Foco No Alface

  • May 2020
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Bloomberg

Blue Hill at Stone Barns busca o frescor da terra: produção da maior parte das hortaliças utilizadas e criação de bois

Escondido no site na internet do El Bulli, o lendário restaurante de Ferran Adrià na Espanha, está uma declaração revolucionária: "Todos os produtos possuem o mesmo valor gastronômico, independentemente de seus preços." O que torna essa declaração revolucionária é óbvio para aqueles que acompanham a "haute cuisine", um estilo de cozinha tradicionalmente baseado em uns poucos ingredientes selecionados. Pode colocar a culpa no pioneiro dos restaurantes finos franceses Auguste Escoffier, ou talvez na recém-encerrada era de falsa prosperidade, mas ao longo de várias décadas os cardápios de quase todos os restaurante caros do mundo ocidental se tornaram um desfile sem fim de caviar, foie gras, trufas, lagostas e filé mignon. Esses ingredientes se transformaram nas carteiras Birkin do mundo da culinária, mais importante pelo significado cultural do que pela experiência de fato. Divulgação

René Redzepi, do Noma: resgate da Dinamarca

Nos últimos anos, porém, alguns chefs visionários, que acreditam que a expressão pessoal e a criatividade são mais importantes que a devoção submissa a artigos de luxo simbólicos, vêm abandonando essa postura antiquada. Esses chefs buscam os ingredientes da mais alta qualidade, normalmente originários das áreas onde eles se encontram, sem levar em conta o lugar desses ingredientes no cânone da tradicional alta culinária. Combinado com uma crença profunda no poder transformador do processo de cozinhar, eles estão estabelecendo um exemplo que, se pegar, poderá mudar o que cultivamos e comemos, tanto nos restaurantes como em casa.

Em 2001, com o pânico provocado pela doença da vaca louca varrendo a Europa, o chef Alain Passard decidiu tirar a carne do cardápio do L´Arpège, seu elogiado restaurante parisiense. Inspirando-se nos

hortifrutigranjeiros produzidos em suas fazendas, ele trocou o foie gras por cenouras. Foi uma decisão sem precedentes para um restaurante fino. Na época, ela foi classificada de suicídio profissional. Mas, em vez disso, o L´Arpège prosperou. AP

Passard, em 2001: opção pelos vegetais Desde então, Passard, 52, recuou para um formato mais convencional (o foie gras está de volta ao seu cardápio, junto com o caviar e o rodovalho), mas essa mudança em direção a uma cozinha mais voltada para os vegetais teve efeitos duradouros. Sua influência pode ser vista em lugares como o distante Manresa de Los Gatos, na Califórnia, onde os pratos inspirados e deliciosos de David Kinch são baseados principalmente nas hortaliças cultivadas em uma fazenda ligada ao restaurante. Jeremy Fox, que ensinou Kinch, se tornou chef do Ubuntu no Napa Valley, um restaurante vegetariano colado a um jardim que se transformou em um dos mais comentados nos Estados Unidos.

"As plantas crescem de sementes adaptadas ao seu lugar. Este é o novo caviar, o novo luxo", diz Dan Barber, chef e proprietário do Blue Hill at Stone Barns de Pocantico Hill, Nova York. Barber foi escolhido recentemente o melhor chef dos EUA pela James Beard Foundation, que promove as artes culinárias. Barber produz a maior parte das hortaliças que utiliza e cria seus próprios bois em uma fazenda próxima do restaurante. Ele também destaca a importância de se cozinhar bem, incluindo algumas das técnicas inventadas no El Bulli, que transformam aqueles ingredientes impecáveis em uma cozinha formada tanto pela terra quanto por seus pontos de vista pessoais.

Reuters

Barber: sementes adaptadas, o novo luxo Essa ligação próxima entre o que Barber cultiva e a maneira como ele cozinha pode ser vista em um prato recente que tinha alface Crispino, uma velha parente nãohíbrida dos icebergs. É uma alface verde bem clara e saborosa, que cresce lentamente, de modo que as folhas formam uma cabeça apertada e densa. Barber acha que ela tem uma textura parecida com a da carne, de modo que ele a serve grelhada, como se fosse um bife, centrada no prato e cercada por vegetais em conserva, ervas e um caldo verde de alface. É um truque de prestidigitação que reverencia a família, ao mesmo tempo que apresenta algo novo. Essa combinação de ingredientes irresistíveis, habilidade culinária e novas ideias é o que faz desse saboroso prato de US$ 125, formado principalmente por vegetais, absolutamente cativante e digno do preço.

Restaurantes como o L´Arpège e o Blue Hill ocupam o menor dos setores de consumo de alimentos, mas que também é o de maior visibilidade. Ao criar valor associado a certos ingredientes como os vegetais ou os cortes incomuns de carne, as decisões que eles tomam podem ter um efeito de gotejamento sobre o mercado, estimulando a demanda. Tamboril e costelas são exemplos de ingredientes que eram bastante baratos nos Estados Unidos antes que chefs importantes começassem a colocá-los em seus cardápios. A barriga de porco, outrora vista como comida de camponeses, aparece agora na maioria dos cardápios mais elaborados. Os preços desses produtos aumentaram dramaticamente e é comum agora eles serem encontrados em supermercados chiques. Se parece difícil imaginar que chefs modernos cozinhando para poucas pessoas em salas de jantar rarefeitas podem ter um efeito sobre a cozinha predominante, veja só a história de René Redzepi. Quando seu restaurante Noma abriu em Copenhagem em 2003, a comida nos restaurantes mais finos da Dinamarca, assim como os produtos em seus supermercados, era baseada em ingredientes caros importados de outras partes da Europa. A mensagem para os clientes era de que os ingredientes locais não eram bons. Redzepi, que passou por treinamento no El Bulli e no French Laundry da Califórnia, rejeitou esta maneira de pensar, moldando produtos nativos como o boi almiscarado, wood sorrel (planta selvagem cujo caule tem gosto azedo) e o zimbro silvestre em uma cozinha estimulante e altamente pessoal. Para aqueles que sugerem ser impossível evitar o uso de produtos importados em lugares como Nova York ou Londres, com seus invernos rigorosos, o Noma, que fica no norte da Europa, poderia servir de contraargumento. Redzepi e sua equipe vasculham a região em busca dos melhores ingredientes, criando linhas de suprimento para muitos produtos nativos que nunca foram comercialmente viáveis. Até mesmo durante os meses mais frios eles saem à procura de ervas e cogumelos silvestres. Eles usam frutos do mar locais, carnes, laticínios e tubérculos, e acompanham os pratos com alimentos que eles colocam em conserva, defumam e secam durante a estação de crescimento. Um prato chamado "the potato field" (plantação de batatas) é composto de pequenas batatas espalhadas sobre purê de batata e salpicada por cevada, um triunfo da imaginação sobre a despensa esvaziada pelo inverno.

O Noma, que recebe duas estrelas do guia Michelin e recentemente foi escolhido como o terceiro melhor

restaurante do mundo (depois do El Bulli e do The Fat Duck de Heston Blumenthal, em Berkshire) pela revista "Restaurant", vem influenciando outros chefs a reconsiderarem suas posturas em relação à cozinha. Muitos restaurantes dinamarqueses, alguns abertos por chefs que passaram pelo Noma, estão agora servindo o que vem sendo chamada de nova cozinha nórdica, que se baseia nos ingredientes regionais e é caracterizada pela leveza e pelos sabores puros. O governo dinamarquês, inspirado pelo trabalho de Redzepi, criou um projeto chamado New Nordic Food, para ajudar empresários a desenvolverem produtos locais, como a "birch beer", que agora podem ser encontrados nos supermercados da região. De sua pequena cozinha, Redzepi vem ajudando a estimular a ressurgente culinária nativa. Reavaliar os ingredientes - a começar da suposição de que uma batata ou uma cenoura podem ter um sabor tão excitante quanto o foie gras - é difícil em uma cozinha de "ponta". Isso exige mais trabalho, mais imaginação e uma busca mais cuidadosa de ingredientes - um foie gras medíocre sempre vai parecer que "vale mais a pena" do que uma cenoura medíocre. Há também o risco de se ir contra as expectativas mais íntimas dos clientes. Mas conforme muitos restaurantes modernos , como o Noma, estão mostrando, as recompensas podem ser consideráveis, proporcionando uma comida mais vibrante, cativante e uma ligação emocional maior com seus clientes. Quanto a cozinhar em casa, reavaliar os ingredientes pode levar não só a uma comida melhor, como igualmente importante nesses tempos de economia abalada - a uma maneira mais barata de se comer. Poucas semanas atrás, inspirado na afirmação equivocada de um amigo de que a boa comida é sempre cara, fiz um jantar para mim e minha esposa por US$ 12, usando apenas ingredientes orgânicos e locais. Comprei uma quantidade modesta de costelas de vaca, a carne mais barata que consegui encontrar, e a cozinhei em um fogão elétrico lento com feijão, cebola, cenoura e pimenta seca. Acrescentei couve levemente frita e no fim e servi com arroz integral. Os pratos não só ficaram baratos como também deliciosos e provaram que a qualidade versus preço é uma discussão falsa. A escolha fica realmente entre as refeições centradas na carne ou nos vegetais, entre o filé e a costela. Sabendo cozinhar, é possível comer ambos bem e barato. Saber cozinhar é importante porque o valor de um ingrediente está intimamente ligado à nossa capacidade de transformá-lo em comida. Nos EUA e no Reino Unido, nossa incapacidade coletiva de fazer pouco mais do que abrir um pacote ou jogar um bife na grelha, afeta nossa percepção sobre o valor de um ingrediente - a facilidade de preparação determina o valor. Isso limita os tipos de ingredientes que cultivamos e com os quais cozinhamos, tornando nossa comida mais exagerada, cara e menos saborosa. Já ouvi muitas vezes de amigos e colegas que a alta cozinha não tem relevância para o mundo real. Discordo. Numa época em que as preocupações ambientais, de saúde e econômicas exigem uma reavaliação ampla de como nos alimentamos, os chefs de cozinha deveriam dar o exemplo de que responsabilidade e prazer não são incompatíveis. O tipo de culinária que é feita nas cozinhas de elite nunca será prática em casa, mas a atitude que vem sendo desenvolvida pelos chefs modernos em relação aos valor dos ingredientes e a importância da boa culinária, é. A mesma cenoura bem desenvolvida que transformou em uma interação complexa de temperaturas e texturas em meu restaurante, é igualmente deliciosa em casa, onde eu a cozinho simplesmente com um pouco de água, sal e azeite de oliva, algo que qualquer pessoa pode fazer. Tudo o que é preciso é algumas técnicas culinárias básicas - e a disposição de reconsiderar o que vale a pena ser comido.(Tradução Mario Zamarian) Daniel Patterson é chef e proprietário do restaurante Coi em San Francisco.

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