Ecologia Interior

  • May 2020
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ECOLOGIA INTERIOR Forças de Cura da Natureza nas Medicinas Tradicionais

“Um dia claro, vivo: ar seco e de brisa, cheio de oxigênio.

Entre esses

silenciosos milagres que me cercam – árvores, água, ervas, sol, geada – o que mais olho hoje é o céu. Tem este azul delicado, transparente, peculiar ao outono, e as nuvens brancas dão o seu movimento calmo à grande abóbada. Durante a manhã, o céu guarda um azul puro, mais vívido. Mas ao aproximar-se o meio-dia, torna-se mais leve a cor, gris, quase durante duas ou três horas, logo mais pálido por um momento, até o por do sol. Que vejo ofuscante pelos interstícios de um grupo de altas árvores: dardos de fogo e uma suntuosa exposição de amarelo, súlfur e vermelho, com o vasto resplendor prateado sobre as águas: flamejam as sombras transparentes e há vívidas tonalidades, além de todas as pinturas jamais feitas. Não sei como nem porque, mas parece-me que devido a estes céus tenho tido neste outono algumas horas de maravilhoso enlevo, não poderia dizer de perfeita felicidade ? Esse invisível bálsamo tu o derramas pelo ar, sobre mim, sutilmente, misticamente, céu azul”... Walt Whitman

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ECOLOGIA INTERIOR -

Forças de Cura da Natureza nas Medicinas

Tradicionais Há tanto tempo que a medicina se confundiu com o uso de remédios que, mesmo quando se imagina um retorno às forças curativas da natureza, se pensa apenas em remédios naturais. Usar as plantas para curar é uma prática muito antiga e muito boa, mas não é a única forma pela qual a natureza cura. Na medicina tradicional chinesa, o uso de remédios – mesmo feitos de ervas, como eram então todos os remédios – era apenas o sexto método em importância entre as artes de cura. A acupuntura vinha em seguida, em quinto, e a massagem em quarto. Em terceiro lugar estava a dietética energética. Os métodos mais importantes, em segundo e primeiro lugar, eram os exercícios terapêuticos e a meditação, praticados na natureza. Na concepção tradicional chinesa, saúde é conseqüência do estado de unidade com a natureza. As doenças são múltiplas, inumeráveis, mas a saúde é uma só. Nenhum ser adoece se está unificado e em união com o Todo, o Tao. A primeira divisão é entre o ser e o Universo. Quando um ser começa a se perceber como separado do Todo ele abre a primeira fissura na unidade. Mais tarde, novas distinções vão alargando essa fissura, até que ela se torna um abismo. A doença começa na mente, com a divisão. A primeira das ilusões da mente é a da existência separada. Os seres humanos são filhos da natureza, não existem separados. Quando um ser se divide internamente, ele passa a se ver separado, sua mente fica confusa e ele passa a enxergar propósitos próprios. Tenta realizá-los e não consegue, pois os propósitos dos seres separados são irrealizáveis, então ele sofre. E acaba doente. Na contemplação da natureza os médicos Taoístas viam a cura radical para essa doença: a recuperação da unidade com nosso ser verdadeiro, que é a unidade com todos os seres. Isso começa pela harmonização do homem com as leis do ambiente terrestre, com os movimentos sutis da natureza e do cosmos. Podemos sentir os ecos longínquos dessa sabedoria não só na medicina chinesa, mas também nas medicinas tradicionais da Índia, o Ayurveda, e do Tibete, o Vajraiana. Esses foram grandes sistemas de medicina, que conservaram e desenvolveram por milênios suas observações. Não podemos descartar essas observações como primitivas, pois elas mantiveram por milhares de anos a saúde de 2

suas populações. A força curativa da natureza é a mais profunda das medicinas. As doenças são distorções da forma de se relacionar com o ambiente. O poder terapêutico de um relacionamento sadio com o meio é imenso. Os espaços naturais possuem qualidades diversas em sua ação sobre o corpo energético do homem. As montanhas estabilizam as energias no alto, as planícies no centro, a floresta e beira-mar na base. O lago é sedativo dos nervos, os rios fortes e cachoeiras estimulam as energias. A contemplação do Céu e da Terra é a fonte de toda sabedoria tradicional. No I Ching, que fundamenta todo o conhecimento Taoísta, todas as imagens são estruturadas a partir das relações entre os elementos naturais. O homem tem liberdade, “mas a experiência demonstra que desde o despertar de nossa consciência já nos encontramos inseridos em sistemas já estabelecidos de relacionamentos tão poderosos que tendem a prevalecer” diz o Ta Chuan, o “Grande Comentário” do I Ching. Esses sistemas de relacionamentos tão poderosos, sãs as relações entre a forças do Céu da Terra, da Água, do Fogo, do Trovão, da Montanha, do Lago e do Vento, representadas pelos oito trigramas. No I Ching, a história da civilização vem assim descrita: “Quando na mais remota antiguidade Pao Hi governava o mundo, ele levantou os olhos e contemplou os fenômenos da terra.

Observou os sinais dos

pássaros dos animais, e sua adaptação às regiões. Ele procedia diretamente de si mesmo e indiretamente a partir das coisas. Inventou assim os oito trigramas, para entrar em contato com os deuses luminosos e para organizar as condições de todos os seres”. O trabalho terapêutico na natureza, que a tradição médica chinesa reputa como o mais profundo dos métodos terapêuticos, é esse proceder diretamente de si mesmo. Não se trata apenas de estar na natureza e de passear em sua paisagem “lá fora”. Trata-se de atravessar a barreira mental que nos separa dela curando a divisão interior do Ser. De acordo com a psicologia budista tibetana, o fundamento da doença é a tendência a solidificar a energia em uma barreira que separa o espaço em duas entidades: Eu e o Outro, o espaço aqui e o espaço lá fora. Esse processo é tecnicamente denominado “fixação dualística”. Primeiro existe a criação inicial de uma barreira, o sentimento do “outro”, e então a inferência de um interior, ou “Eu”. Esse é o nascimento do Ego. Nós nos identificamos com o está “aqui dentro” e lutamos para

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nos relacionar com o que está lá fora. A barreira causa um desequilíbrio entre dentro e fora. A luta para desfazer o desequilíbrio solidifica ainda mais a barreira. Nós esquecemos o fato de que criamos a barreira e na verdade agimos como se ela sempre tivesse estado lá. O objetivo da terapêutica na natureza é dar à pessoa um senso de maior espaço interior. A clareza e calma possíveis nesse espaço interior é o primeiro passo em direção à cura. O relacionamento entre o espaço interior e o espaço exterior é estabilizado suficientemente para que a luta com o mundo externo seja relaxada. Essa relação “interior” com o espaço é característica das culturas tradicionais do oriente. O espaço na pintura chinesa e japonesa, por exemplo, não é um espaço vazio, neutro, onde estão as coisas.

Nessa pintura, os corpos criam seu próprio

espaço, a matéria é a própria curvatura do espaço. Não se olha de fora para uma pintura assim, porque o tema e cada detalhe dele são vistos tão intensamente a partir de dentro que aquele que vê deve também estar na pintura, deve viver nela para compreendê-la. Não apenas a perspectiva deixa de ter um ponto de vista único como a própria relação de observador para observado é abolida. O observador está em todas as partes, sendo um com a pulsação das coisas. É essa mesma sensibilidade que existe no Feng-Shui, a arte do paisagismo sagrado, que não parte de conceitos estéticos ou filosóficos para lidar com ambientes, mas sim da observação sensível, “interior”, das correntes energéticas presentes em cada lugar para que o homem possa nele encontrar a harmonia. O relevo, o grau de umidade da terra, a direção dos cursos d’água, o clima, tudo é importante e se constitui na base dessa antiga ciência que inclui a arquitetura e o paisagismo. Porque para habitar na natureza era preciso antes estudar as energias e suas atuações em cada local. Pois o espaço não é um vazio onde o homem pode colocar o que quiser, tudo está vivo, tudo contém e faz parte da mesma energia, que pulsa em cada ser, em cada árvore, em cada pedra. A medicina tradicional tem por base a observação das correspondências entre essas mudanças na natureza e as maneiras de sentir do ser humano. Nos exercícios terapêuticos, como na meditação na natureza, o corpo se torna sensível, num nível instintivo, a todas as condições do ambiente, pressão atmosférica, umidade, temperatura, direção dos ventos, presença de nuvens, etc. Não apenas condições meteorológicas mas determinantes geográficos afetam a sensibilidade do corpo

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energético, como altitude, proximidade de grandes massas de água, como um lago ou o oceano. E também os ciclos naturais, como as estações, o período do dia ou da noite. A vinculação da circulação energética humana ao ambiente conduziu os Taoístas a um estudo profundo das maneiras que o homem tem de se harmonizar com as variações naturais e conservar o equilíbrio. As ginásticas terapêuticas são parte desse estudo. Nelas, há uma escuta atenta dos ritmos interiores. Exercitar-se é também estar profundamente consciente de suas próprias sensações.

Escutar

profundamente o próprio corpo, mais do que movimentá-lo.

Todo gesto, nessas

práticas, se desenvolve sobre uma base de escuta interior.

O que exige que os

exercícios se façam na natureza. Nosso grande corpo é o corpo do mundo. Não somos seres limitados pelas fronteiras de nossa pele. Esse é um trabalho sobre o corpo energético através da postura e do movimento. Os canais de energia – meridianos – são os desenhos da relação entre o corpo e o cosmos. São os meridianos que portam as sensações, mas também a motricidade.

Mas eles são também respiração.

Pela respiração, movimentos e

sensações, afetamos instantaneamente os fluxos energéticos. Essa é a base dos exercícios; neles o que se procura modificar não é o organismo, é a relação como o espaço. Nas técnicas como o Tai-Chi Chuan, o Tao Yin e o Chi Kung, o objetivo é corrigirmos nossa relação com o espaço. Dessa forma, os meridianos se tornam o local de comunicação onde o corpo fala de seu acordo com o cosmos. Não estão limitados à saúde, mas passam também por ela. Mais do que isso, eles tem uma dimensão espiritual. Pode-se talvez pensar que essa é uma forma extrema de sensibilidade, um exotismo oriental. Nada mais errôneo. A cultura grega, fonte principal da dimensão humanística da civilização ocidental, é um exemplo notável de uma sensibilidade semelhante.

Os gregos se sentiam bem na natureza e no corpo.

Procuravam

desenvolver harmoniosamente o corpo humano fazendo circular os fluidos energéticos – humores – de acordo com as leis do cosmos. A correspondência do corpo humano, como microcosmo, com o corpo do Universo, o macrocosmo, era expressa de maneira semelhante à das tradições orientais. Os fluidos vitais do corpo eram vistos como manifestações dos mesmos elementos que compunham o macrocosmo, terra, fogo, água, ar e éter. A ginástica, a dança e a massagem eram consideradas as melhores técnicas de harmonização do corpo, sendo amplamente utilizadas nos templos e

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ginásios com objetivos pedagógicos, terapêuticos e espirituais. Os movimentos do corpo deviam refletir as leis dos astros, circulando os humores e exercitando os membros de acordo com os impulsos artísticos de Vênus, a coragem de Marte, a força plástica de Júpiter, a serenidade de Saturno. Seu contato com os deuses acontecia nos templos na natureza. Sua alma se abria à influência climática, levando em conta a iluminação solar, as sombras e as condições atmosféricas. Nessa época, a função da medicina era a de descobrir as leis da natureza e ensinar os homens a respeitá-las. Plantão, na República, dizia que a necessidade de médicos e hospitais numa região era mau sinal, pois os médicos só deveriam existir para tratar dos feridos de guerra. O médico mais importante da antiguidade ocidental foi Hipócrates. Para ele, a saúde significa a harmonia do homem com as leis naturais, a relação equilibrada entre os diversos componentes do organismo, entre si e com o meio ambiente. O estado de saúde depende da harmonia entre o corpo e a mente, entre o homem e o meio. Para Hipócrates, existiam relações entre a saúde e temperamento das pessoas com o tipo de lugar e clima em que viviam. A doença é o resultado da desarmonia com essas condições naturais. Seus métodos eram holísticos, para curar uma parte do corpo, ele acreditava que era necessário curar o corpo inteiro. O equilíbrio humano dependia do equilíbrio humano dependia do equilíbrio dos fluidos vitais no corpo, assim como de fatores naturais, como clima, qualidade da água, do ar e da terra e hábitos de vida. Em seu livro “Dos Ares, das Águas e dos Lugares”, indicava aos médicos que a primeira coisa a observa ao visitar uma comunidade e era inspecionar a qualidade de água, do ar e as condições físicas do local. Se examinarmos as culturas da antiguidade, encontraremos por toda parte exemplos de métodos de cura pela natureza que não se limitam ao uso de remédios naturais. Um retorno da pessoa ou da comunidade enferma à harmonia com as leis naturais sempre foi o núcleo das terapêuticas tradicionais.

Em certas danças

cosmológicas se pode observar essa vinculação homem-natureza,

inclusive

funcionando no sentido inverso, o equilíbrio do homem gerando uma reequilíbrio do ambiente. Os Hopis, na América do Norte, através de seus rituais, são capazes de fazer chover quando precisam de chuva. Rituais de plantio são sucedidos por chuvas abundantes que observadores de formação racionalista não podem explicar.

A

ligação dos xamãs Hopis com o tempo passa por purificações, preparações, jejuns, culminando em danças tribais em que a comunidade mergulha na identidade com a Terra, colabora com seu pulso profundo e obtém as condições climáticas que necessita para seus cultivos.

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Muitos povos – que a ciência racionalista chama de primitivos – tinham esse poder de harmonizar o espaço interno com o espaço externo, a ecologia exterior com a ecologia interior. Manter a saúde, colaborar com os reinos vegetais, influenciar o tempo, eram antigas ciências de povos que tinham a paciência e humildade para ouvir os ventos. Esses povos tinham muito respeito pelas leis naturais. Acreditavam que se não tivessem, estariam sujeitos a todos os tipos de catástrofes: vendavais, ciclones, tempestades.

Talvez ainda seja cedo para dizer que eles estavam errados.

A

civilização técnico-científica é muito recente na história humana para que possamos dizer que ela ainda vai ficar muito tempo sobre esta terra. Hoje, existe um vasto movimento de retorno à natureza. Esse movimento está gradualmente convergindo para unificações importantes. Começamos a nos dar conta de que tudo está ligado neste Universo. É um tempo de quedas de barreiras, abolição de fronteiras, união de diferenças. Ainda que a memória do passado continue a gerar divisões, a força do futuro unifica.

Cada especialidade da ciência racionalista se

acostumou a falar em uma linguagem especializada diferente. Isso nos leva às vezes a pensar que os diversos níveis do universo são diferentes, mas é mais um problema com as linguagens do que com a realidade. Teremos que resolver todos os problemas de uma só vez. E isso vai nos levar a ver que eles são o mesmo problema fundamental que os budistas chamam de fixação dualística. As linguagens multiplicam a mesma coisa de dez mil formas. “A Grande Sabedoria vê tudo num só”, dizia Chuang Tzu, enquanto a pequena sabedoria se embaralha nas distinções. O que hoje chamamos de ecologia, o que chamamos de medicina e o que chamamos de busca espiritual, para os antigos chineses era a mesma coisa.

As grandes verdades são sempre simples, e ao mesmo tempo

imensos paradoxos. Por isso elas passam despercebidas, e por isso se diz que o segredo se guarda a si mesmo. O homem está enredado em dez mil problemas, a situação é séria, e ainda assim poderíamos dizer com toda segurança: meditar ajuda, caminhar nas florestas ajuda. Olhar as montanhas, ouvir os pássaros, nadar nos riachos, observar as nuvens do céu, ver passar o tempo. Para os Taoístas, a verdade não é complicada. A verdade é um equilíbrio. É um movimento e um repouso, é uma posição.

Olhemos para o tempo, vamos meditando, que nós alcançamos esta

posição. Lumiar, Primavera, 1991

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Laerte Willmann Pereira

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