Daniela Uma Nova Amizade

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Daniela Uma Nova Amizade

Daniela, uma nova amizade…

Às vezes julgamos constantemente as pessoas, e a maioria das vezes fazemo-lo porque não conhecemos as pessoas. Posso contar-vos uma história? Vou tomar a liberdade de vos falar de uma rapariga, jovem, estudante, rebelde e extrovertida como todos os outros miúdos e miúdas da sua idade. Com 15 anos tem, como todos os outros, ou quase todos, da sua idade, um grande grupo de amigos. Amigos que são também colegas de turma, no seu 9º ano, amigos que se divertem quando saem de vez em quando à noite, amigos que a aconselham, amigos que a ajudam nos trabalhos da escola, pessoas com quem ela sabe que pode contar, sempre, ou pelo menos quase sempre… Mafalda era uma rapariga simpática e afável, cabelos loiros e longos, olhos verdes, uma mulher de corpo diga-se, metro e sessenta de altura, muito mais desenvolvida que os restantes da sua idade, estilo imparável, com o cabelo sempre solto e roupa justa, ela arrasava junto dos colegas. Basicamente pode dizer-se que no seio do seu grupo era o centro das atenções, que na escola era idolatrada por muitos, que em casa era a menina de ouro dos pais, que junto dos professores a aluna perfeita e que na rua, sabia dar nas vistas pela sua irreverência. Como é óbvio, não reunia só boas apreciações de entre todos, havia também muitos que a achavam convencida demais, ou ate quem pura e simplesmente, por inveja ou por outro tipo de sentimento qualquer, normal da adolescência, não gostasse dela ou não fosse muito com a sua cara, e por outro lado havia também aqueles que para eles ela pura e simplesmente não existia. Mafalda era assim, mas também não tinha tudo caído do céu, compreendia que para ter qualquer coisa nesta vida tinha que o fazer para o merecer e ela lutava todos os dias pelo que queria, embora não estivesse ainda certa do que seria melhor para ela, com esta idade tem-se muitos problemas, coisas absolutamente vulgares da prematuridade de uma vida quase social, de uma vida quase adulta, de uma vida quase independente. Era parcialmente feliz, mas será que estaria pronta para uma volta de 180º na sua vida? Será que estaria pronta de abdicar de muita coisa? Pois, num domingo normalíssimo, Mafalda acorda, sempre depois das dez da manhã e obviamente sem despertadores aborrecidos e irritantes, toma banho, escova os dentes, toma o pequeno-almoço com os pais, arranja-se e vão todos, ela (filha única) e os pais, almoçar a casa dos avós, que moravam na aldeia de Lomba, a uns trinta e cinco quilómetros do Porto, cidade onde moravam. Quarenta e cinco minutos de viagem que já sabiam de cor; quarenta e cinco minutos de viagem que não passam de isso mesmo, de minutos, mera distância temporal entre ela e os avós, mero espaço físico sem significado. Mas o tempo é relativo, o espaço e a massa são relativos.

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Mafalda vai como sempre no banco de trás a observar a paisagem, coisa que já conhece de cor, leva os auscultadores do walkman nos ouvidos, nem se apercebe da conversa que os pais estão a ter no banco da frente do pequeno Opel Astra de quatro lugares, vinham a discutir sobre onde deveria ser passado o Natal, se na casa dos pais dela na aldeia ou se no Porto em sua casa. A discussão começava a tornar-se aborrecida para ambas as partes, os argumentos começavam a ser fúteis, as palavras começavam a ferir e a ser constrangedoras, Mafalda tinha necessidade de por o volume mais alto, o pai não tomava mais atenção à estrada, estava a conduzir a discussão, o caminho já o sabia de cor, a mãe amuava, queria o seu desejo cumprido, para Mafalda era indiferente. Só quero estar com todos, mas isso sei que não é possível. É todos os anos a mesma coisa, já chegavam a um consenso de uma vez por todas. A conversa subia em interesse e baixava de nível, agora quase se ofendiam, gesticulavam, ela olhava pela janela do carro para não assistir a coisas tristes, ao fim ao cabo já sabia que a vontade da mãe se iria fazer cumprir, é sempre o mesmo, ela amua, ele sabe que tem razão mas faz-lhe a vontade, ela fica feliz e ele com mais uma para juntar á longa lista. Mas naquele momento a briga não tinha ainda fim á vista, o velocímetro aumentava de velocidade como que à socapa, lá fora a chuva que caia na estrada cada vez mais escorregadia era observada atentamente por Mafalda que, era embalada pela musica do walkman que por sua vez seguia no bolso das calças, que eram dela, que seguia no banco de traz do carro, por traz da mãe, sempre do lado da mãe, que ia furiosa, que gesticulava pró marido, que ia sentado ao volante, só sentado, mais nada, não faz mais nada se não falar com a mulher, julgando saber o que está a fazer, julgando que está a conduzir, mas não, não se apercebe de que já devia ter abrandado, que o piso está molhado, que têm de sair do IC2 em Carvalhos, que o fim da viagem é na casa dos sogros. O carro segue a cento e quarenta quilómetros hora, entra num lençol de água, Rui tenta guinar, tenta mas só tenta. Ninguém consegue perceber o que se passa. O carro guina de mais, entra num lençol de água, despista-se, rodopia, gira como um carrossel. Mafalda continua encostada á janela, os auscultadores vão no máximo mais ela não consegue ouvir a musica, a paisagem agora é demasiado vertiginosa, as imagens começam a misturar-se todas umas com as outras, o camião do outro lado da estrada, não, o cruzamento, as ervas do outro lado, as casas, novamente o camião…. O condutor do camião segue na sua mão, tranquilo, vai a ouvir a RFM, os seus sons preferidos, vai tudo em ordem, estão a dar uma meia hora de musica seguida como ele bem gosta, ainda não esta na sua hora de descanso, longe disso, olha para a consola, as fotos dos filhos e a mulher, saudades que lhe vêem à memória, olha em frente e, por segundos, entra em pânico, algo vem desgovernado na sua direcção, algo de errado lhe aparece à frente do nada, ele não vai depressa, segue à velocidade normal, mas mesmo assim sabe que não pode travar, leva o camião carregado, faria um “v” com o reboque e tombaria, não pode, só lhe resta tentar contornar o obstáculo, é a única solução, tem que se desviar do objecto que vem na sua direcção. Saí um pouco da estrada, abranda com o travão eléctrico, desvia-se para a berma o máximo que pode.

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Mas o máximo é o mínimo, e quando algo parece ter que acontecer, acontece mesmo e aqueles quatro parecem estar destinados a cruzarem-se, literalmente. Ao fundo ouve-se uma sirene, as luzes que são seguidas pelos olhares atentos de quem segue na sua tranquila viagem até casa, depois de um fim-de-semana com a família, as letras escritas ao contrário que indicam nos espelhos que se trata de uma emergência, as ensurdecedoras sirenes que mandam os carros encostar. O médico que segue lá dentro pronto a encontrar mais uma de tantas situações trágicas e dramáticas que acontecem a toda a hora. O bombeiro que parece dirigir um carro de fórmula 1, que contorna tudo o que se desloque a menor velocidade que ele, que tenta evitar ele próprio ser uma vítima, que tem pressa em chegar, que tem pressa em ajudar, que sente que o tempo é pouco, que é relativo, que quer apenas cumprir com a sua obrigação. Mafalda acorda no hospital. Que se passa aqui? Onde estou? Já chegámos a casa dos avós? Mãe? Onde estás? Pai? Que se passa? Onde estou? Finalmente apercebe-se de onde está, dá um suspiro enorme, entra mais ar nos pulmões do que nunca entrou, os lhos dela ficam encandeados com as luzes brancas do quarto, tudo branco, branco demasiadamente pálido do que o normal, ela própria olha-se, está também vestida de branco, é tudo muito branco ali, porque estou eu no hospital? , então, vem-lhe á memória uma coisa, o camião, os pais a discutir, o carrossel, o embate, e todas as imagens que não consegue agora lembrar, não quer, não pode, grita, grita o mais alto que pode, chora, grita enormes uivos de desespero de vontade de sair de onde não pode, grita com voz de guerra a todos os fantasmas das suas ultimas memórias, grita para se fazer ouvir, grita como nunca ninguém a viu, não com um intuito de chamar uma enfermeira mas antes sim com o propósito de encontrar os seus pais no grito. Mafalda fica a saber, através da família e dos médicos, que as ultimas imagens que pode ter do sei pai são as de um corpo a ser projectado pelo pára-brisas, de uma discussão, de um sem fim de coisas que ela não recorda, que não pode recordar, que não quer recordar, que o coração não pode recordar. A sua vida tomba. A sua vida cai-lhe aos pés. Todos os ideais que tinha, caíram por terra, foram-se com o vento, perderam-se naquele carrossel, naquela babilónia de sentimentos e adrenalina. Tudo se desmorona. Entra em retrospectiva consigo mesma, dá uma volta de 360º aos pensamentos, às memórias e vivencias, a tudo, termina, depara-se com uma verdade absoluta: aquele era agora o primeiro dia do resto da sua nova vida. A sua vida dá de facto uma volta de 180º. Com a morte do pai ela e a mãe são obrigadas a ir viver para casa dos seus avós, perde o pai, muda de escola, de casa, longe dos amigos, longe do mundo, longe da vista, longe de tudo o que para ela era o seu universo Mafalda sente-se perdida. Na nova escola está com imensas dificuldades em integrar-se, com a mãe quase que não fala, baixou as notas, não sai a noite, desabafa apenas com o seu diário e fecha-se no seu mundo, no seu pequeno e dramático mundo absorvido de mágoas e tristezas, amarguradamente só.

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A verdade é que na nova escola os ambientes são difíceis, ela não se sente á vontade, há demasiados grupinhos, há demasiadas diferenças entre onde estava e está agora, também ninguém parece querer fazer amizades com ela, ninguém parece compreender também a sua perda ou a sua imensa dor, não parece haver ali naquele pedaço de mundo ou terra perdida alma caridosa que lhe estenda a mão… ela esmorece de dia pra dia… até que, sem que nada o previsse, sem avisos prévios de Deus, sem qualquer tipo de sinal, em mais um daqueles dias cinzentos de tristeza e frustração, em mais um dos intervalos em que Mafalda passava o tempo agarrada ao seu caderno, sentada de pernas cruzadas em cima do banco, alguém se aproxima de si e lhe diz: - Olá eu sou a Daniela, posso sentar-me aqui contigo? Daniela era uma rapariga da idade de Mafalda, morena, de cabelos longos e encaracolados, piercings nas orelhas, vestida á estilo motoqueiro, sorridente, com uns olhos enormes, de cor de avelã, brilhantes e sufocantes, capazes de engolir o mundo, ela era baixinha e um encanto de pessoa. Daniela não era da turma dela, mas já a tinha observado várias vezes, já tinha sentido curiosidade de a conhecer anteriormente, não tinha tido coragem, mas naquele dia encheu o peito de ar e vi ter com ela, foi tentar saber o que escreve ela afinal naquele caderninho preto de argolas, o porquê do seu isolamento e se que lhe teria acontecido para só a meio do ano vir ali parar, tantas perguntas, tanta coisa para saber, ela sentia que tinha que conhecer mesmo Mafalda. -Prazer, eu sou a Mafalda! – diz ela como que a medo e sem saber que fazer a seguir. Daniela não se intimida, toma assento ao seu lado, não a bombardeia de perguntas, mas aos poucos vai descobrindo o que se passou, sem ser totalmente explícita quanto à sua imensa curiosidade, ela sabe que apesar de tudo tem que esconder um pouco esse seu instinto, mas elas parecem começar a entender-se, há ali boas vibrações, parece que Mafalda não perdeu de todo o jeito para falar com as pessoas, parece que começam a entender quantas mais respostas obtêm uma da outra, quando mais se aproximam. Mas o intervalo não é eterno, não deu para tudo, Daniela fica ainda sem saber o que escreve Mafalda, mas trocaram contactos e vão para as aulas. Na aula Mafalda fica ainda a pensar a na experiencia que viveu há momentos, não sabe se pode confiar ou não, mas por outro lado sabe que não tem muito a perder, apesar de também não saber ao certo o que tem a ganhar. Recebe entretanto uma sms de Daniela. Começam a falar por mensagens, começam a conhecer-se melhor e melhor. Combinam as duas ir beber café depois das aulas, num café ali bem perto da escola. Toca para a saída, as duas encontram-se no local combinado, dão dois beijos, seguem juntas para o café. Chegam e sentam-se. Ficam as duas na esplanada, ao abrigo das sombrinhas que não deixam passar o sol na totalidade, sentam-se cada uma do lado da mesa, sem saber ao certo o que dizer uma à outra, pedem dois cafés, olham em volta, cruzam as pernas, trocam as pernas, roem as unhas, olham-se, esperam pelo café, Mafalda finalmente larga o caderno, coloca-o em cima da mesa, então Daniela não perde tempo e desbloqueia a conversa.

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Conversam sobre o tempo, conversam sobre a escola, até que finalmente conversam sobre o verdadeiro motivo que levou Mafalda a mudar-se para aquela escola. Conta-lhe o que sabe, o que ainda não esqueceu e conta-lhe também o que sente mais ou menos desde o que aconteceu, as mudanças de que a sua vida tinha, romantiza-lhe a sua anterior vida e dramatiza-lhe a actual, explica-lhe tudo e Daniela, Daniela comove-se com tamanha história, tenta dar-lhe consolo, tenta dar-lhe aconchego, tenta dar-lhe o que não pode, tenta o que tenta, sofre inclusive com ela. Conversam, e quanto mais conversam mais próximas se tornam uma da outra, mais intimidades se revelam, mais segredos se revelam, mais compaixão se gera, mais laços se criam, mais coragem há dentro de Mafalda para viver novamente, mais força nasce ali naquela mesa de café. Daniela acaba também por lhe contar histórias da sua família, entendem as duas, com a experiência e vivência de cada uma, que não são as únicas a olhar o céu, que há mais peixes no mar, que não há um “fim do mundo” que há que continuar em frente, que nem tudo é como sempre planeamos, que não por vezes não há divina providencia que nos valha que por mais que tentemos voltar atrás no tempo ele é continuo e recto. Mafalda mostra a Daniela o que tem escrito. Lindos textos, lindas dedicatórias feitas ao pai, lindos poemas em sua memória, lindas frases cheias de amor e saudade, textos que tentavam por tudo expressar o amor que ela não conseguiu entregar ao pai antes dele partir, o amor que nela ficou por receber, a lembrança de alguém que não teve oportunidade de se despedir, alguém que não merecia partir, alguém que não conseguiu evitar partir. Por uma distracção, por uma discussão, por um estúpido troca palavras, por um nada, por um tudo de nada, por uma estupidez, por não haver melhor maneira de as pessoas resolverem as coisas às vezes, porque conseguimos provar todos os dias a nós mesmo que não merecemos tanta coisa que temos, mas, apesar de tudo, há amores incondicionais, e quem sofre mais é sempre quem menos culpa tem e, neste caso, Mafalda era a sofredora, quem ficou para velar o valor de alguém que partiu antes do programado. Daniela e Mafalda conquistam uma à outra uma amizade frutuosa, algo que as acompanharia em fases importantes da vida, algo que as levaria a conquistar posteriormente novas promessas, algo que lhes permitira no futuro vir a ganhar batalhas difíceis, a encontrar sempre o melhor caminho, a encontrar uma saída em momentos complicados, a superar mares. Uma amizade que as acompanharia o resto da vida, uma amizade, ponto. Nesse dia Mafalda chegou a casa e escreveu novamente no diário, pela última vez: “Hoje tive um grande dia, um dia como não tinha já há muito tempo, hoje o dia não foi cinzento, foi cor-de-rosa, foi lilás, foi das cores do arco-íris. Hoje aprendi uma lição, daquelas que não se podem aprender dentro das quatro paredes de uma gélida sala de aulas, daquelas que não vêem nos livros, uma lição das que não podia encontrar nunca no meu imaginário, hoje fui campeã, estive no pódio e recebi um dos melhores prémios que se pode receber na vida.

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Com este prémio tenciono viver, coisa que não tenho feito, com este prémio pretendo dizer-te adeus meu diário, com este prémio pretendo arriscar, com esta medalha tenciono seguir o caminho e a viagem que tenho adiado. Um troféu chamado: Daniela, uma nova amizade.” Dedicado a Daniela Ermitão! Para que nunca te esqueças desta descrição… de ti!

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