Consumo Sustentável1 Por Marilena Lazzarini e Lisa Gunn2 Idec – Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor Consumo e meio ambiente: uma equação sem solução? Nos últimos 45 anos, a economia global praticamente quintuplicou, o consumo de grãos, carne e água triplicou e o consumo de papel cresceu mais de seis vezes. O uso de combustíveis fósseis aumentou em quatro vezes, assim como o nível de emissões de CO2, principal gás responsável pelo efeito estufa3. Porém, ainda hoje cerca de 2,8 bilhões de pessoas vivem com menos de 2 dólares por dia (82% da população da Índia, 65% da população da Indonésia, 55% da população da China, 37% da população da África do Sul e 17% da população do Brasil)4. Enquanto isso, as três pessoas mais ricas do planeta têm mais do que o Produto Interno Bruto dos 48 países mais pobres, onde vivem 600 milhões de pessoas. Ou ainda, pouco mais de 200 pessoas, detentoras de ativos superiores a US$ 1 bilhão, têm mais do que a renda anual de 45% da população mundial, o equivalente a 2,7 bilhões de pessoas5. Os países ricos, com menos de 20% da população mundial, são responsáveis por cerca de 80% do consumo privado mundial, enquanto os países pobres com cerca de 35% da população mundial representam apenas 2% do total do consumo privado6. O estilo de vida ocidental e seu padrão de consumo estão servindo de modelo para as classes mais ricas da China e Índia, para os países da Europa Oriental e da antiga União Soviética, assim como para as classes média e rica de países emergentes, como México, Venezuela, Brasil, Turquia, Coréia do Sul, Taiwan, Indonésia, Malásia e Tailândia. Estima-se
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Este artigo é baseado em texto publicado no livro “O Estado do Nosso Meio Ambiente: Uma Visão da Sociedade Civil” (2002) da Fundação Getúlio Vargas e Instituto Socioambiental. 2 Marilena Lazzarini é coordenadora executiva do Idec – Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor e Presidenta do Fórum Nacional de Entidades Civis de Defesa do Consumidor. O Idec, criado em 1987, é uma associação de consumidores sem fins lucrativos e independente de governos, empresas e partidos políticos. Sua missão é promover a educação, a conscientização, a defesa dos direitos do consumidor e a ética nas relações de consumo. Lisa Gunn, socióloga e mestre em ciência ambiental, é consultora no Idec. www.idec.org.br 3 Brandsma, Erich H. & Eppel, Jeremy. “Produção e consumo sustentáveis: um enfoque internacional”. In: Ribemboim, Jacques (org.). Mudando os Padrões de Produção e Consumo. IBAMA, 1997. Pág. 112. 4 UNEP, Sustainable Consumption: A Global Status Report. Abril/2002. 5 Comissão de Políticas de Desenvolvimento Sustentável e da Agenda 21 Nacional (CPDS) – Ministério do Meio Ambiente (MMA) / Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Agenda 21 Brasileira: Bases para Discussão. Junho/2000. 6 World Resources Institute. World Resources 2000-2001 – People and ecosystems: The fraying web of life. 2001. Pág. 27. 1
que esses novos consumidores totalizem cerca de 750 milhões de pessoas, número similar ao dos consumidores dos países ricos7. Se a China consumisse a mesma quantidade per capita de carros e de combustível que os Estados Unidos, seria preciso produzir cerca de 850 milhões de carros e mais do que dobrar a produção mundial de combustível. Essa frota de carros adicional produziria mais CO2 do que o atual sistema de transporte do mundo. Se o consumo per capita de peixe na China fosse o mesmo do que o do Japão, seriam necessárias 100 milhões de toneladas a mais do que se pesca hoje8. Se tivermos a réplica do padrão de consumo dos países ricos, de consumismo exacerbado e enorme nível de desperdício para as populações da América Latina, Ásia e África, calcula-se que precisaríamos dispor de mais dois planetas Terra para atender a essa demanda. Assim como não existem recursos naturais suficientes para oferecer o mesmo padrão de consumo de um americano médio para toda população mundial, o planeta Terra também não é capaz de absorver toda a poluição e degradação que seria gerada por esse aumento de produção e consumo dos padrões atuais. O consumo é desigual não apenas entre países, como também dentro dos mesmos. No Brasil, enquanto as classes média e rica brasileiras consomem da mesma forma, ou até mais, que o europeu ou o americano; 53 milhões de pessoas são consideradas pobres e 22 milhões podem ser considerados indigentes9. “A desigualdade no Brasil tem duas faces: por um lado, o consumo irracional, o desperdício; e por outro, as frustrações pessoais e a violência que resulta da impossibilidade de participar desse ‘novo mundo’”.10 O grau de desigualdade no Brasil é um dos maiores do mundo. Em 1960, os 50% mais pobres da população tinham 18% da renda. Em 1995, tiveram sua parcela reduzida para 11,6% da renda nacional. Enquanto isso, os 10% mais ricos passaram de 54% da renda nacional, em 1960, para 63%, em 199511. “O diagnóstico básico referente à estrutura da pobreza entende que o Brasil, no limiar do século XXI, não é um país pobre, mas um país extremamente
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UNEP, Sustainable Consumption: A Global Status Report. Abril/2002. UNEP, Sustainable Consumption: A Global Status Report. Abril/2002. 9 São considerados indigentes aquelas pessoas que não conseguem atender as suas necessidades básicas de moradia, alimentação e vestuário. Enquanto que: “…. a pobreza refere-se a situação de carência em que os indivíduos não conseguem manter um padrão mínimo de uma vida condizente com as referências socialmente estabelecidas em cada contexto histórico.” (IPEA, 2001). 10 Sodré, M. G.; Cervi, C.E. e Uchoa, J. Globalização e mudança nos padrões de consumo: caso brasileiro, 1998. 11 Comissão de Políticas de Desenvolvimento Sustentável e da Agenda 21 Nacional (CPDS) – Ministério do Meio Ambiente (MMA) / Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Agenda 21 Brasileira: Bases para Discussão. Junho/2000. 2 8
injusto e desigual, com muitos pobres. A desigualmente encontra-se na origem da pobreza e combatê-la se torna um imperativo”12. Os atuais padrões de consumo são insustentáveis, injustos socialmente e depredadores do meio ambiente. É urgente o estabelecimento de um novo paradigma de desenvolvimento. “Enquanto a meta do mundo industrializado é manter um alto padrão de vida e, ao mesmo tempo, reduzir drasticamente o uso de recursos naturais, nos países em desenvolvimento, a meta é promover, da melhor maneira disponível, um crescimento da prosperidade com a menor utilização possível de recursos naturais.”13 A busca de um padrão de consumo sustentável passa pela eliminação da pobreza e mudança nos padrões de consumo, a partir da mudança dos sistemas de produção, comércio e consumo no mundo.
Mudar os padrões de produção e consumo: as propostas A Conferência Internacional sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, a ECO 92, foi um marco no debate internacional sobre consumo sustentável. A Declaração da Conferência estabeleceu a conexão entre desenvolvimento sustentável e consumo no Princípio 8: "Para alcançar o desenvolvimento sustentável e uma qualidade de vida superior para todos os povos, as nações deveriam reduzir e eliminar os padrões de produção e consumo insustentáveis e promover políticas demográficas apropriadas."14 Outro resultado da ECO 92, a Agenda 21, dedica um capítulo específico, o Capítulo 4, para a mudança dos padrões de consumo: "Devemos considerar a necessidade de novos conceitos de bens e prosperidade, que não apenas permitam padrões de vida superiores, através da mudança nos estilos de vida, mas que sejam também menos dependentes dos recursos finitos da Terra, e mais harmônicos com a capacidade da Terra em renová-los." "...a principal causa da contínua deterioração do meio ambiente global são os padrões insustentáveis de produção e consumo, particularmente nos países 12
IPEA. Barros, R.P.de; Henriques, R. & Mendonça, R. “A estabilidade inaceitável: desigualdade e pobreza no Brasil”. Texto para Discussão 800. Junho, 2001. Pág. 23. 13 Van Brake, Manus. Os desafios das políticas de consumo sustentável. Cadernos de Debate 2. Brasil Sustentável e Democrático. 1999. Pág. 21. 14 Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento – Rio 92. “Declaração do Rio para o Meio Ambiente e Desenvolvimento”. In: Agenda 21. Senado Federal, Brasil, 2001. 3
industrializados..." e afirma: "...para alcançar um desenvolvimento sustentável serão necessárias tanto a eficiência nos processos de produção como mudanças nos padrões de consumo, que foram estabelecidos principalmente por países desenvolvidos, exemplo que tem sido crescentemente seguido em grande parte do mundo, inclusive países em desenvolvimento..."15. Em 1995, a Comissão de Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas recomendou que as diretrizes para proteção do consumidor fossem ampliadas para incorporar os preceitos da produção e consumo sustentáveis. Para isso, foram realizadas reuniões internacionais de especialistas, inclusive no Brasil em 1995 e 1998, que resultaram na publicação da emenda às Diretrizes de Proteção ao Consumidor das Nações Unidas, em 1999. "Consumo Sustentável implica em atender as necessidades das gerações presentes e futuras com bens e serviços, de forma econômica, social e ambientalmente sustentável." Cláusula 42, Diretrizes de Proteção ao Consumidor das Nações Unidas, 1999. Outro encontro internacional importante, a Mesa Redonda sobre Produção e Consumo Sustentáveis, realizada em Oslo em 1995, apresentou questões centrais práticas para discussão sobre consumo sustentável : “Consumo Sustentável é um termo abrangente que traz consigo uma série de fatores-chave, tais como: atender necessidades, aumentar o uso de fontes de energias renováveis, minimizar o lixo, adotar uma perspectiva de ciclo de vida levando em conta a dimensão eqüitativa. Integrar essas peças é a questão central de como proporcionar serviços iguais ou superiores para atender aos requisitos básicos de vida e às aspirações para melhoria tanto da geração atual como das futuras, reduzindo continuamente os danos ao meio ambiente e riscos à saúde humana.”16 Na discussão sobre consumo sustentável, é necessário estabelecer a relação entre o consumo de produtos e de serviços para atender os anseios e necessidades dos consumidores. Além disso, engloba o uso de recursos naturais envolvidos no consumo, como materiais e energia usados na produção, assim como a capacidade de assimilação ou suporte do meio ambiente para receber a poluição e o lixo resultante dos atuais padrões de produção e consumo. Assim, além do direito ao acesso de todos ao consumo de bens e serviços básicos, outro ponto crítico dessa discussão não é a atividade de consumo em si, mas a quantidade de energia e recursos que ela demanda. O ideal seria se o consumo pudesse aumentar, ao mesmo tempo, que a relação entre recursos e consumo caísse.
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Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento – Rio 92. Agenda 21. Senado Federal, Brasil, 2001. 16 www.iisd.ca/linkages/consume/oslo004.html 4
O problema é que, atualmente, o nível de consumo global aumenta mais do que a ecoeficiência é capaz de reduzir o uso de recursos naturais. Isto é, a redução na quantidade de matéria-prima utilizada na produção de alguns bens de consumo duráveis, que de fato vem acontecendo por meio da ecoeficiência, não tem se refletido em uma queda no uso global de matérias-primas. Um exemplo dos resultados da ecoeficiência pode ser encontrado na Holanda. No país, enquanto o volume da produção aumentou 24% entre 1985 e 1994, as emissões industriais de CFC diminuíram em 89%; as descargas de nitrogênio na água em 69%; a descarga de metais pesados na água em 69% e no ar em 39%;as emissões de SO2 diminuíram em 50% e as emissões de partículas de poeiras caíram em 26%17. Mas, apesar da ecoeficiência, os dados indicam que o consumo de matéria-prima continua crescendo. Em 1960, foram transportadas 360 milhões de toneladas de petróleo e, em 1990, cerca de 1,19 bilhão de tonelada. O mesmo crescimento pode ser observado em relação ao ferro, que, em 1960, teve 101 milhões de toneladas transportadas e, em 1990, 347 milhões. O carvão é outro exemplo, 46 milhões, em 1960, e 342 milhões, em 199018. Por isso, a discussão internacional indica para a necessidade dos países ricos reduzirem a intensidade do uso de recursos naturais e energia em quatro vezes (Fator 4) nos próximos 20-30 anos. Assim, é possível criar “espaço ambiental” para os países em desenvolvimento crescerem. “(Espaço ambiental é) um espaço apropriado para a vida humana no planeta entre o mínimo requerido para as necessidades sociais básicas e o máximo que pode ser assimilado pelas dinâmicas da ecosfera” 19. No longo prazo, os especialistas acreditam que esses países terão que reduzir em 10 vezes o consumo de recursos naturais. Isto é, não dá para todos no mundo terem os mesmos padrões de produção e consumo que os países desenvolvidos têm hoje. Assim, é preciso que os países desenvolvidos reduzam o consumo de recursos naturais para que os chamados países em desenvolvimento possam chegar a um padrão que atenda às necessidades básicas de toda a população. Mudar estilos de vida Estamos tratando, portanto, da necessidade da mudança de estilos de vida, considerando não apenas o que se consome como também quanto se consome. Estilos
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van Brakel, 1999:13-14. Pádua, 1999:14. 19 Pádua, 1999:25. 18
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que privilegiem a qualidade de vida, baseada no atendimento das necessidades básicas e em aspectos culturais e espirituais, mais do que em aspectos materiais. É o que chamam de desmaterialização da economia, ou o direcionamento da atividade econômica para o setor de serviços, mais do que a produção material de produtos. A questão dos meios de implementação desse novo tipo de desenvolvimento continua em debate. Caso isso de fato aconteça, a mudança nos padrões de produção e consumo nos países ricos pode levar a uma redução da exportação dos países em desenvolvimento, basicamente de produtos primários. Os países em desenvolvimento deveriam compensar a não exportação de seus recursos naturais (por causa das mudanças nos padrões de produção e consumo dos países ricos) com a exploração sustentável para o atendimento do consumo necessário da totalidade da população, mediante a ampliação dos seus mercados internos, por meio da distribuição de renda. “(…) os países do Sul devem priorizar o uso destes recursos (naturais) para atender às suas demandas sociais, em vez de seguir exportando espaço ambiental direto ou indireto sob termos de troca cada vez mais deteriorados, reforçando a enorme iniqüidade ecológica internacional”.20 Para que a produção seja sustentável no Brasil, é preciso que o país dirija seus padrões de produção não só para a minimização dos impactos ambientais e reformulação orientada para a sustentabilidade ambiental, mas, principalmente, é fundamental adotar um novo modelo de desenvolvimento que dê prioridade à distribuição de renda no país.
Consumo sustentável no Brasil: os grandes desafios “A necessidade central no caso do Brasil não é a de estabelecer metas de redução, mas sim adotar uma forte dinâmica política que transforme a estrutura social desigual, desequilibrada e predatória que vem sendo estabelecida nos diversos pontos do território. É preciso, em primeiro lugar, combater a insustentabilidade social. Isso significa democratizar a renda e o acesso à terra, aos recursos naturais, aos serviços básicos e aos bens de consumo úteis.”21 A promoção do consumo sustentável no Brasil requer ações em diversas áreas. A seguir apresentaremos algumas delas.
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Pádua, José Augusto. Produção, consumo e sustentabilidade: o Brasil e o contexto planetário. Cadernos de Debate 6. Brasil Sustentável e Democrático, 1999. Págs. 45-46. 21 Pádua, José Augusto. Produção, consumo e sustentabilidade: o Brasil e o contexto planetário. Cadernos de Debate 6. Brasil Sustentável e Democrático, 1999. Pág. 36. 6
Em relação aos serviços públicos, é preciso universalizar o acesso à água encanada e tratada. Atualmente, no Brasil, o nível de abastecimento de água dos domicílios ligados à rede geral é de 91%. Porém, 11 milhões de pessoas residem em cidades que não têm acesso à rede de água encanada22. A falta de acesso à água tratada, associada à falta de coleta e tratamento de esgoto, é responsável por doenças como diarréia, disenteria, cólera, leptospirose, amebíase, hepatite infecciosa, esquistossomose, febre tifóide e paratifóide. Estima-se que as doenças vinculadas pela água são responsáveis por 65% das internações e 80% das consultas pediátricas na rede pública de saúde23. Além da questão da universalização do acesso à rede de água encanada e tratada, outro problema é o desperdício de água nos sistemas públicos de abastecimento, que pode chegar a 45% do volume tratado, significando uma perda de 2,08 bilhões de m3 por ano24. Outro serviço público essencial que deve ser prioritário é a coleta e tratamento de esgoto. Segundo o documento “Agenda 21 Brasileira: Bases para Discussão”, 48,9% dos esgotos produzidos no Brasil são coletados em rede pública, sendo apenas 32% desses esgotos tratados. Isso significa que menos de 16% do total do esgoto produzido é de fato tratado. Como já foi dito, a falta de coleta e tratamento de esgoto é prejudicial à saúde humana e, ainda, fonte de poluição dos rios e mares. O consumo sustentável de energia no Brasil implica na garantia de universalização desse serviço público. De preferência, deve ser baseada na utilização de fontes de energia renovável com mínimo impacto ambiental. Isso significa que termoelétricas e usinas nucleares não deveriam ser construídas para diversificação da matriz energética brasileira e, sim, usinas de energia aeólica, de energia solar e pequenas hidrelétricas deveriam ser incentivadas. Para o consumo sustentável de energia, deveriam existir incentivos para que os consumidores dessem preferência ao uso de fontes alternativas de energia. Como ocorre na Alemanha, onde o governo subsidia a instalação de sistemas de energia solar nos domicílios e, ainda, permite que a energia excedente seja vendida pelos consumidores à rede geral de energia. O consumo sustentável de alimentos no Brasil depende de uma produção sustentável dos mesmos. Começando pela agricultura brasileira, o documento “Agenda 21 Brasileira: Bases para Discussão” indica que: “Seis matrizes principais podem ser apontadas entre os grandes problemas da atual sustentabilidade dos modelos agrícolas brasileiros: 1) a predominância do padrão “Revolução Verde”, intensivo em capital e insumos; 22
Comissão de Políticas de Desenvolvimento Sustentável e da Agenda 21 Nacional (CPDS) – Ministério do Meio Ambiente (MMA) / Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Agenda 21 Brasileira: Bases para Discussão. Junho/2000. 23 Op. Cit. Idem, ibidem. 24 Op. Cit. Idem, ibidem. 7
2) a predominância do agronegócio, que se caracteriza pela geração de passivos ambientais consideráveis (erosão do solo, comprometimento de bacias hidrográficas, perda da biodiversidade, entre outros), pela baixa geração de empregos e pelo êxodo rural a partir da década de 60 no país; 3) a dependência científica e tecnológica, resultado também do padrão “Revolução Verde”, assim como da reduzida capacidade de inovação do sistema produtivo nacional; 4) a predominância de um modelo excessivamente voltado para a exportação, pautado pelas necessidades dos países industrializados/importadores; 5) a competitividade dos produtos brasileiros, em função dessa dependência tecnológica, passa a ser condicionada, como em outros setores, pela aceitação de riscos ambientais e sociais, principalmente sobre exploração da base de recursos naturais e da mão-de-obra barata e pouco capacitada; 6) a estrutura fundiária extremamente concentrada”25. O mesmo documento indica algumas alternativas a esse padrão de produção, como a difusão de modelos agroflorestais diversificados e baseados na pequena propriedade. Entre as alternativas está a agricultura familiar, que utiliza técnicas de manejo sustentável, como a agricultura orgânica, biodinâmica e ecológica. Além do impacto social negativo das monoculturas mecanizadas, é preciso considerar os impactos ambientais e à saúde humana dos agrotóxicos, amplamente utilizados no atual modelo agrícola brasileiro. É necessário reduzir os níveis excessivos de insumos químicos na agropecuária, uma vez que são prejudiciais à saúde dos trabalhadores e consumidores, além de serem agentes de contaminação dos recursos hídricos. Outro ponto crucial quando consideramos o consumo sustentável de alimentos no Brasil é o aumento da distância entre produtores e consumidores e, também, a incoerência da logística de distribuição. Por um lado, o mundo globalizado permitiu a diversificação da oferta de alimentos, por outro, aumentou a distância entre produtores e consumidores. Isso sem falar nos impactos ambientais do transporte de alimentos. Não apenas no âmbito internacional como no brasileiro. Por exemplo, a produção agrícola do interior da Bahia viaja até o CEASA de São Paulo para depois ser novamente transportada para Salvador. O problema ambiental dos resíduos deve ser prioritário. A responsabilidade não deve ficar a cargo apenas do consumidor quanto ao correto encaminhamento dos resíduos para a reciclagem, mas também os produtores devem responder pelo ciclo de vida do produto, que inclui desde a criação de produtos que minimizem o consumo de energia e recursos naturais até a responsabilidade pelas embalagens. “Hoje, quando a média de produção de resíduos domésticos já é de um quilo por habitante/dia, a coleta chega a mais de 100 mil toneladas diárias (cerca de 20% do lixo doméstico não são coletados). Cerca de 50% do coletado vão para lixões a céu aberto; só 25% para aterros mais ou menos adequados; 25
Op. Cit. Idem, ibidem. 8
para a reciclagem, menos de 1%. Impõe-se a adoção de políticas que induzam à redução do lixo, a começar por uma legislação que, abrangendo todo o ciclo do produto, leve os produtores a receber de volta embalagens e sucatas e contribua para baixar o consumo de recursos naturais. Políticas que punam a produção e destinação inadequada de resíduos tóxicos e resíduos industriais”.26 Ainda considerando o consumo sustentável de produtos, entre outros, dois entraves devem ser considerados: a falta de produtos certificados e a falta de estrutura para reciclagem. Box 1 – Ainda falta estrutura para a reciclagem no Brasil Entre junho e novembro de 200127, o Idec realizou uma pesquisa em dez cidades brasileiras e constatou que apenas três contavam com programa municipal de coleta de materiais recicláveis. Cidades como Porto Velho, Tubarão e Natal ainda depositam o lixo da pior maneira, em lixões. Das dez cidades, apenas Curitiba contava com postos de coleta de lixo tóxico domiciliar. A composição do lixo, maior parte orgânica, além da realidade diferente do hemisfério Norte, indica, contraditoriamente, o desperdício de comida no País. Os programas municipais de coleta são mais eficientes, pois recolhem uma quantidade maior de lixo e permitem aos trabalhadores ter condições mais dignas. Esses programas devem envolver os catadores e as cooperativas de catadores, buscando a solução simultânea de problemas ambientais e problemas sociais. Segundo o documento “Agenda 21 Brasileira: Bases para Discussão”, dados do Unicef indicam que, no Brasil, mais de 40 mil pessoas vivem diretamente da catação em lixões e mais de 30 mil vivem da catação nas ruas, como única opção de renda. A presença de crianças e adolescentes é bastante significativa e chega, em alguns casos, a representar 50% dos catadores, como ocorre em Olinda28. Como instruir o consumidor a dar preferência à produtos que sejam sustentáveis do ponto de vista socioambiental se não existe uma forma de identificar tais produtos? Como orientar o consumidor a separar os materiais recicláveis do seu lixo se a grande maioria dos municípios brasileiros não dispõe de coleta seletiva de lixo? O mesmo problema existe quando consideramos o consumo sustentável de transporte, que deve basear-se no transporte público coletivo e, não, no transporte 26
Op. Cit. Idem, ibidem. Consumidor S.A,/Idec. “Testes e avaliações: Coleta Seletiva ainda é incipiente”. Número 63, Fevereiro – Março/2002. 28 Comissão de Políticas de Desenvolvimento Sustentável e da Agenda 21 Nacional (CPDS) – Ministério do Meio Ambiente (MMA) / Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Agenda 21 Brasileira: Bases para Discussão. Junho/2000. 9 27
individual. Isso porque são notórias a falta e a má qualidade do transporte público coletivo nas cidades brasileiras. “Além da prioridade absoluta para o transporte coletivo, as políticas terão de caminhar para soluções no âmbito do que se tem convencionado chamar de não-transporte. Nas regiões metropolitanas brasileiras, a mobilidade mal chega a 60% da média mundial. O tempo de deslocamento residênciatrabalho-residência tem aumentando significativamente. A proporção habitantes/veículo em São Paulo, por exemplo, passou em 20 anos (1977/97) de 6 x 1 para 2 x 1. A velocidade média dos ônibus em 10 anos baixou de 22 para 15 quilômetros por hora. Mudar esse quadro, segundo a ANTP, exigiria também romper com as práticas que preconizam “mais transporte” como solução; reordenar as atividades urbanas, ocupar espaços vazios, descentralizar atividades econômicas e serviços; priorizar deslocamentos a pé ou de bicicleta; reduzir o tráfego de passagem e criar espaços de convívio; promover restrições ao uso de automóvel; efetuar mudanças na política tarifária para transferir parte dos custos aos usuários do transporte individual; substituir combustíveis fósseis por alternativas menos poluentes e produtoras de ruídos”29. A insustentabilidade do atual sistema de transporte em cidades como São Paulo é evidente: “Na região metropolitana de São Paulo, os cinco milhões de veículos emitem 73% do total de dióxidos de enxofre (SO2) e 89% do dióxido de nitrogênio (NO2) lançados à atmosfera – dois gases presentes nas emissões de diesel e de gasolina. Essa frota é responsável por 90% da poluição atmosférica nessa região”30. Mais uma vez, considerando os problemas ambientais do transporte individual, é irônico o resultado do padrão de desenvolvimento brasileiro. Se por um lado, a indústria automobilística teve uma importância significativa para o desenvolvimento econômico do Brasil, por outro lado, essa frota contribui para o problema ambiental das mudanças climáticas, assim como é responsável por problemas na saúde humana causados pela poluição dos carros e pela perda de qualidade de vida nas grandes cidades brasileiras. Por fim, outra área que deve receber atenção na promoção do consumo sustentável é a da construção civil, mas não apenas a utilização de materiais produzidos segundo os princípios da sustentabilidade. E, mais uma vez, destaca-se a importância da certificação desses produtos para que o consumidor possa identificá-los, assim como é preciso considerar as próprias técnicas de construção, que devem estar pautadas pela redução de uso de materiais, além de visar o uso eficiente de água e energia.
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Op. Cit. Idem, ibidem. 10
Responsabilidades dos diferentes agentes Como afirmam as Diretrizes das Nações Unidas para Proteção do Consumidor, a responsabilidade pelo consumo sustentável é compartilhada por todos os membros e organizações da sociedade, dando destaque para a responsabilidade dos consumidores informados, governos, empresas, sindicatos e organizações ambientalistas e de consumidores. Governos Cabe ao governo promover a internalização das questões ambientais e sociais nas políticas públicas em todos os níveis, com o objetivo de que essas dimensões sejam consideradas base para todas as políticas e todas as ações – e não algo a ser observado apenas no final do processo como aspectos secundários. Além de políticas públicas integradas pautadas pela sustentabilidade social, ambiental e econômica, é preciso institucionalizar instrumentos econômicos para a promoção da sustentabilidade. Por exemplo, a aplicação do princípio poluidor/pagador em todas as atividades, a cobrança pelo uso de recursos naturais; ou um sistema que tribute o consumo de recursos naturais (green tax) e, não, o trabalho (dando margem ao crescimento da oferta de emprego), e a replicação de mecanismos como o ICMS ecológico. “Outra direção desejável seria caminhar rumo a um sistema tributário, que começa a ser implantado em vários países, capaz de desonerar progressivamente o trabalho e o capital e onerar o consumo de recursos naturais. Sistemas desse tipo não apenas ajudam a combater o desemprego como favorecem a conservação de recursos naturais”31. Ainda sobre a questão fiscal, ao invés de criar novos impostos, o governo deveria priorizar os meios de combater a sonegação, que, segundo o documento “Agenda 21 Brasileira: Bases para a Discussão”, ocorre em cerca de 40% da produção. Os governos devem, ainda, apoiar pesquisas que estabeleçam informações precisas sobre padrões e níveis de consumo, voltadas tanto para as empresas como para os consumidores. E promover e apoiar campanhas de conscientização sobre os impactos socioambientais do consumo e alternativas para mudança de comportamento para todos os setores da sociedade.
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Op. Cit. Idem, ibidem. Op. Cit. Idem, ibidem. 11
Outro papel importante dos governos é a promoção do desenvolvimento, transferência e adoção de tecnologias limpas. E como grandes consumidores que são, os governos devem adotar critérios socioambientais para efetuar suas compras.
Empresas Das empresas espera-se uma atuação pró-ativa na promoção do consumo sustentável. Em primeiro lugar, garantir os direitos adquiridos pelos trabalhadores em todas as suas unidades, com especial atenção para as filiais das empresas transnacionais nos países em desenvolvimento. Em segundo lugar, assumir para si o princípio da ecoinovação, que considera os aspectos ambientais da produção desde a escolha do que produzir. Além da ecoinovação, a ecoeficiência deve orientar a máxima redução do consumo de energia e recursos naturais por unidade de produto que, por sua vez, devem ser pré-requisitos dos produtos fabricados, além da qualidade, durabilidade, serem passíveis de reparo e de reciclagem. Também é dever das empresas atender o direito dos consumidores à informação sobre os impactos socioambientais dos produtos e serviços, por meio de certificados fornecidos por terceira parte independente e de balanços sociais e ambientais consistentes, transparentes e passíveis de verificação. As empresas deveriam encarar a
mudança radical necessária como uma
oportunidade de negócios . Se hoje gastam somas absurdas em publicidades que dizem que os atuais padrões insustentáveis de produção e consumo são sinônimos de felicidade, as empresas deveriam mudar a estratégia do jogo e gastar as mesmas quantias elevadas em publicidades que vendam um novo estilo de vida, que permitam a desagregação do crescimento econômico do consumo de recursos naturais. Organizações de defesa do consumidor “Na sociedade de consumo, as pessoas compram o que não precisam, com o dinheiro que não têm, para impressionar pessoas que não conhecem.”32 A preocupação pública com o meio ambiente não se traduz necessariamente em mudanças sustentáveis no comportamento do consumidor. As pessoas ainda limitam a 32
Autor desconhecido. 12
questão ambiental ao problema da preservação de florestas e da proteção de espécies ameaçadas de extinção. Os consumidores não relacionam o ato de consumo com problemas ambientais, como a poluição do ar e dos rios, ou com o aquecimento do planeta, por exemplo. Os consumidores podem estar dispostos a seguir passos simples que beneficiem o meio ambiente, mas podem não estar suficientemente convencidos, ou até impossibilitados economicamente e pela falta de estrutura, a fazer mudanças significativas nos hábitos de compra.
Uma coisa é ter consciência dos problemas. Outra é pagar valores
acentuadamente mais altos ou fazer mudanças no estilo de vida básico. No entanto, o consumo sustentável certamente precisa de mudanças nos estilos de vida e no nível de consumo daqueles que formam a classe global de consumidores. A consciência do consumidor tem de ser suficientemente modificada para causar mudanças no comportamento. Os consumidores precisam estar convencidos de que quando fazem compras estão, de fato, exercendo uma responsabilidade social, política e moral que vai além de seus interesses particulares. Um compromisso das organizações de consumidores com o consumo sustentável é a promoção da educação dos consumidores sobre o impacto de suas escolhas na sociedade e no meio ambiente. Esse é um desafio fundamental para o movimento de consumidores. Existem sinais importantes de que as pessoas optam até por pagar mais se estiverem preocupadas com aspectos relevantes para a sua saúde, sendo o aumento exponencial do consumo de alimentos orgânicos um exemplo significativo disso. As organizações de defesa do consumidor mais antigas e poderosas dos países desenvolvidos, que já acumularam longa tradição na realização de testes de comparação de produtos, devem incorporar a avaliação dos aspectos ambientais e sociais dos produtos e serviços. Na medida do possível, também devem realizar os testes seguindo a metodologia de análise de ciclo de vida, que avalia o produto desde a exploração da matéria-prima até a disposição final do resíduo do consumo. Os principais obstáculos à disseminação do uso de análise do ciclo de vida nos testes feitos pelas organizações de defesa do consumidor são os custos dos mesmos e a indisponibilidade de informações sobre os processos produtivos. Um conflito para consumidores e organizações de consumidores, especialmente em países em desenvolvimento, é a questão dos preços. As organizações tradicionalmente lutam para assegurar que os consumidores consigam o melhor valor para o seu dinheiro. É complicado afirmar que a melhor política de conservação de energia, por exemplo, é deixar que os preços do combustível subam. Para consumidores de baixa renda, até mesmo um pequeno aumento nos preços poderia causar impactos significativos em sua economia familiar. 13
Os consumidores e as organizações de consumidores devem lutar pela justa distribuição dos custos das mudanças que, inevitavelmente, devem ocorrer no caminho para uma sociedade sustentável. A conta deve ser dividida entre todas as partes envolvidas: nem todos os custos devem ser repassados ao consumidor. É preciso que haja equilíbrio entre a mudança de comportamento do consumidor e o princípio de 'quem polui paga', que irá estimular a inovação e a eficiência na busca de tecnologias menos prejudiciais. As organizações, por sua vez, ao priorizarem suas estratégias de ação, precisam procurar entender melhor o processo de radicais mudanças no modo de vida que decorrem desse modelo em que o mercado é colocado como o único paradigma a ser seguido. Vivese hoje não apenas um ambiente de economia de mercado, mas uma “sociedade de mercado”, onde valores como solidariedade, participação social, igualdade e busca do bem estar coletivo estão desgastados e vem sendo substituídos pelo individualismo e consumismo. A própria conceituação de cidadania está sendo subvertida, passando a ser a inserção no mercado o que define o cidadão, pois o espaço da cidadania, para esse modelo liberal, é o mercado. O papel central das organizações de defesa do consumidor nesse processo de construção de um novo padrão sustentável de consumo é pedagógico. É preciso mostrar ao consumidor a relação entre consumo e sustentabilidade ambiental e o poder que suas escolhas na hora da compra têm.
Um outro país é possível Para promover o consumo sustentável no Brasil, por um lado, é preciso seguir um modelo de desenvolvimento baseado na distribuição de renda, a fim de acabar com a pobreza e permitir que todos os brasileiros tenham acesso a um padrão de consumo que satisfaça às suas necessidades básicas. Por outro lado, é fundamental considerar as relações interdependentes entre o comércio mundial e os padrões de produção e consumo no país, além de reorientar os parâmetros de desenvolvimento por meio de políticas públicas integradas, que sejam pautadas pela busca de sustentabilidade social, ambiental e econômica.
Bibliografia Brandsma, Erich H. & Eppel, Jeremy. “Produção e consumo sustentáveis: um enfoque internacional”. In: Ribemboim, Jacques (org.). Mudando os Padrões de Produção e Consumo. IBAMA, 1997. 14
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