A ATUALIZAÇÃO DO THAUMÁZEIN ENQUANTO PÁTHOS DO FILÓSOFO E ARCHÉ DA PHILOSOPHÍA A PARTIR DA OBRA DE JORGE LUIS BORGES
Éder Rosa Pedroso∗
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Introdução
Não é novidade o fato de que a filosofia, apesar de não ser “tudo” - e, felizmente no geral, já não mais se espera dela essa pretensão -, possui a propriedade de incidir o seu olhar investigativo sobre uma vasta gama de conhecimentos, valendo-se de diferentes métodos em suas abordagens. Para tanto, todo aquele que se dedica ao seu estudo, independentemente de ser experiente ou iniciante, necessita ininterruptamente pesquisar, observar, investigar tudo aquilo que possa conter em seu interior um problema filosófico ou que seja capaz de instigar o ato do filosofar. Em tempos de obrigatoriedade da filosofia, estudantes e professores não podem mais, dentre outras coisas, restringir suas leituras apenas a textos e obras estritamente filosóficas. Certamente que o exame dos autores clássicos é imprescindível, e qualquer formação que não leve em conta esse fato acabará por ser sempre deficitária. Apenas queremos ressaltar que outras formas de leitura como jornais, revistas e, em especial, obras literárias
contribuem
significativamente
para
o
desenvolvimento
da
capacidade de compreensão, interpretação, escrita, bem como para a qualificação dos poderes especulativos e argumentativos. No universo literário encontramos obras que otimizam a aprendizagem e o gosto pela filosofia, podendo inclusive servir como um exercício
∗
Acadêmico do curso de Filosofia da Universidade de Passo Fundo.
propedêutico a ela, ou seja, suscitar no leitor uma atmosfera reflexiva tal que lhe dê mais confiança no sempre tenso confronto com os clássicos. Por esse viés, no que tange à obra do escritor, poeta, ensaísta e contista argentino Jorge Luis Borges (1899-1986), há, entre um número significativo de comentadores, especialistas e leitores, o consentimento de que ela constitui, entre outros digamos “achados”, um desses mananciais fecundos para reflexões, análises, enfim, problematizações de caráter filosófico. Ademais, a aproximação da escrita literária borgeana a inúmeros pensadores, tais como Hume, Heráclito, Derrida, Kant, Berkeley e Foucault, só para citar alguns, e a sua vinculação a diferentes sistemas teóricos (Cf. PEREZ, 2004, p. 12-13) nos levam a interessantes indagações, como aquela que diz respeito à existência ou não de uma linha de pensamento fundamental que oriente as múltiplas interpretações acerca da relação Borges/filosofia. Nesse sentido, Daniel Omar Perez (2004, p. 11ss) apresenta como fio condutor a hipótese de que Borges realiza uma desarticulação da metafísica por intermédio da análise da metáfora. “Borges desarticula os textos filosóficos em vários momentos mostrando sua instância última como metafórica” (PEREZ, 2004, p. 14). Não nos debruçaremos em demasia sobre a argumentação de Perez. O relevante para nosso propósito é a noção de metáfora, um dos elementos centrais da obra borgeana. Assim, iniciaremos nosso percurso analisando de que forma o próprio Jorge Luis Borges concebe a sua relação com a filosofia.1
1
Perez realiza em seu artigo uma exposição análoga a que se segue. Diga-se de passagem, que o seu exame suscitou o nosso.
A complexa relação Borges/filosofia
Nas notas do livro Discussão (1932) Borges afirma haver coligido certa vez uma antologia da literatura fantástica.2 Em sua opinião, essa obra é uma das raras dignas de serem salvas de um segundo dilúvio por um segundo Noé. Contudo, não hesita em denunciar a censurável omissão daqueles que considera os grandes mestres do gênero, dos quais ninguém suspeita: Parmênides, Platão, João Escoto de Erígena, Alberto Magno, Espinoza, Lebnitz, Kant, Francis Bradley (2001, p. 303). Já em “Tlön, Uqbar, Orbis, Tertius”, conto inserido na obra Ficções (1944), encontra-se a seguinte declaração sobre o planeta que empresta nome à narrativa: “Os metafísicos de Tlön não procuram a verdade nem sequer a verossimilhança: procuram o assombro. Julgam que a metafísica é um ramo da literatura fantástica.” (BORGES, 2001, p. 481) Ainda nessa mesma perspectiva, na narrativa “Utopia de um homem que está cansado”, da obra O Livro de areia (1975) a Suma teológica é apresentada como sendo um conto fantástico (BORGES, 1999, p. 60). Perez (2004, p. 13) ressalta que, embora esse Borges das narrativas de ficção transite por vezes para um Borges do ceticismo, o qual encara com total incredulidade a possibilidade do conhecimento, persiste entre ambos a figura do homem que em vários momentos se definiu como um argentino perdido na metafísica. A concepção de metafísica presente aqui é a clássica. Aquela contra a qual Hume (1989, p. 18) disparou com seu garfo a acusação de ser fruto da vaidade
humana,
que
teria
a
vã
pretensão
de
investigar
temas
completamente inacessíveis ao entendimento. A mesma metafísica cujo método, segundo Kant (2004, p. 28), constituiu-se até então em um mero palmilhar na escuridão, um tatear entre meros conceitos. 2
O autor refere-se a obra Uma antologia da literatura fantástica (1940) elaborada em conjunto com Silvana Ocampo e Adolfo Bioey Casares.
Borges, da mesma forma que Hume e Kant, tem consciência das dificuldades encontradas pela metafísica. Contudo, ao contrário de ambos, não parece pretender “salvá-la”, ou seja, fundamentá-la enquanto ciência. É evidente que a identificação da metafísica como gênero da literatura fantástica sugere uma crítica carregada de ironia. E, segundo Perez (2004, p. 14), em História da eternidade (1936) Borges realmente adota essa postura ao ler os conceitos metafísicos como metáfora. Como já havíamos adiantado anteriormente, se faz mister verificarmos o significado da metáfora em Borges, para compreender de que forma ela se insere na gênese e no posterior desenvolvimento da obra de nosso escritor.
O ultraísmo e a metáfora
A década de 20 do século passado tornou-se um marco em termos culturais e artísticos com o surgimento das vanguardas internacionais. Na Argentina, o movimento se constituiu no ultraísmo, surgido originariamente na Espanha no final da década de 10, tendo como um de seus fundadores Cansinus-Asséns (Alcalá & Schwartz, 1992, p. 9 ss). Após concluir os estudos secundários em Zurique (Suíça), Borges muda-se para a Espanha, em 1918, onde permanece durante três anos, em Madrid e Mallorca. Passa então a publicar traduções da poesia expressionista alemã, e acaba por se vincular ao grupo de Cansinos-Asséns. Quando retornar definitivamente para Buenos Aires, em março de 1921, Borges será um dos principais responsáveis pelo início do ultraísmo argentino. Nesse promissor contexto cultural a metáfora é um dos principais fundamentos enquanto expressão literária. “A busca da metáfora insólita e engenhosa, que suscita assombro, é um dos propósitos que guia a nova estética” (VERANI, 1999, p. 47, tradução nossa). Borges, por sua vez, no texto Anatomia do meu ultra, publicado na revista Ultra, Madrid em 20 de maio de 1921, revela os seus anseios, os
quais sintetizam bem o espírito dos jovens artistas literários argentinos da época: [...] desejo uma arte que traduza a emoção desnudada, depurada dos dados adicionais que a precedem. Uma arte que esquiva o dérmico, o metafísico e os últimos planos egocêntricos ou mordazes. Para isto - como para toda a poesia - existem dois meios imprescindíveis: o ritmo e a metáfora. [...] A metáfora: uma curva verbal que traça quase sempre entre dois pontos - espirituais - o caminho mais breve (Borges Apud Alcalá & Schwartz, 1992, p. 27).
Outra exposição dos princípios ultraístas professados por Borges se encontra no texto Apontações críticas3, onde ele afirma não haver uma substancial diferença entre a metáfora e aquilo tudo que os cientistas nomeiam como sendo a explicação de um determinado fenômeno, pois ambos são vinculações entre duas coisas distintas em que uma se transforma na outra. Dessa forma, ou ambas são verdadeiras ou ambas são falsas. Porém como acreditar, indaga Borges, que uma coisa possa ser a realidade
de
outra,
ou
que
existem
sensações
transmutáveis
-
definitivamente - em outras sensações? (BORGES apud VERANI, 1990, p. 255). Em contrapartida, logo no seu primeiro livro de poesias, Fervor de Buenos Aires (1923), em pleno borbulhar do movimento, é possível verificar uma nova caracterização da metáfora e com ela uma outra maneira de encarar a relação com a própria metafísica. Segundo Verani (1990, p. 49), logo após retornar a Buenos Aires o poeta Borges inicia o seu afastamento do ultraísmo. Daí por diante, “El Maestro” - como ele era chamado - passará a dar preferência a temas que buscam uma verdade intemporal e permanente. Continuará usando metáforas, porém, essas, de acordo com Verani (1990, p. 49), serão mais eficazes do que inesperadas, sendo
3
Publicado originariamente em Inquisiciones (Buenos Aires. Editorial Proa, 1925), p. 98.
orientadas pela necessidade da comunicação e do entendimento em detrimento da novidade. Concordamos que Borges supera aspectos do ultraísmo. A incoerência verbal e a ilogicidade metafórica são dois desses elementos transcendidos, em suas próprias palavras, com a “[...] imarcescível inquietude metafísica.” (BORGES Apud VERANI, 1990, p. 49) (tradução nossa) Não obstante, no conjunto de sua obra essa suposta cisão nos parece meramente retórica. Essa suspeita se torna mais verossímil à medida que se compreende o real espírito da vanguarda Argentina. Nesse sentido, o Manifiesto del ultra, redigido por Borges em parceria com Jacobo Sureda, Fortunio Bonanova e Juan Alomar, é iluminador:
Esta é a estética do Ultra. Sua vontade é criar; é impor faces insuspeitas ao universo. [...] Os ultraístas existiram sempre: são os que, adiantando-se a sua época, presenteiam ao mundo aspectos e expressões novas. A eles devemos a existência da evolução, que é a vitalidade das coisas. Sem eles seguiríamos girando ao redor de uma luz única, como as mariposas. O grego, com respeito a seus demais contemporâneos, resultou também ultraísta, e assim tantos outros (Borges Apud Verani, 1990, p. 251) (tradução nossa).
A inquietação pelo transcendente e essencial, que como veremos a seguir embasará a literatura ensaística de Borges, leva-nos a indagar sobre o significado do termo “fantástico” para que o Maestro o considere presente tanto na literatura quanto na filosofia. Ademais, coloca em suspensão nossa própria hipótese de “El espírito de vanguardia” imarcescível em Borges, uma vez que essa maneira de pensar a arte e a vida “[...] como um devir em constante mudança” (BORGES apud ALCALÁ & SCHWARTZ, 1992, p. 26) soa inconciliável com a permanência e a intemporalidade que embasam a metafísica.
No entanto, justamente a confluência (ou seria a divergência?) desses dois aspectos - espécie de “ultraísmo grego” -, explorados por ele com singular genialidade, é que pode possibilitar aos seus leitores desenvolver o páthos, estado de animus, ao mesmo tempo psicológico e ontológico, que lhes permita experienciar a indagação grega sobre o Ser, atualizando a atitude filosófica do thaumázein (espantar-se, admirar-se, maravilhar-se) frente ao mundo, o qual constitui a arché, princípio originário e mantenedor da philosophía. (filosofia) (SOARES, In: FÁVERO; TROMBETTA e RAUBER, 2002, p. 190-191)4.
A influência grega
Se por um lado o ultraísmo provocou marcas indeléveis no jovem Borges, por outro a Grécia o fascinou desde a infância. Aos seis ou sete anos travou contato com a mitologia grega. Realizava leituras e até elaborou em inglês um pequeno ensaio sobre o tema. (Cf. JURADO, 1980, p. 38) Ainda menino descobriu a tragédia, a poesia e sobretudo a filosofia; e, à medida que se aprofundava em seus estudos, ia incorporando-as primeiramente às suas poesias, depois, com passar dos anos, aos seus contos e ensaios. Segundo Castillo (2003, p. 61-62), todo esse exuberante universo grego que tão cedo arrebatou Borges pode ser resumido em três teses principais: 1) tudo flui; 2) tudo retorna; 3) tudo é ilusório. O pánta rei heraclítico surge já em Fervor de Buenos Aires (1923), no poema “Final de ano”. (2001, p. 28) Posteriormente reaparecerá em “O relógio de areia”(2000, p. 209-210); “Arte poética” (2000, p. 243-244); “Heráclito” (2000, p. 381) “São os rios” (1985, p.522); no ensaio “Nova refutação do tempo” (2000, p. 150-166); e em mais um poema intitulado
4
De acordo com Soares: “É na articulação destes três conceitos - arché, thaumázein, e páthos - que Platão constrói um campo de sentido e significação para a palavra philosophía” (In: FÁVERO; TROMBETTA e RAUBER, 2002, p. 191).
“Heráclito” (1999, p. 172) Borges fará explícitas referências ao famoso fragmento 91 do filósofo de Éfeso. O segundo princípio incorporado à obra borgeana é a tese pitagórica do eterno retorno. Esse também pode ser identificado em Fervor de Buenos Aires (1923), nas entrelinhas do poema “O truco” (2001, p. 20), e em “Uma vida de Evaristo Carriego” (2001, p. 116-124), inserido na obra de mesmo nome. Posteriormente, em “História da eternidade” (1936), será abordada em dois ensaios, a saber, “A doutrina dos ciclos” (2001, p. 425-433), e “O tempo circular.” (2001, p. 434-437) Perez (2004, p. 14 ss) observa que em “A doutrina dos ciclos” Borges visa refutar a teoria nietzscheana do eterno retorno apoiando-se em Rutherford, na teoria de conjuntos de Cantor e nas leis da termodinâmica. Essa desarticulação metafísica, segundo Perez (2004, p. 17-18), seria semelhante à realizada por Heidegger, que em sua reflexão sobre Nietzsche apontará para o mesmo conceito. Em contrapartida, Castillo (2003, p. 63) lembra que essa antítese borgeana contradiz sua própria poesia lírica, uma vez que em “A noite cíclica” ele irá professar “[...] a rotação pitagórica, a doutrina dos árduos alunos de Pitágoras sobre o regresso cíclico de astros, homens e átomos.” (tradução nossa) Por fim, a terceira inspiração, que lhe surge por intermédio de Zenão de Eléia, remete-se novamente à infância. Seu pai, professor de psicologia, contou-lhe a aporia de Aquiles e a tartaruga. Borges ficou tão impressionado com a impossibilidade do herói aqueu ultrapassar sua oponente que, mais tarde, na obra Discussão (1932) analisou a famosa perseguição em dois ensaios: “Avatares da tartaruga” (2001, p. 273-279); e “A perpétua corrida de Aquiles e da tartaruga”. (2001, p. 261-267) Castillo ressalta que esses três princípios de origem grega irão confluir para uma outra idéia genuinamente grega: o labirinto. Dessa convergência ele inferiu que:
Se tudo – nesta pasma cosmogonia – flui, porém permanece imutável; se para superar a contradição há que se admitir que
não existe o espaço nem o tempo nem a matéria; se para cúmulo essa anulação do mundo é puro consolo porque o real é real, porque eu sou real, então o Ser é efetivamente um labirinto. Essa é a idéia central de sua obra (CASTILLO, 2003, p. 64, tradução nossa).
Nesse suposto universo, o devir em constante movimento faz com que tudo seja inconsistente. No entanto, esse fluir contínuo adquire uma certa estabilidade no também ininterrupto girar cíclico, que permite que tudo retorne ao seu estado original em algum momento do mover do círculo. Essa total incerteza sobre a constância ou não das coisas é aterrorizante, pois, de um lado, um mundo que se transforma ininterruptamente e numa velocidade espantosa inviabiliza qualquer tentativa de conhecimento, já que não há como se deter na investigação nem há parâmetros para a reflexão, sendo que até o uso da própria linguagem perderia o sentido e o significado, uma vez que ela seria incapaz de nomear qualquer coisa com exatidão, bem como não seria possível verificar no mundo se proposições que ela comunica são verdadeiras ou falsas. Por outro lado, se tudo retorna mais cedo ou mais tarde ao estado inicial, pode-se concluir que não há razões para empreender grandes esforços no desenvolvimento, tanto do homem quanto do mundo. Infelizmente, nem mesmo a negação cética conforma na medida em que significa apenas um “fechar de olhos”, uma entrega voluntária ao destino, que, segundo o próprio Borges “[...] não é terrível por ser irreal: é terrível porque é irreversível e férreo” (2000, p. 166). Castillo (2003, p. 64) observa com pertinência que a imagem do labirinto, já presente em Fervor de Buenos Aires (1923), onde no poema “O truco” Borges faz uma comparação do jogo a um labirinto de papel pintado, bem como nos poemas “Labirinto” (1949, p.488) e “O labirinto”, embasará também nos seus contos importantes reflexões sobre o tempo ou sobre Deus. Entre eles: “Tlön, Uqbar, Orbis, Tertius” (2001, p. 475-489); “O jardim das veredas que se bifurcam” (2001, p.524-533); “A casa de Asterión” (2001, p.632-634); e “Os dois reis e os dois labirintos” (2001, p. 676).
A
consciência
de
se
estar
num
labirinto
pode
equivaler
metaforicamente à aporia na qual se encontra o filósofo da metafísica clássica que fundamenta as suas investigações a partir de princípios que são apenas
supostos,
mas
nunca
provados,
isto
é,
jamais
plenamente
compreendidos e conhecidos. No entanto, há esperança de apreendê-los, mesmo porque sem essa confiança não haveria investigação. As “galerias desse suposto labirinto metafísico” são, entre outras coisas, os próprios caminhos ou métodos - escolhas - que se tomam para tentar chegar até o Ser. Borges parece antever o fracasso dessa proposta de conhecimento e, nesse sentido, pode ser considerado partidário das críticas feitas a ela por Hume e Kant. Por essa leitura a metafísica seria fantástica enquanto ilusória e ingênua. Em outras palavras, tão fictícia quanto pode ser a literatura. Essa postura parece novamente contradizer a inquietação metafísica que Borges afirma cultivar dentro de si. No entanto não há contradição. Lembremos do “ultraísmo grego”, ou seja, da capacidade de Borges mediar posturas aparentemente inconciliáveis; do seu gosto pela liberdade reflexiva. Todos esses aspectos se somam à resolução de dialogar com suas próprias angústias e ao mesmo tempo colocá-las a serviço da arte. As especulações metafísicas podem ser consideradas infrutíferas, em certo ponto até desprezíveis, se pensadas filosoficamente a partir de determinadas perspectivas e contextos. Mas Borges não é filósofo. É ensaísta, contista e, sobretudo, poeta. Transportou essas reflexões sobre o tempo, o espaço, o Ser, a imortalidade - aporias que inquietaram tanto filósofos de renome quanto homens comuns - para o campo da literatura, onde poderia elaborar suas especulações livremente, sem sentir-se coagido a formular uma solução definitiva para o problema. Solução que ele próprio entendia não ser capaz de oferecer. Passemos agora a uma melhor caracterização da chamada literatura fantástica para logo em seguida analisarmos um conto no qual a obra
borgeana pode operar atualizando o thaumázein enquanto páthos do filósofo e arché da filosofia.
Literatura fantástica: um novo modo de relato ou uma nova forma de poesia?
Em sua pequena autobiografia (1971, p. 101-102), Borges afirma que o começo verdadeiro de sua carreira como contista encontra-se na série de esboços intitulados História universal da infâmia, publicada originariamente nos anos de 1933 e 1934 nas colunas do periódico Crítica. Nessas narrativas ocorrerá a gênese de uma forma de expressão artística que atingirá seu ápice evolutivo sobretudo nas obras Ficções (1994) e O Aleph (1949): a chamada literatura fantástica. Literatura que, segundo Nasos Vagenas, “[...] não são um novo modo de relato, como geralmente se acredita, mas um novo modo de poesia. [...] Borges faz poesia com os meios do ensaio” (apud CASTILLO, p. 65-66). De acordo com Zilberman & Filipouski, a literatura e a arte de um modo geral possuem a capacidade de alterar significativamente o Ser5 ao qual se referem. Esse Ser, por sua vez, já não era antes da transformação algo banal e comum, mas sim possuía uma natureza constituída em “[...] um exagero no interior das relações permitidas entre os homens.” (In: BORGES, 1975, p. XXIII) Enrique Anderson Imbert observa que as surpreendentes soluções de Borges para os temas metafísicos não se devem às suas técnicas narrativas, mas sim à sua concepção de mundo, a qual segundo ele apresenta dentre outros aspectos os seguintes:
Sua Teoria do Ser postula que a realidade é um caos, porém seus contos não são caóticos. Sua Teoria do Tempo refuta relógios e calendários, porém em seus contos a ação avança linearmente. 5
Não necessariamente entendido no sentido grego.
Sua Teoria do Eu desintegra a pessoa, porém em seus contos ainda os personagens que perdem a identidade são reconhecíveis. Sua Teoria do Conhecimento é radicalmente cética e equivale à racionalidade com a irracionalidade, porém seus contos estão construídos com rigorosa lógica (2003, p. 22-23, tradução nossa).
Seja uma nova poesia, seja uma forma nova de relatar, o certo é que a literatura
fantástica,
que
apresenta
também
um
aspecto
“dialético”,
assemelha-se à metafísica por inúmeros motivos. Uma dessas razões, segundo Borges, residiria no fato de que: “Toda linguagem é de índole sucessiva; näo é apta para pensar o eterno, o intemporal” (2000, p. 158). Dessa forma, todas as especulações metafísicas resultariam em fracasso por se valerem de um instrumento inapto para tal investigação. Talvez resida nesse ponto a resolução tomada por Borges de não se tornar filósofo; bem como da ironia ao tratar dos conceitos metafísicos, que, por outro lado, talvez servissem apenas para encobrir sua própria angústia e desejo de apreender esse Ser inalcançável. Restar-lhe-ia a literatura. Então que essa seja filosófica; que seja fantástica! Para exemplificarmos a hipótese que viemos defendendo ao longo do texto escolhemos a narrativa “O Imortal” (2001, p. 593-606), inserida na obra O Aleph (1949), considerada pela crítica a obra prima de Jorge Luis Borges.
Não
reconstruiremos
totalmente
a
narrativa,
mas
apenas
pontuaremos suas linhas gerais.
Em junho de 1929, o antiquário Joseph Carthaphilus, de Esmirna, ofereceu à princesa de Lucinge a Ilíada de Pope. No último tomo da obra ela encontra um manuscrito no qual um tribuno de Roma conta a própria história. Flamínio Rufo, após saber da existência da Cidade dos Imortais - e de seu rio cujas águas davam a imortalidade -, decide ir encontrá-la. No
deserto, perdido e exausto, dorme. Ao despertar se vê em um nicho de pedra. Do alto da montanha divisa os muros da Cidade dos Imortais e percebe que no vale vivem “homens de pele cinza”. Tomado pela sede, despenca-se montanha abaixo, indo cair com o rosto em um “arroio impuro, enturvado de escombros e areia”. Os muros da Cidade são impenetráveis, mas certo dia Flamínio consegue adentrá-la através de um poço. No interior, depara-se com um cenário
de
horror:
portas
que
não
dão
para
lugar
algum;
janelas
inalcançáveis; escadas que terminam no ar; outras com a balaustrada invertida e degraus com altura e extensão irregulares. O horror é tanto que o romano
pensa
que um corpo de touro ou tigre onde abundassem
monstruosamente, unidos e se odiando, cabeças, dentes e órgãos, talvez fosse uma imagem aproximada da Cidade. Ao evadi-la, reencontra-se com o troglodita que estava a sua espera. Feliz, o romano decide dar-lhe o nome de Argos e ensiná-lo a falar; mas acaba fracassando. Daí em diante passa a viver entre os trogloditas. Certa manhã, enquanto sonhava com um rio da Tessália (cidade do norte da Grécia), “choveu, com grande lentidão”. A tribo toda sai para saudá-la. Flamínio grita chamando por Argos. Esse se vira para ele e pronuncia: “Argos, cão de Ulisses”. E depois: “Este cão atirado no esterco”. O tribuno pergunta-lhe o que sabe sobre a Odisséia. Argos responde: Muito pouco [...] já terão passado mil e cem anos desde que a inventei. Flamínio toma consciência de que os trogloditas são os imortais; de que Argos é Homero; e de que ele próprio se tornou imortal ao beber das águas do arroio. Passam-se as datas. Certo dia a tribo infere que, se existe um rio cujas águas davam a
imortalidade, então
havia outro rio cujas águas a
apagassem. Assim, dispersam-se pelo mundo a procurá-lo. Em 1921 Flamínio se encontra às margens do Mar Vermelho, o mesmo mar no qual esteve quando ainda era tribuno. Nos arredores percebe um caudal de águas claras; prova-a “levado pelo costume”. Ao deixar a margem fere a mão em
uma árvore espinhosa. Silencioso, incrédulo e feliz, admira a gota de sangue se formar. De novo é mortal. Repete: “De novo sou igual a todos os homens”.
O conto em si é um labirinto. No final da leitura não se sabe quem é o Imortal: Flamínio, Cartaphilus ou Homero. Borges, no epílogo (2001, p. 699), afirma que de todos os contos da obra esse é o mais trabalhado e que seu tema é o efeito que a imortalidade causaria nos homens. A genialidade borgeana consiste aqui em “trazer para o âmbito do ponderável um conceito genuinamente metafísico”. Se entendermos por “imortal” no homem uma espécie de essência invisível, que subsiste após a degradação de seu corpo físico, então ela não é constatável empiricamente. Pelo contrário, o “Imortal” de Borges está no mundo, de “corpo e essência”. Sua cidade, como descreve Borges, “[...] foi o último símbolo a que condescenderam [...] marca uma etapa
em
que,
julgando
vã
qualquer
obra,
determinaram
viver
no
pensamento, na pura especulação”. (p. 601) Desse modo, eram seres que possuíam corpos físicos, viviam em um mundo físico, mas, nas palavras de Borges, “[...] absortos, quase não percebiam o mundo físico.” p. 601) Por isso é que esse corpo físico (que constituía a totalidade do “ser” dos “homens” [...] era um submisso animal doméstico e bastava-lhe, cada mês, a esmola de umas horas de sono, de um pouco de água e de restos de carne”. (p. 601) Daí também o “viver abstrato” sem linguagem, sem movimento. “[...] todos os imortais eram capazes de perfeita quietude; lembro-me de um que jamais vi de pé: um pássaro se aninhava em seu peito” (p. 603). A narrativa “O Imortal” possibilita inúmeros questionamentos, como esta passagem de cunho ético: “[...] a república de homens imortais [...] Sabia que em um prazo infinito ocorrem a um homem todas as coisas... Encarados assim todos os nossos atos são justos, mas também são
indiferentes” (p. 602). Ou esta outra, na qual Flamínio, ao refletir sobre Argos, profere as fantásticas especulações:
Pensei que Argos e eu participávamos de universos diferentes; pensei que nossas percepções eram iguais, mas que Argos as combinava da maneira diferente e construía com elas outros objetos; pensei que talvez não houvesse objetos para ele, mas um vertiginoso e contínuo jogo de impressões brevíssimas. Pensei em um mundo sem memória, sem tempo; considerei a possibilidade de uma linguagem que ignora os substantivos, uma linguagem de verbos impessoais ou de indeclináveis epítetos (Op. Cit., p. 600) .
Para finalizar nosso propósito uma imagem é fundamental, a saber, a entrada do romano na Cidade dos Imortais. Para esse feito ele havia cruzado por escuros e intermináveis labirintos. No entanto, eles não o aterrorizaram nem repugnaram. A Cidade, sim. Eis a sua justificativa: “Um labirinto é uma casa edificada para confundir os homens; sua arquitetura, pródiga em simetrias, está subordinada a esse fim” (2001, p.598). A Cidade, pelo contrário, carecia de qualquer finalidade ou de uma discernível razão de ser. Salta aos olhos aqui a precariedade do homem lógico e racional confrontado com um estado de coisas aparentemente ilógico e irracional. O inefável, o indiscernível, o inextricável aterroriza a razão humana. Flamínio não era o senhor supremo diante do seu objeto do conhecimento. A presença da Cidade o desafiava a processar de maneira ordenada o que seus sentidos apreendem como caos. Soares, ao ratificar que a filosofia consiste no pronunciamento que o filósofo faz através da linguagem do seu espanto e da sua admiração frente ao mundo e aos enigmas do ser, irá realizar uma observação que ilustra bem a postura a se tomar quando em situações semelhante à personagem de Borges: “Só é capaz de admirar-se aquele que também é capaz de reconhecer sua ignorância e buscar fugir dela. Esta atitude do filósofo, que o
situa entre o sábio e o ignorante, continua sendo conditio sine qua non do próprio filosofar” (2004, p. 192, grifos do autor). Atualizar dentro de si o espanto, a admiração frente ao desconhecido, ao que se apresenta como incompreensível, ao que se ignora, parece-nos ser o grande desafio não apenas dos filósofos, mas de todos os seres humanos. Borges
através
de
metáforas,
espelhos
e
labirintos
nos
convida
a
experienciar o thaumázein. Essa é uma das suas grandes contribuições à filosofia.
Bibliografia
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