Esquizofrenia E Pop Rua

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ARTIGO ORIGINAL

Psicoses esquizofrênicas entre a população de rua Uriel Heckert¹ Juliana de Morais Ferreira Silva²

Recebido: 14/8/2001 Aceito: 14/11/2001

RESUMO Os autores apresentam dados de pesquisa com a população de rua de Juiz de Fora, MG, destacando os achados referentes àqueles indivíduos que receberam diagnósticos do grupo das psicoses esquizofrênicas. Demonstram que eles constituem um subgrupo específico entre os moradores de rua, com características demográficas, biográficas e comportamentais próprias. Destacam que eles permaneciam à margem dos recursos assistenciais e propõem que recebam atenção e cuidados específicos, que contribuirão para o bom êxito dos programas de reintegração social a eles dirigidos. Unitermos: Psicoses esquizofrênicas; População de rua. ABSTRACT Schizophrenic psychoses among homeless people The authors present a research conducted with homeless people in Juiz de Fora, MG, highlighting the data referring to those that presented schizophrenic psychosis. It is shown that they represent a specific subgroup among the homeless, with unique demographic, biographic and behavioral characteristics and also that they usually stay apart from the assistential resources. So they propose that this group receives a specific care, contributing to the succes of social reintegration programs aiming the homeless population. Keywords: Schizophrenic psychoses; Homeless.

Introdução O aumento considerável de pessoas que vivem nas ruas das cidades é fenômeno social relevante nas últimas décadas. Diferindo dos antigos mendigos, os atuais moradores de rua são os filhos bastardos da urbanização desenfreada e da ordem econômica excludente. Menos qualificados ou vítimas de situações desfavoráveis, eles seguem trajetórias de vida marcadas por privações, abandonos e perdas, que culminam com o rompimento dos padrões habituais de vida social. Muitos pesquisadores do campo da saúde mental têm mostrado interesse pela questão. Nos EUA, a partir da década de 1980, surgiram importantes iniciativas: o National Institute of Mental Health promoveu encontro ¹ ²

nacional em que se discutiu dez destacados projetos de pesquisa (Morrissey, 1987); a National Academy of Sciences publicou relatório de extenso estudo intitulado “Homelessness, Health and Human Needs” (National Academy of Sciences, 1988); task force da American Psychiatric Association confirmou, através da revisão dos dados disponíveis, a maior prevalência de transtornos mentais entre os desabrigados (Lamb et al., 1992). No âmbito da pesquisa acadêmica, algumas contribuições tornaram-se referência. Koegel et al. (1988) fizeram levantamento na região de Los Angeles, encontrando taxas mais elevadas referentes a todos os diagnósticos psiquiátricos entre a população de rua, quando comparada à população geral. North Smith

Médico Psiquiatra. Professor Adjunto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora. Doutor em Psiquiatria pela Universidade de São Paulo. Graduanda da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz de Fora. Endereço para correspondência: Uriel Heckert Rua Rei Alberto, 103/1000 – Juiz de Fora, MG – CEP 36016-300 Fone: (0xx32) 3212-8895 E-mail: [email protected]

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15 (1993) entrevistaram 900 homeless em albergues e locais públicos de St. Louis, utilizando como instrumento o Diagnostic Interview Schedule (DIS), atribuindo diagnóstico de esquizofrenia a 4,7% da amostra e destacando abuso/dependência de álcool (37,2%) e transtorno de personalidade anti-social (19,8%). Harris et al. (1994) estudaram a população dos quatro maiores albergues para desabrigados em Detroit, enfatizando a extrema vulnerabilidade dos que vivem nas ruas. Marshall (1994) revisou a literatura disponível, comparando as publicações anglo-saxônicas e norteamericanas, concluindo que todos os estudos relatavam altas taxas de morbidade psiquiátrica, com 15% a 32% de prevalência de esquizofrenia. Logo em seguida, foi realizada extensa pesquisa envolvendo a população desabrigada da Grã-Bretanha com idade entre 16 e 64 anos. Encontrou-se que aproximadamente 60% dos entrevistados apresentavam escores sugestivos de transtornos mentais no General Health Questionnaire, bem acima do encontrado entre a população domiciliada (Jenkins R et al., 1997). Em outros países, os dados indicam sempre elevadas taxas de transtornos mentais, incluindo casos identificados como do grupo das esquizofrenias. Kovess e Lazarus (1996) levantaram dados referentes a 715 pessoas em albergues e locais de alimentação para moradores de rua em Paris: esquizofrenias e transtornos delirantes foram identificados em 16% da amostra. Fichter et al. (1996) relataram estudo feito em Munique encontrando taxa elevada de alcoolismo e também de psicoses. Buhrich (1990) estudou albergados em Sydney, concluindo que 26% perfaziam critérios para diagnóstico de esquizofrenia. Os dados referentes a outros países são escassos e pouco precisos. No Brasil, pesquisa pioneira no campo psiquiátrico embasou tese de doutorado junto ao Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (Heckert, 1998; Heckert et al., 1999). Ela confirmou os achados das pesquisas internacionais, encontrando dados, muitas vezes, ainda mais contundentes. As taxas relacionadas ao alcoolismo foram as mais elevadas: 81,9% da amostra apresentava uso nocivo/dependência, sendo que a maioria entre eles já manifestava complicações (dependência ativa, uso contínuo, transtorno psicótico e demência). Transtornos decorrentes do uso de outras substâncias comprometiam 31,3% da amostra e transtornos do humor foram identificados em 32,5 %. No presente trabalho, fazemos um recorte e apresentamos com mais destaque os dados referentes aos que receberam diagnósticos de esquizofrenia e transtorno delirante.

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Método O presente trabalho apresenta dados específicos sobre os indivíduos que receberam diagnósticos do grupo das psicoses esquizofrênicas entre os que foram incluídos em pesquisa realizada com a população de rua de Juiz de Fora, MG. Os dados gerais obtidos no estudo inicial subsidiaram tese de doutorado apresentada ao Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (Heckert, 1998) e foram alvo de publicação posterior (Heckert et al., 1999). Para o presente trabalho, reportamo-nos ao banco de dados anteriormente reunido, fazendo um recorte específico conforme o diagnóstico atribuído. Assim, comparamos os dados demográficos, biográficos e clínicos referentes aos indivíduos que receberam diagnóstico de psicoses do grupo das esquizofrenias com aqueles referentes aos demais entrevistados. A pesquisa original teve o desenho de um estudo de prevalência, em corte transversal, no qual foi abordada, de forma sistemática e intensiva, a totalidade da população de rua da cidade. Entendeu-se por população de rua aquela que passa ali as 24 horas do dia, por dias consecutivos, nela suprindo suas necessidades básicas. Os critérios de inclusão exigiam idade de 18 anos ou mais e tempo de moradia na rua pelo prazo mínimo de um ano. Foram, assim, excluídos os que ficavam na rua ocasionalmente e os que estavam na rua por uma situação provisória. Para ter acesso a este universo, contou-se com a colaboração do órgão público municipal, de obras sociais e instituições de saúde que prestam assistência à população pesquisada. Todos estavam informados sobre os objetivos e a metodologia da pesquisa, sob o compromisso de ter os resultados à disposição dos interessados. O protocolo da pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética do Hospital Universitário da UFJF, instituição à qual o pesquisador está vinculado, e obteve-se o consentimento informado de cada entrevistado. Inicialmente, foram desenvolvidos dois instrumentos para uso na pesquisa: ficha epidemiológica e ficha de avaliação das entrevistas. Elas foram testadas em projeto-piloto. Passou-se logo ao cadastramento daqueles que preenchiam os critérios de inclusão, chegando-se a uma relação de 111 pessoas. Na segunda fase da pesquisa, 83 dos cadastrados foram contactados (75%), o que é considerado aceitável pelas características da amostra. A maioria das entrevistas foram realizadas em instituições (69%) e as demais no próprio espaço público. O instrumento diagnóstico utilizado foi o SCAN – Schedules for Clinical Assessment in Neuropsychiatry –

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16 Versão 1.0 (WHO, 1992; Andrade, 1994). Após a coleta dos dados biográficos e epidemiológicos, o questionário foi aplicado a todos os cadastrados e contactados (n = 83). Para tal fim, utilizou-se os recursos múltiplos que o instrumento oferece, inclusive para uso em situações especiais (entrevistado hostil, prestes a terminar a entrevista, embriagado, etc.). Os diagnósticos foram codificados pela Classificação Internacional de Doenças – 10a edição (OMS, 1993). Os dados encontrados receberam tratamento estatístico: teste t, análise de variância, teste de KruskalWallis. O nível de significância estatística e intervalos de confiança foram definidos em 95%. Resultados Pudemos constatar que a população de rua estudada na pesquisa que serviu de base para o presente trabalho não mostrava um perfil homogêneo. Os que receberam diagnóstico de esquizofrenia ou de transtorno delirante constituíam um subgrupo bem definido, quando comparados com o restante da amostra: eram oito indivíduos, que perfaziam 9,6% do total de entrevistados. A forma clínica mais diagnosticada entre eles foi esquizofrenia indiferenciada, num total de cinco casos. Foi identificado um caso de esquizofrenia paranóide e outro de esquizofrenia hebefrênica. Encontramos ainda um caso de transtorno delirante, compatível com a forma clássica de paranóia. Tratava-se de homem, solteiro, com 62 anos de idade, vivendo na rua por pouco mais de um ano, apresentando delírio sistematizado e monotemático de capacidades grandiosas (considerava-se um compositor ainda não reconhecido nos meios artísticos), com relativa integridade das demais funções psíquicas. Deve-se destacar que todos os diagnósticos deste subgrupo foram feitos com o valor máximo do índice de definição do programa SCAN/CATEGO (média = 8; DP = 0,0; p < 0,001). Este indicador mede a segurança com que o sistema computadorizado fornece o diagnóstico principal. Outro dado significativo é que não identificamos entre os arrolados neste subgrupo nenhum caso de alcoolismo, o que difere frontalmente do restante da amostra (p < 0,001). Havia apenas registro de uso esporádico de álcool em dois casos. Somente um indivíduo admitiu uso de maconha na adolescência. Dos oito que receberam esta categoria de diagnósticos, três eram mulheres (26,6%). Isto difere do total da amostra, em que o percentual de mulheres ficou em 14,5%. O número pequeno de casos, porém, não permitiu estabelecer associação com valor estatístico.

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Elas eram as pessoas mais idosas que encontramos vivendo nas ruas: 60 anos (estimado), 64 e 79 anos. Quando consideramos outras variáveis, o subgrupo dos que receberam diagnósticos relacionados às psicoses esquizofrênicas apresentou várias diferenças estatisticamente significativas, quando comparado ao restante da amostra. Assim é que ele incluía pessoas com mais tempo de vida na rua: 8,6 anos em média (desvio padrão de 4,2). Isto corresponde a 3,6 anos em média a mais que os demais entrevistados, sendo a diferença significativa (Kruskal-Wallis H = 4,747; graus de liberdade = 1; p = 0,02). A idade média na qual esses indivíduos iniciaram a vida na rua foi maior em 9,5 anos, quando comparados com o restante da amostra. Eles passaram a viver na rua, em média, aos 42,8 anos (DP = 23,8), enquanto os demais o fizeram, em média, aos 33,3 anos (DP = 12,3). A diferença não alcançou significância estatística, provavelmente pelo pequeno número de casos (Kruskal-Wallis H = 0,813; graus de liberdade = 1; p = 0,3). Outros achados significativos referentes aos que receberam estes diagnósticos, sempre em comparação com o restante da amostra, são os seguintes: • eles eram predominantemente solteiros: cinco deles nunca haviam estabelecido um vínculo conjugal (qui-quadrado = 13,21; graus de liberdade = 5; p = 0,02). Dois haviam se casado e estavam separados, e um deles não informou seu estado civil. Quanto à relação de casal estabelecida na rua, apenas uma das três mulheres esquizofrênicas tinha um companheiro. As duas outras mantinham-se vivendo na rua e solitárias. Isto contrariava a tendência das demais mulheres, que se apresentavam sempre ligadas a um homem; • tinham menor grau de instrução: três eram analfabetos ou semi-alfabetizados; três não completaram o primeiro grau; um deles não quis informar. Apenas o que recebeu diagnóstico de transtorno delirante completou o segundo grau de instrução. Os índices são piores que os encontrados no restante da amostra (qui-quadrado = 15,51; graus de liberdade = 4; p = 0,003); • manifestavam menor esperança de reverter a situação de morador de rua (qui-quadrado = 11,41; graus de liberdade = 3; p = 0,009). A maioria deles considerava a sua condição de vida permanente ou não sabia fazer uma previsão de futuro, ao contrário do restante da amostra, em que 60,2% dos entrevistados consideravam a situação em que viviam temporária;

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tinham menos contato com a família de origem (qui-quadrado = 14,81; graus de liberdade = 4; p = 0,005). Isto é ainda mais relevante considerando-se que nenhum deles experimentou condição especial de socialização, ao contrário do restante da amostra, em que 20% havia passado por orfanato, instituições para ressocialização de crianças (FEBEM) e/ou família adotiva; • atribuíram mais importância à religião, quando comparados aos demais entrevistados (quiquadrado = 15,01; graus de liberdade = 3; p = 0,001). Quatro deles não freqüentavam nenhuma reunião religiosa, mesmo aquelas realizadas nas obras de assistência a moradores de rua. Um disse não ter religião e considerou-a de pouca importância; • compareciam menos aos serviços comunitários de ajuda à população de rua (qui-quadrado = 20,91; graus de liberdade = 2; p < 0,002). Quando consideramos os aspectos médicos, encontramos que os indivíduos que receberam diagnóstico de esquizofrenia e de transtorno delirante haviam passado com mais freqüência pelos ambulatórios de saúde mental do que o restante da amostra (qui-quadrado = 11,74; graus de liberdade = 2; p = 0,002). Em contraposição, eles apresentavam menor taxa de internações psiquiátricas (qui-quadrado = 11,19; graus de liberdade = 2; p = 0,003). Cinco indivíduos nunca haviam passado por hospital psiquiátrico. Apenas um deles vinha de múltiplas e longas internações, tendo desfeito a ligação com sua família. Discussão As pesquisas são unânimes em indicar que são freqüentes os diagnósticos de esquizofrenia entre a população de rua. A taxa que encontramos está bem

acima da encontrada na população geral brasileira (Almeida Filho et al., 1992; 1997; Andrade et al., 1998). Quando comparada com os dados da literatura internacional referentes àquela população específica, ela fica num nível intermediário. Supera a de North e Smith (1993), que foi de 4,7% em St. Louis; a de Fichter et al. (1996), que foi de 6,0% em Munique; e ainda a de Reed et al. (1992), que encontraram 8,0% entre os homeless de Londres. As demais pesquisas realizadas em países desenvolvidos apontam uma prevalência maior de diagnósticos de esquizofrenia. Isto pode ser explicado, em parte, pelo fato de termos usado um instrumento rigoroso de diagnóstico psiquiátrico, sendo que todas as entrevistas foram feitas pelo mesmo pesquisador, com experiência e rigor clínico. Em geral, os estudos utilizam instrumentos de screening menos precisos (CIDI, DIS, GHQ), aplicados até por leigos treinados, o que pode superestimar o número de casos. Outra possibilidade é que naqueles países as políticas sociais sejam eficazes em evitar que pessoas mais sadias tomem o caminho das ruas. Assim, ficariam expostos à condição de desabrigados os mais desqualificados para o convívio e a integração sociais, como seria o caso dos psicóticos graves, fazendo inflar sua taxa entre os moradores de rua. A questão da desospitalização psiquiátrica, já exaustivamente discutida nos países desenvolvidos, não pareceu ser relevante para a nossa amostra. Juiz de Fora, na verdade, oferece um número de leitos psiquiátricos considerado excessivo: cerca de 1.000 leitos para uma população de 424.479 habitantes à época da pesquisa (IBGE, 1997). Além disso, a porta de entrada aos hospitais continuava aberta, via Serviço de Urgências Psiquiátricas, que funciona no ProntoSocorro Municipal, local que prioritariamente atende à população de rua da cidade. Contrastando com os 42,2% da nossa amostra, que já haviam passado por hospital psiquiátrico, Vieira et al. (1992) encontraram

Tabela 1 Perfil da clientela No

Sexo

Idade (anos)

Estado civil

Religião

1 2 3 4 5 6 7 8

M F F M M F M M

33 79 60 62 40 64 23 50

Separado Solteiro Solteiro Solteiro Solteiro C/comp. Solteiro NI

Católica Evangélica Católica Evangélica Nenhuma Católica Evangélica NI

Tempo de rua (anos) 3 6 NI 1 10 10 14 NI

Ambulatório de Saúde Mental Sim Não Não Sim Sim Não Sim NI

Internação psiquiátrica

Diagnóstico

Sim Não Não Não Não Não Sim NI

Esq. indiferenciada Esq. paranóide Esq. indiferenciada Tr. delirante Esq. hebefrênica Esq. indiferenciada Esq. indiferenciada Esq. indiferenciada

C/comp.: com companheiro; NI: não informado

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18 em São Paulo apenas 6,2% que o fizera. Juiz de Fora, na verdade, ainda não experimentara um processo de desospitalização genuíno. O que mais chama a atenção, no entanto, é que justamente estes pacientes psiquiatricamente mais graves não eram os usuários habituais dos hospitais psiquiátricos da cidade. Isto contrastava com o que acontecia ao restante da amostra, constituída por indivíduos com diagnósticos relacionados ao uso de álcool e outras drogas, além de variados transtornos mentais. Tudo faz crer que a internação psiquiátrica era usada pelo segmento da população de rua menos comprometido mentalmente, mais como estratégia de sobrevivência. Assim, o equipamento hospitalar estaria cumprindo um papel mais social que terapêutico, capaz de garantir cama, alimento e “benefício” da Previdência Social. Esta deformação do uso do leito psiquiátrico não nos parece aceitável. O fato de nossos entrevistados com diagnósticos de esquizofrenia terem comparecido mais aos ambulatórios de saúde mental não significa que estavam a eles vinculados e encontravam-se bem assistidos ali. Sabe-se da dificuldade que os moradores de rua têm para aderir a serviços de atenção continuada. Isto se deve a características que lhes são próprias e a embaraços que os próprios profissionais de saúde têm em atendê-los. Por este motivo, sugerem-se serviços específicos voltados a tal público. Os dados demográficos e biográficos, por sua vez, indicam claramente que os psicóticos esquizofrênicos formam um subgrupo entre os moradores de rua, com perfil e características próprias. Eles começavam a vida na rua mais tarde, possivelmente por ter mecanismos sociais capazes de os proteger, até que a evolução da doença determinou a direção da rua. Eles tinham estrutura familiar que os sustentou, não necessitando de formas especiais de socialização. Ao contrário dos que adoecem nas ruas, eles, provavelmente, passam à rua movidos pelas incapacidades que a doença promove. Por outro lado, eles são incapazes da versatilidade de que se valem outros moradores de rua. Por exemplo, permanecem solitários e recorrem pouco às instâncias sociais que podem lhes oferecer algum suporte. Provavelmente ficam mais expostos a violências, fome e carências múltiplas. Muitas vezes, pela própria aparência ou movidos pelo delírio que os assoma, afugentam os que tentam alguma aproximação. Eles talvez sejam os mais sofredores entre os que vivem nas ruas. Sem receber ajuda eficaz, permanecem mais tempo na mesma situação de vida. Poupados da deterioração produzida pelo uso do álcool e outras drogas, bem como das doenças que a promiscuidade sexual dissemina, parecem mais predispostos a uma

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vida longa, mesmo em condições adversas de sobrevivência. Estão aí a denunciar as falhas do nosso sistema assistencial. Os contatos familiares já haviam se perdido. Demonstraram que depositavam alguma esperança na religião. De fato, a exploração do simbólico, do mundo mítico, tem se revelado esclarecedora e eficaz como caminho até essas pessoas (Hernández, 1986). Quanto às características do sistema SCAN/ CATEGO, vale destacar que os diagnósticos de esquizofrenia foram fornecidos com o maior grau de precisão possível (índice de definição = 8). Isto correspondeu inteiramente à impressão clínica que os entrevistados deixaram quando examinados. Entretanto, com relação à caracterização das formas clínicas de esquizofrenia, verificamos discordâncias entre a avaliação clínica e o diagnóstico gerado pelo sistema computadorizado. Como se sabe, o diagnóstico de esquizofrenia indiferenciada deve ser reservado para aqueles quadros que não se adaptam a nenhum dos subtipos mais comuns. Outra possibilidade é que ele seja reservado para os casos que apresentam aspectos sintomatológicos múltiplos, sem uma clara delimitação de sintomas. Talvez seja esta a explicação mais plausível: a complexidade dos casos que entrevistamos, já com anos de evolução da doença, gerou algoritmos múltiplos e até contraditórios, que não permitiram ao programa computadorizado uma definição mais precisa. Conclusão Os dados da nossa pesquisa e da literatura internacional indicam que os indivíduos com diagnóstico de psicose do grupo das esquizofrenias constituem um subgrupo específico entre os moradores de rua. Eles apresentam características demográficas, biográficas e comportamentais que os distinguem entre este segmento da população. Como se trata de enfermos mentais graves, eles devem merecer atenção psiquiátrica qualificada, que não é adequadamente suprida pelos serviços médicos convencionais. Assim, propomos que se organizem programas de saúde mental específicos, que respeitem as características desta clientela e supram suas necessidades de tratamento. Só assim, as medidas de reabilitação e reinserção sociais a eles dirigidas poderão surtir resultados positivos. Referências bibliográficas ALMEIDA FILHO , N.; MARI, J.J.; COUTINHO, E.; FRANÇA, J.F.; FERNANDES, J.G.; ANDREOLI, S.B; BUSNELLO , E.D.A. – Estudo Multicêntrico de

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