Flor Fatal

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Fernando Cabral Martins

A F L O R F ATA L conto

A S S Í R I O & A LV I M

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© ASSÍRIO & ALVIM RUA PASSOS MANUEL, 67 B, 1150-258 LISBOA E FERNANDO CABRAL MARTINS (2009) EDIÇÃO 1341, OUTUBRO 2009 ISBN 978-972-37-1439-5

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E é na juventude, quando neles desabrocha a flor fatal e única, que começam a sua morte vivida. Pessoa

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1 Ele entrou. Lá estava a Queen Kelly. Era uma aula à noite, daquelas que não têm público. Mas se ela estava presente era como se estivesse presente uma multidão inteira que ocupasse muito a atenção. Usava nessa noite um pulôver vermelho que lhe não estava justo mas assentava na pele sem nada. O ângulo agudo recortado no vermelho abria para o começo dos seios, num relevo sombreado de rios e florestas de incontáveis aventuras. A atenção sem crispação e sem reverência, como se o corpo inteiro participasse de um acto de escuta aberto, confiante, despreocupado, disposto a intervir para tornar tudo mais claro quanto o pudesse fazer. O ordenado era de mais. Ele pagava para estar ali. Sentou-se no tampo da secretária, posta sobre um estrado, em frente da Queen Kelly e dos outros seis participantes, que não distinguia no nevoeiro metálico da luz crua. Todo dobrado, escreveu o sumário no livro, que fechou. Antes de se voltar de novo para o lado dos alunos não sabia o que ia dizer. — Hoje vou-vos contar uma história. Passada no princípio do século XX. A história de um homem para quem a vocação de artista significava tudo na vida. Que sentia tudo o que a sua experiência lhe dava para sentir, em função do poema ou do conto que

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depois havia de escrever sobre o que tinha sentido. Que não era mesmo capaz de sentir nada que não fosse na previsão do que sobre isso escreveria, e mesmo o sentia já nos termos, sob as cores e com as palavras imediatas que seriam próprias de um texto literário em que fossem contadas depois. Era alguém que escrevia no acto de sentir, que não se cansava de sentir porque se não cansava de escrever e de ler, e que não se cansava de escrever e de ler porque eram essas as actividades que conhecia para melhor o porem em contacto com a suma beleza e a intensidade máxima que em nome da arte pode ocupar uma vida. Intensidade que também era sexual. E sexual de todas as formas de sexualidade, sem falsos pudores, sem regras de exclusão, sem gostos particulares ou particularizados. E intensidade sentimental, e de vida quotidiana. Daí o seu interesse apaixonado por Paris, onde estar no café era um poema simplesmente por aí estar, por causa das pessoas que entravam, por causa dos aventais brancos dos criados com bebidas de cores fortes voando nas bandejas. Uma tarde em que se sentara numa terrasse da Avenue de l’Opéra, bebeu um café, acendeu um cigarro, olhou para cima e deu conta que o ar de princípio de Maio estava caloroso e amável, num céu que atravessavam nuvens acasteladas muito brancas entre o azul liso e brilhante. Ao pousar de novo os olhos sobre os passantes na rua, e ao focar todos os sentidos no torvelinho da cidade, assistiu espantado ao acertar de todos os elementos das diferentes sensações que tinha numa harmonia clara, fresca e lúcida. Os sons formavam uma música sinfónica com a intervenção coral ou de solistas próximos, as imagens organizavam-se segundo um princípio de equilíbrio constante, compondo-se na sua intenção, como espectador de-

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las, único e eterno, eleito na absoluta consciência daquele momento. Parecia-lhe que podia viajar no seu próprio olhar até um ponto distante do cenário, e aí influenciar o que via, ajudar alguém a subir para uma carruagem ou avisar uma rapariga da chegada distante de alguém que ela esperava impaciente numa esquina. Tirou outro cigarro do maço, acendeu um fósforo com a mesma sensação de glória e tragédia misturadas de quem estivesse a pegar fogo a um rastilho que detonasse uma carga que abrisse passagem a um mar represo ou fizesse explodir no ar uma cidade inteira. Os passantes davam por ele, como surpreendidos. Às vezes tropeçavam, distraídos por ele, a sua imagem sentada ali. Uma mulher de lábios muito vermelhos sentada sozinha algumas mesas adiante fitava-o como se se retivesse de o abordar. Ergueu-se então, o criado veio pressurosamente compor a cadeira para ele sair, e passeou até ao Café de la Paix, e depois pelo boulevard, ouvindo o murmurar das árvores. As palavras retiniam na sua cabeça como campainhadas de alguém muito querido, que já não se vê há muito tempo, e contêm para nós todo o sentido do mundo. As palavras teciam-se em versos sem esforço. Uma alegria de todos os poros, de todos os pêlos do corpo, de todos os centímetros dos seus pés, dos dedos aos calcanhares, que tocavam no chão, das narinas que respiravam fundo e dos olhos que faiscavam luz. E mal conseguia reparar no que lhe acorria de frases para versos possíveis, ou ideias que lhe faziam ligar velhas imagens dos livros coloridos da infância com a sua experiência da cidade ofuscante, e em que a tensão daqueles dias, cruzados por sinais da guerra que se aproximava, parecia tornar-se, sobretudo nas noites,

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num carroussel de jóias cintilantes e de gritos alegres e agudos de dândis maquilhados, numa excitação de todos os instantes que cortava a respiração. Descia então o boulevard meio distraído de si e meio embrenhado no devaneio em que só contavam as imagens recordadas. Sentia à sua volta que reparavam nele, que algumas pessoas se calavam entre si quando ele passava e ficavam presas do movimento pelo qual ele passava, um pouco incomodado desse efeito que provocava, e que lhe acendia no peito, nos dedos e nos olhos uma alegria tão forte que pensava que cada mulher bela que encontrava poderia ser conquistada por uma frase, ou até por um gesto simples. Tentava olhar em frente, ser discreto, enquanto rompia à sua volta uma cascata de brilhos e de perfumes, palavras que rompiam membranas como seres vivos que brotassem, tentava coser-se com a pala verde dos quiosques, das lojas de gravuras, das montras de modelos magníficos e ricos. E um reflexo mostrava-lhe de repente que alguém lhe seguia os movimentos, que alguém dentro reparara nele por fora do vidro, e deixara o que estava a fazer para ficar a olhar para ele. Parecia que passeava na rua aceso como uma lâmpada. Mas isto tudo era muito bonito se fosse sempre. Ou se fosse para sempre como de princípio foi. O certo é que o tempo passa, e ao passar descobre novas regiões, onde as coisas acontecem de outra maneira, noutras dimensões e línguas. Além disso, havia sempre na cabeça a cena de um amigo dele que se tinha suicidado no liceu, no recreio, com um tiro na cabeça, à sua frente. Lembrava-se de tudo com perfeita nitidez. O pai do amigo tinha por amante uma actriz muito conhecida em Lisboa, e recusava que o pai pudesse fazer tal coisa por respeito para

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com a mãe, e também por amar a mesma actriz, sem o querer e horrorizado consigo, uma vez que a vira representar no Teatro do Príncipe Real uma peça de Bento Mântua. Tanta complicação de ciúmes cruzados foi o começo, e uma irreprimível queda para o melodrama fez o resto. Mas o estampido desse tiro, amplificado pelo pátio do liceu, abriu dentro dele um recanto de silêncio inviolável. Desculpem falar assim. Mas há coisas que, não se sabe porquê, ficam a doer mais tempo do que previsto, e há outras coisas que se põem a doer com elas por um acorde de sensações idiota. E o sofrimento mais difícil de suportar é o que não devia estar ali, o que não tem origem, não se sabe o que é e não se prevê quando é que vai acabar. Ou sequer se vai acabar. E é assim que se instala. E não sabemos já por onde escapar, por um instante que seja, com o alívio mínimo que seja, disso. O certo é que este homem, devotado a ser artista e a viver na exaltação da beleza e da força, começou cedo a sentir-se inquieto, como se um abismo se abrisse a seus pés minuto a minuto, como se envelhecesse minuto a minuto. Publicou uns livros que não lhe deram satisfação nem paz, fez uma revista com um outro amigo que levantou uma onda de opróbrio, só faltando cuspirem-lhe em cima no meio da rua, e fugiu para Paris um belo dia como quem diz adeus. Concentrou-se então em viver uma vida de deambulação na cidade iluminada. Escrevia constantemente, mas já não pensava em fazer livros. Sabia que escrever era só um gesto entre outros, e que mais nada podia ser. E no que escrevia sentia ferir-se uma ou outra nota que nunca tinha ouvido antes a ninguém. Parecia-lhe que nascia segunda vez, e que era ele ao mesmo tempo a sua mãe e parteira.

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Até a inquietação que sentia tinha deixado de ser um mistério incómodo, um desagradável desajeitamento, para se transformar numa espécie de ballet, como um trapezista cómico que se finge desequilibrado no arame, quase a cair, mas afinal abre o chapéu de chuva no último instante, e vem pelo ar fora numa pirueta suave, enquanto a orquestra ataca um grande finale. Quando morreu, e antes de o enfiarem num caixão extralarge que amarraram com umas correias com medo que explodisse, porque o veneno que mastigara o fizera inchar, encontraram-lhe no bolso do colete duas moedas de dez cêntimos, e na conta do hotel nada mau onde habitava, junto a Pigalle, no centro apache de Paris, uns duzentos francos redondos por pagar. Sobretudo novo, botas novas e relógio tinham desaparecido da circulação, com destino certo num monte pio. O homem estava reduzido ao fio de um fato. Deixava uns versos e pronto. Fizera o que pudera e Interrompido pela campainha, viu os poucos sobreviventes saírem da sala sem os encarar. Nem a Queen Kelly quis lançar-lhe o último olheiro ruivo. Baixou os olhos para o tampo da secretária. Só soube que ela se fora embora por um perfume qualquer que passara. Depois afivelou a pasta, apagou a luz, fechou a porta.

2 No dia de aulas seguinte, noite fechada porque estavam no Inverno ainda, os mesmos seis na sala e mais Queen Kelly com uma camisola preta que a moldava e um ar estranho, ao mesmo tempo

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interessado e distante, ele trouxe uma aula muito preparada, com um papel distribuindo tempos e temas e movimentos para cima e para baixo do estrado, para trás e para a frente da secretária, perguntas já a formular a Queen Kelly, reproduções coloridas de dois quadros alusivos ao tema nas suas capinhas de plástico aptas à circulação. Sentou-se, a escrever o sumário, depois levantou-se, enroscando a tampa da caneta e prendendo-a no bolso de dentro do blusão. Ia a abrir a boca, — Acerca da história que nos contou na última aula, tem alguma ideia sobre os motivos que levaram o poeta a matar-se? Fora a Queen Kelly. Os outros escutavam-na sem a olharem, na expectativa do que ele iria dizer. Ele sentou-se na secretária. Depois tirou-se de lá e deslizou para o quadro preto, e escreveu em letras grandes: «perdi-me dentro de mim». Depois fez uma pausa, com o giz na mão. E acrescentou por baixo: «changer la vie». Voltou-se para a turma: — Fala-se muito de uma psicose histórica naquele princípio de século, da perda do sentido, da perda de um mundo coerente, de um sujeito estável. E quer-se dizer que — Não, professor, isso não. Ele olhou para ela, que lhe mostrava a palma da mão em frente da camisola preta justa. — Claro que o mais importante é sempre a impossibilidade sentida em mudar a vida, pois a pressão do contexto — Professor, a sério. O tom de Queen Kelly comoveu-o. Os lábios vermelhos como uma rosa de carne. As pernas dificilmente dobradas sob a carteira pe-

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quena de mais. Os ombros desenhados pelos dois braços cruzados no tampo, que os miúdos do período diurno crivavam de inscrições. Ele não se conteve: — Ninguém sabe o que é que lhe aconteceu. Acabou-se e pronto. Virou-se de costas, e apagou cuidadosamente a primeira frase que tinha escrito com um vértice do apagador carregado de pó. Que outra vez depositou devagar no receptáculo em calha que corria ao fundo do quadro. Esperou. Encarou-os de novo, em silêncio. Então começou a contar, em voz baixa: — Ele tinha conhecido uma mulher. Não conhecido como quem recebe um choque eléctrico, mas conhecido como quem olha para o espelho pela primeira vez, ou como quem vê o mar pela primeira vez. Era ela, ponto final. Aquela que tinha descrito nos seus contos, a que tinha solicitado nos seus poemas como personagem, a que estava sempre presente como personagem geral em todas as representações das actrizes dos boulevards, a que tinha sido falada entre ele e os mais amigos dos amigos, a mulher púrpura, a mulher morfina, a mulher vertigem, a que era insegura porque tinha um ritmo lento no andar quando se vendia em público, a que era luxuosa e bizarra, vestida de negro e brilhantes de fantasia, indolente, cálida, triste, inocente, depravada, habitante da noite, amadora de artes, enigmas. Ele descobrira-a num café de uma praça de clubes e teatros, e depois andaram toda a noite mudando de lugar, de palco, num enlevamento que ele sabia ser dela também um pouco, porque o amor é sempre recíproco, mas também porque o amor dele era uma tor-

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rente e ela não podia humanamente resistir-lhe, ambos inundados por esse amor que dele brotava em quantidade suficiente para alimentar todos os apaches de Paris. Ora, perante a mulher que vinha trazer um corpo milagroso à fantasia mais interior dos seus versos, perante aquela imagem directa da beleza, o que podia ele fazer senão retirá-la da circulação do prazer em que era profissional? A sua musa da noite não podia ser uma mulher que se vende de noite. Não poderia encará-la se não fosse assim, e nem a si se poderia ver, e ela consentiu sem hesitação. Não iria mais aos teatros, aos cafés e aos clubes onde ganhava e perdia a vida. Não andaria com mais ninguém a não ser ele e os amigos chegados de confiança que o adoravam. No entanto, subsistia um pequeno problema, o dinheiro. Ele tinha pago as suas contas religiosamente, ou com pouco atraso, até aí, porque ia recebendo uns dinheiros que negociava arduamente com o pai e com Lisboa. Mas agora as despesas, no mínimo, duplicavam, ou até triplicavam, porque a vida que ambos levavam não podia ser a de uma vã mediocridade, mas tinham que cear no Café des Capucines, tinham que se vestir no faubourg Saint-Germain, andar de carruagem, palmilhar as peças, os ballets principais. Ele ainda pôde pedir emprestado algum tempo, e arranjar reforço excepcional da família, mas a certa altura tornou-se insustentável, a fome apontou no horizonte, o negro, a perda, e foi-se tornando evidente: ela podia numa única noite de trabalho ganhar o suficiente para os dois viverem perfeitamente durante uma semana, talvez duas. Ela começou a pouco e pouco a convencê-lo, a falar-lhe nisso de ângulos e sob luzes que sabia lhe poderiam não desagradar por completo. Com a peste na alma, uma vez, ele não disse que não, e ela deixou-o certo fim de dia

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para ir fazer a sua volta de predadora. Regressou com quinhentos francos, já de manhã, ele estava acordado no seu quarto, sentado a uma mesa, um cotovelo pousado, o outro braço caído. Ia ser assim, ele não podia fazer nada que o pudesse evitar, não se sentia capaz, não havia maneira, a situação não deixava, estava-se em plena guerra, a Grande Guerra, e só havia uma coisa que podia fazer, Foi quando tocou para a saída.

3 Tinha atravessado uma fronteira qualquer. Desde que chegara a Paris, tinha sem dúvida atravessado fronteiras, e, ainda que na nonchalance de mostrar o passaporte, sempre era qualquer coisa, uma mudança que se sentia, e na primeira fronteira nem isso mostrara, não mostrara nada e ainda por cima ia a dormir, mas quando acordou deu conta de que já não era Portugal. Uma palavra escrita na paisagem, quem sabe se um sinal escrito no vento. Já não era Portugal e ainda bem. Lembrou-se dela. E ela voou para o lugar ao lado dele, e deu-lhe a mão, e encostou a coxa à dele, e pôs-lhe a cabeça no ombro. A questão toda da fronteira pôs-se quando percebeu que tê-la ali ao lado era tão evidente que só quem não era ele é que podia não ver. Depois, ao chegar a Paris, e na embrulhada de passageiros à procura de táxi, houve uma porta lateral de Austerlitz que lhe apareceu à frente, uns degraus até cá fora, e logo um táxi parou, com estampidos curtos, de

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lá saiu um senhor sem uma nódoa na gabardine e a porta nem chegou a ser fechada, o chofer aceitou que ele entrasse ali e até lhe sorriu. Pouco contavam elementos do exterior para o caso. Certas esquinas do Quartier faziam-lhe palpitar as veias. Pensava o que se teria passado. Reconhecia sítios onde estivera, mas era raro. Era como se atravessasse ali, além de uma zona pedestre, uma zona mental com uma copa de sentimentos. Depois sentava-se numa esplanada e pensava: houve num sítio qualquer uma fronteira. Às vezes passava por uma praça triangular, cheia de árvores, parava um pouco admirando aquela escala perfeita, rendilhada de folhas, de recantos de pedra, de bancos onde gostava de se sentar a olhar para nada. Um dia, encontrou um bouquiniste. Abrigava-se ali sob duas árvores, que ficavam a parecer colunas que enquadravam a barraca de madeira articulada. Foi ver o que tinha na banca inclinada, e deu com um exemplar das Illuminations de Rimbaud que comprou logo com moedas descobertas por milagre num bolso, e foi-se sentar num banco de pedra a ler, na luz que descia a pique, aqueles contos de lhe levantar os cabelos. Encontrou a frase: «Il est l’amour, mesure parfaite et réinventée, raison merveilleuse et imprévue, et l’éternité: machine aimée des qualités fatales». E continuou, quase sem respirar, a ler aquelas imagens emaranhadas e sem sentido, mas que se harmonizavam na sua cabeça como um carrossel com as luzes a girar à noite. Então voltou os olhos para a praça, a noite estava quase perfeita, e viu que passava, entre os bancos de pedra, um homem apressado que se perdeu logo na meia-luz de outros vultos, e durante os poucos segundos em que o viu soube que o conhecia, que era um amigo próximo e querido, embora nunca o tivesse visto, tinha a certeza.

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A verdade, se calhar, não existe. Mas a fome existe, e não há ciência senão do particular. As coisas perdem o peso, dissolvem-se nas palavras. Ele pensou que era belo dançar sozinho num cabaré de Pigalle, belo como um mercado desmantelado, belo como as figuras que se formavam na superfície da água quando olhava para as fontes na praça da Concorde. Mas as coisas que não existem também têm lugar no mundo, são como os fogos de santelmo. Houve matanças imensas que assentaram em coisas que estavam à vista de todos e que não existiam. Deus ele próprio pode ser uma rede posta a funcionar pelo contacto de ondas mentais de duas pessoas. É esse contacto que quer dizer «fez-se luz». No princípio, de qualquer dos modos, é o fazer. Não pode existir princípio sem principiar.

4 O primeiro olhar foi para ver se a Queen Kelly estava. Estava. Meias pretas, pernas cruzadas fora da carteira, o pulôver vermelho em bico que descia até ao delta dos seios, o cabelo puxado para trás rente à cabeça, a olhar para ele com um ar desinteressado e até a falar com a da carteira ao lado, a Sónia, sinal de que esperava com ansiedade o que ele fosse contar. Não que não soubesse já o que era. — Professor, foi então porque se apaixonou por uma prostituta que teve de se matar? — Sumário: continuação da aula anterior.

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