Entre com Cuidado no Amarelo Piscante ou Carona na Barca de Caronte Roberto Moreno
Personagens: Morto Vivo
Morto e Vivo entram e se posicionam na frente do palco. Estão num ônibus, lado a lado, segurando a barra com uma das mãos. Ficam alguns segundos em silêncio, se balançando com o movimento do ônibus.
Morto: Fui atropelado às quatro e cinco da madrugada do dia 17 de setembro de 2004. Contava 44 anos, quatro meses, sete dias e cinco minutos. Morri logo depois, deixando, inconsoláveis, mulher e filhos.
Vivo: Morreu nada, tu tá bem vivo aí
Morto (ignorando a intervenção): Foi ali, olha, acabamos de passar, ainda dá pra ver. Ali na multiesquina: Mario Pires, Xavier de Toledo, Martins Fontes, São Luis, Consolação e o viaduto... como é mesmo o nome? Maria Antonia? Maria Paula? Jacareí!
Vivo: Tava fazendo o que na rua, a essa hora?
Morto: Estava indo jantar; estava indo comer um pernil no Estadão. Voltava da praça, ainda vivo, nunca havia estado tão vivo em toda a minha vida.
Vivo: E aí puf, morreu? Qua qua qua qua! Tu tá vivo, cara! Se liga!
Morto: Morri uns três ou quatro minutos depois. Saiu no 'Agora', manchete da
terceira página: 'morreu na hora'. Mentira. Ainda agonizei uns três ou quatro minutos. Quer dizer, esperei. Não teve agonia, não estrebuchei, não fiquei moribundo. Só esperei. Três ou quatro minutos.
Vivo: Tá bom, tá querendo que eu acredite? Raciocina comigo: eu tô vivo, certo? Estou aqui conversando com você, certo? Tá seguindo o pensamento? Você está conversando comigo. Logo, se eu estou vivo, conversando com você e você está conversando comigo, você está vivo, camarada! Todo mundo sabe, está escrito, já li trezentos e noventa e oito livros sobre isso e posso afirmar: os mortos não falam. Quando muito, ditam um ou outro depoimento aí, pra fazer a fortuna da família Gasparzinho.
Morto (para o público): A quantidade de livros que você lê é inversamente proporcional à quantidade de vezes que você faz sexo.
Vivo: E tem mais: já estou escrevendo um livro sobre isso: mortos não falam!
Morto (para o público): E quando começa a escrever, então...
Silêncio
Vivo: Peraí... Estou te reconhecendo...
Morto: Acho difícil.
Vivo: É isso, estou lembrando. Você trabalha na TV?
Morto: No, no.
Vivo: Cinema! É isso! Você fez aquele filme dos anjos, do Win Wenders. Bruno... Bruno... Gael, Gabriel, Ganz! Bruno Ganz!
Morto: Nunca ouvi falar.
Vivo: Tudo bem, então é sósia. Ou clone.
Silêncio – os dois se balançam com o movimento do ônibus
Morto: Você come quando está ansioso?
Vivo: Claro! Todo mundo come quando está ansioso.
Morto: Hiperfagia. Eu comia demais à noite. Principalmente nos dias de semana. Ficava até tarde enchendo a cara de vodka depois saia desesperado em busca de um supermercado 24 horas para comprar lazanha congelada. Aos sábados, domingos e feriados eu comia pizza. De bacon. Meu pai sempre dizia: prefiro viver 98 anos comendo bacon a viver 99 comendo salada! Morreu com cinqüenta e poucos, sem poder comer sal nem gordura.
Vivo: Eu me contento com uma sopinha básica, sabe? De vez em quando, um miojo pra variar.
Morto: Naquele dia eu estava com muita fome. Naquela noite, desculpa. Naquela noite eu estava com muita fome. Parecia larica. Aí ele veio em minha direção.
Vivo: Jesus?
Morto: Um carro. Era um Fiat Dobló fazendo delivery de transexuais. Tinham uma entrega ali no Anhangabaú. Acho que o nome do motorista era Romualdo, Rodolfo, Richarlysson, alguma coisa assim. Ou então esse era o nome da entrega, não tenho certeza.
Vivo: E...?
Morto: E o quê?
Vivo: E o que aconteceu?
Morto: Porra, me atropelou! Não tá prestando atenção na história?
Vivo: Ok, ok, entendi, pode seguir.
Morto: Estava falando da ansiedade. Sabe aquela ansiedade? Aquela ansiedade? Ansiedade noturna que implora por quilos de sal e areia e cimento e cal. E a gente sangrando pelo desespero de ver o dia acabando e mais um dia acabando e tanto por fazer, tantas tarefas inacabadas, missões, projetos adiados, adiamentos prorrogados sine die. Era uma daquelas noites.
Vivo: Já experimentou tomar kava-kava? É natureba, não faz mal. Se bem que, no seu caso, tanto faz, né? Os chefes das tribos da Indonésia tomavam chá de kavakava antes de reuniões importantes com estrangeiros e faziam os convidados tomar também. Fica todo mundo de boa.
Morto (solta a barra, pega uma caneta e anota na mão): Como é o nome? Cava o quê?
Vivo: Kava-kava. Com “k”.
Morto (enquanto escreve, desvia o olhar para o público): Ei, você! Vire esta câmera pra lá. Odeio posar. Odeio ser apontado. Se quer meu retrato, faça de um jeito que eu não perceba. Se que me matar, atire pelas costas. Odeio morrer de frente.
Vivo: Como assim?
Morto: Como assim o quê?
Vivo: Morrer de frente! Você já morreu de outro jeito?
Morto: De lado, seu estúpido. Eu estava atravessando a rua quando...
Vivo: Já sei, já sei, veio um Fiat Dobló e te espatifou.
Os dois se afastam para dar passagem a alguém invisível que se levanta
Vivo: Senta.
Morto: Senta você.
Vivo: Não, obrigado, pode sentar.
Morto: Não, senta você.
Vivo: Pode sentar, tudo bem.
Morto: Não dá. Minhas pernas têm mais de 65cm. Só vou ficar confortável depois que o ministro tirar metade dos assentos.
Vivo: Vai sonhando. Capaz de tirarem todos os assentos, pra caber mais gente em pé, espremida.
Silêncio
Morto: As máquinas fotográficas sugam a alma da gente. Você já viu algum saci?
Vivo: Hein?
Morto: Saci! Já viu algum, alguma foto ou filme de saci?
Vivo: Tá me tirando, é?
Morto: Você nunca viu um saci porque eles não podem ser fotografados ou filmados. Eles são sugados pela máquina.
Vivo: Que história é essa, rapaz? E papai noel, pode tirar fotografia?
Morto: Você já viu algum papai noel?
Vivo vai responder, mas fica desconcertado e se cala
Morto: Nunca se deixe fotografar. Nem depois de morto.
Vivo: Você estava falando de ansiedade, comida, pernil...
Morto: É, pernil... Adoro pernil. Sempre que me olho no espelho vejo um porco. Afinal, você é o que você come. Por isso, quando alguém me diz que é vegetariano, me sinto ridículo. Tenho a impressão de estar conversando com um nabo.
Vivo: Tenho uma tia que é vegan, radical. Já os filhos dela, meus primos, torram todo o dinheiro no McDonalds.
Morto: Aí tem outra questão.
Vivo: Qual?
Morto: Grana. É importante ensinar os filhos a lidar com dinheiro desde cedo. Controlar a mesada, fazer poupança, valorizar o próprio trabalho. Assim eles têm
mais chances de enriquecer e, quem sabe, poderão pagar um bom asilo para os pais.
Vivo: Tem razão... a velhice deve ser uma fase difícil.
Morto: Não se preocupe com isso. Aliás, para seu conhecimento, a vida não tem fases.
Vivo: Ah, não? Tem o quê?
Morto: A vida vem em layers, camadas, como no Photoshop. Você nasce como um background e vai aplicando camada sobre camada. Algumas são transparentes e deixam ver as de baixo. Outras são opacas, coloridas, degradês. Tem gente que se enche de camadas, deixando o arquivo pesado. Alguns poucos conseguem manter a leveza, mas ninguém, até hoje ninguém, conseguiu ficar só no background.
Vivo: Photoshop não é aquele negócio que as revistas usam pra transformar mocréia em gostosa?
Morto (ignorando o comentário): Terminei minha vida como um arquivo médio. Cheguei a ter dezenas de camadas, mas tomei consciência a tempo e fui reduzindo os excessos. Quando morri, era apenas um cara simples, que andava de ônibus, ia ao cinema de vez em quando, trabalhava. Só não consegui me livrar do layer da bebida. Talvez, quem sabe, se tivesse conseguido, teria prestado mais atenção ao atravessar a rua e ainda estaria vivo. Se bem que... tanto faz.
Vivo: Vai descer no final?
Morto: Quê?
Vivo: Você vai descer no ponto final?
Morto: Ah, não. Ninguém vai.
Vivo: Eu vou.
Morto (irônico): Sei...
Silêncio
Vivo: Essas suas idéias são muito esquisitas, mas não posso negar que são originais. Você devia escrever um livro.
Morto: De novo, essa história de livro?
Vivo: É, um livro, é a melhor forma de você passar essas teorias malucas pra frente. Vai que alguém se interessa. E se começarem a encher o saco, você diz que é ficção. Na ficção pode tudo. Foi o recurso que o Julio Verne usou para espalhar para o mundo suas teorias sobre viagens espaciais e submarinas no fim do século 19. Se tivesse falado a sério, teria sido ignorado. Ou internado.
Morto: Parei com os livros. Essa foi uma das camadas que consegui deletar. O acúmulo de informações estava me deixando gordo, pesado, nem conseguia me mexer mais. Parei com tudo. O último livro que li foi Walden, do Thoreau. Foi definitivo. Depois dele, nunca li mais nada.
Vivo: Nem jornal?
Morto: Estou falando de livros. É claro que li outras coisas: bulas, anúncios, jornais, quadrinhos... Até que li a placa.
Vivo: Placa?
Morto: Uma placa.
Vivo: Que placa?
Morto: “Entre com cuidado no amarelo piscante”. O motorista do Dobló não leu.
Vivo: Tá, ok, o atropelamento. Mas você ainda não me convenceu disso: se você está morto, como é que está aqui, falando comigo? Os mortos não ficam num lugar reservado, tipo camarote vip, assistindo as asneiras dos vivos?
Morto: É isso aí. A gente fica lá, assistindo, só isso. Essa história de voltar pra puxar o dedão de quem conta mentira é papo-furado.
Vivo: Mas então?
Morto (risadinha sarcástica): Mas então...
Vivo: Você quebrou uma regra! Você está conversando comigo.
Morto: Olha aqui, espertinho... vou dar uma dica: você assistiu “O Sexto Sentido” ??
Vivo: Com o Bruce Willis?
Morto: Esse mesmo.
Os dois se desequilibram com freada do ônibus
Vivo (assustado): Quer dizer que...?
Morto: É isso aí.
Vivo: I see dead people?
Vivo fica de olhos arregalados, imóvel
Morto: Foi um dia excepcionalmente vibrante na parte da manhã e modorrento à tarde. Biorritmo abissal. À noite, a depressão de sempre. Dia esquisito para morrer, carregando uma sacola de projetos para o futuro próximo. Horas depois, com o movimento dos carros aumentando, o dia clareando, todos os projetos já haviam sido chutados ou varridos ou escorregados para um bueiro. Tomara que alguém tenha recolhido algum deles para um dia, quem sabe, pôr em prática. Ou jogar fora. Tanto faz.
C’est fini.