deleuze dos "novos filósofos" dos quais Lardreau faz parte, e o antigo engajamento maoísta de Lardreau. Contudo, este último pertence a uma geração marcada pelas publicações de Deleuze, a ponto de afirmar, fazendo pastiche de Engels, que "na história da filosofia, fomos todos momentaneamente 16 deleuzianos"' • Lardreau denuncia em Deleuze um tático entrista que, tal como um carrapato, vem se alojar sob a pele dos corpos filosóficos para pervertê-los do interior e se nutrir de seu san47 gue - ''A política de Deleuze foi o 'entrismo"' -e oferece como prova disso os diversos atos de obediência de Deleuze aos seus primeiros mestres, que foram Hyppolite, Alquié, Canguilhem e, através deles, à instituição acadêmica. Deleuze seria portanto um "falsário", mas Lardreau explica que um deleuziano esclarecido não pode se chocar com isso, pois seu líder mesmo teria feito o elogio do falso. Deleuze seria plenamente consciente dessas submissões sucessivas e, para melhor imp6-las a fórceps como a nova doxa a adotar, praticaria, nas palavras de Lardreau, um verdadeiro terrorismo intelectual fundado na intimidação. Se fosse possível reconhecer nele uma fidelidade, seria reduzida ao seu bergsonianismo: "Deleuze é o 18 Bergson mal escritd'' • Só o nome de Bergson já seria suficiente para desqualificar seu homem e remetê-lo às esferas de um velho espiritualismo e da defesa da ordem estabelecida: "Ele só se interessou pelas doutrinas que se prendem à ordem das coisas"'19• Portanto, o cenário está montado em vantagem do materialismo dialético de Badiou contra o espiritualismo do falso moderno Deleuze. Em 1977, Jean Baudrillard publica Esquecer Foucault, um ataque que tem como alvo o autor de As Palavras e as Coisas, mas também o traba50 lho de Deleuze-Guattari • Baudrillard denuncia esses pensadores do desejo como defensores da ordem estabelecida sedentos de poder. Eles seriam prisioneiros como Narciso ela fascinação exercida por sua própria imagem, e Foucault, por sua trilogia saber-poder-prazer, é que teria assim "contribuído para estabelecer um poder

Gi!les Deleuze & Félix Guattari

Dosse

306

que seja da ordem, da mesma ordem de funcionamento que o desejo, assim como Deleuze terá estabelecido um desejo que seja da ordem dos futuros poderes. Essa colusão é perfeita demais para não ser suspeita''s 1_ Baudrillard ataca frontalmente as teses de O Anti-Édipo vendo ali uma tentativa inútil de salvar o marxismo assim como a psicanálise. A crítica edipiana da psicanálise não faria senão exaltar as formas mais extremas da axiomática do desejo. Quanto à defesa da "produtividade" e das "máquinas desejantes", ela retrocederia aos "axiomas de52 purados do marxismo e da psicanálise" • Para Baudrillard, ao contrário, não há lógica no simulacro a não ser circulatória, a produção e o poder são apenas engodo: "Escapa a Foucault 53 que o poder está rebentando' •

Os novos filósofos: "um trabalho de porco" Õ ano de 1977 é também, e sobretudo, o momento do grande confronto com os "novos filósofos". Estes últimos utilizarão maciçamente a mídia para representar diante do grande público uma peça meio trágica, meio cômica que equivale a se libertar de seu engajamento maoísta da Esquerda Proletária. A escatologia revolucionária agoniza, e é o momento em que toda uma geração, em um mesmo elã, rejeita seu passado "sessentoitista" e passa ao confessional para aliviar seus pecados: "Essas crianças mimadas, esses garotões retardados queriam a revolução de imediato, não! Ela não veio, e então eles batem o pé. [... ] Pobres gati54 nhos perdidos" , condoi-se o jornalista Pierre Viansson-Ponté. Esses adoradores de Mao, André Glucksmann, Christianjambet, Guy Lardreau, Bernard-Henri Lévy e muitos outros, líderes da adesão mística do Grande Timoneiro, descobrem extasiados o charme discreto do liberalismo e o horror do totalitarismo, conceito que pretendem inventar, esquecendo de passagem a contribuição decisiva de uma Hannah Arendt. Em 1977, Bernard-Henri Lévy publica uma obra que se t"rna de imediato um best-selier, ~.,

tamanha é sua correspondência com o espírito do tempo, A Barbárie de Rosto Humano. Ali ele denuncia o Maio de 68, que se tornou a imagem do Mal ocultando o Mestre. Ele vê no movimento de Maio de 68 o crepúsculo des-botado e banal de nosso século XX: "Vivemos o fim da história porque vivemos na órbita 55 do capitalismo continuadd' Nesse panfleto, Bernard-Henri Lévy ataca de forma virulenta, entre outros, Deleuze e Guattari, considerados mais uma vez como expressões de um fascismo ordinário, "figuras da barbárie". Assimilando abusivamente sua filosofia a uma ideologia do desejo, ele denuncia ali uma nova maneira de ser bárbaro: "Eles são bem conhecidos, es- · ses cavaleiros da alegre figura, apóstolos do desvio e chantres do múltiplo, terrivelmente antimarxistas e prazenteiramente iconoclastas ... Eles têm seus timoneiros, esses marujos da moderna nave dos loucos, São Gilles e São Félix, pastores da grande família e autores de 56 O Anti-Édipo" • Fazer do fascismo uma questão de libido na superfície do corpo social ao sabor das flutuações de relações de força faz parte dessa "barbárie de rosto humano" estigmatizada por Bernard-Henri Lévy. O veredicto é inapelável: "A ideologia do desejo é uma figura de barbárie no sentido muito rigoroso em que 57 o defini" . Esse libelo é trazido por um belo jovem de camisa branca desabotoada. Aquele que se tornou rapidamente uma marca, "BHL'', é a coqueluche de Françoise Verny"' e faz a alegria dela à altura das tiragens de suas obras. Queri~ dinho do editor Grasset, é ovacionado por um público leitor imponente e ávido de autoflagelação pelos erros passados. O resto é questão de marketing e de rede, que permite passar sem transição dos palcos da televisão aos dossi és de imprensa e vice-versa. Para Deleuze e Guattari, essa agitação é mais coisa de circo do que especulação filosófica. Portanto, presta-se mais a sorrir. Entre~

"N. de T.: Editora que se notabilizou como grande desco· bridora de talentos. Foi considerada durante décadas a rainha da edição francesa.

tanto, quando 11ichel Foucault se envolve nisso, fazendo-se advogado dos "novos filósofos", não é mais possível manter o silêncio. É de fato Foucault quem faz a apologia da obra de Glucksmann, Os lV!estres Pensadores, em Le Nouvel 8 Observateul . Ele saúda ali um dos "grandes livros de filosofia". Segundo ele, Glucksmann "faz surgir no cerne do mais elevado discurso filosófico esses desertores, essas vítimas, esses irredutíveis, esses dissidentes sempre empertigados- em suma, essas 'cabeças ensanguentadas' e outras formas brancas que Hegel queria apagar da noite do mundo'". Com a bênção do verdadeiro filósofo que é Foucault e que Deleuze tem em alta estima, o caso se torna sério e requer uma resposta imediata. Sem nenhuma combinação com Deleuze e Guattari, dois jovens filósofos, François Aubral e Xavier Delcourt, se apressam em lançar uma pequena antologia crítica denunciando 60 a "nova filosofia" • A assessora de imprensa da editora Gallimard, Paule Neuvéglise, busca uma ocasião de promover Aubral antes de uma aparição temida no programa de Bernard Pivot, Apostrophes. Ela consegue que ele seja um dos debatedores escolhidos para interpelar Philippe Sollers no programa L'Homme en Question. O que Aubral executa de maneira bem direta: "Philippe Sollers, o senhor foi maoísta, papista, feminista, anti feminista. O senhor foi quase tudo. O que o senhor é de fato?". Deleuze fora informado por seu amigo François Châtelet de que seria publicado um opúsculo polêmico sobre os "novos filósofos" e fica feliz ao saber do tom pouco respeitoso de François Aubral na televisão. Ele pede para encontrá-lo e convida para um jantar os dois autores do livro a ser lançado: "Passamos en~ tão uma noite na casa de Deleuze, fascinados, e Deleuze se transformou em grande feiticeiro em relação a essa história dos novos filósofos"61. François Aubral e Xavier Delcourt começam por manifestar sua surpresa diante do silêncio de personalidades como Deleuze e Châtelet. Eles dizem a Deleuze que bastariam algumas palavras de sua parte, um pequeno artigo, para reduzi-los a nada: 'Nl! Sim, ele nos

307

diz, mas você compreende ... Teriam dito que esse velho está com inveja dos jovens. E eu não quero falar na mídia. Você sabe que eu não sou 62 disso, não é meu estílo'' • Deleuze prossegue se perguntando o que poderia fazer, como poderia intervir: ''A gente está então em uma situação de samizdat.'~ Somos minoritários. Preciso explicar a vocês quem são esses tipos. Esses tipos estão sempre 63 do lado do poder, aconteça o que acontecer" • Ao longo da noite, Deleuze considera várias hipóteses com seus convidados. Pensa principalmente em um pequeno livro que seria escrito por ele mesmo e prefaciado por Aubral e Delcourt, mas essa proposta parece hilária. Ao final do encontro, Deleuze deseja muita coragem aos seus convidados e os previne do que os espera: "Foi o que aconteceu, pois eu não conhecia o tribuno Glucksmann, mas quando no estúdio de televisão abordei um tema intelectual, ele joga na sua cara os campos de concen61 tração, os poloneses ... e você está acabado'' ' • Deleuze se convence de que o melhor é recorrer ajérôme Lindon da editora lv:linuit. Pensa, então, em escrever algumas folhas em forma de plaqueta, e como não se trata de ganhar dinheiro com isso, pede a Lindon que distribua gratuitamente esse fascículo em todas as livrarias, recomendando-lhes que o coloquem à disposição dos clientes perto do caixa. Dito e feito. Jérôme Lindon concorda e tudo deve ser mantido em segredo. Contudo, algumas indiscrições chegam ao Le J11onde, que imediatamente publica o texto em sua página "Jdeias" de 19-21 de junho de 1977. Nesse ínterim, a plaqueta é disputada nas livrarias. Datado de 5 de junho de 1977, o texto de Deleuze é apresentado em forma de entrevista. A uma situação excepcional, uma reação excepcional, pois Deleuze viola seu princípio de jamais perder tempo polemizando para não parasitar sua força de afirmação. Na ocasião, ele se mostra mordaz, consciente do perigo

'"'N. de R. T.: A Samizdat era uma atividade-chave da dissidência russa para publícação e distribuição de textos secretos.

308

Gilles Deleuze & Félix Guattari

François Dosse

que esses filósofos de araque impõem ao próprio pensamento. Diante da pergunta: "O que você acha dos 'novos filósofos'?", Deleuze res-

ponde secamente: "Nada. Creio que seu pensamento é nulo. Vejo duas razões possíveis para essa nulidade. Primeiro, eles procedem por grandes conceitos, tão grandes quanto dentes ocos. A lei, O poder, O mestre, O mundo, A rebelião, A fé, etc. Com isso eles podem fazer misturas grotescas, dualismos sumários, a lei e o rebelde, o poder e o anjo. Ao mesmo tempo, quanto mais fraco é o conteúdo do pensamento, mais o pensador ganha importância, mais o sujeito de enunciação se dá importância em 65 relação aos enunciados vazios" . Deleuze explica que o que mudou na situação e permitiu sua intervenção foi a publicação do "belo livro tônico" de Aubral e Delcourt. A gravidade desse caso, segundo Deleuze,

não ser sério e que esse falso pensamento deve sua sedução à ilusão de que se pode dispensar todo o trabalho de complexiflcação, de ajuste de conceítos finos para evitar esse tipo de dilemas dualistas e simplificadores: "Eles destroem o trabalho", comenta, em particular o que empreendeu com Guattari. Então, é hora de pôr as coisas de novo no lugar, e Deleuze identifica no fenômeno "novos filósofos" um casting particular, uma minuciosa distribuição 66 dos papéis • A novidade do fenômeno está na introdução de regras do marketing no campo da filosofia, e é preciso pensar nisso, como diz Deleuze. Na origem do triunfo dos "novos filósofos", Deleuze encontra duas razões principais. De um lado, a inversão da relação entre o jornalis~ mo e a criação intelectual. É o ato jornalístico que faz o acontecimento, e isto conduz, quando não se dá mais tempo para o pensamento se desenvolver, a um "pensamento de minuto''. Em segundo lugar, o que anima esses escamoteadores é o ódio de 1968: "Era a quem mais insultava Maio de 68 ... Um rancor de 1968, eles só 67 tem isso para vender • Aproxima-se o aniversário, o dos dez anos de Maio, e toda uma parte dessa geração,se deleita na negação de suas esperanças frusfradas em nome do fracasso

das rupturas revolucionárias. Lá ainda se enContra um sentimento profundo expressado por Deleuze em sua rejeição desses "novos filósofos", seu companheirismo com uma cultura de morte: "O que me aborrece é muito simples: os novos filósofos fazem uma martirologia, o Gulag e as vítimas da história. Eles vivem de cadáveres ... Foi preciso que as vítimas pensassem e vivessem de uma maneira bem diferente para dar matéria àqueles que choram em seu nome e dão lições em seu nome. Aqueles que arriscam sua vida pensam geralmente em termos de vida, e não de morte, de amargura e de vaidade mórbida; os resistentes são antes 68 grandes viventes" • Deleuze convida a um hino à vida em face dos perigos mortais que ameaçam varrer séculos de esforço de pensamento. Enquanto todo projeto de Deleuze e Guattari pretende deixar que o ar circule, os novos filósofos "reconstituíram um espaço sufocante, asfixiante, por onde passa pouco ar. É a negação de toda política e de toda experimentação. Em suma, o que critico neles é o fato de fazerem um tra69 balho de porco" •

Notas L Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, Rhizome,

Mnuit, Paris,1976. 2. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, K, p. 7-8 3. Anne SAUVAGNARGUES, Deleuze et l'art, op. cit., p.l20.

Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, Rhizome, op. cit., p. 15. 5. Ibid., p. 17.

4.

6. Ibid., p. 18. 7. Gilles DELEUZE, "Réponses à une séde de questions", em André V1LLANI. La Guêpe et l'Orchidée, op. cit., p. 131. 8. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI. R, p. 24. 9. lbid., p. 27. 10. Ibid., p. 63. 11. Ver Anne SAUVAGNARGUES, De/euze et /'art. op. cit., p. 181-183. 12. Alain BADIOU, "Le f1ux et le parti", Cahier Yénan, n. 4, Maspero, 1977, p. 26.

!3. Ibid., p. 38. 14. Ibid., p. 40-41.

15. Georges PEYROL. "Le fascisme de la pomme ele terre", ibid., p. 43.

16. I 7. 18. 19.

43. Ibid., p. 77. 44. Guy LARDREAU, L'Exercice différé de la philosophie. À l'occasion de Deleuze, Verdier, Paris, 1999. 45. !bid., p. 60, nota 7.

Ibid.. p. 44.

46. !bid., p. 15.

Ibid., p. 50. lbid., p. 51-52. Alain BAD.IOU, Deleuze. La clameur de L'fl:tre, Hachette, Paris, 1997, p. 8.

47. Ibid., p. 44.

20. Palavras reportadas por Alain Roger, entrevista com o autor. 21. Palavras reportadas por Philippe Mengue, entrevista com o autor.

22. Ibid. 23. Alain BADIOU, Deleuze. La clameur de l'Être,

op.cit. 24. Ibid., p. 12.

25. lbid., p. 19-20. 26. Gilles DELEUZE, DR, p. 389. 27. Alain BADJOU, Deleuze. La ciameur de l'Être, op.cit., p. 22.

28. Gilles DELEUZE, LS, p. 309. 29. Ibid. 30. Alain BADIOU, Deleuze. La clameur de l'Être, op.cit., p. 24. 31. Gilles DELEUZE, PP, p. 196. 32. Alain BADIOU, Deleuze. La ciarneur de L'Ê'tre, op.cit., p. 24. 33. Gi!les Deleuze, aula na universidade de Paris-VIII, 27 de maio de 1980. 34. Alain BADIOU, Deleuze. La clameur de l'Être, op.cit., p. 26. 35. lbid., p. 69.

36. lbid., p. 70. 37. lbid., p. 115. 38. Ibid., p. 98. 39. Alain BADIOU, Le Si6cle, Seuil, Paris, 2005. 40. "Sem isso, não é 'golpe duplo', Badiou sobre Deleuze, mas desdobramento, Badiou sobre Badiou" (Arnaud VILLANI, "La métaphysique de Deleuze", Futur antérieur, n. 43, abril de 1998, p. 56). 4 L lbid., p. 56. 42. José GIL, "Quatre méchantes notes sur un livre méchant", Futur antérieur, n. 43, p. 71-84.

309

48. Ibid., p. 62. 49. Ibid., p. 63. 50. Jean BAUDRJLLARD, OublierFoucault, Galilée, Paris, 1977. 51. lbid., p. 24. 52. Ibid., p. 37. 53. lbid., p. 54. 54. Pierre VIANSSON-PONTÉ, prefacio aJ PAU-

GA.t\!1, Génération perdue, Laffont, Paris, 1977, p. 15-16. 55. Bernard-Henri LEVY, La Barbarie à visage hu~ main, Grasset, Paris, 1977.

56. lbid, p. 20. 57. lbid., p. 140. 58. Michel FOUCAULT, "La grande colére des faits", Le Nouvel Observaleur, 9-15 de maio de 1977, p. 84-86. 59. Ibid. 60. François AUBRAL, Xavier DELCOURT, Contre la nouvelle philosophie, Gallimard, Paris, 1977. 61. François Aubral, entrevista com o autor. 62. Gilles Deleuze, palavras reportadas por François Aubral, entrevista com o autor. 63. Ibid. 64. François Aubral, entrevista com o autor. 65. Gilles DELEUZE, ''Ã. propos des nouveaux philosophes et d'un problême plus général", Supplément à la revue Minuit, n. 24, maio de 1977; reproduzido em RF, p. 127. 66. "Há algo de Dr. Mabuse em Clavel, um Dr. Mabuse evangélico, e ]ambet e Lardreau são Sp6ri e Pesch, os dois ajudantes de Mabuse (eles querem ''pegar Nietzsche pelo colarinho"). Benoist é o corcel, é Nestor. Lévy é ora o empresário, ora a script-girl, ora o alegre animador, ora o disc-jockey.. :· (Ibid. e RF, p.l29). 67. Ibid., p.I3L 68. Ibid., p. 132. 69. Ibid., p. 133.

III SOBREDOBRAS: BIOGRAFIAS PARALELAS

21 Guattari entre ação cultural e ecologia

Um certo mês de maio de 1981, a esperança há muito tempo refreada, a vontade de "mudar de vid'i' pela política parece enflm encarnar-se em Françoís lvlitterrand, que representa a esquerda desde 1965 e já figura como o único capaz de fazer frente ao general de Gaulle. O elã de Maio de 68, que se acreditava ter sido interrompido pela vitória gaullista nas eleições legislativas de 30 de junho de 1968, encontra flnalmente um prolongamento político. É preciso dizer que desde o pós-guerra a esquerda não frequentava mais as alamedas do poder. Essa ruptura política que põe um termo a uma ocupação do poder pela direita sem partilha, sem alternância, provoca imediatamente uma grande onda de entusiasmo no país. Deleuze e Guattari também estão enlevados por essa atmosfera de euforia política. Deleuze vai à cerimônia de posse do novo presidente Mitterrand no Panthéon, em 21 de maio de 1981, e participa do júbilo geral. Quanto a Guattari, felicita-se com a nomeação do novo ministro da Cultura: ]ack Lang já mostrou sua proximidade com os artistas e seu desejo de realizar profundas transformações nas práticas culturais. Guattari inclusive publica, em 1983, um artigo quase apologético para defender ]ack Lang contra as campanhas de difa-

mação a que é submetido: "Enfim, ]ack Lang veio .. :>~. Guattari expressa seu encantamento com um estilo que rompe com as convenções por seu sentido da escuta, por seus acessos de entusiasmo, por seu aspecto tão pouco protocolar: "Contra qualquer verossimilhança, acusa-se Jack Lang de trabalhar por uma estatização da cultura, do tipo daquela que grassou nos países do Leste. Curioso Jdanov, na verdade, que encoraja as iniciativas mais diversas, 2 às vezes as mais surpreendentes" • Jack Lang tomou decisões originais, como a de instituir a Festa da Música, que de imediato alcançou um sucesso espetacular. Além disso, um dos maiores combates de Guattari, a liberação das ondas, saiu vitorioso graças a maio de 1981.

As alamedas do poder Guattari representa junto a Jack Lang o papel de uma caixa de ideias: "Gostaríamos igualmente de lhe falar de um tema particularmente caro a nós: a criação de uma quarta rede de televisão cultural, consagrada à criação, à experimentação de pesquisa", escre3 ve-lhe Guattari já no mês de agosto de 1981 . Em fevereiro de 1982, Guattari sugere a Jack

314

Desse

Gilles Oeleuze & Félix Guattari

Lang a criação de uma fundação para inicia~ tivas locais, inovações institucionais, pesquisa ativa em ciências sociais, animação e pesquisa culturaL O ministro a encaminha ao seu assistente Dupavillon com o seguinte comentário: "Seria preciso ajudá-los ... é muito importante". A ideia de Guattari é que a descentralização

em curso corre o risco de virar letra morta se for reduzida a uma simples transferência de poder. Daí a ideia de criar um terceiro setor

"que se interponha entre o mercado capita1

lista e os sistemas de controle estatais"' • jack Lang apeia o projeto e consegue um encontro de uma importante delegação comandada por Guattari com o "conselheiro em chefe" de François Mitterrand, Jacques Attali, no Élysée.

A sigla provisória adotada por essa instituição é FJRC, de Fondation Innovation Recherche Création. Guattari multiplica as diligências

nos círculos governamentais para aprovar esse projeto e consef,rue entrevistas com Éric Arnoult, Ségolime Royal, sem que isso leve verdadeirâmente a algo de concreto. Ele chega a

se encontrar com o secretário-geral da Presidência da República, Jean-Louis Bianco, para

que a iniciativa avance, sugerindo-lhe a ideia de ligar essa fundação a um ministério sólido. Enquanto Guattari se ocupa ativamente do centenário de Kafka e ao mesmo tempo presta alguns serviços discretos, como a redação do discurso de Mitterrand sobre a cultura na Sorbonne, Jack Lang o distingue com o título de comendador das Artes e das Letras em janeiro de 1983: "Pouco sensível às marcas de mérito e menos ainda apto a julgá-las, eu a recebo de 5 sua parte como uma marca de amizade" • Ao longo dos anos de 1980, a cumplicidade entre Lang e Guattari os torna mais próximos. Lang inclusive se desloca a La Borde, convidado por Guattari, que o ajuda a encontrar uma casa na região de Blois: "Obrigado ainda por sua acolhida em Loir-et-Cher. Foi magnífico" 6 Em 1984, em plena preparação da exposição de Kafka, Guattari é convidado para almoçar

com Lang no ministério. Antes desse almoço, Guattari escreve a Lang a fim de fazer um

balanço sobre

dS projetqs em andamento, a

maioria em suspenso. É um verdadeiro fogo de artifício: Lang possibilita a Guattari entradas em alguns ministérios. Em 1986, consegue um encontro dele com a ministra de Assuntos Sociais e da Solidariedade Nacional, Georgina Dufoix. Em 1991, propõe ao primeiro-ministro Michel Rocard a nomeação de Guattari para o Conselho Econômico e Social. No final dos anos de 1980, Guattari sugere a Lang uma exposição universal para 1989, ano do bicentenário da Revolução Francesa, sobre o tema "Encontro do Quinto Mundo", que seria um grande encontro internacional de representantes de minorias tribais e nômades vindas tanto do Alasca quanto ela Amazônia, tanto da China quanto do Saara, assim como ciganos de diversos países. O objetivo desse encontro seria não apenas fazer justiça a povos oprimi-

dos, perseguidos, mas também reconhecer sua contribuição à cultura mundial. Apesar do co~ mentário muito positivo de Jack Lang- "Esse projeto é apaixonante. Nosso amigo Guattari 7 tem muitas ideias" - o clima político de 1989 se presta pouco a esse gênero de manifestações, e o projeto não vai adiante. Entretanto, por meio de seu amigo Jean-Pierre Faye, muito ligado aos dirigentes socialistas, Guattari dispõe de uma porta de acesso à alta cúpula do poder do Estado. Assim, é convidado à mesa do presidente Mitterrand: "Félix tomou a palavra para defender Lang, pois Lang nada mais era que um ministro delegado, relegado a um subministério. De forma muito corajosa, partindo para o ataque, meu pequeno Félix toma a palavra e diz ao presidente: 'O senhor deveria conceder à cultu8 ra a plenitude de seus direitos"' . Guattari também se engajou, estimulado por Faye, na implantação de um colégio internacional de filosofia. A ideia veio do impasse em que se encontra o departamento de filoso~ fia da universidade de Paris-Vlll, que em 1980 se mudou de Vincennes para Saint-Denis e cujos diplomas não são reconhecidos no plano nacionae: "Se você encontrar Altali, fale já alguma coisa do projeto de um eventual 'Colégio FilosóficO, cuja alma vincenniana seriam Gilles Deleuze e Félix Guattari..., onde não seria

impossível convidar personalidades estrangeiras, ou não universitários, para fazer semi10 nários de curta ou longa duração" • Quando Jean-Pierre Chevênement é nomeado ministro da Educação Nacional, Faye reapresenta seu projeto e recebe uma acolhida favorável do ministro, que o encarrega de organizar um almoço. Esse almoço reúne]ean-Pierre Chevenement, Jean-Pierre Faye, François Châte]et, Jacques Derrida e Dominique Lecourt, e dele resultará a criação do Colégio Internacional de Filosofia, cuja responsabilidade ficará a cargo de Jacques Derrida. Quanto a Faye, é nomeado para a direção do 'Alto Conselhô' do colégio, onde terá ao seu lado Guattari e algumas su~ midades, como René Thom, Vladimir Jankélévitch, Jlya Prigogine e lsabelle Stenghers. Logo se constata que o verdadeiro centro de poder está nas mãos de Derrida. O conflito é inevitável, tendo em vista que o Alto Conselho, com seu nome pomposo, não dispõe de meios financeiros e, portanto, depende totalmente de quem detém as chaves do cofre.

Relações tumultuadas Apesar de toda essa efervescência, a relação de Guattari com o poder socialista ao longo dos anos 1980 não está livre de sombras, crises, explosões diversas e rupturas irreversíveis. Guattari se reconhece cada vez menos na política conduzida pelo governo socialista, e as ocasiões de manifestar suas discordâncias se multiplicam, o que explica em grande medida por que vários de seus projetos caem no esquecimento. No outono de 1984, a política de acordo dos governos francês e espanhol para extraditar os nacionalistas bascos do ETA na Espanha provoca a indignação de Guattari, que se abre primeiramente com Jack Lang: "Estou ulcerado com essas extradições e expulsões. Ainda não consigo acreditar que os soM cialistas franceses tenham chegado a isso! Sei que você não tem nenhuma responsabilidade direta nesse caso, e é fácil imaginar qual é seu sentimento íntimo. Mas as coisas do jeito que

315

estão, acho que não é mais possível manter a relação 'pública' que tínhamos antes. Creia que lamento sinceramente e conservo toda minha 11 amizade por você'' • Guattari não se limita a recriminações pessoais e privadas. Assume publicamente a ofensiva e assina junto com Deleuze e Châtelet uma carta aberta enviada a François Mitterrand, ao primeiro secretário elo PS, Lionel]ospin, e ao primeiro-ministro, Laurent Fabius, "por um direito de asilo político 2 uno e indivisível", que aparece no Le Mondet • Em 1983, Max Gallo, então porta-voz do governo, queixa~se publicamente do silêncio ensurdecedor dos intelectuais de esquerda que não levantam um dedinho para defender a política seguida pelos socialistas. Essa crítica enunciada no mais alto escalão suscita uma ampla tomada de palavra sobre o papel dos intelectuais e suas relações com os decisores. A controvérsia é particularmente intensa. Jean François Lyotard diagnostica o aparecimento 3 de um "túmulo de intelectuais"t , e Maurice Blanchot deixa de lado sua reserva costumeira para alertar contra a ideia de um repouso eterno dos intelectuais". É no quadro desse amplo debate público que Guattari intervém, irritado com esse questionamento, ao mesmo tempo para estigmatizar a intervenção de Max Gallo, qualificada de "homilia sobre o enfraquecimento cerebral dos intelectuais de esquerda", e para contestar a própria pertinência da ideia segundo a qual os intelectuais deveriam se erigir em porta-vozes naturais. Ainda nesse final do ano de 1983, Guattari se preocupa com o ressurgimento do racismo e, também nesse caso, exige uma reação dos responsáveis políticos: "Cada um tem o racismo que merece. Não é natural, após o 10 de maio, que se assista à manutenção do estado de coisas. Assim, a incapacidade do governo socialista de mudar a natureza do tecido social provo15 Cou insensivelmente a retomada do racismo" • Segundo ele, é apostando em um terceiro setor, o do mundo associativo, que se poderá superar a fraqueza moral e os medos que alimentam a rejeição ao outro. Por ocasião do êxito espetacular da Frente Nacional nas eleições euro-

Gi!!es Deleuze & Félix Guattari

316

peias de 17 de junho de 1984, Guattari reafirma suas críticas em face dos socialistas que estão perdidos por não se engajarem firmemente em uma política de mudança. Diz que são força-

dos a seguir a via de um "compromisso absurdo com a direita no terreno da segurança, da austeridade e do conservadorismo. Enquanto ela [a esquerda socialista] poderia ter conseguido

todos os sacrifícios necessários, no plano econ6mico, para fazer face à crise e às requalificações profissionais se tivesse contribuído efetivamente para o agenciamento de novos modos coletivos de enunciação, deixou que a esperança se perdesse de novo, que o corporativismo se reafirmasse, que as velhas perversões fascisti16 zantes voltassem a ganhar terreno" • No início dos anos de 1980, o CJNEL se encarrega de algumas ações que permitem manifestar concretamente sua solidariedade internacional. Lança um apelo à opinião públi~ ca internacional para apoiar a causa da Frente Sandinista na Nicarágua contra a ditadura de Somoza. A sede do Centro é nada menos que o domicílio de Guattari, no número 9 da Rue de Condé. Em 26 de março de 1985, Guattari participa de um congresso internacional sobre "os direitos coletivos das nacionalidades minoritárias na Europà' em Bilbao, na Espanha, Condena o desprezo com que se trata essa questão considerada obsoleta no momento em que ultrapassa o âmbito nacional. Disso resulta que algumas minorias se tornam os abandonados da história, e Guattari cita entre outros "os palestinos, os armênios, os bascos, os irlandeses, os corsos, os lituanos, os uigures, os ciganos, os índios, os aborígines da Austrálià' 17 • Guattari vê nessas expressões particulares uma forma de singularidade que se deve preservar no momento da uniformização generalizada, recusando-se a considerá-las isolados culturais e linguísticos.

A revolução ecológica Nos anos de 1980, Guattari se engaja principalmente noS,''movimentos ecológicos. Antes

de alcançar uma primeira conquista eleitoral em 1981, o movimento ecologista conseguira estruturar grandes mobilizações nos anos 1970, sobretudo no terreno da contestação nuclear. Pierre Fournier, que organizou a primeira grande manifestação ecologista na França, reunindo cerca de 15 mil pessoas em outubro de 1971, havia lançado, no seu impulso, o jornal La Gueulle Ouverte, em novembro de 1972, Uma seção francesa dos Amigos da Terra se constitui em 1971 por iniciativa de A!ain Hervé, movimento logo dominado por Erice Lalonde, que encarnou um herdeiro, 0 18 dos "filhos de Maio de 68" . Pela primeira vez em 1974, por ocasião da eleição presidencial, a voz da ecologia se faz ouvir com o presidente de honra dos Amigos da Terra, Renê Dumont, que obtém em seu nome 1,32% dos votos. Em julho de 1977, em Creys-Malville, uma gigantesca manifestação de protesto contra a construção do reator Super-Fênix reú'ne 40 mil pessoas, apesar de proibida pela autoridade policiaL O caso acaba mal: a polícia ataca, e o resultado é um morto e cerca de 50 feridos entre os manifestantes. Tendo demonstrado sua capacidade de mobilização social, os ecologistas se apresentam na eleição presidencial de maio de 1981. Brice Lalonde conquista3,9% dos votos, ou seja, mais de 1 milhão de eleitores. Após essas eleições, Lalonde organiza essa sensibilidade à causa na Confederação Ecologista, que privilegia a forma associativa e as iniciativas descentralizadas. Em novembro de 1984, no congresso de Clichy, a Confederação Ecologista e a organização Ecologia e Sobrevivência, criada por Antoine Waechter no leste da França, se fundem para dar origem aos "Verdes", que, nesse embalo, obtêm 3,4% dos sufrágios nas eleições europeias do final do ano. Contudo, a organização é prejudicada internamente por clivagens políticas impor..: tantes entre a tendência de esquerda, representada por Didier Anger e Yves Cochet, e a ala direita, comandada por Jean Briere e Antoine Waechter. Nesse clima, Félix Guattari abre pas' sagem e adere aos Verdes em 1985, Esse é o ano do caso Rainbow Warrior, navio do Greenpeace

afundado pelos serviços secretos franceses em Auckland, na Nova Zelândia, em lO de julho. Jean Chesneaux, que mais tarde se tornou presidente de honra do Greenpeace França, constitui junto com outros um pequeno coletivo de protesto, "Não afunde meu navio", e organiza uma manifestação de protesto em navio com apoio do prefeito de Conflans-Sainte-Honorine, Michel Rocard: "Havíamos negociado um navio da prefeitura no qual fizemos uma manifestação no Sena, e imaginávamos ingenuamente que haveria centenas de navios com bandeirolas antinucleares. Eram apenas cinco. »19 . E Guattan estava presente . Guattari encontra nos ecologistas um meio receptivo ao mesmo tempo ao seu engajamento em favor de uma transformação profunda da sociedade e à sua crítica da política adotada pela esquerda no poder. Evidentemente, ele se alinha de imediato com a ala esquerda, alternativa dos "Verdes". Após o grande movimento de contestação estudantil de 1986 e a saída de um pequeno grupo de militantes de 20 um PSU que não para de agonizar , é lançado um apelo por um ''Arco-Íris" em favor do agrupamento de um polo alternativo aos partidos da esquerda tradicionaL A iniciativa é apoiada simultaneamente por René Dumont e Daniel Cohn-Bendit. Guattari assina o documento junto com líderes Verdes, como Didier Anger, Yves Cochet e Dominique Voynet, mas também não Verdes, como Alain Lipietz e alguns militantes do PSU O modelo é o movimento, muito forte na época, dos Verdes alemães, os Grünen, que conseguiram criar verdadeiros enclaves associativos no seio da sociedade alemã e que representam uma esperança política. Os signatários do apelo por um ''Arco-Íris" querem "reunir as forças de transformação da sociedade no arco-íris de sua diversidade". O congresso do PSU de dezembro de 1986, que pensa na possibilidade de autodissolução, consultou pessoas de fora para saber a opinião delas sobre suas propostas. Guattari redige com Daniel Cohn-Bendit uma resposta às perguntas do PSU em que afirmam que é preciso "favorecer o que chamamos de uma cultura de dissenso,

317

abrindo para o aprofundamento das posições particulares e para uma ressingularização de indivíduos e de grupos humanos ... O que se deve visar não é um acordo programático que apague suas diferenças, mas um diagrama coletivo que permita articular suas práticas em benefício de cada uma delas, sem que uma se imponha sobre a outrá'21 • Encontram-se essencialmente nessa tomada de posição os vocabulários e os conceitos de Guattari. A eleição presidencial que se perfila no horizonte de 1988 ainda divide os Verdes entre uma esquerda partidária da candidatura do ex-comunista Pierre Juquin e Antoine Waechter, partidário do "nem direita, nem esquerda'. Este último propõe sua candidatura e ganha a parada, e assim assume o controle da organização e se torna o candidato oficial dos Verdes. Ele obtém 3,89% dos sufrágios contra 2,1% de Juquin. O novo primeiro-ministro, :Michel Rocard, nomeia Erice Lalonde secretário de Estado, depois ministro do Meio Ambiente. Nas eleições europeias de 1989, os ecologistas de todas as tendências em conjunto dão um grande passo: 11% dos sufrágios e 9 eleitos. Em 1989, Guattari se integra a outro grupo vinculado à sensibilidade ecológica, aquele que nasceu do Grupo dos Dez, o "Ciência e Cultura", coordenado, entre outros, por René Passet, Jacques Robin e Anne-Brigitte Kern, que se pergunta como conceber outra esquerda. Um primeiro encontro se realiza na casa de Guattari em 1989 sobre a questão da transformação informática: "Para mim, ele representava a transversalidade, e lhe digo que a gente vai lançar uma revista que deve se chamar Transversales. Ele se juntou a nós e escreveu no segundo número sobre ecosofiám. Guattari passa a fazer parte do grupo de orientação da revista: "Tivemos várias reuniões muito interessantes na casa de Sacha Goldman, com Edgar Morin, Paul Virilio, Félix Guattari, René Passet e eu"23 • Guattari incorpora essa dimensão ecológica em suas múltiplas intervenções, dando ênfase ao desequilíbrio Norte-Sul e às suas consequências catastróficas, assim como à dimensão ética do problema: "Ser responsá-

318

Dosse

vel pela responsabilidade do outro, para retomar uma frase de Emmanuel Levinas, isso não significa de modo nenhum o abandono das ilusões idealistas"24 . Em 1990, Erice Lalonde cria um polo de agrupamento que pretende se situar à esquerda do PS, Geração Ecologia, e que autoriza a dupla filiação. Algumas personalidades emprestam seu apoio a essa iniciativa, entre as quais Guattari, que, no entanto, faz parte dos Verdes. Na verdade, Guattari se envolve nas duas organizações concorrentes, insatisfeito igualmente com as práticas de Waechter e com as de Lalonde. Essa dupla tlliação não agrada os dirigentes dos Verdes, que enviam uma carta registrada a Guattari para forçá-lo a escolher e ameaçá-lo de expulsão: "Cabe a você, portanto, se quiser continuar membro dos Verdes, se desligar da Geração Ecologia. Nesse caso pedimos que nos envie cópia de sua carta de desligamento até 14 de maio, data

de nosso próximo conselho regional... Sem resposta de sua parte nessa data de 14 de maio, seremos obrigados a considerá-lo excluído de 25 fato" . Guattari reage a essa decisão arbitrária com astúcia tática. Responde que, tendo rece~ biela a carta apenas no dia 13, está impossibilitado ele tomar as providências necessárias para se colocar à disposição para a reunião do dia 14 e acrescenta: "Há muito tempo considero que os Verdes se tornaram uma organização partidária sectária, fechada em si mesma, muito mais preocupada com a atividade burocrática interna do que aberta para a vida social e para a reinvenção de novas formas de 26 militância" . Entretanto, diz também que é muito crítico a Brice Lalonde e afirma não ter nenhuma intenção de continuar participando da Geração Ecologia, mas que, "não tendo jamais aderido formalmente a essa associação, não preciso me desligar dela" 27 • No início de 1992, quando se preparam as eleições regionais, Guattari ainda se manifesta no Le Monde para dizer o quanto as querelas Waechter/Lalonde são irrelevantes diante dessa "aspiração vaga, mas significativa, de uma abertura para'Úutra coisa' ... Cabe ao mo-

Gilles Deleuze & Félix Guattari

vimento plural de ecologia política dar uma 28 expressão a essa aspiração" . Ao longo do ano de 1992, Guattari se empenha em reaproximar os militantes dos Verdes, da Geração Ecologia e de outras associações ecologistas. Após o êxito dos ecologistas nas eleições de 22 de março de 1992, ele consegue que se adote um texto comum a alguns desses militantes de organizações rivais. Deplorando o estado de divisão e as polêmicas estéreis, conclama à preparação dos estados gerais da ecologia, que teriam uma função unificadora e mobilizadora. O último dos inúmeros combates travados por Guattari foi no front da ecologia. Em suas notas manuscritas encontra-se um texto datado ele um mês antes de seu falecimento intítulado "Por uma nova democracia ecológica''2~, em que observa com satisfação que uma parcela crescente da opinião pública vê os ecologistas como os únicos a colocar de maneira inovadora as questões essenciais da época. Lamenta apenas que as duas componentes dessa corrente, sem desmerecê-las, tenham se alinhado demais ao modelo de partidos clássicos: "Parece necessário que as componentes vivas que existem no interior de cada um desses movimentos se organizem entre elas e em ligação com o movimento associativo":m. Certo dia, no flnal dos anos de 1980, Guattari convida para ir à sua casa Paul Virilio, que conheceu no comitê de apoio à candidatura Coluche. Virilio dirige na época uma coleção da editora Galilée: "Chego à casa dele. A gente discute. Havia uma grande amizade entre nós, e eu lhe digo: 'Você sabe, eu gostaria muito de publicar um livro seu em minha coleção'. Ele responde: 'Tudo bem, tem um ali na mesa, ninguém quer'. Eu o vejo e pego. Ele me pergunta se já li. Respondo que não, mas o pego'"'- É Cartografias Esquizoana/íticas, que Virilio publica pela Galilée em 1989 e que é, com toda certeza, o livro mais inacessível de Guattari, o mais sofisticado, o mais lógico. Esse livro reflete na verdade as atividades do seminário que coordenou a partir do flnal da redação de Mil Platôs, em 198032: "Trata-se um pouco dos arquivos de Guattari, e como ele publicou pouco,

seus arquivos me interessavam. Eu tinha consciência de que esse livro seria difícil de ler, mas isso não me importava muito'm. Foi por uma decisão irrefletida, um momento de entusiasmo, que ele decidiu publicar esse livro em uma coleção de prestígio. Contudo, Cartografias Esquizoanalfticas não passará facilmente e não encontrará verdadeiramente seu público:H. A esse livro já imponente por seu tamanho, Guattari pretende acrescentar um pequeno conjunto sobre a ecologia. Virilio manifesta sua discordância e propõe publicá-lo separadamente35: "Tenho o instinto das coisas que começam, e o frescor era um elemento determinante em Félix. Esse texto sobre a ecologia tinha o mesmo frescor que Rizoma'd6• O diagnóstico se revelou correto: As Três Ecologias, publicado em 1989, é um sucesso editorial. Guattari define ali o que entende por ecosofia como articulação necessária entre a dimensão política e ética de três registros, que são a questão do meio ambiente, a das relações sociais e a dimensão subjetiva. Encontra-se nele a preocupação constante de levar em conta os modos de subjetivação, articulando-os a partir de seus pontos de ancoragem. Assim, ele constata que os progressos tecnológicos permitem liberar tempo para o homem, mas se coloca a questão dos usos dessa liberação. Enfatiza também a escala de análise, que só pode ser planetária em tempos de mercado mundiaL Um novo paradigma ético-estético teria como ambição pensar os três registros, que seriam uma ecologia mental, uma ecologia social e uma ecologia ambiental. Seu método, como desde o primeiro dia, continua transversal e procura evidenciar em cada caso os vetores potenciais de subjetivação para permitir o florescimento das diversas formas de singularidade. Graças às revoluções informáticas, à eclosão das biotecnologias, "novas modalidades de subjetivação estão prestes a ver a luz 37 do dia" • Guattari evita tanto o discurso catastrofista quanto o da lamentação. Ao contrário, ele se felicita com as obras por vir e com o clia em que haverá cada vez menos necessidade de apelar à inteligência e à iniciativa humana.

319

É isso que motiva seu fascínio pelo Japão que

soube "enxertar indústrias de ponta em uma subjetividade coletiva e ao mesmo tempo preservar ligações com um passado às vezes muito longínquo (remontando ao xinto-budismo para o japãoY:1R. É essa tensão que deve ser pensada pela nova disciplina que Guattari tanto almeja e que chama de "ecosofla". Essas teses expostas em As Três Ecologias aparecem em 1989 em um contexto em que o meio ecologista está dividido entre, de um lado, os partidários da defesa elo ambiente natural, com sua tentação conservadora que se destaca do progresso técnico, e, de outro lado, os que dão um conteúdo político ao seu engajamento: "O que me interessou foi que era uma das primeiras vezes que Félix descrevia as três ecologias, ou seja, verdadeiramente o papel do ser humano em uma natureza com a qual é preciso tentar realizar uma coevolução"39• O editor e amigo de Guattari, Paul Virilio, também ficou muito entusiasmado com esse livro: "O que importa é o fato de que a ecologia é muito mais que a ecologia. A ecologia é a ciência do futuro. Não se poderá passar sem ela. Eis o que será a ecologia: a coerência buscada entre a economia no sentido complexo do termo e a economia no sentido ecológico. Os dois níveis vão se fundir, estou totalmente seguro disso, e Félix também"'10• Em A Nova Ordem Ecológica, publicado em 1992, Luc Ferry lança um ataque violento contra a ecologia política. Ele tenta reduzir as proposições de Guattari a uma concepção fundamentalista e ultraesquerdista da ecologia, que não daria lugar aos direitos do homem, ao espaço público de discussão e às instituições republicanas. Não temendo um amálgama, Ferry pretende desacreditar o adversário, no caso aqui as teses de Guattari sobre a ecologia, estabelecendo uma filiação com o redator das leis nazistas sobre a proteção da natureza. Walther Schoenichen: "Para Guattari, como para Schoenichen, a cultura é uma realidade ontológica, não uma abstração: ela se inscre41 ve no ser dos homens" • Trata-se, da parte de Luc Ferry, de uma incompreensão total quanto

320

Dosse

ao sentido do combate ecologista de Guattari, que não cansa de insistir, em todas as oportunidades, sobre o caráter não passadista de suas proposições.

Caosmose A última obra de Guattari é Caosmose, publicada em 199242 • Félix retoma com esse título uma noção que tirou de seu autor literário preferido, Joyce, que havia inventado o termo "caosmo", já utilizado por Deleuze e ele. Com esse livro terminal, seu canto do cisne, Guattari assina sem dúvida seu texto mais legível, o mais bem acabado que havia escrito sozinho. É uma forma de testamento intelectual que lega no mesmo ano de seu falecimento. A extrema legibilidade desse livro tem a ver com um momento de cristalização e com toda a aquisição teórica e prática que ele consegue sintetizar, mas se deve também muito ao trabalho de uma aú1iga, a psicanalista Danielle Sivadon: "A gente o reescreveu duas vezes. Ele tinha enviado à Galilée um manuscrito completamente ilegível, sem pontuação, sem sujeito. Foi preciso retrabalhar em um primeiro e depois em um 43 segundo jogo de provas e refazer a totalidade" • A demonstração a que se dedica Guattari consiste em definir um novo paradigma estético ao final de um processo que revisita a subjetividade, passando pelo maquinismo. Ele reaflrma o caráter plural, polifônico de sua concepção do sujeito e a importância da questão da subjetividade com que se depara desde sempre como prático psicoterapeuta. Segundo ele, o método transversalista é mais eficaz para dar conta do coquetel frequentemente explosivo de subjetividades contemporâneas às voltas com uma tensão entre modernidade tecnológica e apego arcaizante. Guattari recorda a crítica formulada contra o estruturalismo e seu reducionismo: "Foi um grave erro, da parte da corrente estruturalista, pretender remeter tudo o que diz respeito à psique ao domínio 44 do significante linguístico'' • Félix se apoia nos trabalhos de Dàí:üel Stern sobre o bebê para

Gil!es Deleuze & Félix Guattari

captar o caráter err:_ergente e heterogenético da subjetividade'h. Nesse fim de percurso, nota-se o retorno discreto de Guattari àquilo que marcou seus inícios, Sartre e a questão existencial: para ele, a consistência dos sistemas discursivos deve ser buscada do lado do conteúdo, "isto é, dessa função existencial"46• Reconhecendo ao freudismo toda sua contribuição histórica, Guattari quer promover uma abordagem diferente, que não gira mais em torno da oposição entre consciente e inconsciente, mas que considera o inconsciente como uma superposição de diversos estratos heterogêneos de subjetivação de consistêndas variáveis e produtoras de fluxo, que ele tenta identificar em suas cartografias esquizoanalíticas47. O trabalho analítico não deve se referir mais a universais, a estruturas preestabelecidas, mas a uma "constelação de Universos. Não se trata de Universos de referência em geral, mas de domínios de entidades incorporais, que são detectadas ao mesmo tempo em que produzidas ... São dados no instante cria18 dor, como hecceidade"' • Essa atenção à subjetivação leva a rejeitar as modelizações confinantes, negadoras do novo, em busca apenas das regularidades, de médias significantes. Guattari, ao contrário, pref€re o processual, a irreversibilidade e a singularização. Para sair das oposições binárias, lança "o conceito de intensidade ontológica. Ele implica um engajamento ético-estético do agenciamento enunciativo"49. O freudisrno tomou como modelo a neurose, enquanto que, segundo Guattari, a esquizoanálise tem como modelo a psicose: é nela que o outro está além da identidade pessoal, e essa fratura permite construir uma verdadeira heterogênese. Apoiando-se nos trabalhos do filósofo Píerre Lévy, Guattari mostra por que não se pode reduzir a noção de máquina à ideia de um funcionamento mecânico. De um lado, todas as máquinas são atravessadas por "máquinas abstratas", mas, nos tempos da robótica, da infOrmática, elas dependem cada vez mais da inteligência humana50. Como Pierre Lévy, Guattari acha que é preciso derrubar a "cortina de

ferro ontológica" que a tradição filosófica edificou entre o espírito, de um lado, e a matéria, do outro. Félix encontra ali o próprio sentido da outra metafísica que construiu com Gilles em suas obras comuns. Guattari propõe retomar a noção de autopoiese de Francisco Varela, que designa assim os organismos que engendram seu próprio funcionamento e seus limites específicos, mas acrescendo-a do campo da aplicação biológica aos sistemas sociais, às máquinas técnicas e a qualquer entidade evolutiva a partir do momento em que esses elementos são logo envolvidos em agenciamentos singulares e em devir. Depois de ter criticado novamente o corte saussuriano entre a língua e a palavra, e de ter demonstrado o caráter totalmente imbricado dessas duas dimensões, Guattari define, no final desse livro-síntese de todas as suas reflexões, o novo paradigma estético que tanto almeja. Parte da ideia segundo a qual o que nas sociedades do passado provinha de imperativos técnicos ou sociais, no nosso presente é percebido corno manifestações estéticas e atesta o ascenso dessa relação de estetização que o homem moderno tem com o mundo: ''A potência estética de sentir... nos parece prestes a ocupar uma posição privilegiada no interior dos agenciamentos coletivos de enunciação de nossa época"·51 • É sinal de que a civilização moderna só pode perdurar se for permanentemente impulsionada no sentido da inovação. Mas esse processo de transformação não cessa de recolocar a questão da subjetividade sob ângulos diferentes. A subjetividade sendo tanto quanto a água e o ar um dado natural, "como trabalhar para sua liberação, isto é, para sua ressingularização?"52,

O desmoronamento de um mundo: 1989 Guattari atravessou com a mesma acuidade analítica a grande reviravolta de 1989 com a queda do muro de Berlim, a derrocada do comunismo e o fim da "guerra friá'. A consciência

321

elos riscos que representa a multiplicação dos desdobres identitários sectários e fundamentalistas não diminui seu otimismo e seu desejo de avançar em direção a futuros melhores. Ao contrário, essa é uma oportunidade única de "reinventar a política" 53 . O mundo não é mais bipolarizado entre Leste e Oeste e se encontra então em pleno processo de integração com base no modelo do Capitalismo Mundial Integrado (CMI). Em 1987, em Libération, Guattari expõe o que vê como "Os novos mundos docapitalismo"54: uma das características do capitalismo pós-industrial ou do CMI é transferir as estruturas produtivas de bens e serviços para as estruturas produtivas de signos c subjetividade, ou seja, a mídia, as pesquisas de opinião e as mensagens publicitárias. Dessas reflexões sairá um último texto, redigido algumas semanas antes de sua morte e publicado postumamente por Le Monde Diplomatique na edição de outubro de 199255 . Com essa contribuição, ele pretende sacudir as passividades crescentes de um mundo que vê seu destino passar em uma tela, como se lhe escapasse inelutavelmente, embora as mutações em curso permitissem estabelecer novos agenciamentos coletivos ele enunciação com impactos em todo o tecido social. Guattari reafirma nesse momento uma concepção que continuará a se desenvolver até se impor como uma evidência, a pluralidade de cada ser humano: "O que pretendo enfatizar é o caráter fundamentalmente pluralista, multicentrado, heterogêneo da subjetividade contemporânea, não obstante a homogeneização a que é submetida devido à sua mass-midiatização. Nesse aspecto, um indivíduo já é um 'coletivo' de componentes heterogêneas"56, As concepções fordistas e tayloristas estão ultrapassadas, e é preciso pensar novos agenciamentos coletivos de trabalho, considerando-os a partir de transversalidades possíveis com as demais atividades sociais. Ele insiste na urgência de responder a esses novos desafios, pois, sem isso, os efeitos da inércia poderiam ser bem cruéis e destrutivos: "Sem a promoção de uma tal subjetividade da diferença, da atipia, da uto-

322

Desse

Gilles Deleuze & Félix Guattari

pia, nossa época poderia resvalar nos conflitos atrozes da identidade, como os que sofrem os povos da ex~Iugoslávia""7 • Essa referência à desastrosa implosão que

vive a ex~ Iugoslávia e os riscos de uma generalização da violência bélica em escala planetária preocupam Guattari, que analisa a primeira guerra contra o Iraque, em 1991, como a manifestação do hegemonismo americano, que impôs sua solução à comunidade internacional. Sem negar o papel importante do ditador iraquiano na eclosão da guerra, Guattari invoca uma situação de perversão da ordem internacional que levou a essa situação desastrosa: a cumplicidade das grandes potências no conflito Irã-Iraque, a não resolução da questão do Líbano e dos palestinos, a política das grandes empresas petrolíferas e, "de maneira geral, o fato de que as relações entre o Norte e o Sul não 58 param de evoluir de maneira catastróficà' • A guerra contra o Iraque provoca uma re~ jeição igualmente violenta em Deleuze, que assina junto com seu colega de Paris-VIII, Renê

Schérer, um texto bastante duro: "A guerra 59

imunda" • Eles denunciam ali a destruição de uma nação, a nação iraquiana, sob o pretexto da libertação do Kuwait por um Pentágono

apresentado como "órgão de um terrorismo de Estado que está testando suas armas"

60

,

e ata-

cam o que consideram um simples alinhamento do governo francês: "Nosso governo não para de renegar suas declarações e se precipita cada vez mais em uma guerra à qual tinha o poder de se opor. Bush nos felicita como quem 61

felicita um doméstico'' . Por instigação de seu amigo Sacha Goldman, no clima do pós-guerra do Golfo e em plena guerra na ex-Iugoslávia, inicia-se um diálogo em várias etapas entre Guattari e Paul Virilio. Três sessões de discussões se realizam: em 4 de maio de 1992, 22 de junho de 1992 e 4 de agosto de 1992: ''A guerra da Espanha foi um laboratório ... A guerra do Golfo e a guerra da Iugoslávia são laboratórios de alguma coisa que virá depois... Com o que acaba de ocorrer nos anos de 199Q,é o fim da arma de destruição em massa qlte se Opera em proveito de

62

uma arma de comunícação'' • Nesse diálogo, Guattari volta permanentemente à questão essencial para ele dos modos de transformação da subjetividade, ligando as novas tecnologias

militares, as novas estratégias às "condições de produção de subjetividade das quais elas são 6 adjacentes" :'. Sacha Goldman envia aos parceiros a transcrição desse diálogo do mês de agosto corrente. Paul Virilio está corrigindo o texto quando recebe um telefonema de Antoine de Gaudemar: "Ele me diz: 'Você viu o que aconteceu com o Félix?'. Respondo: 'Não, ele está aborrecido?', porque a gente tinha brigado um pouco, e eu achava que ele não queria mais fazer o livro comigo. Ele me diz: 'Não, ele ,,(>
Notas 1. Félix GUATTARI, "Enfm jack Lang vint..:', Le Quotidien de Paris, 18 de março de 1983; esse

artigo aparece também em Le Nouvel Obser~ vateur com o título: "Plaidoyer pour un 'dieta~ teu r"'.

2. Ibid. 3. Félix Guattari, carta a Jack Lang, 22 de agosto de 1981, arquivos IMEC. 4. Félix Guattari, anotações acerca de um pro~ jeto de Fundação enviado a jack Lang, 13 de fevereiro de 1982, arquivos IMEC. Essa fUnda~ ção responderia ao interesse de criar uma instituição democrática e descentralizada para estabelecer as conexões necessárias com as associações sem tlns lucrativos: "Um direito à pesquisa deveria ser proclamado. Trabalhado~ res de uma empresa, instituições, mães de família em um bairro deveriam ter a possibilidade de se tornar promotores de uma pesquisa" (ibid.). 5. Félix Guattari, carta ajack Lang, 26 de janeiro de 1983, arquivos IMEC. 6. jack Lang, carta a Félix Guattari, 6 de janeiro de 1986, arquivos IMEC. 7. Jack Lang, comentário sobre a carta de Félix Guattari ajack Lang, 14 de abril de 1984, arquivos IMEC 8. Jean-Pierre Faye, entrevista com o autor. 9. Ver capítulo "Deleuze em Vincennes".

10. jean-Pierre Faye, carta a Félix Guattari, 26 de outubro de 1981, arquivos IMEC. 11. Félix Guattari, carta ajack Lang, 26 de setem~ bro de 1984, arquivos IMEC. 12. Trechos dessa carta aberta: 'As extradições e as expulsões de bascos refugiados na França causam uma grave fissura, talvez irreversível, na confiança que depositamos, apesar de todas as incertezas, no governo de François .Mit~ terrand ... Até então, o asilo político era consi~ derado um direito fundamental... Que Europa se pretende construir com tais procedimentos? A das liberdades ou a do controle social e da segurança erigidos em culto supremo?", Le Monde, 18 de outubro de 1984, com o títLtlo: "Quclle Europe veut-on construire?". 13. ]ean-François LYOTARD, "Tombeat! des intellectuels ", Le Monde, 8 de outubro de 1983; reproduzido em Tombeau des intelfectuels et autres papiers, Galilée, Paris, 1984. 14. Maurice BLANCHOT, "Les intellectuels en question. Ébauche d'une réflexion", Le Débat, n. 29, março de 1984. 15. Félix GUATTAIU, "ün a le racisme qu'on mé~ rite", Cosmopolis, novembro de 1983; reproduzido em Félix GUATTARI, AH, p. 39. 16. Félix GUATTARI, "La gauche comme passion processuelle", La Quinzaine littéraire, julho de 1984: reproduzido em Félix GUATTARI, AH, p. 53. 17. Félix GUATTARI, ''Le cinquieme monde nationalitaire", conferência pronunciada em Bilbao em 26 de março de 1985; reproduzida em Félix GUAT'I'ARI, AH, p. 71. 18. Raymond PRONIER, Vincent jacques LE SEIGNEUR, Génération Verte. Les écologistes en politique, Presses de la Renaissance, Paris, 1992, p. 27. 19. Jean Chesneaux, entrevista com o autor. 20. Trata-se da GOP - Gauche ouvrii~re et paysanne [Esquerda Operária e Camponesa], particularmente com Marc Heurgon, Alain Rist, Alain Lipietz, Alain Desjardin, Gérard Peuriêre. 21. Félix Guattari e Daniel Cohn Bendit, "Pavane pour un PSU défunt et des Verts mort-nés", outubro de 1986, arquivos IMEC. 22. Jacques Robin, entrevista com Virginie Linhart. 23, Ibid.

323

24. Félix Guattari, abril de 1990, arquivos IMEC. 25. Carta do secretariado executivo dos Verdes a Félix Guattari, 7 de maio de 1991. 26. Félix Guattari, carta de 13 de maio de 1991 ao secretariado executivo dos Verdes, arquivos

IMEC. 27. Jbid. 28. Félix GUATTARI, "Une autre vision du futur", Le iv/onde, 15 de fevereiro de 1991. 29. Félix GUATTARI. "Vers une nouvelle démocra~ tie écologique", julho de 1992, arquivos IMEC 30. !bid. 31. Paul Viri!io, entrevista com Virginie LinharL 32. Ver capítulo "Urna geotllosofia do político''. 33. Paul Virilio, entrevista com Virginie Linharl. 34. Ver sobre as teses de Cartografias esquizoanaliticas, o capítulo "Uma geofl!osofia do político" 35. Félix GUATTARI, Les Trais Écologies, Ga!Hée, 1989 (doravante citado TE). 36. Paul Virilio, entrevista com Virginie Linhart. 37. Félix GUA'1'1ARI, TE, p. 62-63. 38. lbid, p. 63 39. Jacques Robin, entrevista com Virginie Li~ nhart. 40. Paul Virilio, entrevista com Virginie Linhart. 41. Luc FERRY, Le Nouvel Ordre écologique, Grasset, Paris, 1992, Livre de Poche, 1998, p. 176. 42. Félix GUATTARI, Chaosrnose, Galilée, Paris, 1992 (doravante citado CH). 43. Danielle Sivadon, entrevista com o autor. 44. Félix GUATTARI, CH, p. 16. 45. Daniel STERN, Le Monde interpersonnel du nourrisson, PUF, Paris, 1989. 46. Félix GUATTARI, CH. p. 87. 47. Félix GUATTARJ, CZ. 48. Félix GUATTARI, CH, p. 33. 49. Jbid, p. 49-50. 50. Pierre LÉVY, Les Technologies de l'intellígence, La Découverte, Paris, 1990 51. Félix GUAT1ARI, CH, p. 141. 52. Ibid., p. 52. 53. Félix GUATTARI, "Réinventer la polítique", Le J1.1onde, 8 de março de 1990. 54. Félix GUATTARJ, "Les nouveaux mondes du capitalismo", Libération, 22 de dezembro de 1987.

324

Dosse

55. Félix GUATTARL ~Pour une refondation des pratiques sociales", Le Monde diplomatique, outubro de 1992. 56. Jbid. 57. Jbid. 58. Félix GUATTARI, "Le courage d'une poli tique",

60. Jbid., reproduzido em Gilles DELEUZE, RF, p. 351. 61. Ibid., p. 351.

Lettre d'information de Génération Écologie, n. 6, 28 ele janeiro de 1991. 59. Gilles DELEUZE. Renê SCHÉRER, "La guerre immonde", Libération, 4 de março de 1991.

63. Félix GUAfTARI, ibid., diálogo de 4 de maio de 1992.

22

62. Paul Virilio, "Le concept de guerre", transcri~ ção datilografada do diálogo com Guattari, 4 de agosto de 1992, arquivos IMEC.

Deleuze vai ao cinema

64. Paul Virilio, entrevista com Virginie Linhart.

Ver capítulo "Dois desaparecimentos".

Quando, na manhã de 10 de novembro de 1981, Deleuze inicia sua aula consagrada ao cinema, será que ele tinha realmente a dimensão do canteiro que se abria'! Vai lhe dedicar 1 nada menos que três anos letivos , 250 horas 2 de aula e duas obras • Esse novo ciclo de estudos se desenvolve imediatamente após a obra comum realizada com Félix Guattari. Pode-se considerar essa investigação fora do corpus clássico da filosofia como um parêntese recreativo? Nada disso. Como é comum, esse avanço no continente cinematográfico está ligado a fatores contingentes e exteriores e, ao mesmo tempo, a uma necessidade interior de sua reflexão Hlosóflca.

Um companheiro dos

Cahiers du Cinéma Em 1980, a universidade experimental de Paris-V1II acaba de deixar o bosque de Vincennes de onde foi alijada pela ministra das Universidades, Alice Saunié-Seité, e teve de encontrar refúgio em Saint-Denis. Além do fato de não dispor do mesmo espaço, essa mudança tem consequências sobre a vida da pesquisa e do ensino. Graças a essa situação de crise,

operaram-se aproximações fecundas. É o caso

entre o departamento de estudos cinematográflcos e o de fl!osofia3• Dado que a originalidade desse ensino está em ligar a teoria e a prática, alguns cineastas são convidados- Jacques Rivette ministrou cursos. Quando decidiu parar em 1970, propõe-se ao redator adjunto do Cahiers du Cinéma que o substitua: "Riram na nossa cara no ministério ao qual se havia solicitado materiaL Achavam que estávamos desvalorizando a universidade, que era indigno, que havia escolas para isso, mas a gente 4 insistia nessa ligação entre teoria e prática" • O departamento de cinema prepara um curso específico com diplomas. Contudo, para validar os doutorados, foi preciso encontrar professores habilitados para fazê-lo: os responsáveis recorreram ao departamento de filosofia para validar as pesquisas em curso. Guy Fihman e Claudine Eizykman, antigos do 22 de Março, que dirigem o departamento desde o início, conservaram boas relações com Jean-François Lyotard. Por sua vez, Jean Narboni e alguns outros, como os diretores Serge Le Perón e Jean-Henrl Roger, são mais deleuzianos, assim como a especialista em estética do filme, Do minique Villain. A partir de flnal dos anos 1970, Guy Fihman e Claudine Eizykman

326

decidem consagrar seu seminário a pensar o cinema a partir das categorias bergsonianas: "Disso resultou então uma situação nova, em que o enquadramento do curso de doutorado de cinematografia recebeu o concurso de nossos colegas de filosofia,Jean-François Lyotard, cujo seminário estava centrado na estética do sublime, e Gilles Deleuze, que aproveitou essa ocasião para fazer enfim convergir seu gosto pelo cinema com seus interesses filosóficos" 5• Na verdade, não se encontra em Deleuze qualquer traço da contribuição de Bergson para o 6 campo cinematográfico em sua obra de 1966 . Ele faz a ligação entre Bergson e o cinema em seu texto sobre Goclard para os Cahiers du Cinérna em 19767• Ao lado de projetos de tese sérios, algumas solicitações são burlescas, como a proposição feita a Deleuze de orientar um trabalho de pesquisa sobre o teatro de marionetes no Líbano: "Deleuze me liga para me dizer que é totalmente incompetente sobre esse tema, e respondo-lhe que eu também"8 Ainda que, por generosidade, Deleuze estivesse prestes a assinar e dar sua caução a essa pesquisa, estudantes libaneses o alertam: nunca houve teatro de marionetes no Líbano, e suspeita-se que o tipo em questão seja um policial: "Outra vez, era o estudo do lugar dos trabalhadores no cinema sírio, e Deleuze me liga de novo para me falar de sua ignorância desse tema, e, de novo, confesso-lhe não saber mais do que ele"9. Quando o estudante brasileiro André de Souza Parente, vindo da universidade do 'Rio, onde se iniciara na obra de Foucault e Deleuze, chegou à universidade de Paris-VIU para o ano letivo de 1982 e 1983, já havia realizado alguns filmes experimentais. Tinha ido para Paris fazer doutorado em cinema e inscreveu-se, então, no departamento de Paris-VIU, mas não encontra ninguém habilitado a orientar suas pesquisas ..É o departamento de cinema que designa Deleuze como orientador oficial de sua tese. Essa contingência administrativa fOi uma sorte para Parente. Mais apaixonado pela filosofia do que pela teoria do cinema, ele acompanha assiddàmente as aulas de Deleuze

Gilles Deleuze & Félix Guattari

e lhe apresenta sua dissertação de mestrado intitulada "Narratividade e não narratividade fílmica". Deleuze, inicialmente hesitante, oremete ao departamento de cinema, mas o estudante insiste em ter sua opinião: "Ele lê minha dissertação e a partir daí tudo muda. Ele me diz: 'Não somente acho isto muito interessante, como teria necessidade de você para o próximo ano', pois ele tinha a intenção de tratar da questão da semiologia"w. Parente defende sua tese em 1988 sobre o tema da "Narratividade e não narratividade ínmicas" com orientação de Deleuze 11 • A cinefilia de Deleuze é atestada muito antes de ele se lançar na escrita de suas duas obras. Crítico do Cafliers du Cinérna, Serge Toubiana lembra de ter visto Deleuze regularmente, desde meados da década de 1970, na "semanà' de filmes inéditos na Action-République, organizada todos os anos pelos Cahiers du Cinérna: "Vê-lo com tanta regularidade entre a multidão de espectadores que vinha descobrir 'nossos' filmes nos deixava orgulhosos"12. Segundo Toubiana, Deleuze era o único dos grandes pensadores desse período a "verdadeiramente amar o cinema" 13 • Ele logo compreendeu a força do cinema e a necessidade de pensar esse novo modo de expressão para pensar o mundo. Disso resultou uma grande afinidade entre os críticos dos Cahiers du Cinérna e Deleuze, a tal ponto que Toubiana escreverá em homenagem do tllósofo desaparecido: "O cinema é um movimento do pensamento. O 14 cinema é deleuziano'' • Sua primeira intervenção pública sobre o cinema data de 1974. Deleuze defende então o filme de Hugo Santiago, Les Autres, que acaba de causar escândalo no Festival de Cannes e no qual atua a jovem esposa de seu amigo François Châtelet Noiille Cbâtelet. Deleuze saúda nesse filme uma arte da mobilidade, um uso da câmara que se assemelha ao do plantador de arroz, que não procede por enraizamento, mas por múltiplos orifícios 15• Três anos mais tarde, enquanto vários filmes já tinham sido proibidos pelo ministério do Interior em 1976, L'Ombre des Anges, de Daniel

Schmid, por sua vez, é atingido pela proibição em fevereiro de 1977. Cerca de 50 cineastas, críticos e alguns intelectuais assinam uma petição em protesto contra o que consideram um atentado à liberdade de expressão, na medida em que a decisão do poder é acompanhada de atos de violência, como a colocação de aparelhos fumígenos no cinema Saint-André-des-Arts para dissuadir alguns raros espectadores. O filme é qualificado por seus detratores de antissemita, o que é refutado pelos peticionários, entre os quais Deleuze, que publica um comentário no Le Monde de !8 de fevereiro de 1977. Embora Deleuze não negue que possa haver filmes antissemitas, constata nesse caso específico "a inanidade da acusação. É inacreditável"". O grande problema é sem dúvida um personagem denominado "judeu ricô', mas o diretor não explicou que praticava uma constante defasagem entre os rostos, os atores e seus discursos? Buscam-se em vão os motivos dessa "acusação demente de antissemitismd' 17: Deleuze adverte contra a ascensão de um neofascismo secretado pela acumulação de pequenos medos e de grandes angústias em uma série de microfascismos, dos quais faz parte a proibição do filme. Essa intervenção vale a Deleuze uma resposta áspera de seu antigo e devoto amigo Claude Lanzmann no mesmo jornal, que torna público assim o fosso aberto entre eles desde os anos do pós-guerra. Para Lanzmann, o antlssemltismo desse filme não deixa dúvida: "Filho legítimo do judeu Süss e do O Eterna judeu'', inscrito na linhagem direta das produções nazistas do auge, A Sombra dos Anjos, filme antissemita de R. W. Fassbinderer e Daniel Schmid, também foi considerado acima de qualquer suspeita pela crítica de es18 querda na França" • Lanzmann lembra que a delegação israelense abandonou o Festival de Cannes no ano anterior para protestar contra a apresentação desse filme e denuncia o "terrorismo'' das panelinhas cinéfilas. Ele ataca Deleuze, que veio em socorro do inomínável:

* N. de T.: Filmes de propaganda alemã lançados em 1940.

327

"Concordo, concede complacentemente Deleuze, a palavra 'judeu rico' é muito importante. Não a palavra, Deleuze, a coisa. E não importante, essencial. Sem o 'judeu rico' - e Deleuze sabe disso - não há mais filme" 19• A ligação com os Cahiers se estabelece nesses anos graças a Jean Narboni. Ele ouve falar ele Deleuze pela primeira vez por Barbet Schroeder, que, num dia ele 1964, chega à sua sala exclamando que leu um livro extraordinário, o Proust e os Signos de Deleuze. Entretanto, a conexão não é imediata, longe disso, pois os Cahiers vivem a partir de meados dos anos 1960 sua fase maoísta. Eles encarnam uma linha ultrateórica, lacano-althusseriana, mesclada de um certo populismo com o livrinho vermelho do presidente Mao, e viram as costas resolutamente para o cinema burguês. Essa linha provoca uma ruptura com François Truffaut, que manda tirar a menção ao seu nome 20 a partir de 1970. As vendas se ressentem • No pós-68 constituiu-se um "Front Q" (cultural), agrupando Te! Que!, os Cahiers du Cinérna e Cinéthique, que nos Cahiers se traduz em violentas campanhas contra Yves Boisset, Louis Malle,]ean-Louis Bertucelli e outros cineastas "burgueses". Em 1972, em texto assinado por Pascal Bonitzer, os Cahiers passam à margem de A Mãe e a Puta, de Jean Eustache, e de A Comilança, de Marco Ferreri, cujo interesse é totalmente subestimado: "Tive uma sensação de impasse total. Grandes obras de arte nos eram 21 enviadas, e éramos incapazes de assisti-las" • Apesar de uma linha política bastante explícita de adesão ao movimento revolucionário, isso não é considerado suficiente, e, no verão de 1973, os Cahiers são instruídos a demonstrar seu valor e a reunir os militantes de campo para difundir o pensamento de Mao. Eles têm apenas um ano para atingir esse objetivo estipulado pela nova plataforma do "Front Q": Contudo, a partir dessa data. com o declínio do esquerdismo e do maoísmo, as coisas começam a mudar. A linha dos Cahiers é então um pouco reduzida. pois as únicas estrelas do firmamento são jean-Marie Straub e]ean-Luc Godard, "JMS" e "JLG".

328

Dosse

Sob o impulso de Serge Daney e de Serge

Toubiana, a nova equipe que se instala na passagem da Boule-Blanche, no bairro da Bastille,

abandonando a linha dogmática, reata com a "função crítica' (Serge Daney)- e a revista com seu público. A ]MS e JLG somam-se então vários diretores: Robert Kramer, Hans-jürgen Syberberg. Manoel de Oliveira, Youssef Chahine, Raoul Ruiz, Akira Kurosawa, Wim Wenders, Barbet Schroeder, entre outros. A revista, que busca também novos recursos teóricos, recorre a Michel Foucault, Marc Ferro e ainda Daniel Sibony. A equipe dos Cahiers- Pascal Bonitzer. Serge Daney e Serge Toubiana - reúne-se com Foucault para uma longa entrevista publicada em 1974. Nessa ocasião, Toubiana apresenta Foucault a René Allio, que fará uma adaptação cinematográfica de sua pesquisa sobre Pierre Rivihe. Daney e Toubiana refazem contato com François Truffaut, em 1975, e lhe pedem auxílio flnanceiro, que ele não dá, mas comunica, de-

pois de ter feito um sermão sobre a evolução da revista â partir de final dos anos de 1960, que manterá agora uma neutralidade benevolente: "Ele nos diz que não tem nada a nos condenar no plano da orientação política, mas que ficou ressentido por termos conservado o título Cahiers du Cinérna, que pertence à tradição de Dazin, e termos feito o que fizemos. Ele deu a entender que deveríamos ter mudado o título, que havíamos traído a herança baziniana'm. É nesse contexto que, durante o verão de 1976, aAntenne 2 apresenta seis domingos se23 guidos a série de Godard Sixfois deux • Jean Narboni, professor como Deleuze no campus de Vincennes, não perde a ocasião, ainda mais porque soube por Caroline Champetier que Deleuze aprecia muito Godard e ficou impressionado com essa série na TV Ele então lhe manda uma carta para pedir que escreva sobre Godard nos Cahiers. Deleuze aceita o princípio de uma entrevista, que é gravada na sede da revista. Contudo, depois da entrevista, recusa a publicação das transcrições e sugere escrever um simulacro de entrevista intitulado "Três perguntas sobre Six)àis deu.x'', contendo na verdade quatrp perguntas formuladas pelo

Gilles Deleuze & Félix Guattari

próprio Deleuze: "Essa 'entrevista' sobre Six]ois deux nos impressionou. Ele abre ali linhas de pensamento sobre Godard que depois foram retomadas, citadas, repetidas, pilhadas: o balbucio criador, a lição das palavras e das coisas, a política das fronteiras, a invenção de uma língua estrangeira dentro da própria língua, a 24 solidão povoada, etc:' • Deleuze expressa ali a emoção duradoura que sentiu e evoca Godard como um trabalhador solitário um pouco à sua imagem, alguém que marca seu tempo sem conhecer o verdadeiro sucesso, "contimrando sua própria linha, uma linha de fuga ativa, linha sempre quebrada, em ziguezague, 25 no subterrâneo'' . Seduzido pela frase de Godard "não uma imagem correta, mas apenas uma imagem", ele erige em princípio para os filósofos: "não ideias 26 corretas, mas apenas ideias" • Deleuze considera, entre outras coisas, que o cineasta coloca um verdadeiro problema quando pulveriza a noção de força de trabalho sugerindo remunerar os telespectadores na medida em que eles fornecem de fato um serviço público. O outro deslocamento operado por Godard tem a ver com um questionamento radical da informação como fOrma de comando. Deleuze retoma a análise de André S. Labarthe. que, no início dos anos de 1960, chamou a atenção para a maneira como Godard apagava as transições para substituí-las por um "e", rompendo assim com a linearidade da narrativa ao estabelecer falsas continuidades entre as sequências. Essa publicação é o ponto de partida de encontros e discussões regulares entre Deleuze e Narboni. Eles se veem com frequêncla cada vez maior, sobretudo após a publicação da obra realizada por Deleuze e Carmelo Bene em 1979, Superposições. O autor italiano foi muito apoiado pelo Cahiers, e particularmente por Narboni, fascinado com seu filme Notre-Dame dos Turcos, exibido no Festival de Veneza, em 1968. Em 1971, os Cahiers fazem a cobertura do seu segundo filme, e Narboni o encontra em uma de suas passagens por Paris, quando Bene está decidido a abandonar o cinema pelo teatro. Narboni debate com Berre na presença

do especialista da literatura italiana jean-Paul Manganaro e de Deleuze. Colegas em Vincennes, Narboni leciona no andar acima do de Deleuze, e um de seus alunos lembra~se de ter ficado intrigado: invocando seu amigo Narboni, "ele [Deleuze] apontava com o dedo para o teto como se houvesse uma instância transcendental que encarnasse uma autoridade superior'm. Mesmo preocupados em chegar no horário para suas aulas das terças-feiras pela manhã, eles têm tempo de discutir antes de ir ao encontro de seus respectivos alunos. Em 1972, a publicação de O Anti-Édipo perturba a linha marxista-leninista dos Cahiers sem modificá-la em um primeiro momento, mas, com o tempo, as temáticas da obra vão fissurar as certezas para alimentar alguns fluxos desejantes que se insinuam entre os blocos epistêmicos do momento. Pascal Bonitzer guarda a lição para mais tarde, na segunda metade dos anos 1970, quando prioriza a estética do cinema e passa a estudar mais sobre o "olhar-câmara'', o "fora de plano" e o "desenquadramento''. No outono de 1977, acabam os longos textos teóricos, deixando-se espaço ao próprio cinema, e Pascal Bonitzer expressa inequivocamente seu desejo de narrativa: "Por que nos aborrecem desse jeito? ... Hoje, quase por toda parte, o que mais se sente é a falta de 28 histórias, de boas histórias" • Nesse contexto, quando Deleuze intervém sobre o cinema, Pascal Bonitzer considera isso bastante alentador, principalmente em relação às teorias semiológicas de Christian Metz, que, segundo ele, jamais deram nada no terreno da crítica. A arte cinematográfica "se expressa através das obras, não é uma linguagem que se expressa através de um sistema de aplicação. Deleuze estava em total sintonia com o cinema como obra e tinha uma compreensão muito rápida e 29 pessoal dos cineastas que amávamos" • Deleuze, por sua vez, vai regularmente aos Cahiers e assiste às programações organizadas por Dominique Pa!ni no Studio 43: "Ele vinha às vezes com sua filha Émilie, que também faz filmes, e às vezes com sua mu30 lher, Fanny" • Muito preocupada com uma

329

programação pensada, reflexiva, Dominique Pa'ini adquirira o hábito de cruzar o antigo e o novo em torno de um tema. Assim, ela exibiu em sua sala, entre muitos outros temas, "O papel dos canais e dos rios na constituição da escrita do cinema francês desde o cinema mudo". Essa temática da água, do lábil, se encontra tal e qual em A Imagem-Movimento como uma característica do cinema francês, fortemente marcado pelos cursos d'água que atravessam seu território, e que Jean Renoir exprimiu com a maior intensidade. O que mais surpreende Jean Narboni é a capacidade de Deleuze de construir classificações e taxinornias, e se diverte lançando a hipótese de que nele, com certeza, o compartimento teórico deve preceder o conteúdo. Narboni considera que, entre as mais belas páginas produzidas sobre o cinema, será pre~ ciso levar em conta o que Deleuze escreve sobre a imagem-pulsão, o afeto, o grande plano, o rosto, as potências e as qualidades. Entre o mundo original das profundezas (Stroheim, Buí\uel, Nicholas Ray, King Vidor, Losey) e o das entidades extracorporais (Dreyer, Bresson), Deleuze traça uma transversal "evidentemente conectada às duas outras, a linha do cérebro e a do pensamento, a cidade-cérebro. Creio que seu cineasta preferido, no fundo, era Resnais":H. A proximidade de Deleuze com os Cahiers du Cinéma é atestada pelo prefácio que escreve para o livro de Serge Daney, Ciné journafn. Deleuze reconhece em Daney alguém que, como ele, procura a ligação profunda que une o pensamento e o cinema em uma tradição crítica, a de Bazin e dos Cahiers. Saúda a maneira como ele soube converter em otimismo crítico as ambições dos primeiros realizadores, como Eisenstein e Gance, que sofrem com as tragédias do século XX: "O cinema estaria ligado não mais a um pensamento triunfante e coletivo, mas a um pensamento casual, singular, que não se apreende e não se conserva 33 mais a não ser em seu 'impoder'" . Finalmente, Deleuze situa o livro de Daney sob o signo da viagem, não de uma busca do exotismo,

330

Dosse

mas no sentido proustiano do verdadeiro sonhador que tem necessidade de verificar suas intuições: "Eis que, por sua conta, o que vocês vão verificar em suas viagens é que o mundo

faz cinema, nunca para de fazer" 34 • Apesar desse prefácio caloroso, Daney e Deleuze se encontraram raramente, apenas duas vezes. Atendendo ao desejo de ambos de se rever. Raymond Bellour, que participa da revista Trafic, organiza um último encontro, dois meses antes do faJecimento de Serge Daney, em 1992. No essencial, o Deleuze cinéfllo é fiel à li-

nha de Bazin

35 :

seu panteão homenageia a

mesma tríade, Rossellini-Renoir-Welles, e, as-

sim como o pai dos Cahiers, ele vê no neorrealismo italiano o advento do cinema moderno.

O cinema como gênero impuro é o instrumento que oferece a possibilidade de uma nova

maneira de chegar ao realismo. Para André Bazin, discípulo de Emmanuel Mounier e marcado pela fenomenologia, "a tela é a transubstanciação do real, e esse fenômeno tem um nome: 36 o realismô' - . Esse realismo não é o que remete à simples rnimese do real, pois o que a câmara vai procurar no real é sempre esse "outro misteriosO' da realidade que a fragiliza ao mesmo tempo em que a atesta'.". DeIeuze retomou por sua conta essa herança intelectual própria aos Cafliers: "Não creio que ele tenha posto em questão o grande tópico da Nouvelle vague. Ele retomou essencialmente uma história do cine~ ma tal como Langlois, a nouvelle vague, Bazin, os Cafliers, Truffaut e Godard tinham concebi38 do antes dele" • Essa proximidade com os Cahiers não ex~ clui outras influências. Quando Deleuze decide escrever sobre o cinema, refaz contato com seu ex-aluno de Louis-le-Grand, que se tornou diretor da revista Positif, Michel Ciment: "Ele tinha consciência de que passara um longo período de interrupção em sua relação com o cinema. Sentiu necessidade de documenta39 ção, que providenciei para ele" • Deleuze tem vários encontros com ele no bar Wepler, na place Clichy. É aconselhado a ler alguns livros e se remeter aos dossiês da revistaPositij, entre outros, sobre Lose;Ye Kazan, e em geral sobre o

Gilles Deleuze & Félix Guattari

cinema americano, paixão de Michel Ciment, que acaba de publicar, no início dos anos 1980, duas obras sobre o tema, das quais Deleuze faz 40 bom uso • Por sua vez, Ciment utilizou a Apresentação de Sacher-Masoch. de Deleuze. para escrever um opúsculo em 1967 sobre Erich von Stroheim. A terceira grande revista de cinema utilizada por Deleuze é Le Cinématographe, fundada nos anos de 1970 por Jacques Fieschi, que vem dos Cahiers e de La Nouve//e Critique. Essa revista, mais ligada ao meio profissional, tem entre seus colaboradores regulares produtores como Philippe Carcassonne e roteirlstas como o próprio Fieschi e Jérôme Tonnerre. Nascida um pouco como reação ao discurso muito ideológico dos Cahiers, Le Cinématographe prega um cinema que passe pela escrita: "Era o início da crítica egotista, sem que se diga abertamente 'eu', mas com um investimento singular" 41 • A revista tem reputação de dandismo e, einbora cubra a atualidade, publica igualmente dossiês sobre o neorrealismo italiano, Visconti, Godard, o cinema do terceiro mundo ... En~ contra-se mais ou menos o mesmo panteão de cineastas, com apenas algumas nuanças, entre uma revista e outra, Michel Ciment inclusive considera Deleuze mais "positivista", por comungar com Positif a admiração por Kazan, Losey e Kubrick. Entretanto, como se viu, Deleuze continua próximo dos Cahiers e resolutamente alinhado com eles na batalha por Hitchcock: "Os críticos de Positif, que eram mais libertários, surrealistas, tinham horror da maneira como os Cahiers apresentavam Hitchcock, como encarnando a redenção em torno das questões do pecado. da admissão, da confissão, 42 e se portaram de maneira um pouco ridículá' • Quanto aos Cahiers, vale lembrar que, por força do maoísmo, haviam ignorado Scorsese, Altman, Coppola e muitos outros cineastas americanos obrigatoriamente corrompidos pelo imperialismo. Fora isso, as duas cinefilias distinguem-se pela singularidade de suas adesões: preferencialmente um certo cinema italiano de esquerda. o de Antonioni e de Visconti, mas também Bufiuel e Franju, no caso

do Positij,' enquanto os Cahiers são mais favoráveis a Hitchcock e Rossellini. Nos anos de 1960, as duas revistas se aproximam na defesa dos jovens cinemas da Europa Oriental, do terceiro mundo e do Canadá. O engajamento de Deleuze no mundo do cinema é tal que ele passa furtivamente diante das câmaras, aceitando por -amizade a proposta que lhe faz Michêle Rosier de representar um papel secundário, o de Lammcnais, em seu filme sobre George Sand, George qui?, lançado em 1974. Pode-se vê-lo duas vezes, em um salão e encarcerado em sua cela na prisão de Sainte-Pélagie. No final dos anos 1970, Deleuze hesita por um instante quando Philippe Venault e 1\aymond Bellour, que trabalharam sobre o ]o urna/ de Jules Michelet para fazer um roteiro, lhe propõem, desta vez, ser o herói do 13 filme, Michelet em pessoa' •

Uma nova metafísica bergsoniana Graças a essa travessia do universo cinematográflco, Deleuze pode reatar com o extrafilosófico. Mostrando que o cinema anuncia uma verdadeira revolução filosófica, seu projeto continua sendo o de um filósofo e, como esclarecerá mais tarde, não tem a ambição de escrever uma história da sétima arte. É na esteira de Bergson que se situa a reflexão de Deleuze, do qual retoma as aberturas para prossegui-las até seus limites extremos: ''A descoberta bergsoniana de uma imagem-movimento e, mais profundamente, de uma imagem-tempo preserva ainda hoje uma tal riqueza que não se pode afirmar que já se tenha 44 tirado todas as consequências dela" • Deleuze demarca um avanço em Matéria e 1\lfemória, publicado em 1896, antes do nascimento oflcial do cinema. Em A Evolução Criadora, publicado em 1907, Bergson renuncia a prosseguir no sentido de suas primeiras intuições. É esse projeto que Deleuze assume, quase um século mais tarde, enfrentando o desafio que Bergson abandonou no caminho quando denunciava a ilusão mecânica própria do cinema. Contudo,

331

ele intuíra uma possível revolução filosófica análoga à que estava em gestação no mesmo momento no campo da cinematografia. Deleuze retoma por sua conta as três te~ ses de Bergson sobre o movimento. A primeira acaba com a confusão entre o movimento e o espaço percorrido. Enquanto o movimento remete a um ato, o de percorrer, que não é divisível, o espaço é divisível. O movimento pertence, portanto, a outra dimensão, a da duração. Recorde-se, para ilustrar a dificuldade de pensar o movimento, o famoso paradoxo de Zenon, segundo o qual Aquiles jamais conseguirá alcançar a tartaruga que partiu antes dele caso se proceda a uma simples divisão espacial de seus respectivos movimentos. Além disso, Bergson considera impossível entender o movimento procedendo a cortes imóveis operados no traje~ to. Há uma irredutibilidade do movimento que não está ligada a um tempo abstrato. Se Aquiles acaba por ultrapassar a tartaruga, isso se deve ao fato de que seu movimento é incomensurável. Todo movimento é qualificado e procede segundo suas divisões próprias. Esse movimento puro, separado de seu substrato espacial, não é o que o cinema pode exprimir? A segunda tese de Bergson é que existem duas maneiras de reproduzir o movimento por cortes imóveis: seja por momentos privilegiados, seja a partir de instantes quaisquer definidos em função de sua equidistância. O pensamento antigo retinha o movimento a partir de momentos privilegiados. Ao contrário, a segunda maneira tem a ver, segundo Bergson, com a ciência moderna; ela introduz o tempo como variável específica e requer uma nova metafísica: ''A revolução científica moderna consistiu em relacionar o movimento não mais a instantes privilegiados, mas ao 45 instante qualquer" • Essa segunda maneira é a da técnica cinematográfica, e Deleuze se pergunta se o cinema não é portador dessa nova metafísica que Bergson tanto almejava: "Seria 16 preciso dizer: o cinema como metafísica''' • É necessário pensar o tempo da maneira como o pensa Bergson, como invenção: "O tempo é 47 invenção ou não é absolutamente nada" •

332

Dosse

Gilles Deleuze & Félix Guattari

A terceira tese é que não apenas os instantes consistem em cortes imóveis do movimento, como também o movimento "é um corte móvel da duração, isto é, do Todo, ou de um

todo. O que implica que o movimento

expri~

me algo de mais profundo, que é a mudança na 18 duração ou no todo''' . É preciso, então, considerar a perspectiva temporal como própria à imagem mostrada no cinema, e disso resulta que a imagem é mais que uma imagem em movimento, é uma imagem-movimento. En-

tretanto, o todo de que se trata, assinala Deleuze, não é de modo nenhum uma totalidade

fechada nela mesma. Ao contrário, "o Todo não é um conjunto fechado, ele próprio é o Aberto, dimensão de um ser-tempo que muda e, com 49 isso, perdura e produz o novo'' • Essa dimensão do Aberto permite à memória caminhar na profundeza do tempo: "Esse plano é o Plano 50 Aberto. Ali se encontra o espírito do cinemà' . Em Matéria e Memória, Bergson inclusive .distingue dois tipos de imagens: as imagens-movimentos, enquanto fenômenos de superfície ligados ao atual, e as imagens-lembranças das profundezas, que remetem à virtualidade. Depois, limitando sua reflexão apenas às imagens de superfície, ele diferencia as imagens-percepções, as imagens-ações e as imagens-afeições. É graças a esta última dimensão, a da afeição, que marca uma coincidência entre o sujeito e o objeto como fonte de uma qualidade particular, que o movimento deixa de ser pura translação para se 51 tornar um "movimento de expressão" • Entre a imagem-percepção e a imagem-ação, algo ocupa o intervalo sem saturar seu sentido: é a imagem-afeição. Deleuze retém ainda de Bergson uma outra via, que é a da fenomenologia. Na virada do século, a disciplina psicológica clássica atravessa uma grave crise. Ela não pode mais pensar a separação entre imagens que teriam como lugar a consciência e movimentos exteriores a ela. Duas vias se apresentam para sair do impasse. A fenomenologia segundo Husserl define a consciência como consciência de alguma coisa e inicfh uma corrente filosófica com um

destino bastante rico. Bergson, por sua vez, mais isolado, define a consciência como alguma coisa. Segundo Deleuze, Bergson vai muito mais longe que Husserl para tirar a psicologia dessa situação difícil: "Minha intervenção é de reparação porque Bergson foi tratado dura52 mente pela fenomenologia" • A contribuição de Bergson é decisiva para pensar a imagem como movimento e igualmente para pensar a imagem-tempo. Bergson distingue de fato dois tipos de reconhecimento: o imediato, que remete ao hábito, e o outro, atentivo, que recorre ao passado. Esta última, a imagem-lembrança, ocupa o intervalo entre a percepção e a ação com a dimensão da afeição. São essas lembranças que, em função da situação presente e do que ela supõe como rea~ ções, se atualizam em imagens e guiam a ação. Contudo, a imagem-lembrança não tem o mesmo estatuto no reconhecimento imediato e no reconhecimento atentivo. Ela pode'desempenhar o papel de imagem virtual no caso da imagem-lembrança, como modo de cristaliza~ ção da atenção. Contudo, segundo Bergson, a imagem-lembrança não é em si virtual, ela apenas atualiza a virtualidade de uma "lembrança pura". É o operador que, mesmo sem poder alcançar a ressurreição do passado, não deixa de constituir o traço de um antigo presente. Essa evocação se choca muitas vezes com obstáculos e fracassos sobre os quais Bergson se interroga, pois, para ele, tais inadequações tornam o fenômeno mais interessante. O cinema adota como objeto privilegiado essas disjunções do reconhecimento atentivo: "O cinema europeu se confrontou muito cedo com um conjunto de fenômenos, amnésia, hipnose, alucinação, delírio, visão dos mori53 bundos e, sobretudo, pesadelo e sonhci' • Essas imagens-lembranças remetem à dimensão memorial e à do presente. As camadas do passado parecem suceder-se conforme uma ordem cronológica coerente. Para Bergson, "ao contrário, elas coexistem do ponto de vista do atual presente que constitui sempre seu limite comum 1 ou da mais contraída delas"5< • Bergson utiliza a metáfora do cone para pôr em evidência um

ponto que culmina e condensa as imagens-lembranças requisitadas pela ação em um duplo movimento de contração em situação de atenção viva ou de dilatação em situação de repouso. Disso resulta uma questão de ordem metafísica: por que o presente passa? Essa passagem do presente é de fato contemporânea do próprio presente. Há, portanto, contemporaneidade do passado e do presente que foi, na medida em que o presente se constitui como passado no mesmo tempo em que surge como presente. O presente se desdobra assim ao longo de seu desenrolar, a cada instante, e se encontra clivado entre um presente que é e um presente que foi. Essas duas dimensões coexistem e conjugam em configurações singulares 5 as relações entre o passado e o presente 5 • É esse plano da indiscernibilidade do desdobramento do tempo que dá lugar ao que Guattari chamou de "cristal de tempo', e que Deleuze retoma para fazer dele o próprio suporte da imagem-tempo, desse acesso direto da imagem ao tempo libertado de sua dependência do movimento. Com a imagem-cristal, o cinema se dota de um meio de acesso direto ao tempo e, assim como para a bola de cristal, trata-se mais de uma função de vidência do que de simples percepção. O pensamento é forçado a criar novos circuitos para dar conta de uma realidade sempre movente. Segundo Deleuze, é isso que Rossellini realiza tão magnificamente quando, em Europa 51, sua heroína observa os operários entrando na fábrica e diz: "Eu pensava estar vendo condenados". Ela faz a ligação, e não apenas metafórica, entre o universo carcerário e a empresa capitalista. Todos esses circuitos trazidos pelo cinema não têm a ver apenas com a psicologia, "são regiões de ser e de pensamento"56. Pensar, para Bergson, consiste em se instalar em uma dessas regiões que contêm a pergunta que não se é capaz de formular, podendo revelar ao mesmo tempo um aspecto do ser que até então estava oculto, e que desse modo abre para um circuito de pensamento inédito. 57 É essa "arte de pensar" que Deleuze tem em

333

vista em sua exploração da produção cinematográfica contemporânea com a ajuda das instituições bergsonianas.

Crítica da semiologia do cinema Quando, no início dos anos 1980, Deleuze adota como objeto de estudo o cinema, o que aparece como o olhar crítico mais profundo é o de uma semiologia do cinema, herdeira do paradigma estruturalista. Ela tem seu teórico na pessoa de Christian Metz, que participa ativamente do desenvolvimento das leituras semiolinguísticas. Em 1968, ele publica uma obra que fará eclodir toda uma nova corrente 8 na semiologia, A Significação no Cinema5 • Segundo Metz, o cinema é uma linguagem sem língua caracterizada pela narração, a imagem-cinema sendo aproximativamente comparável a um enunciado: "O plano fílmico se parece mais com um enunciado do que com 59 uma palavra'' • Quando se pergunta em que condições essa imagem se torna um enunciado, tende-se a definir regras de uso, e é esse o projeto de uma semiologia do cinema, conforme as orientações da lingtÚstica saussuriana. Metz passa da cinefilia a uma nova aborda~ gem do cinema, à qual aplica a grade conceitual que elabora com sua ''grande sintagmática'': "O objeto de minha paixão intelectual era 60 a própria máquina linguística' • Em 1964, seu primeiro texto semiológico parte de uma rea~ ção contra a crítica cinematográfica que ignora as renovações linguísticas e que se mantém à parte dos avanços semiológicos, ao mesmo tempo em que aumentam as recorrências a uma linguagem cinematográfica particular: "Parti ali da noção saussuriana de língua. [... ] Eu achava que o cinema podia ser comparado 61 à linguagem, e não à línguà' . Essa formalização extrema da linguagem cinematográfica encontra sua fonte linguística essencialmente na obra de Hjelmslev, cuja noção de expressão define muito bem, segundo Metz, a unidade de base da "linguagem" fllmica, enquanto que a codificação está ligada

334

Gilles Deleuze & Félix Guattari

Dosse

a uma abordagem puramente formal, lógica e relaciona!: "No sentido em que Hjelmslev o entendia ( ~ forma de conteúdo + forma da expressão), um código é um campo de comutabilidade, de diferencialidades significantes. Portanto, pode haver vários códigos em uma

única linguagem" 62 • Deleuze se inscreve em ruptura radical com essa orientação dominante no campus da universidade de Paris-IH, na época o principal

reduto de estudos teóricos sobre o cinema na França. Para ele, não se pode definir a imagem cinematográfica como uma língua, pois isso significa deixar de lado o que especifica a imagem como movimento e como tempo. Deleuze qualifica Metz de "kantiano", qualificativo mais laudatório, mas acrescenta que Metz parece não se dar conta disso. Kant é quem remete ao passado pré-crítico a questão metafísica plat6nica do "O que é?" para substituí-la por outra interrogação, a das condições de possibilidade. Ao par antigo da essência a descobrir por trás da apáfência sucede o par dos fatos atestados e das condições de sua possível emergência. Metz é kantiano na medida em que descarta como um falso problema a questão de saber se o cinema provém, como clamam os pioneiros, de uma língua universaL Ele desloca essa questão se perguntando: "Em que condições o cinema pode ser considerado como uma linguagem?"63. Deleuze elogia a prudência de Metz quando fundamenta sua demonstração em um fato histórico atestado, o da dominação do cinema de Hollywood como matriz do cinema narrativo. Deleuze não concorda mais com Metz quanto ao preço a pagar: "Desde que se substituiu uma imagem por um enunciado, deu-se à imagem uma falsa aparência, tirou-se dela seu caráter aparente mais autêntico, o movimento"64. Tudo se reduziu à linguagem com suas regras, e é a narração que faz a diferença entre a fotografia e a imagem -cinema segundo Metz: "Passar de uma imagem a duas imagens é pas65 sar da imagem à linguagem" • Os discípulos de Metz seguem o mesmo caminho que conduz a suspender o movimento naquilo que é definido como uma "sf!ITüocrítica''.

Metz tem como ambição construir uma "grande sintagmática", que faz rir Deleuze: "Isso me provoca o riso, pois ouço 'a grande 66 senhora está morta', é Bousset!" . Sempre de maneira divertida, Deleuze diz ouvir, atrás da grande sintagmática, a grande paradigmática, mas Metz admite que para o cinema esta sereveste de pouca importância, pois é infinita em suas possibilidades. À semiologia saussuriana, Deleuze opõe uma outra fonte de inspiração, que lhe permite avançar em seu desígnio de construir harmônicas de signos na continuidade do que havia feito com Proust. Quando fala em cinema, tem em mente uma classificação de signos. Anunciando aos seus alunos, em 2 de novembro de 1982, que .irá retomar e ruminar, "à maneira de uma vaca·, acrescenta, seu curso do ano anterior sobre o cinema, ele parte dessa intuição de que tem algo de importante. Sua intenção é prosseguir em uma exploração sistemática dos signos: "Não digo, se chegar a essa classificação, que ela vai mudar o mundo, mas que ela vai me mudar, e 67 isso me dá o mesmo prazer" • Deleuze não tem a ambição de estabelecer para o cinema o equivalente da tabela de Mendeleiev. Mais do que Saussure, é o inventor da semiótica, Charles Sandres Peirce, que vai desempenhar o papel de caixa de ferramentas e dar uma direção bem diferente de pesquisa, pragmática, privilegiando 6 a ação e os usos s.. Peirce assinala o fato de que cada degrau contém degraus precedentes. Seu interesse maior aos olhos de Deleuze está na concepção dos signos como ligados a outra lógica que não a ela língua. De fato, sua trilogia está ligada fundamentalmente à imagem-movimento e permite pensar a imagem cinematográfica segundo a lógica endógena. Contudo, Deleuze não se deixa aprisionar pela "pulsãó' classifica~ tória de Peirce. Em primeiro lugar, dá a ela outra acepção, mas, principalmente, recusa a ideia de fechar o sistema com a terceidade. O modelo saussuriano não podia interessar a Deleuze. pois é sincrônico, negador de todo movimento em nome da lei que rege o sistema, e além disso exclui a palavra como objeto da ciência linguística em proveito apenas da língua.

Os pioneiros do estudo cinefílico na universidade O nascimento do departamento de estudos cinematográficos de Paris-lll remonta a 1969. Esse ensino é entáo dos mais confidenciais, fruto da vontade de um único indivíduo, Alain Virmaux, especialista em Antonin Artaud, assistido por sua esposa. No ano seguinte, esse pioneiro amplia sua equipe e, aconselhado por Raymond Bellour, telefona para os Cahiers para recrutar professores: Jacques Aumont, Pierre Baudry, Pascal Bonitzer e Pascal Kané aceitam a missão e se lançam, sem nenhuma experiência, em uma aventura que em pouco tempo será um sucesso espetacular. Os estudantes afluem e esses críticos de cinema serão obrigados a dar aula em anfiteatros, diante de 200 a 300 pessoas. Em 1971, apesar do sucesso, os quatro companheiros dos Cahiers ficam sabendo que não serão recontratados. Dispostos a brigar, procuram um advogado, ocupam junto com seus alunos a sala do presidente da universidade e obtêm ganho de causa. Contudo, preocupados em estabilizar esse departamento, recorrem ao cineasta René Gilson para dirigi-lo. É este último que recruta Michel Marie, militante comunista que, com suas qualidades de organizador, estabelece as bases acadêmicas do departamento. Paris-lll ganhou a aposta do reconhecimento, a ponto de ter~se tornado o epicentro dos estudos universitários franceses sobre a teoria elo cinema: foi lá que tiveram lugar em 1983 as primeiras nomeações de titulares. A semiologia estrutural do cinema tal como a concebe Christian Metz é então dominante na instituição vizinha que é o EHESS'', onde ele coordena seu seminário, que frequentemente se prolonga em Paris- !li. Os pilares do departamento de Paris-lll passam a ser Michel Marie, Roger Odin, Jacques Aumont, François Jost e Marc Vernet. Assim, quando em 1983 aparece o primeiro volume de Deleuze sobre o cinema, A Ima-

'~
335

gem-Movimento, ele causa pavor e reprovação do lado dos universitários especialistas desse campo: "No meu caso, minha reação foi de uma terrível resistência. Bergson, isso não me interessava de jeito nenhum, era o inimigo do povo, eu tinha lido meu Politzer quando menino. Depois, eu achava que ele forçava portas abertas: passar 300 páginas muito complicadas para nos dizer que a imagem está em movi69 mento, obrigado, eu já sabia" • Situando-se no cruzamento dessas duas correntes, Raymond Bellour acha severa a crítica deleuzíana das teses de Christian Metz. Considera que Deleuze, de quem aliás aprecia muito a contribuição no campo da teoria do cinema e ao qual consagra todo seu curso de 1989 e 1990, rejeita de forma um tanto quanto violenta a questão da narratividade. Ele partilha com André de Souza Parente a ideia de que há "processos narrativos imageantes" a partir dos quais se pode afirmar que a narração de início faz parte da imagem. A imprensa, por sua vez, dá uma boa acolhida a essa incursão do filósofo Deleuze nesse novo continente. Le Monde publica uma longa entrevista de Deleuze com Hervé Guibert. Deleuze explica ali que não se trata, com essa obra, de uma história do cinema, mas de um ensaio de classificação de signos e de imagens. Ele evoca o prazer que experimenta nas salas de cinema especializadas, como o Mac Mahon, onde pôde assistir a toda a obra de joseph Losey. Quanto ao que o levou a escrever sobre esse tema, explica que na infância, por volta de 10 anos, antes da guerra, já ia muito ao cinema: "Tenho lembranças de filmes e de atores dessa época. Eu amava Danielle Darrieux, e Saturnin Fabre me agradava muito, pois me causava medo e me fazia rir, ele tinha inventado uma dicção'' 70• Contudo, no pós-guerra, a filosofia o absorve quase por completo: "O que me levou a escrever sobre o cinema é que eu arrastava há muito tempo um problema dos signos. A linguística me parecia inapta para abordá-10m. Serge Daney consagra uma página de Libéra72 tion à obra e também dá a palavra a Deleuze • O mesmo acontece com os Cahiers du Cinéma13. Por sua vez,Jérôme Bindé saúda esse livro

336

Dosse

que demonstra que a irrupção da sétima arte nesse século necessitava de uma verdadeira re-

volução filosófica, que Deleuze realizou74 • Contudo, o essencial dos teóricos do cinema reserva urna acolhida muito crítica, quando não cáustica, à obra de Deleuze. Embora em seu seminário Christian Metz aceite o princípio da crítica de suas teses, esclarece que Deleuze e ele não falam da mesma coisa, o que lhe permite evitar um confronto direto: "Metz não era filósofo, mas professor de gramática, e se sentiu muito atingido. Ele era, aliás, de uma fragilidade pessoal incrível. Mas decidiu não avançar no terreno do contraditar e então fez de conta que não lhe dizia respeito"75• Quando aparece A Jmagem-lvfovimento, Metz não é mais o líder de uma semiologia generalizada em plena expansão, e seu isolamento é cada vez maior. Sua reação de retraimento consolida seu primeiro círculo, o de Michel Marie, Roger Odin, Marc Vernet, François Jost e todos os frequentadores de seu seminário, em uma 'i'ejeição violenta das teses de Deleuze. Essa reação acadêmica se mantém por muito tempo. Com apenas algumas exceções, é preciso esperar os anos de 1990 para que os estudantes imponham aos seus professores as obras de Deleuze sobre o cinema. Essa experiência é vivida por jacques Aumont, que reconsidera agora suas primeiras impressões negativas a partir do trabalho de pesquisa de seus alunos e, em particular, de seu doutorando Dork Zabunyan76. Dominique Château ainda permanece muito crítica e muito polêmica nos anos 1990, vendo em Guattari um guardião do templo filosófico: preocupado sobretudo em conservar um monopólio sobre o conceito, ele teria uma concepção "canibal da fllosofiàm. As duas obras consagradas por Deleuze ao cinema são, para ela, uma espécie de roupagem filosófica de uma concepção puramente baziniana que não leva em consideração as contribuições da teoria filmolinguística de Metz: "Deleuze descarta a hipótese linguística para voltar ao simplismo dos postulados bazinianos (e bergsonianos)"78• Nesse meio dos teóricos do cinema, Jean-Louis Leutrat é\im pouco exceção, pois es-

Gilles Deleuze & Félix Guattari

capou à semiologia de Metz e muito cedo travou relação com a obra de Deleuze. Estudante em Lyon nos anos de 1960, não foi aluno de Deleuze- fazia um curso de literatura-, mas um de seus professores, Robert Mauzi, escreveu uma longa resenha de Proust e os Signos. Portanto, descobre Deleuze precocemente e, quando aparecem os livros deste sobre o cinema, já conhece bem as temáticas deleuzianas que são para ele pontos de apoio para resistir à onda semiológica que conduz a crítica cinematográfica a praias que julga estéreis. Ao publicar em 1988 uma obra sobre o cinema, dedica-a Gilles Deleuze79, tendo o cuidado de lhe enviar antes uma cópia para ter sua aprovação. Esse será o ponto de partida de trocas epistolares e de alguns encontros. Bom conhecedor da obra de Deleuze, Leutrat identifica nele um interesse já manifesto pelo cinema na rápida progressão das referências cinematográficas desde Diferença e Repetição (1968). Sua análise do fllme de Welles, Cidadão Kane, e a afirmação de que "o tempo não está mais subordinado ao mov:imentd'80 preflguram o corte que conceituará bem mais tarde entre imagem-movimento e imagem-tempo. O Anti-Édipo ainda menciona apenas um filme de Nicholas Ray, Atrás do Espelho, e outro de Chaplin, Tempos Modernos, mas em Mil Platôs (1980) já se encontram reflexões técnicas sobre o grande plano e referências a Godard, Eisenstein, Herzog. Hitchcock, Sternberg, Wenders e Daniel Mano. Alguns conceitos essenciais são apresentados desde essa obra escrita com Guattari, o de ''dividual" ou ainda esse canteiro importante de exploração do virtual, de modo que é preciso ver esses dois livros sobre o cinema na estrita continuidade das indagações filosóficas de Deleuze. Assim, "uma parte de A Imagem-Tempo se desenvolve a partir do segundo capítulo de Diferença e Repetição"". Na contracorrente, Leutrat é um dos poucos a poder situar essas intervenções de Deleuze sobre o cinema na coerência do conjunto de sua filosofia. Na medida em que Deleuze vai se tornando moda nos estudos cinematográficos, Leutrat é cada vez mais requisitado para

orientar teses ou participar de bancas, visto que pode argumentar de uma posição acadêmica sólida na condição de presidente da universidade de París-III durante cinco anos. Quando Deleuze se aposenta no final do ano letivo de 1987, confia a ele dois de seus doutorandos que estão trabalhando na área do cinema: Véronique Tacqüin, especialista em 82 Dreyer, e Alain Ménil •

O sismo de 1939-1945 Os especialistas do pensamento de Deleuze sabem de sua desconfiança nietzschiana diante do fardo da história e por isso se tranquilizam quando ele esclarece que seu projeto de cinema consiste em realizar uma classificação das imagens e dos signos. Contudo, logo são pegos a contrapé por uma tese inteiramente ordenada em torno de um corte histórico muito incisivo, a partir do qual se desenvolvem dois modos de ser da imagem: uma imagem-movimento antes da Segunda Guerra Mundial e uma imagem-tempo em seguida. Como um filósofo como ele - perguntam-se alguns - pode ceder tão facilmente a um historicismo que sempre combateu firmemente? Seria na verdade uma conexão necessária ao enredo, às imposições narrativas específicas a um desenvolvimento no tempo de seu trabalho de classificação dos signos? A hipótese que se lança aqui pretende dar a devida importância a esse corte, para além das imposições próprias à narrativa, ligando-a a um questionamento muito mais profundo de uma visão teleológica da história, que se traduziu em uma crítica permanente da dialética hegeliana. Pensar a modernidade implica para Deleuze "renunciar a Hegel", como, aliás, sugere no mesmo momento Paul Ricceur em Tempo e Narrativa. Se é preciso renunciar a esse grande fllósofo é porque um sismo muito forte abalou nossa relação com o mundo desde o triunfo da barbárie nazista no coração da Europa. Não se pode mais sustentar uma visão ingênua e linear de uma história que realizaria,

337

seguindo uma linha de progresso contínua da espécie humana, o reino da Razão. A relação com o mundo será afetada, e Deleuze é, nesse sentido, um fllho da Segunda Guerra, que o interpelou quando era ainda adolescente. Assim, o cinema foi para ele um observatório privilegiado para medir a força de desestabilização da grande tragédia do século XX. A maior ambição do cinema expressada pelos pioneiros da primeira geração é renovar profundamente a relação com o mundo e com o pensamento deste último. Torna-se então uma arte de massa para as massas, onde o povo é sujeito do pensamento cinematográfico, sujeito de inspiração e de enredo para Eisenstein como para Abel Gance. Segundo esses primeiros realizadores, o cinema pode se tornar o modo de expressão de uma língua universal, que acaba por se romper com a tragédia da história: torna-se, ao contrário, um instrumento de propaganda, de manipulação das massas, um ingrediente da política totalitária. Sobre esse ponto, Deleuze retoma as análises de Serge Daney segundo as quais as ambições libertárias do cinema viraram obra de submissão. O que se discute após a Segunda Guerra Mundial e que provoca uma ruptura radical com o cinema enquanto imagem-movimento são "as grandes realizações políticas, as propagandas de Estado que se tornaram quadros vivos, as primeiras transportações humanas de massâ'83• A política concentracionista e a obra cinematográfica que a acompanhou, como a de Leni Riefenstahl, derrotaram os sonhos de emancipação trazidos pelo cinema. Ao invés de alavanca de uma renovação do pensamento, o cinema se torna o lugar de sua asfixia. Enquanto se pensava poder transformar as massas em atores responsáveis por sua própria história, o cinema contribuiu para sua submisSão, para o seu êxtase e para uma brutalização generalizada. A guerra foi sempre uma grande realização, cada vez mais sofisticada, na medida de sua modernização, e o que ela empreende consiste menos em ocultar do que em exibir mentiras. Segundo Paul Virilio, o desejo de

338

Gilles Deleuze & Félix Guattari

Dosse

Goebbels, até a derrocada final do Reich, era rivalizar com Hollywood. Haveria, portanto, uma relação circular, em espelho, entre os dois mundos opostos no terreno militar, mas unidos na mesma imagem do pensamento. Terminada a guerra, forma-se uma nova aliança entre o cinema e o pensamento. Ao mesmo tempo em que o totalitarismo interrompeu o evolucionismo progressista do Ocidente, o sonho americano de uma sociedade fraterna desmorona no pós-guerra. Em primeiro lugar é a crise de Hollywood e a ruína do sonho de integração americana como crisol de uma única e mesma civilização. Por outro lado, a evolução técnica que favorece a proliferação de imagens alimenta uma crise generalizada da imagem em seu poder de encarnar o mundo. A isso é preciso acrescentar um questionamento do enredo no romance americano do qual Dos Passos é um dos representantes: "Resta uma totalidade, mas dispersiva"84. Dali sairá, 20 anos mais tarde, o novo ciuema de Robert Altman, de Sidney Lumet e de john Cassavetes, em que não há mais personagem principal, mas uma pluralidade de casos não hierarquizados em uma narrativa 85 patchwork" • O mundo circundante tornou-se o inumano, o impensável. A barbárie acabou com a esperança de libertação. Não se acredita mais no mundo, e a nova função atribuída ao cinema é "fflzer acreditar em uma relação do homem com o mundo"86 • Assim, a ligação entre o homem e o mundo se teria rompido irremediavelmente entre 1939 e !945: "É essa ligação que deve se tornar objeto de crença: é impossível que ela seja refeita a não ser em uma fé. A crença não se dirige mais 87 a um mundo diferente, ou transf0rmado" • Assim, o cinema não tem mais como finalidade ser o reflexo de um suposto real, mas passa a ser a expressão da própria crença no mundo, restituindo, pela ilusão e pelo reencantamento do mundo, a confiança em um suporte social da existência humana: "Cristãos ou ateus, em nossa universal esquizofrenia temos necessi- para acred'ltar nesse mund o.. ss . d a d e d e razoes Dessa ruptura1esulta um desmoronamento do

esquema sensório-motor que estava na base do desenvolvimento da imagem-movimento. O cinema clássico anterior a essa ruptura era um cinema tonal que encadeava os cortes racionais segundo um esquema linear e lógico. Trata-se, então, de um cinema-verdade cujos encadea~ mentos exteriorizam um todo que se supõe ser o verdadeiro. Entretanto, real ou fictício, pouco importa para Deleuze, esse cinema clássico visa chegar a uma verdade. A outra dimensão própria ao cinema clássico é oferecer uma representação indireta do tempo, pois ela depende do movimento com seus encadeamentos lógicos e sua exteriorização em uma totalidade realizada graças à operação da montagem. O cinema moderno rompe com essas componentes e promete uma configuração muito diferente. Ele não é mais tonal, e sim serial, conforme um regime de encadeamentos e reencadeamentos de imagens a partir de disjunções e de cortes irracionais. Não busca mais a verdade, mas mostra atitudes corporais que decorrem do gestas, ou seja, de comportamentos que não traduzem o vivido, mas tentam se livrar de suas imposições e daquelas da história.

Da imagem-movimento à imagem-tempo De acordo com as três modalidades definidas por Bergson de imagem-percepção, imagem-afeição e imagem-ação, o cinema é antes de mais nada movimento. Deleuze identifica quatro correntes cinematográficas que se distinguem principalmente no plano da montagem, pois é lá que tudo se opera no desenrolar do movimento e das escansões. A escola americana privilegia o orgânico na composição das imagens-movimentos. Griffith é quem leva mais longe essa ambição. Esse organismo sempre ameaçado de implodir constitui o enredo dessa nova nação que surge das ondas de imigração mais diversas e cuja trágil unidade é preciso preservar: "É próprio do conjunto orgânico estar sempre ameaçado; é disso que os negros são acusados em Nasci-

menta de urna Nação, de querer romper a unidade recente dos Estados Unidos aproveitando a derrota do Sul"~ . Do lado soviético, na mesma época, o problema é outro. Trata-se de mostrar que os sacrifícios presentes se inscrevem em uma lógica dialética de superação por um mundo melhor. Nessa dialética, a divisão é motriz do movimento histórico que conduz ao futuro de acordo com as leis do desenvolvimento genético. Eisenstein levou essa divisão ao cume. Há também unidade, mas conforme uma dinâmica, uma motricidade que ele induz em um movimento inexoráveL Sua expressão é o patético pelo qual a consciência se revela a si mesma como participante do movimento histórico. Eisenstein expressa na tela essa lei essencial da dialética segundo a qual "o Uno se torna dois e forma uma nova unidade, reunindo o 90 todo orgânico e o intervalo patéticd' • Do lado francês, os realizadores sugerem outra via com a composição mecânica de imagens-movimento conforme duas modalidades: a da máquina-autômato do tipo relojoaria e a da máquina a vapor, a máquina termodinâmica: "A união cinética do homem e da máquina definirá uma besta humana, muito diferente da marionete animada, e da qual Renoir saberá explorar as novas dimensões'm. A essa mecânica dos sólidos se acrescenta na França uma mecânica dos fluidos que revela o gosto pronunciado dos realizadores franceses pelas águas correntes, as margens dos rios, do mar... Finalmente, o outro reduto de criação dinâmico dessa época situa-se na Alemanha com o expressionismo, que se concentra na luz como vetor de intensidade no movimento. Wegener e Murnau se tornaram mestres desse gênero que pretende traduzir as forças do abismo, a opacidade das profundezas, para melhor destacar a luminosidade e o jogo dos claros-escuros. O expressionismo encontra inspiração na vida não orgânica: "É o vital como potente germinalidade pré-orgânic~\' 92 • A tomada de consciência da crise da imagem-movimento só intervirá após 1945. Fica evidente nessa época que a ação dificilmente 9

339

pode modificar uma situação globaL A imagem não remete mais, então, a uma unidade orgânica, mas a elementos esparsos, disseminados. Por outro lado, o fio condutor que ligava uma imagem a outra se rompeu, e o contingente vem substituir as conexões lógicas. A ação determinada por seu alvo se transforma em passeio que tende à errância, abertura para todas as surpresas. Finalmente, um poder inquietante, oculto, confundido com os suportes da comunicação parece identificar-se aos seus efeitos: "Tais são as cinco características aparentes da nova imagem: a situação dispersiva, as ligações deliberadamente fracas, a forma-passeio, a tornada de consciência dos clichês, a denúncia do complô'm. Mais uma vez, Deleuze invoca razões históricas para explicar por que é a Itália do pós-guerra que assiste primeiro ao desmoronamento da imagem-movimento com o aparecimento do neo-realismo. Terminada a guerra, a Itália encontra-se de fato em uma situação ambígua. Ao mesmo tempo em que participou plenamente ao lado da Alemanha nazista na submissão da Europa, viu seu povo se erguer contra o regime fascista. É nesse terreno minado, em meio a esse tapete de folhas mortas e de ilusões perdidas que nasce, com Rossellini, De Sica e muitos outros, esse novo cinema que faz saltar pelos ares tudo o que tinha constituído o elo da imagem-movimento. Assim, De Sica desconstrói a relação ação-situação-ação que faz a ligação entre os acontecimentos em Ladrões de Bicicleta, dando todo o espaço à contingência. A figura do falsário, da falsa aparência, substitui a busca da verdade do cinema clássico. Essa crise do cinema-ação se traduz no fato de que o esquema sensório-motor é substituído pela singularidade própria a certas situações óticas e sonoras que valem por elas mesmas. Dão lugar a novos signos, chamados por Deleuze de ''opsignos" e "sonsignos", que têm como efeito embaralhar as fronteiras entre o real e o imaginário: "Um tal regime de troca entre o imaginário e o real aparece plenamente em Noi94 tes Brancas, de Visconti" • O destino do neo-re-

340

Gilles Deleuze & Félix Guattari

François Dosse

alismo italiano é particularmente brilhante com Visconti, Fellini, Antonioni, Pasolini...

Esse corte entre duas eras do cinema, a de um cinema clássico e a de um cinema moderno, é contestada por jacques Ranciêre:

"Clara em seu enunciado, a divisão se obscurece quando se entra no exame das duas 95

questões que ela levanta" • Segundo Ranci€re, há uma diferença de ponto de vista entre a imagem-movimento e a imagem-tempo, mas apropriada às mesmas imagens que podem

ser examinadas alternadamente em termos de imagens-afeição e imagens-cristal. Essa oposição seria, portanto, puramente fictícia. Haveria assim, segundo Ranciêre, uma forma de foucaultianismo em Deleuze na sua prática

de cortes, na separação entre o momento da lógica sensório~ motora, o da imagem-movimento e o de seu questionamento com a imagem-cristal.

O pensamento-imagem O que suscita o interesse filosótlco de Deleuze pelo cinema é, sobretudo, a constatação do automatismo da imagem cinematográfica que se parece com o funcionamento do pensamento. Nesse plano, ele descobre um precursor na pessoa de Epstein, que, no início do século, 96 tentou construir uma "filosofia do cinemà' • Segundo Epstein, a invenção dessa nova técnica inaugura um novo modo de pensamento capaz de mudar nossa relação com o mundo. Epstein insiste, como Deleuze fará mais tarde, sobre essa possibilidade de um acesso direto ao tempo: "O tempo para Epstein aparece no cinema como a quarta dimensão que se acrescenta às três dimensões espaciais ... No cinema, o tempo aparece como sendo nas coisas'm. Segundo Epstein, o automatismo da câmara é fonte de positividade, e a nova subjetividade que se origina dela se encontra fixada, conectada à máquina: ''A imagem cinematográfica designa o mundo sem intermediário, atinge sua presença pura. É nessas condições que Epstein pensa o cinema có!no essencialmente poético,

ele permite de fato encontrar uma ligação direta, eminentemente sensual com o mundo"98• Essa fonte de inspiração não é na verdade surpreendente, pois Epstein é bastante influenciado pelo bergonianismo. De fato, encontra-se nele a mesma preocupação de evitar a separação instituída pela fenomenologia entre a ordem da consciência e a ordem do mundo. A imagem-movimento é automovimento, automática, solicita a imagem do pensamento. Esse caráter de automatismo decorre das técnicas de gravação e de projeção, mas está presente também no conteúdo representado. O fato de os expressionistas alemães representarem Golem, sonâmbulos e outros zumbis é significativo dessa fascinação. Para Robert Bresson, ainda, o modelo cinematográflco é o autômato espiritual. Esse automatismo revitaliza a ambição de ter acesso aos mecanismos inconscientes do pensamento. Tomando de Bakhtin a noção de cronotopo, que define um espaço-tempo, um continuam espaço~tem­ poral, Deleuze pretende restituir, por meio da expressão cinematográfica, um cronotopo do pensamento que sofre variações cuja lógica a filosofia pode compreender: "Esse espaço99 -tempo é balizado por gritos" . Sob as camadas do discurso, é preciso, portanto, buscar a singularidade dos gritos filosóficos. A filosofia pressupõe uma imagem do pensamento que é uma de suas condições de possibilidade, e esta remete a um cronotopo no qual vibra uma singularidade própria a cada pensador. Para De!euze, o que fundamenta a aproximação entre a imagem-cinema e a imagem do pensamento tem a ver, então, com essa espontaneidade, com esse automatismo próprio à imagem do cinema. É essa relação direta com o tempo que marca a segunda geração de cineastas. Assim, para Robert Bresson, os filmes são meios de representar autômatos espirituais capazes de restituir os automatismos da cotidianidade: "Portanto, o cinema faz ascender em nós o autômato espirituaL Que 100 bela ideia!" • Com esse automatismo, não se tem acesso aos mecanismos inconscientes do pensamento? É o que pensa o psiquiatra Fi erre

Janet no fina!zinho do século XIX, exatamente no momento em que nasce o cinema. Deleuze ironiza a propósito da concepção crítica do cinema desenvolvida por Georges Duhamel ao se queixar de não conseguir mais pensar quando as imagens moventes do cinema substituíam seus próprios pensamentos. Ele exprimia assim uma oposição radical entre imagem e pensamento. Essa concepção, segundo Deleuze, é absurda: "É justamente porque o cinema é capaz de dar vida ao autômato espiritual que ele está em uma relação funda- com men t a I com o pensamento,Jol . A conexao o pensamento filosófico se faz, portanto, nos dois extremos da cadeia: no plano ela lógica formal supraconsciente, assim corno no plano da investigação sobre o funcionamento do cérebro e dos modos de transmissão por encadeamentos e reencadeamentos de neurônios. Esta última dimensão aproxima as pesquisas deleuzianas daquelas das ciências cognitivas sobre a transmissão de um neurônio ao outro, mas, sobretudo, daquelas de um Gilbert Simondon sobre a estrutura topológica do 10 cérebro ~. Deleuze desloca, assim, a questão da verdade representativa - seu alvo crítico favorito: a imagem-pensamento à qual o cinema nos dá acesso não é absolutamente o prolongamento de qualquer interioridade ou exterioridade cuja verdade seria projetada na tela. Ao contrário, a imagem-pensamento provoca o pensamento na medida em que opera uma disjunção que deixa entrever a relação direta com o tempo: "O tempo aparece mais como uma força que provoca o pensamento dissociando-o de sua imagem ou de sua autor103 representação 'verídica"' • A partir desse postulado, todo o princípio de identidade se desagrega, e o verdadeiro não pode se referir ao imutável, ao idêntico: "O que antes se chamava de ']eis' do pensamento (os princípios de identidade, de contradição e do terceiro excluído) 04 encontra-se privado de todo fundamentd>l • A verdade se deslocou, então, para terreno do revolto, das transformações; ela remete à mudança inexorável, à potência do falso, do devi r da diferenciação: "Deleuze reescreve aqui o

341

princípio ontológico de Bergson - segundo o qual a disjunção temporal entre percepção e lembrança informa nossa liberdade de pensamento e de escolha- adaptando-o à afirmação nietzschiana do eterno retorno da diferença 10 na repetiçãd' .5. O que sempre se constata ser o alvo crítico de Deleuze, em sua valorização do que permite a imagem-tempo, é o distanciamento que ele autoriza em face da opinião pronta, da doxa. Assim, são transbordamentos, excessos da consciência dominada mostrados na tela: "Pensar é aprender o que pode um corpo não pensante, sua capacidade, suas atitudes ou posturas. É pelo corpo (e não mais por intermédio do corpo) que o cinema se casa com o espírito, com o pensamento" H)~>. Segundo Deleuze, quem foi mais longe nesse campo da expressividade corporal, além do dito, foram Antonioni, Cassavetes, Rlvette, Godfard, mas encontram-se também, um pouco mais tarde, Chantal Akerman, Jean Eustache, Philippe Garrel nesse cinema de posturas, do gestus e das diversas atitudes corporais. Alguns cineastas conseguem inclusive exprimir possíveis disjunções entre a dimensão das atitudes corporais e o cérebro. É o caso de Antonioni, cuja obra, como se disse muitas vezes, não passa pelo tema da solidão e da incomunicabilidade, e sim do dualismo profundo entre um cérebro moderno inteiramente voltado às potencialidades criativas oferecidas pelo mundo, mas confrontado com um corpo usado, fatigado, às voltas com uma neurose que o esteriliza. Resnais também foi um grande explorador dos mecanismos cerebrais. O que o cinema desvenda não se limita a um mundo de imagens. Ele mostra urna dimensão essencial da vida confrontada com a duração, a dos cristais de tempo: "O cristal é expressão. A expressão vai 107 do espelho ao germe" • Werner Herzog conjugou o atual e o virtual nessas imagens-cristal, particularmente em Coração de Cristal. É também o caso do cinema de Andrei Tarlovsky: O Espelho, Solaris, Stalker. Quanto a Max Ophüls, conseguiu restituir o cristal puro: "Na imagem-cristal há essa busca mútua, cega e

342

Gilles Deleuze & Félix Guattari

Dosse

tateante, da matéria e do espírito"

108



Com essa

imagem-cristal, Deleuze aproxima mais uma vez as inspirações bergsonianas de uma imbricação temporal do presente e do passado, pois o que se percebe através do cristal é justamente essa duplicação do tempo: "O que se vê no cristal é sempre o irromper da vida, do tempo, em sua duplicação ou em sua diferenciação'' 109 . Com o cristal, é o tempo a que se tem acesso

em seu próprio processo de cisão e, portanto, o que se percebe é menos o tempo em si mesmo do que a força que ele veicula, seu processo. O que apaixona Deleuze é o surgimento do tempo no cristal, que permite ultrapassar o nível de análise psicológica e neuronal para

explicar a ação humana. Deleuze esclarece ainda na conferência da Pernis de 17 de março de 1987 que marcará época: "O que é o ato de criação'!". A filosofia, diz Deleuze, não tem

como tarefa refletir sobre o cinema, pois os cineastas não precisam do filósofo para lhes dizer como devem pensar sua prática. Ele qualifica sua Contribuição como uma maneira de

teorizar não o cinema, mas "os conceitos que o cinema suscitd' 1w.

Notas I. 198 H 982: 1982·1983: 1984-1985. 2. Giles DELEUZE, Cinéma 1. L'image-mouvement, Minuit, Paris, 1983 (doravante citado IM); Cinéma 2. L'image-temps, Minuit, Paris, 1985 (doravante citado rr).

3. O departamento de cinema da universidade de Vincennes nasceu de um departamento de

'Artes", constituído na criação de Paris-VIII, no outono de 1968. Mas, em pouquíssimo tempo, o grande afluxo de estudantes impôs

dividir esse departamento inchado. É assim que alguns professores vão constituir um departamento de cinema, sobretudo para satisfazer seu gosto pela sétima arte. 4. Jean Narboni, entrevista com o autor. 5. Guy FIHMAN, "Deleuze, Bergson, Zénon d'Élée et le cinéma'', em Olivier FAHLE, Lorenz ENGELL (dir.), Le Cinéma selon Deleuze, Verlag der Bauhaus-Universitãt Weimar, PI·esses de la Sorbonne nqttvetle, Paris, 1997, p. 66.

6. Gilles DELEUZE. B. 7. Gilles DELEUZE, "Trois questions sur Sixfois deux", Cahiers du cinéma, n. 271, novembro de 1976; reproduzido em PP, p. 55-66. 8. Jean Narboni, entrevista com o autor. 9. Ibid. 10. André de Souza Parente, entrevista com o auto r. 11. Apenas em 2005 ele publica uma obra na França sobre esse tema. Na época, é diretor do Centro de Pesquisa Cultura e Tecnologia da Imagem da Universidade Federal elo Rio ele Janeiro (André de Souza PARENTE, Cinéma et narrativité, L'Harmattan, Paris, 2005, obra já publicada no Brasil, com prefácio de Raymond Bellour). 12. Serge TOUBJAi\lA, "Le cinéma est deleuzien", Cahiers du cinérna, n. 497, dezembro de 1995, p.20. 13. fbid. 14. Ibid., p. 21. 15. Gilles Deleuze, "Une art de planteur", em De-

leuze, Faye, Roubaud, Touraine parlent de 'Les Autres' - un film de Hugo Santiago, écrit en coL!aboration avec Adolfo Bioy Casares et]orge Luis Borges, Christian Bourgois, 1974; reproduzido em ID, p. 401-403. 16. Gilles Deleuze, "Le juifriche", Le Monde, 18 de fevereiro de 1977; reproduzido em RF, p.123. 17. lbid., p. 124. !8. Claude LANZMAl"\JN, "Réponse à Gi!les Deleuze. Nuit et Brouillard", Le jl;fonde, 23 de fevereíro de 1977. 19. lbid. 20. Os Cahiers passam de 15 mil números vendidos (assinatura e banca) entre 1968 e 1973 para 3.403! Cifra extraída de Antoine DE BAECQUE, Cahiers du cinérna, histoire d'une revue, tomo 2, ed. Cahiers du cinéma, Paris, 1991, p. 225. 21. Serge Toubiana, entrevista com o autor. 22. lbid. 23. Six Jois deux!Sur et sous la cornmunication [Seis vezes dois/Sobre e sob a comunicação] é uma série de programas transmitidos pela televisão em 1976 com a advertência de que ela não tem as características usuais dos outros programas. Jean-Luc Godard desenvolve ali uma reflexão sobre a comunicação e, em particular, sobre a produção, a transmissão e a

recepção de informações na televisão. Os seis programas comportam cada um duas partes complementares: uma teórica sobre um aspecto da produção e do consumo ele imagens à qual se segue uma entrevista com uma pessoa que expõe um ponto de vista subjetivo. Jean NARBONI, "Gilles Deleuze ... une aile de 24. papillon", Cahiers du cinéma, n. 497, dezembro ele 1995, p. 24. 25. Gilles DELEUZE, "Trois quesüons sur Sixfois deux", Cahiers du cinéma, n. 271, novembro de 1976; reproduzido em PP, p. 56.

26. Ibid. e PP, p. 57. 27. Jean Narboni, entrevista com o autor. 28. Pascal Bonitzer (1977), citado por Antoine DE BAECQUE, Cahiers du cinéma, histoire d'une revue, tomo 2, op. cit., p. 296. 29. Pascal Bonitzer, entrevista com o autor. 30. Dominique Palni, entrevista com o autor. 31. Jean NARBONI, "Gilles Deleuze ... une aile de papillon", art. cit., p. 25. 32. Gil!es DELEUZE, "Lettres à Serge Daney: op· timisme, pessimisme et voyage'', prefácio a Serge DANEY, Ciné journal, ed. Cahiers du cinéma, Paris, 1986, reed. PP,p. 97-112. 33. lbid., p. !OI. 34. Ibid., p. 110. 35. Ver a biografia de Dudley ANDRE:W, André Bazin, ed. Cahiers du cinéma, Paris, 1983. 36. Antoine DE BAECQUE, Cahiers du cinéma, histoire d'une revue, op. cit., tomo 1, p. 58. 37. André BAZJN, Qu'est-ce-que !e cinéma?, Cerf, Paris, 1976. 38. Serge Toubiana, entrevista com o autor. 39. Michel Ciment, entrevista com o autor. 40. Michel CIMENT, Kubrick, Caimann-Lévy, Paris, 1980; Les Conquérants d'un nouveau monde: essais sur le cinéma arnéricain, Gallimard, Paris, 1981. 4!. A.lain Ménil, entrevista com o autor 42. Michel Ciment, entrevista com o autor. 43. Raymond Bellour, entrevista com o autor. 44. Gilles DELEUZE. IM, p.7. 45. lbid. 46. Gilles Deleuze, aula em Paris-VIII, arquivos audiovisuais, BNF, 1° de dezembro de 1981. 47. Henri BERGSON, L'Évolution créatrice, PUF, "Quadrige", Paris, 1998, p. 34 L

343

48. Gil!es DELEUZE. IM, p. !8. 49. Paola MARHJ\TI, "Deleuze. Cinéma et philosophie", em LaPhiLosophie de DeLeuze, PUE Paris, 2004, p. 251. 50. Alain Mf:NIL, "Deleuze et le bergsonisme du cinéma", Philosophie, n. 47, setembro de 1995, p. 49; ver também Alain MÉNIL, L'Écran du temps, PUL, Lyon. 1992. 51. Gil!es DELEUZE, IM, p. 97. 52. Gilles Deleuze, aula em Paris-VIII, arquivos audiovisuais, BNF, 5 de janeiro de 1981. 53. Gi!les DELEUZE. IT, p. 75. 54. !bid.• p. 130. 55. O passado contemporâneo do presente dá a imagem virtual ou a imagem em espelho: "Segunclo Bergson, a 'paramnésia' (ilusão do já visto, do já vivido) apenas torna mais sensível essa evidênchl' (ibid., p.106). Essa virtualidade pura não precisa ser atualizada na medida em que está imbricada na imagem presente atual. Ele não tem a ver com um estado psicológico, da consciência, mas só com a dimensão temporal. Não se trata, contudo, de uma temporalidac\e particular, não cronológica, que se deixa adivinhar no cristal: "Cronos e não Chronos'' (fbid., p.l07). 56. Gi!les Deleuze, aula em Paris-VIII, arquivos audiovisuais, BNF, 7 de junho de 1983. 57. lbid. 58. Christian METZ, Essais sur La signification au cinéma, Klincksieck, Paris, 1968. 59. lbid., p. 118. 60. Christian Metz, entrevista com Marc Vernet e Daniel Percheron, Ça, Cinéma, maio de 1975, p.26. 6!. Christian Metz, entrevista com Raymond Bellour, Semiotica, IV, I, 1971, p. 242. 62. lbid... p. 266. 63. GHles Deleuze, aula em Paris-VIII, arquivos audiovisuais, BNF, 26 de fevereiro de 1985. 64. Gi!les DELEUZE, IT, p. 4!. 65. Christian METZ, Essais sur la signification au cinéma, op. cit., p. 53. 66. Gi\les Deleuze, aula em Paris~VIII, arquivos audiovisuais, BNE 5 de março de 1985.

67. Ibid., 2 de novembro ele 1982. 68. Charles Sandres PEIRCE, Écrits sur Le signe, Seuil, Paris, 1978.

344

Dosse

69. jacques Aumont. entrevista com o autor. 70. "Portrait du philosophe en spectateur", entrevista de Gilles Deleuzc, Hervé Guibert, Le JV!onde, 6 de outubro de 1983.

71. Jbid. 72. ''Gilles Deleuze: Cinéma 1, Premiere", Libération, 3 de outubro de 1983. 73. "La protographie est déjà tirée dans les choses", entrevista de Gilles Deleuze com Pascal Bonitzer e Jean Narboni, Cahiers du cinéma, n. 352, outubro de 1983. 74. Jérôme Bindé, Le Nouvel Obsenmteur, 21 de outubro de 1983.

75. jacques Aumont, entrevista com o autor. 76. Dork ZABUNYAN, Gilles Deleuze. Voir, parler,

penser au risque du cinéma, Presses de La Sorbonne nouvelle, Paris, 2006.

77. Dominique CHÂTEAU, Cinéma et philosophie, Nathan, Paris, 1996, p.I07. 78. !bid., p. 142. 79. jean-Louis LEUTRAT, Kaléidoscope, PUL, 1988. 80. Gil!es DELEUZE. DR. p. 139. 81. jean-Louis LEUTRAT, Kaléidoscope, op. cit., p. 146. 82. Alain MÉNIL, L'Écran du temps, op. cit., 1998. 83. Serge DANEY, La Rampe, Gallimard, Paris, 1983, p. 172. 84. Gilles Deleuze, aula em Paris-VHI, arquivos audiovisuais, BNF, 4 de maio de 1982.

85. Jbid. 86. Gilles DELEUZE.IT, p. 222. 87. Jbid., p. 223.

88. 89. 90. 9!. 92. 93. 94. 95.

Jbid., p. 223.

Gilles DELEUZE.IM. p. 48. lbid., p. 59. Jbid., p. 64. Ibid.. p. 76. lbid., p. 283.

Gilles DELEUZE,!T, p. 17.

Jacques HANC[f.RE, La Fable cinématographique, Seuil, Paris, 2001, p.l46. 96. Jean EPSTEIN, L'Jntelligence d'une machine Êcrits sur !e cinéma 1, 2, Seghers, Paris, 1974. '

23 Guattari e a estética ou a compensação aos anos de inverno

97. Suzanne HÊME DE LACOTTE, "Epstein et Deleuze, cinéma et image de la pensée", Chim2res, n. 57, outono de 2005, p. 76-77.

98. Jbid., p. 79. 99. Gilles Deleuze, aula em Paris-VIII, arquivos audiovisuais, BNF, 30 de outubro de 1984.

100. lbid. 10!. Gilles Deleuze, aula em Paris-VIII, arquivos audiovisuais, BNF, 30 de outubro de 1984.

102. Gilbert SIMONDON, L'individu et sa gefzese physico-biologique. PUF, Paris, 1964. 103. D. N. RODOWICK, "La critique ou la vérité en crise", !ris, n. 23, primavera de 1997, p. 8; ver também Gilles DeleuzeS Time Machine, Duke Universily Press, Durham~Londres, 1997.

104. 105. 106. 107. 108. 109. 110.

Jbid., p. 14. Ibid., p. 22.

Gilles DELEUZE. ff. p. 246. Jbid., p. 100. Ibid., p. 101. Jbid., p. 121.

Gilles DELEUZE, !T. p. 365.

Em meados dos anos de !980, o chão parece fugir aos pés do incansável Guattari, sempre perseguindo novas ideias. Uma série de acontecimentos afunda aquele que parecia insubmergível. Entretanto, ele continua a dissimular em público, a responder às solicitações crescentes, mas o círculo de amigos, que sabe que a energia se esgotou, tenta desesperadamente tirá-lo de seu mergulho na depressão. Evidentemente, não existe uma única razão para esse revertério, mas um leque de fatores que agem sobre uma estrutura psicológica da qual já mostramos algumas fissuras que pareciam 1 colmatadas • O pensador da desterritorialização se vê de uma hora para outra destituído de seus apegos territoriais. Guattari perde a locação do castelo de Dhuizon perto da clínica de La Borde. com seus 300 hectares, seus 8 lagos e suas 4 fazendas. É despejado também do espaçoso apartamento parisiense da Rue Condé com seus seis cômodos dispostos em torno de um grande salão de festa, no coração do Quartier Latin e a dois passos do jardim de Luxembourg. Guattari está muito mais sedimentado, enraizado do que aparenta. O luto desses dois lugares constitutivos de sua identidade privada e pública lhe é bastante doloroso. Ele arran-

ja uma casa modesta em La Borde, perto do domicílio de Jean Oury. e instala sua mesa no espaço mais sombrio de seu quarto. Essa extirpação dos lugares e dos rituais ligados a eles ocorre, além disso, no momento em que perde a mãe. O crítico fero:z do familialismo não se cansa, então, de exprimir a dor por essa perda: 2 "Ele não parava de dizer que estava órfão'' • A essas perdas se soma o clima político, o dos anos de inverno, que veem ressurgir na superfície traços que se acreditava definitivamente desaparecidos, o racismo, que encontra sua expressão política no avanço da extrema direita e de seu líder, Jean-Marie Le Pen. É a hora dos recuos sob o pretexto das ilusões perdidas. As pessoas preferem cultivar o jardim e se resguardar no seu interior protegido, ao abrigo de outro. A utopia que animara os combates de Guattari se afasta do horizonte como uma simples miragem. A possibilidade de transformar suas angústias existenciais em projetos de esperança política se tornou mais distante para Guattari ao ritmo da acumulação de decepções e desilusões. Em 1978, o olhar caricatura] do desenhista Gérard Lauzier havia esboçado um certo "Gilles Guatareuze", estranho híbrido de Deleuze e Guattari perseguido por uma histérica, que decide recorrer

346

à polícia para interná~la 3 . Guattari se sentiu fortemente atingido: "Sei que Félix ficou mui4 to magoado com as caricaturas de Lauzier" •

Quando François Fourquet reencontra Guattari, após um longo período de afastamento, percebe de imediato a profunda perturbação de seu amigo: "Você sabe, François, o que está acontecendo comigo. Fui despejado da Rue de Condé, fui despejado de Dhuizon no mesmo momento". Era uma espécie de esquizofrênico que perdeu o controle da situação: "Eu o senti

completamente desamparado no sentido próprio, um navio que perdeu o vento e não sabe mais para onde ir" 5. A euforia criativa ligada ao trabalho com

Deleuze termina com a publicação de Mil Platôs, em !980, que assinala o fim, se não de uma amizade, de uma aventura comum. No início dos anos 1980, Deleuze está absorvido pelo trabalho sobre o cinema, depois por seu

Foucault e pelo trabalho sobre Leibniz, queresultará em A Dobra em 1988. Ao longo desses anos 1980;"câ.da um deve reencontrar seu próprio fôlego, definir de novo objetivos pessoais. Isso é mais fácil para Deleuze, que se beneficia de uma ancoragem universitária, do que para Guattari, mais isolado. Ao retornar a La Borde, Guattari também atravessa momentos difíceis: ele se vê às voltas com as chateações do comitê de empresa clínica, que o acusa de receber um salário alto demais em vista de seu envolvimento nas atividades dela. Tais acusações apenas reforçam a sensação de isolamento e a melancolia de um Guattari que não mediu esforços, desde os anos 1950, para que La Borde se projetasse na paisagem intelectual francesa e internacional. Além disso, todos esses elementos influem em uma estrutura psicológica frágil, como tivemos oportunidade de ver ao mencionar a infância e a adolescência de Guattari. O mergulho melancólico só se torna maior, marcante, longo e profundo. Dois episódios de sua vida de adulto relatados pelo amigo Jean Chesneaux revelam a relação patológica que ele tem com a morte. O primeiro refere-se a Pierre Halbwachs, lllho da,"sociólogo Maurice Hal-

347

Gilles Deleuze & Félix Guattari

Dosse

bwachs, militante de todas as causas, jamais refeito da morte do pai em Buchenwald, que se sacrificava por ele c pelo irmão, passando-lhes sua ração alimentar. Sofrendo de câncer devido ao tabagismo, Pierre Halbwachs traz no rosto a doença e a morte próxima quando Jean Chesneaux convida Guattari para visitá-lo: 'Ao sair dessa visita, eu estava arrasado, pois sabia que ele estava condenado, e Félix, descendo a escada, me disse: 'Por que você me pediu para 6 vir; ele está bem, o Halbwachs'" . Essa denegação da morte é seguida de um outro episódio. Jean Chesneaux convida o amigo Félix para passear no cemitério de P€re-Lachaise: "É um dos lugares mais emocionantes de Paris. Passeia-se com prazer entre os monumentos, as legendas desse reduto cultural. Vi que estava ficando pálido, e não tínhamos percorrido duas alamedas. Ele visualizou um portão secundário e se foi sem mais''i. Guattari, que se sabia insaciável, bulímico; cai em um estado catatônico, recolhido em si mesmo, uma almofada sobre o ventre como para se proteger das agressões do mundo exterior. Ei-lo sentado, absorvendo passivamente programas debilitantes da televisão por dias inteiros. Guattari tem também problemas de saúde cada vez mais graves. Sofrendo de crises violentas e muito dolorosas de cólica renal, enche suas valises de medicamentos e espera assim aliviar suas dores. Ocorre de encontrar em sua urina verdadeiros pedregulhos, e ele precisa controlar estritamente a alimentação. Dois anos antes de morrer, recebe vários alertas cardíacos, mas está tão deprimido que não faz nenhum dos exames necessários.

joséphine É nesse estado fragilizado que Guattari vive uma experiência conjugal bastante difícil. Na Rue de Tournon, em 1983, ele inicia de maneira fortuita uma relação amorosa que se revelará mortífera. Joséphine é bonita, tem 30 anos a menos que ele, e seus inícios parecem felizes: "joséphine era uma moça adorável

quando ele a conheceu, muito graciosa, muito simples em sua maneira de ser. Mas, pouco a pouco, tornou-se a mulher de um grande intelectual parisiense, gastando muito dinheiro, 8 se drogando em excesso" • Essa aventura desastrosa empurra Guattari na depressão mais profunda. Em 1986, Félix e Joséphine se casam e encontram um magnífico .apartamento na Rue Saint~Sauveur. Guattari precisa se endividar para adquiri-lo, enquanto ]oséphine, por sua vez, multiplica as despesas suntuosas que acabam por causar sérios problemas. Suas necessidades de droga pesada são exponenciais e custam cada vez mais caro, e joséphine conta com seu novo esposo para poder se abastecer. Sua relação fusional do início passa por um afastamento de todo o tecido relaciona! que envolvia Guattari até então.]oséphine fecha as portas às visitas intempestivas para deixar bem claro que não se trata mais da Rue de Condé onde o acesso era livre dia e noite a qualquer amigo de passagem. Amigos tão próximos de Guattari como um François Pain foram vítimas disso. Posto para fora do apartamento de forma autoritária, Paim se mantém à distância. A isso se somam as múltiplas relações sexuais de joséphine. Guattari se abre com François Pain sobre os problemas que está atravessando com a esposa: "Félix me diz: 'Você sabe bem que isso me deixa doente. Você está certo de dizer que estou na merda com Joséphine. Preciso que me ajude, que vá vê-là. E acrescenta: 'É como se você me visse no fosso após um acidente de carro e me olhasse dizendo: você pre9 cisa sair daí, sem me estender a mão'" • Quando jean-Jacques Lebel se lembra dessa relação com joséphine, fala como de uma grande tragédia que ainda lhe causa arrepios: '1\_ssisti à autodestruição desse homem, desse amigo, desse irmão. Não digo que foi Joséphine quem o destruiu. Digo que ele se serviu de Joséphine para se autodestruir" to. Como outros, Lebel vai sempre que possível à casa de Guattari para lhe fazer companhia. Guattari, aliás, apela com frequência à ajuda dos amigos, até no meio da noite, para fugir da solidão que se tornou insuportáveL Eles

o encontram então na Rue Saint-Sauveur diante da televisão no último volume, a que Guattari assiste dia e noite ele boca aberta. Um dia, chamado por Guattari, Lebel chega com Allen Ginsberg, Édouard Glissant, Paolo Fabbri e Christian Bourgois, esperando que com essas visitas importantes seu amigo Félix se sentisse obrigado a tirar as pantufas, se lavar, descer para fazer as compras e prepa* rar uma boa refeição, gestos cotidianos que ele não tinha mais: "Esse jantar foi estranho, recorda Christian Bourgois, pois a mulher de Félix apareceu como um fantasma no meio da refEü11 ção, e lembro a perturbação que isso causou" • Na verdade, Guattari não preparou nada, e Joséphine se !imitou a ir buscar na mercearia de baixo alguns pratos frios em embalagens de plástico e colocar tudo de qualquer jeito sobre a mesa com talheres de plástico. Ela deixa que os convivas se arranjem e volta para o quarto no primeiro andar do duplex. Anoréxica, filiforme, Joséphine passa entre os amigos como uma sombra. Lebel se recorda de uma "mulher que era muito magra, encorujada em si mesma e que não dizia uma palavra, uma presença quase cadavérica, no limite entre a vida e a morte" 12 • Ainda que continue com Guattari, ela viverá uma longa aventura com o escritor Jean Rolin, que lhe consagrará um livro após sua morte por overdose em março de 1993 . Nesse clima deletério, Guattarl consegue às vezes recuperar seu dinamismo de outrora, sobretudo quando se trata de sair de Paris, de viajar em outras latitudes. Contudo, não é fácil fazê-lo se mexer nesse estado depressivo. Em 1988, seu amigo Éric Alliez faz de tudo para tentar convencê-lo de que a presença dele no Brasil ao seu lado é absolutamente indispensável: "Toda hora eu ligava para ele do Brasil e ficávamos longo tempo no telefone, com mui14 tos silêncios" • Felizmente, ainda que Guattari sinta uma certa lassidão em face desse lugar onde investiu tanto, o universo de La Borde subsiste. Consciente do estado grave em que se encontra o amigo, Jean Oury forma um grupo estruturante de quatro pessoas que se reúne

"

348

Dosse

em seu escritório todas as quintas~ feiras à tarde, ao longo dos anos 1980, para discutir uma coisa ou outra, muito livremente. Em torno de Oury, encontram-se toda semana Guattari, o conselheiro municipal da cidade de Blois, Lucien Martin, e a psiquiatra Danielle Rouleau: "Ê importante, isso foi um ponto de encontro 15 que lhe permitiu reagir" • Dentro desse grupo, Guattari não se abre verdadeiramente sobre seus problemas pessoais, mas reata os vínculos com sua prática dos anos de 1960 e 1970. Durante o último período, ele inclusive assiste regularmente ao seminário de Jean Oury. Silencioso, toma notas em um caderninho preto. Essa escuta é preciosa para Oury, pois encarna um diálogo que se restabelece entre eles depois de muito tempo interrompido, desde o trabalho conjunto com Deleuze: "No final de cada seminário Félix, nunca dizia nada, mas eles ficavam sozinhos na grande sala vazia. En~ tão se sentavam em duas cadeiras, uma junto 16 da outra, e conversavam por uma boa hora" • Na casinha de La Borde, onde reside uma parte da semana e onde não pode receber ninguém, Guattari está sozinho. O tempo das grandes mesas comunitárias de Dhuizon ficou para trás. Ele recebe visitas regulares do filho Bruno, que mora em Loir-et-Cher e que lhe traz o conforto de sua presença e comida para o fim de semana. Ao publicar seu último livro, em 1992, Caosmose, Guattari escreve como dedicatória pessoal ao seu filho: "Para Bruno, que tantas vezes me repescou no fundo de minha vala". Esse longo período sombrio, no final dos anos 1980, é a causada partida da filha Emmanuelle para Nova York. Ela não suporta mais a atmosfera da Rue Saint~Sauveur e sente a necessidade vital de se afastar do pai. Quando retorna à França em 1991, encontra-o em um estado bem triste. Ela traz um livro de Daniel Stern, que o pai lhe encomendou, leitura que o apaixona e à qual dá um lugar importante em Caosmose. Ele o discute com a filha Em manuelle, e os dois travam então um verdadeiro diálogo, como jamais havia existido. Visto que a Rue Saint-Sauveur é interditada aos filhos por ]oséphine, Em(hanuel!e encontra o pai

Gilles Deleuze & Félix Guattari

no fins de semana em La Borde: ''A gente fazia m.~~tos passeios. Era verdadeiramente tocante . No plano pessoal, Emmanuelle vive com o pai momentos que nunca teria vivido sem essa depressão: "Eu nunca o teria encontrado, era impossíveL Esse lugar foi liberado pela " " 18. contu do, a máquina intelectual depressao continua a funcionar, mesmo nos piores momentos: "Ele não parava jamais, mesmo diante da televisão. Digeria, conectava, trabalhava 0 19 tempo todo" •

Ser escritor Apesar de seu estado catatónico, Guattari continua disponível, aberto aos combates do momento, e muitos do seu círculo de conhe~idos nem desconfiam de seu estado psíquico. E a época em que ele se engaja ativamente na batalha ecologista e continua viajando pelo mundo, em particular para o Brasil e o Japão. Entretanto, a atividade que o ajuda sobretudo a compensar um pouco os.efeitos mais insuportáveis de seu sofrimento é a escrita. Guattari sempre desejou escrever, ser escritor. Verdadeiro polígrafo, ele não para de manusear a caneta a propósito de qualquer coisa, man~ tendo um diário por períodos, preenchendo cadernos, escrevendo artigos e livros. Nos anos de 1980, ele goza do estatuto de autor conhecido e reconhecido, principalmen~ te por seus livros com Deleuze. Contudo, conserva um gosto amargo, não somente porque no tandem que constitui com Deleuze o público retém sobretudo a assinatura do filósofo, mas também porque espera realizar uma obra literária. Nesse plano, multiplica os projetos, os rascunhos, os esboços, sem chegar ef€tivamente a nada. Experimenta todas as formas de expressão literária: poesias, romances, peças de teatro, roteiros, confissões, sonhos: "Ele não era um verdadeiro escritor, e acho que sofreu com isso. Ele tinha vontade de criar. 20 Creio que era obcecado demais por Joyce" • Assim, em um texto literário de 1975 que critica a política do concreto armado no subúrbio

de Paris, ele invoca diretamente Joyce: "Desde Finnegans Wake eles não sabem mais no que pensar! Acreditam que demolindo o máximo 21 de coisas salvarão o essencial". • Depois de ter publicado Kajka com Deleuze, Guattari se lançou em um romance de título enigmático que remete à sua história pessoal, à sua data de nascimento: 33.333 - ele nasceu em 30 de março de 1930. Esse ensaio de romance que jamais vem à luz está repleto de anotações, de observações muito pessoais sobre sua própria vivência, seu círculo, suas angústias frequente~ mente mórbidas, o triângulo edipiano que forma com os pais e que, no entanto, foi violentamente expelido do horizonte teórico definido por ele e Deleuze. Em 1986, Guattari assina uma coletânea de poemas que também não sai da gaveta, e cujo título não deixa de evocar o tema da dobra, que 12 Deleuze persegue no mesmo momento . De todos esses esboços, resulta enfim um escrito mais acabado, Ritornelos, uma autobiografia fragmentária cujo texto definitivo ele estabelece em 1992 com a ajuda de um amigo, o pintor Gérard Fromanger: "Ele me liga e diz: 'Tenho um texto fantástico!' Ele me passa, e havia 300 páginas, e eu digo: está bem, um lado Joyce, mas acrescento: 'Há duzentas páginas excedentes, é ilegível, repetitivo, chato', e lhe proponho que a gente trabalhe junto''''. Guattari aceita com tanto mais entusiasmo na medida em que não tem recursos para rever sozinho o texto. Os dois homens se lançam então em um trabalho obstinado que dura seis meses. Reveem tudo, linha por linha, em longas sessões de trabalho de quatro horas, seja em Paris ou no ateliê de Fromanger na Itália. Fromanger lia em voz alta e sugeria cortar toda passagem que pudesse enfastiar o leitor: "Eu fazia como Fernand Raynaud: '- Aqui se vendem belas laranjas a preço baixo. - Está se vendo que são laranjas! - Rlsco: laranjas .. : Eu fazia a mesma coisa''". Ao final de um longo trabalho, resta do manuscrito inicial de 300 páginas apenas um extrato de 80. Verdadeiramente seduzido por esses manuscritos, Fromanger tira dali uma imensa tela intitulada "Caosmos", que traduz

349

todas as cores de uma atualidade movimentada e violenta em plena guerra do Golfo e de ataque das Torres Gêmeas. Logo após a morte de Félix Guattari, no final de agosto de 1992, Agnes B. telefona para Fromanger, propõe-lhe editar às suas expensas o texto de Guattari e lhe pede que o ilustre com seus desenhos. O texto é publicado em dois números de La NRF em 1999 25 . Nesse monólogo interior, Guattari evoca fragmentos de lembranças: a famosa dama de negro, com a arma e a armadura espelhada diante da cama, a morte do avô, a cifra 33.333, todos temas obsessivos que o perseguiram até o fim em uma torrente literária de frases muito curtas, pensamentos como uma expressão musical. Ao mesmo tempo, em 1989, Guattari aprofunda o tema dos r.itornelos já presente em 1980 em Mil Platôs: ''A gente sempre relacionou os objetos musicais com o tempo. Ficou evidente que a música habita o tempo. E se fosse o inverso? Se fosse o tempo que habitasse a música, senão no conjunto de seu desdobramento, pelo menos dentro de um certo tipo 26 de seus ritornelos?" • Em sua demonstração, Guattari parte do mais simples, a delimitação territorial de numerosas espécies de pássaros por um ritornelo singular, passando pela complexificação dos registros numéricos, os leitmotiv de Wagner ou as células repetitivas de Philip Glass, para finalmente concluir sua contribuição por um retorno ao simples: "O conceito de ritornelo que proponho tende, ao contrário, a levar em conta todos os tipos de produção musical, por exemplo, a música rock, que significou, para numerosos jovens, uma espécie de função iniciática de entrada em uma cultura popular transnacional'm. Ele concebe igualmente outras expressões possíveis com essas aberturas que restituem à música o ruído e o silêncio, como John Cage, Maurice Kagel ou ainda Georges Aperghis com sua música gestual: "O desafio passa a ser, então, a conquista do tempo da vida cotidiana, sua 'ritornelização' estética, para depurá-la da banalidade, para ressingularizá-la, recriá-la e inven28 tar modos inéditos de presença no mundo" •

350

Dosse

No momento em que preparava com Deleuze seu capítulo sobre esse tema para lvfil Platós, Guattari havia escrito um longo estudo sobre Proust, intitulado "Os ritornelos do tempo perdido"'", publicado em !979. Ele vê Em Busca do Tempo Perdido como um imenso mapa rizomático derivando de objetos mentais desterritorializados. A "pequena frase de Vinteuil" desempenha o papel de uma matéria expressiva de ef€itos reais. Guattari se põe a estudar os diferentes agenciamentos de enunciação dessa pequena frase que balizam Em Busca. Segue assim o percurso dessa sonata que desempenha a função de ritornelo ao longo de todo Em Busca até que, ao Jlnal da escrita, ela não esteja mais associada às moças e abandone até mesmo o terreno musical: "É a própria escrita que se torna música. A música atravessa as notas, os sons, os muros ... O pró~ prio mundo se tornou uma espécie de órgão gigantesco, e a escrita, uma música que por toda parte ultrapassa o universo sonoro''30• A escrita romanesca e seu comentário erudito não são os únicos campos prospectados por Guattari, que se exercita em outras formas de expressão. Amigo do diretor de teatro Philippe Adrien desde a peça sobre Os Sonhos de Kajka, escreve para ele em janeiro de !985 o texto de um futuro espetáculo dramático, de dança e de expressão plástica, Le Maitre de Lune. Ele imagina uma trupe de !2 atores para esse espetáculo, que deve ser musicado por Georges Aperghis, com balé de Daniel Dobbels, figurinos de Adélaide Vignola, e a cenografia por conta do pintor Gérard Fromanger. Envia a peça a Enzo Cormann, que, apesar de sua amizade com Guattari, não está muito convencido. Guattari solicita suas críticas, mas Cormann lhe responde que "não se critica um delírid'31 • Guattari lhe propõe várias vezes escreverem uma peça de teatro juntos, mas Cormann não leva realmente a sério o que para Guattari, no entanto, é um pedido autêntico. Eles constituem em 1987 uma cooperativa de autores 32 franceses , agregando toda uma série de personalidades que participam de uma dezena de reuniões para adotàr um texto de orientação

Gilles Deleuze & Félix Guattari

sobre o tipo de criação a defender, mas a mobilização não alcança êxito. Contudo, fazem uma pequena representação-leitura conjunta. Guattari envia uma boa dezena de peças ao seu amigo Enzo Cormann. Entre elas, este último retém uma pequena peça intitulada Sócrates, cujo tom facecioso o diverte. Enzo Cormann apresenta a peça no Théâtre Ouvert com o comediante Arnaud Carbonnier, dentro da programação de uma semana de leitura de autores contemporâneos, diante de Guattari, sentado na quarta flleira ao lado de }oséphine. Quando montar sua trupe de teatro musical em !991, Cormann a batizará de "O Grande Ritornelo", em referência às análises de Deleuze e Guattari. A pintura também requer toda sua atenção e, em primeiro lugar, a de seu amigo Fromanger, sobre a qual escreve nos anos de 1980: "Esse afresco espantoso, A Noite, o Dia, que deixa o olhar siderado, fascina o espírito, onde em oito metros de extensão se enlaçam em uma dança, a do erótico e moral, corpos-cores 33 nus" . Ele considera seu amigo Fromanger como o pintor do ato de pintar, respondendo à questão metafísica do "o que é pintar?" por uma demonstração prática, um ato performativo. Parafraseando Austin, pintar é fazer. Libertando as cores de suas relações hierárquicas e colocando-as em pé de igualdade, Fromanger faz delas, segundo Guattari, o vetor privilegiado da expressão. Longe do desconstrucionismo, o pintor desenvolve uma "pintura processual"34• Em 1986, Guattari escreve um texto para comentar a série "Cyth€re, ville nouvelle" por ocasião da Feira Internacional de Arte Contemporânea (FIAC). Nessa época de frieza, em que, diz Guattari, a arte morre como as moscas, Fromanger aparece como uma exceção, prosseguindo sua busca pictórica como se nada tivesse mudado: "O que o salva, sem dúvida, é que sua questão jamais foi a do porquê, mas a 35 do como" • No campo da pintura, Guattari se liga também a Merri Jolivet, Jllho do compositor André jolivet, e escreve um texto sobre a obra dele por ocasião de uma exposição em Paris, em maio de !975. Entretanto, a expressão pictórica mais intensa do mundo que ele anali-

sa como "caosmose", Guattari encontra, nesses anos !980, do lado dojapão, com a pintura de Imal Toshimitsu. É um pintor ao mesmo tempo enraizado pela infância passada em Kyoto, mas em seguida criador errante em um bairro Montparnasse onde, nos anos de 1950, luta contra o frio e a fome até ser reconhecido, mas "por trás do lmai valor reconhecido pelo Establishment perfila sempre o bad boy da Beatgeneration, da 36 Action painting e dos Happenings" • Guattari saúda também a obra nutrida de errância e de revolta do pintor-poeta-fotógrafo-escultor americano David Wojnarowicz, que levou uma vida de vagabundagem à Kerouac após uma infância muito perturbada, entregue aos procedimentos irregulares de subsistência e à prostituição. Homossexual, revoltado contra o conformismo da sociedade americana, frequentou as margens, a contracultura, para finalmente se beneficiar de um reconhecimento público quando expõe em !985 na famosa Whitney Biennal. Ele começa por esboços rápidos nos muros de Nova York, representando no essencial bombardeiros em chamas e casas explodindo, depois pinta grandes afrescos em um depósito abandonado e é seguido por várias dezenas de amigos artistas no que se tornará um dos principais redutos da criação pictórica de Nova York, o East Village Art. Nessa expressão pictórica, a questão da resistência aos poderes estabelecidos sempre foi um vetor essencial de expressão. Guattari se encontra seguramente nessa revolta contra a morte da qual a pintura se sabe ameaçada: contaminado pela AIDS, morre aos 38 anos de idade, no mesmo ano que Guattari, em !992. Guattari chegou a fazer até algumas tentativas do lado do cinema, escrevendo um roteiro para um amigo, o diretor Robert Kramer, "Un amour de UIQ", no início dos anos de !980. Sem dar à sétima arte a mesma importância que Deleuze, Guattari analisou a produção cinematográfica em várias ocasiões, agrupando a maior parte de suas intervenções em um capítulo intitulado "O cinema: uma arte menor" 37 em A Revolução molecular • Ele atende, sobretudo, a solicitações sobre as relações entre o ci-

351

nema e a representação da loucura. De fato, se o tema da loucura fOi sempre um tema recorrente da produção cinematográflca, assiste-se nos anos de 1970 a um crescimento sensível do público interessado com os sucessos de Family Life, de Ken Loach, ou de Asylum, ou ainda de Loucos para Libertar, de Bellocchio. O cinema, uma arte menor? "Sim, desde que se esclareça que uma arte menor é uma arte que pode estar a serviço de pessoas que constituem uma minoria, e que, portanto, isso não é absolutamente pejorativo. Uma arte maior é uma arte a serviço do poder""". Ele comenta longamente em uma entrevista a Libération o filme de Terrence Malick, A Balada Selvagem, insistindo no fato de que o filme mostra principalmente, para além da violência dos assassinatos, uma história de amor louco e, de passagem, os limites em uma deriva esquizofrênica contínua. Em outra ocasião, em Bolonha, em dezembro de !973, quando de um colóquio sobre o tema "Erotismo e Cinema", Guattari se ergue contra as categorizações rígidas que deixam de lado o cinema erótico. Sempre requisitado como psicanalista, Guattari colabora com o número de Communications consagrado em 1975 9 a "Psicanálise e cinema":' • Ele traça um paralelo entre a prevenção dos psicanalistas em face do cinema e, inversamente, o fascínio dos pro mo~ tores da sétima arte pela psicanálise, a começar pelo enorme contrato de !00 mil dólares proposto pela Goldwyn a Freud para tratar de amores célebres. Segundo Guattari, os psicanalistas podem encontrar matéria de reflexào na criação cinematográfica para compreender melhor os investimentos inconscientes no campo social, na medida em que os cineastas devem captar as evoluções do imaginário social para estar em sintonia com o público. Por outro lado, além da palavra, o cinema possui outros meios de transmitir intensidades, significações racionais e, à maneira da palavra do analista na cura, "as componentes semióticas do filme se insinuam uma entre as outras sem jamais se fixarem e se estabilizarem''';0• Guattari concebe o cinema como um modo singular de agenciamento maquínico

que tem efeitos importantes sobre a subjetividade do público. A esse respeito, ele alerta contra o fato de considerar insignificante o cinema comercial, cuja ação inconsciente é par-

ticularmente profunda: "O cinema comercial é incontestavelmente familialista, edipiano e reacionário!"'

Gilles Deleuze & Félix Guattari

Dosse

352

11



Guattari compartilha o entu-

siasmo de Deleuze pelo cinema de Straub e escreve um texto por ocasião do lançamento, em 1987, de A Morte de Empédocles. Guattari aproxima essa nova estética das experiências musicais tentadas com iVIoisés e Aarão e Crônica de Anna Magdalena Bach de instauração de um "falar-cantar" que pretende respeitar a métrica do texto de Holderlin. Finalmente, a arquitetura é outro dos campos fundamentais que apaixonam Guattari, pois ele faz a ligação entre a criatividade

e as evoluções sociais. Em 1988, escreve um texto sobre a enunciação arquitetura! para responder à confusão dos arquitetos um pouco perdidos diante da explosão urbanística que se apodera das megalópoles do planeta: "Hoje, para que serviria, por exemplo, em uma cidade como o México, que se aproxima, em pleno delírio, de seus 40 milhões de habitantes, invocar Le Corbusier! Nem o barão 42 Haussman poderia fazer mais nada ali!" • Não restaria aos arquitetos senão se debruçar em boa ordem sobre a construção de alguns monumentos suntuosos, visto que o objeto da arquitetura foi pelos ares. Se é possível reinventar a arquitetura, não é lançando um estilo particular ou uma escola, mas repensando a "enunciação arquitetura!" e, a partir daí, o próprio ofício do arquiteto. Este não se contentaria mais em ser o plástico de formas construídas, mas "se proporia a ser também um revelador de desejos virtuais de espaço, de lugares, de percursos e de território ... um artista e um artesão da vivência sensível e 43 relacional" • Essa redefinição induz um deslocamento do objeto para cima: o projeto e a especificidade da contribuição arquitetura! seriam a capacidade de apreender os cliversos afetos de enunciação espacializada, segundo suas escalas e suas
Todas essas intervenções no campo da criação artística e literária testemunham a vontade de Guattari de experimentar o que, de resto, define no plano teórico como um paradigma estético. Ele deixou, sem dúvida, mais por seus escritos teóricos do que por suas criações próprias, uma "caixa de ferramentas" para pensar a arte, como escreve Nicolas Bourriaud'H, para quem a concepção guattariana da subjetividade fornece à estética um paradigma que é atestado pela prática de artistas há pelo menos três décadas. Seu procedimento transversal por si só pode dar conta das criações de Duchamp, Warhol, Rauschenberg ou Beuys: "Todos construíram sua obra com base em um sistema de trocas com os fluxos sociais, deslocando o mito da 'torre de marfim' mental que a ideologia romântica atribui ao artista'' 45 . Heterogênese, a subjetividade está funda~ mentalmente ligada à arte para Guattari, que não faz dela um campo à parte ligado a uma estética, ponta de lança da atividade humana, mas, ao contrário, um mergulho na própria existência: "O território artístico para Guattari não é objeto de uma análise autônoma, é seu próprio espaço ... As práticas artísticas desenham para ele cartografias existenciais onde objetividade e socialidade descobrem novas referências, novas coordenadas, possibilidades de fuga''".

Notas L Ver capítulo "Félix Guattari: itinerário psía-político' 1930-1964". 2. Arlette Donati, entrevista com :Eve Cloarec, 25 de outubro de 1984, arquivos IMEC. 3. "Drama da demência: cinco policiais féidos em Saint-Tropez. Gilles Guatareuze chama a polícia para internar sua amante. O menos surpreendente não era ver o célebre teórico da antipsiquiatria ir atrás do comissário de Saint-Tropez suplicando-lhe: 'O senhor não vai colocá-la em La Borde ou na casa de gentis, hein! São capazes de deixá-la escapar! São capazes de deixá-la escapar! Não, não, um estabelecimento sério, hein, cela estofada e tudo:" (Gérard LAUZIER, "Déboutonnez votre

cerveau", Tranches de vie, 4, 1978; reproduzido ern Le .Mei!Leur des années 70, Dargaud, 2001.)

4. François Fourquet, entrevista com Virginie Liohart. 5. Ibid.

6. Jean Chesneaux, entrevista com o autor. 7. Ibid. 8. Danielle Sivadon, entrevista corno autor. 9. François Pain, entrevista com o autor. 10. Jean-Jacques Lebel, entrevista com Virginie Linhart. 11. Christian Bourgois, entrevista com o autor. 12. Jean-Jacques Lebel, entrevista com Virginie Linhart. 13. Jean ROLIN,joséphine, Gallimard, Paris, 1994, p. 20. 14. Éric Alliez, entrevista com o autor. 15. Jean Oury, entrevista corno autor. 16. Marie Depussé, entrevista com Virginie Linhart. 17. Emmanuelle Guattari. entrevista com Virgínie Unhart. 18. Jbid. 19. Jbid. 20. Marie Depussé, entrevista com Virginie Linhart. 21. Félix Guattari, "LAmateur Amate", arquivos IMES, publicado em Marc PIERRET, Le Divan romancier, Ch. Bourgois, Paris, 1975. 22. Félix Guattari, "Crac en piao pas um pli", abril de 1986, textos datilografados, arquivos IMEC. 23. Gérard Frornanger, entrevista com o autor. 24. Gérard Fromanger, entrevista com Virginie Linhart. 25. Félix GUATTARI, "Ritournelles", La NRF, janeiro de !999, p. 338-374 e abril de 1999, p. 314~329; reed. éditions Lume, 2007. 26. Félix Guattari, "Les ritournelles Essere", notas manuscritas, arquivos IMEC, maio de 1989.

353

27. Ibid. 28. !bid. 29. Félix GUATTARI. "Les ritournel!es du temps perdu", em I neM. 30. lbid., p. 308. 31. Enzo CORMANN, "Comme sans y penser", Chirnáes, n. 23, verão de 1994, p. 25. 32. O núcleo inicial é composto por Denise Banal, Enzo Cormann, Roland Dubillard, Jean-Claude Grumberg, Félix Guattari, Jean Jourdheuil, Romain Weingarten, Jean-Paul Wenzel. 33. Félix GUATTARI, "Gérard Fromanger, la nuit, Ie jour", Eighty Magazine, n. 4, agosto de 1984; reproduzido em MI, p. 249. 34. Ibid., p. 256. 35. Félix Guattari, "Cythere, vil!e nouvelle", FIAC 1986, Granel Palais, 24 de outubro - 2 de novembro de 1986, notas manuscritas, arquivo

IMEC. 36. Félix Guattari, ''Imal, peintre de la chaosmose", texto datilografado, arquivos IMEC. 37. Félix GUATTARI, "Le cinérna: un art mineur", em RM, p. 203-238. 38. Félix GUATTAIU, "Le cinema doit devenir un art mineur", Revue Cinématographie, n. 18, abril de 1976: reproduzido em RM, p. 205. 39. Félix GUATTARI, "Le divan du pauvre'', Communications, n. 23. abril de 1975. 40. !bid., p. 233. 41. !bid., p. 237. 42. Félix Guattari, "L'énonciation architecturale", texto datilografado, arquivos IMEC. 43. !bid. 44. Nicolas BOURRIAUD, "Le paradigme esthétique", Chimàes, inverno de 1994, p. 77-94. 45. Ibid., p. 84. 46. Olivier ZAHM, "Félix Guattari et l'art contemporain~, Chimàes, verão de 1994, p. 48.

Gilles Deleuze & Félix Guattari

24 Deleuze dialoga com a criação

Puro f1lósofo, puro metafísico, como ele próprio se apresentava, Deleuze sempre teve como singularidade integrar em sua reflexão filosófiéa o mundo do percepto e do afeto, o da criação literária e artística. Encontrou nela

fontes vivas de sua reflexão filosófica, mas não se contentou em observar esse campo com um olhar exterior. Trabalhou também com os criadores para compreender melhor o processo de criação. Para Deleuze- como para Guattarl-, a estética não é um campo à parte, e sua filo~ sofia-artista atribui um estatuto privilegiado, nodal, ao ato criativo. A filosofia, que deflne então ela própria como "criação de conceitos", deve estar à escuta dos processos de singularização artística.

Trabalhar com os artistas já se sabe da importância que Deleuze atri1 buiu ao cinema , assim como à literatura, com os ensaios sobre Proust e Sacher-Masoch, e depois a Lewis Carro H e Antonin Artaud, personagens centrais de Lógica do Sentido, em 1969. A literatura sempre foi para ele um campo de experimentação privilegiado de suas hipóteses filosóficas. Filó'lpfo da vida, estabelece uma li-

gação fundamental entre ela e a literatura. Ser escritor ou filósofo é confrontar-se com o problema da escrita, do estilo, e "escrever é uma questão de devir, sempre inacabado, sempre se fazendo, e que ultrapassa toda matéria vivível 2 ou vivida" • A escrita está por essência no ato de ruptura, no devir outro que pode ser o devir-mulher, o devir-animal ou vegetal, mas que é em qualquer hipótese um devir minoritário, de simples vizinhança: "Quando Le Clézio se torna índio, é um índio sempre inacabado, que não sabe cultivar milho nem talhar uma piroga":~. A literatura, segundo Deleuze só existe no movimento de extirpação de seu próprio passado, de sua questiúncula edipiana. Ela tira seu impulso da capacidade de se desprender do Eu: "Não se escreve com suas neuroses"'1• É essa capacidade de se deixar desterrltorializar que fascina Deleuze na literatura americana, aberta aos ventos mais impetuosos da aventura, expressão de um povo menor, exprimindo-se de fato na língua dominante, o inglês, mas a partir de raízes longínquas e múltiplas: ''A literatura inglesa-americana não para de apresentar essas rupturas, esses personagens que criam sua língua de fuga, que criam 5 por linha de fuga'' . Em Thomas Hardy, Herman Melville, Robert Louis Stevenson, Virgínia

Woolf. Thomas Wolfe, D. H. Lawrence, Francis Scott Fitzgerald, Henry Miller, Jack Kerouac, "tudo aí é partida, devir, passagem, salto, demônio, relação com o de fora. Eles criam uma nova Terra" 6• Um sopro coletivo, agenciamentos inovadores atravessam essas escritas imantadas pela ideia de fronteira, de conquista de um Oeste ao mesmo tempo concreto e imaginário que substituiu a jerusalém celestial. Certamente, essas linhas de fuga podem se revelar perigosas e até mortíferas. Todo recomeço comporta sérios riscos: basta pensar no alcoolismo de um Fitzgerald ou no suicídio de Virgínia Woolf. Há perversão, traição nesses recomeças, em um processo em que os estalidos podem ser imperceptíveis no tempo longo dos romances de Fitzgerald. Trata-se de sair do caminho traçado, à maneira do profeta que se afasta da via da simples obediência: "Do que o capitão Achab é culpado, em Melville? De ter escolhido Moby Dick, a baleia branca, ao invés de obedecer à lei do grupo de pescadores, que acha que toda baleia 7 é boa para caçar" O capitão Achab segue seu devir-baleia, que não tem nada a ver com uma simples imitação, mas com uma captura de força e de código. Cada elemento ali traz em si sua própria desterritorizalização, e no final dela "sempre se dá a escrita àqueles que não a têm, mas estes dão à escrita um devlr sem 8 o qual ela não existiria" . Longe da literatura que oculta seu pequeno segredo ou que só o revela de forma muito parcímoniosa ao leitor, exigindo dele todo um trabalho interpretativo, Deleuze prefere uma literatura inteiramente dirigida a novas experimentações, a um fazer, e é isso que o fascina na literatura anglo-saxã: "A literatura inglesa ou americana é um pro9 cesso de experimentação" • Ainda que experimente linhas de fuga, essa literatura não é absolutamente uma fuga da vida. Ao contrário, é levada pelo desejo de criar um outro real. Essa literatura traz a eficácia do conceito central de Mil Platôs, o agencíamen~ to, pois se situa no cruzamento do interior e do exterior, e são as modalidades desse agen-

355

ciamento que definem sua trama: "O único proveito que posso tirar do ato de escrever, me dizia ele, é ver desaparecerem com isso as vi. a . ss1m, d raças que me separam d o mun d o"'"A literatura americana é de saída agendamento coletivo de enunciação por sua capacidade de se fazer a expressão do povo ausente, a dizer toda a América nas narrativas que desenvolve. Essa literatura parece realizar o que o próprio Proust visava ao definir o papel da literatura como invenção de uma espécie de língua estrangeira concebida como clevir-outro da língua: "Todo escritor é obrigado a fazer sua 11 língua" • Evidentemente, uma tal posição só poderia tornar Deleuze muito sensível às questões de passagem de uma língua para outra. Quando seu antigo aluno, Pierre Blanchaud, germanista, lhe fala em 1982 dos problemas que tem com seu editor a propósito da tradução de romances de Kleist - ele se recusa a edulcorar o texto de Kleist para torná~ lo mais legível em francês -,recebe imediatamente o apoio ativo de Deleuze: "Pierre Blanchaud é um dos raros tradutores de Kleist que soube2 ram colocar o problema do estilo'>~ • Fazer a língua gaguejar, esse é o meio privilegiado do escritor que pretende sair dos caminhos batidos, e Beckett foi quem pôs em cena no mais alto nível essa maneira de expor disjunções inclusas. Deleuze encontra no plano literário uma extraordinária ilustração dessas séries gaguejantes na famosa frase de Bartleby de Melville: "Eu preferiria não" (I would prifer not to), que Deleuze comenta longamente"- Para ele, a frase de Bartleby exemplifica a postura do escritor por seu caráter enigmático, exprimindo a recusa de se conformar àquilo que se espera dele, e pela escapatória que não é nem a revolta nem a inversão dialética da situação, mas a linha de fuga, nos confins da loucura: ''A cada ocorrência, tem-se a impressão de que a loucura cresce: não 'particularmente' a de Bartleby, mas em torno d ele,.)4 . corno as~ sinala Deleuze, a frase é devastadora por sua capacidade de aprofundar uma zona de indiscernibilidade, de indeterminação, enquanto se espera da parte do herói que ele aceite o que

356

Gi!!es Deleuze & Félix Guattari

Desse

se pede que faça, ou que recuse. Entretanto, a cada vez que ele pronuncia sua frase mágica,

mergulha as pessoas à sua volta no maior embaraço, e tudo deve recomeçar. Quando Deleuze lança a hipótese segundo a qual o que anima a obra de Melville é restabelecer a unidade entre o inumano e o humano, encontra, sem dizer explicitamente, seu próprio projeto filosófico, o da outra metafísica, que visa reatar a

ligação entre o humano e seu caosmo. A outra dimensão é a da sociedade de irmãos, libertada do domínio paterno. É, portanto, uma humanidade chamada a elaborar seu

mundo, a afirmá-lo como processo, "como um muro de pedras livres, não cimentadas, em que

cada elemento vale por ele mesmo, mas em re15

lação aos outros" • A originalidade como ritornelo, à maneira dessa frase de Bartleby que se repete em forma de uma série, é a única saída, segundo Deleuze, para escapar a uma dupla armadilha: a da guerra dos particularismos e a da fusão em Ull}- Todo, em um Universal negador das singufaridades: ''A fraternidade segundo Melville ou Lawrence é uma questão de almas 16 originais" • Entretanto, essa fraternidade, fundada no pragmatismo da qual o verdadeiro herói é Bartleby, acaba fracassando. Bartleby se vê confrontado com a falência da sociedade de irmãos que não teve melhor êxito que a sociedade da universal proletarização dos soviéticos. Segundo jacques Ranciere, esse fracasso da sociedade da fraternidade assinala o impasse da tentativa de libertação deleuziana em que o próprio muro, feito de pedras livres, para o qual ele conduz seu leitor, exprime o impasse em que ele o coloca. Ele define seu traçado e ao mesmo tempo "o remete ao 17 muro" • Bartleby é incumbido de uma missão prometeica similar à que Nietzsche confia a Zaratustra. Torna-se o herói da passagem entre ontolot,>ia e política, mas "a literatura não abre nenhuma passagem a uma política deleuziana. Não há política dionisíaca''.l 8• O diretor da revista Esprit, Olivier Mongin, é um conhecedor da obra de Deleuze e o acompanha desde o início de seus estudos de filosofia. Mongin pei~~ebe, a partir dos seus es-

tu dos sobre a literatura, o desenvolvimento de uma geografia, de um "pensamento que sedesloca'>~9. Assim, para Olivier Mongin, a questão da culpabilidade é central em Deleuze em sua leitura de Sacher-Masoch, problema que se encontra na lei formal kantiana: "Deleuze tira dali a lição de que a lei moral, que é formal e sem conteúdo, culpabiliza. Portanto, entra-se no mundo europeu como mundo da culpabilidade permanente, e isso conduz a Kafka"20• Saindo do horizonte europeu, Deleuze está fascinado, como se recordava há pouco, com a América, onde busca a ideia de uma sociedade de irmãos libertada dos pais: "Ele não a encontra e tampouco acredita na ideia de revolução soviética'm. Não encontrando essa sociedade de sonho no Novo Mundo, não lhe resta senão explorar a humanidade nos confins dos desertos, o que faz em Mil Platôs. O lugar explorado por Deleuze não é nem a América nem a Europa, mas os territórios de hibridez e de heterogeneidade, misturas linguísticas e culturais. Édouard Glissant, escritor no cruzamento das culturas afro-americana e francesa, amigo de Deleuze e Guattari, expressa bem em sua obra pessoal essa hibridez. Nascido na Martinica, em Sainte~Marie, em 1928, cursa fllosofia e depois etnologia na Sorbonne: em 1958, recebe o Prêmio Renaudot por seu primeiro romance, LaLézarde. Conhece Guattari em Paris e, encantado com a inteligência dele, logo se torna seu amigo: "Eu me dizia: 'Estou ouvindo Sócrates'. Eu ouvia a mesma sabedoria, amesma ironia, a mesma aspereza de abordagem e benevolência fundamental""- Édouard Glissant é fortemente impregnado por orientações e conceitos de Deleuze e Guattari, pois encontra nessas posições uma filosofia que leva em conta presenças da oralidade. Um conceito como o de rizoma é imediatamente percebido por ele como um "sistema de intrusão na 23 identidade" que o remete a essa-identidade heterogênea que bem conhece no Caribe: "Eles pensam de maneira fractal. É um pensamento fractal, nômade, errante"24 • Glissant emprega a noção de "pensamento tremido", de estremecimento do mundo à maneira como Deleuze

fala de gaguejo da língua. Se o mundo é tão fortemente mestiçado sob os golpes ocidentais da colonização, Édouard Glissant prefere chamar a atenção para os valores da crioulização, isto é, de uma mestiçagem de culturas, de indivíduos e de coletividades que são fontes do inesperado. A obra poética de Glissant é inteiramente perpassada por conceitos muito próximos aos de Deleuze e Guattari, como mostrou a pesquisadora sueca Christina Kullberg: "O caos-mundo em Glissant lhe serve para designar a mundialização que ele qualifica de mundialidade, e sua noção de opacidade é muito próxima da noção de singularidade em Deleuze e Guattari. É essencial para ele o tema da diversidade, que chama de diversalidade, assim como o conceito de 'lugar comum', que 25 remete à ideia de um espaço compartílhado'' • Para Deleuze, a literatura é antes de tudo experimentação e lhe serve ele argumento contra o procedimento interpretativo. Como já vimos, Kajka é sob muitos aspectos um manifesto de experimentação literária. Por suas múltiplas intervenções nesse campo, Deleuze não pretende acrescentar um segundo grau reflexivo, filosófico, à crítica literária clássica. Procede, ao contrário, a uma subtração, a uma 26 "amputação cirúrgica" , e define assim um espaço misto, ao mesmo tempo crítico e clínico. Com Guattari, consagra em Mil Platôs um capítulo inteiro (o 8° platô) a três novelas em torno elo conceito do acontecimento para responder à pergunta sempre enigmática: "O que se passou.7,z7. E-· a resposta a essa pergunta que especifica a novela como gênero, em contraste com o conto, que responde à pergunta: "O que vai se passar?". Para fundamentar essa tese, Deleuze e Guattari tomam como exemplos a novela ''A gaiola' (1898), de Henry ]ames, a novela "The Crack-Up" (1936), de Fitzgerald, e por fim uma novela francesa de Pierrette Fleutiaux, "História do abismo e da luneta' (1976). A obra ele Fitzgerald é animada pela convicção de que toda vida é um processo entrópico ele demolição. Para Fitzgerald, não há necessariamente grandes cortes, mas "microfissuras, como em um prato, bem mais sutis e mais

357

maleáveis, e que se produzem sobretudo quando as coisas vão melhor do outro lado" 28 • São, portanto, mudanças imperceptíveis, tênues, moleculares, que pouco a pouco fazem explodir o suporte das uniões, das identidades e das certezas. Assim, Fitzgerald desenvolve em sua novela três linhas que atravessam todo indivíduo: uma linha de corte, uma linha de fissura e uma linha de ruptura. Uma combinação de circunstâncias faz com que Deleuze e Pierrette Fleutiaux se conheçam. De fato, em 1975, ao retornar dos Estados Unidos, esta última se instala ini~ cialmente em um quarto de empregada no mesmo prédio que os Deleuze no 17º Distrito, depois atravessa a rua para morar em um estúdio no primeiro andar, bem em frente ao apartamento deles. Nesse momento, Pierrette Fleutiaux acaba de publicar seu primeiro livro, Histoire de la Chauve Souris. Deleuze fica intrigado ao mesmo tempo com o casal atípico que ela, com cerca de 30 anos, forma com um ex-aluno de apenas 18 anos e com a trama desse romance que narra o delírio de uma mulher convencida de abrigar um morcego em sua longa cabeleira. Fleutiaux descobre com entusiasmo O Anti-Édipo, Kajka e, sobretudo, Rizoma, que marcarão profundamente sua escrita literária em torno de temas de fluxo, de codificação e de sobrecodificação, de desterritorialização, mas também o "devir-animal" que habita a mulher do morcego. O universo psicótico nunca está longe: "Escrevi muito histórias abstratas, espécies de agenciamentos maquínicos. Isso correspondia também ao que ele dizia a respeito. Ele via coisas que me permitiam prosseguir nessa via, o fantástico maquínico. 29 Eu o vejo como um inventor genial" • Deleuze e Pierrette Fleutiaux mantêm no dia a dia uma relação silenciosa de um lado e de outro da rua. Quando ele abre a janela para fumar um cigarro, dá de cara com ela penteando seus longos cabelos. Deleuze faz parte do universo cotidiano e familiar da escritora, que o inclui como personagem em seu livro Nous Somrnes Éternels30• No capítulo em que ele aparece, encontra-se o famoso tema da erva que

358

Cilles Deleuze & Félix

François Dosse

brota pelo meio, enquanto que a arborescência está do lado do poder: "Eu estava feliz de ver essa erva, eu a olhava caminhando pelas ruas 31 da cidade, era ela a dança de nossa cidade" • Nessa evocação de seu vizinho Deleuze, a au~ tora menciona sua silhueta na janela defronte. Apreciador dos gêneros ditos "menores", Deleuze devolve assim toda a nobreza à no~ vela pelo lugar que lhe atribui em Mil Platós. Nos anos 1960. ele já havia restituído a dignidade a um gênero por muito tempo depreciado, mas que depois adquiriu uma legitimidade que não tinha na época: o romance policial. Por ocasião do número 1.000 da "Série Noire", em 1966, Deleuze saúda a virada espetacular alcançada por essa coleção, que conduz o ro~ mance policial clássico, inteiramente voltado à busca da verdade, seja sob sua modalidade racional francesa, seja sob sua forma indiciá-

ria britânica à Conan Doyle, a um registro bem diferente: o do encadeamento de erros e da "potênciaçlo falso'm, que se exprime na relação trinitária eritre delação, corrupção e tortura. A "Série Noire" reatava assim com a grande tra~ dição, aquela que Deleuze remonta a Suetônio e Shakespeare por meio desse agenciamento funesto do grotesco e do terrificante que pode dispor de vidas a seu bel~prazer. Deleuze explorou também a literatura mal~ dita. Pode~se observar a esse respeito, como Raymond Bellour, a extraordinária proximidade de Deleuze e Henry Michaux33 • Em sua apresentação, Raymond Bellour define o poeta como "uma variedade de multiplicidades"3'1 feitas de experiências de vida fortes, de médico ou de soldado da marinha de guerra, antes de se tornar escritor, com a vontade de captar, na sua escrita ou na sua pintura, essas forças de vida com seus afetos. Segundo Bellour, que retoma a frase pela qual Deleuze designa o verdadeiro escritor, ele fez "a língua gaguejar". Por seu uso do fragmentário, dos fluxos escandidos por cortes, parece ter-se aí a expressão literária mais sintonizada com as temáticas filosóficas de Deleuze: "Escrever é responder. É fazer da língua, co0cebida com parte do sensível, o lugar de uma resposta ao acontecimento

,,

do sensível, aos seus múltiplos acidentes"35. 0 que lVlichaux: procura se aproxima de uma certa maneira do que visava a corrente surrealista com a qual, no entanto, ele rompeu: explorar o pensamento pela escrita ou. pela pintura. Como observa Raymond Bellour, Deleuze empresta de uma só vez em seu Focault três títulos de Michaux, mencionando sucessivamente um "espaço do dentro", "o longínquo interior" e a "vida nas dobras" 36• Na dedicatória de Diferença e Repetição a Michaux, Deleuze escreve: "Você soube dizer sobre a esquizofrenia mais e bem melhor do que tudo o que jamais se disse e em algumas páginas: as gran37 des provas do espírito" • Ao lado de fllósofos, Michaux é o escritor mais citado em O que é a filosofia?, assinala Raymond Bellour 33. No capítulo essencial desse livro, consagrado ao plano da imanência, Michaux é citado ao termo de uma filiação que parte de Epicuro e passa por Espinosa para significar que o problema do pensamento é uma questão de velocidade infinita. Em seguida, ele é associado a Blanchot e a Foucault para o oximoro da "intimidade como Fora". Esse estatuto singular atribuído a Michaux tem a ver, segundo Bellour, com a situação ambivalente desse escritor que também é filósofo, bem como com o estatuto literário da filosofia tal como a concebe Deleuze, que utiliza 1/lichaux: para chegar a um traçado sinuoso de asserções filosóficas. Essa proximidade excepcional é ressaltada também por Anne Sauvagnargues, que vê ali uma tentativa comum de captura das forças vitais e dos afetos, assim como um desejo de liberação das 39 singularidades . Com :Michaux, encontra-se no cruzamento entre a expressão literária e a arte pictórica, e sua obra deu lugar também a intensas reflexões de Deleuze. Este conhece o pintor Gérard Fromanger em 1971 em condições rocambolescas. Fromanger acaba de realizar toda uma série de quadros, e o famoso galerista Karl Flinker lhe prometera expô-los. Contudo, Flinker não dava sinal de vida, e Fromanger decidiu aparecer na galeria sem marcar hora. Chega à 1\ue de Tournon, ao lado do Senado,

atravessa a exposição do térreo e sobe diretamente ao primeiro andar, onde fica o escritório de Flinker. Este último lhe apresenta aquela que será a responsável pela galeria, uma certa Fanny, que assiste ao áspero confronto entre o galerista e o pintor. Flinker explica seu silêncio pelo temor que provoca nele todo o círculo esquerdista de Fromanger, o representante eleito de uma associação agregando pelo menos 300 artistas plásticos: "Ele me diz: 'Tenho medo de que você fabrique coquetéis Molotov em minha galeria, isso vai ser uma assembleia geral dia e noite, não tenho tempo a perder', e prossegue: 'Você tem um enorme charme, eu 40 precisava refletir'" • Fromanger se levanta e dá a entender que compreendeu a mensagem. Acompanhado por essa mulher que não conhece e que assistiu à discussão à porta da galeria, vão ao bistrô em frente, onde lhe confessa seu espanto diante da violência das relações entre marchands e jovens artistas: "Ela me diz que não conseguirá viver isso e acrescenta que seu marido adora o que eu faço e me convida para jantar em sua casa. Pergunto-lhe o que faz seu marido e ela responde: 'Ele é professor de fllosofla, escreve livros, é um filósofo"'' 11 • Nessa mesma noite, Fromanger está à mesa dos Deleuze, muito lisonjeado pelo interesse que este último tem por sua obra. A amizade entre eles é imediata. Deleuze pergunta a Fromanger se pode ver seus quadros no ateliê, prelúdio de uma longa colaboração. Durante essas sessões, Deleuze questiona o artista sobre seus procedimentos, seu dispositivo de trabalho, a maneira como elabora sua criação: "Gílles me disse: 'Vou lhe fazer perguntas idiotas', e me indagava por que eu tinha posto vermelho ali. Colocada por ele, isso me fez falar durante uma hora, e ele tomava notas, me encorajando o tempo todo: "Oh! perfeito, está perfeito!", isso me confirmou o que pensava Leonardo da Vinci, a pintura são as ideias, uma coisa do espírito''42 • Quinze dias depois, Deleuze liga para Fromanger a fim de solicitar uma segunda sessão de trabalho: "Ele me diz que ainda lhe faltam coisas, e que é preciso que eu lhe dê um pouco mais. Eu es-

tava contente, mas pouco convencidO de lhe proporcionar verdadeiramente alguma coisa"4:1. Deleuze pergunta como ele faz para pôr coisas na tela que está branca no início; "Eu lhe digo: A tela, você a vê branca, mas na verdade está é negrà, e ele reage: 1\h! Fantástico! Ela está negra, está negra de quê'?', e eu respondo: 'Ela está negra de tudo o que os outros pintores fizeram antes de mim', e ele comenta: 'Então, não se trata de enegrecer a tela, mas ' la..."' 44 . Deleuze retoma essa 1'd e1a . d e branqueaquase que literalmente em O que é a filosofia?: "O pintor não pinta em uma tela virgem, nem o escritor escreve em uma página branca, mas a página e a tela já estão de tal modo cobertas de clichês preexistentes, preestabelecidos, que é preciso primeiro apagar, limpar, lixar e mesmo rasgar para permitir passar uma corrente de ar 45 saída do caos que nos traz a visão" • Após essas primeiras sessões de trabalho intenso a dois, Fromanger recebe uma ligação de Deleuze, que o convida para jantar em sua casa, esclarecendo que toda a família precisa da sua opinião para uma questão da maior importância. Fromanger aceita com prazer. Quando chega, "Gilles estava quase em trajes socíais, o menino, Julien, que devia ter 10 ou 12 anos, usava uma pequena gravata. Preocupo-me em saber o que se passa, e Gilles me diz 46 que é uma sessão um pouco especial" • À so~ bremesa, Deleuze se vira para a lareira, que fica atrás dele, pega um envelope nela depositado e pede a Fromanger para abri-lo. Fromanger abre e descobre um cheque de 8.000 francos, o primeiro mês de salário de sua esposa Fanny, e uma pequena carta endereçada a Karl Flinker em que Deleuze explica que, dadas as relações que Flinker mantém com o pintor Fromanger, e provavelmente com todos os outros jovens pintores, seria muito difícil para sua mulher Fanny continuar trabalhando com ele e que, portanto, ela decidiu pedir demissão do cargo de diretora da galeria. Deleuze pergunta aFromanger se ele concorda: "Respondo-lhe que eu não tenho de concordar, e então ele me pergunta se é justo, e eu lhe respondo afirmativamente""'. Em seguida, Deleuze pega o cheque

360

Gilles Deleuze & Félix Guattari

'"'"''nk Dosse

e dá ao ao seu filho Julien, que o rasga em pedacinhos; depois, "Gi!les põe de novo o cheque rasgado no envelope e me diz: 'Gérard, é você 48 que vai pôr o envelope na caixa de correio'" • Essa história, que ocorre bem no início de sua relação, sela uma amizade indefectível. O caso é tanto mais solene e grave na medida em que, na época, em 1971, os Deleuze não têm uma situação financeira muito boa, tratando-se assim de um sacriflcio real. Para a exposição de Fromanger na Rue des Beaux-Artes, nº 9, que ocorre em 1973, pouco após esse encontro, é Deleuze quem escreve o prefácio 49 do catálogo • Resultado desse trabalho a dois sobre o processo de pensamento que a pintura instaura, Deleuze se lança em reflexões sobre as cores, assinalando a desconexão delas com um sentido explícito: "As cores não querem dizer nada: o verde não é a esperança, nem o amarelo a tristeza, nem o vermelho a alegria. Nada além do quente ou do fho, do quente e do frio. Do material na arte: Fromanger pinta, isto é, faz'fúncionar um quadro. Quadro-máquina de um artista mecânico"50.

Da música antes de qualquer coisa Esse trabalho com escritores e pintores Deleuze realizou também com os músicos. Para ele, a intrusão em um campo que não é o seu passa sempre pelo encontro com um saber-fazer que aprende de outro. Se Deleuze consagrou obras ao cinema, à literatura e à pintura, não escreveu um livro sobre música. Contudo, pouco antes de seu falecimento, em setembro de 1995, telefona ao amigo Richard Pinhas: "Gilles me fala de Ravel, do livro sobre a música que gostaria de escrever, da forma livro que gostaria de superar"5 t. Sua primeira intervenção pública nesse campo remonta a 1978, quando está em plena preparação de Mil Platôs com Guattari. Deleuze participa de um seminário sobre o tempo musical organizado pelo lRCAM sob o comando de Pierre Boulez, com Roland Barthes e Michel Foucault. Em Ulfla homenagem prestada a

Deleuze em janeiro de 1996 na Cité de la Musique, Boulez declara na abertura: "Gilles Deleuze foi um dos raríssimos intelectuais a se inte52 ressar profundamente pela música" . No dia do debate público ocorre um pequeno incidente. Deleuze toma a palavra, e alguém na plateia se levanta para dizer que não está entendendo nada. A sala começa a se agitar, e Boulez selevanta exasperado, pedindo ao inoportuno para deixar a sala se não é capaz de compreender Deleuze. Durante todo esse incidente, Deleuze contempla a sala calmamente, depois retoma a palavra esclarecendo que vai prestar atenção e ser simples, mas se limita a prosseguir a leitura do texto que havia preparado cuidadosamente. Partindo de uma reflexão sobre a série de cinco obras propostas por Boulez para serem ouvidas, Deleuze percebe uma unidade da série em um tempo não pulsado que se separa do tempo pulsado: ''A questão seria saber em que consiste exatamente esse tempo não pulsadO. Essa espécie de tempo flutuante" 53. Esse tempo remete a uma duração, um tempo libertado na medida, um "tempo em estado puro'' como imaginava Proust, composto de heterocronias, não comunicantes e não coincidentes entre elas. Deleuze faz uma analogia com as pesquisas em biologia confrontadas com o problema da articulação de moléculas díspares. Pode-se falar de moléculas sonoras, de "moléculas sonoras em acoplagem capazes de atravessar camadas de ritmicidade, camadas de durações 54 totalmente heterogêneas" , Essa oposição binária tempo pulsado/tempo não pulsado tem muito a ver com a dualidade desenvolvida por Deleuze e Guattari em Mil Platôs entre o espaço liso e o espaço estriado. Essa aproximação temática é, aliás, explorada mais tarde por Deleuze em um texto consagrado a Boulez em 1986: "Do estriado, destaca-se por sua vez um espaço-tempo Liso ou não pulsado, que não se refere mais à cronometria a não ser de maneira global: os cortes ali são indeterminados"55. Essa dupla binaridade foi ela própria teorizada nos anos 1960 por Boulezs6, no qual Deleuze encontra "o primado atribuído à fluidez criadora sobre a norma formal, em-

bora esta seja reconhecida como necessária à 57 elaboração e à execução da obra" • Além disso, um fiel entre os fiéis do curso de Deleuze em Vincennes, Richard Pinhas, que se tornou um amigo próximo, é compositor. Foi ele quem introduziu na França a síntese sonora no rock, depois de ter começado com a música repetitiva. Pinhas faz- o curso de Deleuze desde a chegada deste na universidade de Vincennes, em 1971, até sua aposentadoria no final de 1987. Ocorre de Deleuze pedir a Pinhas que lhe prepare uma pequena nota de síntese sobre uma questão de musicologia: "Era a época em que eu trabalhava muito sobre as sínteses analógicas, e é um pouco isso que encontro no fim do capítulo sobre 'Do Ritornelo' em Mil Platós acerca da sintética'' 5 ~. A troca entre eles funciona nos dois sentidos. Pinhas considera que sua música é amplamente inspirada em alguns conceitos trabalhados por Deleuze: ''A música eletrônica é fundamentalmente baseada em fluxos sonoros, em cortes de fluxos 59 e em uma reflexão sobre as sequências" • Entre as reflexões de Deleuze sobre o material e o jogo de forças a extrair dali e as composições eletrônicas de Pinhas, a relação é portanto imediata. A isso se acrescentam as reflexões de Deleuze sobre o tempo e sobre a maquínica. "Para os sintetizadores, isso eram apenas cortes com conexões e repetições, ao contrário da 60 música numérica de hoje" • Richard Pinhas está verdadeiramente espantado: "Se tomo as últimas páginas do capítulo sobre o ritornelo em Mil Platôs, ele chega a exprimir em quatro páginas o que qualquer músico que teorizasse um pouco a música gostaria de poder escrever. F, nisso que está sua genialidade" 61 • Essa capacidade de penetrar no âmago da criação musical é tanto mais surpreendente na medida em que Deleuze, ao contrário de Guattari, começou a ouvir música muito tarde, e ainda ouvia muito pouco; além disso, seus gostos eram mais voltados a Piaf, Paul Anka e Claude François, o que não o impedia de gostar muito do Bolero, de Ravel, sobre quem tinha intenção de escrever. Em um dia de 1972, Richard Pinhas arrasta Deleuze a um estúdio

361

de gravação e o faz ler um texto de Nietzsche sobre sua própria composição musical: "Ele estava com um capacete na cabeça, e isso o divertiu muito. De resto, ele tinha trabalha62 do muito sobre os sintetizadores" • A criação musical é concebida por Pinhas como uma fOrma de sirnultaneísmo que se aproxima da concepção nietzschiano-deleuziana do tempo concebido como eternidade e totalidade temporaL Ultrapassando as clivagens entre gêneros musicais, Pinhas considera a produção sonora como um mesmo fluxo que liga tanto Bach, Wagner, Hendrix, Steve Reich ou Phillip Glass segundo intensidades diferentes. A lógica da sensação definida por Deleuze a partir da obra de Bacon pode se traduzir também no plano da criação musical segundo Pinhas: "A modulação e o ritmo possuem as mesmas modalidades e a mesma esfera de constituição que a sensação definida por Gilles Deleuze; caráter irredutivelmente sintético e diferença de 63 nivel constitutivo" . Em 1975, Pascale Criton, música e estudante de musicologia, assiste ao final de uma aula de Deleuze - ela havia ido procurar urna amiga ali. Empurra a porta e ouve Deleuze fazer a analogia entre o que ele quer significar no plano fllosófico e o cromatismo em música. Dirigindo-se à sala, prossegue dizendo que seria interessante ter o ponto de vista de alguém que conhecesse um pouco essa questão. Pascale Criton tem apenas 21 anos, é muito reservada e está ali por acaso, mas trabalha sobre a variação cromática nas culturas africanas. Então, ela se oferece, toma a palavra e expõe em algumas frases sucintas o que pode ser o ponto de vista de um especialista da questão. Logo que termina a aula, a sala vai se esvaziando em meio ao barulho de cadeiras e mesas, e "ele me faz sinal com seu olhar que passava por cima dos óculos. Olho atrás de mim para ver a quem ele podia estar se dirigindo, até 64 que me dei conta de que ele se dirigia a mim" . Pascale Criton se aproxima, espera se dispersar o último grupo que se espreme em torno de Deleuze, que lhe faz sinal novamente, e "ele retoma minhas palavras sobre o cromatismo

I I

362

Dosse

me pedindo para voltar, para falar mais, pôr 65 música para se ouvir" • Ela aceita, mas diz que não vê em que poderia ser útil: "Ele me diz então: 'Seria muito simples, só pôr música para ouvirmos ou trazer documentos e fUzer pequenas exposições, e a gente avançaria no conhecimento que tem do cromatismo em música'. Evidentemente, isso não me desagradava"66• Na semana seguinte, o trabalho começa sobre o cromatismo, e Pascale Criton leva seu gravador para que se ouça "A Catedral Submersa, de Debussy; Cronocromia, de Messiaen, e os cantos africanos reunidos por Gilbert Rouget. Rapidamente, numerosos níveis se entrecruzaram: Deleuze trabalhava sobre as noções de máquina de guerra e de aparelho de Estado. O cromatismo estava próximo da máquina de 67 guerra!" • Além de suas contribuições tópicas sobre a música, Pascale Criton foi como que capturada pelo grão e pela rítmica da voz de Deleuze e por sua maneira de pensar em voz alta. Na mesma época, Pascale Criton conhece um grande músico russo, Ivan Wyschnegra~ dsky, que vive então em Paris, onde morreu em 1979. Deleuze se interessa de perto pelo trabalho de Pascal e Criton com esse compositor russo que teve um papel pioneiro no que ele chamou de ultracromatismo e ao qual ela consagra uma obra dedicada a Gilles Deleuze 63 em 1996 . Este último recebe várias versões do manuscrito e escreve a esse respeito: '1\.credito muito no seu trabalho ... Ele me fascinou, e pela lei dos encontros felizes, estou trabalhando justamente sobre o virtual. Então me encanta a ideia de um continuum sonoro que se divide em continuum parcial pelo jogo de qualidades interválicas. Talvez elas não estejam definidas ainda ... processo de atualização que precede a atualidade, a individualidade e a qualidade sonora. São três belas páginas em que você mostra que nesse processo de atualização o limite é indiscernível, do mesmo modo que a passagem de plano ao plano' 69 . Pascale Criton, em seu trabalho de composição musical, é fortemente influenciada peM las temáticas deleuzi~'has e guattarianas. Nas

Gilles Deleuze & Félix Guattari

peças que escreve para piano nos anos 1980 ela afirma ter acesso a um material molecula;, fluidiflcar o material sonoro, e seu trabalho sobre o continuum musical empresta a noção de "transcodificação" de Guattari. Ao mesmo tempo, Deleuze está à escuta da especialista: "Ele não se apresentava como um especialista no campo da música. Era um laboratório ao vivo, um pensamento que se construía. Ele me dizia: 'Está certo?'; 'Posso dizer assim?"'70• No início dos anos 1980, quando Deleuze se consagra ao trabalho sobre o cinema, não esquece com isso sua componente musicaL Trabalha com Pascale Criton sobre os escritos teóricos de Eisenstein, sobre as harmonias na imagem e no som: "Isso pertencia ao campo da intermodalidade, da transmodalidade sensorial, e nesse plano a gente teve muitas trocas e leituras teóricas" 71 • Ao longo dessas sessões, ela lhe apresenta também o trabalho de Gérard Griset, um aluno de Mcssiaen, que · havia lançado o que se chama de "movimento espectral" em meados dos anos de 1970, que reintroduz os processos temporais. Ora, Griset tinha um autor de referência, o único filósofo cujos escritos lhe serviam para pensar a música: Deleuze. Falecido prematuramente aos 52 anos, Griset deixa uma obra teórica que Pascale Criton apresenta a Deleuze. Consagrando sua última aula em 1987 à harmonia, Deleuze confia a Pascal e Criton seu desejo de continuar trabalhando com ela, muito provavelmente sobre o que teria sido um livro sobre a música, mas as circunstâncias não são favoráveis: o estado de saúde de Deleuze se degrada, assim como o estado da mãe de Pascal e Criton, Dominique dAcher, que foi com a fl!ha assistir à aula: 'A conjunção dos dois me deu muito medo, deixo passar os meses, mas não me sinto capaz de estar presente junto dele para uma obra sobre a música"72 • Se Deleuze acompanha com entusiasmo a criação cinematográfica, pictórica e musical, com o teatro é bem diferente. Esse modo de expressão não lhe interessa muito. Será que é sua crítica virulenta e constante à temática da representação que o conduz a essa distância?

Talvez. Contudo, há algumas exceções nesse campo que o aproximam da cenografia do teatro. Em primeiro lugar, seu encontro com Carmelo Bene, criador de um gênero particular que põe em cena a música, a voz, a imagem, após ter começado pelo cinema. O encontro ocorre graças a um intermediário que se tornará amigo próximo de Deleuze, o autor e tradutor italiano Jean-Paul Manganaro: "Em 1975, tenho um encontro com Carmelo Bene em Roma para trazê-lo a Paris e faço a besteira de lhe perguntar quem ele deseja ver em Paris. Ele me responde: Barthes, Deleuze, Klossowski, Lacan e Foucault. Eu só conhecia Barthes e Foucault, e precisei me encher de coragem para telefonar a Deleuze, que foi extremamente gentil e cordial. Ele já conhecia alguns fllmes de Berre"'". A partir desse encontro. Carmelo Bene e Deleuze mantêm discussões regulares sobre o teatro, que conduzem a um livro comum em 197974 • O título, Superposições, indica que não se trata para Deleuze de se lançar a uma interpretação exterior, de impor um comentário a mais à obra de Carmelo Bene, mas de teorizar o ato subtrativo ope~ rado pelo próprio Bene sobre o Ricardo 111, de Shakespeare. O espaço crítico/ clínico definido aqui por Deleuze pretende-se, portanto, uma operação cirúrgica da amputação. Deleuze, embora pouco dado às viagens, se deixa levar por Manganaro a Roma em 1977 para assistir à representação da peça. Ator antes de ser diretor, cineasta antes de ser homem de teatro: a ambivalência seduz Deleuze, essa potência pela qual Bene transcende a divisão entre o autor, o ator e o diretor, o que Deleuze qualifica em Bene de "máquina atorial". Na essência desse teatro, além da questão da língua menor, encontra-se o tema da variação: "O que conta são as relações de velocidade ou de lentidão''75. Nisso ele está em ruptura, o que agrada Deleuze, com a ideia trágica de representação dos conflitos e das contradições a superar. Abandonando essa dialética intersubjetiva, Bene deixa correr linhas de variações segundo modalidades e velocidades diferentes, evoluindo para devires minoritários.

363

Há também nesse teatro toda uma repreSentação sobre o corpo, próxima dos temas deleuzianos. O trabalho teatral, segundo Carmelo Bene, coloca a questão de saber como ser um corpo de ator sem órgãos e ao mesmo tempo em cena. Trata-se de exprimir "a impossibilidade do corpo de querer, de poder: os obstáculos -os impedimentos, para retomar o termo de Gil!es Deleuze - que distraem e desorientam"76. Nessa expressão teatral, Bene dá toda sua importância à voz, às suas variações contínuas, que são da ordem da proferição e correspendem em seu teatro a três fluxos distintos: a voz direta do ator em cena, a voz gravada e a voz distorcida, ora aumentada, ora diminuída, a partir da voz real do ator. Sobre o tema da voz, Deleuze presta urna vibrante homenagem ao seu velho amigo Alain Cuny, que havia conhecido adolescente na casa de Marie-Magdeleine Davy'7 : "O que a voz revela é que os conceitos não são abstratos ... Quando a voz do ator é a de Alain Cuny... É talvez a mais bela contribuição a um teatro de leitura. Imagina-se a Ética, de Espinosa, lida por Alain Cuny. A voz é como que levada por um vento 78 que conduz as ondas de demonstrações" • Deleuze publica em 1992 um texto importante, O Esgotado, no mesmo volume que Quad 9 e outras peças para a televisão, de Beckete • O mundo de Beckett, seus personagens e suas disjunções despertam em Deleuze o mesmo fascínio que ele sente pelo personagem de Bartleby e seu I would prefer not to. A ausência de possíveis no teatro de Beckett remete para Deleuze ao tema do esgotamento, que não é a simples fadiga: o fatigado ainda dispõe de possíveis, mesmo que seja incapaz de realizá-los, enquanto que o esgotado não tem mais - "Ele se esgota esgotando o possível, e inversamente"80. Há, segundo Deleuze, quatro vias para esgotar o possível: formar séries exaustivas de coisas, calar os fluxos de voz, extenuar as potencialidades do espaço e dissipar a potência da imagem: "O esgotado é o exaustivo, é o cala81 do, é o extenuado e é o dissipado'' • A estética, segundo Deleuze, não é absolutamente um jardim privado para especialistas;

364

Cilles Deleuze & Félix Guattari

Dosse

ela está em cada um enquanto simbiose de afetos e de perceptos segundo combinações muito singulares no que ele define, a partir de

Bacon, como uma "lógica da sensação''. Quando Deleuze confia a Harry jancovici, da editora

La Différence, um ensaio sobre Bacon, nunca tinha encontrado o pintor. Nessa ocasião, seu editor ]oachim Vital costuma discutir sobre

pintura com Deleuze e considera sua análise sobre Bacon especialmente apaixonante e original. Constata também que "sua bagagem, em matéria de arte, era mínima, e seus gostos 82 controversos" • O fato de trazer conceitos operatórios, a partir da obra de Bacon, é o mais surpreendente. Logo após o lançamento, o ensaio de De83 leuze é enviado a Francis Bacon , que se im-

pressiona com a acuidade da proposição: "Era o caso de dizer que esse tipo estava por atrás dos meus ombros enquanto eu pintava meus 84 quadros!", diz ele • Joachim Vital, grande admirador de Bacon, organiza o encontro entre o autor e ó pintor em Paris, um jantar, na Rue Trudaine, no Auberge du Clou. Entretanto, o que devia ser um sonho acordado vira um pe~ sadelo: ''A comida estava horrível - tão horrí~ vel quanto o diálogo deles. 'Caro Gilles', 'Caro Francis' ... Sorriram um para o outro, se cumprimentaram, sorriram de novo. Aturdidos, nós os ouvimos desfiar banalidades. A gente lançava bolas para eles: a arte egípcia, a tragédia grega, Dôgen, Shakespeare, Swinburne, Proust, Kafka, Turner, Goya, Manet, as cartas de Van Gogh ao seu irmão Théo, Artaud, Beckett. Cada um por seu turno agarrava uma bola e jogava com ela, no seu canto, sem se preocupar com o outro. Uma garrafa de vinho de Bordeaux estava com gosto de rolha, e Bacon tomou isso como uma of€nsa pessoal. Deleuze encadeou com um discurso de alto nível sobre o fu85 turo da Universidade" • Deleuze, de sua parte, quando perguntam a ele se conheceu Bacon comenta: "Sim, logo depois desse livro. Sente-se nele potência e violência, mas também um enorme charme. Quando permanece sentado por uma hora, ele se contorce em todos os sen~ 86 tidos, diríamos verd'adeíramente um Bacon" •

Em seu livro, Michel Pepiatt atribui a Deleuze o fato de que em nenhuma outra parte do mundo Bacon usufrui de tão grande prestígio 87 quanto em Paris • Contudo, além do caso de Bacon, é toda uma reflexão de ordem estética que Deleuze tem em vista através desse estudo pictórico, a do acesso ao "puro figurai" por extração e isolação: "A pintura deve arrancar a Fi88 gura do figurativo" • Deleuze prossegue assim a reflexão que empreendeu com Guattari sobre a rosteidade em Mil Platôs. Ele vê Bacon como o pintor que desfaz os rostos para deixar que apareçam melhor, sob o efeito sobrecodificado destes últimos, os devires múltiplos das cabeças como prolongamento dos corpos. Do que nasce a sensação forte experimentada diante de uma tela de Bacon? Essencialmente de sua capacidade de captar o jogo de forças que se exercem no quadro para determinar as formas ali. Encontra-se em Bacon essa vontade de figurar a vida - "A matéria é a vida". Graças a todas essas experimentações, Deleuze constrói uma estética transcendental da sensação. Com a preocupação de superar a oposição entre crítica e clínica, ele elabora 89 uma "psique da intensidade" , permanecendo na filiação de sua primeira inspiração nietzschiana, perseguindo essa vontade de recuperar forças nessas travessias da experiência criadora. O vitalismo está bem no coração dessa estética, como o próprio Deleuze menciona em uma carta a Mireille Buydens em resposta ao livro que esta consagra a ele: "Creio que você vlu, da sua maneira pessoal, o que é essencial para mim, esse 'vitalismó ou uma concepção 90 da vida como potência não orgânica'' . Contudo, quando Mireille Buydens reintroduz na estética deleuziana uma série de dualismos concebidos como contraditórios, como a força e a forma, para chegar a uma constatação de "'aformalismo", ela passa à margem do que Deleuze expressa, como este último confia a Arnaud Villani: "Deleuze, quando submeti o problema e ele, se demarcou veementemente disso (correspondência privada)"". O que é fundamental em Deleuze, segun· do Arnaud Villani, não é de modo nenhum

esse jogo de oposições, mas o corpo, e é isso que fascina Deleuze nos artistas: ''Agir, reagir são primeiros em relação a conhecer. F, preciso que uma estética da representação dê lugar a 92 uma estésica do sujeito ativo" , pois toda sua filosofia está voltada para o corpo como potência ainda inexplorada tal como já a havia concebido Espinosa.

As dobras da imanência Ao término do seu ensino em Paris-VIII, Deleuze encontra um conceito que consome toda sua elaboração filosófica, o de dobra. Essa noção emana de uma longa viagem no pensamento de Leibniz, que ocupou Deleuze durante parte do ano letivo de 1979 e 1980, mas so· bretudo seu último ano de ensino, 1986 e 1987. 93 Com o livro, publicado em 1988 , Deleuze pa· rece também refazer o elo com suas primeiras monografias, com a arte do retrato que marcou seu primeiro período. Deleuze, ao mesmo tempo em que revisita o autor exumado para fazer dele um de seus contemporâneos, pretende ressituar um Leibniz filósofo da idade barroca confrontado com os problemas de seu tempo. O que está em questão de maneira dramática, e que abre um novo período, a época moderna em pleno século XVII, é o desmoronamento da construção teológica. Construída sobre um sistema fechado e monocentrado, ela se vê confrontada com a grande ruptura copérnico-galileana e, portanto, com a infinitude. Como pensar esse infinito? Esse é o desafio que têm de enfrentar os filósofos do século XVII. Leibniz foi quem tentou responder a esse problema em duas vertentes: a da estética, prosseguindo as operações distintivas do barroco até o infinito, e a da epistemologia, incluindo o acontecimento e o predicado na mônada enquanto unidade ao mesmo tempo fechada e contendo a integralidade do mundo, apesar da ausência de "janela para o exterior". O mundo se encontra dobrado em cada alma, mas segundo configurações sempre diterentes. Como de hábito, Deleuze toma distância

365

de algumas ideias recebidas ou de interpretações dominantes. Leibniz é visto como otimista um pouco beato quando afirma que o mundo se edifica a partir de uma harmonia preestabelecida; Deleuze mostra que, ao contrário, sua ideia repousa em uma concepção da danação, segundo a qual "é nas costas dos danados que 94 aparece o melhor dos mundos possíveis" • O que Leibniz possibilita a Deleuze, em um momento em que já não é apenas a construção teológica que desmorona, mas também a razão otimista das Luzes que se esfrangalha, é responder a um desafio igualmente premente por sua potência telúrica. A esse título, as tentativas contemporâneas de salvar qualquer coisa e de refundar sobre novas bases "nos torna[am] talvez mais próximos de Leibniz do que de Voltaire"95• Além disso, a outra metafísica que Deleuze procura elaborar é aquela que transcende o corte entre o sujeito e o mundo, aquela que restabelece as pontes entre o ser vivo e o cosmo, pois as dobras se encontram por toda parte no universo. Está em harmonia com as temáticas de Leibniz: "É preciso pôr o mundo no sujeito, a fim de que o sujeito seja para o mundo. É essa torção que constitui a 96 dobra do mundo e da alma' • Essas dobras po· dem ser identificadas tanto nos plissamentos das montanhas mais antigas, como as montanhas hercinianas, quanto nos rios, nas plantas e nos organismos vivos, sejam animais, sejam humanos. Tem-se aí, com a noção de dobra, um ope~ rador dessa transversalidade que Guattari tanto almejava. Além disso, tem-se um conceito que fala a todos, pois corresponde a certos usos da vida cotidiana. É essa conexão com a vida mesma que mais agrada Deleuze, o que aliás ele menciona em 1988, ano da publicação da obra em O Abecedário. Ele fala das inúmeras cartas que recebe de pessoas que se identificaram com esse uso da dobra, em particular uma 'J\.ssociação de Dobradores de Papel", que possui sua própria revista e que expressa seu reconhecimento a Deleuze: ''A gente está de acordo, o que o senhor faz é o que a gente faz". "É 97 uma maravilha!", comenta Deleuze • Quando

366

Dosse

Deleuze publica sua obra, a tradição filosófica elos especialistas de Leibniz já é longa: Louis Couturat, Bertrand Russel, Martial Guéroult, Yvon Belaval e sobretudo Michel Serres, que deu uma enorme repercussão ao pensamento de Leibniz nos anos 1970 e 1980. Será que se pode afirmar que Deleuze,

como ele mesmo diz, fez um filho nas costas de Leibniz, nas dobras de seu pensamento? Nada é menos seguro. Michel Fichant, especialista em Leibniz, não manifestou discordância com a visão deleuziana: "Relendo A Dobra, me dei conta de que Deleuze é muito mais fiel a Lei98 bniz do que se poderia imaginar" • Contudo, Deleuze, que dá como subtítulo ao seu livro "Leibniz e o barroco'', inscreve-se mais na filiação da recepção cultural, simbólica de Leibniz, a de um Cassirer, do que na filiação mais propriamente epistemológica da filosofia da mate· mática ou da lógica, a de um Couturat: "O que, portanto, é original no procedimento de Deleu·

ze é abor_dar Leibniz a partir do barrocd'99 • Esse é também o ponto de vista de Bruno Paradis, que define o estilo de Deleuze com um concei~ to que este último havia utilizado para caracterizar o procedimento de Foucault, o da "dia· 100 gonal" • Deleuze encontra de fato em Leibniz esse sentido das multiplicidades, dos elemen· tos díspares, dos campos distintos, e que po· dem ao mesmo tempo ser relacionados uns e outros com f€nômenos de captura de um campo em outro. AB diagonais têm a possibilidade de traçar linhas, de dobrar os saberes uns sobre os outros, e assim de consoar a matemátíca, a poesia, a arquitetura, a filosofia, a música ... Restabelecer as pontes é o horizonte permanente de Deleuze, que vê em Leibniz um pensador que torna possível fazer passar de novo, entre as dobras da alma e as dobras da matéria, as dobras do mundo. Essa noção livra igualmente de ter de escolher entre continuidades e descontinuidades, imobilidades e rupturas, pois a dobra traz em si "ao mesmo 10 tempo a distinção real e a inseparabilidade" '. A dobra se torna o vetor das intensidades sensíveis e inteligíveis misturadas; ela não remete <:!" nem a um começõ nem a um fim, nem a uma

Gilles Deleuze & Félix Guattari

profundidade nem a uma altura, mas se refere apenas ao plano de imanência. O objetivo que Deleuze se atribui é constituir um conceito de dobra que siga todas as sinuosidades do pensamento de Leibniz: "Minha hipótese é que o 02 b arroco f az pregas"' . b arroco certamente não inventou a prega, que se percebe até nas esculturas da antiguidade grega, mas a dobra barroca, e é isso que a especifica, vai ao infinito: "Uma alma não poderia desenvolver de uma só vez todas as suas redobras, pois elas 103 vão ao infinito" . No sistema leibniziano, Deleuze encontra uma forma de vitalismo próxima de suas posições. O vitalismo de Leibniz consiste em afirmar que "o ser vivo é uma máquina ... O que se opõe à mecânica é a máquina"t04. O que as diferencia é que a máquina está do lado do infinito, enquanto que a mecânica se situa do lado do finito. jovem arquiteto recém saído da Escola Politécnica de Lausanne, Bernard Cache chega a Vincennes entre 1979 e 1980, quando Deleuze começa a falar de Leibniz. "Disse a mim mesmo, é isso! É exatamente o que estou procu105 rando. Ainda não sei o que é, mas é isso" . Ele decide seguir um curso de filosofia e escolhe Deleuze como seu orientador de tese. Começa entre eles um longo diálogo que será interrompido com o fiilecimento de Deleuze em 1995. O início da Dobra atesta a importância que assumirá Bernard Cache a propósito da abordagem da matemática e da geometria em Leibniz. Segundo Deleuze, a matemática barroca começa com Leibniz como campo por excelência da variação. O perspectívismo de Leibniz é análogo ao relativismo, mas não aquele que se imagina, "não é uma variação da verdade segundo o sujeito, mas a condição sob a qual aparece ao sujeito a verdade de uma variação""'"- As dobras da alma, segundo Leibniz, envolvem as virtualidades das diversas inflexôes: "O mundo inteiro é apenas uma virtualidade que só existe atualmente nas dobras da 107 alma que o exprime" • Bernard Cache transformou esses princípios em forças materiais, concebendo objetos manufaturados a partir de modelos aleatórios que permitem produzir

o

objetos moduláveis, não padrões, mas de ma· neira industrial. Ele criou uma empresa, cujo nome, Objectile Diffusion,lhe foi sugerido por Deleuze: "Ele me disse um dia que os objetos de que eu falava de maneira leibníziana por meio de funções paramétricas são de fato objéteis"108. Nessa empresa, Cache transforma os princípios filosóficos em verdadeiro modo de produção singular, passando da dobra algébri· ca leibniziana à dobra geométrica desarguiana. Trata-se para Bernard Cache de uma forma de neofinalismo "que seria uma mosofia da desnaturação!" 109 • Com suas sombras interiores mobiliadas em perspectiva enganosa, com seus interiores sem exterior e suas fachadas sem interior, a mônada leibniziana está ligada sobretudo à arquitetura barroca. O espaço barroco é divado em duas partes separadas por uma simples dobra. Encontra-se essa visão binocular particularmente em Tintoretto e El Greco. Sabe-se também que o barroco introduz um novo regime ele luz com o claro-escuro: "O claro-escuro preenche a mônada seguindo uma série que se 110 pode percorrer nos dois sentidos" . Essa relação entre duas fases e duas intensidades da luz remete a uma outra di vagem entre a infinidade de mundos possíveis e a finítude de mundos reais, porém, entre as duas, restam os mundos virtuais que são atuais nas mônadas que os exprimem sem que eles sejam reais. O mundo é portanto "Uno" para Leibniz, mas deve ser pensado em dois níveis distintos, que se percebe também na relação entre a alma e o corpo, cada um agindo segundo leis próprias. Uma exprime o mundo, é a alma, enquanto o outro, o corpo, o atualiza: "Não são duas cidades, uma jerusalém celeste e uma terrestre, mas a cumeeira e as fundações de uma mesma cidade, os 1 dois andares de uma mesma casa" 1t • Sobre a questão da criação musical, a ideia de Leibniz segundo a qual a alma canta por ela mesma em acordes, enquanto os olhos leem uma partitura, e a voz segue a linha melódica - assinalando assim o envolvimento conforme dobragens de operações diferentes cujo resultado visa à harmonia- encontra seu pro-

367

longamente na música mais contemporânea: "O mesmo problema expressivo não deixará de animar a música, até Wagner ou Debussy, e hoje Cage, Boulez, Stockhausen, Berio. Não é um problema de correspondência, mas de 'fold-in', ou de 'prega conforme prega""". De· leuze conclui sua obra: continuamos fundamentalmente leibnizianos, pois se trata sem~ pre de dobrat; desdobrar e redobrar. O tema do cristal é onipresente na obra de Deleuze, pois o plano cristalino constitui o modelo do acontecimento como plano de imanência. Como indica Christine Buci-Glucksmann11:\ que foi sua aluna muito cedo, o cristal tem um valor matricial para a construção ele uma estética do virtual. Christine Buci-Glucksmann, que publica em 1986 uma 114 obra sobre o barroco , discute a estética barroca com Deleuze, que, de sua parte, prepara o livro sobre Leibniz: "Havia entre nós uma discussão sobre o barroco do contínuo, isto é, o modelo da dobra leibniziana, Bernini, a Itália, o conceito, e o que eu tinha trabalhado de mi· nha parte: o barroco do vazio, as retóricas bar15 rocas napolitanas, venezianas, espanholas"t . O falecimento de Deleuze interrompe esse diálogo fecundo, mas Christine Buci-Glucksmann prossegue sua elaboração de uma estética do virtual "tentando elaborar um terceiro regime da imagem que é pós-deleuziana e que chamei de imagem-fluxo, não mais a imagem-cristal que ainda tem arestas. É uma imagem que se constitui uma espécie de contínuo virtual"m. Os trabalhos de Buci-Glucksmann são ex· tremamente próximos aos conceitos deleuzianos. Ela os coloca à prova de algumas expressões criadoras, como é o caso quando de sua obra sobre o Japãom, em.que distingue algumas matrizes próprias ao "olho japonês" a partir de suas observações da arquitetura e do urbanismo. Observa uma primeira matriz no efeito-onda: "Ondas e espirais, como o nuagismo':' da imagem ou das dobras dos originários, são sempre inflexões virtuais no sentido preci<'N. ele T.: Termo derivado de nuage (nuvem), que deu o nome a um movimento de arte abstrata nos anos de 1960.

368

Dosse

so de Gilles Deleuze e Bernard Cache"ll'- Trata-se ali do campo das variações múltiplas, das linhas-universos, das inf1exões que traduzem bem essa expressão japonesa "ter o espírito da onda" que é de algum modo o inverso da expressão ocidental "ter o espírito da escada". É,ric Alliez está certo ao ver na construção dessa ontologia do virtual a linha diretriz mais pura do pensamento deleuziano 1t9: "Seria então como se Deleuze tivesse começado por generalizar ao conjunto da filosofia moderna, kantiana e hegeliana, dialética e fenomenológica, a crítica que Bergson dirígia a Einstein:

ter confundido o atual e o vírtual, ter reduzido a lógica matemática dos casos de solução à problemática ontológica da questão da matéria e do tempo. É apenas tendo em vista que o pensamento deleuziano não possui como sujeito senão o virtual que ele pode ser chamado indiferentemente de fllosofia do devir, da diferença, da imanência ou do acontecimento - pois é o virtual que permite enunciar, do ponto de vista de'' um materialismo verdadeiramente transcendental, cada uma dessas noções por 120 ela mesma e com as outras" • O amigo comum de Guattari e de Deleuze, Raymond Be11our, que ficara fascinado com O Anti-Édipo, em 1972, e que chegou a fazer uma entrevista com os autores para Les Temps Modernes, tão longa que jamais foi publicada, consegue convencer o diretor do lvfagazine Littéraire a consagrar um dosslê a Deleuze em torno da publicação de a Prega, em 1988m Bellour está particularmente apaixonado por essa questão do atual e do virtual que, na continuidade de seu trabalho sobre Leibniz, preocupa Deleuze até o fim. Seu último projeto de obra, que ficou inacabado, deveria se chamar Conjuntos e Multiplicidades. Seu último texto ''A imanência, uma vida'', assim como o texto publicado como anexo em Diálogos, "O atual e o virtual", constituiriam os dois primeiros capítulos: "Seria um livro pequeno, com capítulos muito curtos. Ele queria explicar os conjuntos lógicos de Russel e de Frege e o conceito de virtual. Mas ele se mata após escrever esses 122 dois textos" • l"

Gilles Deleuze & Félix Guattari

Em um de seus últimos textos, Deleuze volta à definição da filosofla como teoria das multiplicidades que coloca frontalmente 0 problema do atual e do virtual: "Toda multiplicidade implica elementos atuais e elementos virtuais. Não há objeto puramente atual. Todo atual se cerca de um emaranhado de imagens 123 virtuais" • Quanto ao plano de imanência, ele compreende essas duas dimensões, sem que se possa dizer o que pertence a uma ou à outra. Essa temática do virtual no pensamento de Deleuze encontra-se desde sua tese em que ele afirma a plena realidade de tal dimensão virtual: "O virtual não se opõe ao real, mas so.: 124 mente ao atual" • A concepção de um tempo multidimensional é necessária, e Deleuze a busca na imagem-tempo com esse cristal de tempo como não cronológico que nos permite entrever devires singulares. Com o cristal, ele valoriza uma matéria organizada na fronteira entre o orgânico e o inorgânico, um precipitado de síntese. Ainda que as últimas publicações de Deleuze façam pouca menção ao cinema e se apoiem mais na literatura- o que talvez esteja ligado ao fato de que nos últimos anos Deleuze permaneceu recluso em casa-, ele certamente persistiu na ideia de prosseguir suas pesquisas sobre o cinema. Nos últimos meses de vida, em 1995, Raymond Be11our lembra-se de ter discutido com ele sobre a questão do virtual, dessa dimensão que não é atual, mas sempre bem real: "Ele estava preparando um livro sobre o virtual, e me lembro de ter comentado com ele ao telefone no verão de 1995 quando 125 ele estava em Saint-Léonard-de-Noblat" •

Notas L Ver capítulo "Quando Deleuze vai ao cinema·.

2. Gilles DELEUZE. CC, p. !L 3. Ibid., p. !2. 4. Ibid, p. !3. 5. Gilles DELEUZE, D, p. 47. 6. Ibid, p.48. 7. Ibid, p. 53-54. 8. Ibid, p. 55.

369

9. Ibid., p. 60. lO. Henry MJLLER, Sexus, Buchet-Chastel, Paris, p, 29. 11. Mareei PROUST, Correspondence avec madame Strauss, lettre 47, Livre de poche, Paris, !972, p. !!0-!!5, citado por Gilles DELEUZE, CC, p. !6. !2. Gilles DELEUZE. CC, p. !38, nota4. !3. Gilles DELEUZE. posfácio a H. MELVI!LLE. Bart!eby, Flammarion, Paris, 1989; reproduzido em CC, p. 89-!!4. !4. Gilles DELEUZE, CC, p. 9!. !5. Ibid., p. !lO. 16. Ibid, p. !!2. 17. ]acques RANCIÉRE, La Chair des mots, Galiléc, Paris, !998, p. 203. 18. Ibid.. p. 202.

37. Henri MICHAUX, CEuvres completes, op. cit.,

19. Olivier Mongin, entrevista com o autor.

49. Gilles DELEUZE, "Le froid et le chaud", em Fromanger, !e peintre et !e modele, Baudard Alvarez, 1973; reproduzido em 10, p. 344-350.

20. lbid. 2!. Ibid. 22. Êdouard Glíssant, "Philosophíe de la mondialité", 25 de julho de 2003, France Culture.

23. Ibid. 24. Ibid. 25. Christina Kullberg, entrevista com o autor.

26. Anne SAUVAGNARGUES, Deleuze et lart, PUF. Paris, 2005, p. 19. 27. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, MP, 235-252, 28. lbid, p. 243. 29. Pierrette Fleutíaux, entrevista com o autor. 30. Pierrette FLEUTIAUX, "Le phiolosophe, Dlourês, le philosophe", em Naus sommes éternels,

Gallimard, Paris, 1990, Folio, 1992, p. 679-692. 3L Ibid, p. 681. 32. Gilles DELEUZE, "Philosophie de la série noire", Arts et Loisirs, n. 18,26 de janeiro-1° de fevereiro de 1966, p. 12-13; reproduzido em ID, p.

117. 33. Raymond Bellour dedica seu prefácio às CEuvres completes de Henrí :Míchaux, entre outros, a Gilles Deleuze e Félix Guattari. Henri MICHAUX, CEuvres completes, Gallimard, Plêíade, Paris, 1998, tomo I.

34. Raymoncl Bellour, ibid, p. XIIL 35. Ibid., p. XVII. 36. Gil!es DELEUZE, F. p. 126.

tomo li!, 2004, p. XXXIX 38. Raymond BELLOUR, em Éric ALLIEZ (sob a dir.), GilLes Deleuze. Une vie philosophique, Syn-

thélabo, 1998, p. 537-543. 39. Anne SAUVAGNARGUES, Gil!es Deleuze et

/'art. op. cit, p. 200-208. 40. Gérard Fromanger, entrevista com o autor. 41. Ibid.

42. Gérard Fromanger, entrevista com Eve Cloarec, 22 de outubro de 1984, arquivos IMEC.

43. Ibid. 44. Ibid. 45. GiHes Deleuze, Félix Guattari, Qph, 192. 46. Gérard Fromanger, entrevista com o autor.

47. Jbid. 48. Ibid.

50. Ibid, p. 344. 51. Richard PINHAS, Les Larmes de Nietzsche. Deleuze et la musique, Flammarion, Paris,

2001, p. 24. 52. Píerre Boulez, citado por David RABOUIN, Le Magazine littéraire, fevereiro de 2002, p.

40. 53. GUies DELEUZE, "Rendre audibles des forces non audibles par elles-mêmes" (1978), em HF, p. 143. 54. Ibid., p. 144.

55. Gilles DELEUZE, «Occuper sans cornpter:

Boulez, Proust et !e temps" (1986), DR, p. 274. 56. Pierre BOULEZ, Penser la musique aujourd'hui, Gonthier, Paris, 1963. 57. Mireille BUYDENS, Sahara. L'esthétique de Gilles Deleuze, Vrin, Paris, 1990, p.154. 58. Richard Pinhas, entrevista com o autor.

59. Ibid. 60. Ibid. 61. !bid. 62. J{ichard Pinhas, "Deleuze Variations", France

Culture, 21 de abril de 2002. 63. Richard PINHAS, Les Larmes de Nietzsche. Deleuze et la musique, op.cil.. p. 200. 64. Pascal e Criton, entrevista com o autor.

65. Ibid.

370

Gilles Deleuze & Félix Guattari

66. Ibid. 67. Pascale CRITON, "L'invitation", em André BERNOLD e Richard PINHAS (sob adir.), De· Leuze épars, Hermann, Paris, 2005, p. 56. 68. Pasca[e CRJTON, prefácio a Ivan \NYSCHNEGRADSKY, La Loi de la pansonorité, Contrechamps, Genebra, 1996. 69. Gílles Deleuze, carta a Pascale Criton, 20 de dezembro de 1993. 70. Pascale Criton, "Deleuze Variations", France Culture, 21 de abril de 2002. 71. Pascale Criton, entrevista com o autor. 72. Jbid.

73. jean-Paul Manganaro, entrevista com o autor.

74. Carmelo BENE, Gilles DELEUZE, Superposi· tions, Minuit, Paris, 1979. 75. Jbid., p. 113. 76. jean-Paul MANGANARO, prefácio a Carmelo BENE, Notre-Dame des Turcs, POL, Paris, 2003, p.l7. 77. Gilles DELEUZE, ''Ce que la voix apporte au tex_te'', em Théâtre national populaire: Alain Cuny "Lire", Lyon, Théâtre national populaire, nov.l987; reproduzido em RF,p. 303-304. 78. Ibid., p. 303·304. 79. Samuel BECKETT, Quad et autres pieces pour la télévision, suivi de L'b"'puisé par Gilles DELEUZE, M.inuit, Paris, 1992. 80. Gilles DELEUZE, L'Épuisé, ibid., p. 57. 81. Ibid., p. 78. 82. Joachim VITAL, Adieu à quelques personnages, La Différence, Paris, 2004, p. 228. 83. Gilles DELEUZE, Francis Bacon. Logique de la sensation, La Différence, Paris, 1981; reed. Seuil, Paris, 2002 (doravante citado FB ). 84. Francis Bacon, citado por Joachim VITAL, Adieu à quelques personnages, op.cit., p. 228. 85. joachim VJTAL, ibid., p. 236·237. 86. Gilles Deleuze, "La peinture enflamme l'écriture", palavras recolhidas por Hervé Guibert,LeMonde, 3 de dezembro de 1981; reproduzido em RF. p. 170·171. 87. Michel PEPIATT, Bacon. Anatomie d'um énigme, Flammarion, Paris, 2004. 88. Gilles DELEUZE, FB, p. 17.

89. Anne SAUVAGNARGUES, Deleuze et lart, op.cit., p. 260. '.'·

90. Gilles DELEUZE, "Lettre-préface", em Mireille BUYDENS, Sahara. L'esthétique de Gilles DeLeuze, op.cit., p. 5. 91. Arnaud VILLANI. "De l'estéthique à l'esthésique: Deleuze et la question de J'art", emAJain BEAULIEU (sob adir.), Gilles Deleuze, héritage philosophique, PUF, Paris, 2005, p. I 05. 92. lbid., p. 120. 93. Gilles DELEUZE, Pli. 94. Gilles DELEUZE, Libération, 22 de setembro de 1988, palavras recolhidas por Robert Maggiori; reproduzido em PP, p. 220. 95. Jbid. 96. Gilles DELEUZE, Pli, p. 37. 97. Gilles Deleuze, A. 98. David Rabouin, entrevista com o autor. 99. Ibid. 100. Bruno PARADIS, "Leibniz: um monde unique et relatif", Le Maganize littéraire, n. 257, setembro de 1988, p. 26. !OI. Ibid., p. 29. 102. Gilles Deleuze, aula na universidade de Paris·Vlll, 28 de outubro de 1986. 103. G. W LEIBNIZ, La Monadologie, Belin, Paris, 1952, § 61. 104. Gilles Deleuze, aula na universidade de Paris·Vlll, 28 de outubro de 1986. 105. Bernard Cache, entrevista com o autor. 106. Gilles DELEUZE, Pli, p. 27. 107. Ibid., p. 32. 108. Bernard Cache, entrevista com o autor. 109. Bernard CACHE, "Objectite: poursuite de la philosophie par &mtres moyens?", em Rue Descartes/20, Gilles Deleuze. Immanence et vie, College international de philosophie, PUF, Paris, maio de 1998. 110. Gilles Deleuze, Pli, p. 45. 111. Jbid., p. 161. 112. Ibid., p. 187.

113. Christine BUCI·GLUCKSMANN, "Les cristaux de l'art: une esthétique du virtuel", em Rue Descartes/20, Gilles Deleuze. Immanence et vie, op. cit. 114. Christine BUCI·GLUCKSMANN, La Folie du voir. De l'esthétique baroque, Galilée, Paris, 1986. 115. Christine Buci-Glucksmann, entrevista com o autor.

116. Ibid. ll7. Christine BUCI·GLUCKSMANN, L'Esthétique du temps au ]apon. Du zen au virtuel, Galilée, Paris, 2001. 118. Ibid., p. 97·98. 119. Éric ALLIEZ, "Sur la philosophie de Gilles Deleuze: une entrée en matiere", em Rue Descartes/20, Gilles Deleuze.lmmanence et vie, op. cit., p. 49·57.

371

120. Ibid., p. 56·57. 121. "Gilles Delem',e. Um philosophe nomade", Le jvfagazine littéraire, n. 257, setembro de 1988. 122. David Lapoujade, entrevista com o autor. 123. Gilles DELEUZE, "L'actuel et le virtuel", D, p. 179. !24. Gilles DELEUZE. DR. p. 269. 125. Raymond Bellour, entrevista com o autor.

Gilles Deleuze & Félix Guattari

25 Uma filosofia artista

O resultado final do trabalho comum entre Deleuze e Guattari vem à luz em forma de uma questão que não podia ser mais clássica

e que os dOis ·companheiros pareciam ter recusado até então - afirmando o primado do 'e" sobre o "é". Em 1991, para surpresa geral, aparece O que é a filosofia?. Esse projeto vem de longa data, pois, desde ô lançamento de Mil Platôs, Deleuze manifestara o desejo de trabalhar sobre esse tema. Assim, ele encerra seu curso do ano letivo 1979 e de 1980 em Vincennes com as seguintes palavras: "No próximo ano, será preciso encontrar alguma coisa de

siderar que a decisão tomada por Deleuze de aceitar assiná-lo junto com Guattari não é ape~ nas uma prova de amizade excepcionalmente intensa, mas uma maneira de mostrar que as teses ali desenvolvidas, a língua em que elas são enunciadas fazem parte desse trabalho de elaboração comum empreendido desde 1969, O livro de 1991 coroa esse trabalho comum que terá durado vinte anos: nesse aspecto, a dupla assinatura não foi usurpada e faz justiça ao agenciamento que o tornou possíveL

novo. Meu sonho seria um curso sobre o que é a filosofia?" 1, o que provoca um acesso de ri-

Filosofar é criar conceitos

sos geral de seus alunos, que pensam se tratar

A obra, mais bem recebida que Mil Platôs, foi um acontecimento, pois sua mensagem é clara, límpida, a propósito da função definida como a própria fllosofia: a capacidade de criar conceitos. Nela ainda, Deleuze e Guattari tomam as ideias em voga nos anos de 1990 em sentido inverso - todo mundo pretende criar e difundir conceitos, especialmente os publicitários. Só se fala então de "conceitos" em todos os departamentos de recursos humanos, em todos os centros de decisão e em todos os âmbitos. Diga-me teu conceito, e eu te direi quem és! Não é tão simples!

de uma brincadeira. Mais tarde, ao longo dos anos de 1980, Deleuze volta a formular esse

desejo diante de seus alunos, mas sem jamais realizá-lo, pois diz não estar pronto ainda para responder a essa questão falsamente facil. Ele reafirma muitas vezes a importância que atribui a esse projeto 2• O estatuto desse livro é ambivalente: está ligado a um projeto muito pessoal de Deleuze, uma espécie de coroamento de sua vida de filósofo, e foi manifestamente escrito por ele e ., ' apenas ele'. Ao meãmo tempo, pode-se con-

A mensagem é mais bem recebida por aqueles já familiarizados com o pensamento de Deleuze e Guattari, pois se encontra ali uma série de temáticas bastante conhecidas deles. Seu amigo Robert Maggiori acompanha uma resenha muito elogiosa do livro em Libération de um longo artigo sobre seu trabalho comum a partir de uma entrevista com os dois autores na qual afirmam a força de sua ligação, a natureza heterogênea dos conceitos produzidos por sua ''ramificação maquínica", mas, ao mesmo tempo, a ausência de efusão de amizade entre eles, o fato de se tratarem por "senhor", 1 etc.' • Maggiori enfatiza a continuidade do gesto que foi inicialmente colocar uma primeira bomba na psicanálise com O Anti-Édipo e, em 1991, uma segunda bomba na disciplina filosófica - "o livro de Deleuze e Guattari é inassimilável pela filosofia hoje"'- Ele qualifica de "construtivista' essa definição da filosofia que, para criar conceitos, deve extrair um aconteci~ menta dos seres e das coisas, inventar personagens conceituais e assegurar a ligação, as conexões destes últimos no plano da imanência. Por sua vez, Roger-Pol Droit publica na mesma semana uma resenha no Le Mande: "Faz muito tempo que se esperava esse livro. Há muitos anos Deleuze o havia anunciado. Sua vida 6 toda, talvez" • Droit ressalta também o caráter intempestivo dessa intervenção, seu aspecto hilariamente inoportuno: "Esse livro está à altura do inesgotáveL Faz parte daqueles poucos que balançam as bibliotecas inúteis, vocês agarram e põem em marcha''. De O Anti-Édipo a O que é a filosofia? alguns conceitos apareceram, e outros desapareceram. Deleuze e Guattarl habituaram seus leitores a uma linguagem singular que oferece um contraste marcante com o discurso filosófico clássico. Um doutorando oriundo das letras clássicas e convertido à linguística, Sylvain Loiseau, prepara em Paris-X, sob a orientação de François Rastier, uma tese sobre a "Semântica do discurso filosófico", que trata da filosofia dos anos de 1970 na França. Trabalhando sobre os textos de Lyotard, Derrida, Foucault, Loiseau integrou ao corpo de sua pesquisa o essencial

373

da obra de Deleuze e Guattari. Com isso, pôde avaliar no plano lexicológico até que ponto realizaram isso que para eles define a filosofia: a invenção de conceitos. Por meio de uma demarcação quantitativa das ocorrências léxicas, depois de ter enumerado o corpo dos textos, Sylvain Loiseau põe em evidência alguns traços semânticos estruturantes, como "a oposição delimitado/não delimitado, que é uma cons8 tante textual, em particular de O Anli-Édipo" • O levantamento das coocorrências permite, por outro lado, reconstituir, quando Deleuze e Guattari falam do sujeito ou do ator, léxicos reveladores das funções que eles lhes atribuem e dos papéis semânticos que têm em vista: "Os atores são especializados em uma relação de conflitualidade com o contínuo. Devem 'passar através', 'romper os limi9 tes', 'embaralhar', 'demonstrar autonomia"' . Sylvain Loiseau demarca, no plano da língua, o corte que constitui o encontro com Guattari. Os textos exclusivos de Deleuze, de !968 a 1969, permanecem na ordem de uma semântica bastante clássica, mesmo Lógica do Sentido: 10 'A obra que mais se singulariza é iV!il Platôs" • Evidentemente, esse trabalho de invenção não se faz ex nihilo. Não é no face a face solitário com sua folha em branco que o filósofo cria conceitos; ele necessita de personagens conceituais como o ''amigo", que atestaria a origem grega da filo-sofia: "Com a filo-sofia, os gregos submetem a uma violência o amigo, que não está mais em relação com um outro, mas com uma Entidade, uma Objetividade, uma Essência"ll. Os personagens conceituais podem encarnar-se em figuras psicossociais como "o déspota', "o nômade", "o profetà', "o traidor", "o guerreiro'', "o itinerante", para citar aqueles que animam o percurso de Mil Platôs. A lista de personagens conceituais que podem ser convocados pela filosofia é indefinida. O idiota é um deles: "É um pensador privado 12 em oposição ao professor público" • Esses personagens têm cada um seu "momento de glória", lugares de enraizamento, ligados a um espírito do tempo situado espacialmente. Assim, circunscreve-se o idiota na atmosfera cris~

374

Gilles Deleuze & Félix Guattari

François Desse

tã e se vê seu surgimento na cena eslava, russa, onde Dostoievski lhe dá uma força particular,

Ao mesmo tempo, ele sofre metamorfoses. Assim, o novo idiota se opõe ao antigo pelo fato de não se contentar mais com as evidências, mas querer o absurdo. Da mesma maneira que Jules Michelet, no prefácio à sua História da França (1869), dizia que tinha sido não o pai de sua obra, mas seu produto, o filho tendo engendrado o pai, Deleuze e Guattari atribuem ao personagem conceitual um papel fundamental e ao filósofo o do simples invólucro. Esses personagens concei-

tuais têm a ver, como os ritornelos, com um lugar originário, um território com suas lógicas de desterritorialização e reterritorialização. Têm

traços que conservam do meio histórico e geográfico do qual emergiram e, ao mesmo tempo, como os acontecimentos puros, escapam ao estado de coisas que os viu nascer e se tornam suscetíveis então de uma "determinação pura3 mente pensante e pensada'>~ • É apenas nesse caso qw:f adquirem o estatuto de personagens conceituais. Deleuze e Guattari definem o que qualificam como sendo filosófico, que se con14 densa no fato de "traçar, inventar, criar" • Essas três operações estão ligadas uma à outra e consistem em encontrar um plano pré-filosófico no plano de imanência, inventar e dar vida a personagens pró-filosóficos e, finalmente, criar conceitos filosóficos. Fazer a história da filosofia significa, portanto, encontrar esse gesto triplo para extrair dele o problema que o filósofo se dispôs a pensar. JÍ. nessa situação de crise que o filósofo pode ao mesmo tempo abordar mais de perto os verdadeiros problemas colocados e criar novos conceitos, pois "a filosofia vive assim em uma crise permanente. O plano opera por abalos, e os conceitos procedem por saraivadas, os per15 sonagens por solavancos" . É ilusório então acreditar que se pode simplesmente interpor camadas de saber, à maneira como a erosão deposita as camadas sedimentares sobre o suporte terrestre. O critério, sempre atual, é o do interessante: "Mesmo repulsivo, um conceito 16 deve ser interessadte" • A partir desse critério,

pode~se

encontrar na história mais anti era da b filosofia com o que tornar um velho conceito adormecido "interessante", mas com a condição de que ele possa contribuir para despertar outros devires em um novo cenário, "mesmo ao preço de voltá-lo contra ele mesmo" 17, segundo o método da perversão tão caro a Deleuze. A filosofia ocupa, portanto, o terreno da invenção, mas em que isso difere da ciência lógica e da arte? É o problema que colocam Deleuze e Guattari na segunda parte de O que é a filosofia?. A ciência inova evidentemente, mesmo não tendo como objetos os conceitos, mas as funções. Confrontada também, assim como a filosofia, com o caos, ela procede ao inverso, renunciando ao seu infinito para ganhar em operacionalidade, e "ganhar uma refe18 rência capaz de atualizar o virtual' • A ciência tem necessidade de colocar suas balizas, de estabelecer limites fixos para construir súas experiências sobre o que não é um plano de imanência, mas um plano de referência. As funções que assume são compostas não de conceitos, mas de "functivos". Lá onde filosofia e ciência se aproximam é no que elas são duas modalidades, dois tipos heterogêneos de multiplicidades. Contudo, um conceito pode se transformar tornando-se proposicional e é chamado então de "prospectO'. Nesse caso, "o conceito perde todos os caracteres que possuía como conceito f1losófico, sua autorreJerência, 9 sua endoconsistência e sua exoconsistência'>~ • Esse argumento visa de maneira polêmica às posições da filosofia analítica, totalmente hegemônica no mundo acadêmico norte-americano. Assimilando a filosofia a uma simples ciência lógica, confundindo seus conceitos e suas funções, os adeptos da filosofia analítica são os coveiros da filosofia: "É um verdadeiro ódio que anima a lógica, em sua rivalidade ou sua vontade de suplantar a filosofla. Ela mata o conceito duas vezes":w. Tal assimilação decorre da dificuldade de compreender o que é o conceito enquanto acontecimento puro de sentido, além de sua funcionalidade em um estado de coisas pre•

ciso: "O conceito é uma forma ou uma força, jamais uma função em nenhum sentido possível"21. Deleuze e Guattari, nesse plano, arrancam a filosofia da fascinação-dependência a que esteve submetida por longo tempo e que a colocou na órbita da ciência. Ora, o conceito é da ordem do acontecimento e escapa por definição a qualquer funcionalização, pois o aconM tecimento é "a parte em tudo o que acontece do que escapa à sua própria atualização'm. Há, portanto, essa vontade de ser digno do acontecimento que se deve encarnar: ''A filosofia não tem outro objetivo a não ser tornar-se digna do acontecimento, e aquele que contraefetua o acontecimento é precisamente o personagem 23 conceitual" • Dessa heterogeneidade de natureza entre ciência e fllosofia, Deleuze e Guattari não deduzem que esses dois campos devem se dar as costas. Simplesmente, não devem ser confundidos, mas se cruzar no respeito de sua 24 singularidade, "cada um seguindo sua linha' •

Afetos e perceptos A filosofia também compartilha com a arte o campo da criatividade, mas aqui ainda os objetos diferem. A arte é o campo dos afetos e dos perceptos, que se distinguem das afeições e das percepções por sua capacidade de ser conservados, de extrapolar os momentos em que se os experimentam. A função da arte é tornar possível essa conservação e transmissão para além da finitude da existência e do vivido: ''As sensações, perceptos e afetos, são seres que valem por si mesmos e excedem todo 25 vividd' • Se o filósofo cria conceitos, o artista cria perceptos e afetos por todos os meios, seja através da arquitetura, da escrita, da escultura, da pintura, da música ... Essa capacidade artistica multiforme, que vem ultrapassar o estado das coisas, está no cerne da problematização de ordem fllosófica de Deleuze e Guattari. A estética recebe assim um estatuto certamente diferente da filosofia, mas não é vista de fato como um campo à parte, separado do resto da especulação fllosófica, pois esses per-

375

ceptos e afetos são indissociáveis das imagens do pensamento, são suas condições mesmas de possibilidade, como também o campo de experimentação privilegiado para testar as capacidades humanas de criatividade. À maneira dos personagens conceituais, os afetos podem desempenhar um papel principal de que 6 se investem certos heróis~ . A arte não é reservada ao humano e, com Deleuze e Guattari, reata sua relação ativa com o mundo e com sua transformação: ''A arte começa possivelmente com o animal, pelo menos com o ani27 mal que talha um território e faz uma casa" • Do mesmo modo que a filosofia, que só pode viver criando conceitos, a arte é impulsionada a criar sempre novos perceptos e afetos. Com métodos e objetos diferentes, o horizonte é o mesmo para a arte, a ciência lógica e a filosofia: é criar finito que abre para o infinito, que possa reatar com o caos circundante para tirar planos dali. Nenhuma prevalência pode ser atribuída a este ou aquele procedimento; eles são as três variantes do pensamento, e suarelação respectiva pressupõe o cruzamento deles, com a condição de se evitar qualquer identificação e falsa síntese. O objetivo dessas três formas de expressão da criatividade é liberar as forças vitais onde quer que estejam aprisionadas, reencontrar sua virtualidade a partir de uma operação de desestratificação. Na medida em que não há determinismo a descobrir no plano de imanência, todos os momentos, todos os lugares podem ser fontes fecundas de experimentação. Daí o construtivismo generalizado sugerido por uma bricolagem criadora que se apodera de todas as formas de expressão da vida para agenciá-las de outra maneira e depois medir os resultados. Essa outra metafísica passa, portanto, por um empirismo- encontram-se ali os 28 primeiros trabalhos de Deleuze sobre Hume • O gesto fundamental defendido com insistência por Deleuze e Guattari é o de pôr em movimento o mundo natural, animal e humano através de uma observação flna da maneira como as coisas advêm. Isso implica um "estilo'' filosófico, sempre em busca de novos

376

Dosse

agenciamentos, de novos conceitos, que possa exprimir a criação em sua força, traduzi-la em palavras segundo as linhas de uma fllosofia artista ou de um paradigma estético cujo campo de experimentação não se reduziria ao campo artístico. No início dos anos de 1990, esse modelo

artístico encontra outro prolongamento com os trabalhos de pesquisa cognitiva do biólogo Francisco Vareia. Este último toma distância da fenomenologia husseriiana, que, segundo ele, não conseguiu chegar à própria estrutura da experiência e se retraiu em um ato de introspecção filosófica abstrata, deixando escapar a dimensão pragmática. Varela introduz o conceito de "enação", de ação encarnada enquanto interação circular entre um organismo e seu ambiente, que permanecem estritamente autôno29 mos um em relação ao outro • Isso pressupõe dirigir uma atenção especial aos agenciamentos mais diversos de elementos heterogêneos e valorizar fenômenos emergentes que aparecem simultaneamente como um mundo que faz sentido: "Há numerosas relações entre uma estética da enação e uma estética do território no sentido de Deleuze e Guattari":!o.

Uma estética da vida

I!.! •

ji í!'

A estética assume um sentido novo em Deleuze e Guattarl. Atravessa todos os campos de atividade humana e encontra seu enraizamento com suas linhas de fuga e de desterritorialização. Todas as práticas, as atividades que têm uma relação com o novo, portanto com uma forma de desterritorialização, podem ser situadas assim como modalidades diferentes de um paradigma estético ou de uma filosofia artista. Evidentemente, a arte condensa esse fenômeno de exposição do novo: "Criar é se expor"31 • O psiquiatra e terapeuta Mony Elkaim, amigo de Guattari, que trabalhou muito ao lado dele na animação de uma rede de psiquia32 tria alternativa , expressa sua dívida para com Guattari após o desaparecimento deste: "Félix desempenhou, na viq,a de cada um de nós, um

Gilles Oeleuze & Félix Guattari

papel cruciaL Reconhecendo a fecundidade da referência aos sistemas abertos longe do equilíbrio, suscetíveis de regimes de atividade estável, mas também de instabilidades e de bifurcação para outros regimes de atividade, ele esperava que essa referência virasse palavra de ordem, que não permitisse ao terapeuta esquecer as dimensões éticas e estéticas. É sob sua inspiração que a noção de sistema, dominada por ideal de inteligibilidade, é substituída pela de combinação, sob o signo do heterogêneo'm. Por esse testemunho, pode-se avaliar como as questões em jogo nos conceitos e posturas teóricas adotados por Deleuze e Guattari representam questões sociais candentes. Assim, o terapeuta, com essa ideia criativa, artista da combinação, não pode mais se contentar em reconhecer em uma situação suas categorias analíticas em forma de "Compreendi" referi~ do a um sistema de interpretação pronto para funcionar. Ele é confrontado com o risco da criação, da inovação produzida por sua bricolagem singular. Há, portanto, uma ligação direta entre a arte c a filosofia. A criação artlstica não é relegada a qualquer superestrutura, mas é constitutiva de sistemas de valores e fonte de identidade: "Pense na emergência da música polifónica no Ocidente; é um modo mutante de subjetivação":H. A arte é considerada como o campo por excelência que resiste. Como já dito, ela conserva afetos e perceptos desafiando o tempo que passa, mas é também um possível meio de resistência aos processos de homogeneização, um meio de valorizar as multiplicidades: ''A arte vai no sentido da heterogênese contra a homogênese capitalista''35• A obra de arte, enquanto autopoiese, atesta um processo de autoprodução do novo e se apresenta como paradigma possível, estético, podendo servir de modelo tanto para a ciência como para a filosofia. A propósito da relação que Deleuze mantém com a arte, Anne Sauvagnargues distingue três momentos sucessivos, correspondendo a um tempo de privilégio atribuído à expressão literária, depois, graças ao encontro com Guat-

tari, a uma virada pragmática aberta à dimensão política da criação artística e, depois de Mil Platôs, à elaboração de uma semiótica geral da criação artística, passando pela imagem e pelo estudo do cinema. Se é possível efetivamente perceber uma insistência maior ou menor sobre esta ou aquela forma artística, o objetivo claramente enunciado desde Diferença e Repetição permanece o mesmo de um extremo a outro de seu percurso: captar diretamente, o mais perto possível, as imagens do pensamento, quer se trate do falar ou do ver, submeter a crítica à clínica e vice-versa, direcionar o olhar analítico do filósofo ao próprio cerne do ato criativo prestes a se realizar. A arte, nessa abordagem, não é uma simples reprodução do real, é o próprio real: "Uma imagem não representa uma realidade suposta, ela própria é toda sua realidade""'. Com essa concepção, Deleuze e Guattari deslocam o grande esquema dominante do lacanismo, que distingue três níveis heterogêneos na relação HSI (Real-Simbólico-Imaginário), concedendo uma prevalência ao nível simbólico, com os polos Real-Imaginário afastados um do outro e quase antitéticos. Deleuze e Guattari, ao contrário, enfatizam a dimensão real elo imaginário e o caráter literal dos enunciados assim como das imagens. A arte transformaradicalmente o poder de afetar e ser afetado, "de modo que isso que chamamos de arte ou literatura consiste em uma sintomatologia de relações reais, uma 'captura de forças' que se revela 37 uma clinica" • O filósofo capta ali a expressão das forças sob as formas e tenta avaliar a potência que elas contêm, na linha de Nietzsche. Espinosa também permite a Deleuze e Guattari discernir duas formas de individuação segundo duas linhas heterogêneas: a longitude, que é extensiva, extrínseca e que se refere ao estado de forças e signos, ou a latitude, que é o nível intensivo, intrínseco referente aos afetos. Essa dupla relação entre longitude e latitude é constitutiva da singularidade individuante, chamada também de hecceidade. Os seres não se distribuem, portanto, em grades, em casas, entre espécies diferentes, mas segundo sua intensidade pró-

377

pria, isto é, seu afeto. Essa problemática se desenvolve em Guattari graças à nova importância atribuída ao afeto, que rompe também com as teses lacanianas, que atribuem tudo ao Significante mestre, ao simbólico, e nada ao afeto. Ora, para Deleuze, o afeto é a partícula elementar do ser vivo. É assim que, a partir de estudos etológicos, ele evoca em 1988, em O Abecedário, o modo de ser do carrapato, que se limita a três afetos: um excitante visual, que o leva a se içar na extremidade de um ramo de árvore para ter acesso à luz; o excitante do odor, que o leva a se lançar sobre sua presa, e, finalmente, um excitante tátil, que o conduz a se infiltrar sobre a r pe Ie: "[ sso 1az um mun do,38 . Segundo a teoria dos devires de Deleuze e Guattari (devir-animal, c\evir-intenso, devir-imperceptível), a criação artística funcionará como captura de forças. Os dois abrem assim uma via bem diferente da tradição interpretativa na medida em que "a captura de forças permite substituir a relação forma-matéria pela relação força-matéria. Pondo em contato as forças heterogêneas que produzem uma captura inédita, a obra associa criador e receptor em um devir real que dá conta da mutação das culturas'm. Com essa crítica do procedimento interpretativo, Deleuze e Guattari afirmam uma filosofia resolutamente imanente. A arte é concebida como uma força entre outras forças, o que vai ao encontro de toda concepção fundada na arte pela arte, uma arte 10 mutilada de suas forças constituintes' • O empirismo, nessa perspectiva, não terá sido apenas um aperitivo para Deleuze, pois este é bem persistente, como mostra Philippe Choulet: ''A iniciativa deleuziana consiste em descomplexar o empirismo e a se servir dele como de uma máquina de guerra, ele um cavalo de Traia contra o idealismo e o racionalismo"'ll.

Notas 1. Gilles Deleuze, aula na universidade Paris-VIU,

3 de junho de 1980, arquivos sonoros, BNF. 2. Ao seu cúmplice, o filósofo Mikel Dufrenne, que sofre como ele de uma grave insuflcíên-

378

Dosse

cia respiratória desde 1988, ele escreve em

25. lbid., p. 154-155.

1991: "Caro Mikel, obrigado por suas palavras

26. Assim, o ciúme em Proust não é concebido por Deleuze e Guattari como mera consequência de um amor frustrado, mas como finalidad . "Se é preciso amar, é para ser ciumento"

no final da circular da [Revue d1 E'sthétique. Infelizmente, eu não poderia participar desse número, porque, depois de ter finalmente terminado o livro que eu imaginava o último para mim, O que é a filosofia?, eu quería pa-

rar, pelo menos dois ou três anos, e atingir a verdadeira aposentadoria. Aliás, é necessário,

porque o inverno foi muito penoso para minha saúde: longa sufocação, preso como um cão ao meu balão de oxigênio, sem sofrimento, mas muito pânico respiratório. Convalescença que se arrasta. Todas essas queixas são

menos para me afligir do que para lhe dar uma satisfação, e desejar que sua saúde esteja em bom estado .. :· (Gilles Deleuze, carta a tv:likel Dufrenne, 25 de abril ele 1991, Revue d'esthétique, 30, 1996, p. 57). 3. Ver capítulo "Nós dois".

4. Robert MAGG!ORI, "Une bombe sous Ia phí· losophie", Libération, 12 de setembro de 1991; reproduzido em La phi!osophie au jour lejour, Fla~f!Iarion, Paris, 1994, p. 374-381.

5. Ibid., p. 379. 6. Roger-Pol DROIT, "La création eles concepts", LeMonde, 13 de setembro de 1991. 7. lbid.

8. Sylvain Loiseau, entrevista com o autor. 9. lbid. 10. Ibid.

11. 12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. 19. 20. 21.

Gil!es DELEUZE, Félix GUATTARJ, Qph, p. 9. Ibid., p. 60. lbid., p. 68. lbid., p. 74. Ibid., p. 79. lbid., p. 80. Ibid.,p.Sl. lbid., p.ll2. lbid., p.130. Ibid., p. 133. Ibid., p. 137. 22. lbid., p. 147. Ver capítulo "Foucault e Deleuze. Dois filósofOs do acontecimento". 23. Ibid., p. 152. 24. lbid., p. 152.

26

(ibi:.:

p.l65). 27. Ibid., p.l74. 28. Gilles DELEUZE, ES. 29. Ver Francisco VARELA, Evan THOMPSON Eleanor ROSCH, L'Jnscription corporelle d~ l'esprit, Seuil, Paris, 1993.

À conquista do Oeste

30. Mony ELKAIM, lsabelle STENGHERS, "Du mariage eles hétérogenes", Chimáes, Félix Guattari, inverno de 1994, n. 21, p.l50. 31. Ibid., p, 153.

32. Ver o capítulo "A Rede Alternativa à Psíquíatrià'.

33. Mony ELKAIM, lsabel!e STENGH ERS, "Du mariage eles hétérogEmes", art. cit., p. 159. 34. Félix Guattari, "Entrevista com Olivier Zahm 28 de abril de 1992", Chim€res, Félix Guattari: vol. 2, verão de 1994, n. 23, p. 50. 35. lbid., p. 51. 36. Gilles Deleuze, ~Portrait d'un philosophe en spectateur", entrevista com Hervé Guibert, Le li1onde, 6 de outubro de 1983; reproduzido em

RF,p.l99. 37. Anne SAUVAGNARGUES, Deleuze et /'art. op. cit., p. 58. 38. Gilles Deleuze, A

39. Anne SAUVAGNARGUES, Deleuze et /'art, op. cit., p.l07, 40. ''A arte não é jamais um fim, mas apenas um instrumento para traçar as linhas da vida, isto é, todos esses devires reais, que não se produzem simplesmente na arte, todas essas fugas ativas, que não consistem em fazer na arte, em se refugiar na arte, essas clesterritorializações positivas, que não querem se reterritorializar na arte, mas sim transportá-la com elas para regiões do assignificante, da assubjetividade e do sem rosto." (Gilles Deleuze, Félix Guattari. MP. p. 230) 41. Philippe CHOULET, ''L'empirisme comme apéritif. Une persistence de Deleuze", em Anw

clré BERNOLD, Richard PINHAS (sob a dír.), Deleuze épars, op. cit., p. 93~111.

Não se conquista a América em um dia. São necessários intercessores, passadores. Quando Deleuze e Guattari pisarn o solo americano em rneados dos anos de 1970, os campi americanos já estão ávidos de French Theor/. Contudo, as estrelas intelectuais do momento são Roland Barthes, Michel Foucault e, depois, a partir de 1975, Jacques Derrida, que leciona regularmente nos Estados Unidos desde 1966. Nessa época, Deleuze e Guattari, apesar da enorme repercussão na França de O Anti-Édipo, ainda figuram como os prirnos pobres dessa French Theory. Deleuze, que não gosta de viajar e detesta os colóquios e congressos, nunca atravessou o Atlântico. Entretanto, um encontro colocará a dupla em condições de poder se conectar com a América.

O passador lotringer O percurso de Sylvere Lotringer é surpre· endente.Judeu nascido em Paris em 1938, mas de nacionalidade polonesa, ele fOi naturalizado aos 3 meses de idade. Passa a infância em uma França ocupada por nazistas, escondido por um operário da Renault que encontrará trinta anos mais tarde: "Tenho essa pequena

distância que me permite manter minha independência. Foram os franceses que me salvaram e ao mesmo tempo foi a França que me 2 traiu. Portanto, sempre deixei a França" • Com a criação de Israel, em 1948, ainda criança, ele acompanha os pais que vão viver lá, mas isso dura apenas um ano. De volta a Paris, matricu~ la-se na Sorbonne ern 1957. Jovem estudante, filia-se a uma organização sionista de extrema esquerda, a Hachomer Atzalr. já muito atraído pela atividade das revistas, cria uma na SorM bonne, L'Étrave, cujo conteúdo é essencialmente literário. Além disso, a partir de 1959, assina colunas regulares em Les Lettres Françaises. Inscrito inicialmente em psicologia, escolhe os cursos mais longos possíveis para evitar a convocação para a guerra da Argélia e vai parar filosofia. Lotringer logo se torna um militante engajado, e influente, contra a guerra da Argélia e se junta aos responsáveis do setor Lettres-Paris da UNER Ern 1972, Lotringer obtém uma cadeira na Universidade de Columbia em Paris, Read Hall, ern Montparnasse, Rue de Chevreuse, para organizar ali cursos de verão centrados nas ciências humanas. Ampliando os contatos, ele convida Catherine Clément, Serge Leclaire, Tzvetan Todorov, Dennis Hollier e

'

380

Dosse

alguns derridianos. Ainda em 1972, descobre com entusiasmo O Anti-Édipo. Logo que o livro é lançado, entra em contato com Guattari, que fica radiante por poder lecionar e leva Deleuze para algumas conferências. A ligação entre Guattari e Lotringer é imediata. Ambos compartilham os mesmos centros de interesse e têm a mesma propensão a agir, a querer criar o novo. Em 1974, Lotringer tira um ano de férias em Paris com a intenção de trabalhar ao lado de Guattari e passa a maior parte do tempo na Rue de Condé. Aproveita esse período livre para participar de pesquisas com o CERFI, com o qual realizará um número da revista so-

bre Saussure. No mesmo ano, Lotringer decide lançar uma nova revista nos Estados Unidos: Semiotext(e). A equipe é constituída em Paris com um comitê editorial composto majoritariamente de estudantes americanos de francês e de alguns colegas, como Wlad Godzich, Denis Hollier, Peter Caws e ]ohn Rajchman. Com Semiotext(e), Lotringer cria a máquina de guerra ~aritiacadêmica que deve contribuir para divulgar o pensamento deleuzo-guattariano nos Estados Unidos. Durante esse período, Lotringer vai com frequência a La Borde, apenas para se encontrar com Guattari em sua casa de Dhuizon. De volta aos Estados Unidos em 1975, Lotringer decide, junto com seu colega e amigo John Rajchman, membro de suarevista, organizar com uma pequena equipe um grande simpósio na Universidade de Columbia consagrado à "Esquizocultura'', cujo objetivo é imprimir a marca deleuzo-guattariano no solo americano. Para que essa operação tenha êxito, é imperativo contar com a participação de alguns intelectuais franceses de renome, entre os quais, obviamente, Deleuze e Guattari. Contudo, Lotringer e sua revista ainda de circulação restrita não dispõem de bases institucionais nem de recursos financeiros para arcar com essa iniciativa. O projeto acaba por se realizar graças a Yves Mabin, responsável pelas missões francesas no exterior, que se torna um amigo próximo de Deleuze. Mabin decide criar um pequeno grupo de trabal~ô preparado para prestar

Gilles Deleuze & Félix Cuattari

informações qualificadas sobre as personalidades a enviar aos Estados Unidos, pois até então os convites eram de iniciativa exclusiva das universidades americanas: "O princípio era que se pretendia divulgar obras através dessas missões•<). Assim, institui-se uma lista com a ideia de que seja renovada anualmente, sem a priori ideológico. Ela é composta de 4 professores do College de France, 20 diretores de estudos do EHESS e alguns professores assistentes da universidade, todos já com livros publicados: "Foi nessas condições que escrevi a Gilles Deleuze, que eu só conhecia por sua obra. Diferentemente dos que pensam que os intelectuais devem estar a serviço do Estado, eu sempre estive convencido do contrário"4• Yves Mabin pergunta se ele aceitaria participar de uma missão nos Estados Unidos para apresentar ao público americano sua obra. Deleuze fica mais intrigado do que verdadeiramente entusiasmado. Pede para se encontrar com Yves Mabin, que o recebe em seu gabinete na Avenue Kléber: "Ele se senta diante de mim, aproxima a poltrona de minha mesa, e eu me sinto na situação de um acusado diante do co~ missário Maigret"·5• Deleuze quer saber mais sobre o que pode ter motivado essa proposta intempestiva: "Conversamos durante uma hora, e o que se passou entre ele e eu foi uma 6 espécie de aceitação instantânei' • Deleuze faz saber a Yves Mabin de suas reservas em reJa~ ção a esse tipo de viagem, mas Mabin permanece inflexivel, acrescentando que fracassaria em sua missão se Deleuze não aderisse ao programa, com o qual Guattari já tinha concordado. No final, conseguiu convencer Deleuze. Deleuze e Guattari aceitam o convite de Lotringer. Este último está persuadido de que as posições filosóficas deles têm mais correspondência com o que é a sociedade americana do que com a sociedade francesa: "O que na França aparecia como urna teoria utópica era 7 uma realidade cotidiana em Nova York" • Para o simpósio sobre "Loucura e prisãO', Lotringer sai em busca de equivalentes americanos de Deleuze e Guattari, mas, não os encontrando. convida essencialmente, além de outros in-

telectuais de renome como Arthur Danto e o psiquiatra joel Kove.\, escritores e artistas em quem pressente uma proximidade com as te~ ses ele O Anti-Édipo: "Eu estava impressionado pelo fato de que alguém como ]ohn Cage, de quem eu havia retraduziclo para o inglês as entrevistas com Daniel Charles, tivesse chegado a alguma coisa bastante próxima da visão deleuzo-guattariano do capitalismo''(>. Lotringer o traz então, assim como William Burroughs, Richard Foreman e Ti-Grace Atkinson, feminista famosa. Do lado dos franceses, além de Deleuze e Guattari, ele aproveita a passagem de Foucault por Nova York, de retorno do Brasil. Lyotard também está de passagem, assim como ]ean-Jacques Lebel. especialista do happening, que acompanha Deleuze e Guattari ao simpósio para apresentá~los aos artistas, cantores e escritores americanos com os quais tem ligação. Instalado no Chelsea no mesmo quarto que Guattari, nessa atmosfera muito descontraída de contracultura, Lebel passeia completamente nu no hotel... Sabendo-o bilíngue, encarregam-no da animação de um programa na rádio YVBAJ, emissora da esquerda nova-iorquina, durante toda a semana do simpósio. Pelas ondas do rádio, ele convida as pessoas a abrirem suas próprias oficinas de discussão sobre todos os temas possíveis: "Ele dizia: 'Venham! Isto vai ser um verdadeiro bordel, magnífico. Tragam quem quiserem, é a liberdade'"'. Assim, uma vasta multidão acorre para participar do acontecimento anunciado. Ainda que o anfiteatro do Teacher's College seja gigantesco, Lotringer está completamente atordoado com o sucesso. Além disso, visto que a Universidade de Columbia cobrou um preço muito alto pelas salas, ele é obrigado a exigir o pagamento de um ingresso de quinze dólares. As pessoas esperavam que o dinheiro fosse bem pago. Lotringer tinha contatos no ViLlage Voice e articula o acontecimento maior da semana, chamado de "Pick of the Week", que é o simpósio sobre semiótica: "Como nin~ guém sabia o que era semiótica, tive de atender de manhã à noite em minha sala centenas e centenas de pessoas telefonando, pergun-

381

tando o preço da entrada e acrescentando: 'explique-me um pouco o que é a semiótica"' 10• Assim, foram atraídas para esse simpósio até 2 mil pessoas nos três dias. Todos os ingredientes estavam reunidos para que a panela superaquecída explodisse, o que de fato aconteceu. A comunicação de Deleuze transcorre relativamente bem. Ele recusa ser traduzido e promete falar bem devagar, utilizando muito o quadro para fazer croquis. Desenha principalmente rizomas, e o público parece satisfeito com suas demonstrações. Em seguida vem Guattari, que conta com uma tradução simultânea. Sua comunicação logo provoca um reboliço que vai se tornando cada vez mais hostil, e boa parte do público começa a vaiá-lo. Ele não é visado, na verdade, por suas concepções do poder e do desejo, mas contestado enquanto homem pela líder do movimento feminista radical, Ti-Grace Atkinson, que veio reforçada por suas tropas para as quais um homem é necessariamente um falocrata, e o caso é agravado quando ele se atreve a falar das mulheres e do desejo: "Sempre me lembrarei de Félix debruçado na tribuna. Ele amassou suas folhas e teve de ir se sentar de novo com Deleuze e Foucault. A coisa começara mal, e 11 ele estava furioso'' • Depois, é a vez de Foucault ser vítima de uma agressão em regra, quando está começando a fazer um discurso sobre a sexualidade da criança. Atacando fortemente os adeptos da Escola de Frankfurt, que acreditam ter feito as coisas avançarem denunciando em todas as ocasiões o exercício da censura pelo poder, ele provoca reações de exasperação dos membros de um grupo marxista, o Comitê Sindical Revolucionário Larouche, que o acusam de ser pago pela CIA. Ao flnal desse primeiro dia, as pessoas cercam Foucault e lhe perguntam, consternadas, se isso é verdade. Fora de si, Foucault fulmina contra esse público e denuncia esse simpósio como o último colóquio ilustrando todos os desvios dos anos 1960 e promete não botar mais os pés ali. À noite, Deleuze, Guattari e Foucault se encontram no Chelsea com]ohn Rajchman e cri-

382

Dosse

ticam a desastrosa organização do encontro, nos meios alternativos nova-iorquinos. Label que virou uma farsa. Após esse início apocalípos conduz a Massachusetts, a Lowell, local de tico, o pobre Sylvere Lotringer se pergunta se nascimento de Kerouac, para um concerto de Foucault voltará no segundo dia para a mesa Bob Dylan e ]oan Baez. Allen Ginsberg parredonda com o psiquiatra Ronald Laing e a atiticipa da turnê de Dylan. Pouco antes do invista radical]udy Clark. Foucault está mortifitervalo, ele chega ao palco drogado, com sua cado, não dorme à noite, mas no dia seguinte longa barba, suas sinetas e seu harmônio: "O encontra a réplica adequada para retornar à concerto era extraordinário. A gente atravessa sala onde a mesma acusação lhe é lançada por as grades. Caio nos braços de Ginsberg, e ele um provocador: "Ele rebateu: 'Sou agente da não sabia quem eram Gilles e Félix" 15• Depois, CIA, Lotringer é agente da CIA, somos todos eles prolongam sua estada na Califórnia: 'A agentes da CIA. Menos o senhor, o senhor é gente embarca no que é chamado de 'Red Eye', um agente da KGB!'. O sujeito ficou sem graça, o avião noturno. Todos estão com os olhos ver12 e o público morreu de rir" • O clima continuou melhos de sono. A gente viajava Félix e eu de tenso. As numerosas reuniões são tomadas de um lado, Gilles e Claire Parnet do outro. Claire assalto por 200 indivíduos que lançam acusaadormeceu, enquanto Gilles e Félix, sem parar ções para todo lado, agridem os conferencistas um minuto, falaram durante 7 a 8 horas sobre e propagam depredações e ataques. as noções de O Anti-Édipo e de Mil Platôs em Mesmo assim, houve um "efeito simpópreparação. Era como um laboratório intersio" e impactos positivos sobre a difusão das minável que eles interrompiam de tempos em teses de Deleuze e Guattari e sobre a revista tempos para viver, mas que sempre recomeçaSemiotext(e), que conhece um verdadeiro su- va. Eu ouvia isso como se ouvisse Rimbaud ou cesso. O núllero sobre a "Esquizocultura" é Nietzsche" 16• lançado em 1976, com uma tiragem de 5 mil Na Califórnia, eles ouvem Patti Smith em exemplares esgotados em três semanas. Está Berkeley: 'A gente foi apresentá-los, eles esta17 previsto um segundo número, mas Lotringer vam emocionados" • À noite, vão de carro a desconfia do sucesso e decide parar por ali. Isso San Francisco para encontrar o poeta Lawrenprovoca a ira de Guattari, cuja contribuição era ce Ferlinghetti, que construiu a cabana onde anunciada justamente para o segundo númeKerouac escreveu dois de seus livros. Depois ro: "Ele estava furioso e me dizia: 'Mas como? disso, pegam a estrada de novo para visitar a Fui eu quem o ajudou a fazer esse colóquio'" 13• casa de Henry Miller em Big Sur: "Gilles, mePor sua vez. a revista SubsTance, criada em lhor do que Félix, conhecia de cor os livros de 1971, que tem como ambição se tornar a caixa Kerouac e de Miller. Ele tinha teorizado mais de ressonância da vanguarda do pensamento isso que era a literatura do nomadismo e da francês nos Estados Unidos. publica em seus linha de fuga. Ele disse coisas muito importannúmeros de 1974 e 1976 as teses de Deleuze e tes sobre On the Road em suas discussões com 18 Guattari sobre a esquizoanálise e consagra um Claire Parnet" Lebel leva Félix aos meios número de 1978 a Deleuze e Foucault. A tradu"psi" para que conheça sobretudo um certo ção de O Anti-Édipo é lançada logo depois, em Arthur Jdanov, a coqueluche do momento, que 1977, com um belo prefácio de Foucault 14• consegue extorquir dinheiro dos miliardários de Hollywood: "Meu companheiro John Lennon tinha caído na conversa desse Jdanov e Rumo ao extremo oeste seu 'Primai Scream', que consistia em reencontrar o grito do recém-nascido saindo do ventre Após o simpósio de Lotringer, a viagem da mãe. Puro charlatanismo!" 19• Lebel, que coamericana prossegue para a nossa dupla, guianhecia bem Nova York e seu mundo suspeito, da por Jean-Jacques l.;_êbel, que os introduz volta para lá várias vezes com Guattari. Logo

Gilles De!euze & Félix Guattari

que chega, a primeira coisa que faz Guattari é alugar o maior carro possível: "O que ele queria, o que ele amava era dirigir na estrada. Ele ficava encantado em dirigir, em ouvir música no último volume"20• Por ocasião dessas viagens, Guattari encontra uma antiga atriz de teatro francesa, Martine Barrat, instalada no Chelsea Hotel, que tem paixão pelos bairros pobres do Harlem e do Bronx e que se lançou na fotografia e no vídeo. Ela leva Guattari para conhecer as gangues do Bronx com as quais tem uma relação de trabalho para a realização de seu vídeo: "Félix a acompanhava com frequência ao Bronx. Ela fez coisas sobre as gangues de meninas no Bronx que publiquei na Semiotext(e)'m. Guattari se apaixona por Nova York, aumenta suas estadas ali e encontra mais vezes seu amigo Lotringer no final dos anos 1970 e início dos anos 1980. Contudo, no meio da psiquiatria, nunca se estabeleceu verdadeiramente o diálogo sobre suas teses de esquizoanálise. Em 1974, antes do famoso simpósio, convidado para ir aos Estados Unidos pelos serviços culturais franceses para se informar sobre o estado da psiquiatria, ele vai sucessivamente a San Francisco, Berkeley, Stanford, Chicago, Ann Arbor, Yale e Nova York. Na volta, envia um relatório para as autoridades francesas no qual se felicita por esse programa elaborado pelo economista Pierre Tabatoni e sua equipe, mas se diz perplexo quanto à evolução da psiquiatria americana: "A evolução da psiquiatria e das disciplinas anexas nos Estados Unidos me deixou uma certa impressão de mal-estar. Eu não tinha me dado conta até então da dimensão da volta com força do behaviorismo ao campo das ciências humanas e dos malefícios de uma especialização excessiva''22 • Em compensação, exprime o interesse que despertou nele o fato de ter compartilhado por quinze dias a vida de uma das mais importantes comunidades de San Francisco ("Project One"), instalada de maneira confortável e funcional havia quatro anos em uma antiga fábrica, mas, também ali, o que vê o deixa mais amargurado: "Paradoxalmente, pareceu-me que seus participantes

383

não se libertam de um certo conformismo ... Encontrei aqui, quase intactos, o isolamento e mesmo a perturbação que acreditava ter percebido em muitas pessoas que encontrei nos Estados Unidos""'-

O turno universitário Após esses tempos heroicos de uma primeira recepção da obra de Deleuze e Guattari, que atingiu mais os meios da contracultura, os artistas, os marginais e os meios contestatórios, veio um segundo período de recepção, desta vez pelos universitários. Esse segundo alento experimentado pela obra de Deleuze e Guattari encontrou um novo intermediário muito ativo na pessoa do universitário canadense, de origem grega, Constantin Boundas, professor no departamento de fllosofia da universidade de Ontário no Canadá. Trabalhando em uma tese sobre Ricceur nos anos 1970, ele está em busca de algo de rigoroso na teoria pós-estruturalista, mas a leitura de Barthes, de Derrida, de Foucault e de Lyotard não o satisfaz: "Eu estava de férias em Paris em 1981, e perto de meu hotel, na Rue Cujas, encontrei por acaso na livraria Tiers-Mythe muitos livros de Deleuze. Comprei Diferença e Repetição, levei para o meu quarto e cinco dias depois já tinha lido, sem compreender o essencial, mas mesmo assim fiquei fas24 cinado e convicto de que era isso" • Boundas comunica o seu orientador que está mudando o tema e que vai consagrar sua pesquisa a Deleuze. Começa a ler tudo o que está disponível de suas publicações, assim como de Guattari, quando conhece François Laruelle, que o encoraja na escolha. De volta a Ontário, está convencido de que quer escreVer sobre Deleuze, mas, em 1981, há ainda pouquíssimas obras de Deleuze disponíveis em inglês25 : "Deleuze era então um desconhecido nos departamentos de filosofia. Derrida, Foucault e Lyotard já eram conbecidos, mas ele não" 26• Boundas empreende então um enorme e solitário trabalho de tradução. Começa, sem contrato, a tradução de Diálo-

384

Dosse

gos, Lógica do Sentido, Diferença e Repetição e Empirismo e Subjetividade27 • No final dos anos 1980, a editora universitária de Columbia encomenda a Constantin Boundas a preparação de uma coletânea de trabalhos de Deleuze. Em 1989, por ocasião de uma viagem a Paris, tem um encontro com ele para discutir a escolha mais pertinente e lhe apresenta seu projeto. O encontro é cordial, mas Deleuze substitui o projeto de Boundas por sua própria seleção, composta de textos mais curtos, extraídos de

um maior número de publicações. Quando Deleuze menciona o livro que está para sair O que é a.filosofia?-, Boundas lhe diz que acha que Ricceur está trabalhando sobre um tema similar e ouve como resposta: "Sim, mas ele é cristão''28 .

Isolado em Ontário, Boundas tem absoluta necessidade de um intercâmbio com outros pesquisadores que trabalham a partir de Deleuze. Ele desempenha papel fundamental na realização dos primeiros encontros de deleuzianos a:hglo-saxões. Em 1991, participa ao lado de alguns especialistas na obra de Deleuze e Guattari, entre outros, Ronald Bogue, Paul Patton, Brian Massumi, David Land, Dan Smith, Eugen Holland, de um primeiro encontro que acontece na Inglaterra, em Oxford, organizado pela British Society ojPhenomenology. Com a ajuda de sua colega da universidade do Colorado, Dorothea Olkowski, e do Conselho para a Pesquisa em Ciências Sociais e Humanidades do Canadá, Boundas organiza, em maio de 1992, o primeiro colóquio internacional de deleuzianos na universidade de Trent sobre o tema: "Gilles Deleuze. Pluralismo, teoria e prática". Os participantes são essencialmente dos Estados Unidos, Canadá, Austrália, Inglaterra, mas também da França". Em 1996, Constantin Bouncbs organiza, ainda em Trent, o segundo grande encontro puramente anglo-saxão. Depois, em maio de 1999, um terceiro encontro internacional tem como objetivo definir os pontos de semelhança e de diferença entre Foucault, Derrida e Deleuze, sobre o tema "Rizoma, Genealogia, Desconstrução", e atrai muitas pessoa%:: entre as quais numero-

Gilles Deleuze & Félix Guattari

sos franceses e mesmo brasileiros, como Peter 30 Pál Pelbart • Esse crescimento prossegue, e a quarta conferência internacional da universidade de Trent, realizada em maio de 2004, é um sucesso maior ainda, com o tema: "Gilles Deleuze: experimentação e intensidades. Ciências, filosofias, políticas, artes". A difusão anglo-saxã da obra de Deleuze-Guattari se deve também ao empenho daqueles que frequentaram o curso de Deleuze em Paris-VI!!. É o caso do australiano Paul Patton, que se inscreve no curso de fllosofia em 1975 com um triplo interesse pelo marxismo, por Althusser e pela ciência. Patton prepara sua tese, que defende em 1979, sob a orientação de François Châtelet, sobre "O marxismo e a fHosofia da ciência: Althusser e Popper". Quando Paul Patton abre a porta da pequena sala onde Deleuze leciona às terças-feiras, nunca tinha lido nada dele nem o conhecia, a não ser por uma vaga referência: "Entrei na· sala e fiquei fascinado, mesmo não tendo nenhuma ideia do que se passava ali. Eu fiquei. Ele estava dando uma aula sobre Mil Platôs e falava de devires, de devires animais, de feiticeiras. Eu não via absolutamente o que ele queria dizer e não via tampouco a relação com a filosofia, dizendo a mim mesmo que se tratava mais de poesia, e isso me atraiu a tal ponto que passei a frequentar a aula regularmente'm. Ao longo dos anos de 1980, a sombra que constituía o encantamento por Foucault na recepção das teses de Deleuze e Guattari se dissipa um pouco e dá lugar a um surto de traduções de sua obra:!2• No limiar dos anos de 1990, os pesquisadores já dispõem do es· sencial do corpus dos textos em inglês. Em 200!, o canadense Gary Genosko, professor do departamento de sociologia da Universidade Lakehead de Ontário, edita três obras volumosas reunindo boa parte dos estudos publicados sobre Deleuze e Guattari 33 • Quando em 2004, antes de se aposentar, Constantin Boundas organiza seu último congresso na Trent Univesily em torno da obra de Deleuze e Guattari, o pequeno núcleo inicial de 20 pessoas fez nu· merosos seguidores e reúne então 150 pesqui-

sadores de todas as nacionalidades e de todas as disciplinas: as entradas possíveis na obra são cada vez mais diversas entre as preocupações especulativas de pura filosofia, os Cultural Studies e as utilizações literárias ou artísticas. Do pequeno núcleo inicial de estudos deleuzianos, o americano Eugene Holland tam~ bém acompanha por algum tempo as aulas de Deleuze em Paris-VIU sobre o cinema. no início dos anos de 1980. Holland tinha começado por estudar Derrida, então professor em Yale. Depois, em 1974, foi fazer seu doutorado em San Diego, na Califórnia, onde assistiu ao seminário de Fredric jameson no departamento de literatura comparada; lá ouviu falar pela primeira vez de O Anti-Édipo. ]ameson, filósofo marxista, faz então, em 1976, uma leitura compatível com suas posições do capítulo sobre "Selvagens, Bárbaros, Civilizados". Bastante interessado nessa leitura na medida em que ele próprio é marxista, Eugene Holland organiza um pequeno grupo de leitura com outros doutorandos de San Diego: "Passamos seis meses à razão de duas reuniões por mês lendo O Anti-Édipo para tentar compreender o que ele trazia''34 . Na época, leciona no campus de San Di ego uma personalidade excepcional, Michel de Certeau35 • Quando Jameson deixa San Di ego, Holland escolhe Certeau e seu amigo Dick Terdiman como orientadores de tese. Nomeado em 1985 professor na universidade do Estado de Ohio, Holland publica uma intro· dução a O Anti-Édipo em 199936 . A maior parte dos departamentos de fi. losofia nos Estados Unidos adota as teses da filosofia analítica e dá pouca importância à filosofia dita "continental", de modo que a obra de Deleuze e Guattari só se impõe através da instituição filosófica. Mas há exceções. É o caso em particular da Society for Phenomenology anel Existential Philosophy, cujos congressos anuais sempre dão lugar a contribuições sobre a obra de Deleuze. Nesse meio, "o interesse pelo trabalho de Deleuze cresceu consideravelmente em uma década e meia, ligado à renovação do interesse por Bergson e por 37 Espinosa'' • A difusão das teses deleuzianas

385

é mais ampla é, sem dúvida, no setor da filosofia continental das ciências. Esse campo de reflexão era até então monopólio da filosofia analítica, que o considerava um subdomínio de seu procedimento, enquanto que a filosofia continental se acantonava em um horizonte pós-heideggeriano de desconstrução. A evolução do pensamento científico na direção da teoria do caos, das teorias genéticas ou da física das partículas torna possíveis novas conexões com a ontologia filosófica e, portanto, com as posições de Deleuze. Cutro~ fello, professor de filosofia na universidade de Chicago vê ali um devi r maior do pensamento de Deleuze, sobretudo de Diferença e Repetição:l'"·. Dan Price, outro especialista da obra de Deleuze-Guattari, professor da universidade de Houston, Texas, formado em Chicago, começou a ler a obra deles no final dos anos !980. Interessado principalmente na teorização do movimento social e político, confirma o isolamento dos estudos deleuzianos em um univer~ so amplamente dominado pela filosofia analítica: "Um aluno que quisesse trabalhar sobre Deleuze como tema principal seria fortemente dissuadido, pois um grande número de filóso39 fos analíticos não o reconhece como seu" • Além disso, a obra de Deleuze tornou-se indispensável nos estudos teóricos sobre o cinema, e algumas universidades arnerica~ nas contribuíram muito para a divulgação de suas teses. É o caso de Dudley Andrew, autor de uma biografia de André Bazin, que descobre Deleuze desde a publicação em inglês de Proust e os Signos, por volta de 1973. Na época, ele é estudante em lowa City e trabalha sobre a biografia de Bazin. Ligado aos meios cinéfiIos franceses, particularmente ao!) críticos dos Cahiers, dos quais Bazin é o pai tutelar, Dudley Andrew logo toma conhecimento do primeiro volume de Deleuze sobre o cinema lançado em 1983: -"Bergson me interessa muito, e quando vi que Deleuze começava por Bergson, isso me 40 cativou de imediato" • Andrew reconhece a marca do criador dos Cahiers: "A relação com os grandes autores, com os grandes cineastas 41 é comum a Bazin e Deleuze" •

386

François Desse

A obra de Deleuze-Guattari tornou~se tam~ bém um recurso essencial para a geração mais jovem, em bases um pouco diferentes. É o caso de )ulian Bourg, que estudou no final dos anos de 1980 e início dos anos de 1990 em um alto reduto da semiótica, em Boston. Era ainda o grande momento da French Theory, em que se cruzam os textos de Lyotard, Deleuze, Foucault

e Lacan. Oriundo de um meio católico comprometido com a justiça social,Julian Bourg está ao mesmo tempo interessado e pouco à vontade: "Minha dificuldade era a questão do relativismo, 42 a crítica do sujeito e da história" • No momento de escolher o tema de sua tese, julian Bourg decide confrontar a .French Theory com a questão ética. Seu campo de pesquisa se concentra então nas publicações de Deleuze e Guattari dos anos de 1968 a 1972: "Trato isso como um cami43 nho bloqueado às questões éticas" • Restituindo as fontes e confluências que conduzem ao rio que é O Anti-Édipo, julian Bourg já percebe a presença da questão étíca e a coerência desta em Deleúze ·nas suas posições espinosianas. Assim, a tese de Bourg, lançada em 2007, situa Deleuze, assim como Guattari, no cerne daquilo que se pode chamar o verdadeiro pensamento 68, ou seja, algo muito diferente do que fora es44 tigmatizado por Luc Ferry e A!ain Renault • Ainda no início dos anos de 1990, Eleanor Kaufman faz seu doutorado na Duke University, na Carolina do Norte. No departamento de estudos teológicos, o professor Ken Surin ensina sobre Deleuze, enquanto sua esposa, ]anel! Watson, se dedica, por sua vez, à obra de Guattari. A universidade de Duke é uma das primeiras universidades americanas a se interessar por Deleuze: "Havia verdadeiramente um grande interesse por O Anti-Édipo, Mil Platôs e Lógica do Sentido, que acabaram de ser traduzidos em inglês. Éramos 20 no gru45 po de pesquisá' • Eleanor Kaufman e alguns outros estudantes se encarregam de organizar um colóquio sobre Deleuze em março de 1993. À parte os colóquios de Constantin Boundas que tiveram lugar no Canadá, esse colóquio, um dos primeiros realizados sobre Deleuze além-Atlântico, fOi mh grande sucesso.

Cilles Deleuze & Félix Guattari

Eleanor Kaufman confirma a impressão que tivera Sylvere Lotringer em 1972: a relação com o mundo instituída pelas teses de Deleuze-Guattari seria mais apropriada à realidade americana do que ao velho continente. "Principalmente no que se refere à ideia de espaços não hierarquizados, imanentes. Eu, de minha parte, venho de um país de grandes espaços. Isso sempre me ajudou a compreender de onde venho, do Missouri, em pleno meio oeste. Creio que eles falam da América profunda. Há essa vasta dimensão, e há também na literatura americana pessoas que não se mexem, como nos livros de Herman Melville ou de Emily Dickinson, pessoas que permanecem no lugar. Ao lado de Deleuze do nomadismo, há também o Deleuze que pensa o estado das pessoas que são pequenas, que não se mexem"46• A forte relação entre a fenomenologia e o deleuzianismo está no cerne da tese de um universitário canadense, Alain Beaulieu. Ele descobre Deleuze em Strasbourg, em 1997, com seu pro-· fessor Daniel Payot, e inicia no ano seguinte uma tese em Paris para estudar a relação que conside~ ra bastante ambivalente e subversiva de Deleuze com a fenomenologia: "Eu vinha da fenomenologia após meu curso de filosofia em Montreal com Jean Grondin e uma permanência de dois anos na Alemanha nas pegadas de Heidegger"'". Se a editora universitária de Columbia desempenhou no início um papel fundamental na difusão das publicações de Deleuze e Guattari, a editora de .Minnesota, muito ativa da edi~ ção da French Theory, alternou-se com ela de forma inteiramente decisiva, com uma relação muito fOrte com Deleuze. É o caso de Biodun Iginla, antigo diretor da editora universitária de .Minnesota, que, menos de dois dias após a morte de Deleuze, escreveu: "Sábado, 4 de novembro de 1995, perdi o único pai intelectual que tive"'". Em outubro de 1990, quando lginla, sucedendo Lindsay Waters e Terry Cochran, se torna o editor titular de Deleuze, a editora de Minnesota já havia publicado oito de seus livros no mundo anglo-saxão. lginla prossegue 49 ativamente essa política de difusão • O filósofo Réda Bensma!a, que leciona na universidade de Minnesota, se torna amigo de

I

Deleuze por ocasião de um número especial da revista Lendemains pelo qual foi responsável e que é consagrado a ele50. Bensrna'iajá tivera a oportunidade de encontrá~ lo várias vezes quando a editora de Minnesota estava editando suas obras: "Cheguei inclusive a lhe enviar 51 as provas de seus livros" • Essa amizade se traduziu em uma correspondência seguida da 2 qual se encontram vestígios em Pourparleri' , na carta de agradecimento sobre a qualidade dos artigos publicados nesse número pelo qual Bensmala é responsável. Na mesma época, em 1989, o americano Lawrence Kritzmann, professor em Dartmund, que se tornaria especialista da história intelectual francesa, conhece Deleuze ao lançar uma coleção pela editora da universidade de Columbia: "Perspectivas Europeias". O primeiro livro publicado na coleção é O que é a 3 filosojia!' : "Fiquei muito orgulhoso com isso, pois, para mim, é uma obra-prima do pensamento francês da segunda metade do século 54 XX" • Em 1989, Deleuze o recebe em sua casa, na Rue de Bizerte: "Em geral, quando se chega à casa dos mestres pensadores em Paris, eles lhe dizem o que estão fazendo, mas Deleuze 55 me perguntou o que eu estava fazendd' • Deleuze e Guattari dispõem agora na América do Norte de bons exegetas universitários, competentes, que trabalharam muito para difundir sua obra. Entre eles, Charles Stivale56 criou um importante site na Internet que é uma mina, ao mesmo tempo corno caixa de ressonância dos textos de Deleuze e Guattari, dos estudos consagrados a eles e da rede de pesquisadores interessados em sua obra. Por sua vez, Brian Massumi, professor do departamento de comunicação da universidade de Montreal e tradutor de Mil Platôs em inglês 57, também publica obras pessoais e agrupa con58 tribuições sobre a obra de Deleuze e Guattari .

A admiração americana Desde o final dos anos de 1990, o ritmo das publicações consagradas a Deleuze e Guattari

387

no mundo anglo-saxão conhece uma inflação galopante. De cinco a seis livros publicados por ano entre 1998 e 2000, passou-se a uma boa dezena de títulos apenas para o ano de 2001. A tendência não para de se confirmar desde o início do novo milênio. Os departamentos de literatura comparada são os mais receptivos e, segundo Dana Polan, tradutor do Kafka, de De59 leuze e Guattari , o marxista americano Fredrickjameson, apesar de suas reservas, é um bom exemplo de um uso possível de O Anti-Édipo na crítica literária, ainda que às vezes seja um pou60 co simplificador • Em 1987, a importante revista Cultural Critique consagra dois números aos discursos menores, utilizando maciçamente o conceito deleuzo-guattariano e transpondo-o aos discursos das populações "subalternas". Essa recepção deleuzo-guattariana ultrapassa de longe os meios estritos da teoria literária. É também um recurso não desprezível para alguns cientistas que desejam restabelecer as pontes entre as duas culturas, sobretudo a partir das tecnologias mais sofisticadas. É o caso de Manuel DeLanda, que começou sua carreira com filmes experimentais, tornando-se programador e artista em informática antes de ser professor no departamento de filosofia de Columbia. DeLanda se pôs como objetivo superar a clivagem entre cientistas e humanistas. Para isso, concebe a ontologia deleuziana como a filosofia mesma das ciências da complexida61 de e dos dinamismos não lineares . É preciso contar também com uma recepção mais especificamente política e contestatória no interior do mundo anglo-saxão, como ilustra Michel 62 Hardt , ex-aluno do fllósofo italiano Toni Negri, que escreveu com ele algumas obras de crítica social e política de grande repercussão e de inspiração deleuzo-guattariana63 . Esses livros têm como ambição defender uma forma deradicalismo político nutrido pela contestação do sistema capitalista e conduzido pela esperança de uma ruptura, ainda amplamente inspirada em um marxismo revisitado pelos conceitos espinosistas e deleuzo-guattarianos. Entretanto, não se pode limitar a recepção dessa obra à mera esf€ra universitária, ainda

Félix Guattari 388

389

Dosse

que esta ateste um reconhecimento, certamente tardio, mas profundo e muito intenso. É preciso contar também com a recepção da

obra nos meios feministas, não obstante a rejeição brutal que soffeu quando do famoso simpósio de Columbia, em !975: ''Até meados dos anos de 1990, uma desconfiança instintiva em relação à forma como Deleuze e Guattari 'molecularizam' a questão feminina vai dominar a relação do feminismo americano com a 64 obra deles" • Tal abordagem é vista como uma manobra diversionista em relação aos verdadeiros e fundamentais questões que são da ordem "molar". Contudo, o movimento feminista evolui nos anos de 1990 no sentido de uma abordagem menos essencialista, que permite

uma recepção mais positiva das teses sobre o "devir~mulher", sobre a desidentificação sexual, sobre o devir minoritário da escrita, masculina ou feminina, sobre a indeterminação sexual e sua ambivalência fundamentaL Assim, podem ser lidos na obra dirigida por Constantin Boundas' e Dorothea Olkowski dois estudos f€ministas muito inspirados nas teses deleuzo-guattarianas65. Afastando-se ainda mais do mundo universitário, pode-se mesmo encontrar usos do deleuzo-guattarismo exaltando o devir maquínico da humanidade em nome de uma "política cyborlf', conforme o desejo da feminista Donna Haraway, que, em 1985, define o cyborg como "um organismo cibernético, híbrido de máquina e de organismo, criatura da 66 realidade social assim como da flcçãd' • Outro campo que desempenha um papel mais ou menos importante nas pesquisas americanas, o dos post-colonial studies, dos Subaltern Studies, também utiliza fortemente os conceitos deleuzo-guattarianos. Essa influência passou sobretudo pelo grande intelectual palestino, professor na universidade de Columbia, Edward Said, para quem o "tratado de nomadologia" de Mil Platôs permite cartografar o mundo contemporâneo e situar o destino desterritorializado do povo palestino. A outra grande figura dos Subaltern Studies, Gayatri Chakravorty Spivak, de origem indiana, também se apropriou dos conceit& de Deleuze e Guattari.

Sua crítica dos sistemas totalizantes, sua concepção do conceito como tendo antes de tudo uma vocação prática, tática, sua definição do intelectual, ou ainda sua defesa da minoridade literária testemunham essa proximidade. O conceito de máquina deleuzo-guattariana não serviu apenas de máquina de guerra contra o estruturalismo, mas encontrou prolongamentos nos Estados Unidos do lado das primeiras redes eletrônicas teorizadas por Hakim Bey, amigo de Sylvere Lotringer, como "zonas de autonomia temporária" (TAZ em inglês)67. O autor convoca a usos ilegais, rebeldes da Tela: ''A obra individual de Félix Guattari tem sobre esses primeiros cyber-comunitaris68 tas americanos um impacto específlco'' • Com seu conceito de rizoma, Deleuze e Guattari figuram como grandes profetas da Net, que torna tangíveis o plano da imanência, as conexões em todos os sentidos, a desierarquização, . os percursos singulares e transversais. Assim, um site com o nome de "Deleuze & Guattari RhizOmat" propõe um módulo de citações "pirateadas" dos dois autores que avança ao sabor das ligações hipertexto". Os internautas deleuzo-guattarianos se sentem tanto mais à vontade na Tela na medida em que são encorajados por todos os conceitos de que se apropriaram. Assim, encontram em sua prática o desejo de seus mestres de uma dessubjetivação que praticam on-line. Sentem-se sintonizados com a noção de multiplicidades, de táticas de desmultiplicação, de sínteses disjuntivas, de desmultiplicação e produção maquínicas, e mesmo o famoso Csü, o corpo sem órgãos, que é utilizado para qualificar a rede, tornou-se uma "BwO [bodywithoutorgans] Zone". Esses múltiplos usos do deleuzo-guattarismo em terra americana realizam o desejo de Deleuze de uma "pop-filosofiâ' que privilegie as práticas. Parecem atestar o sucesso espetacular de um enxerto. A forte adequação entre as teses conceituais apresentadas e a singularidade civilizacional americana converge assim com a intuição de Sylvêre Lotringer, segundo a qual Deleuze e Guattari não falam aos americanos, mas já falam da América.

Notas l. Ver François CUSSET, French Theory, La

Découverte, Paris, 2003 lCusset, Françoís: Filosofia Francesa: a inf1uência de Fourcault, Oerrida, Deleuze e C ia. Trad. Fátima Murad, Por Artmed, 2008.312 p.]. 2. Sylvere Lotringer, entrevista com o autor. 3. Yves Mabin, entrevista com o autor. 4. Ibid.

5. Ibid. 6. Ibid. 7. Sylvêre LOTRINGER, UNo Chimeres, n. 37, 1999, p.14-!5.

comment",

8. Ibid., p. !5. 9. Sylvêre Lotringer, entrevista com Virginie Ll-

nhart. 10. Sylvêre .Lotringer, entrevista com o autor. 11. Sylvêre Lotringer, entrevista com Virginie Linhart. 12. Sylvêre LOTRINGER, "No comment", art. cit.,

p.!6. 13. Sylvêre Lotringer, entrevista com o autor. 14. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, Anti-CEdipus, Viking Press, New York, 1977. 15. Jean~)acques Lebel, "Gilles Deleuze: avez-vous des questions à poser?", France Culture pro~ grama de Jean Daive, 20 de abril de 2002. 16. jean-Jacques Lebel, entrevista com Virginie Linhart. 17. Ibid. 18. lbid. !9. Ibid. 20. Ibid. 2L Sylvere Lotringer, entrevista com Virginie Linhart. 22. Félix Guattari, "Notes sur mon voyage aux États-Unis", setembro-outubro de 1974, arquivos IMEC, 23. Ibid. 24. Constantin Boundas, entrevista com o autor. 25. Além deAnti-CEdipus,já mencionado, publicado em 1977, encontra-se então Masochism, G. Braziler, 1971, e Proust and Signs, G. Braziler, 1972. 26. Constantin Boundas, entrevista com o autor. 27. Só será publicado, traduzido por Boundas, Empirism and Subjectivity, Columbia, 1991;

Boundas editará também a tradução de Mark Lester e Charles Stivale de The Logic oj Sense, Columbia, 1990. 28. Gílles Deleuze, palavras reportadas por Constantin Boundas, entrevista com o autor. A coletânea ele textos é lançada nos Estados Unidos em 1993 (The Deleuze Reader, Constantin Boundas, ed. Columbia, 1993). 29. Constantin BOUNDAS. Dorothea OLKOWSKI (sob adir.), Gilles Deleuze and the Theatre of Phílosophy, Routledge, New York e ~ondr:s, 1994. Esse primeiro colóquio deleuzmno e a oportunidade de criar a rede de pesquisad~­ res interessados por sua obra. Há ali não ma1s que vinte pesquisadores, mas particularmente interessados em prosseguir e aprofundar suas trocas. É também a oportunidade ele lançar novas iniciativas, como a de Charles Stivale, que faz os contatos necessários para publicar um número da revista SubStance consagrado a Mil Platôs em meados dos anos de 1990. 30. O essencial do colóquio foi publicado na revista britânicaAngelaki em um número especial, vol. 5. agosto de 2000. 31. Paul Patton, entrevista com o autor. Paul Patton aconselhará numerosos estudantes que chegam a Paris nesse período a fazer o curs.o de Deleuze. É o começo de uma pequena colonia formada por australianos muito assíduos em Vincennes. Ao retornar à Austrália em 1981, Patton começa a traduzir para o inglês Rizoma, e dedica cínco anos a traduzir a tese de Deleuze, Diferertça e repetição, que será publicada em 1994. Paul Patton dirige também a edição de um Deleuze Criticai Reader, reunindo especialistas tanto franceses como anglo*saxões: Paul PATTON (sob adir.), Deleuze Criticai Reader, Blackwell Pub., 1996. 32. Gi!les DELEUZE, Nietzsche and Philosophy, 1983; Kant's Critica! Philosophy, Minnesota, 1984: Gilles DELEUZE, Félix GUATTAR!, Kajka, Minnesota, !986; Gilles DELEUZE, 11~e Mouvement-lmage, Minnesota, 1986; Dtalogues, Columbia, 1987; Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, A Thousand Plateaux, Minnesota, 1987; Gilles DELEUZE, Foucault, Minnesota, 1988; Gilles DELEUZE, Bergsonism, Zone Books, 1988: Gil!es DELEUZE, Spinoza, Practical Philosophy, City Lights Books, San Francisco, 1988; Gilles DELEUZE, Cinema 2, Minnesota, 1989.

390

Dosse

33. Gary GENOSKO (sob a di r.), Deleuze and Guattari, Routledge, New York e Londres, 3 tomos, 2001.

34. Eugene Holiand, entrevista com o autor. 35. Ver François DOSSE, Michel de Certeau. Le marcheur blessé, La Découverte, Paris, 2002. 36. Eugene HOLLAJ.\JD, Deleuze and Guattari's Anti-CEdipus, Routledge, 1999. 37. Andrew Cutrofello, entrevista com o autor. 38. Andrew CUTROFELLO, Continental Phi/osophy: A Contemporary Introduction, Routledge, 2005. 39. Dan Price, entrevista com o autor. 40. Dudley Andrew, entrevista com o autor. 41. Ibid. Os usos de Deleuze no quadro dos CinemaS Studies estão em pleno crescimento. Rudowick, professor em Harvard, autor de um excelente livro sobre sua teoria do cinema (ver capítulo "Deleuze vai ao cinema'') organizou em maio de 2005 um grande colóquio internacional sobre Deleuze em Harvard: "Afterimage of Gilles Deleuze's Film Philosophy", por ocasião do 10!1 aniversário de sua morte e do 20!2 aniversário da publicação de Cinema 2. Mencionamos aqui, entre muitos outros, o colega de Dudley Andrew em Yale, john MacKay, que ensina o cinema dos inícios, sobretudo Vertov, e que todos os anos consagra um seminário a Deleuze. 42. Julian Bourg, entrevista com o autor. 43. lbid. 44. )ulian BOURG, Forbidden to Forbidc May 68

and the Return to Ethics in Contemporary France, Me Gill-Queen's University Press, Montreal, 2007.

45. Eleanor Kaufman, entrevista com o autor. 46. Ibid.

47. Alain Beaulieu, entrevista com o autor. A tese de Beaulieu, publicada em 2004 ( Gilles Deleuze et la phénoménologie, Sils Maria, Mons, 2004), consiste em seguir mais de perto o combate quase amoroso de Deleuze com as teses fenomenológicas. Cada um dos conceitos-chave de Deleuze seria, segundo Beaulieu, uma maneira de se posicionar e de se demarcar da via fenomenológica para construir sua própria orientação. Ele espera assim esclarecer melhor a conceitualização deleuziana encontrando seu hum.,p- e as questões a que ela

Gilles Deleuze & Félix Guattari

responde, que revelam ser as mesmas que as da fenomenologia, mas oferecendo uma outra perspectiva. 48. Biodun IGINLA, "Oilles Deleuze - In Memoriam (1925-1995). A Personal Note", !ris, n. 23 primavera de 1997, p. 19 L ' 49. Gílles DELEUZE, The Foldc Leibniz and the Baroque, Minnesota, 1993; Essays Critica! and Clinicai, 1\.tlinnesota, 1997; Francis Bacon, Minnesota, 2004. Iginla, que se tornaria editor foi aluno de Deleuze em Paris-VIII a partir d~ 1975, antes de prosseguir seus estudos em literatura comparada na universidade do :tvlinnesota. O conceito de rizoma "me serviu muito em minha carreira de editor" (Biodun JGINLA, "Gilles Deleuze- In Memoriam (1925-1995), A Personal Note", art. cit., p. 193). Foi Tom Conley quem o aconselhou a ler O Anti-Édipo em 1973, antes mesmo que fizesse o curso de Deleuze: "Ele se tornou minha bíblia'' (ibid., p. 194). Segundo ele, a profecia de Foucault já se realizou: "Em certo sentido, este século já é deleuziano. Por exemplo, ele havia teorizado a distinção entre o atual e o virtual pelo menos duas décadas antes que a cibernética e os tecno-evangelistas começassem a falar da distinção entre a vida real (RC) e a realidade virtual (VR)" (ibid.,p.195). 50. Réda BENSMAIA (sob adir.), Lendemains, n. 53, 1989. 51. Réda Bensmala, entrevista com o autor. 52. Gilles DELEUZE, "Lettre à Réda Bensmai'a sur Spinoza", Pourparlers, Minuit, Paris, 1990, p. 223-225. 53. Gilles DELEUZE, Félix GUATTAHI, What is Philosophy?, Columbia, 1994.

54. Lawrence Kritzmann, entrevista com o autor. 55. !bid. 56. Charles ST1VALE, The Two-Fold Thought ojDeleuze and Guattari, Guilford Press, 1998. 57. Gilles DELEUZE, Félix GUATTAHI. A Thousand Plateaux, Minnesota, 1987.

58. Brian MASSUMI, User's Cuide to Capitalism

and Schizophrenia: Deviations Jrom Deleuze and Guattari, MIT Press, 1992; Parables for the Virtual· Movement, Af!ect, Sensation, Duke University Press, 2002; Brian MASSUMI (sob

a di r.), A Schock to Thought: Expressions ajter Deleuze and Guattari, Routledge, 2001. "O Deleuze da América; o terceiro excluído. Isto é,

a afirmação: nosso possível impossível. Ler Deleuze, entre a sinceridade e o cinismo, era se lançar em uma aprendizagem do pensamento como prática ele reabertura. Linha de fuga, pragmatismo insubmisso'' (Brian Masumi, declarações a Élie During, Le Magazine littéraire, fevereiro, 2002, p. 56). Um universitário australiano, Ian Buchanan tornou-se também um especialista prolífico da obra ele Deleuze, que comparou inicialmente à de Michel Certeau em torno do conceito de plano de imanência (Ian BUCHANAN,Michel de Certeau: Cultural Theorist, Sage, Londres, 2000). Professor da universidade da Tasmania, ele dirigiu uma publicação coletiva consagrada à obra de Deleuze (Ian BUCHA;.\!AN ejohn MARKS (sob a di r.), Deleuze and Litterature, Columbia University Press, 2001) e foi posteriormente um dos orquestradores do deleuzianismo no cenário britânico. Leciona agora em Cardiff e se tornou editor da Edinburghed. 59. Gilles DELEUZE, Félix GUA'l'TARI, Kajka, fvlinnesota, 1986. 60. Fredrick )AMESON, Fables oj Aggressionc Wyndham Lewis, University of California Press, 1979. 61. Ver Manuel DELANDA, Intensive Science and VirtuaL Philosophy, Continuum International Publishing Group, 2002; New Philosophy ojSo-

ciety: Assemblage Themy and Social Complexity, Continuum, 2006.

391

62. Michel HARDT, Gilles De!euze: An Apprenticeship in Philosophy, University of Minnesota Press, 1992. 63. Michel HARDT, Toni NEGRI, Empire, Harvard University Press, 2000; trad. fr., La Découverte, 2001; Multitudes: Guerre et démocratie à l'âge de L'Empire, La Découverte, 2004. 64. François CUSSET, French Themy, op. cit., p.

163. (Cusset, François: Filosofia Francesa: a influência de Fourcault, Derrida, Deleuze e Cia. Trad. Fátima Murad, Por Artmed, 2008,312 p.] 65. Elisabeth GROSZ, ''A Thousand Tissy Sexes: Feminism and Rhizomatics"; Rosi BRAJDOTTI. "Toward a New Nomaclism: Feminist Deleuzian Tracks, or Metaphysics and Metabolism", em Constantín BOUNDAS. Dorothea OLKOWSKl (sob adir.), Gil!es Deleuze and the Theater of Philosophy, Routledge. New York, 1994. 66. Donna Haraway, citada por François CUSSET, French Theory, op. cit., p. 270. [Cusset, François: Filosofia Francesa: a influência de Fourcault, Derrida, Deleuze e Cia. Trad. Fátima Murad, Por Artmed, 2008,312 p.] 67. Hakim BEY, The Temporary Autonomus Zone: Ontological Anarchy, Poetric l'errorism, Autonomedia, New York, 1991. 68. François CUSSE'I', French Jrwory, op. cit., p. 265. [Cusset, François: Filosofia Francesa: a influência de Foucault, Del'rida, Deleuze e Cia. Trad. Fá~ tíma Murad, Porto Alegre' Artmed, 2008,312 p.] 69. Ibid., p. 266.

& Félix Guattari

27 Sob todas as latitudes

A influência internacional de Deleuze-Guattari não se limita à América do Norte. Do continente asiático à América Latina, passando pela Europa, sua obra dá a volta ao mundo. Enquanto Guattari costuma acompanhá-la por seus deslocamentos, Deleuze, com raras

exceções, segue como viajante imóvel as pegadas de seus escritos no mundo, a partir de seu observatório de Paris-VIU, onde seu curso acolhe pesquisadores de todas as nacionalidades. No mesmo espaço linguístico anglo-saxão, a Inglaterra conta com alguns redutos deleuzianos, como a universidade de Warwick, onde lecionam Keith Ansell-Pearson e Nick Land, cujo dinamismo irradia em todo o mundo anglófono. As posições empiristas de Deleuze, afirmadas desde a publicação de seu Hum e, do mesmo modo que sua adesão e a de Guattari a uma orientação pragmática, só poderiam agradar a priori a alguns britânicos. Contudo, sua recepção no Reino Unido é tardia e menos profunda que nos campi americanos. Na realidade, os mais suscetíveis de se interessar por Deleuze e Guattari, em um país profundamente marcado pelo empirismo e pragmatismo, procuram antes no pensamento francês uma outra via, e aderem mais aos autores da French Theory que privilegiam as lógicas ~qtruturais. Entretanto,

graças às traduções em inglês finalmente disponíveis ao longo dos anos de 1980 e 1990, arecepção dessa obra avança sensivelmente: "Na Inglaterra, os 'deleuzianos' não procuram nem comentar seu trabalho, nem aplicá-lo. Tentam mais 'agenciar com' - no cinema, na escultura, 1 no peiformance act, no rock" • O filósofo Keith Ansell-Pearson, de Warwick, engajou-se claramente nas posições deleuzianas e inclusive qualifica Deleuze de "engenheiro da diferença''. Nick Land, personagem que se tornou mítico por ficar invisível desde que abandonou o ensino, também foi professor de filosofia na universidade de Warwick. Procurou conectar os dois volumes de Capitalismo e Esquizofrenia com os trabalhos de cibernética de Norbert Wiener, mas também com o esoterismo e a flcção dentíflca. Nos anos de 1990, ele organiza algumas manifestações culturais sobre temas como "Virtual Futures", "Afro-Futures", "Video-Technics", reunindo em um mesmo evento conferências e festas techno na venerável universidade de Warwick, pouco acostumada a esse gênero de rítmicas. Um dos campos de mais visibilidade da pesquisa em ciências sociais no Reino Unido é constituído pelos Cultural Studies, nos quais Deleuze e Guattari estão pouco presentes. Mas Lawrence Grossberg, um dos representantes mais

393

sarnento deles"'!. No campo das criações artísimportantes dessa corrente, começa a ler Fouticas, Deleuze tornou-se para alguns uma fonte cault no final dos anos de 1970, quando leciona de inspiração. É o caso, por exemplo, do escritor em Illinois: "Foi nesse contexto que descobri a britânico Ian Pindar, que se exercita em ficções tradução de O Anti-Édipo e formei um grupo de rizomáticas. É o caso também, no teatro, de leitura com alguns estudantes de graduação e Benjamin May, que pretende pôr em cena a nocom alguns colegas de outras universidades. ção de "corpo sem órgãos" na direção dos atores. Havia então Charles Stivale, que nessa época era doutorando em francês em Illinois. Passamos o ano todo lendo a obra de Deleuze e Guattari liUma terra de escolha: o Japão nha por linha'". A partir do início dos anos 1980, Grossberg se apropria dos conceitos de DeleuBem longe do mundo anglo-saxão, o Jaze-Guattari para argumentar ao mesmo tempo pão é uma terra de acolhimento muito mais contra a orientação desconstrucionista e confavorável ao deleuzo-guattarismo. A recusa de tra a hermenêutica, e para valorizar a dimenqualquer transcendência, o pensamento imasão propriamente política da cultura evitando nente de Deleuze e Guattari encontram como o perigo do relativismo: "Eu via em Deleuze \e que um eco no pensamento budista japon.ês. Foucault) como que um meio de ir além dos liJá se mencionou o caso de Hidenobu Suzuki, a mites ao mesmo tempo da guinada heideggeriaquem se deve o tesouro de arquivos que ~ão as na para uma espécie de misticismo em .s~us ~.~; gravações das aulas de Deleuze em Pans-Vlll timos escritos e da desconstrução dernd1ana . de 1979 a 198i0 e, ao seu lado, o futuro traduEm meados dos anos de 1980, Grossberg conhetor oficial de Deleuze no Japão, Kuniichi Uno, ce Meaghan Morris, uma especialista australiaque também segue o curso de Deleuze a parna dos Cultural Studies que estudou com Deleutir de meados dos anos de 1970. Depms de ze. Grossberg a convida para a universidade de ter defendido uma tese sobre Rimbaud, Uno !llinois, e juntos eles formam toda uma geração propõe a Deleuze orientar sua tese sobre Ande estudantes nos trabalhos dos Cultural Studies tonin Artaud, que defende em 1980. Na França, britânicos e em um bom domínio da obra de até 1983, Uno forma um grupo com Suzuki e Deleuze-Guattari. Assim, Grossberg insere Dealguns outros estudantes japoneses: "Está~a­ leuze e Guattari em sua concepção singular dos mos traduzindo Mil Platôs, e eu pergunter a Cultural Studies como projeto radical de contexDeleuze: por que Mil Platôs? Ele me respontualismo político e de análise do discurso: "Eu deu: 'Você conhece o platô de Millevaches'?''', me vejo mais como um pragmatista que utiliza e acrescentou: 'Para mim é isso, não sei para os conceitos deleuzianos quando isso parece Félix, mas para mim é issO" !i. Esses cinco esnecessário para dar conta do contexto"". tudantes são então dirigidos em seu trabalho Pertencente à jovem geração britânica, de tradução por um professor importante no Simon Tormey é de origem irlandesa e lecio- Japão, tradutor de Rizoma, Kouichi Toyosaki. 6 na política e teoria crítica na universidade. de A dificuldade de tradução de certos concertos Nottingham. onde se encontra um conh~c1d? exigiu algumas explicações obtídas junto aos especialista da obra de Deleuze e Guattan, Phrautores: "Tivemos a oportunidade de trabalhar lip Goodchild7 • Quando descobre essa obra, seu junto com Deleuze e Guattari para discutir olhar sobre o mundo muda radicalmente: "Para mim, a descoberta de Deleuze e Guattari foi "'N. de R. T.: Plateau Millevaches designa um planalto na como passar para um mundo a cores, enquanparte sudeste de Limousin, entre os vales de ~ienne e ,s N to até então tinha sido em preto e branco . o Vézere que atinge alturas um pouco abaixo de mll ~let,ros. entanto, algnma coisa predispõe Tormey a soSeu nome nada tem a ver com vacas (vaches) pms e de origem celta (batz) que significa nascentes de água, abunfrer um tal choque: "Eu não podia conceber a dantes na região. profundidade, a expressão, a vibração do pen-

-~----------

394

François Dosse

termos difíceis e enigmáticos e para esclarecer

alguns pontos" 11• Em 1983, quando Uno retoma ao Japão,

Gilles Deleuze & Félix Guattari

ta fazer um filme com o fotógrafo Keiichi Tahava,

que deveria se chamar "Luz negra''. Tahava deverá realizá-lo sozinho em razão do falecimento

colabora com uma revista de filosofia contemporânea, Gendai-Shiso, muito aberta ao estru-

prematuro de seu amigo. Guattari adorava pas-

turalismo e ao pensamento francês em geral, contribuindo assim para apresentar ao público japonês a obra de Deleuze e Guattari. É, aliás, em meados dos anos 1980 que eles começam a se tornar conhecidos no Japão graças à publicação em japonês de O Anti-Édipo. Uno, que se tornou professor no departamento de literatura da Universidade Rikkyo, de Tóquio, traduziu O Esgotado, Foucault e A Dobra, e participou da tradução de Mil Platôs. Toda vez que viaja a Paris, até 1982, Uno visita Deleuze em sua casa: "Quando terminei a tradução da Dobra, ele me disse que gostaria de ter trabalhado mais sobre a relação entre

ultramodernos coexistem com pequenas casas de dois andares em bairros que parecem cidades. Seu gosto pelo Japão levou-o a fundar uma associação França-japão para organizar e desenvolver intercâmbios culturais entre os dois países. Quando se trata de organizar manifestações culturais ou de convidar personalidades japonesas, Guattari é o conselheiro de Christian Descamps, responsável pelo Espaço Seminário do Centro Beaubourg entre 1984 e 1994. Masaaki Sugimura é o tradutor das obras de 17 Guattari no japão . Define-se como um "sessentaoitista'. É, de fato, em pleno maio de 1968 que ele vê pela primeira vez Guattari, quando da ocupação do Odéon. Quando Sugimura volta ao Japão em 1970, é proibido de entrar na França por dez anos, por ser considerado um esquerdista perigoso. Ele se debruça sobre as questões da política japonesa para reconstruir em seu país uma nova esquerda. É Uno que, investido na tradução de Mil Platôs, lhe pede um dia para traduzir A Revolução Molecular, que ninguém quer assumir, pois o livro é considerado excessivamente político: "Pus-me a trabalhar e encontrei nesse livro lembranças do que tinha 18 vivido nos anos de 1960" • Muito engajado nos movimentos contestatórios contra o imperador japonês, e pondo em questão até mesmo os fundamentos do sistema imperial, Sugimura encontra em Deleuze-Guattari os instrumentos para pensar na criação de grupos militantes de um novo tipo, e a ideia da revolução molecular lhe parece particularmente pertinente para agir no contexto da sociedade japonesa. No início dos anos de 1980, suas obras começam a ser traduzidas no Japão, e "uma moda desenvolve-se em torno deles. Muitos intelectuais 19 japoneses invocam seu pensamento" • O Japão é de fato, desde o pós-guerra, muito receptivo à atualidade intelectual francesa. Sugimura só conhece Guattari após sua tradução de A Revolução Molecular. Eles se encontram em Kyoto:

Leibniz e o Oriente"n. Principalmente Mil Platôs é lido e utilizado no Japão, em particular nos

meios da arquitetura e da sociologia: "O corpo sem órgãos diz muita coisa a nós japoneses"l
encontra os meios muito politizados, muito militantes de Okinawa e visita alguns hospitais psiquiátrícos. Por sua vez, Uno vai a La Borde para rever Guattari em 1984 e 1985 e grava as

entrevistas para a revista Gendaf-Shiso, que consagra um número especial a Deleuze-Guattari: "Na exposição universal de designem Nagoya, Guattari falou diante de uma imensa plateia de cerca de mil arquitetos. Ele faz uma conferência sobre a maneira como a arquitetura pode modificar o ambiente da cidade" 16

Em conexão com os meios de dançarinos, fotógrafos e arquitetos japoneses, Guattari brinda

a clínica de La Borde e seus pensionistas. Assim, convida o dançarino Turakàmi e inclusive proje-

sear em Tóquio, onde gigantescos arranha-céus

"Simpatizamos de imediato um com o outro. Falamos de maio de 1968 e encontrei em Félix um irmão mais velho [... ] Era um verdadeiro alento encontrar em Félix alguém que compartilhava minhas ideias. Vivemos então três anos 20 de relações muito íntimas até sua morte" • No âmago do fascínio de Félix Guattari pelo Japão está sobretudo a arquitetura. A convite de uma associação de arquitetos japoneses, ele participa em 1987 de uma equipe de projeto no âmbito do concurso de ideias para encontrar 21 um "Símbolo França-Japãd' • Guattari consagra um estudo a um dos mais célebres arquitetos japoneses, Shin Takamatsu, por ocasião de uma exposição em 1989". Ao apresentar seu relatório, Christian Girarcl afirma que "Guattari abre aos arquitetos uma possibilidade de revisão teórica de sua práticàm. Guattari considera a arquitetura japonesa uma via que se singulariza em relação ao modelo estilístico internacional. A história da arquitetura japonesa é marcada por alguns grandes criadores, como Kenzo Tangue e seu aluno Arata Isozaki, que, rompendo com o funcionalismo ambiente, se orientaram para o que Guattari qualifica de "processualismo"2'1. Takamatsu consegue construir edifícios 25 que exprimem o "devir-máquina" da subjetividade, como a clínica dentária de Kyoto construída sobre o modelo de uma locomotiva barroca em razão da proximidade imediata de uma ferrovia e de uma estação de trem, "o que tem como efeito transformar o ambiente, como que pelo toque de uma varinha mágica, em uma es26 pécie de paisagem maquínica vegetal" • A sensibilidade japonesa aos equilíbrios precários do ecossistema e às questões ecológicas permite uma recepção das teses de Guattari desenvolvidas no livro As Três Ecologias, sua obra mais vendida no Japão. O nome de Felix Guattari "serviu até para a promoção de um uísque e ele um saquê japonês'm.

O Brasil: terra de esperanças No início dos anos de 1970, Guattari conhece uma brasileira judia de origem polone-

395

sa, Suely Rolnik. Estudante de ciências sociais na Universidade de São Paulo, entre marxismo e contracultura, ela é presa em janeiro de 1970, em um momento em que a ditadura brasileira endurece. Quando chega a Paris em 1971, Rolnik faz o curso de Pierre Clastres, matricula-se em Vincennes em sociologia e assiste às aulas de Deleuze: "No inicio, meu francês era ainda muito pobre, mas o timbre de sua voz e sua atitude, essa linguagem que passa pelo corpo, pela carne das palavras, isso me tocou e me reanimou" 28 Suely Rolnik pede a Guattari para iniciar uma análise porque não está se sentindo bem. Guattari não vacila: "Ele adorou isso e aceitou de imediato fazer análise comigo gratuitamente me dizendo: 'A gente começa amanhã às sete horas da manhã"m. Após um curto período de análise clássica no divã, Guattari decide fazer uma intervenção de tipo esquizoanálise, modificando o modo de vida de Suely Rolnik. Ele a convida para organizar as festividades de Natal de 1972 cujo tema era: ''A revolução chinesa'. Depois lhe pede naturalmente para organizar o carnaval em março: "Isso me ocupou inteiramente. Criei várias oficinas com pessoas que acabaram se instalando em La Borde. Havia atores que atuavam 30 no Living Theater, Julian Beck" • Ao mesmo tempo, Suely Rolnik prossegue seu curso universitário em ciências sociais em Vincennes, depois em psicologia em Paris-VI!: "Um dia de 1973, estou na casa de Félix, que me diz logo de manhã: 'Quero que você flque aqui porque Deleuze vem almoçar e quero que você o conheça. Vocês precisam um do outro"'>H Empregada nos serviços psiquiátricos na região parisiense, Suely Rolnik decide, depois de nove anos de exflio, voltar ao Brasil, onde se dedica ao seu doutorado em psicologia. Envolvida em psicoclínica em São Paulo, encontrou de fato em Paris, com Deleuze e Guattari, exatamente o que procurava: a micropolítica, as relações entre a psicanálise, a política e a cultura no contexto pós-1968. Desde que põe os pés de novo no Brasil, ela se empenha em pôr em circulação essas teses no mundo intelectual brasileiro. A apro-

Guattari

397

396

priação dessas teses é quase instantânea nos meios psicoclínicos e desempenha um papel essencial das lutas travadas no campo da saúde mental, antes mesmo da queda da ditadura. Suely Rolnik coordena ao mesmo tempo

um seminário com mais de 80 pessoas, um lugar de formação fortemente marcado pelo deleuzo-guattarismo. Teria sido fácil constituir uma verdadeira escola, mas Suely Rolnik vê com razão em tal ideia o risco de trair os objetivos perseguidos por Deleuze e Guattari. Ela prefere a forma da rede que estende suas ramificações por todos os países latino-americanos. O Anti-Édipo logo é adotado pelos brasileiros e tradu:tido relativamente cedo, em 1976. Em 1981. Suely Rolnik publica um livro de Guattari, com o título Pulsações Polfticas do Desejo, que retoma boa parte de A 2 Revolução Moleculai • Guattari vai ao Brasil sete vezes e considera inclusive a possibilidade de se instalar no país. Em !982, Suely Rolnik organiza todo um calendáfió de entrevistas com os inúmeros movimentos micropolíticos da sociedade brasileira de vários estados, como também com os meios psicanalíticos e psiquiátricos: "Este se tornou o único país em que as teses 33 de esquizoanálise são bastante fortes" • Ela grava todas essas intervenções que resultam em quase três mil páginas de transcrição sobre as quais se pôs a trabalhar e que deram lugar a uma obra comum em !986, reeditada . vezes . se1s Guattari retorna desta vez ao Brasil onde renascem as esperanças de mudança política. Suely Rolnik está muito envolvida na época no apoio à candidatura de Luis Inácio da Silva, o Lula, líder do novo Partido dos Trabalhadores, ao governo de São Paulo. Ela organiza um encontro entre os dois. Guattari já se encontrara, em uma viagem anterior, em 1979, com o representante sindical da indústria petrolífera, Jacó Bittar, e alguns militantes operários. Na época, discutia-se a criação de um novo partido. Em !982, isso está consumado: Lula cristaliza as esperanças do Partido dos Trabalhadores. Guattari lhe~Etxpressa sua esperança

"'

de que esse partido consiga inventar novos instrumentos de luta coletiva e mesmo uma nova lógica micropolítica. De volta a Paris, Guattari preserva suas relações com o Brasil, graças a Suely Rolnik. Ela o mantém regularmente a par do progresso da rede nos meios psiquiátricos e reitera em sua correspondência a adesão plena e total às posições teóricas dele. De fato, o Brasil parece ser o único país em que o enxerto da esquizoanálise vingou de verdade. Ela fOi inclusive "assimilada" por certos meios acadêmicos e figura nos cursos de doutorado em psicologia clínica. Vários centros de pesquisa consagram seus trabalhos a ela. O que essa apropriação pode significar? Entre as exphcações, pode-se mencionar, em uma perspectiva culturalista, o fato de que a sociedade miscigenada, fundamentalmente híbrida e mestiça como é a sociedade brasileira, talvez se preste mais do que as outras a essa labilidade da construção subjetiva, aos seus devires múltiplos e a uma subjetividade fundamentalmente heterogenética. Guattari não está fascinado pelo Brasil por exotismo, mas, ao contrário, porque vê brotarem novas experiências de subjetivação que poderiam ser respostas às questões políticas que se colocam no velho continente: "Se vocês continuarem no ritmo em que estão engajados nessa espécie da transformação do Brasil, acabarão por nos retribuir com revoluções moleculares";~ 5 . Apenas alguns meses antes de sua morte, em maio de 1992, Guattari se encontra de novo e pela última vez no Brasil, em visita ao Rio de Janeiro, por ocasião do lançamento da edição brasileira de Caosmose e de O que é a filosofia?". Nessa oportunidade, é organizada uma mesa-redonda, em 21 de maio de 1992, pela Editora 34 e pelo Colégio Internacional de Estudos Filosóficos Transdisciplinares, reunindo pesquisadores franceses e bras.ileiros. Esse centro de pesquisa, que convidou Guattari várias vezes, foi criado por um amigo de Deleuze e Guattari, conhecedor e especialista de seu pensamento, o fllósofo Éric Alliez.

As fronteiras mexicanas A primeira vez que Éric Alliez vai ao Brasil é em companhia de Guattari, em uma viaEm comparação, o México não é verda~ gem de trabalho organizada por Suely Rolnik. cleiramente uma terra de escolha do deleuAlliez sente o mesmo fascínio que Guattari. zo-guattarismo, apesar de sua receptividade à No momento em que defende sua tese orienFrench Theory graças a Arnaldo Orfila, diretor tada por Deleuze, em !987, é convidado por da Fondo de Cultura Economica, que depois uma instituição brasileira, o Centro Brasileiro criou sua própria editora, a Siglo XXI. Esse de Pesquisas Físicas (CBPF), â apresentar seus movimento editorial favoreceu mais Braudel, trabalhos sobre as lógicas temporais tiradas de da escola dos Annales, Foucault, Derrida e Alsua tese37 , Os brasileiros estão muito interessathusser do que Deleuze ou Guattari. Apesar dos na experiência francesa do Colégio Interde tudo, estabeleceu-se uma conexão com os nacional de Filosofia onde Alliez coordena um meios psiquiátricos mexicanos, graças aos seminário com Isabelle Stenghers. Pensando deslocamentos de Guattari. Desde 1975, o lina possibilidade de criar uma instituição equivro de Guattari, Psicanálise e Transversalidade, valente no Brasil, Alliez desempenha um papel encontra~se disponível em espanhol graças à articulador nas conexões que se estabelecem. sua publicação pela Siglo XXI (argentina). Sua O eco espetacular da esquizoanálise nos meios influência não foi decisiva nem na Argentina psicanalíticos brasileiros tem a ver também nem no México. Entretanto, um pequeno grucom a fraca implantação lacaniana no Brasil, po de psiquiatras e psicanalistas mexicanos diferentemente da Argentina. decide discutir suas teses para aprofundar sua Após a morte de Deleuze, um momento alto crítica à instituição psiquiátrica já alimentada da recepção das teses do deleuzo-guattarismo é pelas posições da antipsiquiatria de Cooper e organizado ainda por Éric Alliez com os enconBasaglia. O anti psiquiatra tinha ido ao México tros internacionais no Rio e em São Paulo de lO em 1973, em Cuernavaca, convidado por Ivan a !4 de junho de 1996, graças à instituição que lllich para o CIDOC". Uma primeira reunião ele mesmo implantou, o Colégio Internacional 38 desses contestadores da psiquiatria ocorre em de Estudos Filosóficos Transdisciplinares • 1976 em Cuernavaca, com Marie Langer, ausDois filósofos, entre outros, ocupam um papel tríaca que ainda jovem, em !936, fugiu do naimportante na filiação dos estudos deleuzianos: zismo para a Espanha e depois para a ArgenBento Prado, tradutor de O que é a filosofia?, e 12 ·w tina, onde fundou a APA , e em seguida para que defendeu uma tese sobre Bergson· , e um o México. Há também Thomas Sachs, Franco filósofo próximo a Foucault, Roberto Machado, Basaglia e Igor Caruso. Uma nova reunião que escreveu uma obra sobre a gênese da filosoocorre em 1978, ainda em Cuernavaca, orgafia deleuziana'10• No Rio de Janeiro, Norman Manizada por Sylvia Marcos, com a participação darasz, professor de filosofia de origem húngara de Guattari em uma mesa-redonda sobre ''Psie de nacionalidade canadense, que passou dez quiatria e antipsiquiatrià'. anos em Paris, também se situa em uma ftliação Aproveitando a presença de Guattari, a deleuziana. Em seu curso, ensina certos aspecRede Alternativa à Psiquiatria do México, o tos do pensamento deleuziano com seu colega conselho de estudantes e a direção da FaculJorge Vasconcellos, entre outros, em torno de dade de Psicologia da Universidade Autônoma sua leitura de Nietzsche. Vasconcellos acredita de Nuevo León organizam um congresso sobre que é se fazendo "pop'' que a filosofia ultrapas"Saúde mental, loucura e sociedade'', coordenasará com sua inf1uência o cenáculo dos meios do por dois psicanalistas mexicanos: Rodolfo intelectuais estritos e poderá assim atingir os A!varez de] Castillo e Fernando Gonzáles. Esse mais desfavorecidos. É o que ele tenta com sua congresso, realizado em Monterrey, é um grancoleção "Filosofia e Arte" da editora Ciência de sucesso. Diante de uma piateia de mil estuModerna.

Félix Guattari

399

398

dantes, Guattari fala da experiência de La Bor43 de e das práticas da psicoterapia institucional • Fernando Gonzáles, assim como os outros psicanalistas presentes ao encontro, leram e apreciaram O Anti-Édipo, que faz uma crítica acerba à grade em geral excessivamente codificada de interpretação psicanalítica: "Isso me deu possibilidade de tomar distância em 14 relação à máquina psicanalíticà'' • O conceito de transversalidade é também, na visão de Fernando Gonzáles, uma contribuição certa aos seus próprios trabalhos, que cruzam a psica-

nálise, a história, a filosofia e a sociologia: "Foi graças a Guattari que em 1978 comecei a trabalhar no hospital no âmbito da intervenção 45 institucional" • Quando volta ao México em junho de I 983, o deleuzo-guattarismo ainda não se enxertou verdadeiramente: "O lacanismo estava bem implantado. Era o início de sua importação e de uma admiração total por 46 Lacan" . Das posições de Guattari restavam apenas alguns~ enclaves, como um mestrado de psicologia social dos grupos e instituições criado por Fernando Gonzáles na universidade autônoma, seção Xo Chi Milko {UAMX), e que acolhe cerca de 20 estudantes por ano. A esse pequeno enclave, é preciso acrescentar alguns traços de sua influência na Associação Mexi~ cana de Psicoterapia Psicanalítica de Grupo (AMPPG) fundada em !966 e onde um dos fundadores, Jorge Margolis, continua ativo.

Um chileno escapa de Pinochet Um encontro fecundo ocorreu nos anos 1970 entre Guattari e um intelectual chileno que fugiu da ditadura de Pinochet. Miguel Norambuena é estudante na Faculdade de Belas Artes em Santiago e militante da extrema esquerda. Preso e torturado pelos militares quando do golpe de Estado de !973, consegue fugir para a Suíça. Ele tem 23 anos e já leu e apreciou as teses anti psiquiátricas de Cooper, que conhece em Paris junto com sua companheira Marina Zecca . (l~m 1976, e com quem começa a trabalhar. Um dia, enquanto Cooper

e seu grupo estão em plena sessão de trabalho. Guattarilhe telefona para convencê-lo a participar de uma reunião na Mutualité contra a repressão na Itália. Todo o grupo vai ao encontro, e à noite, no restaurante, o acaso coloca Miguel Norambuena diante de Guattari, que fala do clima repressivo e que de súbito o interpela: "Ele se dirige a mim: 'Quem é você'!', e eu lhe conto minha história. Ele me diz: 'Escute sua história me interessa. A próxima vez qu~ for ver David, venha me ver"' 47 • Muito mal adaptado nesse momento, ainda não recuperado da prisão, Miguel Norambuena não se faz de rogado e vai regularmente à Rue de Condé, até se ver no divã de Guattari. Nos primeiros momentos da cura, Norambuena não para de se lamentar, de chorar os mortos chilenos, de falar de sua culpa de estar ali, ao abrigo. Guattari procede com ele como se costume, sendo duro: "Ele me diz: 'Evidentemente você é um desenraizado e val continuar chora~ mingando sobre suas raízes. Se você continuar lá, não vou poder ajudá-lo. Ao contrário, se encarar isso como uma erva daninha, um rizoma, posso eventualmente fazer alguma coisa porque isso volta a brotar, de outra maneira, que não em você'. Eu não tinha entendido nada, e voltando para casa fui procurar no dicionário o que queria dizer 'rizomà" 48 • Na sessão seguinte, Norambuena compreendeu a mensagem e ini~ ciou um trabalho esquizoanalítico com Guattari que durará de 1979 a !986. As relações entre esse militante chileno e Guattari atestam a recusa deste último de toda forma de terrorismo, ou mesmo de estratégia de confronto militar. Por quatro vezes, Norambuena retorna clandestinamente ao Chile para dar apoio aos seus companheiros, e Guattari sempre tenta em vão dissuadi-lo: "Para minha grande surpresa, mesmo para o Chile, ele não era a favor da luta armada. Era fundamentalmente hostil a isso e passava horas com camaradas chilenos que eu levava a ele e que esperavam sua caução. Ao contrário, ele os convencia a deixar a luta armada" 49• Miguel Norambuena vai ao Chile com Guattari em maio de !991. quando a situação

como "anos de inverno" na França, trata-se na política está mais calma, e pouco depois publiItália de uma verdadeira glaciação, e o pensacam uma obra em espanhol. com introdução mento de Deleuze-Guattari, que foi identifide Norambuena, composta de uma compilação cado com uma radicalidade crítica, teve sua de conferências feitas por Guattari no país5°. As contrapartida. A editora Einaudi, que adquiriteses de esquizoanálise tiveram incontestavelra os direitos de Mil Platôs e cuja tradução esmente um efeito notório: "Se Deleuze e Guattava pronta desde 1981, um ano somente após tari fossem ao Chile hoje, não iam acreditar no o lançamento na França, acabou por desistir 51 que viam" , afirma tvliguel Nora:mbuena, quande publicar a obra. do volta ali no final de 2005. Convidado por três O livro aparece em !987 sob uma indiferenuniversidades para falar da questão da esquiça generalizada e é cuidadosamente ignorado zoanálise, ele encontra todas as vezes as salas pela crítica universitária quando do lançaabarrotadas com !50 estudantes. Norambuemento. Até os anos de !990, Deleuze e Guatna, de sua parte, continua vivendo na Suíça, em tari caem no mais completo esquecimento. Genebra, onde coordena desde o final de !985 Depois, a situação mudou, e paulatinamente uma instituição psiquiátrica muito original, Le os italianos redescobrem a obra. A leitura heiRacard, onde vivem em comunidade esquizodeggeriana de Nietzsche prevaleceu por longo frênicos, drogados e outros marginais em uma tempo nos meios acadêmicos, mas se toma microestrutura de nove leitos, cuja organizaconhecimento na universidade de uma aborção e práticas de animação psicossociais são dagem bem diferente com Deleuze. Houve muito inspiradas em La Borde. apropriações aqui e ali, e algumas iniciativas foram tomadas, como a de Tiziana Villani, que criou uma revista em Milão, Millepiani, cuja Uma terra de escolha: a Itália orientação evoca explicitamente Deleuze e Guattari. Na Europa. a Itália é sem dúvida o lugar Tiziana Villani é originalmente geógrafa onde Deleuze e Guattari foram mais lidos e de formação, mas se orienta para a filosofia, apreciados. Todos se recordam do envolvicom um interesse particular pelas questões mento de Guattari nas lutas alternativas traurbanísticas. Preocupada com a transversavadas na Itália no fmal dos anos de !970. Guatlidade, defende uma tese de doutorado sob a tari é muito popular ali e visto então como o orientação de Thierry Paquot, diretor da revisCohn-Bendit italiano. Suas ligações com Franta Urbanisme, e reúne para sua própria revista co Berardi, vulgo Bifo, com Toni Negri, Oreste filósofos, sociólogos, urbanistas, críticos literáScalzone e muitos outros contestadores italia51 52 ' • Em torno da revista, é criada arte rios e de nos são conhecidas • As teses críticas da insuma pequena coleção de livros: "Heterotopia". tituição psiquiátrica tiveram na Itália um eco O público mais interessado pela obras de Detanto maior na medida em que a experiência leuze e Guattari é formado por artistas, arquiantipsiquiátrica de Franco Basaglia em Trieste tetos e urbanistas. Em outras cidades italianas, cristalizou muitas esperanças culturais e políhá outros centros de difusão desse pensamenticas. Nessas condições, O Anti-Édipo, que foi to, como a revista Aut-Aut, em Trieste, dirigida traduzido rapidamente, já em 1975, por uma por um filósofo hermeneuta, amigo de Vattigrande editora italiana, a Einaudi, teve grande mo, Pier Aldo Rovatti. repercussão e acompanhou a onda de radicaNa recepção atual na Itália. ocorre um deslização dos movimentos de autonomia italia53 colamento entre Guattari, recebido mais por na em meados dos anos de 1970 . O sucesso suas posições políticas. e Deleuze. como filófoi tão espetacular quanto a reação severa, ao mas um pouco atrofiado. sofo mais clássico, ritmo do refluxo dos movimentos alternativos É contra essa dicotomia que Luca Cremonesi, dos anos 1980. Se Guattari fala desses anos

400

Dosse

doutorando da Universidade de Verona, ressalta a dimensão política do pensamento de Deleuze. A verdade é que nas universidades italianas se faz um uso clássico dos textos de Deleuze, de seus primeiros trabalhos, de suas

monograflas, a maioria delas traduzidas para o italiano, que servem à iniciação filosófica. Deleuze se beneficia também de rela-

ções que se estabeleceram em seu curso de

I

i!'

Paris-V!!!. É o caso. para a Itália, graças à sua relação com seu aluno Giorgio Passerone, que frequentou suas aulas em Vincennes a partir de 1977. Em junho de 1980, este último solicita um encontro com ele sem ter escolhido ainda o tema de sua tese: "Ele me dá um capítulo de Mil Platôs. o capítulo sobre a novela. me dizendo: 'Você pode traduzi-lo e procurar as editoras'. Parto para a Itália e faço um tour 5 pelas editoras" s. No outono, Giorgio Passerone já tem um tema de pesquisa, que é o estilo, e se encontra regularmente com Deleuze. Passero~ ne se inscreve então no doutorado na universidade de Pafis-VIll e defende sua tese em 1987. No mesmo ano, Mil Platôs é finalmente lançado na Itália, traduzido por Giorgio Passerone, a quem é dedicado o prefacio inédito de Deleuze e Guattari56• Alguns pesquisadores da jovem geração italiana se interessam muito ativamente pelo pensamento de Deleuze-Guattari. É o caso de Giuseppe Bianco, que foi aluno de Pier Aldo Rovatti em Trieste: "Foi realizado um seminário sobre Lógica do Sentido em 1996, e isso me fascinou" 57• Buscando um caminho de entrada na obra de Deleuze, Bianco não o encontra imediatamente, até se dar conta de que o conceito-chave, a essência mesma dessa filosofia, está na noção de "multiplicidade". Em seguida, estabelece a ligação com Bergson e inicia um trabalho mais amplo sobre a recepção do bergsonismo dos anos de 1920 até o flnal dos anos de 1960, para trazer à luz não apenas a filiação bergsoniana de Deleuze, mas também uma via singular, que não é nem f8nornenológica nem estruturalista. A filósofa italiana Manola Antonioli também fez muito pela obra de Deleuze-Guattari, publicando na Franità várias obras sobre o

Gilles Deleuze & Félix Guattari

58

pensamento deles • Em um primeiro momento, O Anti-l!dipo e Mil Platôs eram bastante obscuros para ela, muito difíceis de compreender. Contudo, a partir de 1995 e 1996, ela começa a acompanhar regularmente os seminários do Boulevar Saint-Germain, nn 125, coordenados por Jean-Claude Polack, que prossegue os seminários de Guattari. Ela percebe o caráter muito atual e premonitório do que no início lhe pareciam livros um pouco delirantes e puramente ficcionais: "Percebo sobretudo que, depois de 11 de setembro de 2001, Mil Platôs se torna mais legível, pois tala de coisas que na época ainda não estavam presentes e que pareciam ter a ver com a ficção científica"59•

Notas !. Hugh TOMLINSON, Robert GALETA. LeMagazine littéraire, setembro de 1988, p. 60.

2. Keith ANSELL-PEARSON. Germinai Lije.- The Dijference and Repetition of Deleuze, Rout-

ledge, 1999; Keth ANSELL-PEARSON (sob a dir.), Deleuze and Philosophy The Dijference Engineer, Routledge, Londres/New York, 1997.

3. Lawrence Grossberg, entrevista com o autor. 4. Ibid. 5. Lawrence Grossberg, entrevista com o autor. 6. Simon TORMEY, Anti~Capitalism: A Beginner's Cuide, Oneworld, Ox10rd and New York, 2004. 7. Philip GOODCHILD, Deleuze and Guattari. An Introduction of the Politics of Desire, Sage Publications, Londres, Thousand Oaks, New Dehli, 1976; Gilles Deleuze and the QUestion of Philosophy, Associated University Press, 1996. 8. Simon Tormey, entrevista com o autor. 9. Jbid. 10. Ver o capítulo''Deleuze em Víncennes". 11. Hidenobu Suzuki, entrevista com o autor. 12. Kuniichi Uno, entrevista com o autor. 13. Ibid. 14. Ibid. 15. Hidenobu Suzuki, entrevista com o autor. 16. Kuniichi Uno, entrevista com o autor. 17. Ele traduziu A revolução moLecular em 1988, depois As três ecologias, Psicanálise e trans'.iersalidade e Os anos de inverno.

18. Masaakl Sugimura, entrevista com Virginie Li-

401

40. Roberto MACHADO, Deleuze e a filosofia, Graal, Rio de Janeiro. 1990.

nhart.

19. lbid. 20. Ibid. 21. "Os para-ventos", projeto para o concurso

41. Centro de Documentação de Cuernavaca 42. Associação Psicanalítica Argentina. 43. Ele voltará ao México depois desse convite de

"Símbolo França-japão" organizado pelo INA Equipe: F. du Castel, Ch. Girard. F. Guattari, J. Kalman, H. Suzuki. 22. Félix GUATTARI, "Les machines architecturales de Shin Takamatsu'', em Tranijiguration, catálogo da exposição ''Europalia 89,Japan in Belgium", p. 99-107; reproduzido em Chim6res, inverno de 1994, p. 127-141.

1978 e fará uma conferência na UNM1 em outubro de 1981: Félix Guattari, "Les temps machiniques et la question de l'inconscient", conferência pronunciada no México em outubro de 1981; reproduzida em Les Années d'hiver,

23. Christian GIRARD, Chim6res, inverno de 1994, p. 128. 24. FéliX GUATTARl. ibid.. p. 130. 25. Ibid.. p. 131. 26. Jbid.. p. 134. 27. Masaaki Sugimura, entrevista com Virginie Li28. 29. 30. 31. 32.

nhart. Suely Rolnik, entrevista com o autor.

Ibid. !bid. Ibid. Félix GUATTARJ, Pulsações políticas do desejo,

Sulina, 1981. 33. Suely Rolnik, entrevista com o autor. 34. Félix GUATTARI, Suely ROLNIK. Micropolitica. Cartografias do desejo, Vozes, Petrópolis, 1986;

em francês, Félix GUATTARI, Suely ROLNlK, Micropolitiques, Les empêcheus de penser en ronde, Paris, 2007.

35. Félix GUATTARI, Suely ROLNJK.Micropolítica, op. cit., 4a ed., 1996, p. 311 (debate realizado em

1982). 36. Félix GUATTARI, Caosmose, um novo paradigma estético, Editora 34, Rio de Janeiro, 1992; O que é afilosofia?, Editora 34, Rio de Janeiro, 1992. 37. Éric ALLIEZ, Les Temps capitaux, Le Cerf, Paris, 1999.

38. As contribuições desse encontro foram publícadas em Éric ALLIEZ (sob a di r.), Gi!les Deleuze. Une vie philosophique, op. cit., 1998. 39. Bento PRADO, Presença e campo transcenden-

tal. Consciência e negatividade na filosofia de Bergson, EDUSP, 1989.

Barrault, Paris. 1986, p. 125-137. 44. Fernando Gonzáles, entrevista com o autor.

Ver Fernando Gonzáles, La guerra de las me·

mórias. Psicoanáiisis, historia y inteJpretación, Universidad Jberoamericana, México, 1998, em particular o capítulo 2 sobre Freud e a máquina de interpretação psicanalítica.

45. 46. 47. 48. 49.

Ibid. Fernando Gonzáles, entrevista com o autor. 1tfiguel Norambuena, entrevista com o autor.

Ibid. Ibid.

50. Félix GUATTARI, Cartografia de! deseo, intro-

dução de Miguel NORAl\1BUENA. La Marca, Buenos Aires, 1995. 51. 1tfiguel Norambuena, entrevista com o autor.

52. Ver o capítulo "A revolução molecular". 53. "O movimento de 77 como seus emarginati, seus índios metropolitanos, seus jornais (Attraverso), suas rádios livres (Radio Alice), encontra em O Anti-Édipo um verdadeiro livro-instrumento" (Giorgio Passerone, LeMagazine littéraire, setembro de 1988, p. 61). 54. Millepiani: diretora Tiziana Villani. Comitê de redação: Roberto Callegari, Marco Dotti, Ubaldo Fadini, Francesco Galluzi. 55. Giorgio Passerone, entrevista com o autor. 56. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, "Prefácio à edição italiana de Mil Platós", reproduzido em

Gilles DELEUZE, RF, p. 288-290. 57. Giuseppe Bianco, entrevista com o autor. 58. Manola Al"\ITONIOLI, Deleuze et La histoire de la philosophie, Kimé, Paris, 1999; Géophilosophie de Deleuze et Guattari, I:Harmattan, Paris,

2003. 59. Manola Antonioli, entrevista com o autor.

Gilles Deleuze & Félix Guattari

28 Dois desaparecimentos

Sexta-feira, 28 de agosto de 1992. Uma reu-

nião ordinária se realiza na clínica de La Borde. Jean Oury, o diretor do lugar, está ausente, mas seu segundô: Guattari, está lá, como de hábito, à escuta dos pacientes e das inúmeras reclamações a propósito da divisão de tarefas. Discute-se, entre outras coisas, a defasagem entre as atividades previstas e realizadas. Guattari sugere e consegue que se forme uma equipe de voluntários para se ocupar desse problema. Um paciente toma a palavra: "Da minha parte, gostaria que a gente se interessasse pelas ervas. As tílias me divertem. Li um livro a respeito. A gente poderia colher. Seria preciso que o clube nos desse duzentos francos para poder 1

destilá-las" • Guattari responde muito sério que isso lhe parece plenamente viável, "depois se levanta e sai da sala, um momento que me parece longo. Sem dúvida, foi então que um médico o examinou. Félix sempre foi doente. Ele tem o hábito, a lassidão, a dureza. Ele volta à reunião, entra sorrateiramente como sabe fazer"2. Outro paciente toma a palavra para questionar uma falha de organização na circulação de carros e de pedestres dentro do parque da clínica e exige mais regulação nos fluxos. Isso provoca uma gargalhada geral. É difícil pensar em estabelecer zona'Sr de pedestres nesse meio

rupestre, mas ''Félix olha atentamente para o rapaz: 'Sim, os carros vão muito rápido em La Borde. Organizar uma zona de pedestres, ele tem razão', diz calmamente. O rapaz se acalma. A reunião termina. Na saída, reencontro a alegria de seu olhar"3 É a última reunião de Guattari. À noite, ele parece ter recuperado a forma. Sua filha Emmanuelle lembra-se da última refeição à noite: "Uma energia! Há muito tempo ele não falava tanto. Estava radiante, cheio de vivacidade. Ele me disse 'boa noite, divirta-se', com um sorriso extraordinário. Não o via sorrir 4 assim fazia muito ternpo" • Ele volta ao seu pequeno escritório e, durante a noite, morre de uma crise cardíaca, aos 62 anos de idade. Desde 1990, havia tido vários infartos, suas coronárias estavam bloqueadas, mas, em razão de seu estado depressivo, não se cuidou. Ao sentir um mal-estar nessa última reunião, poderia e deveria ser hospitalizado, mas, preferindo ficar até o fim, voltou como se nada tivesse acontecido. Seus filhos estão lá, em La Borde. É Bruno, preocupado ao constatar que o pai não se levantou, embora tenha o costume de trabalhar cedo, que descobre seu corpo inanimado na manhã seguinte em seu escritório. Sobre a mesa de cabeceira estão Les Chiens

d'Éros, de D. H. Lawrence, e Ulysses, de ]oyce, em inglês. Consternação em La Borde: "Os loucos choraram quando O. [Oury] os informou da morte de Félix, no dia seguinte, no grande salão. 'Obrigado por nos ter dito dessa maneira', responderam. Em troca, ainda que alguns ficassem vagando nessa noite, sem conseguir dormir, tiveram a delicadeza, a ternura de não fazer barulho. A noite foi calma''. A morte apanha Guattari no momento em que ele emergia da depressão, reencontrando seu legendário entusiasmo após um longo estado catatônico. Um mês antes dessa noite fatal, ele havia conhecido Tatiana Kecojevic, uma atriz sérvia de 26 anos que fugira da guerra de 1992. Ela vive em Londres e vai a Paris para uma reunião organizada por seu amigo publicitário Sacha Goldman: "Foi nessa noite que conheci Félix. Vinda de Belgrado, eu me sentia mal, todo mundo começando a me atacar sobre a forma de agir dos sérvios. Félix foi o único que sentiu que eu estava perturbada com todas essas questões e me disse: 'Mas pouco nos importa tudo isso! Você viu Paris?' E me levou para ver Paris nessa mesma noi~ te"6. Eles trocam endereços e telefOnes, voltam a se ver e iniciam uma relação amorosa que faz Guattari esquecer seus dissabores com]oséphine. Tatiana Kecojevic "Hca loucamente apaixonada por Félix, e ele me liga: 'Meu querido, estou amando!'. Ele reencontrava todo seu frescor, a infância de sua vida, sua juventude, seu amor pela vida''7 • Guattari liga então várias vezes por dia ao seu amigo Fromanger para compartilhar com ele essa nova paixão: "Ele me diz: 'Eu lhe telefono à noite, espero que isso não acabe, é fantástico!'. Ele estava decidido a deixar tudo paraJoséphine, o apartamento, os carros, e tinha encontrado um quarto para vi~ ver com ela''8. Guattari mobiliza toda sua rede de amigos a fim de conseguir um papel de atriz para sua nova amiga. Entre muitos outros, conta com seu novo amigo, o ator e escritor Jacky Berroyer, com quem tem então alguns projetos. Ele leva Tatiana a todos os lugares carregados de sua própria história, até a Rue de l'A.igle, na

403

Garenne-Colombes, diante da casa de sua infância: "Ele me disse: 'Tatiana, você é jovem e bela. Tem toda viela pela frente. Você deveria ter um monte de amantes, mas não me deixe!', e isso me comoveu. Eu achava magnífica essa generosidade em relação a mim. Tive vontade 9 de lhe dar tudo o que eu podia lhe dar" Tatiana Kecojevic vai para Londres organizar a mudança para viver com Félix em Paris e deve encontrá-lo no fim de semana. Félix, por sua vez, vai para La Borde: "Lembro-me de ter tomado o navio para a Inglaterra com uma grande alegria, ele me dava muita força. Chego em casa e fico sabendo de sua morte por um tele~ fonema" 10• Tatiana Kecojevic retorna imediatamente para a França para o enterro, onde se comprime a multidão de amigos de Félix. Quanto a Joséphine, está em férias no sul da França com seu companheiro Jean Rolin, na casa de um amigo dele: ''Ã. véspera de nossa partida de Maussane, como quase todos os dias durante essa semana,]oséphine se deteve longamente e alegremente ao telefone com F. [Guattari]. À noite, quando voltamos do restaurante, um bilhetinho na nossa chave indicava que F. tinha ligado de novo·ll. No dia seguinte, o amigo de Jean Rolin o chama à parte para lhe anunciar a morte de Guattari que acaba de ficar sabendo pelo rádio. Por sua vez, ele deve contar para Joséphine. Jean e joséphine atravessam o centro da França nessa mesma noite para chegar na manhã seguinte à funerária de Blois e depois à clínica de La Borde.

O amigo chorado No enterro, seu amigo Gérard Fromanger é designado para discursar sobre a tumba diante da multidão de amigos, pelo menos !.500 pessoas reunidas ali no Pere-Lachaise: "Fiz isso. Eu soluçava sem parar, e diante de mim estava Tatiana. Citei todas as suas amantes, pelo menos uns trinta nomes de moças. Todo mundo chorava ou ria. Havia uma orquestra de jazz e uma infinidade de pessoas. Foi um enterro comovente" 12 • Por sua vez, o autor e ator Enzo

404

Dosse

Gilles Deleuze & Félix Guattari

Cormann lê extratos de Ritornelos, o relato autobiográfico fragmentário de Félix. Ele está de pé diante do caixão, acompanhado por um quarteto de metais: "Leio primeiro meia página, sozinho, depois a orquestra me acompanha a partir da frase: 'Vocês me reconhecem?'. Faço a pergunta, a música começa, eu choro, o que posso fazer de MELHOR?"'". Ao mesmo tempo, o circulo de amigos quer testemunhar o desejo de viver e o entusiasmo sempre manifestado por Guattari, e o enterro termina em uma espé-

cie de festa: "É uma lembrança meio fEmtástica, uma lembrança muito bonita, Houve cantos, poemas, discursos, e depois, à noite, fizemos

a festa no bosque de Boulogne, era estranhd,j 4 . Toda a família de Guattari está presente, notadamente seu irmão mais velho, Jean, que teve um papel importante para ele. Jean está surpreso e um pouco contrariado pelo fato de se evocar diante do túmulo do irmão a lista de suas numerosas conquistas femininas, mas ao mesmo tempo é_ transportado pelo fervor coletivo dessa multidão: "Em geral, cada um joga uma flor no túmulo. Eu vi pessoas jogarem suas alianças, estojos de chaves, coisas extraordinárias!»~5. Após o enterro, Jean vai a cada quinze dias ao túmulo de Félix. Ele não para de se surpreender: "Por duas vezes encontro flores novas e o mesmo senhor. Dirijo-me a ele: 'Olhe, isso é simpático. O senhor o conhecia?' 'Não, responde ele, venho da parte de uma amiga que me pediu para vir regularmente"' 16• O ministro da Cultura,jackLang, e sua mulher Monique enviaram um texto que será lido nas obséquias: "Félix nos deixou. Como acreditar nisso? Sua curiosidade inesgotável e sua alegria calorosa conferiam a ele uma espécie de eterna juventude. Em nossa tristeza, queremos conservar o sorriso do amigo e o júbilo do pensador. Nós nos recordaremos por muito tempo de nossos encontros, de nossas conversas. Sua voz inesquecível permanece quente em nossos corações" 17• Deleuze está em Saint-Léonard-de-Noblar em companhia de David Lapoujade quando fica sabendo, desolado, da morte de seu amigo Félix, que deveria passar em Limousin para



visitá-lo nesse mesmo dia, nesse 29 de agosto, dia de seu desaparecimento. Deleuze escreve um texto de homenagem que é publicado em Chirni!res: "Até o fim, meu trabalho com Félix fOi para mim uma fonte de descoberta e de alegrias" ta. Ele recorda nesse texto a riqueza inesgotável dos livros que seu amigo Félix escreveu sozinho. Destaca três grandes linhas de força: o domínio de suas intervenções na psiquiatria com todo o pensamento dos grupos-sujeitos e das relações transversais, seu desejo de construir uma espécie de sistema composto de segmentos heterogêneos e, finalmente, suas análises teóricas sobre a produção literária e artística. Não pode deixar de evocar aquele que foi durante anos uma componente de sua filosofia a duas cabeças que constituíam sem expressar a parte essencial, que é de ordem afetiva: "O que há de doloroso na lembrança de um amigo morto são os gestos e os olhares que ainda nos atingem, que nos chegam ainda quando ele desapareceu" 19• Para aquele que foi um pouco seu irmão mais velho por adoção e contou muito em seu itinerário, Jean Oury, o luto também é difícil, ainda que suas relações nem sempre tenham sido fáceis. Recordando toda sua história comum desde o pós-guerra, Jean Oury perde com Félix seu alterego em La Borde: "Félix nos deixa hoje, bruscamente, sem estar preparado. Estamos todos desamparados. Mais de quarenta anos de existência quase comum, um trabalho gigantesco que permanece em obras" 20• Robert Maggiori consagra a Guattari a capa de Libération de segunda-feira, 31 de agosto, com o título 'As mil e uma vidas de Félix Guattari" e destaca a vitalidade excepcional e o caráter cativante daquele que foi mestre em matéria de desorganização sistemática: 'Apenas o prenome era suficiente para designar Félix Guattari. Simples, jovial e generoso, ele era uma energia, um carburante, uma rede. Um passador que, em uma grande alquimia verbal, procurava deflnir a subjetividade"21 • Na urgência, Maggiori redige um longo artigo de homenagem, "Félix, a vida rizoma", e organiza a publicação de um volumoso dossiê com um

artigo deJean-Baptiste lY!arongiu e de Marc Ragon, "Um militante de todos os terrenos", um depoimento de Jean Oury recolhido por Antoine de Gaudemar em que Oury afirma que, "aos 60 anos, ele era o mesmo que aos 15 anos. Ele jamais mudou: aparentemente sonhador, mas extremamente atento, retendo tudo com uma falsa indolência e de uma presença extraordinária. E sempre a mesma simplicidade adolescente"22• Encontra-se ainda nesse dossiê o depoimento de Paul Virilio a propósito do debate que iniciaram sobre a guerra e que foi interrompido pela morte quando ele estava revendo a transcrição de suas discussões. No Le Monde, Roger-Pol Droit saúda "Um provocador inventiva" ao lado de um depoimento de 2 Jean Oury sobre "uma dialética da amizade" ;l. A imprensa internacional também dá primeira página a esse acontecimento, como na Itália, onde Guattari gozava de uma popularidade maior do que tinha na França. Mesmo seu adversário político, o L'Unita, jornal diário do Partido Comunista Italiano, dá uma chamada de primeira página em 30 de agosto com sua foto anunciando a morte de "L'enfant terrible", "Guattari: o anti-Freud", lembrando que esse militante apaixonado foi a bandeira do movimento de contestação de 1977 na Itália. Aqui e ali, nos inúmeros círculos de amigos, de militantes, de artistas que conheceram Guattari, as homenagens se multiplicam. A equipe da revista Chimües, que ele criou com Deleuze, dedica-lhe dois números especiais 24 no verão e no inverno de 1994 • Guattari era membro do comitê de patrocínio do Centro In~ ternacional de Cultura Popular, criado em 1977 25 por iniciativa do Cedetim . Essa organização realiza um encontro de homenagem em janeiro de 1994 sobre o tema: "Qual o lugar da solidariedade internacional na indagação filos6fica'?"26. A revista Transversales, de Jacques Robin, Anne-Brigitte Kern e Armand Petitjean, da qual Guattari se tornara um conselheiro muito ouvido, saúda "o amigo" e lhe consagra todo um 7 dossiê em seu número do final do ano de 199i • A homenagem mais espetacular prestada ao amigo é a obra de jean-Jacques Lebel, que

405

edifica um "Monumento a Félix Guattari" ek posto no Centre Ileaubourg em 1996. Esse monumento multiforme deu lugar por dois meses e meio a um debate público no hall do Beaubourg, todas as quintas-feiras durante três horas. Todos os amigos de Félix são convidados, célebres ou anônimos, e ali leem textos, improvisam uma intervenção, tocam um trecho de uma música, declamam alguns versos. Todos esses testemunhos se desenrolam no quadro barroco preparado por Lebel. Conhecendo o gosto de Félix pelos carros, ele desmanchou sua Renault 25, colocou terra dentro e fez brotar ali cogumelos alucinógenos. Ao lado de um enorme retrato ele Félix, o alto-falante reproduz a voz dele contando o sonho de Yasha e seu desejo de carro: 'As pessoas que chegavam ao Beaubourg se diziam: 'Ouça, Félix está lá? Ele está vivo?'. Era uma alucinação, »28 pois se ouvia sua voz por todo o Beau bourg . Lebel colocou uma placa atrás do enorme porta-malas em plexiglas transparente do carro, convidando as pessoas a depositar cartas, poemas, fotos: "Foram tantas as pessoas que deixaram mensagens que fui obrigado a esvaziá-lo três vezes durante a exposição, mas as conservei, pois eram mensagens enviadas a Félix"29• Lebel não esqueceu a obra de Guattari: "No lugar do motor do carro, eu tinha colocado exemplares de Chimáes e textos de Félix, manuscritos, fotos" 30• Sobre o teto da R 25, é entronado um divã de esquizoanálise esculpido com textos e objetos para que fique bem imbricado com a carroceria do carro. Projetado sobre ele um enorme coração de seis metros de altura que rodopia suavemente. Em baixo, seis vídeos rodam permanentemente. Dessa exposição, resta um filme realizado por Françoís Pain, em 31 que se vê uma parte desse desfile incessante •

A falta de ar até a morte Nessa multidão, um ausente: Deleuze, cujo estado de saúde o mantém preso abalões de oxigênio. Ele acompanha de casa essa demonstração coletiva ele afeto por seu ami-

I

1I

406

Gilles Deleuze & Félix Guattari

François Dosse

go Félix: "Gilles me telefonava todas as noites quando eu estava em Beaubourg para me per-

guntar o que tinha acontecido nesse dia. Ele inclusive me deu um texto para ler ali"32 • Para materializar a presença de Deleuze, Lebel põe muitos tubos em sua escultura. Deleuze, vendo a exposição pela TV, reconheceu ali seus tubos de oxigênio: "Ele me disse ao telefone: 'Mas você pôs os meus tubos'. 'Sim, Gilles, eu pus seus tubos: E ele me disse: 'Tudo bem você os transformou"':i3 •

"Corno você sabe, minha saúde não está muito boa. Tenho dificuldades de respiração que me impedem frequentemente de sair, e mesmo de falar. Estou preso a um balão de oxigênio como um cachorro. Não há dúvida, a doença é uma abjeção, embora a minha não seja tão dolorosa:.3•l Apesar dos balões, ele sofre crises de sufocação de uma violência cada vez maior. Deleuze já assistiu a esse calvário quando acompanhou a morte de seu amigo François Châtelet: "Quando Gilles teve de passar por tal provação, essa foi uma das razões que ele invocou para partir, para se suicidar. Ele me escreveu uma carta toda trêmula duas semanas antes de se suicidar para me dizer que não queria viver o que Châtelet teve de viver. Eu o revi algumas semanas antes de sua morte em seu apartamento na Rue Niel, e dava para sentir que ele não tinha mais vontade de viver esse sofrimento"35• Mais ainda que o sofrimento, o que certamente Deleuze não suportou foi a incapacidade progressiva de trabalhar, escrever, discutir. Ele chegou a pensar no fim em uma escrita mais fragmentária, mais densificada, mas a violência das crises é tal que impede essas tentativas. Em setembro de 1995, Deleuze liga para seu amigo Bichard Pinhas de Saint-Léonard-de-Noblat: "Gilles diz: 'Estou com uma crise de asma severa: Ele desliga por falta de ar. O telefone toca de novo. Gilles: 'Mal posso falar', voz metálica, mas suave. Um zumbido difuso no telefOne como se um inseto artefato se agitasse em torno de sua voz, máquina de ,36 reconstltmçao . Em Ot!J>ubro, Deleuze voltou de Limousin para o seu àpartamento de Paris. '

'

N

Bichard Pinhas lhe telefona, mas ele está em um estado tal que Fanny não pode lhe passar. A mesma coisa no dia seguinte. Finalmente, é Deleuze que liga para ele, mas para lhe dizer... que precisa desligar: "Eu sorrio, e ele me abraça. Através de Paris, sinto o fio de Ariadne que agora o separa imperceptivelmente da vida''37• Seu amigo Yves Mabin assistiu a algumas dessas crises agudas, muito penosas: "Eram sufocações absolutas, e o fato de tê-las suportado por tanto tempo é uma prova de uma coragem excepcional. Ele deu mostras de uma coragem fora do normal para resistir a esse ,38 p ponto . ouco tempo antes de seu suicídio, Deleuze liga para Yves Mabin, que não está em casa. Deixa uma mensagem dizendo que volta a ligar: "Ele ligou de novo quinta-feira e me disse coisas que costumava me dizer, com uma grande afeição, mas eu disse a mim mesmo: por que ele me ligou para me dizer isso?" 39• Um pouco preocupado, Yves Mabin decide esperar até sábado no final da manhã para ter certeza da presença da Fanny, de volta do mercado, para não perturbar seu amigo, que na maioria das vezes não conseguia nem mesmo responder ao telefone. Nesse sábado, 4 de novembro de 1995, Fanny informa a Yves Mabin sobre a morte de Deleuze, sem lhe dizer ainda que ele acabou de se jogar da janela do apartamento. Esse acontecimento era temido por todo seu círculo de amigos que acompanharam sua dificuldade crescente de viver. Ao mesmo tempo, o suicídio é tão pouco congruente com o que Deleuze encarnava como potência vital, como pensador da vida, que alguns tentaram ver nisso uma maneira de voo, de último ato de vida. No mesmo dia 4 de novembro de 1995, o mundo toma conhecimento de outra notícia trágica: o assassinato do primeiro-ministro israelense Itzhak Babin. Esse desaparecimento abre um tempo difícil para os próximos: "Paris, 5 de novembro de 1995: terrível, desoladora notícia da morte do filósofo Gilles Deleuze ... Creio que só se pode falar filosoflcamente da morte de Gilles Deleuze, que guardará para sempre seu mistério. Ela não se deve com certeza a qualquer

1 I! ]

I j

l j

ili

1 !

II Ii

desespero ou 'desejo de morte'; essa expressão, a ideia mesma de um 'instinto de morte', popularizada pela psicanálise, sempre lhe pareceu aberrante e contraditória. Toda a filosofia de Deleuze é um hino à vida, uma afirmação da vida"';o. Pierre Verstraeten e Juliette Simont veem nesse ato flnal um último "sim" de Deleuze, um sim à morte como prosseguimento da vida por outros meios, para "reter isso que nos 41 acontece, e que é acidental, querendo-o" . Em 6 de novembro, no Libération, Bobert Maggiori saúda a "corrente de ar" que soprou no pensamento do século graças a Deleuze: "Não se avalia ainda a que ponto ele varreu tudo, deslocou tudo, a linguagem filosóflca, a maneira de fazer filosofla, a definição mesma da filosofla'". Maggiori afirma que Deleuze foi o mais filósofo dos filósofos. No mesmo dossiê, Antoine de Gaudemar volta ao tema do esgotado, que tinha servido a Deleuze para qualificar o teatro de Beckett: "Não se pode impedir de pensar no próprio Deleuze, esgotado por seus graves problemas respiratórios e tendo cada vez mais dificuldade de se deslocar"43. Acrescenta, retomando o comentário de Deleuze sobre o suicídio de Empédocles, que esse suicídio está ligado ao mesmo tempo à anedota da vida e ao aforismo do pensamento. No dia seguinte, 6 de novembro, Libération dá a palavra a alunos, colegas e amigos de Deleuze que lhe prestam urna homenagem em três páginas. A!ain Badiou publica uma carta que enviou a Deleuze em julho de 1994. Jean-Luc Nancy revela sua perturbação: "No momento em que Gilles Deleuze nos deixa, somos tentados, na grande tristeza e no respeito, a retê-lo 44 enquanto 'ele mesmo', a parar a imagem" • Jacques Derrida aflrma que agora precisará "vagar sozinhO' e expressa sua proximidade com ele: "Deleuze continua sendo, apesar de tantas dessemelhanças, aquele de quem sempre me julguei mais próximo entre todos os dessa 'geração: Jamais senti a menor 'objeção' se anunciar em mim, mesmo que virtualmente, contra 45 nenhum de seus discursos" . Na segunda-feira à noite, dois dias após a morte de Deleuze, Laure Adler, que frequentou

407

alguns dos cursos dele em Vincennes, consagra boa parte de seu programa "Le Cercle de Minuit" a uma homenagem espontânea. Laure Adler apresenta Deleuze como um "degustador de palavras", que ela ia ouvir com avidez, levantando-se bem cedo todas as terças-feiras para ir a Vincennes. Enquanto Maggiori compara Deleuze a um carpinteiro instalado com aplicação em seu banco, Boger-Pol Droit ressalta o gesto próprio do pensamento de Deleuze: "Pôr em movimento por toda parte. Os devires, os surgimentos, enquanto que a história da filosofia pensava mais as coisas fixas, as permanências"~ 6 •

O falecimento de Deleuze também é primeira página do Le Monde de 7 de novembro, onde Boger-Pol Droit enfatiza a equivalência que o filósofo estabelece entre rebelião e inteligência". O jornal reproduz um retrato pintado por Gérard Fromanger, enquanto que Boger-Pol Droit relembra suas múltiplas experimentações. No Le Monde des Livres da mesma semana, publica-se um verdadeiro dossiê em forma de homenagem destinado a mostrar todas as facetas da obra. Jean- François Lyotarcl e Frédéric Gros destacam sua relação privilegiada com o futuro, suas fugas incessantes mas sempre adiante, com uma maneira de viver e de pensar que "só se fia nesse outro 8 tempo, aquele que não passa"~ . No programa da France Culture "Du jour au lendemain", de Alain Veinstein, Michel Butel, que dirigiu I:Autre ]o urna!, presta-lhe uma vibrante homenagem, declarando que Deleuze contou mais para ele do que qualquer outra pessoa: '1\.ntes de conhecê-lo, eu jamais tinha conhecido al49 guém inteligente" • Ele recorda seu amor pela vida, sua recusa do suicídio, e a que ponto seu ato deflne o ato livre que surpreende da parte de quem o comete: "Deleuze, para mim, é um pouco como Samnel Beckett ou Che. Ele fez sem querer ou saber o elogio da amizade que 50 . e' a ar t e de V1Ver, suprema" . De sua parte, Christian Descamps prepara no outono um grande dossiê consagrado a Deleuze que é lançado no início de 1996 em La Quinzaine Litléraire51 • Yves Mabin, que trabalha

t 408

1

Dosse

Gil!es Deleuze & Félix Cuattari

409

1 no ministério das Relações Exteriores, evoca ali o amigo, que considera um santo: "Uma noite, eu estava jantando com eles dois [Gilles e Fanny]. Digo a Deleuze que, para o bretão que

também sou, qualquer pessoa que dá aos seus semelhantes qualquer coisa de necessário que antes dele, desde a origem dos tempos, ninguém tinha dado era um santo. Que, por isso, eu achava seriamente que ele era um santo. Gilles sorri, esse sorriso em que a diversão o disputava com a emoção. Então, em um dos mais belos gestos de amor que pude presenciar, Fanny estende os braços, pega as mão de Deleuze com seus longos dedos finos e lhe diz: 'Yves tem razão. Eu também acredito que você é um 52 santd" • Esse tema da santidade será retoma~ 53 do por Roger-Pol Droit em 1998 • É de fato sob esse título da santidade que Roger-Pol Droit pinta três retratos possíveis de Deleuze: o do fi-

lósofo enquanto professor aparentemente clássico, mas já inclassificável: o do filósofo enquanto criador, incessantemente voltado à invenção, e finalmente o do experimentador "se deixando alterar pelas correntes de fora, aceitando aderiva destas. O pensamento de Deleuze é, portan54 to, experiência de vida, mais do que de razãd' • Esses três retratos não são limitativos, há muitos outros possíveis, e a última figura evocada é a do sábio que remete ao que está escrito em seu túmulo: "Duas frases de Nietzsche, distorcidas. Uma fala de Leibniz: 'Temerário e em si misterioso até o extremO. A outra fala dos gregos: 'Superficiais... por profundidade"'''. O derradeiro texto de Deleuze foi publicado pouco antes de seu desaparecimento, no outono de 1995, pela revista Philosophie: 56 "A imanência: uma vida .. :' , elemento de um conjunto concebido sobre o virtual e de valor quase testamentário57• A comunidade filosófica se mobiliza para mostrar a vitalidade da filosofia de Deleuze. Essas iniciativas não partem do centro da instituição academia, que continua a considerar Deleuze como um pestífero, mas da periferia, do exterior. Por iniciativa de Éric Alliez, realizam-se várias jornadas de Encontros Internacionais Gilles Deleuze 11;, Rio de Janeiro e em

São Paulo, em junho de 1996, que dão lugar a 8 um compêndio 5 • Em Paris, o Colégio Internacional de Filosofia realiza um colóquio "Gilles Deleuze: imanência e vida" em janeiro de 1997, cujas intervenções resultarão em um núme9 ro da revista Rue Descartess • Um pouco mais tarde, em 2000, será publicado Tombeau pour Deleuze, sob a direção de Yannick Beaubatie60, que introduz o volume sobre o enorme apego de Deleuze à região de Limousine, nas imediações de Saint-Léonard-de-Noblat, local de sua residência secundária, o Mas Révéry, onde ele passava regularmente três a quatro meses no verão. No seu último verão, embora já muito debilitado, Deleuze ainda pôde passear pela estrada de Saint-Germain-les-Belles, a alguns quilômetros de Saint-Léonard, percorrendo o platô que domina o vale da Vienne. Seus amigos da região organizaram, com a associação "Saint-Léonard, ses artistes et écrivains", duas jornadas de conferências e uma exposição em Limoges, em 25 e 26 de outubro de 1996, sobre o tema "Um filósofo em Limousin: Gilles Deleuze". A inspiradora dessa manifestação, Elisabeth Lagisquet, enfatizou a ligação muito forte de Deleuze com Limousin, que ele chamava de uma "região profunda": "Talvez se imponha um desvio por Limousin para tentar uma leitura muito particular, um pouco errante, em liberdade, da obra do filósofo, mas que 6 não é menos legítima" t. É nesse novo cemitério de Saint-Léonard-de-Noblat que repousa agora Gilles Deleuze, desde a sexta-feira, !O de novembro de 1995.

Notas L Marie DEPUSSF, Dieu git dans /e détails, POL, Paris, 1993, p. !43. 2. Ibid., p.l44. 3. Ibid.,p.144.

4. Emmanuelle Guattari, entrevista com Virginie Linhart. 5. Marie DEPUSSÉ, Dieu gít dans le détails, op. cit, p. 145.

6. Tatiana Kecojevic, entrevista com Virginie Linhart.

7. Gérard Fromanger, entrevista com o autor. 8. Ibid. 9. Tatiana Kecojevic, entrevista com Virginie Li-

nhart. !0. Jbid.

32. Jean-Jacques Lebel, entrevista com Virginie Linhart. 33. lbid. 34. Gilles Deleuze, carta a Jean-Pierrc Faye, 15 ele março de 1991, publicada emJean~Píerre

11. Jean ROLIN,]oséphine, Gallimard, Paris, 1994, p.48.

12. Gérard Fromanger, entrevista com o autor. 13. Enzo CORMANN, Chimáes, "Félix Guattari", vo!. 2, n, 23, verão de 1994, p. 30. 14. Patrick Farbias, entrevista com o autor. 15. Jean Guattari, entrevista com o autor. !6. lbid. 17. ]ack e Monique Lang, texto lido nas obséquias em 4 de setembro de 1992, arquivos IMEC. 18. Gilles DELEUZE, "Pour Félix", Chirnáes, n. 18, inverno de 1992-93, p. 209; reproduzido em RF, p. 357. !9. Ibid., RF, p. 358. 20. Jean OURY, ~Pour Félix", ChimiJres, n. 18, inverno de 1992-93, p. 208.

21. Robert 11AGGIORI, Libération, 31 de agosto de !992, p. 32.

22. Jean OURY, Libération, 31 de agosto de 1992, p. 35.

23. Roger-Pol DROIT,jean OURY, Le Monde,!" de setembro de 1992. 24. Chirnêres, n. 21, inverno de 1994, "Félix Guatta· ri", vol. l; n. 23, verão de 1994, "Félix Guattari", vol. 2. 25. Centro de Estudos e de Iniciativas de Solidariedade Internacional. 26. Com a participação e comunicações de: Jean-Paul Gay, Nlichel Benasayag, Gisele Donnard, Ilan Halévi, François Lautier, Bernard Ravenel, Renê Schérer. 27. "Félix Guattari", por Anne-Brigitte KERN, Sacha GOLDMAN, Gilles DELEUZE, Jean OURY, Transversales, n. 18, novembro-dezembro de 1992. 28. Jean-Jacques Lebel, entrevista com Virginíe Linhart. 29. Ibid. 30. Ibid.

31. "Monument a Félix Guattari'', filme de Jean-Jacques Lebel e François Pain, realização François Pain, arquivos audiovisuais, BNF.

35. 36. 37. 38.

FAYE, Henri MACCHERONI, Dialogue et court traité sur de traniformat, AI .Dante/L'enseigne des Oudin, 2000, p. 67-68. NoE\lle Châtelet, entrevista com o autor. Richarcl Pinhas, Les Larmes de Nietzsche, Deleuze et la musique, op. cit., p. 19. Ibid., p. 26. Yves Mabin, entrevista com o autor.

39. Ibid. 40. Renê SCHÊRER, "L'écriture, la vie", Rel!ue des !ettres, sciences et arts de Corr8ze, tomo 99, 1996; reproduzido em Regards sur Deleuze, Kimé, Paris, 1998, p. 10. 41. Pierre VERSTRAETEN,juliette SIMONT, "Vol

de l'aigle et chute profonde", em Gilles Deleuze, Vrin, Paris, 1998, p. 16. 42. Robert MAGGIORI, "Un courant d'air dans la pensée clu siecle", Libération, 6 de novembro de 1995. 43. Antoine DE GAUDEMAR, ''Le geste cl'un philosophe", Libération, 6 de novembro de 1995. 44. Jean-Luc NAl\ICY, "Du sens dans tous les sens", Libération, 7 de novembro de 1995.

45. Jacques DERRIDA, "Il me Ütudra errer tout seul", Libération, 7 de novembro ele 1995. 46. Roger-Pol DROIT, em "Le Cerde de Mínuit" de Laure Adler, 6 de novembro ele 1995, arquivos !NA.

47. Roger-Pol DROIT, "La rébellion et l'inte!Hgence cl'un philosophe", Le Monde, 7 de novembro de 1995. 48. Jean-François LYOTARD, "Le temps qui ne passe pas", Le Monde, 10 de novembro de 1995. 49. Michel Butel, "Du jour au lendemain", France Culture, 7 de novembro de 1995, arquivos !NA.

50. lbid. 51. Christían DESCAMPS, "Pour Deleuze le minoritaire", La Quinzaine littéraire, 1-15 de fevereiro ele 1996. 52. Yves J\1ABIN, "Gilles, l'amí", ibid.

41 O

53.

François Dosse

Roger~Pol

DROIT, "Saint Deleuze", em La

Compagnie des philosophes, Odile jacob, Paris, 1998. p. 299-312. 54. Jbid., p. 301. 55. Jbid.. p. 302. 56. Gilles DELEUZE, "L'immanence: une v1e ...

Philosophie, .Minuit, setembro de 1995, p. 3-7. 57. Ver capítulo "Uma ontologia da diferença". 58. Éric ALLIEZ, Gilles Deleuze. Une vie philosophique, Synthélabo, Paris, 1998. 59. Rue Descartcs/20, Gilles Deleuze. Jmmanence et vie, Coll€ge international de philosophie,

PUF, maio de 1998, com artigos de José Gil, Alain Badiou, Françoíse Proust, Éric Alliez,

Guy Lardreau, René Schérer, Toni Negri, Christine Buci-Glucksmann, Lucien Vinciguerra, Jean-Clet Martin, Danielle Cohen-Levinas,

Bernard Cache.

60. Yannick BEAUBATIE (sob a dir.), Tombeau pour Deleuze, Mllle Sources, Tulle, 2000. 61. Elisabeth LAGISQUET. "Pourquoi parler de Gilles Deleuze en Limousin?", em Un philosophe en Limousin. Gilles Deleuze, publicado

29 A obra trabalhando

pela Associação "Saint-Léonard, ses artistes et écrivains", 1996, p. 6.

Os primeiros comentadores: um desdobramento da obra

-t''

A obra de Deleuze e Guattari prosseguiu seu caminho para além do falecimento dos seus autores. A recepção inclusive não parou de se ampliar, como já tivemos oportunidade de mensurar em escala internacionaL É também o caso no cenário intelectual francês. Os primeiros comentadores da obra começaram a publicar antes mesmo de 1995, data do falecimento de Deleuze. Esse primeiro círculo de "discípulos", ainda que o termo tenha sido recusado por Deleuze e Guattari, é composto por aqueles que conheceram Deleuze e!ou Guattari ou que acompanharam o curso em Paris-VIII. Quase todas essas primeiras publicações, com exceção de Éric Alliez, destacam um único nome, o de Deleuze, excluindo Guattari. A primeira obra de amplitude, que tem como ambição desenvolver o conjuntD da obra de Deleuze, é a de Jean-Clet Martin, então com 32 anos'. Residindo perto de Mulhouse, em Altkirch, ele jamais acompanhou as aulas de Deleuze, mas leu a obra muito jovem, embora desde 1988 pretenda consagrar suas pesquisas à filosofia dele. Considerada a distância geográfica, suas discussões com Deleuze serão

de natureza essencialmente epistolar, embora vá a Paris de tempos em tempos para prossegui-las de viva voz. Martin é convidado para visitar Deleuze pela primeira vez em abril de 1989 em um fim de tarde tempestuoso. O tempo está sombrio, e Deleuze ainda não acendeu a luz do apartamento: "Eu não conseguia mais vê-lo nessa obscuridade. Houve esse momento de graça entre cão e lobo. Eu sentia a maior dificuldade em percebê-lo, mas havia sua voz, que se tornava inaudível na invisibilidade total e entrecortada de trovões. Esse foi para mim um momento quase mágico. Sua voz é um gritó'2• Em seguida a esse encontro, uma verdadeira amizade filosófica se estabelece entre eles através do correio ou do telefone. Deleuze parece apreciar muito em seu interlocutor o distanciamento dele dos pequenos cenácr:tlos parisienses, seu caráter muito singular, marginal mesmo. Isso lhes vale belas discussões, como a propósito do trabalho sobre o girassol de Van Gogh em que Jean-Clet Martin está envolvido. No início de 1991, este último envia a Deleuze um cartão de bons votos ilustrado por um quadro de Van Gogh representando os girassóis, ao qual acrescenta uma citação de Malcolm Lowry sobre os estranhos girassóis

1 412

Gilles Deleuze & Félix Guattari

Dosse

que olham pela janela. Deleuze lhe responde: "Caro amigo, seu cartão postal é muito bonito, e o texto de Lowry: é exatamente isso um per~ cepto! Em Kafka, um estranho cavalo olha pela

janela... Há muito tempo eu não lhe escrevia; por estar muito cansado da mudança, caí de

novo em uma depressão respiratória penosa da qual ainda não saí, embora esteja bem melhor... Avancei bastante na última versão de O que é a filosofia?''. Das cartas que recebe de Deleuze,Jean-Clet Martin retém uma, que põe no prefácio de seu livro sobre a fllosofia de Deleuze. Este último

reage ao seu manuscrito recordando-lhe seu apego à ideia de sistema, no sentido de Leibniz, mas com a condição de que não se relacione o sistema ao Idêntico, pois o que ele procura construir é uma heterogênese. Deleuze considera que Martin percebeu bem sua definição 4 da filosofia "como atividade criadora'' , assim como sua insistência sobre a questão do múltiplo: "Você vê bem a importância para mim da 5 noção de multiplicidade; é o essencial" • Outro especialista da obra de Deleuze, Arnaud Villani, vem de estudos literários. Nos anos de 1960, ele faz um curso duplo de letras clássicas e de filosofia, obtém seu grau em letras clássicas em 1967 e no ano seguinte, de filosofia. Torna-se então professor de filosofia em Nice, no liceu Masséna, onde leciona sempre em classe preparatória para a Escola Normal. Villani se interessa por Deleuze desde 1972 e escreve periodicamente artigos para apresentar as grandes orientações do pensamento dele. Em Nice, dá cursos de verão para estrangeiros e lhes apresenta a filosofia francesa contemporânea. Se seus primeiros artigos sobre Deleuze remontam ao início dos 6 anos 1980 , ele escreve um ensaio em 1999 que restitui o método de Deleuze e no qual se encontram extratos de sua correspondência com 7 ele a partir de 1980 • Ao longo dessas trocas, Deleuze alerta Villani sobre uma certa propensão a desconsiderar Guattari: "Seria preciso corrigir a maneira como, nas primeiras páginas, você faz abstração de Félix. Seu ponto de vista está correto, e se pod.e falar de mim sem

Félix. A questão é que O Anti-Édipo e Mil Platôs são inteiramente dele, como são inteiramente meus, seguindo dois pontos de vista possíveis. Daí a necessidade, se puder, de marcar que, se você quer se ater a mim, é em virtude de seu trabalho mesmo, e não absolutamente de um caráter secundário ou 'ocasional' de Félix"8•

A alternância por uma nova geração O deleuzo-guattarismo "embalou" uma geração totalmente nova e, dentro dela, um pequeno grupo de jovens filósofos da ENS da Rue d'Ulm. Esses jovens filósofos descobrem os livros de Deleuze e Guattari em completa defasagem com relação à sua época. Disso resulta uma relação bem diferente com a obra de Deleuze e Guattari que a da geração precedente, isso porque as questões em jogo já não são mais as mesmas. Todos hoje participam dos trabalhos de pesquisa e de ensino do Centro Internacional de Estudo da Filosofia Francesa Contemporânea da ENS de Ulm, dirigida por seu antecessor Frédéric Worms: "Eu os tive todos aqui, na ENS, enquanto diretor de estudos entre 1991 e 1995, como professor de reforço, preparando-os portanto ao concurso de entra9 da à universidade" • Entretanto, diferentemente de Foucault, que geriu um centro e toda uma equipe que orquestra a difusão de sua obra, Deleuze e Guattari tiveram discípulos, mas subterrâneos, muito livres nos modos de apropriação de sua obra. Élie During descobre Deleuze no último ano do liceu lendo seu Foucault, sem compreender verdadeiramente seu sentido, mas seduzido de imediato pelo "estilo' deleuziano. Na classe preparatória à Escola Normal, dedica-se a ler mais seriamente as monografias de história da filosofia de Deleuze a discuti-las junto com os cinco ou seis que se destinam a fazer filosofia. Seu amigo Thomas Bénatouil faz parte desse grupo. Élie During e Thomas Bénatouil integram a ENS de Ulm e ali conhe-

cem David Rabouin, oriundo das letras modernas. Rabouin não gostou de Deleuze na classe preparatória, e seu primeiro contato com Empirismo e Subjetividade, livro difícil, não o convenceu. Foi através de Espinosa que descobriu verdadeiramente Deleuze: "Quando entramos na ENS, Thomas Bénatouil e eu fomos para o seminário de Bernard Pautrat com um gosto acentuado por Espinosa, ao qual ambos con10 sagramos nosso mestrado" . com um ano de defasagem, Patrice Maniglier ingressa em Ulm em 1993 e se junta ao pequeno grupo de deleuzíanos que teve por um bom tempo um itinerário comum. Deleuze é para eles, sobretudo, uma outra maneira de fazer filosofia. Élie During, que se tornou especialista em Bergson, tenta construir uma teoria do tempo local ancorado na física. Thomas Bénatouil, após um mestrado sobre Espinosa, faz um doutorado em sociologia antes de se tornar um especialista de Epicteto e dos estoicosu. David Rabouin, que se tornou epistemólogo, consagra sua tese à filosofia dos matemáticos na Idade Clássica. Quanto a Patrice Maniglier, faz do estruturalismo seu campo de pesquisa e considera Deleuze o filósofo desse paradigma, a metafísica experimental das operações estruturais. Élie During se exaspera com a proliferação de publicações e comentários privilegiando o mimetismo. Recorda as palavras de Deleuze dizendo que não basta invocar o múltiplo, é preciso fazê-lo. Quando fica sabendo pela revista Critique dos dois grandes volumes coletivos publicados sobre Deleuze, critica severa12 mente aqueles que se erigem em discípulos • David Rabouin colabora regularmente no Magazine Littéraire e, por ocasião da primeira coletânea de artigos organizada por David Lapoujade, prepara com toda sua equipe de 13 amigos um número consagrado a Deleuze • O dossiê, lançado em 2002, coloca frontalmente a questão "Deleuze, por que fazer?" a persona4 lidades muito diferentes t • Em sua apresentação, David Rabouin constata que os conceitos deleuzianos circulam por toda parte, mas sem a ascese necessária de um verdadeiro conheci-

413

mento da obra: "Não basta gritar 'viva o múltiplo, ou brandir qualquer outro conceito pop, pois a única coisa que conta é fazer qualquer 15 coisa, impulsionada por um 'de forà" • Próximos desse pequeno grupo e realizando seu seminário na ENS de Ulm, Anue Sauvagnargues e Guillaume Sibertin-Blanc fazem justiça ao papel de Guattari. Arme Sauvagnargues tornou-se a primeira pesquisadora a alcançar uma posição universitária sólida tendo como campo de especialização o deleuzo-guattarismo. Em 1997, recebe a proposta de um cargo muito bom na ENS, que ela só pode assumir com a condição de se inscrever em tese. Querendo então refletir sobre as relações entre filosofia e arte, ela procura um filósofo francês contemporâneo: "Deleuze correspondia perfeitamente. Sua obra estava fechada, e não havia um verdadeiro comentador, tudo estava por ser feito, e, além disso, ele dava à arte uma parte completa. Era exatamente do 16 que eu precisava" • Ela consegue convencer seu orientador, Pierre-François Moreau, que, no entanto, a previne que, sobre essa base, não poderá sustentar uma eventual candidatura a um posto na Sorbonne. Guillaume Sibertin-Blanc foi aluno de Anne Sauvagnargues. Mais jovem, ele está cursando a classe preparatória para a Escola Normal no Henri-IV no momento em que sua futura professora é nomeada para a ENS e ini~ 17 cia sua tese • É lá que ele conhece Anne Sauvagnargues, que o prepara para a agregação. Além do concurso, ela estabelece um pequeno seminário de trabalho sobre Deleuze e Guattari que, entre 1998 e 1999, não interessa a muita gente: apenas quatro pessoas, entre as quais Guillaume Sibertin-Blanc, que precisa de ar para respirar ao sair dos concursos. Desde 2005, Anne Sauvagnargues e Guillaume Sibertin-Blanc coordenam um seminário de "Leituras de Mil Platôs de Deleuze e Guattari" no âmbito do grupo de trabalho "Deleuze, Espinosa e as ciências sociais" do CERl'Hl (que não tem nenhuma relação com o CERFI) 18 • Ambos preconizam, para tornar inteligível essa obra difícil, um método de lei-

414

1 .

.

1.

!

I '~

i!

li li

11

i!

il

il

,li

Gil!es Deleuze & Félix Guattari

Fr;mcnis Dosse

tura "externalista" que abre um grande espaço às fontes utilizadas por Deleuze e Guattari e, por essas fontes infrapaginais, ao contexto de enunciação, às questões em jogo: "é uma trans~ formação da história da filosofia, uma maneira de pensar a filosofia em seu devir, de afirmar que não há conceitos ou acontecimentos fora de uma base corporal atestável, de um certo encontro de forças que são exteriores ao pensamento',J9. Todo seu comentário consiste em descobrir quais foram os agenciamentos entre

"Interessar-se pela irrupção do novo impõe identificar o perfil de curva de um conceito no sistema, levando em conta especialmente seu ponto de entrada e a zona de dissipação, setores teóricos que ele põe em jogo, conexões 21 práticas que decorrem daí" •

o texto deleuziano e os textos com os quais

Ao lado do mundo universitário, alguns coletivos e revistas tentam manter vivo o deleuzo-guattarismo. Em primeiro lugar, a revista criada por Guattari como prolongamento de sua rede e de seu seminário, Chimáes, Revue des Schizoanalyses, cujo nascimento foi decidido na cozinha do Boulevar Saint-Germain, dl 125, onde se encontram psiquiatras labordianos e guattarianos. O primeiro número, publicado na primavera de 1987, apresenta Guattari como diretor de publicação e Jean-Claude Polack e Danielle Sivadon como os redatores-chefes. Nos primeiros tempos, a revista é amplamente dominada por preocupações de ordem psiquiátrica, mas sempre em um espírito de transversalidade. Pouco tempo após sua criação, Deleuze aceita codirigir oficialmente essa revista que evoca sua comum orientação esquizoanalítica, mas sem intenção de se envolver verdadeiramente em um trabalho coletivo, do qual tem horror. Ainda hoje a revista mantém seu primeiro elã de agitação cultural. Se Chimeres é antes de tudo de filiação guattariana, existem outras revistas que se inspiram na mesma proporção em Deleuze e Guattari. Elas são mais diretamente políticas, ainda que seu terreno de intervenção não seja limitativo. É o caso de Futur Antérieur, nascida em 1990 por iniciativa de Jean-Marie Vincent, Denis Berger e Toni Negri. Ela pnblicou 43 números trimestrais e 10 números especiais antes de desaparecer em 1998. Sob o impulso de Yann Moulier-Boutang, que foi grande amigo de Guattari, uma parte da equipe editorial de Futur Antérieur cria em 2002 Multitudes, uma revista política, artística e cultural. Fiel ao espí-

ele dialogava, para medir assim os pontos de inflexão, as diferenças, a emergência de novos conceitos, assim como sua desaparição depois que estes últimos cumpriram seu papeL Para compreender a maneira como o pensamento deleuziano pode se enunciar em algumas fortes proposições, convém dar o tempo necessário a esse "passeio" textual e conjuntural. Trata-se de captar os encontros, as conjunções disjuntivas os rizomas enquanto elos semióticos tomados·'em- seu regime de historicidade específica. Esse método não exige uma leitura que siga a progressão cronológica: "Meu método se caracteriza por dois aspectos. De um lado, não dissocio o conteúdo intelectual e a estratigrafia material das ideias. De outro, considero que a estratigrafia material, a conexão que um autor faz com suas reflexões tem a ver com o cruzamento de diferenças. Não há, portanto, diferença entre ideia e sociedade, mas uma pragmática do conceito: essa é a primeira ideia. A segunda, tiro de Pierre-François Moreau, para quem não existe um momento chave na biografia de um pensador. É por tudo isso que é preciso passar de uma estática a uma dinâmica do sistema para produzir uma ima20 gem viva'' • Isso implica uma grande atenção ao aparelho de referência da obra estudada, para apreender as múltiplas diferenças entre as fontes e sua utilização, mas também entre duas noções que parecem querer dizer amesma coisa em pontos diferentes da gestação da obra, mas que de fato remetem a uma outra coisa em função do contexto e do agenciamento espaço-tempoful que ele pressupõe:

Uma nova radicalidade cultural e política

rito de transversalidade de Deleuze e Guattari, essa visita pretende intervir tanto em questões de arte contemporânea e de reflexões sobre a mídia quanto sobre as diversas questões so~ dais e políticas como o f€minismo, a mestiçagem, a guerra, o racismo, a ecopolítica, a renda garantida, a Europa, etc." Uma outra revista nascida da contestação social e política, e em parte nutrida do pensamento deleuzo-guattariano, é a revista Vacarme. Um dos membros de seu comitê de redação, Mathieu Potte-Bonneville descobre a obra deleuziana bem no início dos anos de 1990. Ele prepara a agregação, e em 1991 conhece na ENS um estudante deleuziano que faz o concurso no mesmo ano, Pierre Zaoui, muito ativo para organizar reuniões, ações militantes contra os efeitos negativos de uma globalização in controlada, contra a guerra do Golfo. Pierre Zaoui faz Mathieu Potte-Bonneville ler Mil Platôs: "Foi em torno disso que funcionou durante dois anos uma espécie de grupo de reflexão na ENS, com normalistas* e outros, que é intitulado 'Le couteau entre les dents' [A faca entre os dentes]'""'. Esse grupo de 20 pessoas era dotado de um boletim chamado Cahiers de la résistance, muito nutrido de teses deleuzianas24 • Alguns anos mais tarde, em 1996, por iniciativa de Pierre Zaoui, esse pequeno círculo se recompõe em torno de um projeto de revista que se propõe a ser a caixa de ressonância para o grande público de novas formas de militância e de novos movimentos sociais; é assim que nasce em 1997 a revista 25 Vacarme . Dizer que a revista se apoia inteiramente em Deleuze e Guattari seria abusivo. Ela é também amplamente foucaultiana, mas, so~ bretudo, não se coloca sob nenhuma autoridade intelectual. O que a caracteriza não é tanto o léxico deleuziano ou guattariano, mas uma abordagem renovada da política. Essa atenção à construção de agenciamentos, à maneira como os dispositivos são sempre singulares e >:< N. de R. T.: No original, normaliens, ou seja "aqueles que frequêntam a prestigiada École Normale Supérieure

(ENSJ, Paris França.

415

dificilmente avaliáveis do exterior, conduz a uma compreensão das ambiguidades próprias dos movimentos sociais contemporâneos, forçados a negociar contradições permanentes: "Quando um grupo político é obrigado a atacar laboratórios farmacêuticos como foi o caso do Act Up, ele é ao mesmo tempo obrigado a negociar com eles, a fazer alianças permanentes e flutuantes. Ora, Deleuze permite isso por suas análises que são operantes para julgar ca~ 26 sos particulares" • O deleuzo-guattarismo se encontra também na fonte de uma nova radicalidade política, uma espécie de máquina de guerra contra as lógicas da globalização, em Toni Negri e em seu amigo americano :rvlichael Hardt, professor de literatura comparada em Duke. Em 2000, eles apresentam sua análise, Empire, como a realização de um novo umanifesto comunista", adaptado às condições da modernidade, preconizando, em face da globalização e da uni7 formização, uma utopia alternativi • Em 2004, Hardt e Negri voltam à carga, atacando desta vez o uso da guerra no momento da globalização, opondo de maneira binária o desejo de democracia da multidão e a ação de repressão dos poderes cuja lógica de soberania passa inexoravelmente às violências e à guerra. Segundo eles, a "multidão" tem necessidade de uma nova ciência que conduza à destruição da soberania, reencontrando assim o gesto leninista. Para es~ capar ao perigo de Termídor, preconizam uma teoria política que possa conciliar o centralismo de um Lênin e o constitucionalismo de um Madison. Fiéis ao espírito de resistência às lógicas de controle que Deleuze e Guattari encarnaram, Hardt e Negri estão, porém, muito longe deles, por seu apego a uma teleologia histórica, a um sentido de história já presente que seria preciso apenas preencher com novas categorias sociais. Para Hardt e Negri, se a multidão substitui a noção de classe operária, sua abordagem permanece amplamente tributária da mesma filosofia da história marcada pela escatologia revolucionária. Em uma perspectiva que enfatiza também a capacidade da obra de Deleuze e Guattari de

4 16

François Do.sse Gilles Deleuze & Félix Guattari

esclarecer as mutações f d . ·d un amentaJS da s ~ !idade do político""" El CJe. ade e de nutrir um olhar crítico e uma ~ cahdade política, Manola Antonio li d r~~~­ a contradição entr~ o ~~re~nde acabar com teoria do múltiplo e ao a o e defender uma ter consagrado uma obra , e~Ois e da filosofia" p b!' , aDeleuzeeabrstória à democracia que se ca ~es~o tempo se opor , u lCa um novo estudo e 200 mo. Phi!ippe Men ue ractenza pelo pluralisno qual ressalta a fecundrdade d m 4, Deleuze não leva ;m ccontrca a maneira como to entre Deleuze e Guattan e o agenct~men~ nta as medr'aç-oes pro, . ao port· a lucidez de s sua pertmenc1a, pnas , . I 1co, atastando-se . , ~ eus conceitos para estudar os pna realidade política p . M assmr da propl acessos em curso da globahza ,~ 29 . · ara r engue D I . , . , e euze mamfestou um de d, Antomoh percebeu bem que Deia~ , M~nola estigmatização co~s;:tendstocr~t~?o visível na tan não excluem a hiStóna euze e Guat· aopmrao dad t I 1 ,masumaformade da Imprensa e das mídias· "D I , . oxa, h~~~eoâ~: ~stónca, substrturndo-a pela plura. _ . · e euze se Situa em uma posiÇao metzschiana antid , , . Nietzsche escarrava sobr . ~mocratiCa. toda a obra as mídias"34 M . . e os JOrnaiS, ele sobre ve em torno de co , nceitos como terntóno, solo, rede f1 do pensam~ntoendgule Situa a política no cerne , uxos, nomadismo ela t , e euz1ano m explorar a "proXImrdad;entree:~ ::~çeã~~~~ f:tot de reduzir. a figura do i~tel::t~:~~e::r~ P. s ura guerreira da encarna 'ão d sofia que emerge dessa obra"30 Mg I ' · ano a Antae um paradrgma hipercrítico: "Dele , ç moI1 mostra particularmente , uze vem conceber o atualidade das I, d a extraordrnana pensamento obrigatoriame t ogiCas e desterntonahza . n e como uma ' quma de guerra nômade e mae de reterntonahzação que "tra , çao guerrilhà'3s. , seu ato como uma de fuga em drreção a um futuro~:~~:; lrnha manece mcompreensíve1"3l. a perPara Phrhppe Me das mmonas , ngue, a supervalonzação , umcas portadoras de d por essência, em ruptura com d evir e, a or em domrnante, conduz a uma desvalonza Críticas da crítica da democracra. O estado de dne t çao radJCa) fato como mcompatível com : o aparece de Alguns, ao contrário, tomaram d' Idas orientações política do pensament~s~a~ra trms da filosofia deieuziana· :~%,te~as ceneuze e Guattari. Para eles che e emmonas e os devires Os d'. . adnencia, as Ire1tos o homem , . , · das grandes revis?es e da ~erc!;~~ ~~~;~: e o aparelho JUndico-político co l'd sao pensados um certo esquerdrsmo político e do d t. fu mo rea I ades trans-hr'st, . ancas e por is nesto da · es mo - " transcendentes" Quanto , d , so, mawr parte das utopias A . , · a emocrac· essa obra deveria ser d . d , partJr dm, por sua busca de co ~~. que se define ezxa a sob a , d nsenso social, ela passado: emanação do pensame s ~sas o amordaçaria as . . . mmonas em nome d . anosde1960e1970 I . ntoradrcaldos na. Ora, segundo Deleuze, "som" . a mmo~ . : e a tena perdido definitiv criativo. Não há de . . . , ente o menor e a~e~te sua pertmencia política e intelectual há d . . . , ~r maJontario, portanto só OI a esse trabalho de revis. ~vir mmontano. O majoritário é dicouPhilippe Mengue, ex-aluna: J~~~~e detençao, uma recaída de devir uma rees, e em retorno, os devires sô podem ser pnmerros comentadores da obra d D I dos ~laqueados pelo macoloca~do frontalmente a uestN e e euze, joritáriô'36 M . engue propoe, no entant cracia32 B q ao da demosar e prolongar o deleuzismo contra Dol penanti . om .conhecedor do deleuzismo e go esquerdrsta, Mengue sente f sustentando as inflexões requeridas p e euze, política e d uma ratura momento pós-moderno "por s o r nosso m mea os dos anos de 1980· "s· - I que alguma coisa não funciona ma· ·d.~ mto heterogênese do social e d ua conce . pçao c a so qu t' h 1s no 1scur~ da históría"37 FI ~s devires distintos e se m a. A gente é obrigad d' . , e ve um devli' do deleuzism d em u o a se 1zer m certo momento que h, . lado da micropolítica, do lado das práticas o o a uma racwnatomaram alguma distância d . . - que a msp1raçao de

d~~~~:~~:~~~:a;t~~:~:t~~!~;~l~

N

A



A

suspeição dominante nos anos de 1960. Deleuze poderia nesse caso nutrir um pensamento novo guarnecido de sua dependência ao marxismo e ao historicismo. Mais do que Deleuze, Philippe Mengue critica um certo deleuzismo e sobretudo o enxerto guattariano da radicalização política que intervém a partir de 1969. Paul Patton responde a Mengue que, na verdade, os três valores incriminados por ele no deleuzismo não são absolutamente de na~ tureza antidemocrática38• Segundo Patton, a crítica da transcendência que encarnaria a evocação dos direitos do homem é motivada em Deleuze por sua insatisfação diante do que decorre de abstrações desencarnadas. Se é preciso fazer avançar os direitos do homem, é mais concretamente, com as populações em questão, a partir de situações singulares, inventando jurisprudências. Patton recusa também a oposição molar praticada por Mengue entre maioria e minoria que não corresponde à concepção desenvolvida por Deleuze e Guattari, para os quais maioria e minoria não es~ tão nem em posição de exterioridade nem em oposição, mas em uma relação de não coinci~ dência. Quanto à oposição entre o conceito filosófico e a opinião, não implica nada no plano da esfera pública. A resistência ao presente a que apelam Deleuze e Guattari visa, segundo Patton, aprofundar a democracia por vir. De sua parte, Arnaud Villani julga severamente o ponto de vista de Mengue porque omite o aspecto maior do deleuzianismo, o da dinâmica desencadeada pela linha de fuga, que não tem nada a ver com o binarismo em que Mengue confina a política deleuziana: "a democracia não é criticada por Deleuze porque ele seria um aristocrata críptico. Não é porque ela faça 39 demais, é porque ela não Jaz o suficiente" • Encontram-se em jacob Rogozinski, que escreveu, entre outros, um belo artigo sobre 0 Deleuze em 1988 em Le Magazine Littéraire' , as críticas formuladas por Philippe Mengue. Rogozinski recordava nessa ocasião seu entusiasmo de colegial descobrindo a filosofia pouco depois de 1968: "Com Deleuze, tudo se tornava problemático, digno de questionamen-

417

to'' 4 t. Vinte anos depois, nesse ano de 1988, ela ainda saúda a fulguração que Deleuze representa no céu do pensamento. Deleuze não é insensível a isso e lhe envia um bilhete, além de seu Leibniz com uma dedicatória. Contudo, para jacob Rogozinski, Deleuze, diferentemente de Lyotard, não permite pensar os desastres que o século XX atravessou: "O que é heroico em Deleuze é que ele vai até o extremo do radicalismo dos anos de 1960"42 . Hoje, Rogozinski é particularmente severo em f3.se do deleuzismo. Não encontra ali lugar para pensar a ética: Deleuze, em uma perspectiva muito espinosista, não leva em conta o desejo de fazer o mal. Essa obliteração da questão do mal não lhe permite pensar o totalitarismo, o terror político e, portanto, os principais acontecimentos que marcaram o século XX, a Shoah, o Gulag, os Khmers vermelhos, etc. Atribuir um lugar à ética implica atribuir um lugar ao sujeito, ao ego, e, nesse plano, Rogozinski considera que Deleuze, como boa parte dos filósofos de sua geração, tem uma atitude que qualifica de "legicida", negadora do "Eu", que deve ser humilhado, esmagado: "Seu sujeito é um sujeito sem 'Eu', um sujeito anônimo, acéfalo. É sempre oposto a um sujeito identitário. O inimigo não é tan~ to o sujeito, mas o eu, o ego. Ele jamais pensou que pudesse haver aí uma parte imanente do ego, e não vejo então como se pode ter acesso 1 ao plano de imanência de que ele fala"' ~.

Um pensamento do maquínico moderno A obra de Deleuze-Guattari serve de recur~ so essencial na emergência de uma nova episte~ mologia das ciências, que não é mais fundada em uma separação entre o conteúdo científico e a sociedade, entre o homem e a natureza, entre objetividade e subjetividade, É o caso na filósofa e socióloga das ciências lsabelle Stenghers. Quando ela termina seu curso de filosofia em 1973, é o momento da publicação de OAnti-Édipo, mas "foi Diferença e Repetição que me fez trabalhar" 44 • O que a seduz de imediato na obra

418

Fronrni<

Dosse

Gi!les Oeleuze & Félix Guattari

de Deleuze é sua capacidade de engajar o leitor

no estabelecimento de uma comunicação entre zonas que em geral são compartimentadas. Era a descompartimentalização que ela procurava na relação entre ciências e que descobre no campo da filosofia. Nos seis volumes que publi· ca entre 1996 e 1997 sob o título Cosmopolíticas,

e que atravessam os continentes científlcos, os da guerra das ciências, da termodinâmica, dos tempos em Prigogine, da mecânica quântica, 45

dos rostos da emergência

,

numerosas noções

são inspiradas em Deleuze e Guattari. lsabelle Stenghers esbarra com Guattari a partir dos anos de 1980. Ela o convida para um encontro com cientistas por ocasião do simpósio que organiza em Cerisy com Ilya Prigogi· ne, prêmio Nobel de Química de 1977: "Ele fez o pior que podia ter feito expondo seus diagra· mas. Ele entrou em desenvolvimentos tais que

os cientistas não entenderam nada. Foi uma oportunidade perdida'"". Contudo, Stengers

utiliza conceitos deleuzo-guattarianos em seu próprio trabalho e desempenha um papel ativo na difusão da obra dele em Bruxelas. Nos anos 1980, Stenghers consagra seu seminário, que

se realiza na Universidade Livre de Bruxelas, a Deleuze e Guattari. A partir dos anos de 1990, seu colega Pierre Verstraeten, um sartriano muito ativo, constrói seu curso de introdução à filosofia a partir de O que é afilosofia?.

Foi assim que Daniel Franco se iniciou cedo nesse pensamento. Quando ele próprio começa a lecionar na Universidade Livre, con-

li r

I:

I

sagra a Deleuze quatro anos do curso de filosofia, de 1990 a 1994: "Deleuze foi um extraor· dinário sintetizador. Hoje, fico impressionado por seu caráter muito literário. Ê um pouco um 47 curso nas nuvens" • O especialista de Simondon, Pascal Chabot", também passa pelo ensi· no de Isabelle Stengers e de Pierre Verstraeten,

que consagram uma obra a Deleuze em 199849• Como historiador da filosofia, inicialmente es-

pecializado nos estudos husserlianos, Deleuze tem um papel "libertador" para Pascal Chabot: permite a ele fazer saltar pelos ares a ideia de suporte, essencial na fenomenologia, graças à sua noção de multip~"'cidade - "O encontro

com o universo de Deleuze foi para mim um balão de oxigênio"·50•

Pierre Lévy, que se torna especialista das "tecnologias da inteligência", foi muito marcado por Michel Serres, mas também por De· lcuze e Guattari. No início dos anos de 1990, chega a se encontrar com Guattari, com quem partilha a mesma curiosidade pelas tecnolo· gias mais modernas. Pierre Lévy vê inclusive nas novas tecnologias da informação as bases de uma ecologia cognitiva que não está muito distante da ecosofia de Guattari, fundadora

de uma tecnodemocracia participativa. Não se trata mais de pensar a oposição entre o ho-

mem e a máquina, mas seus modos de conexão. Pierre Lévy exuma o passado da cibernética e vê em Warren McCulloch o primeiro a estabelecer uma ligação entre o funcionamento neuronal e os circuitos lógicos, lançando as bases do conexionismo. Pierre Lévy se inspira ainda na ideia de rizoma que se torna nele o modo mesmo de difusão do conhecimento em ramificações múltiplas, que se tornou possível graças às novas tecnologias da inteligência. Os conceitos deleuzo-guattarianos têm também um prolongamento bastante decisi· vo na nova antropologia das ciências, nascida no Centro de Sociologia da Inovação (CSI), que tem como objeto de estudo os processos emergentes de inovação científlca e tecnológica, segundo Michel Callon e Bruno Latour. As descobertas que permitem conturbar as ligações sociais são elas próprias a resultante de múltiplos efeitos das redes. Envolvem ao mesmo tempo os laboratórios, as políticas públicas, os financiamentos privados, as relações com os consumidores potenciais ... Uma das noções centrais dessa antropologia das ciências é a noção de redes, em uma acepção inédita e muito ampla do termo: 'As redes são ao mesmo tempo reais como a natureza, narradas como os discursos, coletivas como a sociedade"51. Ao contrário de seu sentido usual, a utilização do termo rede em antropologia das ciências corresponde à vontade de manejar uma noção que permite evitar qualquer visão territorializada da sociedade. Ela se demarca

assim das noções de campo, de subcampo, de instituições, que pressupõem conjuntos homogêneos deflnidos por tipos de ações, regras de jogo particulares. A segunda característica dessas redes é a mistura que implicam entre humano e não humano, sujeitos e objetos. Bruno Latour retoma a noção deleuzo-guattariana para apresentar essas redes como uma dupla máquina de guerra, contra a ideia de estrutura e contra o interacionismo. Contudo, esse poderoso operador tem alguns inconvenientes, porque implica um vazio no nível do conteúdo que conduz a uma visão empobrecida do mundo em que vivemos. Evidentemente. o dispositivo permanece desligado de todo conteúdo para poder acolher novos elementos, pela preocupação de não pré-formar a fim de seguir melhor os atores, as controvérsias, as configurações mais diversas. Bruno Latour se reconhece mais na filiação de Epicuro, de Espinosa ou de Nietzsche do que na linha· gero dos fllósofos da consciência, Descartes, Kant e Husserl. Entre os fllósofos contemporâ· neos, ainda que tenham pouca utilidade para definir um programa de pesquisa em ciências sociais, dois fllósofos desempenham um papel fundamental: Michel Serres e Gilles Deleuze. Pode·se dizer que a noção de rede é bastante próxima do rizoma em Deleuze. Contudo, a noção deleuziana não é inteiramente similar àquela de redes utilizada pela antropologia das ciências. Para esta, a intenção primeira, ao contrário da noção deleuziana, é de reterrito~ rializar. Em segundo lugar, a noção de rizoma é fluente demais, sem pontos de parada. portan· to não muito adaptada aos mecanismos que se estabelecem quando a ciência, a técnica e o mercado se conjugam. Por outro lado, em Michel Ca!lon e Bruno Latour, a visibilidade do fato científico está ligada à cadeia de tradução ao longo dos des· !ocamentos múltiplos que permitem deduzir a heterogeneidade inicial de discursos, de labo· ratórios e de recursos mobilizados. Sobretudo, essa antropologia das ciências inscreve-se na ruptura com o projeto moderno de separação, de grande distância entre o mundo natural, os

419

objetos, de um lado, e os sujeitos, de outro. É com o kantismo que o projeto moderno toma forma: 'As coisas em si tornam-se inacessíveis enquanto que, simetricamente, o sujeito tran~~ 2 cendental se afasta infinitamente do mundo"" . Uma vez estabelecido um corte, as tentativas para superá-la se revelam como impasses. Assim, essa antropologia das ciências busca as vias de uma outra metafísica e se junta a toda a busca filosófica de Deleuze em sua preocupa~ ção de reencontrar uma ligação orgânica entre o homem e a natureza, o que implica uma críti~ ca do hegelianismo que, por sua vez, aumenta de fato o abismo que ele quer transpor entre o polo do sujeito e o do objeto. O projeto feno· menológico se desenvolve em uma tensão "in~ superável" 53. Os quase-objetos sã? ao mesmo 1 tempo "reais, discursivos e sociais""' , a partir do postulado fundador da antropologia das ciên· cias. Bruno Latour preconiza inverter a fórmula habitual dos modernos segundo a qual seria preciso partir de um processo de purificação para clivar o que vem do sujeito e o que é extraído do objeto e, em um segundo momento, multiplicar os intermediários a fim de chegar a uma explicação situada no ponto de contato entre os dois extremos. Ao contrário desse pro~ cedimento, Bruno Latour propõe transformar o ponto de clivagem/encontro em ponto de par· tida da pesquisa que conduz para os extremos, sujeito/ objeto: "Esse modelo de explicação per· mite integrar o trabalho de purificação como 55 um caso particular de mediação'' • O "Post-scriptum sobre as sociedade de controle" de Deleuze, publicado inicialmente em L'Autre ]ourna/, de Michel Butel. em !990, e reproduzido em Pourparlers, constitui para muitos analistas da sociedade em suas mutações mais recentes uma matriz teórica essencial, pois permite pensar ao mesmo tempo na escala macro da sociedade e na escala micro da empresa. É o caso, por exemplo, para Ber· nard Stiegler, que o toma como ponto de par· tida de suas reflexões sobre a miséria simbólica. Stiegler deplora o corte entre o político e a estética, que tem como efeito funesto uma queda da participação na criação estética. Ele

420

Desse

retoma ainda de Deleuze a ideia de buscar novas armas apropriadas a essa nova sociedade de controle que ele se propõe qualificar de hiperindustrial. A guerra, portanto, não aca~

bou, ainda que seja transposta: "Essa guerra se tornou uma guerra essencialmente estética'' 56• Nessa era contemporânea, é preciso reencontrar, à maneira de Simondon e de Deleuze, os processos de individuação enquanto proces-

sos ao mesmo tempo físicos e coletivos "onde eu e nós são duas faces de um mesmo processo, a distância entre eles constituindo também a dinâmica do processd'57• O filósofo Pierre-Antoine Chardel, que inicialmente consagrou seus trabalhos à hermenêutica e à desconstrução derridiana se voltou em direção a Deleuze e Guattari para responder aos desafios colocados pelas novas tecnologias. Professor do Instituto Nacional das Telecomunicações, onde leciona ciências humanas, criou um grupo de pesquisa inter~ disciplinar para abordar as questões transver-

sais ao mes:rn'ó tempo éticas, tecnológicas, de organização e de sociedade (ETOS). Na sociedade cada vez mais padronizada, coloca-se de fato a questão da preservação da multiplicidade como condição de possibilidade da criatividade. "Toca-se aí em uma questão de ordem ética, ligada à estética, isto é, de estética como prolegômeno a uma ética, para usar um termo caro a Ricceur" 58•

Uma atualidade crescente Um dos sinais da expansão desse pensamento deleuzo-guattariano e da explosão de seus usos mais diversos é a profusão de artigos,

obras, encontros e outras manifestações que marcaram o 10º aniversário da morte de Deleuze, em 2005. O Centre Beaubourg rendeu-lhe uma dupla homenagem organizando um 'Abecedário para Gilles Deleuze" em 2 de novembro de 2005, durante o qual numerosos especialistas, testemunhos e amigos vieram apresentar uma faceta de Deleuze em ordem alfabética, tudo entrecortado po~rdocumentos sonoros

Gilles Deieuze & Félix Guattari

e filmados, terminando com um concerto de Richard Pinhas. Na Biblioteca Nacional da França, a France Culture organizou um gran~ de encontro, coordenado por jacques Munier, com a participação de Clément Rosset, Gérard Fromanger, Anne Sauvagnargues, Toni Negri e Paola Marrati. Toda uma série de livros revela a fecundidade sempre manifesta desse pensamento nos campos mais diverso&· a arti9, sua . ']' voz60, a psiCana 1se61 , o tempo62, as fontes de seu 63 pensamento , sem contar as coletâneas coletivas de contribuições sobre este ou aquele as~ 64 pecto de sua filosofia , e reedições65, aulas em 66 forma de CD ou ainda seminários 67 . Um campo particularmente receptivo aos conceitos de Deleuze e Guattari é o do urbano da arquitetura. O filósofo do urbano Thierry Paquot lembra que o meio dos urbanistas era sobretudo foucaultiano nos anos de 1980: "Embora publicado em 1980, Mil Platôs não penetrará espontaneamente nesse meio" 68• Só mais tarde, ao longo dos anos de 1990, os conceitos deleuzo-guattarianos são utilizados pelos arquitetos, urbanistas e paisagistas: "Para mim, Mil Platós é um livro mágico, um livro para ler sem parar e que a cada nova leitura traz seu lote de questionamentos"69• A difusão e a apropriação desses conceitos, como sempre acontece, não deixa de ter excessos. Assim, a dobra barroca é acomodada a todas as situa~ ções sem discernimento. Toda arquitetura se dobra, desdobra, redobra. Mais seriamente, desde o final dos anos de 1990, o conceito de desterritorialização se expande com um forte valor heurístico, ainda que seu uso geralmente esteja um pouco defasado em relação à significação que lhe atribuem Deleuze e Guattari em seu par territorialização/ desterritorialização: "Esse conceito é compreendido muitas vezes como uma forma de desligamento do lugar sob o efeito da globalização, uma espécie de deslocalização, a exemplo das indústrias que deixam esta ou aquela região por países onde os salários são mais baixos"70, Thierry Paquot consagra uma parte de seu ensino no Instituto de Urbanismo da Universidade Paris-XIl à apresentação das contribuições de Deleuze

e Guattari, pois esses dois autores permitem compreender melhor o que poderia ser uma geografia existencial do humano na hora das redes fora do solo. Chris Younes, filósofa do urbano, responsável pela Rede Filosofia, Arquitetura, Urbano e professora na Escola de Arquitetura de Paris-La Villette, foi aluna de Deleuze em Lyon em 1960. Ela avalia agora com seus próprios alunos a importância de que se reveste a obra dele no campo do pensamento da cidade, da arquitetura e, mais amplamente, dos territórios do urbano: "Eu o utilizei bastante no campo da arquitetura e da cidade com meus alunos. Se há um filósofo que eles citam abundantemente, é Deleuze"n. Lançam-se na leitura de Deleuze-Guattari por eles próprios, mesmo sem que lhes proponham. Retêm sobretudo algumas temáticas recorrentes que lhes servem de instrumentos de leitura das mutações mais contemporâneas que tocam o fenômeno urbano: "Três coisas voltam sem~ pre: a questão da dobra, os rizomas e a noção de espaço liso e espaço estriado"n As transformações do urbano, o periurbano, os movimentos pendulares tornam cada vez mais central a questão dos fluxos, da errância, dos deslocamentos no espaço segundo movimentos alternativos de desterritorialização e reterritorialização. Além disso, o rizoma inspira a figura urbana proliferante e ao mesmo tempo conectada em todos os pontos, todo esse sistema invisível que estrutura os territórios do urbano em sua expansão. A noção de experimentação de travessia do vivido também está totalmente sintonizada com as pesquisas atuais sobre o espaço habitado, sobre o primado dos usos, da prática, sobre um certo construtivismo teórico. O filósofo Jean Attali, professor em arquitetura, abre um grande espaço ao pensamento de Deleuze e Guattari, não tanto para comentá-lo, mas como caixa de ferramentas para pensar a cidade 7::~, contlrmando sua in~ fluência internacional no meio dos arquitetos: 'A tradução inglesa do livro de Deleuze A Dobra (The Fold, 1993) encontrou forte eco nas

421

escolas de arquitetura nos Estados Unidos e na Inglaterra. O conceito filosófico vinha reforçar o interesse pelas geometrias não métricas, pelo cálculo assistido por computador de 'superfícies flexíveis' ou de formas aleatórias"74 • O arquiteto nova~iorquino Peter Eisenman toma emprestados atualmente muitos dos concei~ tos de Mil Platôs e sugere como exemplo uma definição ampliada da noção de diagrama. Encontra~se também uma fecundidade singular da obra deleuzo-guattariana no campo da epistemologia do corpo tal como a concebe Bernard Andrieu, que acaba de organizar um 75 volumoso Dicionário do Corpo , depois de ter publicado outras obras, entre as quais um "Que sais-je?" [O que eu sei"] sobre A Neurojisiologia (1988). Professor na universidade de Nancy, Bernard Andrieu formou-se em Bordeaux entre 1978 e 1984. Engajando-se no terreno da epistemologia das ciências humanas, apropria~se então da obra de Deleuze e retém sobretudo seu conceito de "dividual", que transfOrma em "divíduo'', para sustentar seu ponto de vista so~ bre o corpo disperso e resistir ao reducionismo de certas correntes das neurociências. Andrieu se sente próximo da concepção de Deleuze que não privilegia a entrada individual, mas de processos de individuação a partir de corpos fracionados, divididos. Em Deleuze e Guatta~ ri, Andrieu encontra uma fllosofia próxima da biologia, do mundo do ser vivo - uma reflexão sobre o Ser, mais do que uma epistemologia do ser vivo-, e considera fundamental a contribuição deles, tanto quanto a de um Merleau-Ponty, de um Ruyer ou de um Pradines, para rebater as tentações reducionistas. A obra de Deleuze e Guattari está trabalhando, inclusive nos círculos. filosóficos, nos filósofos que parecem a priori distantes deles. É o caso, por exemplo, do diretor da revista Esprit, Olivier Mongin, que se inspira mais em RicCBur, Lefort, Merleau-Ponty ou Arendt. Contudo, Deleuze desempenha para ele um papel de guia constante, instigando a pensar fora dos esquemas estabelecidos: "Há dois autores que leio regularmente e que me reconduzem à filo76 sofla, que são Ricc:eur e Deleuze" •

I

422

Gilles Deleuze & Félix Guattari

Dosse

Se Mongin não compartilha o radicalismo político de Deleuze, nem seu anticristíanismo,

encontra nele o que aprecia particularmente em Ricc:eur, essa abertura ao extrafilosófico, essa maneira de dar respostas filosóficas a questões que têm sua origem fora da filosofia. Evidente~ mente, Olivier Mongin não segue Deleuze em sua recusa de toda mediação: "Não há Cristo para ele, não há boa mediação, mesmo sacrifi77 cada. É um pensamento artista" • O interesse que Mongin sente pelo pensamento de Deleuze o conduz a traçar um paralelo assimétrico, per-

guntando-se se essa obra não se limita a expressar o excesso, e a de Ricceur, a encarnar a dívida78. Para além do não encontro entre esses dois filósofos e de sua diferença de estilo, não se pode reduzir sua oposição a um suposto confronto entre o humanísmo e o anti-humanismo teórico. Os dois se demarcaram da tradição, ambos acolheram o não filosóflco, ambos conduzem uma reflexão aporética, tudo em tensão, e privilegiam o "e", o pensar junto, o entrelaçamento. Ambos renunCíaram a Hegel e não se satisfazem com o formalismo kantiano, ambos atribuem a Bergson um lugar privilegiado, e "o acordo de Deleuze e Ricceur, caso se queira encontrar um, é essencialmente aquele que se refere ao 'ser para a vida (Espinosa), à desconfiança em relação a 'o ser para a morte' {Heidegger)"79. Restam dois ângulos mortos no horizonte espinosista de Deleuze: a questão do trágico, do mal, não tem sua pertinência, não mais que a questão colocada por Jean Nabert da "afirmação originária". Resta que Deleuze sacudiu fortemente a árvore genealógica, a lei do pai, para sair do sentimento de falta e da culpabilidade em um gesto cujo heroísmo desperta a euforia e ao mesmo tempo as forças da vida em uma sociedade que seria fundada por uma solidariedade entre irmãos, uma sociedade da aliança, mais que da filiação.

Notas l. Jean-Clet l\1ARTIN, Variations, La philosophie

de Gilles Deleuze, Payot, Paris, 1993. 2. Jean-Clet Martin, enft'évista com o autor.

intelectuais argelinos, movimentos de desempregados e de precários. 25. Vacarme, n. 34, inverno de 2006, diretor da publicação: Stany Grelet. 26. Mathieu Potte-Bonnevil\e, entrevista com o autor 27. Michael HARDT. Antonio NEGR!, Empire, op.

3. Gilles Deleuze, carta ajean-Clet Martin, 19 de janeiro de 1991. 4. Gilles Deleuze, "Lettre-préface" de 13 de junho de 1990, a jean-Clet MARTIN, Variations, La philosophie de Gi!les Deleuze, op. cit., p. 7. 5. Ibid., p. 8. 6. Arnaud VJLLANI, "Modernité de la pensée philosophique. II", Revae de l'enseignement philosophique, n. 2, dez. 1982-jan. 1983: "Deleuze et la philosophie microphysique", em

cit. 28. Manola ANTONIOU, Deleuze et l'histoire de la philosophie, Klmé, Paris, 1999. 29. Manola ANTONIO LI, Géopolitique de Deleuze et Guattari, L'Harmattan, Paris, 2004. 30. Ibid., p. 12-13.

Philosophie contemporaine, Annales de la faculté de lettres de Nice, n. 49, Les Belles Lettres, 1985; "Géographie physique deMille Plateaux", Critique, n. 455, 1985, p. 331-347. 7. Arnaud VtLLANJ, La Guêpe et l'Orchidée, op. cit. 8. Gilles Deleuze, carta a Arnaud Villani, 1o

9. 10. 11. 12.

de agosto de 1972, em Arnaud VILLAl\JI, La Guêpe et l'Orchidée, op. cit., p. 125-126. Frédéric Worms, entrevista com o autor. David Rabouin, entrevista com o autor. Thomas BENATOUIL, F'aire usage: la pratique du stoi'cisme, Vrin, Paris, 2006. Éric ALLIEZ (sob a di r.), Cilles Deleuze. Une vie philosophique, op. cit.; Keith ANSELL-PEARSON (sob adir.), Deleuze and Philosophy The Difference Engineer, Londres, Routledge, 1977. Gilles DELEUZE, lD.

13. 14. Le Magazine littéraire, "Leffect Deleuze. Philosophie, esthétique, politique", fevereiro de 2002. !5. David RABOUIN, ibid., p. 17. 16. Anne Sauvagnargues, entrevista com o autor. 17. Ela será publicada com o título Deleuze et l'art, PUE Paris, 2005. 18. CERPHI: Centre d'études em rhétorique, philosophie et histoire des idées. 19. Anne Sauvagnargues, entrevista com o autor. 20. lbid.

21. Anne SAUVAGNARGUES, Deleuze et l'art, op. cit., p. 12. 22. Multitudes, verão de 2002, diretor de publicação: Yann Moulier-Boutang. 23. Mathieu Potte-Bonneville, entrevista com o autor. 24. Esse grupo efêmero e muito heterogêneo se dispersa rapidamente e seus membros se voltam a ações militantes diversas, de tipo luta contra a AIDS, Act Up, grupos de apoio aos

I

31. Ibid., p. 252. 32. Philippe MENGUE. Deleuze et la question de La démocratie, L'Harmattan, Paris, 2003. 33. Philippe Mengue, entrevista com o autor. 34. lbid. 35. Philippe MENGUE, Defeuze et la question de la démocratie, op. cit., p. 32. 36. Jbid., p. I 04. 37. Jbid., p. 204. 38. Paul PATTON, "Deleuze et la démocratie", comunicação ao colóquio internacional organizado por Manola Antoniolli e Pierre-Antoíne Chardel: "Gilles Deleuze, Félix Guattari et le politique", 14-15 de janeiro de 2005, e Paris-VIII. 39. Arnaud VILLANI, "Comment peut-on être deleuzien?", em André BERNOLD, Richard PINHAS (sob adir.), Deleuze épars, op. cit., p. 82. 40. Jacob ROGOZ1NSKI, "La fêlure de la pensée", Le Magazine littéraire, n. 257, setembro de 1988, p. 46-48. 41. Jbid., p. 46. 42. Jacob Rogozinski, entrevista com o autor. 43. Jbid. 44. IsabeHe Stengers, entrevista com o autor, para François DOSSE, L'Empire du sens. L'humanisation des sciences humaines, La Découverte, Paris, !995: reed. La Découverte/Poche, 1997, p. 35. 45. Isabelle Stenghers, Cosmopofitiques, 6 volumes, La Découverte, Paris, 1996-1997. 46. Isabe!le Stenghers, entrevista com Virginie Linhart. 47. Daniel Franco, entrevista com o autor. 48. Pascal CHABOT, La philosophie de Simondon, Vrin, Paris, 2003.

423

49. Pierre VERSTRAETEN, 1sabel!e STENGHERS (dir.), Gilles Deleuze, Vrin, Paris, 1998. 50. Pascal Chabot, entrevista com o autor. 51. Bruno LATOUR, Naus n'avonsjamais été modernes, La Découverte, Paris, 1991, p. 15. 52. Bruno LATOUR, Naus n'avons jamais été modernes, op. cit.. p. 76 53. lbid., p. 79. 54. Ibid., p. 87. 55. Jbid., p. 107. 56. Bernard STIEG.LER, De la mis8re symbolique. 1. L'h""poque hyperindustrieLLe, Galilée, Paris, 2004, p. 41. 57. Jbid., p.96. 58. Pierre-Antoine Chardel, entrevista com o autor. 59. Anne SAUVAGNARGUES, Deleuze et l'art, op.

cit. 60. Claude JAEGLÉ, Portrait oratoire de Gi!Les Deleuze aux yeux jaunes, PUF, Paris, 2005. 61. Monique DAVID-MÉNARD, Deleuze et la psychanafyse, PUF, Paris, 2005. 62. Yann LAPORTE, Gifles Deleuze, L'épreuve du temps, L'l-Iarmattan, Paris, 2005. 63. Stéfan LECLERCQ (dir.),Au.x sources de la pensée de Gilles Deleuze. 1, Sils Maria, Mons, 2005. 64. Alain BEAUL!EU (dir. ), Gilles Deleuze. Héritage philosophique, op. cit.; André BERNOLD, Richard PINHAS (dir.), Deleuze épars, op. cit.

65. Gilles DELEUZE, Félix GUATTAR!, Qaest-ce que la phifosophie?, Minuit-poche, 2005; jean-Clet MARTIN, La Philosophie de Gilles Deleuze, Payot, co!. "Petite Biblioth€que"; Catherine CLÉMENT (di r.), Gilles Deleuze, Arc/lnculte, Paris, 2005. 66. Gilles DeLeuze Cinema, 6 CD, ''À voix haute", Gallimard, 2006. 67. A essa atualidade editorial acrescenta-se em 2005 a presença da obra de Deleuze-Guattari em algumas manifestações universitárias. No início de 2005, em 14 e 15 de janeiro, Manola Antonioli, Pierre-Antoine Chardel, Ivan La~ peyrox e Hervé Regnault organizam um colóquio internacional sobre "GHles Deleuze, Félix Guattari et !e politique'' em Paris-VIII (Manola ANTONIOLI, Pierre-Antoine CHARDEL, Hervé REGNAULT (dir.), Oilles Deleuze, Félix Ouattari et le politique, ed. du Sandre, Paris, 2006). No final do ano, em 2 e 3 de dezembro, Jean-Christophe Goddard organiza duas jorna-

424

Desse

das de estudo sobre O Anti-É'dipo na Universidade de Poitiers. 68. Thierry Paquot, entrevista com o autor.

75. Bernard ANDRIEU, Le Dictionnaire du corps

en sciences humaines et sociales, CNRS, Paris, 2006.

69. Ibid. 70. Ibid.

76. Olivier Mongin, entrevista com o autor. 77. Ibid.

71. Chris Younes, entrevista com o autor.

78. Olivier MONGIN, ''L'exces et la dette. Gilles Deleuze et Paul Ricceur ou l'impossible

72. Ibid. 73. Jean ATTALI, Le Plan et le Détail. Une philosophie de l'architecture et de la ville, ed. Jcquline Chambon, Nimes, 2001.

74. Ibid., p. 216.

conversation't, em François AZOUVI, Myriam

REVAULT DALLONES (dir.), Paul Ricmur, Ca·

Conclusão

hiers de l'Herne, Paris, 2004, p. 271-283. 79. Ibid., p. 282.

De 1969 até a morte de Guattari, em 1992, dois autores diferentes por sua formação, seu caráter, sua sensibilidade trabalharam juntos para construir uma obra excepcional. Durante esse longo período, funcionou o que se definiu, de maneira premonitória quando de seu primeiro artigo publicado em 1970, a propósito de Klossowski, uma "síntese disjuntiva'', um agenciamento coletivo de enunciação, o casamento improvável da vespa e da orquídea. Nossa pesquisa talvez tenha conseguido reti· ficar alguns "efeitos de ânguid' que tiveram como consequência minorar Guattari e mesmo fazê-lo desaparecer para se guardar apenas o nome de Deleuze. Tivemos a oportunidade de ver que Guattari foi não apenas, em um sentido, um provedor de conceitos e de pistas sempre novas, mas também, em outro sentido, um militante da experimentação social, politica e psiquiátrica em La Borde, no CERFI ou no CINEL. De ma· neira inteiramente original, Deleuze e Guattari criaram "máquinas de guerra'' e provaram sua validade e seus limites em situações concretas. Essas "experimentações" testemunham o caráter excepcional e inédito dessa colaboração. O que tornou possível um encontro tão fecundo? Com certeza um feixe de razões que

apenas a razão não pode restituir. Como compreender a amizade e a sedução mútua, motores essenciais dessa obra comum? EntretanM to, podem-se identificar alguns fatores e, em primeiro lugar, sua preocupação constante de sempre fazer prevalecer o movimento, contra qualquer rotinização. Daí o interesse comum pelas relações complexas e tensas entre os processos de subjetivação e as lógicas institu· cionais. Daí também a vontade de valorizar as linhas de fuga e os procedimentos de desestra· tificação. Esse gesto se enraíza sem dúvida em um mesmo adubo histórico, o do trauma da Segunda Guerra Mundial, que ambos atraves· saram muito jovens para tomar posição ali. Sua resistência à barbárie os diferiu, e pode-se mesmo sugerir a hipótese de q).le sua revolta pode ser um efeito defasado do sismo que re· presentou para o Ocidente e seus valores a vitória do nazismo. Criar novos conceitos é um imperativo absoluto: o traumatismo da barbárie nazista obriga a retomar com novo fôlego as tarefas do pensamento. Pensar impõe ser digno de um acontecimento atravessado muito cedo para ter participado ativamente dele. Encontra-se esse imperativo no cerne mesmo

426

Conclusão

da abordagem da história do cinema que Deleuze retoma de André Bazin 1• A filosofia não deve sair desarmada da travessia da tragédia histórica. Ao contrário, ela deve afirmar sua função: "Não há lugar para crer que não podemos mais pensar depois de

Auschwitz e que somos todos responsáveis pelo 2 nazismo" • Permanece um sentimento formulado de modo candente por Primo Levi: a "vergonha de ser um homem". Não que todos sejam responsáveis, mas todos foram conspurcados pelo nazismo: "Ê uma catástrofe, mas a catás-

trofe consiste em que a sociedade de irmãos ou de amigos passou por uma tal prova que eles já não podem mais olhar um para o outro. ou

cada um para si mesmo, sem um 'cansaço', talvez mesmo uma desconfiança''3. Depois de Auschwitz, não se pode mais ter a candura dos gre-

gos. Encontra-se aqui a exigência de uma outra metafísica que restabeleça a relação com o caos para criar forças vitais, e não mortíferas: "Esse sentimento de vergonha é um dos mais fortes motivos da fifosofia. Não somos responsáveis pelas vítimas, mas perante as vítimas'>4. Essa imperiosa necessidade de uma trans~ formação do pensamento é sentida intensa~ mente por Deleuze, como atesta sua corres5 pondência com Dionys Mascolo • Em seguida ao lançamento do livro de Mascolo, Autour d'un e.!fort de mémoire, em 1987, Deleuze lhe escreve para expressar sua admiração por ter renovado tão intensamente as relações entre o pensamento e a vida. Aproveita para indagar sobre a afirmação segundo a qual "um tal abalo da sensibilidade geral não pode deixar de conduzir a novas disposições do pensamen~ 6 to" • Deleuze pressente um segredo que Mascolo guardaria com ele. Mascolo lhe responde que esse aparente segredo "talvez não seja outro, no fundo, que o de um pensamento que desconfia do pensamento. O que não deixa de 7 causar afliçãó' • Não há vontade de segredo, acrescenta Mascolo, mas dessa aflição nasce o fundamento de amizades possíveis. Deleuze sugere em sua resposta uma inversão da ordem das coisas e lhe pede que considere a amizade coi:ho primeira, fundado-

Conclusão

ra, e não segunda, compensatória: "Em você, em Blanchot, é a amizade. O que implica uma reavaliação total da 'filosofia', pois vocês são os únicos a retomar ao pé da letra a palavra 8 philos" • A travessia dessa experiência e sua memória impõem exame profundo, a passagem pelo crivo da crítica de algumas teses canônicas da história do pensamento: "Como os conceitos [de Heiddeger] não seriam intrinsecamente conspurcados por uma reterritorialização abjeta?"9• Para preparar devires de liberdade, não é preciso se furtar diante da necessidade de criar: "Nós carecemos de resistência ao presente. A criação de conceitos requer em si mesma uma forma futura, ela requer uma nova terra e um povo que ainda não 10 existe" • Evitar a abjeção exige experimentar conceitos criados: "Pensar é experimentar, mas a experimentação é sempre isso que se está 11 fazendo" • Essencialmente filosófica, a experimentação não pode se prevalecer de qualquer território passado, presente ou futuro: "Jamais fui tocado por aqueles que dizem que é preciso superar a filosofia. Enquanto houver necessidade de criar conceitos haverá filosofia, pois essa é sua definição. E eles são criados em função de problemas. E os problemas evoluem ... Fazer filosofia é criar novos conceitos em função de problemas que se colocam hoje. O último aspecto seria: o que é a evolução dos problemas? As forças históricas, sociais, mas também um devir do pensamento que faz com que não se coloquem os mesmos problemas e não da mesma maneira. Há uma história do pensamento que não se reduz a um jogo de influência. Há todo um devir do pensamento que permanece misteriosd' 12 • Se Deleuze e Guattari sofreram lateralmente e a posteriori os efeitos do trauma da Segunda Guerra Mundial, ao contrário, participaram plenamente do acontecimento que foi maio de 1968. Particularmente sensíveis aos desafios do seu tempo. perceberam de imediato seu valor de ruptura instauradora. Todo o itinerário de Guattari desde o pós-guerra o conduziu à "preparação" desse acontecimento, em par-

ticular pela conexão que havia estabelecido entre as dimensões política e psicanalítica e que o conduzirá à crítica de qualquer tentação burocrática. Se Deleuze não é um militante revolucionário como seu futuro amigo Guattari, é, no entanto. esse acontecimento que prepara esse encontro e o torna frutífero. Sem maio de 1968, esse encontro, sem dúvida, jamais teria existido. O acontecimento 68 foi esse corte de fluxo necessário para liberar a combinação de suas forças criativas. Esse apego ao elã vital sentido jamais será negado nem por Guattari nem por Deleuze. Sua primeira obra comum, O Anti-Édipo, se enraíza com toda evidência no movimento de maio, da qual esboça as modalidades de um pensamento renovado do mundo. Com Guattari, Deleuze escreve ainda, bem mais tarde. em 1984, que não há renegados para dizer que um acontecimento possa ser superado; ele passa no interior dos indivíduos da mesma maneira que no interior da sociedade. Respondendo à tentação revolucionária das ciências sociais, "Maio de 68 é mais da ordem de um acontecimento puro, livre de toda causalidade normal ou normativa. Sua história é 'uma sucessão de instabilidades e de flutuações simplificadas'. Há muitas agitações em 68, mas não é isso o que conta. O que conta é que esse foi um fenômeno de vidência, como se a sociedade visse de um golpe o que ela continha de intolerável e visse também a possibilidade de outra coisa. É um fenômeno coletivo sob a forma: 'Do possível, senão eu sufoco .. :. O possível não preexiste, ele é criado pelo acontecimento. É uma questão de vida. O acontecimento cria uma nova 13 existência, produz uma nova subjetividade" . Dois acontecimentos, portanto, tornaram possível esse encontro, mas, em que consiste sua fecundidade? Em que esse clarão no céu do pensamento anuncia um paradigma novo? Para esses dois pensadores, trata-se de ir mais longe no descentramento do homem para melhor reemergir em seu meio vivo e reencontrar assim a unidade perdida, de desumanizar o homem para melhor humanizar a natureza, no que Pierre Montebello qualifica de "a mais hu-

427

mana das metafísicas do cosmo e a mais cósmica das metafísicas do homem posteriores à 14 revolução copernicana" • Não se trata, portanto, de exumar a velha metafísica que concede demais ao mesmo, mas de construir uma nova metafísica, fazendo remontar uma filosofia da natureza que dá lugar ao desenvolvimento de todas as diferenças, pois "O Ser de fato está do lado da diferença, nem um nem múltiplci>Is É esse o sentido mesmo da busca de Deleuze, puro metafísico como ele se reivindicava, arrastando seu amigo Guattari em uma aventura que começa no início dos anos de 1950. Foi essa busca que o conduziu a exumar as tradições esquecidas. desprezadas, vencidas, caídas em desuso: as de Tarde, Nietzsche, Bergson ... Estes tentaram formular uma metafísica nova que. ao invés de separar a consciência da natureza, encontraria a componente pela qual, como pensava Bergson, a consciência não é consciência de qualquer coisa: ela é qualquer coisa deslocamento maior em relação ao programa fenomenológico de Husserl. O mundo, diz Nietzsche, é um "mundo de 16 relações" : essa convicção, fio condutor na obra de Deleuze, é afirmada já em Lógica do Sentido na passagem do "é" ao "e', no primado do "e", e constantemente reafirmada. Assim, na entrevista concedida aos Cahiers du Cinéma em 1976 a propósito de)ean Luc Godard, onde o "e", bem além de uma valorização da relação, é promovido a matriz da diversidade, inauguração de uma nova metafísica: "O E não é mais uma conjunção ou uma relação particular, ele carrega todas as relações, e há tantas relações quanto E, o E não se limita a balançar todas as relações, ele balança o ser, o verbo ... , etc. O E, 'e... e... e..: é exatamente a gagueira criadora ... A 17 multiplicidade está precisamente no E" • Nessas condições, pensamento a matéria, até então dissociados no pensamento moderrio, podem se correlacionar. Como observa Pierre Montebello, essa uoutra metafísica" procurou uma via diferente daquela emprestada pela fenomenologia, virando as costas à intencionalidade para reencontrar uma relação menos mediada, mais direta entre o movimento das

i i

428

Conclusão

coisas e o das ideias, o que deve passar por uma

8. Gilles Feleuze, carta a Dionys Mascolo, 6 de

suspensão provisória da consciência. "Imaginar

agosto de 1988, ibid., p. 307. 9. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, Qph, p. !04. 10. Ibid., p. !04. 11. Ibid., p. 106. 12. Gilles Deleuze, A.

uma ultrapassagem do homem sobre a linha de

crista do cosmo, levar a humanidade à altura do poder imanente que atravessa o universo. Reencontrar o envolvimento criativo do ser no homem para iluminar e liberar em retorno sua ação e sua criatividade no cerne da naturezà' 18: tal terá sido a ambição dessa "outra metafísica".

Notas L Ver capítulo "Deleuze vai ao cinema''.

2. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, Qph, p. !02. 3. Ibid., p. 102. 4. Ibid., p. !03. 5. "Correspondance Dionys Mascolo-Gilles De-

leuze", Lignes, n. 33, março de 1998, p. 222-226; reproduzido em RF, p. 305-310. 6. Dionys MASCO LO, Autour d'un iffort de mémoire, Maurice Nadeau, Paris, 1987, p. 20. 7. Dionys-Mascolo, carta a Gilles Deleuze, 30 de abril de 1988, em RF, p. 306.

13. Gilles DELEUZE, Félix GUATTARI, "Mai 68 n 'a pas eu lieuH, Les Nouvelles littéraires, 3-9 maio 1984; reproduzido em Gilles DELEUZE, RF, p. 215-216. 14. Pierre MONTEBELLO, L' Autre Métaphysique, Desclée de Brouwer, Paris, 2003, p. 12. 15. Gilles DELEUZE, "Bergson 1859-1941", em MERLEAU-PONTY (dir.), Les Philosophes cél€bres, Mazenod, Paris, 1956; reproduzido em ID,p. 33. 16. NIETZSCHE, CEuvres completes, Fragments posthumes, XIV 14 (93). 17. Gilles DELEUZE, "Trois questions sur Sixfois deux (Godard)", Cahiers du cinéma, n. 271, no~ vembro de 1976; reproduzido em PP, p. 65. 18. Pierre MONTEBELLO, I.:Autre Métaphysique, op. cit., p. 305.

Índice

A ADA.MOV, Arthur, 85 ADLER,Alfred, v, 36-39, 50-51,72-73, 168-170, 198-199 ADLER, Laure, 4ü7 ADRIEN, Philippe, 206,218-219,349-350 AGACINSKI, Sylviane, 116 AGNELLI, Giovanni, 239 AGNEs B, 224-225,230,349 AJURIAGUERRA,Julian de, 46 AKERMAN, Chantal, 341-342 ALAJOUANINE, 1béophile, 85 ALLÉGRET, Yves, 50 ALLIEZ, Êric, v-vi, 139, 184-185, 197-198,218-219,240-241, 244-245, 261-262, 347-348, 358-359,367-368, 396-397,408, 411-413 ALLIO, René, 327-328 ALLOUCH,Jean, 185 ALPHANDÉRY, Claude, 233-234 ALQUIÉ, Ferdinand, 41,86-88, 98, 100-101. 103-105, 107, 122-123,305 ALTHUSSER, Louis, 73,77-78,105,157,191-192,245-246, 299-300, 384, 397 ALTMAN, Robert, 330-331, 338 ANDREOTT[, Giulio, 237-238 A.'t>J'DREW, Dudley, v, 330, 385-386 ANDIUEU, Bernard, v, 136-137, 421 ANGER, Didier, 316-317 ANKA, Paul, 360-361 ANSELL-PEARSON, Keith, 392-393 ANSELME, .Michel, 229 ANTONIOLI, Manola, v, vi, 100,107-108,117,218-220,400, 415-417,420 ANTONIONI, .Michelangelo, 118-119,330-331, 339-342 APERGHIS, Georges, 349-350 APPRILL, Olivier, v, 59-60

APTEKMAN,Alain, v, 17-18, 89-90 ARACAGÔK, Zafer, v ARAFAT, Yasser, 215-216, 260 ARISTÓTELES, 102-103 ARNOULT, Êric, 313-314 AR.ON, Raymond, 34-35,301 ARON, Robert, 84-85 AROUET. François, 120-121 AR.OUTCHEV, Pierre, 53-54, 77-78 ARRIEUX, C\aude, 37-38 ARTAUD, Antonin, 136-137, 149, 161-162, 167-169, 176-177, 269, 334-335, 354, 364, 393 A!lTIERES, Philippe. v, 256 ASADA, Aldra, 393-394 ASTIER, Frédéric, 294·295 ATKINSON, Ti-Grace, 380-382 A'fTALI,jacques, 313-315 ATTALI,Jean, 421 AUBHAL, François, v, 248, 306-308 AUDOUARD, Yvan, 89-90 AUFFRAY, Daniêle, v AUJAC, Henri, 233-234 AUJALEU, Dr, 233-234 AUMONT,jacques, v, 335-336 AUSTIN,john, 195-196, 204,350 AXELOS,Kostas, v, 87-90, 105-177 AYALA, 15-16 AYME,jean, 46, 59-60, 72-73 AZOUVl. François, 421-422

B BAADEH,Andreas, 243-245,259-260 BACH, Jean-Sébastien, 58-59, 352, 361-362 BACHELARD, Gaston, 84-85, 88, 99, 265 BACON, Francis, vi, 361-364

430

Índice

Índice

BADIOU, Alain, 141-142,285-287, 299-306,407-408 BAECQUE, Antoíne DE, 327-330 BAEZ, Jean, 382

BAILLY-SALIN, Dr Pierre, 233 BAISSETTE, Gaston, 45-46 BAKHTINE, i\tlikhaY!, 340-341 BALESTRINI,

Nanni, 238-239

BAL!BAR, Étíenne, 285-286

BALMAIN, Pierre, 94-95 BALVET, Pau!, 44-45, 57 BA1VIBERGER, Jean-Pierre, 88, 254-255, 294-295 BARATIEH,jacques, 50

BARDOT, Brigitte, 89-90 BARDOT, Pierre. 116 BARJONNET, P., 228-229 BARNES, Mary, 275

BARRAT, Martine, 382-383 BARRAULT,jean-Louis, vi, 149,397-398 BARTH, Hans, 115

BARTHES, Ro!and, 67-68, 105, 284-285,288-289,360, 362-363, 379, 383 BASAGLIA, Franco, 151-152,274, 277-278,280-281, 397-399 BATAILLE, Georges, 85,105, 113,117 BAUDELAlRE, Charles, 83

BAUDR!LLARD,jean, 180, 261,305-306 BAUDRY, Michel, 59-60 BAUDRY, Pierre, 335 BAUER, Charles, 248 BAYET, Guy, 88 BAZIN, André, 327-330; 385, 425-426 BEAUBATIE, Yannick, 92, 93, 292,408 BEAUFRET,jean, 87-88 BEAULIEU, A\ain, v, 133-136, 141, 219-220, 364-365, 386, 420 BECK,ju\ian, 149-150,395 BECKE,joseph, 275 BECKETT, Samuel, 14-15,75, 176,355, 363-364,407-408 BEETHOVEN, Ludwig Van, 34-35 BEINARD,jean, 233-234 BÉJART, Maurice, 75 BELAVAL, Yvon, 365-366 BELLOCCHIO, Marco, 351 BHLOUR, Raymond, v-vi, 18-19, 102, 126, 135-136, 264-265,326, 330-331,333-335,358-359, 368 BENASAYAG, Michel, 404-405 BENATOUIL, Thomas, v, 97-98, 123, 262-263,412-413 BENE, Carmelo, 328, 362-363 BENjAMIN, Walter, 38-39 BENOIST,jean-Marie, 308 BENSAYD, Daniel, 228-229 BENSMAi'A, Réda, v, 386-387 BENVENISTE, Émile, 193 BERARDI, Franco, vulgo ~Bifo", v-vi, 217, 239-242,399 BERGER, Denis, v-vi, 36-39, 414-415 BERGMAN, Ingmar, 93-94, 118-119 BERGSON, Henri, 21-22,88-89,91-93,97-98, l02-103, 109-110, 113, 117-122, 141-143, 185, 193,268,302-303, 305-306, 325-326,331-333,335, 338-339,341,367-368,385, 397, 400,412-413,421-422,427 BERIO, Luciano, 367 BERLJNGUER, Enrico, 237-238, 241-242 BERNOLD, André, 117, 152-153,.~2, 377, 416-417, 420 BERROYER,jacky, v-vi, 403

BERTUCELLI,jean-Louis, 327 BESSE,jacques, 49-50 BEUYS,Joseph, 352 BEY, Hakim, 388 BIANCO, Giuseppe, v, 87-88, 98-99, 102-103, 117, 120, 399-400 BIANCO,Jean-Louis, 313-314 BIERCE, Ambrose, 93-94 BINDÉ,jérôme, 335-336 BIOY CASARES, Adolfo, 326-327 BIRMAN,jo8\, 197-198 BISER, Eugen, 116 BITTAR,jaco, 395-396 BLANC, Louis~Pierre, 233"234 BLANCHAUD, Pierre, v, 191,275-276,292-294,355 BLANCHOT, Maurice, 105, 117, 135-136, 269,303-304,315, 358-359, 426 BLOCH·LAINÉ. François. 233-234 BLONCOURT, Élie, 38 BLONDEL, Éric, 40-41,116 BLVM, Léon, 34-35, 82-83 BLUM, Robert, 34-35 BLVMENTHAL, Simon, 36·37, 39 BOBET, Louison, 92-93 BOGUE, Ronald, 383-384 BOISSET, Robert, 327 BOLOGNA, Sergio, 238-239 BONAL, Denise, 350 BONELLIHBASSANO, Novella, v-vi BONITZER, Pascal, v, 327-329, 335-336 BONNAFÉ, Lucien, 44-46, 233-234 BONTA, Mark, 219-220 BONTENS, 256-257 BORG,]ean-Luc, 206 BORGES, Jorge Luis, 205-206, 326-327 BORREIL,Jean, 287 BOUANICHE, Arnaud, 21, 108 BOUDIAF, Mohammed, 39 BOULEZ, Pierre, 360-361,367 BOUNDAS, Constantin, v, 383-386, 388 BOURDET, CJaude, 38, 245 BOUIU)IEU, Pierre, 260 BOURG,ju\ian, v, 385-386 BOURGOIS, Christian, v, 230,242-243, 245-246, 326-327, 347-349 BüURRlAUD, Nicolas, 352 80USQUET,jo8,118-119, 135,153 BoYER,jean-Claude, 227-228 BRAIDOTTI, Rosi, 388 BRAUDEL, Fernand, 170,211-212, 226-227, 397 BREDIN,jean-Denis, 245-246 BRESSON, Robert, 329-330, 340-341 BRIERE,jack, v-vi, 49-50 BRIERE,]ean, 316-317 BRIVETTE, V-vi, 36-37 BRUHAT,jean, 36-37 BUCHANAN, lan, 387-388 BUCHANAN, Thomas, 72-73 Bucr-GLUCKSMANN, Christine, v, 367-368,408 BUFFET, 256-257 BUFFIERE, Gérard, 72-73 BUIN, Yves,2l8-219

BuNUEL. Luis, 329-331 BURGELIN,jean, 84-85 BURNIER, Nlichel-Antoine, 165 BURROUGHS, William, 380 BUTEL, Nlichel, v-vi. 23. 38-39,52--54, 72-73, 76-78, 407-408,419-420 BUTOR, Michel, 84-85, 88 BUYDENS, fv:lireille, 360-361, 364-365

c CACHE, Bernard, v, 366-368, 408 CACHIN, Yves, 36-37 CAGE,john, 149,349-350,367,380 CA!LLOIS, Roger, 85 CALASSO, Roberto, 116 CALLEGARI, Roberto, 399-400 CALLON, Michel. 418-419 CALVEZ, Paul, 36-37 CALVI. Fabrizio, 239-240 CAlv!AÜER, Odette. 82-83 CAMUS, Albert, 33 CANGU!LHEM, Georges, 46, 87-88, 99-101, 103-104, 113-114, 117-118, 204, 265, 284-285, 305 CARBONNIER, Arnaud, 350 CARCASSONNE, Philippe, 135, 330-331 CARROLL, Lewis, 135-137, 193. 269, 354 CARTRY, .Michel, v-vi, 36-39, 50-51, 72-73, 168-170, 198-199 CARUSO, lgor, 397-398 CASALIS, Georges, 245 CASAlv!AYOR, Louis, 256 CASSAVETES,John, 338, 341-342 CASSIRER, Ernst, 365-366 CAS'l'EL, Robert, 171-172, 183, 277-278 CASTILLO, Rodolfo Alvarez del, 397-398 CASTORlADIS, Corne!ius, 230, 279-280 CATALA,jean-Michel. 75-78 CAu,Jean, 88 CAUNES, Georges DE, 89-90 CAVAILLES,jean, 102-103,289-290 CAWS, Peter, 379-380 CÉLINE, Louis-Ferdinand, 260-261 CERTEAU, Michel DE, 153, 196, 384-385,387-388 CHABAN-DELMAS,Jacques, 223-224, 228-229 CHABOT, Pascal, v, 139-140,418 CHAHINE, Youssef, 327-328 CHAIGNEAU, Hélfme, 59-60 CHAMPETIER, Caroline, 328 CHAPLIN, Charlie, 61-62, 336 CHAPSAL, Madeleine, 176-177,286 CHARDEL, Pierre-Antoine, v, 416-417,419-420 CHARLES, Daniel, 380 CHARTIER,Jean-Paul, 158-160 CHASSEGUET-SMIRGEL,janine, 179-180 CHÂTEAU, François, 164-165,202,208-209,336 CHATELET, Albert, 38 CHÂTELET, François, 17-18,36-37,88-90, 101-102, 117, 119, 153, 176-177, 192,228-229,285-291.301-302,306-307, 314-315, 326-327,384,406 CHÃTELET, Noelle, v, 176-177, 288-289, 326-327, 406 CHESNEAUX,jean, V, 36,240-241,243-245, 290-291, 316-317,346

431

CHEVALIER, Pierre. 291, 294-295 CHEVENEMENT,jean-Pierre, 314-315 CHOMARAT, FranÇOÍS, 140-141 CHOMSKY, Noam, 196 CHOULET, Phi\ippe, 377 CIMENT. fv:lichel, v, 93-94, 330~331 CIXOUS, Hé\Cne, 256-257 CLARK,judy, 381-382 CLASTRES, Pierre, 17-18,38-39, 169-170, 177, 198-199, 211, 216-217,395 CLAUDEL, Paul, 93-94 CLEMENS, Éric, 116 CLÉMENT. Alain, 85 CLÉMENT, Catherine, 162~ 163, 166. 183-184, 208-210, 379-380,420 CLINTON, Bil\, 216 CLÍSTENES, O ATENIENSE, 199-200 CLOAREC, Eve, 14, 17, 29-30,32-33,36, 39-41,49, 58-59, 64-67, 157-158,345-346,359 COCHET, Yves, 316-317 COCHRAN, Terry, 386-387 COHEN-LEVINAS, Danie!le, 408 COHN-BEND!T, Daniel, 38~39, 147-150, 242, 245, 317, 399 COHN-BEND!T, Gaby, v-vi, 38-39 COLEMIN,jean, 59-60 COLLI, Giorgio, 116 COLLOMB, Henri, 168-169 COLOMBEL,jeanette, 117-119,152-153 COLUCHE, 248-249, 318 COMTE. Antoine, 259 COMTESSE, Georges, 291-292 CONAN, Éric, 244-245 CONAN, Michel, 223-224,358 CONDOMINAS, 232 CONLEY, Tom, 386-387 COOPER, David, 151-152, 274-275,277-278,280-281, 397-398 COPI, Fausto, 92-93 COPPOLA, Francís Ford, 330-331 CORMANN, Enzo, 206,218-219,350,403-404 CORTESSE, Pierre, 88 CoT, Catherine, 72·73 COTTET, Serge, 162 COUCHOT, Hervé, 262-263 COUTURAT, Louis, 365-366 CREMONESI, Luca, 399-400 CRESSOLE, lvfichel, 181-183 CRESSON, André, 99 CRISIPO, O ESTOICO, 134-135 CRITON, Pasca\e, v, 295, 361-363 CROISSANT, Klaus, 243-245, 247,259-260 CROZIER, Michel, 223 CuNY, Alaln, 363 CUSSET, François, 379, 387-388 CUTROFELLO, Andrew, V, 385 CUVIER, Georges, 140-141

D 0ADOUN,Roger.l7-18, 177 DAGOGNET, François, 117-118 DA1VE,jean, 89-90, 208-209, 291,382

432

Índice

DALLE, Mattbieu, 250-251 DANEY, Serge, 327-330,335-338

DANIEL,jean-Pierre, 67-68 ÜANIÉLOU,jean, 85

ÜANTO, Arthur, 380 DARRIEUX, Daniel!e, 335-336 DASSAULT, Mareei, 225 DAUMÉZON, Georges, 46-47, 234 DAVID, Yasha, 205-206

DAVID-MÊNARD, Monique, 420 DAVY, Marie-Magdeleine, 83-85, 255,363 DE GAULLE, Charles, 89-90 DE SICA, Vittorio, 339 DEBRAY, Regis. 246-247 DEBUSSY, Claude, 362,367 ÜEFERT, Daniel, 256-257, 263,268 DELACAMPAGNE, Christian, 209-210 DELANDA, Manuel. 387-388 ÜELATTR.E, Alain, 88-89

DELAY,jean, 85 DELCOURT, Xavier, 306-308 DELEUZE, Fanny, v, vi, 254 DELHOMME,Jeanne, 116

ÜELIGNY, Fernand, 54,67-70,72-73, 230-231, 278-280,299 DENIZET,jean, 233-234 DEPARDON, Raymond, 243-244 DEPUSSÉ,jacques, 72-73 DEPUSSÉ, Marie, v-vi, 52-54, 59-60, 63-64,66,67, 77-78, 274,348-349,402-403 DERJUDA,]acques, 116, Ú0-171, 284-286.290-291,314-315 373, 379, 383-385, 397, 407 ' DESCAMPS, Christian, v, 209-210, 245, 288-290,394, 407-408 DESCAMPS, Marc-Alain, 84-85, 102-103 DESCARTES, René, 41,99-101, 103, 107, 117-118, 124-125, 302-303,408,419 DESCOMBES, Vincent, 107-108 DESJAROIN, Alain, 317 DESPINOY, Maurice, 46 DEVILLE, Claude, 37-38 DEWEVRE, Brigitte, 256-257 DIATKINE, Gilbert, 72-73 DICKINSON, Emily, 386 DIDEROT, Denis, 90 D!OGkNE LAERCE, 134-135 DIÓGENES, O CÍNICO, 97 DjELLALI, 258-259 DMITRIENKO, Pierre, 88 DOBBELS, Daniel, 350 DOMENACH, jean-Marie, 176-177, 180-181, 256 DONATI,Arlette, 17-18,62-67, 345-346 DONNARD, Gis€le, v-vi, 245-246, 250, 404-405 DONZELOT,jacques, v, 180-181,256-257, 260-262 Dmuor,Jacques, 59-60 Dos PASSOS,John, 338 DossE, Florence, vi DOSSE, François, 60-61, 190, 384-385, 417 DOSTOIEVSKI, 373-374 DOTTI, Marco, 399-400 DOUBLET, Jean-Marie, v-vi, 149-150, 232 DOYLE, Conan, 358 DROIT, Roger-Pol, 100-101, 286-28-i;: 373, 404-405, 407-408

Índice

DUBILLARD, Roland, 72-73, 350 DUCHAMP, Mareei, 352 DUCROT, Oswald, 195-196, 204 ÜUDAN, Pierre, 32-33 DUFOIX, Georgina, 314 DUFRENNE, .MikeJ, 372 DUH.Al\1EL, Georges, 340-341 DULLIN, Charles, 50, 86 DUMAS, Pierre, 248 DUMONCEL,jean-Claude, v, 109-110, 125-126 DUMONT, René, 36,316-317 DUMOULIN, Huguette, 68-69 DUNS Scor,John, 266 DUPAVILLON, 313-314 DUPUIS DE LÕME, Hél€ne, v-vi ÜURAND, Any, 67-68 DURJNG, Élie, v, 122, 387-388, 412-413 ÜURKHEIM, Émile, 88-89, 138-140, 169-170 DYLAN, Bob, 382

E Eco, Umberto, 245 EIFFEL, Jean, 36 EINAUDI, 399 EISENMAN, Peter, 421 EISENSTEIN, Serguel, 329-330, 336-339, 362-363 EJZYKMAN, Claudine, 325-326 ~LKA.'iM, Mony. v-vi, 276-278, 376 ELUARD, Paul, 45-46 ENAUDEAU, Corinne. v, 290-291 ENGELL, Lorenz, 325-326 EPICTETO, 92-93, 262-263,412-413 EPICURO, 358-359, 419 EPSTEIN,jean, 339-340 ERIBON, Didier, 209-210,254-255, 258-259,267, 268 ESPINOSA, Baruch, v-vii, 14, 88,90-93,97-98,102-103,113114, 116, 118-119, 122-127, 133-134, 136-137 140-142 171 185, 214,216,263. 266-267, 286,292-294, 3o2-3o3, 358-359: 363-365, 377, 385, 412-413, 419, 421-422 ESTABLET, Roger, 105 EUSTACHE,Jean, 327, 341-342 EVANS-PRITCHARD, Edward Evan, 169-170, 198-199 EWALD, François, 18-19, 102, 126, 135-136, 232,260-261 ' 264-265

FERRAND, Guy, 79 FERRERl, Marco, 327 FERRO, Marc, 327-328 FERRY, Luc, 319, 385-386 FICHANT, Michel, 365-366 FICHAUT, Mme, 58-59 FICHTE, Johann Gottlieb, 143-144 FIESCHI,jacques, 330 FIHMAN, Guy, 325-326 FINK, Eugen, 116 FITZGERALD, Francis Scott, 135, 354-357 FLAM, Léopold, 116 FLAMAND, Paul, 84-85 FLEURIEU,Jean-René DE, 230 FLEUTIAUX, Pierrette, v, 356-358 FLINKER, Karl, 94-95, 358-360 FOREMAN, Richard, 380 FORNER, Alain, 74-76 FORTES, Meyer, 169-170, 198-199 FOUCAULT. Michel, vi, 22-23, 105, 115-117, 135-136, 162, 165-166, 176-177, 179-180, 182-183, 200,212, 223-228, 230-231,243-245,247-250,254-270, 284-286,293-294, 301-303,305-307,326-328,345-346,358, 360,362-363, 365-366, 373, 379-387, 392-394, 397,412-413 FOUCHET, Christian, 76-77 FOURNIER, Pierre, 316-317 FouRQUET. François, v- vi, 14-17, 44-47, 53-54, 76-80, 147-148, 224-231, 233-234, 345-346 FOURQUET, Geneviêve, 230-231 FRANCE, Anatole, 13-14, 83 FRANCO, Daniel, v, 281-282,418 FRANÇOIS, Claude, 361-362 FRANJU, Georges, 330-331 FRANK, Philipp. 203 FRAPPAT, Bruno, 279-280 FREGE, Gottlob, 193, 368 FREUD, Sigmund, 53-54,72-73,79-80,83,94-95,106,115, 117,120,126-127,136,137-138,157-161,165,167-168, 170-171, 175-177, 179-180, 183, 191, 203-204,226-227,261, 286,287,290-291.351,397-398,404-405 Fmoux, Claude, 286-287 FROMANGER, Gérard, v-vi, 19-20, 240-243, 245,349-351, 358-360,403-404,407-408,420 FROMENT, Renê, 233-234 FURTOS,Jean, 180-181

F FABBRI, Paolo, 347-348 FABRE, Saturnín, 335-336 FADINI, Ubaldo, 399-400 FAHLE, Olivier, 325-326 FANON, Franz, 57 FARBIAS, Patrick, v-vi, 403-4ü4 FARCI, Claude, 62-63 FASSBINDER, Rainer Werner, 327 FAVEREAU, Éric, 281 FAYE,jean-Pierre, v-vi, 19-20,67-68, 82-83,87-88,240-241 245,248-251,256-258, 260-261, 314-315, 326-327,406 ' FÉDIDA, Pierre, 158-160 FELICE,jean-Jacques de, 256,259 FELLINI, Federico, 118-119, 339-340 FERLINGHETTI, Lawrence, 382-383

G GAEoE, Édouard, 116 GALBRAITH, J. K., 265-266 ÜALETA, Robert, 392-393 GALLO, Max, 315 GALLUZI, Francesco, 399-400 GANCE, Abel, 329-330,337-338 GANDILLAC, Maurice DE, v, 83-85,88-89,94-95, 104-105, 113-114, 152-153 GARAUDY, Roger, 255 GARBO, Greta, 182-183 GARNAUD, Gervaise, v-vi GARREL, Philippe, 341-342 ÚASCHÉ, Rodolphe, 116 GAUCHET, Mareei, 232

433

ÚAUDEMAR, Antoine DE, 322, 404-405, 407 GAUGUIN, Paul. 97 GAVANIER, Pierre, 233-234 GAY.)ean-Paul, 147-148,404-405 GEISMAR, Alain, 147-148, 256 GENET,Jean, 227-228, 258-259 ÚENOSKO, Gary, 384-385 GENTIS, Roger, v, 44, 46, 59-60, 175, 278-280 ÚEOFFROY SA!NT-HILAIRE, Étienne, 140-141 GJL,]osé, 304-305,408 GILSON, Étienne, 84-85 GILSON, René, 335 GINSBERG, Allen, 167-168,347-348, 382 GINZBURG, Carlo, 246 GIRARD. Christian, 394-395 GIRARD, Phi!ippe, 36-39, 157 ÜIRARD, René, 179-180 GISCARD D'ESTAING, Valéry, 228-229,248-249 GLASS, Phi!ip, 349-350, 361-362 GLISSANT, Édouard, 347-348,356 ÜLOWCZEWSKI, Barbara, 218-219 GLUCKSMANN,André, 306-308, 367-368 GüBARD, Henri, 204-205 GODARD,Jean-Luc. 69-70, 117-118, 248, 325-328,330-331, 336,341-342,427 GoDDARD,]ean-Christophe, v-vi, 21. 143-144, 185,420 GODZICH, Wlad, 379-380 GOEBBELS,joseph, 337-338 GOETHE,Johann Wolfgang Von, 34-35,40-41, 204-205 ÜOLDMAN, Pierre, 75-76, 248 GOLDMAN, Sacha, v-vi, 317-318.322, 402-405 GOLDSCHM!DT, Victor, 134-135, 143-144 GONZALES, Fernando, v, 397-398 GOODCHILD, Philip, 393 GORBANEVSKAi'A, Natalia, 251 GORZ, André, 75 GOYA, Francisco, 364 GRANDJOUAN, Fanny, 94-95 GRASS, Gérard, 225 GRAZ!A, Maria, 281-282 GRECO (E!), 367 ÚREEN, André, 176-179 ÜRELET, Stany. 415 GRENIER,jean, 84-85 GRIAULE, Mareei, 169-170 GruFFITH. Thomas Ian, 338-339 GRISET, Antoine, 76· 77 GRISET, Gérard, 362-363 ÚRONDIN,jean, 386 GROS, Frédéric, v, 262-263, 267-268,407-408 GROSSBERG, Lawrence, v, 392-393 GROSZ, Elizabeth, 388 GRUMBERG,Jean-Claude, 350 GRUNBERGER, Bela, 179 ÚRUSON, Claude, 233-234 GUATTARI, Bruno, v-vi, 63-65,249-250 GUATTARI, Emmanuelle, vi, 64-65, 348,402-403 GUATTARI,jean, v-vi, 29-30,33, 36, 64-65,403-404 GUÉRIN, Daniel, 245 GuÉROULT, Martial, 88,97-98, 115,267,365-366 GUIBERT, Hervé, 335-336, 364, 377 GUICHARD, Olivier, 285-286

434

Índice

Índice

GUIDONI, Pierre, 76 GUILLAUME, G~stave, v-vi, 76-77, 84~85, 190-191 211 GUILLERM, Alam, v ' GUILLERM, Danie!e, v, 240 _241

GUILLET, Micheline, 33

~~~~~~~: ~~~ole, v-vi, 13-14, 57, 59-60, 63, 68-69, 72-?4, GUILLONNET, René, 88 GUSDORF, Georges, 46

H fiALBWACHS, Maurice, 346 HAL~WACHS, Pierre, 83, 245, 346 I-lALEVI, I!an, 214-215, 404-40S HALLYDAY,johnny; 61-62 HAMON, Hervé, 75-76, 147-14S HARAWAY, Donna, 388 HARDT, Michael, 387-388, 415-416 HAR.DY, Thomas, 354-355

HARMELLE, Claude, 225-226 HAUDRICOURT,jean, 299

HAURJOU, Maurice, 100-101 HAZEMANN, Robert-Henri, 233 HEGEL, F~iedrich, 98-105,114-115,119-120, 123 139-140 211-212, 288-290,306-307,336-337,421-422 ' '

~F~~;~~·1~~;~i~6;~;~~ ~~~~~~:-:;1 94~;,~~i05. 119.

H ME DE LAC.OTTE, Suzanne, v, 339-340 HENDRIX,Jiini, 361-362 HENNION, C., 228-229 HERMIER, Guy, 75-78 HERRENSCHMIDT, Olivier, 72 _73 HERVÉ,Alain, 316-317 HERVIAUX, Gilles, 243 HERZOG, Werner, 336, 34 1. 342 HEURGON, Marc, 317 HIGELIN,Jacques, 2SO HJTCHCOCK, Alfred, 330-33 1, 336 HITLER, Adolf, 66-67 H)ELMSLEV. Louis, 163-164, 195,333 HLRSCH, Étíenne, 233-234 HOCQUENGHEM, Guy, 225, 227-230,232 290 HôLDERLIN, Friedrich, 352 ' HOLLAND, Eugene, v, 383-385 HOLLIER, Denis, 379-380 HOUDART,jacques, 88 HUBER (Dr), 275 HUME, David. 14,97-106,110, 121 124-125 168 169 375-376, 392 ' ' - '

~~;SERL, Edmund, 87-88,98-100, 119, 133-134,332,419, HYPPOLITE,jean, 84-87,98-101 103-105 113 119 122 143-144,305 ' ' ' - '

lGINLA, Biodun, 386-387 ILLICH, Ivan, 397-398 lSOZAKJ, Arata, 394-395 IZARD, Françoise. 72-73 7 IZARD, Michel, v, 40-41, 72"J73

J

KLEJMAN. Georges, 241-242,245-248,256 KLOSSOWSKI, Pierre, 84-85, 105, 116,255,362-363,425 KOECHlJN, Philippe, 59-60 KOFMAN, Sarah, 116 KOJEVE, Alexandre, 85,93-94, 123 KOPP, Anatole, 36-37 KOUPERNIK, Cyrille, 176-177 KOVEL,]oel, 380 K.RAFFT-EBING, Richard Freiherr VON. 105-106 l
]ACCARD, Roland, 176 ]AEGLÊ. Claude, 291-292, 420 ]AKOBSON, Roman, 60-61, 163-164, 190-191 ]ALLON, Hugues, vi )AMBET, Christian, 306 ]AMES, Henry, 177-178, 356-357 ]AMESON, Fredrick, 384-385, 387-388 ]ANCOVICI, Harry, 363-364 )ANET, Pierre, 83, 340-341 )ANIN, Yves, 75-76 ]ANKÉLÊVITCH, Vladimir, 16-17,41,314-315 ]ANNIS, Lucas, 281 ]ARRY, AJfred, 87-88 )ARUZELSKI, Wojciech (General) 260 ]AUBERT, Alain, 257-258, 276-277, )DANOV, Arthur, 3l3-314, 382-383 ]EAMBAR, Denis, 244-245 ]EANG!RARD,jean, 51, 56-57 )EANSON, B!andine, 215. 216 ]ERVIS, Giovanni, 274-275,2 77 •278 )OEKER,]ean-Pierre, 227-228 ]OJNET, Louis, 256 ]OLIVET, André, 350-351 ]OLIVET, Merri, 350-351 ]OLNET, Régis, 120-121 )ONES, Maxwell, 275 ]OSEPH, Xavier, 275 }OSÉPHINE, 346-348, 350,402-403 ]OST, François, 335-336 ]OUFFROY, Alain, 245 ]OURDHEUIL, Jean, 3SO ]OYCE,]ames, 52-53, 177-178, 320, 348-349 402-403 ' JUFFE, M., 228-229 ]ULIA, Dominique, 196 ]ULY, Serge, 147, 175-176, 246-247 256 ]UQUIN, Pierre, 317 '

l

K

~~~f;;:~2;~, 1~154. ~~8-;~~~ 13~~-~~~~ 13~4.1;;7_;~~~200, KAGEL, Mauricio, 349-350 KA.HN, Pierre, 74-76 KALMAN,J., 394-395 KANÉ, Pascal, 335

~Tii;~;nuel, vii, 14,92-93, 98, 102-104, 106_108 - ' ,290-291,294,300-304 334 419 KAo, Micheline, 30, 32~33, 35-36, 48,,62-63 KASTLER, Alfred, 256 KAUFMAN, Eleanor, v, 385-386 l
'

LABARTHE, André$., 328 LABORDE, Gérard, 14-15 LABRE, Jean, 37-38 LACAN.]acques, 13-17, 19, 38-41.46-54, 59-61,66-68,73, 75, 92, 105-106, 137-138, 148-149, 157-170, 177-118, 181, 189, 190-191, 194-195, 197-198,206,212-213,260-261, 214-275,285-287,362-363, 385-386,398 LACOUE-LABARTHE. Philippe, 116 LACROZE, René, 89 LAGACHE, Daniel, 92 LAGISQUET, Élisabeth, 408 LAINÉ, Tony, 54,279-280 LAING, Ronald, 151-152, 274-275,277-278,381-382 LALONDE, Brice, 316-318 LAMA, Luciano. 238-239 LAMBRlCHS, Georges, 181 LA..\iMENAIS, Félicité Robert DE. 330-331 LAND, David, 383-384 LAND, Nick, 392-393 LANG, Fritz, 203-204 LANG,]ack, 205-206,245,250-251,260-261.313-315, 403-404 LANG, Monique, 404 LANGER, Maria, 397-398 LANGLOIS, Denis, 257-258 LANZMANN, Claude, 86-90,327 LANZMANN, )acques, 89-90 LAPASSADE, Georges, 228-229 LAPEYROUX, Ivan, 420 LAPLANCHE,Jean, 158-159,168-169 LAPORTE, Jean, 99 LAPORTE, Roger, 181 LAPORTE, Yann, 420 LAPOUJADE, David, v-vii, 115, 294, 368, 404, 412-413 LARDET, Pierre, 29-30 LARDREAU, Guy, 305, 306, 408 LAROUCHE, Gustave, 381-382 LARUELLE, François, 383 LAS VERGNAS, Raymond, 284~285 LATOUR, Bruno, 418-419 LAUNAY, Jean, 88 LAURENCEAU, Mme, 233 LAUTIER, François, 404-405

435

LAUTMAN,jean, 289-290 LAUZIER, Gérard, 18-19, 345-346 LAVISSE, Ernest.121·122 LAWRENCE, David Herbert, v, 167-168,354-356,392-393, 402-403 LE BRAS, Gabriel. 76-77 LE CLÉZLO,)MG, 354~355 LE GOFF,)ean-Pierre, 184-185 LEGUILLANT, Germaine, 47,72-73 LE GUILLANT, Louis, 47 LE PEN,]ean-Marie, 76,345-346 LE PÉRON, Serge, 325-326 LE RIDER,}acques, 113-114,117 LE ROY LADURIE, Emmanuel, 284-285 LE SE!GNEUR, Vincent)acques, 316-317 LEACH, Edmund, 198 LEBEI.,jean-Jacques, v-vi, 148-149,206,227-228,245, 346·348. 380, 382-383, 405-406 LEBOVICJ, Serge, 51 LECLA!RE, Serge, 17-18,46-47, 137-138, 168-169, 177, 285-286, 379-380 LECLERC, Henri, 248, 256 LECLERCQ, Stéfan, 140-141,420 LECOURT, Dominique, 314-315 LEDUC, Victor, 36-37 LEFEBVRE, Henri, 36-37,117,148-149 LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm, vii, 89-90, 93-94, 107, 118·119, 138-141,267, 293-295, 298-299, 301-302, 345-346,364-368, 386-387, 393-394, 408, 411-412, 417 LE!RIS, Michel, 36,84-85, 258-259 LELÜWRE, Henri, 248 LEMARQUE, Francis, 32-33 LEMOINE, Claude, v, 82-83,91-92, 152-153 LEMOINE, Yves, 245-246 LÉNINE, 72-73,75,415-416 LENNON,)ohn, 382-383 LÉONARD DE V!NCI, 359 LEROY, Pierre, 256-257 LEROY, Roland, 75-76 LESTER, Mark, 383-384 LEUTRAT. )ean-Louis, v, 336-337 LEVI, Primo, 425-426 LEV1LDIER, Raymond, 36-37 LEVINAS, Emmanuel. 212,317-318 LÉVI-STRAUSS, Claude, 51, 166, 169-170, 192-193, 198 LÉVY. Benny, 175-176, 308 LÉVY, Bernard-Henri. 244-245, 306,308 LÉVY, Carlos, 262-263 LÉVY, Pierre, 308, 320-321. 418 LEWIS,}erry, 93-94,117-118,135-137,269 LIN PIAO, 300-301 LINDON,)érôme, 215,230,245, 307-308 LINHART, Dani€le, 147-148 LINHART, Robert, 175-176, 181-182, 226-227, 287-288 LINHART, Virginie, v-vi, 19-20,22-23, 33,38-39,41,49-54, 59-60,63-66. 149, 151-152,209,239-243,245-250,276-278, 317-319, 322,345-349,380-383,394,395,402-406,418 LIPIETZ, Alain, 317 LtWITH, Karl, 116 Lo Russo. Francesco, 240 LOACH, Ken, 351 LoiSEAU, Sy\vain, v, 373

436

Índice

Índice

LONCLE, François, 245-246 LOSEY,Joseph, 329-331,335-336 LOTRINGER, Sy!vere. v-vi, 195-196,379-383,386,388 LOURAU, René, 228-229

LOVVRY, Malcolm, 167-168,411-412 LucREcE. 116, 176 LULA (Luis lnacio da Silva), 243, 395-396 LUMET, Sidney, 338 LUXEMBURG, Rosa, 75,249-250

LYOTARD,jean-François, 116, 179-180,204-205, 228-230, 287-293,301-302,315, 325-326,373, 380,383-386,407-408, 417

M MA:BIN, Yves, v, 406-408 MACCHERONI, Henrí, 406

MACCIOCCHI, Maria Antonietta, 242 .MACHADO, Roberto, 397 MACHEREY, Pierre, 105,192,204

MACKAY,john, 385-386 MADARASZ, Norman, v, 397 MADISON,james, 415-416 MAGGIORJ, Robert, v, 13, 16-19,22,209-210,254-255, 268, 365, 372-373, 404, 407 MAHLER, Gustav, 211

MA.LDINEY, Henri, 13-14, 117-118, 158-160 MALEBRANCHE, Nicolas, 88, 117-118 tv1ALICK, Terrence,351 MALINVAUD, Edouard, 233-234 .tv!ALLE, Louis, 327 MAMELET, Mlle, 233 NlANART, Pierre. v-vi MANCEAUX, Miche!e, 286 MANOEL, Ernest, 230 MANENTI,josée, v,67-69, 72-73 MANET, Édouard, 364 M.ANGANARO,jean-Paul, v, 328-329, 362-363 MANIGLIER, Patrice, v, 412-413 MANN, Daniel, 336 11A.NNONI, Maud, 274-275, 278-280 MAO, 36, 79-80, 304-306, 327-328 MARCEL, Gabriel, 115 MARCELLIN, Raymond, 256 MARco AURÉLIO, 262-263 MARcos, Sylvia, 397-398 MARCUSE, 1-Ierbert, 176, 178-179 MARCZEWSKI,jean, 233-234 11ARGOLIS, Jorge, 398 MARIÉ, Michel, v, 90-91, 335-336 MARINIER,Jean, 83-84 MARION, Sylvie, 248 MARoNGIU,Jean-Baptiste, 404-405 MARRATI, Paola, 331-332,420 MA.RTELAERE, Patricia DE, 102 MARTIN,Jean-Clet, v, 107-108, 117, 141, 290,408,411-412, 420 MARTIN, Lucien, v-vi, 347-348 MARTINEAU, Christine, 256-257 MARTINET, Gilles, 38 MARx, Karl, 53-54, 72-73, 79-80,-{03, 105, 115. 117, 166-167, 176, 179, 191,226, 245-246,256-257,286

MASCO LO, Dionys, 425-426 fvíASSÉ, Pierre, 233-234 MA.ssuMt Brian, 383-384, 387-388 fvíATTA, Ramondo, v-vi 11AuGENDRE, Brigitte, 73-74 MAURIAC, CJaude, 176-177,257-260 MAURIAC, François, 176-177 MAUROY, Pierre, 260 NlAURY, Hervé, v, 53-54, 76-80, 242 MAUZI, Robert, 108-110, 336 MAY, Benjamin, 393 .MAYER,]acques, 233-234 MCCULLOCH, Warren, 418-419 MÉDAM.]ean, 78 MEINHOF, Ulrike, 243-244 MELVILLE, Herman, 134-135, 354-356, 386 MENDELÉIEV, Dimitri lvanovitch, 334-335 MENDELSOHN, Sophie, 160-161 MENDES FRANCE, Pierre, 230, 233-234 MENGUE, Philippe, v, 220, 292-293, 301-302, 416A 17 MÉNlL, Alain, v, 330~332, 336-337 MERC!ER, René, 233-234 MERLEAU·PONTY, Maurice, 83-84, 119-120, 134,421-422 MESRINE,]acques, 248 MESSIAEN, Olivier, 362~363 METZ, Chrisitan, 328~329, 333-336 MEYER, Daniel, 38, 169-170, !98-199 MICHAUD, Ginette, v-vi, 47-48, 50-51, 61,63 MICHAUX, Henri, 358-359 MICHELET,Jules, 330-331, 373-374 MIGNARD,Annie, 73-74 MIGNARD,]ean-Pierre, 245-248 MrGNOT (Dr), 233 MILBERGUE,Jean-Pierre, 75 MILLER, Gérard, 287-288 MILLER, Henry, 355 MJLLER,]acques-Alain, 67-68,157, 189,286-287 MILLER,James, 259-261 MILLER,judith, 285-286,301 MILLON, Robert, 46, 59-60 MJLLOT, Catherine, v~vi, 163,177-178,185 MILNER,]ean-Ciaude, 157 MILNER, Max, 90-91 MIRA YLOPES, 45-46 MITTERRAND, François, 228-229,246-251, 260,313-315 MONCHABLON,Alain, 75 MONGIN, O!ivier, v-vi, 356,421-422 MONNET, Gianníni, 36-37 MONOD,]acques, 171 MONROE, Marilyn, 182-183 MONTAND, Yves, 258-259 MONTEBELLO, Pierre, v-vi, 141-142, 426-428 MONTEREGGIO,]ean Malfatti DE, 90 MONTESANO, Gianmarco, v-vi, 22-23, 206, 240-243, 245 MONTINARI, Mazzino, 116 MóQUET, Guy, 85 MORAVIA, Alberto, 245 MoRÉ, Mareei, 84~85, 90, 113 MOREAU, Pierre-François, 413-414 MORFORD,]anet H., 79-80, 224-225, 227,229,232-233 MORIN, Edgar, 279-280, 317-318 MORO, Aldo, 245-246

MORRIS, Meaghan, 392-393 MOULIER-BOUTANG, Yann, v-vi, 240-243,245-246,414-415 MOULIN,Jacqueline, 63 MOUNIER, Emmanuel, 330 MOUREL,Jean, 116 MOZART, Wolfgang Amadeus, 93-94 MozERE, Liane, v-vi, 53-54,58-59,73-74,76-80,228-229, 232·233 MUNIER,jacques, 420 MuRARD, Lion, v-vi, 44--47, 54,66-67, 76-77, 79-80, 224-225-233 MURARD, Numa, 232 MURNAU, Friedrich Wilhelm, 339 MUYARD,]ean-Pierre, v-vi, 13-18,72-73, 147~149

N NADAUD, Stéphane, v-vi, 17-21, 163-164, 195 NADEAU, Maurice, 17-18, 176-177,229-230,426 NANCY,Jean-Luc, 116,407 NARBON!,Jean, v-vi, 325-330,335-336 NEGRI, Toni, v-vi, vi, 217,238-240, 245-247, 387-388, 399, 408,414-415,420 NEUVÉGLISE, Paule, 306-307 NEWTON, Isaac, 140-141 NIETZSCHE, Friedrich, vii, 14,20-21,84-85,92-93, 97-98, 102,107-108,110,113-119,123,126,131-134,141-143,180, 226-227, 254-255, 261-263, 265-266,290, 292-294,301-302, 304-305, 308, 355-356, 361-362, 377, 382, 397' 399, 408, 416,419,427 NOEL, Bernard, 78, 245 NoouERES, Henri. 259 NORA, Simon, 233-234 NORAMBUENA, Miguel, v-vi, 398-399

o ODIN, Roger, 47-48, 335-336 OHRANT, Louis, 69-70, 280 OLIVEIRA, Manoel DE, 327-328 OLKOWSKJ, Dorothea, 383-384,388 ÜPHÜLS, Max, 341-342 ÜRFILA, Arnaldo, 397 ÜRTIGUES, Edmond, 168-169 ÜRTIGUES, Marie-Cécile, 168-169 OURY, Fernand, 31-33, 72, 148-149 ÜURY,Jean, v-vi, 17, 39-41,46-50, 52-53, 56-57,59-60,63-69, 72-73, 148-149, 151-152, 181, 233, 274,345, 347-348,402, 404-405 ÜVERNEY, Pierre, 175

p PACE, Lanfranco, 245, 247 PACKET, Pierre, v-vi, 38-39 PAILLOT, Maurice, 59-60 PAIN, François, v-vi, 54, 61-62, 65, 69~70, 206, 224~225, 229, 242, 247~251, 346-347,405 PA'íNI, Dominique, v-vi, 328-329 PALMA, Norman, 116 PANAGET,Jo, V-Vi, 35-37,73-74, 149-150 PANKOW, Giséla, 59-60 PAQUOT, Thierry, V-vi, vi, 399,420

437

PARADIS, Bruno, 365-366 PARAMELLE, Françoise, 179-180 PARENTE, André DE SOUZA, v-vi, 326, 335 PARMENTIER (senado), 245-246 PARNET, Claire, vi, 82-83, 184-185, 264,294-295, 382-383 PARRAIN, Brice, 84-85 PASCAL (juiz), 256-257 PASOLJNI, Pier Pao\o, 339-340 PASSERON,Jean-C\aude, 257-259 PASSERONE, Giorgio, v-vi, 290,295, 399-400 PASSET,René,317~318

PATTON, Paul, v-vi, 383-384, 416-417 PAULHAN,Jean, 84-85 PAUTRAT, Bernard, 116,412-413 PAUVERT, jean-Jacques, 230 PAYOT, Daniel, 386 PÉGUY, Charles, 135,265-266 PEIRCE, Char!es Sanders, 21-22, 195-196, 334-335 PELBART, Peter Pai, 384 PELLAND!Nl, Ettore, 63-64 PÉNINOU,jean-Louis, 74,76 PEPIATT, Michael, 364 PERCHER.ON, Daniel, 333 PERDREAU, Nicole, 63-65 PÉRICLES, 289-290 PERRET,]ean, 72-73 PERROUX, François, 233-234 PETIT, Raymond, 29, 34-38, 58-59, 69-70 PETITJEAN, Armand, 404-405 PÉTRY, Florence, v~vi, 225-226, 229-230 PEURIÍmE, Gérard, 317 PEYREFITTE, Alain, 152-153, 259 PEYROL, Georges, 300-301 PIAF, Édith, 93-94,360-361 PICASSO, Pablo, 176 PIERRE DE BLOIS, 84-85 PIERRET, Marc, 348-349 PINDAR, Ian, 393 PINHAS, Richard, v-vi, 117, 152-153, 292·293, 360-362, 377, 406,416-417,420 PINOCHET, Augusto, 398 PIPERNO, Franco, 238-239,245, 247 PIVIDAL, Rafael, v-vi, 17-18, 102-103, 176, 177 PIVIN, Clotilde, 291 PIVOT, Bernard, 306-307 PLANCHON, Roger, 117-118 PLATÃO, 93-95, 102-103, 117-120, 131·133, 161-162 PLEVEN, René, 256-258 POE, Edgar Allan, 160 POL POT, 231·232, 301-302 POLACK, Jean-Claude, v-vi, 13~ 14, 48, 52-54, 57-60, 65, 67,72-74,76, 151-152,218-219,225, 245,278-279,400, 414-415 POLAN, Dana, 387-388 PoLJN, Raymond, 102-103 POLITZER, Georges, 120-121,335 POMIAN, Krzysztof, 232 POMPIDOU, Georges, 287 PONC!N, Catherine, 72·73 PONCIN, Claude, 46, 60-61, 72-73 PONGE, Francis, 47-48 PüPEREN,Jean, 90-91

438

Índice

POPPER, Karl, 384

POTTE-BONNEVILLE, Matthieu, v-vi, 263, 267-268,414-415 POTTECHER, Frédéric, 256 POULANTZAS, Nicos. 288-289

POULIDOR, Raymond, 94-95 Poux, René, 72-73 PRADINES, Maurice, 421-422 PRADo, Bento, 397 PRÉLI, Georges, 53-54,77-78,229-230

PRENANT, Mareei, 38 PRICE, Daniel, v-vi, 385 PRIGOGINE, Ilya, 314-315, 418 PRONIER, Raymond, 316-317

PROTEVI,john, v-vi, 219-220 PROU, Charles, 233-234 PROUST, Françoíse, 408 PROUST, Mareei. vii, 89, 93-95, 105, 108-110, 135-136, 158-159, 261-262, 293-294, 334-335. 349-350. 354-355,360, 364, 375-376

Q QUÉRO, Laurent, 256 QUEROTRET, M. DE, 58-59 QUEROUIL, Olivier, v-vi QUERRlEN, Anne, v-vi, 73-74, 76-77, 79-80, 147-149, 223,

225,227-229,232-233

R RABIN, Itzhak, 406-407 RA.BOUIN, David, v-vi, 261,360, 365-366, 412Al3 RACINE, Yves, 59-60

RAGON, Marc, 404-405 RAJCHMAN,John, 379·382 RANciimE, Danielle, 256-257 RANcrERE,]acques, v-vi, 285-288, 339-340, 355-356 RANKE, Otto, 121-122 RASTIER, François, 373 RAULET, Gérard, 261-262 RAUSCHENBERG, Robert, 352 RAVENEL, Bernard, 404-405 RAY, Nicholas, 329-330, 336 RAYNAUD, Fernand, 349 REGNAULT, François, v-vi, 93-95, 105, 285-288 REGNAULT, Hervé, 420 REICH, Steve, 361-362 REICH, Wilhelm, 176-178 REIK, Theodor, 106 RENAUT, Alain, 385-386 RENOIR,]ean, 61-62,329-330,338-339 RESNAIS, Alain, 50, 75, 329-330, 341-342 REVAULT D'ALLONNES, Myriam, 421-422. REVAULT D'ALLONNES, Olivier, v-vi, 88-89, 102-103, 119 REVEL,jacques, 196 REVEL,judith, v-vi, 258-259, 263-265 REVEL,Renaud,244-245 REVON, Christian, 256 REY, Évelyne, 89-90 REY,]ean-Michel, 116 REY, Roger, 37-38 REYNAULD, Hervé, 420 REZVANI, Serge, 88-90 i."

Índice

RICHARD,jean-Pierre, v-vi, 292-293.360-362,406 RICCEUR, Paul. 113-114, 132,136,256,336-337,383-384, 419-422 RIEFENSTAHL, Leni, 337-338 RIEMANN. Bernhard, 298-299 RIMBAUD, Arthur, 382, 393 RIPERT,jean, 233-234 RIST.Alain,317 RIVETTE, Jacques, 325-326, 341-342 RrvrERE, Pierre, 259, 327-328 ROBERT, Yves, 32-33 RoBJN,jacques, v-vi, 317-319, 404-405 RüCARD, Michel, 62-63, 233-234, 314,316-318 Roms-LEwrs, Geneviêve, 117-118 RODOWICK, David Norman, 341, 385-386 ROGER, Alain, 92-93, 104-105, 117-118.301 RüGER.jean-Henri, 325-326 ROGOZINSKI,jacob, v-vi, 416-417 ROLIN,Jean, 347-348,403 ROLNIK, Suely, v-vi, 395-397 ROMEU, 50-51 Roas, Richard, 116 Roscu. Eleanor, 376 ROSE, Pierre, 17-18, 67-68. 177, 250-251 ROSENFELD, Oreste, 38 ROSIER, Michele, 330-331 ROSSELLINI. Roberto, 330-333, 339 ROSSET, Clément, 157, 420 ROSTAJN, Michel, v-vi, 14-15, 53-54, 66, 76, 79-80, 218-219, 224-225.228-229 ROTELU, Franco. 280-281 ROTHBERG, Denise, 59-60 ROT!\.1A.N, Patrick. 75-76, 147-148 ROUBAUD,jacques, 326-327 ROUBIER,]ean-Paul, 79 ROUDINESCO, Élisabeth, v-vi, 177-179, 292 ROUGET, Gilbert, 362 ROULEAU, Danielle. 54,225-226,347-348 ROUOT, Claude, 230 RouSSEAU,)ean-Jacques, 93-94,100-103 ROUSSEL, Raymond, 162, 254-255,269-270 ROUSSJLLON, René, 180-181 ROUTIER, Françoise. 53, 280 ROVATTI, Pier Aldo, 399-400 ROY, Ciaude. 36 ROYAL, Ségoiene, 313-314 RUIZ, Raoul, vi, 327-328 RUSSEL, Bertrand, 365-366, 368 RUYER, Raymond, 140-141,421-422

s SABOT, Philippe, 255 SACHER·.tvf.ASOCH, Leopold VON, vii, 13-14,98, 105·106, 108-109, 137, 158, 330. 354, 356 SACHS, Thomas, 397-398 SADE, Marquês de, 105· 106 SADOUL, Georges, 45A6 SAFOUAN, Mustafa, 46-47 SAIO, Edward, 260, 388 SAINT-GROURS,jean, 233-234 SAINT-THIERRY, Guil\aume, 84-85

SALANSKIS,)ean-:Michel. v-vi, 292-293 SALOMON,Jean-Claude, 276-277 SANBAR. Elias, v-vi, 214-216,294 SAND, George, 330-331 SANTIAGO, Hugo, 326-327, 398 SANZIO, Alain, 227-228 SARTRE,Jean-Paul, 33-40,49, 84-87,90,93, 117-118, 180-!8!. 227-228,257-259.299-300,320 SAUNIER-SEITÉ. Alice, 287-289 SAUSSURE, Ferdinand DE, 60-61, 190-191, 194-196, 334-335, 379-380 SAUVAGEOT,Jacques, 147 SAUVAGNARGUES,Anne, v-vi, 105·106, 120,137, 140,204, 298-300, 356-359. 364, 376-377, 413-414, 420 SCALZONE, úreste, 238-239, 245-246, 399 SCHALIT,)ean, 74 SCHÉRER, René. v-vi, 83, 98,228-230,245,288-290, 321·322, 404-408 SCHIEDT, Alain, 72-73 SCHIEDT, Estelie, 72-73 SCHMID. Daniel, 326-327 SCHOENICHEN, Waither, 319 SCHROEDER, Barbet, 327-328 SCHWARTZ, Laurent, 38 SCIASCIA, Leonardo, 245 SEARLE,john, 204 SEBAG, Lucien, 36-39, 50-51 SEGAL, lan, 276-277 SE!GNOBOS, Charles, 121-122 SENGHOR, Léopold Sédar, 84-85 SEPHUIA, Vida!, 204-205 SERGE, Victor, 75 SERISÉ,Jean, 233-234 SERRES, Michel, 284-286, 365-366, 418-419 SERVAN-SCHREIBER, Marie-Claire, 230 SHAKESPEARE, William, 216,358, 363-364 SHEILA, 181-182 SIBERTIN-BLANC, Guillaume, v-vi, 107-108. 123, 133-134. 204,214-215.413 SIBONY, Daniel, 327-328 SlGALA, Claude, 69-70, 278-280 SIGNORET, Simone, 258-259 SIMON, Hermann, 36-37, 39,45-46,88-89 SrMON. Simone, 178-179 SIMONDON, Gilbert, 139-140, 163· 164, 341,418-420 S!MONT,)uliette, 406-407 SIVADON, Daníe!le, v-vi, 48, 53, 57-58,65, 151-152, 217-219, 233,320,346-347,414-415 SIVADON, Paul (Dr.), 233 SMITH, Dan, 383-384 SMITH, Patti, 382-383 SOLLERS, Philippe, 306-307 SOMMIER, Isabelle, 238-239 SOULIÉ, Charles, 286 SOULIER, Gérard, v-vi, 240-241,244-250, 259 SPITZER, Gérard, 36-39, 78 SPIVAK. Gayatri Chakravorty, 388 STALINE, 38-39, 301·302 STENGHERS, lsabelle, v-vi, 209,314-315,376-377,397, 417-418 STÉPHANE. André, v-vi, 18-19, 179-180 STERN, Daniel, 320, 348

439

STERNBERG,jacques, 336 STEVENSON, Robert Louis, 354-355 STIEGLER, Bernard, 419-420 STIVALE, Charles, 383-384,387-388,392-393 STOCKHAUSEN, Karlheinz, 367 STRAUS, Jean-Marie, 327-328, 352 STRAUSS, Claude, 169-170, 192-193, 198 STRAUSS, Leo, 93-94, 166 STROHEIM, Erich VON, 93-94, 329-330 STRULTI. Chiara, 281 SUÉTONE. 358 SUGIMURA, Massaki, v-vi, 394-395 SURIN, Ken, 385-386 SUZUKI, Hidenobu, v-vi, 294-295,393-395 SWINBURNE, Algernon, 364 SYBERBERG, Hans-Jürgen, 327-328

T TABATONI, Pierre, 382-383 TACQUIN, Véronique. 336-337 TAHAVA, Keiichi, 394 TAKAMATSU, Shin, 394-395 TANGUE, Kenzo, 394-395 TARDE, Gabriel De, 109-110, 138-143,427 TARKOVSKI, Andrel, 341-342 TAUTIN, Gilles, 150-151 TERDIMAN, Dick, 384-385 THIBAUI.T, Marie-Noelle, 75-76 THIERRÉE,]ean-Baptiste, v-vi, 61-62 THOM, René, 314-315, 397-398 THOMPSON, Evan, 376 THOROS, Yvonne, 290 T!NTORE'I'TO, 367 TITO, 35-36 TODOROV, Tzvetan, 379-380 TOMLINSON, Hugh, 392-393 TONNERRE,]érôme. 330-331 TOPALOV, Christian. 223-224 TORMEY, Simon, v-vi, 393 TORRUBIA, Afelio, 72-73 TORRUBIA, Horace, 17·18, 46,59-60, 72·73, 175, 177,233 TOSHIMITSU, lmal, 350-351 TOSQUELLES, François, 44-47,49,54,57,59-60,67, 72, 233 TOUBIANA, Serge. v-vi, 326-328, 330 TOURAINE, Alain, 326-327 TOURNJER, :Michel, v-vi, 82-90, 94-95, 99-100, 135 TOYOSAKI, Kouichi, 393-394 TRASTOUR, Guy, v-vi, 72-73, 75-76 TRASTOUR-F:ENASSE, Renée, 72-73 TRONTI, Mario, 217 TROTSKI, Léon, 38-39, 75, 78-79, 245-246 TROUBETZKOY, Nicolal. 60-61 TRUFFAUT, François, 327-328, 330 TSITOUVIDES, Savas (Dr.), 281 TUBIANA, :tvfichel, v-vi, 244-245, 250.259 TURAKAMI, 394 TURNER, Wi\liam, 364

u UNO, Kuniichi, v-vi. 19-20, 393-394 URI, Pierre, 233-234

440

Índice

v VAHANEN,]anne, v-vi

VA!LLE, Dr. Charles, 233 VALADIER, Paul, 116 VALÉRY. Paul, 228-229 VAN GOGH, Vincent, 97,364, 411-412 VANOLI, André, 233-234 VARELA, Francisco, 22,281-282,320-321. 376 VASCONCELLOS, Jorge, 397

VATTIMO, Gianni, 399-400 VEDEL, Georges, 76-77 VEINSTEIN, Alain, 245-246, 407-408 VENAULT, Philippe, 330-331 VERDl, Giuseppe, 289-290 VERMEERSCH-THOREZ, jeannette, 152

VERNANT, Jean-Pierre, 36-37, 284-285 VERNE,juJes, 20-21 VERNET, Daniel, 226, 246-247 VERNET, Marc, 333, 335-336

VERNET-STRAGIOTTI, Marie-Thérêse, 226 VERNY, Françoise. 306

VERSTRAETEN, Pierre, 406-407,418 VERTOV, Dziga, 385-386 VEYNE, Paul, v-vi, 254,262, 264 VIAL, André, 83-84 VIAN, Boris, 230 VIANSSON-PONTÉ, Pierre, 306

VIDAL-NAQUET, Pierre, 256 VIDOR, King, 329-330 VIGNOLA,'Adélalde, 350 VILAR,jean, 62-63 VILLAIN, Dominique, 325-326 VILLANJ, Arnaud, v-vi, 99-100, 102, 105-106, 141-144, 197-198,208-209,304-305, 364-365,411-412,416-417 VINCENT, André, 233-234 VINCENT, Jean-Marie, 107-108, 414-415 VINCIGUERRA, Lucien, 408 VIRIL! O, Paul, v-vi, 133-134, 248-249,317-319, 322, 337-338, 404-405 VntMAux, Alain, 334-335 VISCONTI, Luchino, 330-331, 339-340 VITAL,joachim, 363-364 VITTI, Monica, 118-119 VIVÊS, Angels, 44-45 VIVIEN, Claude, v-vi, 38-39,41,50-51 VLA!v!:INCK, Maurice DE, 32 VLLLANI, Tiziana, 399-400 VOLTAIRE, 365 VOYNET, Dominique, 317 VUARNET,jean-Noêl, 106-107, 110, ll6 VUILLEMIN,juJes, 117,254-255

w WAECHTER, Antoine, 316-318 WAGNER, Richard, 349-350,361-362, 367 WAHL,jean. 41,84-85, 88,98-100, 102-103, 113-115, 117 WALESA,Lech,260 WARHOL, Andy, 352 WATERS, Lindsay, 386-387 WATSON,janelJ, 385-386 WEBER, Henri, 228-229, 242,285-288 WEGENER, Alfred, 339 WEJL, Éric, 289-290 WEIL, Natha!ie. 276-277 WEINGARTEN, Romain, 350 VVELLES,0rson,330,336 VVENDERS, Wim, 327-328, 336 VVENZEL,}ean-Paul, 350 WHITEHEAD, Alfred North, 21-22,99, 142-144,266 WIENE, Robert, 203-204 VVIENER, Norbert, 392-393 WISE.john Macgregor, v-vi WISMANN,Heinz, 116 VVITTGENSTEIN, Ludwig, 262, 290-291 WOJNAROWICZ, David, 350-351 WOLFE, 1homas, 354-355 WOOLF, Virginia, 354-355 WORMS, Frédéric. v-vi, 99, 102-103, 120-122, 412 WYSCHNEGRADSKY, Ivan, 362

X XENOFONTE, 93-94

y YOUNES, Chris, v-vi, 117-119, 152,420-421

z ZABUNYAN, Dork, 110, 336 ZAHM, Olivier, 352, 376-377 ZANCARINI-FOURNEL, Michelle, 256 ZANGHARI, 240 ZAOUI, Pierre, 414-415 ZECCA, Marina, 398 ZELDIN, 'Theodore, 230-231 ZEMPLÉNI,Andras, 168-169 ZOURABJCHVILI, François, v~vi, 125-126, 134-135, 185, 355-356,293-294 ZUBLENA, Arnerico, 72-73 ZYLBERMAN, Patrick, 229-232

Related Documents


More Documents from ""

June 2020 9
June 2020 7
May 2020 12
June 2020 7
May 2020 4
June 2020 2