Concha Rousia - As Sete Fontes

  • November 2019
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  • Words: 75,922
  • Pages: 197
Concha Rousia

As Sete Fontes romance

Edições ArcosOnline.com

Título As Sete Fontes

Autora Concha Rousia

Editor Victor Domingos [email protected]

Data de edição 17 de Maio de 2005

Edição

Edições ArcosOnline.com www.arcosonline.com

Este trabalho encontra-se registado na Inspecção Geral das Actividades Culturais, sendo agora a sua publicação e distribuição gratuita, sob a forma de e-book, efectuada com a autorização da autora. É permitida a sua impressão e redistribuição em papel ou suporte digital, desde que isso seja feito sem propósitos comerciais e todo o seu conteúdo permaneça inalterado.

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SOBRE A AUTORA

Concha   Rousia  nasceu   em   1962   numa   pequena   aldeia muito similar a Penacova, no Sul da Galiza, entre Ginzo da Límia   e   Montalegre,   onde   passou   a   sua   infância. Deslocou­se   posteriormente   a   Vigo,   onde   cursou   estudos secundários na Universidad Laboral, um internato público para   raparigas   de   famílias   camponesas   e   operárias.   Lá sofreu por primeira vez o choque de não poder utilizar com normalidade   a   sua   língua   galego­portuguesa   na   sua   própria   terra,   e   iniciou uma   militância   cultural   e   política   a   favor   dos   direitos   linguísticos   e   de identidade   da   Galiza   que   continua   até   hoje.   Após   diversas   peripécias   vitais, cursou   tardiamente   estudos   de   Psicologia   na   Universidade   de   Santiago   de Compostela,   e  depois   residiu   vários anos  nos  Estados  Unidos,  completando um   mestrado   em   Terapia   Familiar   na   Universidade   de   Maryland.   Na actualidade   partilha   a   sua   actividade   literária   com   a   prática   da   Psicologia Clínica perto da cidade compostelã.  As Sete Fontes  é o seu primeiro romance; anteriormente, deu a conhecer na rede alguns relatos curtos agrupados baixo o título “Lobos”. No ano 2004 ganhou o Certame de Narrativa Curta do Concelho de Marim, na Galiza, com o relato “Segredo de Confissão”.

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A Suso, sempre

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PRÓLOGO Isaac Alonso Estraviz Universidade de Vigo  

Acabo de ler muito atentamente e com verdadeiro prazer o romance de Concha Rousia intitulado As Sete Fontes. Romance que começa na cidade das Burgas, uma das cidades mais tratadas na nossa literatura. Mas este tem o seu desenvolvimento   em   terras   provincianas,   que   não   têm   sido   ultimamente alheias à literatura galega. Nele   a   autora   enfrenta­se   frontalmente   ao   problema   do   caciquismo político e religioso e à corrupção que grassa por toda a parte. Tira à superfície uma série de problemática que faz que o nosso povo não seja o que deve ser. A luta   entre   a   sobrevivência   e   a   falta   de   forças   ou   de   interesse   para   nos enfrentarmos a todo um entramado de condicionamentos que não permitem que o povo galego saia da sua submissão estúpida e lhe falte a força suficiente para ser dono da sua história e do seu futuro, romper os laços que o inutilizam, destripar os que não permitem que seja livre e dono do seu destino e dos seus bens. Pedem­me  que  ao começo deste romance diga umas palavras  sobre  as peculiaridades da nossa variante linguística. É muito pouco o que tenho a dizer se   estamos   a   pensar   nos   falares   populares.   O   leitor  que   pegue   no   romance olhará isto com toda naturalidade. Mas vou fazer um bocado de história. Na história do nosso relacionamento, tem havido um bocado de tudo. Às vezes produto da ignorância. Na década dos cinquenta houve em Braga um grupo que tentava publicar textos galegos com lhes mudar tão só a ortografia dos mesmos, deixando formas e vocábulos de duvidosa autenticidade. Lá se publicaram obras como Nos Picoutos de Antoim de Carré Alvarelhos, Seitura de

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Bouça   Brei   e   colaborações   de   personalidades   de   ambas   pátrias   na   revista Quatro Ventos. Quer nos livros, quer na revista, os textos galegos deixam muito que desejar. Depois e ainda hoje se segue com a mania de falar de traduções de galego para português ou de português para galego como se de duas línguas diferentes se tratasse. É realmente uma estupidez, pois um texto português percebe­se muito melhor   com   a   sua   ortografia   que   com   o   invento   ortográfico   empregado   na Galiza,   que   tudo   desfigura.   As   palavras   galegas,   que   são   as   mesmas   que   as portuguesas não se podem escrever de maneira diferente. É certo que o português da Galiza é um bocado diferente se comparado com  o  chamado  português   padrão.  Mas não se a comparação se estabelece com os falares populares do Norte de Portugal. Falares tão portugueses e tão galegos como os outros. Nos falares de aquém e além Minho há as mesmas contracções:  pra,  prò,   co,   coa...   Estas  chegam   a  Lisboa   e  ultrapassam   o  seu domínio. As mesmas formas irregulares de certos verbos:  dixe, dixeste, dixo, dixemos, dixestes, dixerom; quige, quigeste... Pronúncia do ­v­ como ­b­; formas verbais   graves:  amavamos,   matavamos...  Podo,   poda...  Qualquer   pessoa   que tenha contacto e um bocadinho de ouvido para escutar os falantes, perceberá que   isto   e   outras   cousas   mais   são   assim.   O   que   não   tiver   tempo   para   os deslocamentos,   que  consulte   as  inúmeras   publicações   monográficas   que   de uma ou outra maneira incidem no mesmo. O artigo indefinido  ũa, algũa, era assim   como   se   pronunciava   ainda   em   1850   sendo   condenadas   polos gramáticos as pronúncias que hoje são oficiais, mas que seguem a ser normais na Galiza, no Norte de Portugal e em grande parte do Brasil. Grande parte do que   hoje   se   considera   norma   é   fruto   de   uma   transgressão.   Para   que   olhar despectivamente   para   pronúncias   ou   léxico   que   não   se   conhece   a   sua existência? Muito léxico que os portugueses definem como léxico galego, é também português. O meu Dicionário é considerado polas gentes do Norte de Portugal como o melhor dicionário português com que contam para consultarem nele vocábulos,   frases,   expressões   que   não   encontram   em   nenhum   dicionário chamado   português.   Na   história   da   lexicografia   portuguesa   houve   uma

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tendência   para   suprimirem   todo   o   léxico   nortenho   e   imporem   um   léxico bastante reduzido do sul. Hoje Os Lusíadas de Camões é muito mais compreensível para galegos do que   para   portugueses.   A   maioria   das   anotações   –   excepto   aquelas   que   se referem à Mitologia – são inúteis para galegos. As Novelas do Minho de Camilo Castelo Branco, o mesmo que toda a sua obra resulta muito mais inteligível para nós do que para a maioria dos portugueses. Miguel Torga, Bento da Cruz e muitos outros – apesar de que muitas vezes se deixam levar polas modas de Lisboa – são para nós o léxico mais normal.  A Sibila de Augustina Bessa Luís, tem   um   léxico   tão   próprio   do   Norte   de   Portugal   como   da   Galiza,   como   da minha aldeia. Que português é capaz de ler obras de Aquilino Ribeiro sem um dicionário na mão. De   Coimbra   para   o   Norte   está­se   a   perder   ou   ocultar   muito   léxico plenamente português e plenamente galego. Infelizmente ainda se trata de um trabalho por fazer, pois aquilo que está feito resulta muito incompleto e não sei por que razão alguns vocábulos nem sequer se recolhem. De Trás­os­Montes temos um  Dicionário dos Falares de Trás­os­Montes  de Vitor Fernando Barros que estando muito bem feito, são muito poucos os verbetes recolhidos. Só em quarenta   aldeias   galegas   recolhi   eu   13.000.  O   Falar   do   Barroso  de   Rui   Dias Guimarães,   um   trabalho   também   muito   bem   feito,   resulta   a   todas   luzes incompleto.  O   Vocabulário   Minhoto  de   Manuel   Boaventura   de   grandes pretensões ficou no vocábulo  Espocar. Posteriormente,  O Falar do Minho, de Gabriel Gonçalves, que abrange do A ao Z, tem menos verbetes do que o de M. Boaventura. Podíamos ir citando um por um todos os materiais recolhidos e que fazem parte de outras obras. Que pretendo dizer com isto?   Pois que a maioria do léxico do Norte de Portugal, melhor dito da chamada Galiza Histórica, está ainda sem recolher. Isto faz pensar que muitos portugueses conhecedores de um padrão aprendido nas escolas mais aquilo que ainda lhes fica da sua comarca ou de parte da sua província, ignorantes, portanto, do seu léxico, considerem muito léxico como exclusivo   da   Galiza,   quando   todas   essas   palavras   se   estão   a   empregar   nos umbrais das suas casas.

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Ainda   assim,   pode   haver   algumas   palavras   que   não   tenham correspondência   nalgum   lugar.   Isto   resulta   totalmente   compreensível,   pois quando uma língua se fala num território extenso e com variantes orográficas e climáticas,   logicamente   sempre   tem   que  haver   palavras   num   lugar  que   não sejam próprias de outros. Os do interior não podemos ter o mesmo vocabulário que os da costa. Mas estamos a falar a mesma língua e esse vocabulário é tão nosso como deles. Pode, portanto, que algumas palavras se empreguem na Galiza e não em Portugal   ou   vice­versa,   mas   isso   não   quer   dizer   que   aquelas   que   são autenticamente galegas não se considerem como autenticamente portuguesas e que as que são autenticamente portuguesas não se possam considerar como autenticamente galegas. O   léxico   que   emprega   Concha   Rousia   no   seu   romance   é   galego   e   é português, pode ser que algum vocábulo não esteja recolhido ainda, mas que existe   estou   plenamente   convencido.   Em   trabalhos   feitos   com   portugueses, inclusive teses de mestrado e de doutoramento me encontro com as maiores surpresas.   Encontrar   em   Arcos   de   Valdevez   vocábulos   que   considerava unicamente   próprios   da   comarca   de   Santiago   de   Compostela.   Ou   com   as formas verbais tal e como se empregam popularmente na Galiza!! Esperemos,   pois,   que   esse   puritanismo   que   às   vezes   apresentam   os nossos colegas portugueses dê passo a uma maior liberdade de espírito e de criatividade.   Compreende­se   que  para   um   tipo  de   literatura  oficial   haja   um modelo mais ou menos estandarizado, mas para a poesia e para a prosa não podemos matar o léxico que nos é comum e que está aí vivo. A obra de arte não pode estar limitada aos estreitos cânones de abafamento. De seguirmos assim seriam   inúteis   a   maioria   dos   vocábulos   que   recolhem   os   dicionários   e   de aqueles  que ainda é necessário recolher. A língua tem de estar em todos os âmbitos do saber e em todo tipo de culturas. Acho perfeitamente válido que C. Rousia incorpore afinal do seu romance um vocabulário com aquelas palavras que considera desconhecidas no mundo português. Assim facilita o melhor entendimento do romance. Mas isto teria que   ser   frequente   em   muitas   outras   obras   sejam   elas   da   procedência   que sejam.

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AS SETE FONTES

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Angustiado,   o   discípulo   acudiu   ao   seu   mestre espiritual e perguntou­lhe: – Como posso liberar­me, mestre? – O instrutor contestou: – Meu amigo, e quem é que te ata? Pensamento tradicional da Índia

…Como aranhas fantasmais que tecem  o esquecimento da sua própria existência. Castelão

Quem dera volvermos nascer, e saber o que sabemos! Pensamento tradicional de Penacova

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LIMIAR A   notícia   lera­se   no   diário  Nuestra   Región  a   quarta   à   manhã.   O   jornal quase não podia acreditar no que, porém, era uma realidade inegável. Assim, como   sumida   por   uma   bruxa,   desaparecera   do   Museu   Arqueológico   de Ourense uma pia de baptismo datada do século dezassete e que pesa mais de quinhentos quilos. As autoridades interrogaram os vizinhos, poucos, pois na vizinhança   o   que   mais   abonda   são   as   tabernas,   na   procura   de   qualquer informação que os ponha na pista da pia. A porta não fora forçada, e a peça fora tirada do museu com todo o cuidado, como para não danar nada ao seu passo, o que permitia descartar qualquer acto de vandalismo. Nas tabernas da Rua do Manco não se falava doutra cousa nos dias que seguiram à notícia e aos feitos.   Os   clientes   das   tascas   não   desperdiçaram   a   maré   para   brincar   cos taberneiros   e  até  algum   gracioso  chegou  a dizer  que  se bem  se  mirava  não estava tão mal a cousa… “Agora tão sequer não poderão baptizar o vinho…” A polícia local vigia noite e dia, desde o sucedido, as duas entradas da rua. As fechaduras das duas portas exteriores do museu foram mudadas também coa finalidade de tornar aos ladrões de pias. A cidade anda toda alvorotada, e o sentir da gente fica bem reflectido nos versos do não mui conhecido poeta do momento, um tal Budial: Bágoas ardentes pola pia de pedra Bágoas escaldantes  chora hoje a terra

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De quando em vez o diário Nuestra Región salientará o que se for sabendo do processo de busca e recuperação da peça roubada, além de dar­nos conta do latejar da cidade. Deste jeito esperam que os ourensãos se tranquilizem e não percam a confiança no labor que desempenham as autoridades.

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Capítulo I

A FONTECOVA Ainda que os seus caminhos já se tinham cruzado muitas vezes, tempo atrás,   os   três   custodiadores   da   pia   de   pedra   não   lembravam  tais  encontros, nem as faces, bastante mais novas, que os viveram. Estes três homens foram destinados, sem eles saberem muito bem como ou porquê, para cuidar de que a   pia   chegue   ao   seu   destino.   Andarão   durante   sete   luas,   que   começarão   a contar quando chegarem à primeira das sete fontes polas que há­de passar a pia antes de arribar ao seu destino definitivo. Terão que esconder a pia durante o dia para que não seja vista por ninguém, e marchar às suas casas, onde não lhes   hão­de  topar   a  falta.   Cada  noite  voltarão   a  se  reencontrar e  seguir   coa peregrinação   até   ao   amanhecer,   e   assim   até   ao   remate   do   tempo   do   que dispõem.   Sete   são   os   pontos   polos   que   a   hão­de   levar,   e   cada   um corresponde­se com uma das sete fontes das que darão de beber à pia antes de a depositar no lugar que foi destinado a ela. A primeira noite, chegaram coa encomenda à Fontecova, o primeiro dos sete mananciais.  Ainda havia  vagar para o arraiar do dia, polo  que antes de esconderem a pia tiveram tempo para falar ali na beira da fonte. Nas noites precedentes àquela, os três homens não tiveram tempo nem fôlegos para se darem   a   conhecer.   Reinava   a   confusão   nas   suas   cacholas.   Eles   os   três lembravam   um   sonho   em   que   ficavam   de   pé   direito   nas   portas   do   Museu Arqueológico   de   Ourense;   Dom   Narciso,   o   cura,   mirando   aos   outros   dous homens dissera então: “que faço eu à porta deste museu?” Os outros dous, o Perfeuto Racha­Pedras e o ex­alcaide do concelho de Os Mouros, a quem todos conheciam   por   Rebenta­Ruas   polo   seu   afã   de   encanar   mais   fundo   que   o inferno; estes últimos não tinham percebido que aquelas eram as portas dum museu,   eles   só   passaram   polas   tabernas   da   rua   sem   reparar   nunca   nele. Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  13

Seguido daquele encontro de ensono tudo sucedera tão depressa que os três homens não tiveram tempo nem para falarem. Agora repousavam na beira da fonte; aquela fonte, na que com sucessivas mãos­cheias beberam eles e mais deram   a   sua   água   à   pia,   fora   destinada,   quiçá   pola   sua   localização,   a   ser   a primeira das sete polas que teria de passar aquela procissão nocturna. O  Perfeuto Racha­Pedras, que andava algo torpe ultimamente, caíra no rego   da   água   e   ficara   todo   enlamadurado;   Dom   Narciso,   para   lhe   tirar importância ao pequeno incidente, repetia­lhe que não se preocupasse, pois antes   de   que   chegasse   o   dia   havia­lhe   enxugar   e   trapalatrá…;   ao   Perfeuto amargava­lhe   bem   ter   que   aturar   esses   conselhos,   sobretudo   sabendo   que vinham   dum   cura.   Ainda   que   Narciso   afirmara   e   negara   essa   condição   na mesma  frase  (“Fui   cura   mas… agora já  não…”) ao Perfeuto,  como  a toda  a gente, não lhe abondava com que Narciso não dissesse missa para o deixar de ver cura, e como uma víbora revolvia­se cara a ele: “que saberás tu, tu nem sequer foste nunca casado e não lhe tens que dar conta do que fazes ou não fazes pola noite à mulher!” E isso era certo, o Narciso não lhe tinha que dar contas a mulher alguma, mas o que não sabia ainda o Racha­Pedras era que este   cura   cada   noite,   logo   da   ceia,   tinha­se   que   escapar   do   psiquiátrico   do Couto, onde residia desde um incidente que tivera numa freguesia que linda co vale onde fica a Fontecova. Tampouco era certo que o Racha­Pedras lhe tivesse que   dar   contas   à   mulher,   ainda   que   a   tinha;   e   apesar   de   que   muitos   lhe aconselharam que o deixasse, ela seguia a o aturar. O ex­alcaide, baptizado coa alprecha   de   Rebenta­Ruas   polos   seus   ex­votantes,   tentou   fazer   de intermediário entre  o  cura  e  o canteiro… “Calai já, tarabelos, que sois mais maus de aturar do que… ainda nos hão­de descobrir por vossa causa… porquê não tratamos de esclarecer onde é que nos topamos…? Lembrais se algum de vós esteve antes por aqui, ou lhe resulta familiar este sítio?” O cura engrunhou o focinho e moveu a cabeça em sinal de não ter ideia de que lugar era aquele; a escasseza de luz que manda a lua nova não ajudava muito. O Racha­Pedras botou uma olhada mais longa e até subiu ao alto do lameiro no que fica a fonte, depois   meteu­se   no   carroucho   e   disse:   “sim,   eu   conheço   isto,   estamos   em terras   dum   lugar   que   se   chama   Penacova,   e   que   fica   do   outro   lado   desse outeiro;   sei­o  eu  bem  porque  desde  o  carroucho  vi que  acolá  para  o fundo

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estão os penedos da Rainha Loba. Na base daqueles penedos tive eu há anos uma canteira.”   “Penacova… – repetiu Narciso –, eu disse missa em Penacova alguma vez, já vão lá alguns anos disso… o cura de Penacova tinha andado algo desassentado… Penacova…” repetiu o cura, e ficou calado, a olhar para o chão como tentando achar nas ervas, ou quiçá nos seus miolos, alguma ideia que lhe dera   luz   àquela   noite   de   incertezas.  “Penacova   pertence  ao concelho   de  Os Mouros” – disse o ex­alcaide. – “Eu fui alcaide nesse município alguns anos, há também  já   tempo,   mas  não   me  portei   mal  cos   de   Penacova…”  E  disse  isto como quem rosna uma queixa, manifestando a sua desconformidade com um destino que intuía lhe vinha acima. Começavam a desaparecer algumas estrelas, polo que esconderam a pia e foram­se, cada quem por seu carreiro. Partiram sem despedir­se sequer, os três sabiam,   e   então   não   era   preciso   mentá­lo,   que  à   noite   seguinte   teriam  que juntar­se ali de novo, onde ficava escondida a valiosa peça. Esconder a pia não era tarefa difícil, pois o lugar no que ficava a fonte estava rodeado de poulas com   gestas   e   piornos   de   mais   de   dous   metros,   e   tojais   nos   que   se   via perfeitamente que ninguém entrara a roçar desde havia muitos anos; portanto escolheram   o   que   ficava   mais   à   mão   e   encaminhado   na   direcção   que consoante   com   as   estrelas   teriam   de   seguir   na   próxima   jornada,   e   ali   a esconderam junto cos trebelhos que usavam para a deslocar: uma espécie de chedeiro  pequeno  sobre  duas rodas  eixadas e um pinho polo que um deles puxava quando havia que mover a carga. Os outros dous, cada um co ombro à roda e a empuxar. As pegadas, que ali perto da fonte se espetaram mais, e as rodeiras, tinham de ser bem dissimuladas antes de partirem para as lavouras do dia; feito isso, aqueles homens eram livres de voltarem ao seu cotio. * * * Pola   manhãzinha   em  Nuestra   Región  pode­se   ler   que   as   autoridades andam a investigar a história da pia para ver se dão descoberto quem pôde estar   detrás   da   sua   desaparição.   Com   esta   finalidade   fizeram   uma   visita   ao Bispado, na rua do Progresso, no meio e meio de Ourense, já que a pia fora, e porventura ainda era, propriedade da Igreja. Há perto de vinte e poucos anos Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  15

que  foi  sacada  da  freguesia  na que estava, e para a que fora criada, e anda ambulante por aí; mas sobre disto o Bispado não tinha documentação que o pudesse provar, já que nos seus arquivos, actualizados antes dessas datas, não rezava nenhum movimento de pias. A peça fora recentemente adquirida polo Museu Arqueológico de Ourense, numa hasta pública, e nele estava exposta até à noite da sua desaparição. Representantes do Bispado, trás cotejar a descrição que lhe ofereceram os agentes com as suas avelhentadas notas, sugeriram o nome duma freguesia como possível origem da peça; porém, isso deveria ser confirmado, pois nos arquivos não consta pia nenhuma desaparecida em tal lugar. Ora que também se poderia tratar doutra pia e doutra freguesia, pois, ainda que não o pareça, todas são similares. Na secção de sociedade, o diário recolhe a notícia de como os vizinhos da cidade velha iniciaram uma campanha de recolhida de fundos para mandar fazer  outra  pia  exacta,  e  que  não   lhe  perca   ponto,   à desaparecida.  O jornal também   publica   um   novo   verso   de   Budial,   e   o   anúncio   dum   adinheirado ourensão que oferece uma soma respeitável a quem proporcionar informação fidedigna   que   ajude   a   dar   co   paradeiro   da   pia.   O   nome   deste   enriquecido cidadão é omitido para lhe evitar a avalancha de possíveis informadores no seu domicílio. Aquelas pessoas que tenham, pois, algum tipo de informação que pensem poder ser de interesse, podem achegar­se aos escritórios deste jornal, ou ligar por telefone a um número que é facilitado também polo diário. * * * – Cala, Racha­Pedras, e agacha o lombo que a cousa não se há­de mover só; deixa­o tranquilo co pinho, já te chegará a ti a rolda. O   Racha­Pedras   seguia   um   pouco   enfronhado   porque   ontem   caíra   no rego e hoje enterrara na lama um sapato que trazia esgalochado e molhara o calcanhar, polo que não pára de lançar ataques a Dom Narciso, quem semelha todo calmo e sempre com conselhos de como se hão­de fazer as cousas… – “mas que saberá este, se é um cura qualquer…!?” Não, aquele não era um cura qualquer, mas o Racha­Pedras desconhecia a história de Dom Narciso. Dom Narciso não fora um cura qualquer nunca, nem sequer antes de ser cura; ele, Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  16

para começar, mália as ganas que tinha de se meter cura, contudo os pais… os devezos de que estudasse,… de o livrar de ter que estar atado à terra como lhes passa a eles,… que se não servia para outra cousa,… que volta e que dá­lhe, e que tal e que sei eu… Por conseguinte, o Narciso rematou no seminário e foi­se deixando levar. Ele era um moço alegre, mesmo tinha uma graça com ele que facilitava a relação com qualquer, polo que os curas do internato mui pronto ficaram seduzidos por ele e deixavam­lhe ir passando as mais das cousas que fazia, muitas não estavam bem de todo para um futuro ministro de El Senhor, não obstante já se formalizaria quando se ordenasse; isto que ele fazia agora eram  cousas   de  rapaz,   que   com  a  idade  e  a  ensinança  iriam  minguando.   E assim foi indo este moço levado polas amparadelas dos que se ocupavam da sua  formação  espiritual,  e  que  o converteram  em  cura.   Cura  feito  e  direito; assim, quase sem se aperceber, Narciso era o titular duma freguesia não mui afastada da cidade de Ourense. De hoje para amanhã convertera­se em Dom Narciso,   atrás   ficavam   os   muros   de   pedra   do   seminário   que   o   agacharam durante uma mada ou duas de anos, e agora livre… Quem seria ele ali fora, sem a frialdade das pedras para dar acougo à sua juventude ainda por viver? Não tinha outro remédio que descobri­lo por si mesmo, e assim, com um talante quase que de explorador, sem ele nem o querer, começou a sua andaina de pastor.  Aqueles dias primeiros na freguesia seriam no futuro lembrados por Dom Narciso como dias livres e felizes, nos que a ilusão era o temão que guiava o seu fazer  quotidiano.   Toda   aquela   gente   mostrando­lhe   respeito…,   e   não   só   na igreja,   senão   também   quando   se   cruzavam   com   ele   pola   rua;   mesmo   os homens, que só de se achegarem ao sagrado já tiram a gorra da cabeça e lhe saúdam   com   esse   aceno   submisso,   comunicando­lhe   a   Narciso   o reconhecimento   da   sua   superioridade.   E   o   Narciso   começou   de   sentir­se grande, mesmo partícipe merecedor da bondade infinda do Criador… assim foi como começaram as suas ideações gloriosas… –  Queres tirar duma vez! Sempre estamos na mesma… parece que este sempre anda nos viosbardos.  Aquele   Racha­Pedras   sempre   a   tanger   no   Narciso;   soltava­lhas   sem sequer dirigir­se ou fitar para ele a metade das vezes; mas o abade hoje parecia

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não   importar­se   demasiado,   andava   o   homem   a   olhar   para   dentro   e   não percebia   muito   as   aguilhoadas   que   coa   língua   lhe   lançava   o   canteiro; felizmente a roda lhe mantém o poder ocupado ao Racha­Pedras, senão este hoje saltava­lhe no pelejo ao cura; e tudo bem seguro que por causa de se lhe atoar   o   sapato   na   lama   e   ter   que   andar   ao   couchopé   quando   saíram   do lameiro… À   medida   que   o   arraiar   se   achegava,   Fontecova   ia   ficando   atrás.   A Fontecova, um manancial que fervia da terra, dava nome àquele frondoso vale. O lameiro em que rebentavam aquelas boas águas reverdecia, e já desde longe se diferenciava bem dos outros; mesmo se sentia latejar a água naquelas tornas sachadas de ano em ano. Fontecova é o primeiro manancial da freguesia de Penacova subindo polo caminho de Ameixeiras e não há viageiro da comarca que não entrara alguma vez a saciar a sua sede com estas ricas águas. Sim, a Fontecova   é   muito   apreciada.   E   vá   se   agradecem   os   de   abaixo   o   que   lhes decorre. Tal é, que há uns anos quase entraram em litígio uns vizinhos porque os herdeiros do lameiro onde abrolha a fonte não se ocuparam de desentupir as tornas, e assim a água era toda sumida e consumida, sem que decorresse nem  gota  para  os   campos   lindeiros  dos  vizinhos,  que  quase se atreveram  a meter os seus sachos nas tornas da fontela. Tudo se arranjou polas boas, quiçá porque não lhe ligou de passar por ali a nenhum advogado, ou quiçá porque todos gostam de não ter que pleitear, ou quiçá por outras razões. Aprenderam todos daquela que a água da Fontecova não só pertence ao lameiro no que nasce rompendo os seus torrões, senão que os donos, logo de se servirem dela, devem­na   deixar   marchar   para   que   livremente   banhe   outros   lameiros próximos;   e   certo   é   que   são   muitos   e   bem   deles   os   que   se   servem   destas águas… Como delas se serviram os três homens, que logo de se saciarem, e dar de   beber   à   pia   que   há­de   estar   sempre   molhada,   partiram   e   caminharam. Caminharam bem, e apesar da fraqueza mostrada polo encarregado do pinho, como frequentemente lhe lembra o Racha­Pedras: “se faria mais um mosquito que este palerma…!”, essa noite atravessaram as terras lindeiras a Fontecova, e internaram­se nas carvalheiras da Lagoa. Aquela jornada avançaram avondo, ainda que não todos ou quiçá nenhum o pudesse reconhecer… tal era o seu fado. Esconderam a pia e os aparelhos e foram­se, cada quem por onde viera.

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* * * Na   edição   de   hoje,  Nuestra   Región  pede   aos   cidadãos   o   favor   de   não fazerem mais ligações à direcção do jornal para dar informação sobre a pia, de não   ser   que   a   viram   passar   polas   próprias   ventas.   O   jornal   dá   queixas   da enorme   quantidade   de   ligações   recebidas,   muitas   delas   de   bandarras   e gandaias que nunca hão­de faltar, e que mantiveram todas as linhas do jornal ocupadas noite e dia… …Diz­se   que   houve   chamadas   bem   pândegas,   se   bem   que   disso   só conhecem os vizinhos de Seixalvo onde os comentários foram espalhados por uma recepcionista  de  Nuestra  Región.  Segundo a tal rapaza telefonista seica houve uma mulher que se encheu de porfiar e porfiar, até ligou mais de duas ou três vezes, dizendo  que aquilo só podia ser obra de  El Demónio  e que o único que se podia era rezar e confiar em El Senhor. Outro comunicante diz­se que   insistiu   em   que   ele   vira   a   pia   recentemente,   embora   não   lhe   diria   a ninguém,   excepto   ao   senhor   milionário,   onde   é   que   ele   a   guichara.   Outros afirmavam que viram a pia em sonhos e lhes falara dando­lhes a entender a onde é que se encaminhava, e cousas assim polo estilo. * * * As noites seguintes transcorreram sem maiores intriquidências; o canteiro parecia   menos   enraivado   co   abade,   se   calhar   porque   a   Lagoa   era   chã   e   o Perfeuto  não   se  tinha  que  esforçar  tanto e tampouco  se  lhe ençoufavam  os sapatos, que por certo agora levava bem amalhoados; ou também quiçá porque Dom Narciso seguia ensimesmado com as suas cavilações e não lhe andava a dar conselhos a ninguém; ou se calhar fosse por ambas as razões ou talvez por nenhuma delas. O caso é que o ex­alcaide, que como de costume não tinha muito que dizer, gozava daquela calma que reinaria nas noites que lhes levou atravessar   a   Lagoa   de   Penacova.   A   Lagoa   de   Penacova,   como   o   seu   nome indica, é um terreno parcialmente asolagado, se bem que eles o atravessavam por uma parte enxoita. A planície vem­lhe bem a Dom Narciso para seguir cos

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seus pensamentos,  que por certo traziam­no algo confundido… Como pôde ele, tão bem como começara a sua andaina, rematar onde rematou? Narciso seguia a relembrar os dias dourados da sua primeira freguesia, onde nasceram tantos sonhos… Aquele tanto respeito que sentia ele que lhe tinham todos… e a adoração que lhe mostravam as mulheres…! Esse era o seu deleitar sublime… ver­se   assim   admirado   por   esses   seres   que   ele   considerava   doces   e   suaves, ainda que, para dizer a verdade, nunca os provara. Ele entrara tão novinho no seminário,   muito   antes   de   descobrir   os   sentires   do   corpo,   e   foi   ali   nessa pequena freguesia onde o  corpo acordou,  correu o trecho que lhe faltava, e alcançou   a   sua   realização,   igualando­se   corpo   e   espírito.   E   sem   decatar­se sequer   de   como,   o   Narciso   passava   o   dia   numa   névoa   de   imagens   quase proibidas   que   pouco   a   pouco   se   foram   encarnando…   e   até   acabou debuxando­lhes   cara   àqueles  corpos  imaginados.   Agora   já  sempre  a mesma cara, e a seguir também já sempre o mesmo corpo. Inevitavelmente, namorou. Ela converteu­se no ser mais maravilhoso do mundo de Narciso, o seu sol, o seu   temão…   e   dado   quem   ele   era   daquela,   a   sua   perdição.   Novamente   se ergueram   os   muros   do   seminário   e   Narciso   e   os   seus   superiores conferenciaram, e o Bispado sentenciou: “Vais­te ir a esta nova freguesia e não volverás   ver   essa   mulher”…   Ora   ele   amava­a…  e   até  pensara…   mas   cedeu, deixou­se resgatar, deixou­se arrapazar novamente polos seus mestres que tão benevolamente   lhe   aconselhavam   e   lhe   perdoavam   as   suas   fraquezas   de homem novo. O bispo que havia daquela, ao que todos os de dentro se referiam como “O rechonchudo Severino”, conhecia das debilidades do corpo; e ainda que ele nunca   sentira   essa   classe   de   urgências   ardorosas   baixo   as   suas   apertadas vestiduras,   apertadas   não   por   justas  senão   por  enchidas,   mesmo  semelhava que se lhe ia sair o unto polas aberturas de entre botão e botão… e mais de um diz­se   que   recebeu   uma   botoada,   ao   sair   um,   comprimido   pola   gordura amoreada, propulsado… Pois este bispo, seica, entendia da fraqueza humana. Este bispo mole de corpo e espírito devezia polo chocolate e mais as roscas… era superior a ele, a sua cadeia escravizadora. Polas noites, antes de dormir, dom   Severino   rezava   e   rezava   para   evitar   aquelas   imagens   obsessivas   de cunquinhas   coloradas   com   corninhos   e   um   rabo   afiado.   Assim,   a   contar

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ave­marias, se dormia, e pronto o sorriso se debuxava no seu rosto… nos seus sonhos   habitavam   taças   douradas   com   brancas   asas,   e   ele   fartava­se   de dormir…,   o   que   podia   fazer   um   homem   da   sua   condição?   Mas   à   manhã vinham os remorsos por entregar­se assim nos sonhos. E por isso era um ser compreensivo.   A   Narciso   serviu­lhe   essa   benevolência,   polo   menos   para   ir aguentando. Da Lagoa já faltava cada vez menos, e o Lombo, cheio de pinheiros, ficava aí mesmo a os aguardar quando rematasse o dia. Agora havia que marchar, e assim,   como   as   outras   vezes,   trás   esconderem   a   pia,   esvaeceram­se   os   três homens. * * * Parece que o diário  Nuestra Región  se vai arrefecendo um pouco e cada vez publica menos notícias ou comentários referentes à pia, talvez seja para lhe tirar importância ao assunto e ver se a avalancha de ligações diminui, que seica por certo tem baixado bem nos últimos dias. E também se diz que algumas das ligações estão a ser estudadas a fundo, e que alguns informadores estiram já os seus longos dedos, mas nada, o milionário não solta um peso até que a pia fique no sítio em que estava, ou tão sequer localizada polas autoridades. Na  edição  de hoje, entre louvanças à colaboração do  Bispado,  Nuestra Región  confirma que efectivamente as autoridades, após a sua visita à rua do Progresso, têm conhecimento exacto tanto da história da pia quanto da sua freguesia   de   procedência,   e   poderão   iniciar   o   seu   labor   investigador propriamente dito… …e não é mentira nenhuma, que agora os encarregados da investigação têm uma ideia sobre qual pôde ser a freguesia da que inicialmente se tirara a pia   que   agora   desapareceu   do   museu.   Mas   dado   que   o   Bispado   não   pôde corroborá­lo   nem   negá­lo,   terão   que   ser   os   agentes   quem   confirmem   a identidade da peça e mais da freguesia da que fora levada. Em primeiro lugar terão que confirmar que, efectivamente, nessa freguesia desapareceu uma pia e que,   com   efeito,   se   trata   da   mesma   que   desapareceu   agora   do   museu. Também,   enquanto,   irão   arrecadando   pistas   que   lhes   ajudem   a   descobrir Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  21

quem a pôde ter levado a primeira vez, e estudar a sua possível relação coa desaparição mais recente. Para isto, os dous agentes vão ir visitar esse lugar e falar cos vizinhos. …o nome desta freguesia, que fica polo sul da nossa província, será polo de agora omitido para não contaminar a atmosfera da investigação e enfastiar o   êxito   das   pesquisas.   O   jornal   seguirá   a   informar   dos   progressos   que   se produzirem.  Na   secção   de   sociedade,  Nuestra   Región  informa­nos   de   que   os promotores da iniciativa popular encaminhada a arrecadar fundos para uma nova pia, idêntica à primeira e se couber mais bonita – com incrustações de pedras semipreciosas ao redor da sua boca…–, afirmam que já quase juntaram dinheiro   suficiente   para   a   dita  pia   substituta,   e   que   com   ânsia  aguardam  o momento   dessa   realização.   O   jornal   faz   uma   exaltação   das   iniciativas   da vizinhança quando se trata de lutar por salvaguardar os verdadeiros valores da nossa sociedade. * * * Atravessar o Lombo não lhes custaria muito a estes três homens, ademais era algo de baixada, não muito mas sim o justo para não ter que fazer força nas rodas  daquele  trebelho sobre  o que levavam a pia.  À lua faltava­lhe alguma noite   para   encher   e   essa   tanta   luz   que   lhes   lançava   ajudava­os   a   não precisarem   dos   faróis   que   a   cotio   levavam   instalados  em  cadanseu   lado   do chedeiro para alumiar­se. Além disso, esta lua anunciava o minguante, e é esse o tempo que lhes resta para chegarem à Auguela, o segundo manancial do seu percorrido.   Com   um   chisco   de   boa   sorte   rematariam   o   Lombo   em   três   ou quatro noites e ainda lhes sobraria tempo e tempo antes da nova lua. Por este terreno, algo de bimbarreira, Dom Narciso anda ligeiro, às vezes até deixa aos outros   dous   atrás   e   se   vai   ele   só   coa   carga.   Esta   ligeireza   que   semelha euforizante faz aparecer ao cura como menos sereno, menos calmo,… como se realmente andasse na procura de algo… Algo que parece esvaecer­se­lhe cada vez que tenta achegar­se. “Oh, claro, cara abaixo todos os santos ajudam, e este deve   de   estar   abonado…!”   Aquele   Racha­Pedras   não   perdoava   uma,   não Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  22

desperdiçava maré para lhe botar a Dom Narciso as culpas por qualquer cousa que este fizesse ou não fizesse. Esta vez, como outras, o alcaide quis dizer algo, quis de novo tentar suavizar a tensão que se respirava ao redor daquela pia, e que sempre ia dirigida do Racha­Pedras ao padre. O alcaide queria que não houvesse tensão, o alcaide estava afeito a ter todos os apoios, a mercá­los se fizer   falta…   por   conseguinte   ultimamente   corrigia   ao   canteiro,   porém,   sem entrar em maior contradição com ele, e este já não lhe fazia tampouco muito caso,   ou   melhor   dito,   nenhum.  Esta última vez o alcaide abriu a boca,  mas antes   de   sequer   bafejar   o   Racha­Pedras   fechou­lha   de   contado:   “Cala,   cala, advogado, que tu só dizes parvadas, não te queres nem molhado nem enxoito, jogando sempre a duas bandas, assim nem perdes nem ganhas. Se não tens nada com jeito que dizer, caladinho ficas mais guapo”. O alcaide emudeceu e mouminhou algo para os seus adentros sem que o outro percebesse.  Dom Narciso, enquanto, ajudado pola inclinação do terreno, apurava o passo; parecia como se o seu andar se pusesse a um co seu percorrer interior, que   hoje  é  dinâmico   e  rebordante  de  energia.  Sim,  Dom  Narciso   chegara   à nova   freguesia   com   uma   maleta  que   não   semelhava   muito   grande,   ora   sim cheia;  ia carregada das  ganas de o fazer tudo  bem, cheia de sãos devezos e esperanças…  desta  vez  seria o abade ideal, o bom cristão,  o bom vizinho… Atrás ficaria aquele Narciso moço sempre com sede de louvanças, que se sentia tão  grande  polo   respeito  dos  homens;  agora seria um mais entre eles.  Dom Narciso   abriu   a   abandonada   casa   reitoral   da   freguesia   e   deu­lhe   o  uso   que levava   atrasado.   Cavou   a   horta,   criou   fazenda,   cortou   a   sua   própria   lenha, carregou   esterco,   e  até   começou   de   ir   ao  concelho   para   ajudar   nos  labores comunais: limpar poços, abrir os regos para a rega, ou o que fizer falta; um vizinho responsável, ele não quer viver só do conto como um cura. E claro…, as botas verdes de goma não ligam bem co negro da sotana… mal pensava ele que por   aí   lhe   viriam   as   críticas.   Ora   ele   não   se   desanimou,   e   seguiu   co   seu propósito.   Aqueles   eram   já   tempos   de   os   curas   começarem   de   se   servir   do automóvel… com varias freguesias para atender… mas o Narciso, fazendo um grande sacrifício, ia a todas partes a andar, às vezes dando que dizer, porque todos os curas da zona tinham carro; e alguns até vários. Como esse outro daí

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abaixo em quase chegando à Límia que tem dous da mesma cor e da mesma marca, mas só um com documentação; e assim lho diz aos guardas quando liga de o pararem por ir a contramão, ou deixar o auto no meio da estrada; mas os guardas não o multam, nem sequer o recriminam, “tenha você conta…” e é que o negro da sotana, que por certo sempre a leva emporcalhada, ainda pode co verde dos uniformes. Mas Dom Narciso não há­de levar sotana, e isso que bem que lhe ajustaria, pois ele tem o corpo direito e sem barriga, não como esses curas dos carros que andam a criar gorduras e que de não levar sotana semelhariam pipotes cheios de pingo.  Narciso   trabalha   e   não   precisa   das   travaduras   da   sotana,   a   ele cumprem­lhe roupas que não pejem e permitam mover os músculos, roupas que lhe hão­de ir avantajadas, mas não demasiado, só o justo para caberem folgadas  e facilitar  o  movimento necessário para o trabalho; com uns  jeans, uma camisa do comércio e umas boas botas de bezerro, vai servido. As meias hão­de ser de lã. Porque ele é trabalhador, Narciso fez­se trabalhador e tira­lho ao lombo cada dia, e isso… confunde aos vizinhos e amola aos outros cregos, que engrunham os focinhos e pouco a pouco o vão isolando. Este cura, que cada dia parece menos cura e mais labrego em boca dos vizinhos, vai ficando mais e mais só. E cada dia lhe vêm menos fregueses à missa; e ainda quando o fazem, às vezes tem Narciso que ouvir o que não quer… Como aquele dia que o caneco do Rolo, que nem sequer à missa era capaz de ir sem levar um vaso demais, acirrado polos outros, disse­lhe em plena igreja: “hoje digo eu a missa, Dom Narciso, que você já não é cura nem é nada” E Narciso não teve outro remédio que colhê­lo polo braço para o botar fora… Achegou­o até a porta e ali deu­lhe   um   couce   no   cu;   depois   deu   meia   volta   e   todo   ancho   pôs­se   a caminhar até chegar  ao  altar  enquanto dizia: “pra colhões, eu!” Os labregos respeitam o homem que lhes ajuda no concelho, mas já não vêem nele ao cura, e   a   igreja   fica   vazia.   Contudo   Dom   Narciso   insiste:   “Hoje   vinheste   só   tu   – dissera­lhe   àquele   moço   um   domingo   –   pois   para   si   digo   eu   a   missa   e   os demais   que   se   arranjem   sem   ela”   Enquanto,   os   curas   de   toda   a   contorna desprezam o que Dom Narciso simboliza… que caráfio é isso de que os curas trabalhem!? Isso Deus não o permita… E Dom Narciso descobre os sofreres desta   vida.   Os   outros   sotanas­pretas   vão   tolerando   a   Narciso   porque   lho

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ordenam   desde   acima,   mas   por   detrás   vêm   a   burla   e   mais   a   crítica.   Dom Narciso vê­se só, predicando co exemplo mas só, predicando­lhes às paredes do seu horto…  O labrego que surgia lá dentro deste cura começou a ver a vida doutro jeito,   começou   a   vê­la   como   realmente   fora   pintada   para   o   labrego:   dura   e escrava. Mas a quem dizer­lho, se já ninguém o escutava? Só os moços, e por desgraça desses cada dia ficam menos na freguesia. Mas ele resiste, e achega­se até Ginzo para ver à gente nova e falar­lhes da injustiça, do avassalamento, dos caciques,   dos  Guardias   Civiles  retirados,   dos   inspectores   de   granjas   de UTECO1…  estes   dous   últimos   tipos   humanos   são   os   mais   detestados   por Narciso, que se por ele for fazer­se­ia com eles uma boa empanada para lha botar aos cadelos. Dom Narciso viaja no  coche de  linea, esses esfrangalhados autocarros da Vilaça, nos que te congelas ou te abafas, ou as duas cousas a um tempo;   os   sapatos   vão­che   ardendo   enquanto   pola   janela,   que   não   fecha, gela­se­che a cabeça. A linea dá mil voltas antes de chegar atarricada a Ginzo, vai   percorrendo   lugares   e   enchendo­se   até   que   não   cabe   um   cristo   mais;   a gente   amorea­se   polo   espaço   entre   as   ringleiras   dos   assentos,   e   até   nos degraus…   “Sente,   sente   Dom   Narciso”   diz­lhe   alguma   velhinha   que   o reconhece;   mas   ele   declina   a   invitação   e   enquanto,   ali   de   pé,   aproveita   a conjuntura para soltar  o  seu sermão sobre a injustiça, mas as suas palavras vão­se por cima das cabeças e fogem polos vidros rachados do autocarro. E o vazio entra no coração de Narciso, que já mostra tristura de pessoa abatida… que fazer? Como aturar a angústia, a soidade, o desprezo…? Por mais que ele tentava manter­se no bom caminho, não parecia obter resultados e vai passo a passo cavilando mais no que ele sente, em lugar de pensar melhor aquilo do que fala. E pensando na mágoa que o habita entra nos bares, onde não falta quem o  convide  a um  vaso… “Beba, beba, Dom Narciso, que esta rolda vai minha” E Narciso bebe, e conversa, e sente­se melhor, e bebe e conversa, e bebe…e quase sem que se decate está metido no vinho.  A Estrelinha do Luzeiro ordena­lhes a partida aos portadores da pia. Cada um vai por seu carroucho, e como sempre sem se despedir. O Narciso parece 1

UTECO – Sigla da organização de cooperativas agro-pecuárias ourensãs, organismo que agrupava a muitas granjas na província de Ourense nos anos 70-80, de estrutura e funcionamento caciquis.

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tão   canso   que   até   o   Racha­Pedras   o   percebe   e   por   primeira   vez   dês   que compartem destino morde a língua e não arremete contra o curinha. E assim pensativos partem os homens cara ao dia. * * * Vai   lá   perto   de   cumprir­se   o   mês   desde   a   desaparição   da   pia   e   as autoridades seguem trabalhando  na procura de pistas.  Os últimos  informes, segundo o que se filtrou ao diário  Nuestra Región,  parecem indicar que dous agentes  foram  despachados   à  freguesia da  que  fora  tirada a  pia no  seu  dia, antes de vir parar ao Museu Arqueológico de Ourense. Lembra­nos também o jornal   que   é   uma   pequena   freguesia,   sem   maior   importância,   lá   no   sul   da província, na Raia, na que os dous investigadores deslocados ali durante uns dias se aplicarão para conseguir o que buscam. O jornal não duvida que estes dous oficiais, dada a sua profissionalidade e ofício, não tardarão em topar as peças   que   lhes   faltam   para   completar   o   quebra­cabeças   da   misteriosa desaparição… …e como se de um verdadeiro quebra­cabeças de pedra se tratasse, os dous   homens   empreenderam   o   seu   labor.   Duvidaram   entre   deslocarem­se cada dia desde Ourense ou parar num dos pequenos hotéis de Ginzo. Afinal optaram, decisão do chefe, por se deslocar diariamente desde a capital, afinal de   contas   nem   fica   tão   afastada.   Também,   dado   o   seu   conhecimento   da reacção da gente das aldeias  ante as autoridades, decidiram ir de incógnito, ainda que isto lhes fizer  ter que aturar certas atitudes,  que doutro jeito não teriam porquê tolerar.  Num   dos   números   que  Nuestra   Región  publicou   a   passada   semana ressalta­se   como   o   milionário   do   que   se   viera   falando   anteriormente estabeleceu relações com algum dos pretendidos informadores que resultaram ser   uns   aproveitados   que   só   tentavam   tirar   um   peso   do   peto   do   pobre adinheirado. E   como   não,   também   nas   páginas   da   passada   semana   assinalou   um espaço Nuestra Región para ressaltar e louvar a organização vizinhal da cidade

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velha, e para o anúncio da apresentação dum livro de versos do poeta Budial, que terá lugar a sexta­feira dessa mesma semana na livraria do jornal. Polo que se vê, a Nuestra Región não chegaram os rumores que se criam polas  ruas,   segundo   os   quais   as  cousas  andam  revoltas,   e  onde  antes havia consenso   agora   há   desarmonia,   sem   dúvida   produzida   pola   divisão   de pareceres   entre   os   vizinhos   que   integram   a   comissão   organizadora   da campanha de recolhida de fundos para governar o da pia. Diz­se que de não ser   pola   má   fortuna   a   estas   horas   já   teriam   falado   co   escultor   para   lhe   ir encarregando a encomenda. Seica se produziram enfrentamentos entre duas facções:   por   um   lado   estão   os   que   defendem   a   postura   inicial   de   todos,   e querem começar quanto antes o projecto de reposição; por outro, estão os que após   descobrirem   que   há   tanto   interesse   no   tema,   querem   gastar   o   que juntaram fazendo uma viagem ao Caribe, e que seja o milionário o que pague pola pia, diz­se que cada vez são mais os adeptos a ideia do Caribe. * * * Numas   quantas   noites   mais  remataram  de  cruzar   o  Lombo,   que   é  um outeiro coberto de pinheirais com grandes zonas ardidas. Depois baixaram à Auguela, onde fica a segunda das fontes polas que hão­de passar nesta andaria, e  descansaram  umas  quantas  horas ao redor da fonte que nasce no meio e meio da cavada dum vizinho de Penacova. As cavadas fizeram­se no monte vai lá para perto de trinta anos. Iam vir os pinos; o pedâneo, que daquela era o tio Serafim, deu ordem de que o que quiser podia fazer cavada para ele. Mais de um correra então coa enxada para sachar nas terras ao redor da fontela, mas só os primeiros puderam escolher essa sorte. Agora aquela fonte andava mui bem cuidada   e   dava   as   melhores   morujas   que   se   possam   imaginar.   Ainda   há vizinhos de Penacova que se achegam até ali de quando em vez a trazer água para ir bebendo uns dias. Os   três   homens   e   a   pia   beberam   e   beberam   daquela   água,   e   depois sentaram ao redor da fonte e topenearam um chisco… claro, assim quedos a qualquer  não   o  tenta  o  sono!   Estes  homens  não  tinham  prática no  diálogo: Dom   Narciso,   acostumado   aos   seus   sermões…   sempre   aconselhando;   o Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  27

Perfeuto Racha­Pedras só sabia dar ordens, mandar, mandar, mandar… era o seu; e que dizer do ex­alcaide… esse não só dizia embustes senão que os cria ele mesmo e depois já não precisava escutar a mais ninguém. Não, de escutar não sabiam muito estes três, e agora não tinham público, nem fregueses, nem empregados,   nem   ninguém   a   quem   largar   o   contido   das   suas   cacholas,   e andam algo confundidos. Que fazer ali no meio da noite tendo só o interior dum mesmo para dialogar, e não vendo com muita clareza? Só restava deixar que   fosse   o   homem   da   moca,   quem   ditara   a   conversa,   muda,   e   assim   iam fazendo.  Ao Narciso ficara­lhe o pensamento prendido na silveira daqueles bares de Ginzo; ele, que agora era abstémio, polo menos no que respeita ao vinho e outras   drogas   que   se   possam   engolir   sem   prescrição   facultativa,   não   dava entendido como se fora metendo na bebida. Ele lembra a fortaleza que tinha e a firmeza dos seus propósitos e parece que não recorda a angústia com que o seu espírito tinha que carregar já desde a manhã; era como vestir um corpete que premesse de dentro para fora. Mas essa angústia esmagadora andava agora agachada, coa ajuda das pastilhas cada vez lembra menos, já nem sente… mas claro,   agora   com   tanto   tempo   para   espreitar…   Agora,   enquanto   o   sono   lhe obriga   a   deixar   pender   a   cabeça,   vai   vendo   como   os   pensamentos   se entrecortam com  imagens  que manam do  fundo dos sonhos… são imagens desconcertantes   que   abrolham   desse   escuro   mundo   do   que   ele   não   tem controlo, e o que aparece é um homenzinho com um vaso na mão erguida; um homenzinho que se cambaleia, um homenzinho que cai e desde o chão segue a falar.  Está   rodeado   de  gente  e  ele  pensa  que  o  escuta…  mas  agora  desde  a claridade da noite na Auguela pode ver como aqueles do seu redor se dão de olho e riem enquanto ele solta o seu discurso sobre a injustiça e a escravitude. Felizmente essas imagens tremebundas se interrompem e o espertam do seu ser adormecido. Dom Narciso  fica logo  confundido,  as lembranças que ele recorda não eram   tão   cruas   nem   tão   vivas   como   estas   que   o   visitam   agora   enquanto adorminha na Auguela junto à pia. Ele achega­se à pedra fria e interroga­se, que faria ele ali com aqueles dous homens aos que nem sequer conhecia? Claro que   ele   ultimamente   não   conhece   a   muitos   que   digamos,   mas   ainda   assim

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aqueles dous não eram dos que iam à missa, e também é certo que ele leva já bem tempo sem freguesia nem fregueses. O alcaide lembra­lhe a Dom Narciso àqueles   inspectores   de  UTECO  que   ele   tanto   aborrecera:   bem   entrado   nos sessenta e com algo de bandulho criado pola falta de trabalho e a preguiça. O Racha­Pedras fazia­lhe pensar no cacholudo que sempre lhe lançava alguma para se rir dele quando ia aos trabalhos comunais co concelho, que se pouca cousa, mequetrefe, que se só estorvava, e até trabalhoso lhe deixava cair para humilhá­lo; e assim dia trás dia e ano trás ano enquanto durou a sua estadia na freguesia   de   Ameixeiras,   última   na   que   ele   dissera   missa   e   da   que   fora arrancado de jeito brusco e definitivo. E agora achava­se Dom Narciso ali com aqueles   companheiros   que   ele   jamais   teria   escolhido.   Porquê   era   ele merecedor de tal castigo? Ele sabia que cara ao final não actuara bem de todo em Ameixeiras, contudo ainda andava o homem tentando de adivinhar como fora ou como não, quando se topou com aqueles dous, e prendido a eles ficava pola pia. Mas o porquê não o alcançava ainda nem de longe… e assim seguia cedendo ao sofrer; que por certo, naquele novo jeito em parte consistente em não saber, não lhe era de todo desagradável. Assim, deixando­se levar polo seu fado   ia   passando   as   jornadas   nocturnas,   que   hoje   eram   descansadas,   mas amanhã viriam as subidas e os esforços que levarão a sabe Deus onde. Aquela noite  o  Narciso  bebeu  muita  água, quiçá por terem espertado nele ressacas passadas, esquecidas pola mente mas não polo corpo que as sofrera e agora as sentia. O pior ainda era quando à manhã havia que trousar até a figadeira; logo viria aquele nojo, o arrependimento e a rábia que não topando outra forma de expressão se encarregava de o devolver aos bares de Ginzo, ou às tabernas da freguesia.   Mas   agora   só   bebia   água,   dês   que   o   meteram   no   psiquiátrico   só bebia água, muita água. Donde lhe vinha toda aquela sede que parecia não dar saciado? Porque, de algures lhe teria que vir, não é? Dês que os batas­brancas se encarregavam da sua dieta bem suplementada com pílulas, venha água e mais  água.  Mas  agora,  vendo   correr aquela tanta água que se espargia  pola cavada abaixo, Dom Narciso sentia­se melhor, quase se sentia bem. E ainda teve tempo de perguntar­se que seria o que se andava passando polos miolos dos seus companheiros. 

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Ainda   que   tanto   o   Racha­Pedras   como   o   Rebenta­Ruas   representavam para Narciso a duas castas de gente bem desprezadas por ele, e coas que ele nunca se juntaria, agora vendo­os assim, decaídos, coas cabeças topeneantes, sentiu   compaixão;   afinal   de   contas,   ele   tinha   prática   nesse   assunto   de compreender e perdoar, como lhe acai a um servidor da religião… ainda que ele   não   fosse   um   homem   muito   religioso.   E   Narciso   fez   um   esforço   e   quis imaginar àqueles homens sendo bons e generosos; quis imaginar a filhos que os viam como heróis, quis imaginar a mulheres que os queriam, ainda que não os chegassem a amar, e também a vizinhos que os apreciavam ou tão sequer que os reconheciam como tais vizinhos,… e Narciso sentiu inveja. Eles, ainda que não conscientes disso, tinham filhos, ou quiçá os tivessem; eram casados, e ademais tinham vizinhos… enquanto ele ficava só; só e incompreendido, só e anónimo, só e no psiquiátrico, só e sem visitas, só e isolado… desaparecendo do   contacto   cos   outros,   desaparecendo   das   lembranças   dos   que   o   tinham conhecido, dos que quase lhe puderam ter sido amigos, desaparecendo do seu próprio pensar, desaparecendo… E Narciso fez um esforço por recuperar­se, por sentir­se de novo, por sentir­se novo, ou polo menos por sentir­se. Este esforço introspectivo, ao que ele não estava afeito, fez que Narciso corresse o sono   e   se   mantivesse   esperto   o   resto   da   noite,   de   jeito   que   deixaram   de   o amolar as imagens procedentes do seu passado inconsciente, se bem é certo que ainda o mancava a esteira por elas deixada e que o afundia na mais escura soidade.   E   ali   em   frente   dos   companheiros   entregados   às   escrebadelas, obrigados polo sono, e portanto alheios a tudo, Narciso chorou, e foi ele quem se encarregou de avisar de que a  Estrelinha do Luzeiro  andava a pestanejar. Sem mediar palavras nem olhadas, os três homens, logo de se espreguiçarem e de cumprir com as obrigas últimas, partiram pola calada naquela manhã de Março, um Março que por sorte vinha tépido este ano; se o tempo seguia assim não teriam que aturar mais chuvas nem geadas.  Na   Auguela   entraram   na   segunda   lua   e   já   com   um   pé   na   primavera viajariam ao altinho do Zebreiro onde se topa o terceiro manancial das suas obrigas.   Mas  isso   há­de  ser   amanhã;   agora   há  que   partir,   e os  três   homens marcharam asinha pisando sem decatar­se algumas das florzinhas amareladas de São Bento que a primavera espargira já nas abrigosas beiras da fontela.

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* * * Nuestra Región, faz uma resenha no diário de hoje na que se adivinha qual vai ser o cometido, e mais o paradoiro, dos agentes lá pola beira da Rousia, mesmo correndo o risco de que alguém pudesse deduzir o lugar exacto ao que se   dirigem.   Mas   o   jornal,  fazendo   alarde   do   conhecimento   que   tem   da realidade   social   do   país,   não   duvida   em   fazer   públicos   estes   comentários. Parece como se soubessem que as suas páginas nunca serão lidas lá por essa parte do  mundo.   Excepto  por   algum exemplar atrasado que algum visitante deixar para ajudar a prender o lume. É sabido que o papel do jornal é quase tão bom como a frôncega da gesta para pegar na labareda enquanto o lume não enteia, ainda que lareie mais asinha. De qualquer jeito, por se ligara de que os olhos se pousarem no papel antes de tempo, bastará com evitar a menção do nome do lugar. * * * Quando os agentes chegaram à freguesia olharam polos vidros da igreja para ver se dentro estava a pia. O relógio de pedra do campanário andava aí polas dez e meia da manhã, hora esta mui propícia para não topar às gentes do campo nas suas casas; e menos neste tempo de sementeiras e cavas, mas isso, como haviam de o adivinhar os agentes da cidade? A igreja semelhava vazia, excepto por uns bancos de madeira e dous ou três santinhos pequenos. Pia não viram.  Entraram   no   lugar   polo   caminho   da   Ranha,   e   nada   mais   apagar   o automóvel que levavam, avistaram a um homem de pêlo abrancaçado que se passeava, cigarro em mão, eira abaixo, eira arriba. Aquela, ainda que os agentes não o sabiam, era a eira da festa, mas agora não estávamos no tempo da festa e a eira estava vazia, excepto por esse indivíduo que se movia devagar pola sua superfície como se não tivesse pressa, como se não tivesse a onde ir. E claro que não tinha outro sítio a onde ir, mas isso os detectives, julgando polo passo do homem, já o intuíam; ainda assim quiseram avantar a andar e falar com ele

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não fosse que se escapasse. Aquele que eles viam não havia de marchar, mas, como   iam  eles  adivinhar  que   aquele homem tinha  por  ofício o  de gandaia? Senão,   como   ia   ele   andar   a   passear­se   àquela   hora   naquelas   manhãs   de esterco, sementeiras, e vessadelas? Trás a olhada através dos vidros da igreja apuraram o passo cara ao homem do que saía um fio de fumo gris, e que agora visto mais de perto lhes parecia de pêlo como mais prateado, e isso que era novo. Aviaram o andar não fosse o demo… – Bons dias! Poderia dizer­nos você como se chama? – Pois claro que poderia, eu poderia lhes dizer a vocês como me chamo, mas depois vocês saberiam mais de mim que eu de vocês… Ora, também é certo que eu já sei que vocês não são de por aqui, senão não teriam arrimado tanto o auto ao alpendre, porque saberiam, inda que não fossem deste mesmo lugar, que esse alpendre está mui bem orientado e baixo o seu telhado nunca entram chuvas nem orvalhos, o que o faz atractivo para as andorinhas e polo menos quatro  delas  andam  a fazer o ninho para este ano… eu não lhe vou contar a vocês, que ademais seguro que já o sabem, do danento efeito dessa lama na chapa, mas ainda lhe é pior o ácido das cagadas… mas não devem preocupar­se demais, pois este é lugar de muita água e sempre poderão vocês dar­lhe uma lavadela ao carro antes de marcharem e assunto arranjado… Vejo que a sua matrícula… E   aqui   foi   onde   o   detective   de   mais   idade   e  graduação   o   interrompeu porque   lhe   parecia   que   aquele   homem   não   tinha   intenção   de   parar   ali.   O detective ergueu algo a mão e disse: –  Mire, agradecemos­lhe a advertência, e para que veja que não somos pontilhosos, pois não é preciso que nos diga você o nome; isso é, o nome tanto tem, se quer podemos­lhe chamar senhor… M, por exemplo. – Senhor M? Mas eu não me chamo senhor M, ademais não gosto muito de como se ouve: “senhoreme”… Por não dizer que por M começa a morte, e o medo, e a missa, e a merda, e … – Vale, vale! Escusamos o nome, nós o que queríamos saber é se você sabe algo que nos possa dizer duma pia que havia em tempos aqui na igreja e que agora já não está, que deveu desaparecer já há uns quantos anos…

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–  Claro! Para vocês que tudo o sabem medir, há uns quantos anos mas para mim a cousa se passou tal que ontem… e olhem vocês bem o que lhes digo, nessa pia recebi eu o meu nome, sim, sim… esse nome que me faz eu e que a vocês parece que tanto lhes tem, vamos, que o mesmo lhes dá lé como cré… pois não, a verdade é sempre única, como única há­de ser a sua fórmula e a palavra que a nomeia, olhem…  –  Mire…,   a   nós   não   nos   interessam   os   nomes,   o   único   que   queremos saber é se você sabe algo da pia! –  Pois claro que sei algo da pia, os que parece que não se decatam são vocês…  não  lhes acabo   de  dizer que eu recebi o nome nessa pia? E sim, já sabemos que quando te escolhem um nome não se sabe ainda se vai ser bonito ou feio até muito mais tarde, porque o nome fá­lo a pessoa… e o dia que te molham a cabeça na água ainda o nome está de estreia, ainda que depende de quem   to   escolhesse,   também   tem   a   sua   história,   quase   sempre   se   escolhe aquele do que gostam os padrinhos, afinal de contas eles são os que te levam à pia. Vocês sabem quem era o meu padrinho? Como o vão saber…! Porque se o soubessem já se teriam decatado que não me podia chamar ‘Senhoreme’… eu figuro­me que ‘Senhoreme’ só se pode chamar… O   agente   mais   novo   escacaranhava­se   com   o   riso   e   ao   mais   velho iam­se­lhe apequenando os olhos e engrunhando o coiro da testa. –  A nós tanto nos tem quem se possa chamar senhor M ou quem não. Olhe, se você não sabe nada da pia, pois diga­no­lo e não nos faça perder mais o tempo e ao mesmo tempo tampouco perderá você o seu! –  Mas   eu   não   lhe   disse   que   eu   sei   muito   da   pia?   Se   não   vão   topar   a ninguém que saiba mais que eu dessa pia…! Dessa ou de outra qualquer de todas as pias que há aqui neste lugar… por exemplo, sabiam vocês que só aqui há mais de trezentas pias…? Das quais polo menos cem são de madeira; a estas últimas é mais apropriado chamá­las barquelas, e que… – Mire, não nos interessam essas trezentas pias ou barquelas, a nós só nos interessa   a   pia   que   havia   na   igreja,   e   parece   que   você   não   nos   está   a   dar informação, polo que será melhor marcharmos a ver se topamos alguém com quem poder falar.

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–  Eh,   que  eu   não   os   mandei   vir,   eu  só   me  limito   a   responder   às  suas perguntas… Ora, se você – ele dirigia­se só ao mais velho dos agentes, o mais novo estava algo mais retirado tentando dissimular o seu sorriso – não entende mais   que  de   cousinhas   mui   concretas,  pois   mais  lhe   vale   sair   daqui   e   ir­se embora…   e  ademais   não   são   trezentas  pias   ou  barquelas;   desculpe   mas   eu disse  trezentas  pias,   das  quais polo menos  cem são de madeira, e a essas é apropriado chamá­las barquelas, mas às outras duzentas não, não senhor, não o   é;   para   que   me   entendam…   é   como   se   eu   dissera:   havia   ali   trezentos automóveis, dos quais cem eram furgonetas, seguro que a você não lhe parece apropriado   que   dissera   que   havia   trezentas   furgonetas,   vamos   digo   eu…   e perdoe o exemplo mas parecia­me a mim que você não colhera o matiz…, e é que se bem todas as barquelas são pias, não todas as pias são barquelas, nem servem para fazer a velha rima: Vai­te névoa nevoarela  filha do cão e da cadela Vai comer a lavadura que te ficou na barquela …e   se   repetes   estas   palavras   a   névoa,   por   fecha   que   ande,   acaba afastando; também senão está um perdido, pois coa névoa perde­se o tino, e se andas por fora ou num monte sem carreiro… O Ciro percebeu então de que aquela névoa que agora apartava era a que saía   polo   tubo   de   escape   do  Ford   Escort  gris   que   já   se   afastava   caminho adiante… – Quanta pressa traziam esses, assim não se pode falar sequer… – disse o Ciro para si, enquanto seguia a olhar com certa nostalgia como o automóvel se afastava,   e   com   ele   as   possibilidades   de   companhia;   pois   neste   tempo   de sementeira   todo   cristo   anda   nos   eidos   e   ele   aborrece­se   um   pouco;   se   tão sequer lhe deixassem a taberna aberta…  Em ocasiões como estas o Ciro era mais consciente da sua singularidade, ele era diferente dos demais… que não serviam para outra cousa que não fosse trabalhar; não, ele estudara nos livros, e prova tinha para todo aquele incrédulo

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que   a   quisesse   ver.   Debaixo   da   cama   guardava  Ciro   uma   mala   cheia   deles; alguns já se vão vendo velhos, mas ele muito os estima… “ai, se eu não me tivera juntado com más companhias… hoje seria eu alguém e de mim não se ririam!” E tampouco se riem tanto, pois sabem que leu nos livros, e ademais… “olha para aí que bem vive!” 

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Capítulo II

A FONTE DA AUGUELA A   Auguela,   apesar   do   seu   nome,   tem   uma   água   mui   boa,   e   os   três caminhantes   assim   o   apreciaram,   mas   já   iam   sendo   horas   de   marchar. Estreando lua, logo de lhe dar o último golo à pia, começaram a andaina para o alto do Zebreiro, lá a Fonte da Cunca os aguarda. Aquelas são águas de altura e as próximas noites serão noites de muita subida nas que Dom Narciso segue sem apear o pinho, e isso vá se o manca. Por estes empinados montes muitas vezes quase perde o homem a consciência. Certamente vê­se­lhe apoucado e até  por  momentos   semelha  que lhe vai faltar o ar e vai desfalecer. Dês  que deixaram a Auguela tudo eram costas; a terra chã das cavadas durara menos de uma noite. Aquele pedaço ainda fora tolerável e deixara­lhe fôlegos ao homem para tentar relembrar as suas vivências de jeito pausado. Ele queria a terra chã, ele queria dar volta para trás, mas não encontrava o jeito. Ele queria lembrar e relembrar   os   dias   dourados   da   sua   primeira   freguesia,   onde   tudo   era   paz, respeito   e   amor…   e   não   agradecia   nada   aqueloutras   visitas   inesperadas   de imagens que eram mesmo aborrecíveis, sobre as que não tinha controlo, e que apareceram muito mais tarde na sua vida. Como aquela visão que o andava mesmo acossando dês que começara a subida. Naquela   via­se   a   ele   próprio   com   um   saco   ao   lombo   caminhando   em pleno   sol   de   meia   tarde;   e   que   haveria   no   saco?   Ai,   sim,   o   saquete   estava atestado   de   livros,   e   como   pesavam   os   condenados!   Havia   livros   grossos   e outros mais delgados, isso sim, todos eles velhos e escuros, e precisando uma amparadela; nalguns, antes de os ler, havia que mudar as folhas que estavam co de acima para abaixo. Dês que ele chegara à freguesia de Ameixeiras falara sobre   o   tema   dos   livros   paroquiais   co   responsável   da   zona,   mas   estoutro, menos afeiçoado às leituras, não lhe dava tanta urgência ao assunto. Por fim Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  36

parece que coalhara a ideia da restauração. Sim, essa ideia fora de Narciso, o que   não   pensava   ele   era   que   para   a   levar   a   cabo   o   fariam   assistir   a   uma juntança   com   todos   os   outros   cregos   da   contorna.   Porém  ao  outro,   ao que chamam arcipreste, que leva duas freguesias ademais de mandar nos demais curas,   não   lhe  amargava   perder   o  tempo,   que  tem   muito   e  não   sabe   como gastá­lo.  Ele é certo que, ademais de mandar, diz missa em duas igrejas; e daquela os   cregos   já   começavam   de   andar   algo   mais   atarefados,   não   porque   lhes aumentara a clientela, que vai a menos cada dia, senão porque são menos os empregados e têm que se repartir as freguesias; a uns tocam­lhes menos, como lhe passa o manda­mais, para isso manda, e a outros tocam­lhes mais, como lhe passa a Dom Narciso, que lhe vamos fazer. Esta espécie de chefe dos outros leva   Os   Mouros   e   Vilarinho,   que   por   certo   são   duas   freguesias   que   têm   as igrejas mesmo pertinho uma da outra… uns dez minutos caminhando devagar. Ora que isso tanto tem porque este abade, que está ele mui bem cevado, tem dous carros; os dous da mesma cor e coa mesma documentação… para que malgastar. O ser o homem agradecido e engordar com tanta facilidade faz que alguns se refiram a ele como “O Cacholas”, porque realmente lembra o pobre a um desses que… fora a alma e a figura… são como nós. Sim, ou se calhar ainda os   do   cortelho   se   semelham   mais   aos   humanos   normais   que   este   cura   de sotana   sempre   emporcalhada,   ele   sempre   mal   asseado;   mas   isso   sim,   bem motorizado. Diz­se que vê­lo comer dá risa e nojo… “um bocado no chouriço e o que resta para o bolsão e a colher outro, e assim enquanto durar o que há acima   da   mesa…   depois   vai­se   para   a   casa   com   um   fardel   escondido   por dentro da sotana cheio de chouriços encetados e pedaços de toucinho e magro, e   o   que   dera   arrebanhado…   e   a   sotana   resplandecendo   desde   longe   coas pingadas da gordura…” O pobre não tem vergonha, até há quem lhe chama porco à cara e a ele tanto lhe tem. E apesar de não conhecer as normas para circular pola terra, nem topar melhor sítio para arrumar o carro que o meio e meio da estrada, ele vai­se salvando… se calhar o da mesma marca e cor dos dous carros é para que se lhe localize bem, não vá ser o Demo e o for Deus confundir,   ligara   o   homem   de   ter   que   morrer   na   estrada.   Pois   como   as freguesias lhe ficam mesmo uma à beira da outra, e com tanto carro, o homem

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não sabe que há­de fazer co tempo que lhe sobra logo de fartar­se de comer e de beber, que isso também lhe ocupa. Mas os dias no verão são longos e há que topar   o   jeito   de   enfastiar   os   outros   mais   ocupados   com   as   suas   muitas freguesias, e bem  longe  umas  das outras. E isso que alguns, ou melhor dito algum, não tem nem carro; ei­lo caso de Narciso, ele é homem de caminhar, e amargar  não   lhe  amarga,  contudo  há vezes que a cousa  já é demais. Como aquele dia, que ainda por riba era no verão, e na Raia o ar que se bafeja neste tempo de seitura é mais seco que os fumos do Inferno, e ele co saco dos livros ao lombo. Certo é que se oferecera o mandariqueiro a o levar a ele, e mais os livros, até Vilamenor, onde se ia celebrar a reunião para tratar o tema. E assim combinaram: passaria por Ameixeiras, que ademais ficava de caminho, bem cedo de manhã, e recolheria a Narciso e a sua moreia de livros pesados. Os livros   eram   bons   mas,   co   tempo   e   a   falta   de   cuidados   do   predecessor   de Narciso, baloreceram tanto que sem abri­los sequer já te entravam as ganas de espirrar com tantos mofos flutuando ao seu redor. Se não se lhes botava uma mão a bulir não durariam muito mais do que os pobres levavam rengueleado polas enormes gavetas do armário da… ali seria a sacristia se a houvesse, que numa igreja tão pequena não faz falta tal… o crego não toca a campa até que já está   vestido,   e   ademais   os   refaixos   não   os   quita,   então   digamos   que   esses caixões estão por ali aposentados perto do Santo António, que seguro que se sente ali mui bem tão abrigadinho, qualquer não o estaria. O   Santo   António   tem   algo   de   mão   coas   mulheres,   que   são   as   que distribuem os espaços e os atavios; ele anda mui bem pintadinho e tem mui bons mantéis. Outra que tinha bons mantéis é a Virgem do Carmo, mas esses caíram­lhe duma promessa que fizera a Maruxa da Cristalina quando se lhe pusera o meninho a morrer; e vá que bem lhe curou depois! Então ela buscou e buscou até que encontrou o melhor mantel que se puder comprar, e não lhe amargou  gastar o dinheiro que daquela não  sobrava. E contudo logo veio o Aurélio, que foi abade em Penacova, e marchou co raio do mantel para outra freguesia… E claro…! Quem se atreve a lhe dizer nada…? Ademais de lispar os mantéis,   ainda   arramplou   com   cousas   de   mais   valor   e   mas   ninguém   disse nada, ou polo menos à cara... Oh, por detrás qualquer fala! O que levava as de perder dês que se desmantelara a igreja era o Santiago, até o deixaram ao pobre

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sem   espada   e   agora   anda   o   homem   com   um   livro,   e   não   era   por   ser   Dom Narciso afeiçoado a ler, pois quando ele veio a Penacova para lhe botar uma mão ao seu colega Aurélio que não regulava o homem lá mui bem, o Santiago já andava metido nas leituras… quem sabe, quiçá foi algum desses anarquistas que diz que ainda há no lugar… ou algum inocente que pensara que como o Santiago   mora   em   Compostela   se   calhar   estranhava   a   vida   universitária,   e ademais ali em Penacova, a quem ia o pobre espetar coa espada…?  Daquela, quando Dom Narciso passou por Penacova, já faltava pouco por escaralhar, de isso já se encarregara o titular da paróquia, o tal Aurélio, que por certo fez um bom trabalho, e logo vai e põe­se tolo… “Tolo, o que se diz tolo, diz­se que já estava, e que o dissimulava…” Outros dizem que de tolo nada, que faz o tolo mas que é mui avisado… o que se passa é que agora tem medo polas   falcatruas   que   leva   feito…   Contudo,   quando   a   Dom   Narciso   lhe mandaram  ir substituir  ao  crego de Penacova,  em parte por ser o que mais perto estava, ainda andavam, de milagre, alguns livros por ali. Ele juntou­os cos de Ameixeiras para restaurá­los todos. Daquela, Dom Narciso ocupava­se de quatro freguesias, e ei­lo cura a correr de missa em missa coa hóstia na boca, com   perdão.   Às   vezes   acabavam­se­lhe   as   existências   e   velaí   o   homem amassando e cozendo um pãozinho chato, a jeito de bica do testo, acima da prancha de ferro da cozinha, para repartir depois na missa. Não, algumas vezes não era fácil não ter carro para servir­se, co bem que lhe iria em ocasiões como aquela na que aguardou e aguardou polo seu colega­chefe, o da cabeça grande, e vendo que não parecia que se fosse apresentar não teve outro remédio que botar o saco ao lombo e meter­se ao caminho em pleno meio­dia. O plano inicial, tal e como lhe explicaram a Narciso, era jantarem todos juntos na reitoral de Vilamenor da Boulhoeira, onde os convidara o Laruças, alcunhado   assim   polos   vizinhos   de   Penacova   e   outros   lugares.   O   Laruças, apesar de não ser pessoa à que lhe encha dar, pois tivera o homem o detalhe de convidar ao jantar, e depois da enchente teriam tempo de falar de como seria melhor considerarem a devandita restauradela essa dos livros, que tão urgente lhe   parecia   ao   abade   de   Ameixeiras.   Por   certo   o   lugar   da   reunião   não   fora escolhido por Narciso, que a casa do Laruças é a que mais longe fica de todas, não obstante, como o iam levar em carro, ficou o homem conforme. O que não

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lhe   acabara   de   caber   na   sua   cabeça   de   cura   teimudo   era   a   ideia   de   que   o Laruças,   nada   conhecido   polas   dádivas   senão   por   todo   o   contrário,   se mostrasse tão generoso convidando ao jantar a tanta boca, seriam polo menos sete ou oito comensais. Que rareza era aquilo de que o Laruças se oferecera a dar nada, ele que até se se terçava era dos que, malpocado, ainda se atrevia a levar o que não era dele.  Assim foi como  lhe arramplou com uma porta de cerejeira ao tio João. Sim, já sabemos que a cerejeira não é a melhor madeira, mas ainda assim e tudo aquela era uma porta que dava que ver, tão enramada… já lhe oferecera o Maragato não sei quanto por ela, e ele de parvo não lha deu, e deixou­a ali debaixo   da   solaina   exposta,   afincada   na   parede.   Mal   pensava   ele   que   na Terça­feira   de   confissão   viria   o   Laruças,   logo   de   repartir   penitências,   e  não daria   resistido   à   chamada   da   formosura   da   porta.   Mas   como   ia   o   tio   João adivinhar isso, o tio João não sabia muito de curas porque ele só ia à missa o obrigado – baptizados, casamentos, enterros… para que não se dissesse que ele era um desses que lutara contra Franco, e ainda que isso era certo e toda a gente o sabia, o tio João tinha que dissimular, não fosse que o foderam… mas ainda assim ele não conhecia bem os curas, e não podia imaginar que uma Terça­feira   de   confissão   viria   algum   deles   roubar   aquela   porta   que   ele   já herdara. Ademais, ele pouco sabia do Laruças, que só vinha a Penacova aos enterros   e   ajudar   no   dia   este   da   confissadela,   que  era   cousa   séria  naqueles tempos. O tio João ficou amolado pola rouba da porta mas não quis o homem dar que falar e deixou a cousa assim, sem lhe pedir contas ao ladrão.  Como  tampouco  as conhecia Dom Narciso, senão já se teria decatado, como   lhe   passou   depois,   de   que   aquilo   de   se   juntarem   em   Vilamenor   da Boulhoeira fora um plano argalhado polo Laruças coa ajuda e colaboração do da   cachola   grande.   O   que   pretendiam   era   amolar   a   Narciso   e   ver   se   o espaventavam e se ia a dizer missa a outra parte; tão bem que eles estavam antes de chegar este padre trabalhador, e que ademais visita as tabernas. Não, beber não é que esteja mal mas… não tanto, e por riba em público. Mas estes dous   tampouco   conheciam   bem   a   Dom   Narciso   nem   a   sua   teimosia   e resistência. Narciso estava afeito a caminhar e sofrer passando fome e até sede se fizer falha. Portanto, aquele dia, botou o pesado fardel dos livros ao lombo e

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caminhou duro até bater na porta da reitoral de Vilamenor da Boulhoeira, a mais de duas horas de caminho.  Passava   bem   já   da   hora   do   jantar,   mas  estes,   como  eram   curas,   ainda andavam nela quando sentiram a pesada aldraba de ferro bater na porta de fora com uma força do demo. “Quem raios...!” E todos os cregos se puseram à espreita enquanto a criada do Laruças baixava asinha as escadas de pedra e lhe dava a volta à cravelha do portalão. O Narciso passou sem mediar palavra coa criadinha,   à   que   porém   dedicou   uma   olhada   de   esguelha;   era   aquela   uma mulher pequena e estava algo desmelhorada, Narciso pensou que o Laruças não lhe devia dar boa vida, e isso ainda aumentou o seu reganho. Com aquele rauto dele passou ao meio do pátio e desde ali berrou­lhes aos de dentro, que estavam a guichar desde a janela que dá a fora quem era que petara. “Onde está o porco de Vilarinho que me deixou chantado?” Foram as palavras que subiram até à mesa na que ainda ficavam restos de comida e bebida. Foi um desses curinhas menores que estavam na reunião o que saiu ao patamar e lhe pediu   a   Narciso   que   passasse   dentro,   que   não   estava   bem   formar   ali   tanta liorta.   O   Narciso   nem   escutou   àquele   comparsa,   e   seguiu   botando   berros enquanto   caminhava   para   a   escada:   “Parece­vos   bonito,   que   enquanto   vós estais aí jantando cos colhões sentados eu tenha que vir carregado co saco às costas Aguiar abaixo?”  Por   fim,   passou   para   dentro   e   sermonou­os   bem,   falando   da   falta   de palavra e do mal que estava isso de confundir a um e trapalatrá… os outros escutavam   mas   não   ouviam   nada,   logo   da   comilotada,   com   aquela   carne assada   e   um   vinho   que   coroava,   todo   o   sangue   lhes   baixara   ao   bandulho deixando as cabeças sem rego; e estas caíam de quando em vez co topeneio da sesta, e o Narciso acelerava­se todo ao ver que não lhe prestavam atenção. E coa   fome   que   ele   trazia!   Pois   comer   não   comera   nada   ainda   que   algo   já molhara antes de sair de casa. Daquela, já à manhã cedo tinha que lhe meter algo ao corpo, senão não dava o homem encadilhado. Aqueles dias já ninguém em Ameixeiras, nem em Penacova, lhe fazia grande caso, e por riba estoutros sacerdotes que deviam de o animar e o apoiar vão e enraivam­no mais… pois era o que lhe cumpria! Narciso estava começando a fartar­se, e agora enquanto o lembra a caminho da Fonte da Cunca, fecha os olhos e puxa do pinho com tal

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serenidade que parece uma jugada. Ele nunca esquecerá a sensação causada pola dureza dos livros nas costas, e davam boa conta disso os maçoucados das suas carnes que duraram vários dias; mas aqueles trilhados contra as costelas, por feios que pareceram, não foram o que mais mancara a Dom Narciso, nem o que o levara a tomar medidas. Visto o que lhe fizeram, e ainda por riba se riram dele fazendo que o escutavam enquanto dormiam… aquilo não podia seguir assim.   Teria   que   se   preparar   para   defender­se  dessas   feras   negras,   algumas com sotana.  Aquele dia, e mesmo na beira da Raia, decidiu que haveria de cruzar para comprar com que se defender, dele não se ia rir nem Deus. Tampouco era nada novo, outros muitos já a traziam, e a ele, que sempre ia andando, boa falta lhe fazia. Foi esta resolução a que lhe dera acougo aquele dia na casa do Laruças; e agora, ao lembrá­lo, sente o alívio que deveu sentir aquele dia, pousa o pinho e toma alento enquanto se relaxa com ambos os olhos fechados. Quando os abre vê o punho do Racha­Pedras que lhe vem direitinho às ventas, mas a tempo ele se agacha e esquiva o golpe, mas não o insulto que o acompanha: “Animal, que quase nos fazes cair! Quantas vezes te teremos que dizer que antes de parar avises!” Como já era hora para a partida aí morreu o conto e Narciso, sem dizer rem,   marchou   embora,   como   marchara   aquele   dia   de   Vilamenor   da Boulhoeira, e para o outro dia à manhã colheu o andante caminho da fronteira, que daquela seica se diz que havia, ainda que ninguém de por aqui a vira. Mais adiante,   logo   de   se   informar,   pensou   que   poderia   ter­se   aforrado   aquela viagem, pois há muitos que lhe poderiam ter arranjado uma dessas pistolinhas sem ele se mover da casa; mesmo ali em Penacova diz­se que havia quem as trazia, e em Gomesende, e noutros sítios; mas então ele não o sabia e lá foi, e veio­se à noite prà casa carregado e sem medo já. Medo?… U­lo? * * * Do que não se esqueceu  Nuestra Región, no seu apartado de sociedade, foi de fazer referência aos da associação da cidade velha, que como todos nós lembraremos, dedicam­se a recadar fundos para mandar reconstruir a pia, ou polo menos essa era a sua intenção inicial. É de domínio público que andam Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  42

agora divididos em três bandos. Por um lado estão os que querem reconstruir a pia com exactidão fotográfica a respeito da antiga, estes até diz­se que querem falar  cos  negociantes  daquela  comarca para extrair dos montes da freguesia donde nasceu a pia a pedra que seria precisa para a cópia, e em tais cousas andam enquanto tratam de convencer a uma das outras facções para que os apoie. Outro dos grupos também quer a reconstrução da pia, ora, porque não melhorá­la algo? E dado que dinheiro têm, seica o que querem estes é que ao redor   da   boca,   a   meia   quarta   da   borda,   se   lhe   faça   um   colar   de   pedras semipreciosas fazendo ondinhas para que diga mais bonita. Este assunto das pedrinhas de cores afasta­os dos puristas e faz que ninguém tenha maioria, e que   a   porfia   siga   viva.   Entanto,   o   terceiro   grupo,   que   já   se   distanciara   dos outros há algumas semanas, segue cos olhos postos no Caribe e até andam a mirar agências de viagens e sítios aos que iriam de não ser polos teimudos dos outros. Felizmente há gente para animar­nos nestes tempos de monotonia, como o poeta Budial, que nos oferece um novo verso em Nuestra Región co que nos regala o sorriso. Seica diz também que a apresentação do seu livro não teve tanto êxito como em princípio coubesse augurar. Qualquer poderia concluir que o interesse das gentes destas terras pola palavra escrita, apesar dos poetas e escritores que daqui saíram, não medra. * * * Dês   que   se   fizera   com   aquela   amiga   de   coronha   recoberta   de   osso esbrancujado em Montalegre, ou quiçá em outro lugar, Dom Narciso não se sentia   tão   só;   esta  era   uma   seguidora   fiel,   a   onde   ia   ele   ia   ela   e   se   algo   se passava ela responderia por ele, que mais seguridade precisa um homem? A primeira vez que a deixou ver em público foi numa dessas tabernas que ele frequentava;   ergueu   um   nada   o   pulôver   e   tirou­a   da   cintura   onde   a   levava oculta;   sem   mediar   palavra   com   ninguém   pousou­a   mesmo   perto   da   sua bebida   como   quem  pousa   o   bilhete   para   que   lhe  cobrem.   Naquela   taberna quase sempre eram todos conhecidos dele, e se às vezes havia algum forasteiro já  se  lhe  informava  de  quem era aquele cura.  Narciso fazia o parvo mas de Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  43

parvo  não   tinha  nada,  e  bem  via  como  lhe  davam  de  olho   aos que  fitavam surpreendidos   quando   ele   começava   de   discursar…   “vem   contente   hoje   o Narciso”…   ele   quase   adivinhava   os   comentários   que   pola   calada   se   faziam “é­che o cura de Ameixeiras, que lhe dá algo à bebida”. Mas aquele dia quando pousou a sua pistola acima do mostrador, perto da cunca do vinho, ninguém se trujiu; não, não houve piscadela de olhos nem comentários polo baixinho. Outra vez sentia Narciso que retornava aquele respeito que noutrora sentira que todos lhe tinham lá na sua primeira freguesia. Por fim respeitado de novo, agora ninguém ria.  O   dono   do   bar,   que   era   quem   sempre   estava   por   trás   do   balcão,   era homem afeito a estas cousas, e foi o menos sobressaltado dos presentes. Na sua   taberna,   pola   proximidade   com   um   clube   da   estrada   505,   entravam   às vezes indivíduos de aspecto suspeitoso, e alguma vez vira­lhe a algum, quando arredou o casaco para tirar a carteira, assomar a coronha duma destas. Aqueles davam   mais   medo   que   Dom   Narciso;   aqueles   aquelavam­te   o   ânimo   só   de vê­los.   A   vestimenta,   essa   face   meia   sem   barbear,   esses   olhos   apequenados sempre fitando com rancor, essa voz que arrelava as palavras, e os movimentos de gorila, eram os sinais que lhe serviam ao taberneiro para identificar a estes chimpa­figos   que   viviam   nada   mais   que   de   lhe   chuchar   a   bolsa   a   quatro coitadas. As pobres prostitutas sempre encerradas como toupas na cova­terra; sempre fechadas nesses prédios de Ginzo para que não pudessem fugir; só as deixavam sair quando o negócio o requerer, e daquela bem que as vigiavam. Estes sim que eram animais, e a estes temia o taberneiro, mas quando viu que Narciso   sacava   a   pistola   e   a   pousava   acima   do   balcão,   achegou­se   a   ele   e disse­lhe polo baixo: “Guarde isso Dom Narciso, que ainda se vai meter você num compromisso” O cura sorriu para o taberneiro e disse: “de mim não se vai rir ninguém” e a seguir guardou a arma.  Apesar de que a gente que havia na taberna não se assustou, eram os de sempre,   os   que   se   viam   ali   a   cotio,   sim   que   lhes   sobressaltou   um   chisco   a pistola. E se por acaso começaram a rir menos quando o cura estava a soltar uma das suas paroleadas, nenhum deles temia a Dom Narciso, sabiam que era um   bom   homem,   se   quadra   algo   tarabelo   demais;   mas,   ai,   tampouco ignoravam que o álcool e o ferro misturados não fazem boa jeira, e a partir de

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então   andaram   os   homens   com  tino,   e  algum   até  deixou   de  ir  por   ali  uma temporada até que comprovou que não se passava nada. E foi assim como o Narciso sentiu chegar até ele de novo aquele respeito do que ele tanto gostava. Começou de sentir­se poderoso, e ia cada vez apresentando àquela sua amiga de coronha de osso velho em mais encontros. Pouquinho a pouco toda a gente era sabida de que o Narciso portava arma. Já nunca saía da casa sem ela; a pequena pistola formava parte dos hábitos do sacerdote. Às vezes, estando na taberna,   algum   incluso   lhe   pedia  que  a ensinara,   e ele  não  se fazia  rogado; sacava­a,   mostrava­a   entrementes   a   cofiava   como   quem   acarinha   a   um cãozinho,   e   volvia­a   guardar.   Alguma   vez   escutou   a   um   dizer   que   aquela pistoleta   era   engraçada   mas   não   era   nada   grande,   que   mesmo   parecia   um brinquedo, que ele sabia de gente que as trouxera desse mesmo sítio donde ele trouxera a sua e que eram do nove largo… Aquilo deixou a Narciso amolado; agora que tinha o homem tudo outra vez controlado vem esse comentário e… raios   te  partam,   deixa   ao   homem  desarmado!   Esse   mesmo   dia   se  informou Narciso de quem eram os que traziam tal contrabando, e antes duma semana já tinha ele o seu nove largo. Ali, na mesma taberna, como sacara a pequena a primeira vez, sacou agora em vez desta a grande. Esta era negra, como um cão grande de raça; os que lá estavam calaram, até se diria que se assustaram. Dom Narciso   ficou   um   nada   surpreendido   por   aquele   tanto   silêncio,   tampouco tencionava   assustá­los;   Narciso   só   queria   respeito   e   não   que   lhe   tivessem medo. O taberneiro olhou para Narciso, mas esta vez não abriu o bico. Narciso guardou a arma e diz­se que naquela taberna nunca mais a volveu sacar. Ele sempre a levava nos  bolsos, ou  na cintura, escondida,  e sentia­se o homem mais seguro e mais respeitado sem ter nem sequer que ensiná­la.  Coa boa sensação de ter atingido uma meta, marchou Narciso a saudar um novo dia, e o mesmo fizeram os outros dous homens. Levavam já um terço da subida ao Zebreiro. Desde onde deixaram hoje escondida a pia puderam ver a Veiga do Fojo e os Penedos da Cabana. Atrás, pola esquerda, ficava já a Vela de Penalapa. Os Penedos da Cabana, pola parte de detrás, chegam quase até Gomesende, formando uma serra que vai minguando a modinho até rematar numa espécie de sarriço estreito. Por detrás da Cabana passam as paredes dos lobos, que vão morrer lá na Veiga do Fojo, onde ficam, como o seu nome bem

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indica,   os   restos   do   que   foi   o   poço   onde   caíam   os  lobos.   Tanto   as  paredes quanto o fojo foram feitos há mais de cem anos coa finalidade de atrapar e dar cabo dos lobos, que eram as animálias que mais inçavam por estes montes.  Eram tantos os que havia que às vezes matavam até vinte ovelhas duma volta, e a gente não teve outro remédio que artelhar o das paredes. Quando se faziam as corridas vinha gente de toda a província e espalhava­se por todos os lindes do Zebreiro; depois, quando tudo estava pronto e toda a gente no seu sítio, desde a Vela de Penalapa acendia­se o lume para avisar a todos de que começava   a   troula.   A   gente   organizava   uma   autêntica   verbena   com instrumentos   musicais   tais   como   latas   de   azeite   ou   do   pimentão   vazias, caçoulas de ferro e chaves, e cousas desse estilo; e os animais espaventados polo barulho iam­se metendo mais e mais na boca das paredes. Já perto do final,  onde  aparecia  o   cocho   – que  era  um buraco bem  fundo  – as paredes iam­se juntando. Àqueles pobres não lhes restava mais caminho que saltar e cair no fojo da morte. Os anos foram passando e do buraco só fica um resto quase inapreciável, o tempo e mais a falta de uso foram­se encarregando de cegá­lo. Das paredes fica algo mais, nalguns sítios ainda levantam bem, mas noutros estão esborralhadas. Dos lobos fica a memória; já só cria uma loba lá em   Penacereija.   Agora   nestes   montes   há   só   javalis   e   corças   e   outros animalzinhos,   mas   lobos   não,   como   daquela   não,   desses   não   ficam.   Então tinha­se­lhes   medo   porque   te   comiam   a   fazenda,   ou   o   que   ligara.   Nesses montes tão grandes se se te perdia algum animalzinho, lá ia. Havia uma cheia de   cantares   e   coplas   que   davam   boa   conta   desses   acontecimentos,   porém, também foram, como os lobos, desaparecendo; a alguns salvou­se­lhes, como às paredes, um bocado:  Chove, neva, escarrapateia,  fogem os lobos do monte prà aldeia. Numa   ocasião   perdeu­se­lhes   o   cavalo   a   duas   irmãs,   vizinhas   de Penacova, e o pândego que havia daquela na aldeia ofereceu­se a lhe botar o responso para que estivesse o animal a salvo; mas confundiu­se e em lugar do responso saiu­lhe a cantiga que ainda ressoa hoje polo lugar:

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Lobos que andais polos montes avivai bem os sentidos que anda o cavalo da Flores e o da Mercedes perdido. E se os lobos não o topam  que o esfandanguem cem mil diabos. “Ai, dianhos te não levem, tu é que a arranjas…!” As duas mulherzinhas ficaram   desesperançadas.   Daquela   no   Zebreiro   havia   muita   vida.   Agora,   de descontado   os   javalis,   as   corças,   os   teixugos,   os   raposos,   os   coelhos,   as gardunhas,  as doninhas,   toda  uma cheia de pássaros e outros animalzinhos pequerrechos como o ouriço­cacheiro, já só ficam estes três homens da pia. Também   é   certo   que   lá   no   pico   mais   alto   dos   montes   da   contorna   está   a emissora   desde  onde   se  vigia   para  que  não  ardam os  pinheiros.  O Zebreiro agora está coberto de pinheiros, e há que guardar de que não venha um lume e os larpe. Um homem que dedicou alguns anos da sua vida a esta vigilância foi o Ciro. Subia aí pola tardinha caminhando até acima; já sabemos que ao Ciro não lhe amarga caminhar. Mas agora já nunca sobe arriba, mas é só por mor de não andar ele lá muito bom. Agora há outros mais novos que sobem. Pois logo mais lhes vale aos da pia ter conta dos faróis, não vão ser avistados desde o alto. Claro que, se não vêem lume, quem pode crer que ande alguém polas touças ou   os   pinheirais…?   “Será   a   Santa   Companha”,   chancearão   os   dous   vigias   e seguirão a velada “dorme tu que eu já miro, e depois cambiamos”. * * * Nuestra   Región  segue   sem   mencionar   o   destino   dos   agentes   que supostamente seguem lá pola Raia na procura de informação, ou se calhar já se vieram e não se sabe nada. O   que   sim   menciona  Nuestra   Región  é   que,   segundo   parece,   o adinheirado   cidadão   que   diz­se   que   se   oferecera   a   dar   uma   boa   mão   de bilhetes   àquele   que   proporcionasse   informação   fidedigna,   segue   com   essas Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  47

intenções, porque não tem tido sorte e não pôde polo de agora fazer a sua boa obra. Pola sua porta passeiam­se diariamente pessoas a procurá­lo. Apesar de que   o   jornal   não   dava   pistas   do   domicílio   do   tal   rico,   seica   houve   quem   o adivinhou, e desde então não pára de lhe chegar gente à porta. Ali o seu criado, ou se se preferir, secretário, tem ordens de não soltar nem um real. Ele disse que até que se veja a pia ele não dá nada, que senão não é obra benéfica e nem sequer lhe serve para reduzir impostos. Pois também tem razão o homem, ao ter de fazer uma boa obra que lhe vai, seguramente, contar no Além, porque não que seja qualificada de benéfica e que também lhe sirva no aquém? Há quem quer fazer o bem, e tem dinheiro com que fazê­lo, mas não pode… e diz­se que anda o coitado do homem amolado. * * * Os  homens  da  pia   seguem sem  descanso,  noite vai  e noite vem,  a sua escalada para o alto do Zebreiro. Às vezes mesmo lhes custa topar sítio polo que   possam   ir   esgardunhando.   Na   parte   das   touças   tiveram  sorte   porque  a rodeira segue aberta; aquela é uma rodeira feita durante vários séculos, por ela encheram­se   de   subir   carros   e   mais   carros   que   ano   trás   ano   baixariam carregados   de   lenha   para   quentar   as   lareiras   de   Penacova,   e   ainda   outras doutros lugares onde havia menos monte. Organizavam­se os carretos, com sete ou oito jugadas, e levava­se a lenha a Ginzo, ou onde for preciso. Hoje já só sobem de quando em vez os tractores, mas avonda para manter o vieiro aberto. Logo   as   touças   vão   ficar   detrás   e   adiante   aguardam   as   plantações   dos pinheiros. Andar por entre estas árvores de folhas afiadas tem a vantagem de estar bem protegidos e contra à manhã poder marchar sem ter que levar muito trabalho em esconder a sua mercancia. Às vezes acodem às devassas, e se vão na direcção   atinada,  usam­nas como se fossem  caminhos; nestes casos  têm que andar com mais cuidado para não ficar muito ao descoberto, ora que aqui no meio destes montes quem os vai pensar. Se alguém os visse faria o mouco para que ninguém possa dizer que virou tolo. Dom Narciso segue a puxar polo pinho, ora com força, ora com raiva, e enquanto e assim, tira também da memória e vai vendo o homem como foi que Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  48

ele   veio   bater   àquele   cárcere   do   que   o   tiraram   asinha   para   o   levar   ao psiquiátrico no que ainda passa os dias, e do que tem que escapulir­se para vir cumprir co seu destino. O Narciso estava afeito a que o andaram trazendo e levando,  e mais  ou  menos  ele sabia quem manejava os fios,  mas agora não tinha nem a mais remota chispa de claridade sobre quem, ou quê, dirigia os seus andares. O único que sentia ele era que uma força o empurrava monte arriba e que não podia detê­la, nem sequer sabia o homem se queria pará­la. Algo lhe transmitia a sensação de que por primeira vez se dirigia a algures. Mas não é novidoso que Dom Narciso se sinta bem sendo guiado, a isto está­che ele bem afeito, quiçá afeito demais, e portanto não tinha lá muita manha co de dirigir­se só, e cada vez que o tentava acabava perdendo o norte e outra vez o pilhavam   e   o   amarravam   curto,   como   faziam   agora   os   senhores   das   batas brancas.  Mal   pensavam   todos   naquela   residência   que   Narciso   fosse   capaz   de argalhar extravagantes artimanhas para escapulir­se, e fazê­lo ele sozinho. Ele já descobrira que se estás calado e não dás que fazer, pois és considerado bom e bem se vê que vais curando; e que melhor jeito de estar calado que não estar! A ausência pode ser mui informadora das andanças de qualquer se se conhece, mas se se pensa que esse vulto de almofadas é um homem que descansa, logo não te diz nada. E a ausência passa pola calada noite trás noite polo leito de Narciso.   Ora,   a   Narciso   não   se   lhe   pode   esquecer   esconder   as   pílulas   de diversas cores que lhe dão a tomar antes de ir à cama; ele faz como que as engole   enquanto   as   oculta   como   pode   baixo   a   língua,   depois   cospe­as   no retrete e lá vai o homem curando. Se as enviasse para abaixo não teria outro remédio que ocupar de noite o sítio das almofadas, e claro, isso não é o que ele tem que fazer. Ele não está quase nunca seguro do que deve ou do que deve não fazer; ora, co das pílulas não tem dúvidas. Oxalá tivera as cousas assim de claras quando se dedicara a acumular armas. A   cousa   começou   por   uma   pistola   pequena,   logo   seguiu­lhe   o   negro nove­largo, e mole e mole, como diziam as más línguas, montara o homem uma armaria na reitoral. Ora, muitos não acreditam no que se ouve: “isso são lendas  e  trapalhadas”.  Uns  que sim, outros que não,  mas sem criada  que o pudesse ir falando, porque Narciso não tinha a ninguém para servi­lo, não se

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podia   estar   certo   de   tudo.   Se   tão   sequer   tivesse   uma   criadinha…   Narciso sempre   soube   governar­se   só,   ou   ao   menos   ele   ia­se   arranjando;   às   vezes algum de brincadeira perguntava­lhe que como era que não tinha criada para servir­se dela como os outros curas… que colhesse uma, que não fosse parvo. Ele meio a sério meio a brincar admitia estar cansado, mas que o seu cansaço não lhe vinha dos trabalhos que lhe podia aforrar a criada senão de ter que aturar a tanto alpavarda na freguesia, é que não há Deus que os dê levado a caminho, e isso que ele tentara­o tudo… e mas olha que de nada lhe serviu. Mesmo agora, dês que conseguira essas amigas de ferro, algum domingo em lugar de tocar a campa botava­lhe uns tiros ao ar desde o pátio; mas não vale, os de Ameixeiras perderam a fé completamente, ou já não têm nem vergonha, e não visitam a igreja mas que quando se vêm obrigados, alguns cos pés por diante…  E   Narciso  ei­lo  a  protestar, agora as suas  dissertações  em lugar de versar sobre a injustiça e a humilhação só falam do que ele quereria que se passasse, e isso que nem sequer ele o sabe. Portanto anda o homem danado e vai dizendo que já foi falar co bispo e que lho deixou bem claro: “…que se não me   cambia   de   freguesia,   que   caso”   Mas   nada,   o   bispo   não   o   cambiava   de freguesia e o Narciso andava doente sem ter sequer moça buscada. Porque será o que fosse mas, a diferença de outros curas, a Narciso nunca se lhe conheceu moça. Se a teve sabe­o ele, mas de falar por essa causa não te deu nada. E claro, sem moça, como ia casar o pobre do abade?  Ali seguia em Ameixeiras. O porquê o bispo não lhe cambiava de freguesia ninguém   o   sabe,   é   um   desses   mistérios   inexplicáveis.   Mas   não   seria   de estranhar que ao bispo lhe custasse algo muito encontrar outro que quisesse vir   para   o   posto   de   Narciso.   Ameixeiras,   depois   de   que   uns   moçotes   se montaram uma vez, há já muitos anos, a cavalo dum cura, não tem mui boa sona entre os abades. E isso que depois fizeram­lhas pagar; ai fizeram, fizeram, a um deles, que era primo do Colmeias, mataram­no daí a logo da broma. Bem seguro que o tal crego dera conta dele, e naqueles tempos a Guardia Civil não se fazia rogada. O caso é que pouco a pouco a distância entre o Narciso e os vizinhos   de   Ameixeiras   foi   medrando   e   o   que   se   via   vir   era   um   divórcio traumático. Se o bispo o tivesse escutado… 

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Algumas cousas diz­se que são bem certas, como quando dizia a missa com as pistolas no altar pousadas. Era um contraste bem grande ver aquela pistola tão preta perto da Sagrada Hóstia tão branca. No entanto os que dizem que fez muitas vezes uso das armas em público mentem, ele só as ensinava; e quando tirava tiros era em privado, ora claro… ele não podia impedir que os vizinhos de Ameixeiras os escutassem. Mas o Narciso em público só disparou uma vez, e pôde ser um acidente, quem o sabe, isso nunca se dará aclarado. O caso   é   que   a   Dom   Narciso   foram­lhe   apondo   cousas,   como   mulheres   não tinha… filhos não se lhe podiam apor… pois a ordenar­lhe histórias!  Escusado é dizer que ele cos outros abades não se levava dês que… desde sempre, dês que chegara à freguesia. Estoutros faziam que não o conheciam e só   se   juntavam   com   ele   nos   enterros   de   obrigado;   nestas   ocasiões   Narciso aproveitava para zangá­los; melhor dito ele tentava­o, porque os outros não lhe faziam   caso   nenhum,   nem   sequer   o   escutavam.   Narciso   andava   ao   dele,   e enquanto  os outros  ainda  andam no adro  co defunto,  às voltas co “ora pro nobis” dos responsos pagados, ele aguarda dentro da igreja e vai falando. E os outros que não param de cantar e ele dá­lhe que dá­lhe a falar. Dentro há gente que o escuta, ou ao menos que não tem outro remédio que ouvi­lo. Algumas destas pessoas são maiores, ou estão cansas por ter vindo ao enterro a andar e querem ir pilhando sítio, que depois enchem­se as bancadas e logo de pé não se está nada bem. Ele qualquer que for o motivo que os fez entrar a sentar, eles estão   ali   e  a  Narciso,   aborrecido de esperar, já lhe abondam como  público, enquanto os outros curas não entram e anda o funeral polo sagrado. Algumas vezes diz­se que dizia: “tanto a chiba de Vilarinho como a cabra de Vilamenor, já podiam parar de berrar e ir comer verças às hortas” e cousas assim.  Claro que se bem se mira, a quem não lhe rende o tempo numa igreja aguardando? Ele nas igrejas já se sabe… e até há gente que não dá passado o tempo nem com missas nem com cânticos. Como dizia o Afonso logo de sair ao adro: “minha madrinha, que longa se me fez a missa, ai, como me rende aqui o tempo! Cada segundo uma hora… E ali a fazer que rezo, e sem entender nada de nada, só movendo um chisco os beiços para não passar vergonha…!” Parece que isto de se aborrecer na igreja não é nenhuma novidade; e se ainda por cima já tens aquilo mui visto, como deve de lhe passar a Narciso, pois não fica outro

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remédio que o tomar com paciência. E a paciência não era precisamente o que lhe sobrava por aquele então a Dom Narciso. Sobrar, sobrar, há quem diz que o único que lhe sobravam eram as armas; é que… onde se viu outra…?  A alguns vizinhos parece­lhes mentira que a Guardia Civil não tenha feito algo,   saber   bem   que   o   sabem,   porque   uma   cousa   é   fazer   o   cego,   e   outra querer­nos fazer cegos a todos. Houve vezes que a sacou mesmo na presença deles,   e   eles   foram­se   para   outro   lado.   Como   ainda   lembram   todos   os   que estavam   presentes   na   antiga   escola   de   Ameixinhas   (lugar   que   não   deve   ser confundido com Ameixeiras) aquele domingo de eleições. Narciso cumpria coa sua obriga, ele no fundo sabia mais que muitos o que tinha que fazer mas não encontrava   o   jeito,   e   ainda   por   riba   agora   coa   bebedela   tudo   se   lhe   punha anuviado… mas contudo ele cumpria co seu dever e antes de dizer a missa sequer, ia votar. E isso que bem reganho que lhe dava porque, como toda a gente sabe, no concelho de Os Mouros tudo está sempre amarrado; é­vos este um concelho onde, se se me apura, há mais caciques que gente. Ele o caso é que   aquele   dia   as   cobrejantes   estradas   andam   transitadas   polas   furgonetas carregadoras dos votantes; vazio irá detrás o autocarro oficial. Há quem diz que uma vez dentro da  dekauve  lhe dão à gente o boletim para que saibam por quem têm que votar; há quem diz que lhe cambiam a que levam se não é do partido   deles…   Mas  isso   nem  sequer  teria  sido  preciso,   Os  Mouros   e a  sua comarca andam ainda enraizados nos hábitos tradicionais e de todos é sabido que o intercâmbio é a chave de toda interacção social. Se o voto fosse secreto toda a gente poderia ir votar sem medo, mas ele que vai ser! Todos sabem a quem dá um o voto, e sendo assim, pois não o vais dar a câmbio de nada e que pensem  que  tu és  parvo,   pois  logo… aí vai o boletim… vá a câmbio doutra cousa  que   me  deste,   ou   fizeste,   ou  hás­de  dar   ou  fazer…  e  senão  para  que nabiça ia um ir lá tocar a chanca. Nos Mouros contam­se cos dedos duma mão os que votam só para escolher representantes, e ainda te sobram dedos. O voto de   Narciso   tampouco   é   secreto   para   ninguém,   e   não   é   porque   a   Igreja   se presente às eleições, ou que ele fosse a votar­lhes; ele é um homem de ideias e ainda que vista os hábitos as ideias não as perde. Os outros curas tampouco as perdem e o domingo desde o púlpito sagrado muitos deles fazem propaganda, nem proibições nem o caralho. E todos, ao sair da missa, direitinhos a lhe votar

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àquele  que   disse   o  abade.   Ora   Narciso   não   é  como   os   outros   e  por   isso   as cousas não se lhe arranjam.  Mira que já lho  dizia sua mãe “filho,  não faças isso… olha que na terra dos lobos há que uivar como eles” mas a Narciso não se lhe dobra a língua para uivar como os outros, e anda o homem só e meio calado. Aquele dia das eleições, e logo de introduzir o sobre co boletim polo buraco da urna, sacou Narciso a pistola e em presença de todos os da mesa e muitos  outros   que  havia,   apontou­lhe  à  caixinha  transparente,   na  que  já  se viam  três   ou   quatro  furgonetas  de votos,  e enquanto os  canos  da sua  arma roçavam o metacrilato dissera: “arranjai­vos, que senão arranjo­vos eu!” Mas os papelinhos seguiram ali pousados tão inertes como antes; e uma vez mais os votos, apesar da advertência de Narciso, não se arranjaram. Aquela vez diz­se que há quem viu como a parelha da Guardia Civil saía da casinhola para não ter que o ver. A Guardia Civil só andava ali para que ninguém não fosse depois dizer   o   que   não   era;   e   que   não   fossem   vir   logo   a   denunciar   aos   honrados trabalhadores das  furgonetas  por dar­lhes o boletim aos que carrejavam. Os guardas civis eram testemunhas do bom transcorrer e da normalidade com que a gente entrava, só, e quase sempre polo seu próprio pé, e votava. E nem seria cousa com jeito ter que prender o cura, e isso em domingo e tudo, e sem ter permissão, e…, deixa andar! E assim foram passando os meses e os anos, e as eleições…, e mas não vale... Aquela noite fizera­se­lhe mui curta a Narciso, e até teve que ser avisado polos companheiros de que eram horas de ir parando. Desde a devassa que sobe em direito das touças, tudo para acima, até a Regueira Funda, que vai ter ao pé do Penedo do Leão, podia ver como a Estrelinha do Luzeiro pestanejava em presencia daquela claridade que queria vir; e os três homens apuraram­se a esconder tudo e ir­se bulindo asinha. * * * Logo   de   deixar   a   Ciro,   co   seu   fio   de   fumo   ainda   seguindo­lhe,   os detectives detiveram o  carro a meio caminho  entre a Coanheira  e a Lajeira, perto   dum   souto   de   castanheiros,   e   baixaram   andando   polas   poulas.   Em chegando perto das casas do Eiró avistaram uma mulher que andava apanhado Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  53

verças numa horta rente ao caminho, pola parte de abaixo. Era uma mulher já metida   em   anos,   pequeneira,   pouco   mais   levantava   que   as   verças   nas   que depenicava   uma   folha   aqui   e   outra   acolá,   com   tino   de   não   deixar   umas covelheiras mais despidas que outras; se a viram logo foi polo contraste da cor. Vestia toda inteira de preto, com excepção dum avental riscado, um desses que se cingem à cintura com uns arrebites que atam cara atrás. A mulher erguera a olhada   quando   sentiu   o   carro   e   viu   como   dous   desconhecidos   baixavam campo abaixo; quando viu que eles se achegavam à sua mera, botou a apanhar nas verças fazendo como se não os vira… – Bons dias, senhora. – Buenos­dias… –  Olhe,   nós   vimos   de   Ourense   e   estamos   interessados   em   qualquer informação que nos possa dar sobre um assunto que se passou…  O homem seguiu falando e acrescentou nova informação, mas a tia Maria não escutou além dessa primeira frase. Na cabeça da mulher ressoaram fortes as   palavras:   “Ourense”…   “interessados”…   “assunto   que   se   passou”…   e   co zunido dos ecoares dessas poderosas palavras não pôde ouvir mais nada; e isso que ela para andar nos noventa e tantos anos ouvia bem.  –  Olhem, eu sou­lhes velha e já não sirvo mais que para apanhar aqui duas verças para o caldo… –  Não,   se   nós   não   queremos   que   você   faça   nada,   nós   só   queremos informação   sobre   uma   pia…   se   você   nos   pudesse   responder   a   umas perguntas… De   novo   esse   ressoar   aboujador   das   palavras   que,   ressaltando   elas, acovilham as outras, deixando­as assim escangalhadas por entre as perneiras das verças: “queremos informação”… “responder”… “perguntas”… –  Mas olhem o que lhes vou dizer, aqui neste lugar, coma nos outros da sua comarca, que têm ido a menos nos últimos tempos e já não hã tanta gente como   havia   dantes…   que   vai   haver!   Se   aqui   eram   polo   menos   oitenta   os vizinhos de jugada e agora ficam dous com vacas, e isso poucas… mas agora leva­se mais o ter ovelhas. Ai, quem o diria algum dia! Essa Veiga cheia de vacas e Deus te livre de que entrasse ali uma ovelha, e agora…

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A   Maria   decatou­se   dos   acenos   de   impaciência   que   os   homens manifestavam sem querer e apurou­se a acrescentar:  – …pois bem, ainda assim e tudo, há gente que entende algo, eu não sirvo para nada…, dês que um vai velho só serve para ir passando o tempo que lhe puder restar. –  Sim,  senhora,  entendemos bem o que nos  quer dizer e sabemos que quando um vai para velho a memória vai indo a menos e… A   Maria   não   aguardou   que   o   detective   rematara   o   discurso   sobre   as fraquezas da memória, e não perdeu tempo em agarrar­se àquela palavra como o náufrago a um canhoto, e apurou­se a dizer : –  Isso é…, a memória não lhe me serve para nada…, olhem lá…! Hoje à manhã   quando   me   ergui,…   cedo   porque   eu   não   gosto   de   estar   à   preguiça esperta na cama, de perder o tempo na cama não gosto nadinha…, homem se estivéssemos no inverno ainda tinha um passe… pode um estar ali quente até que esteja o lume aceso, mas agora neste tempo que vai bom… pois não gosto de lacazanear e ergo­me cedo… Pois verão, quando me ergui almocei, e agora se mo perguntassem não lhe saberia dizer o que comi, ou o que não…, ainda que eu, desde há muitos anos sempre almoço o mesmo; mas desde que um vai velho   já   não   che  é  o  mesmo…;   desde   que   um   tem  o   caminho   andado   não vale…, quem fosse novo outra vez e sabendo o que sabe…! –  Pois ainda não é você tão velha, e seguro que sabe mais do que você pensa… “Sabe”…   “sabe”…   “sabe”…,   que   teimosos   eram   aqueles   dous!   Melhor dito um, o mais velho, porque o mais moço ainda não desfechara a boca… –  E eu que vou saber, eu não lhes sei nada, se dantes deica pouco não íamos  à escola,  e ademais só  havia  o  Catón  e o  Silabario,  como vamos nós saber… não, não, nós como quem diz não sabemos nada, perguntem­lhe vocês aos novos que esses agora lêem muito nos livros e não é milagre que saibam, co tempo que lhe dedicam não fazem favor; mas uma já não serve para falar coa gente…, uma só serve para ir chouchando enquanto Deus o quiser. –  Depois   havemos   de   ir   falar   coa   gente   nova   do   lugar   mas   primeiro queríamos   que   você   nos   dissesse   se   sabe   algo   relativo   a   uma   pia   que desapareceu…

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–  Não, eu não lhes sei nada da pia que desapareceu, ademais disso há tantos anos que qualquer se vai acordar agora … – Então você… acorda­se? – Eu? Eu como me lhe hei­de acordar…! Aos meus anos! Foram vocês os que o mencioram trazendo a cousa ao rego, e não eu…, eu já não se pode um fiar do que se acorda e do que não. Agora nós, chegado este tempo, que pouco nos resta já por andar, só servimos para estorvar…, estorvar e dar trabalho. Os agentes insistiram e insistiram mas não puderam tirar cousa com jeito daquela   conversa.   Amolados   por   não   obter   muita   mais   informação   que   da primeira, foram­se rua fora caminho do Eiró. Bem que lhes amargou deixar a velha   com   as   suas   verças   mas   nem   fazia   jeito   forçá­la   muito,   ao   cabo   ela parecia algo confusa, e quem sabe, se calhar era certo que lhe não defendia muito a memória. Contudo e isso eles tiveram que bulir de ali co rabo entre as pernas, ou como se diz por Penacova… “saiu­lhes a porca furada”  O   agente   mais   novo   parecia   não   alvoriçar­se   muito;   andava   ele   algo distraído olhando para a paisagem que neste lugar parecia sobrar por todos os lados.   Ele   viera  de  Barcelona  destinado   a Ourense  uma  temporada,  e ainda andava  o   homem  tentando   entender a  língua   e  mais   a  paisagem,  ambas  as duas cousas irmãs na estranheza para ele. Coa língua já se ia defendendo na cidade,   mas   quando   chegou   a   esta   aldeia   compreendeu   de   que   tinha   que afundar algo mais, encontrava muitas palavras que não tinha jeito de acotegar no seu  delgado dicionário;  mas ele insistia e co passo do tempo havia de ir aprendendo. Palavras e carvalhos, assim tudo revolto, verde e são, entravam polos seus saturados sentidos e iam fazendo o seu efeito; “sim homem, sim, se o que faz  falta é querer…”; e a ele vontade não lhe faltava, foi por isso que quando se decidiu a vir desde a beira do Mediterrâneo pensou que de seguro as similitudes do galego co seu catalão natal lhe facilitaria a sua adquisição, polo menos   à  primeira.   Claro  que  quiçá lhe teria  sido  melhor  ir  um  chisco  mais arriba no território galego, digamos por exemplo à Corunha; ora, se calhar ir ali não   lhe   servia   para   os   seus   propósitos   de   adquirição   da   língua.   Diz­se   que muitos habitantes daquela cidade, apesar de passarem a vida inteira nela, não conseguiam  aprender nunca,  logo a escolha não fora tão má como pudesse parecer. Ourense, e em particular esta zona da Raia, tem um jeito de falar bem

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diferenciado,  e às vezes custava­lhe entender o que dizia a gente ainda que fosse sabendo o que queriam dizer as palavras. Olha o catalão, para que logo nos venham dizendo que são… o que não são… Já gostaria eu de que outros, mesmo alguns de dentro da casa, fossem…, eu bem me entendo. Entrementes, a tia Maria seguia na horta: “por sorte marcharam… pensei que não me dava livrado deles, que dianhos andarão a procurar,… e mira que vir­me cá com isso da pia… como que alguém vai ser tão inocente de lhes crer que   andam   interessados   pola   pia…   a   mim   não   me  enferram,   alguma   outra cousa terão tramada… e claro, não lho vão dizer assim a qualquer; pois logo de mim tampouco vão levar muito…” A tia Maria, como a maioria das viúvas e outras pessoas que passam muito tempo em soidade, tinha o são costume de falar só… De que outro jeito ia senão ela escutar a voz humana? E certo é que quando uma fica viúva por muito tempo estranha tanto a voz do companheiro, e estranha tanto a voz  de dentro… A Maria havia já tempo que se afizera a escutar só a sua voz, e por isso não era fácil que agora alguém chegasse e lhe fizesse dizer o que ela não quer só por não dar aturado os devezos de falar. Se os   agentes   tivessem   ficado   por   ali   acochados   perto   do   cadabulho   da   horta, teriam escutado o que a Maria acabou dizendo sobre da pia; porque já que lhe lembraram a cousa ela aproveitou­a para manter a sua conversa, pois certo é que  quando  um  conversa  só  custa­lhe mais  encontrar temas sobre  dos  que falar. Mas os agentes tinham tanto apuro por encontrar informantes que não puderam   perder   nenhum   do   seu   precioso   tempo   espreitando   a   uma   velha. Ademais, se alguém os via, que ia pensar? E como iam eles adivinhar que ela falava só? Consequentemente os dous homens recolheram as suas ânsias de saber e foram­se rua abaixo; ali no meio do lugar toparam­se com gente mais nova. * * * Estas noites de lua cheia eram de grande ajuda para os três homens, que assim   não   tinham   que   alumiar­se   cos   faróis   nem   passar   medo   de   ser descobertos. Os medos que eles traziam, em particular os de Narciso, eram­che bem outros, bem não escuros e frios. Os temores que se rebuliam dentro do Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  57

peito   de   Narciso   vinham­lhe   da   sua   cabecinha,   pois   por   aquele   solitário Zebreiro lobos dos que amedrontar­se já não havia. Mas apesar da muita luz que a lua derramava na devassa pola que eles subiam, aquelas noites foram as mais  negras,   as  mais  escuras  e criminais para Narciso.  Ele via  como aquele homem,   ou   crego,   que   protagonizava   o   seu   passado,   andava   já   sempre desencarreirado. Era a sua uma cruzada perdida e mal levada por ele. Agora já só em contra dos caciques da zona. Não ficava nunca claro, nem sequer para ele,   quanta   gente   caía   dentro   dessa   categoria.   De   seguro   que   ademais   dos clássicos,   os  de toda  a  vida,  os que toda a gente pode distinguir  polos  seus traços identificadores: bem mantidos, soberbos, e com mal gosto para quase todo,   especialmente   para   vestir,   Dom   Narciso   também   incluía   entre   os caciques  contra  os  que   erguera  aquele  combate  de falares  incendiários,   aos inspectores de granjas de  UTECO  e aos guardas civis retirados. Cada quando que   ele  agora  se   topava  com   um   desses,   montava  um   cristo   verdadeiro.   Às vezes até saca a sua arma e então a cousa vai piorando. E claro, via­se vir a desgraça.   Agora   até   no   sagrado   se   enfrentava   a   estes   indivíduos,   para   ele indesejáveis; mais dum, seica farto de o ouvir, faz por evitar todo o possível contacto  que  os   possa   pôr  num compromisso.  Apesar do cautelosos  que se volveram   alguns,   particularmente   para   não   dar   que   dizer,   há   vezes   que   a ocasião requer a presença dum. Como lhe passou ao Saturnino no enterro da sua tia em Ameixeiras.  O   sobrinho   da   Hermesinda   era   um   dos   caciquinhos   de   pouca   monta repudiados por Narciso, um desses que entre outros têm o ofício de carregador de  furgoneta no dia  das  eleições;  felizmente, vivendo noutra  freguesia eram mínimas   as   ocasiões   nas   que   se   cruzavam   ele   e   o   abade.   Mas   morreu   a Hermesinda e o tal sobrinho não teve outro remédio que assistir ao funeral que tinha lugar em Ameixeiras. Já estava a defunta no sagrado, pronta a entrar na igreja, quando por entre as caras dos ali presentes avistou Narciso ao cacique. Interrompe os “ora pro nobis” e os “secula seculorum” e algo rosnou baixinho. Depois começou a dizer que a Hermesinda era uma ateia que nunca lhe ia à missa   e   que   não   deveria   ter   sepultura   no   sagrado...   E   ele   é   certo   que   a Hermesinda   ultimamente   não   assistira   com   frequência   a   cumprir   coa   sua obriga   do   domingo,   mas   por   razões   que   lho   impediam,   pois   desde   fazia   já

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algum tempo ficara a mulher tolheita de tudo, e não lhe valiam as pernas para nada, quase não se podia mover. O Narciso não pára de rosnar e rosnar, e os vizinhos surpreendidos por aquele despropósito não sabem o que hão­de fazer e olham uns para os outros até que finalmente todos os olhares se dirigem ao sobrinho da defunta, ao Saturnino, para ver que é o que se faz, pois ele é o mais achegado   dos   da   gente   dela.   A   Hermesinda   tivera   um   filho   de   viúva   mas morrera­lhe e agora só lhe ficava uma irmã e o sobrinho para defender o seu nome.   Aquelas   tantas   olhadas   acurralam   o   Saturnino,   e   mais   que   ajudá­lo põem­no cara ao precipício. Não tem outro remédio que obrigar o abade a que cumpra co seu dever de sacerdote. E assim, com essa determinação, começa a caminhar   em   direito   ao   abade,   enquanto   a   cara   se   lhe   vai   acendendo   polo reganho  e  a  vergonha  que  já  são   inevitáveis, e diz­lhe que aquilo ele não  o permite, e que será polas boas ou polas más, mas ele enterra a defunta. Então foi quando o Narciso tirou a arma do peto e apontou ao Saturnino enquanto lhe dizia: “se te moves meto­te um tiro” O Saturnino ficou cravado no chão como   um   espeque   e   o   encarnado   da   cara   trocou­se   em   céreo.   Narciso segue­lhe   apontando   enquanto   lhe   diz   que   não   se  apure,   que   ele   não   quer matá­lo, só pretende capá­lo, e por isso lhe vai tirar aos colhões.  Nesse momento todas as olhadas vêem como, efectivamente, a inclinação dos canos do nove largo indicam que a bala, de sair disparada, passaria por essa zona de entrepernas, mesmo onde se juntam as brilhas e se decolgam as partes. Alguns dos presentes, que não gostam do caciquinho, sorriem, e para os seus adentros, bem que se alegram do que ali se está a armar. Mas ninguém abre a boca, e a cousa continua. Narciso segue coa teima de que ele à velha não a enterra e que em vez disso lhe vai enterrar um cacho ali ao sobrinho, um cacho que lhe sobra porque ele não é homem nem é nada… Aquilo semelha estancado  e mesmo parece que vai durar eternamente. Alguns pacificadores começam de falar… “que remate co enterro e logo depois já terá tempo de lhe arranjar lá as contas ao sobrinho…” mas nada, Narciso segue na sua postura e apontando ao Saturnino. Estava tão atento ao que se passava por diante dos seus olhos  que  não  se apercebe de que por detrás se lhe vai arrimando um homem, um guarda civil retirado, vizinho do Saturnino, e até amigo dele. 

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O guarda retirado, acostumado a actuar pola sua conta e sem permissão de ninguém, decide então meter­lhe uma punhada ao cura no braço co que aponta,   para   ver   se   solta   a   pistola.   Todos   viram   como   o   braço   de   Narciso baixava e a arma se disparava. Um homem caiu ao chão, todos pensam que está morto. A bala, trás passar por entre os joelhos do Saturnino, foi bater no pé do João,  um  moço de Penacova que estava ali no enterro como o resto dos vizinhos. Ao João levaram­no à urgência e tudo ficou em nada, a bala não lhe causara mais do que uma ferida leve. Aquilo parecia­lhes aos que o atenderam um   milagre…  o   projéctil   atravessara   o  artelho  e  não  causara   nenhum  dano nem em osso nem em ligamento nenhum.  O João volveu logo para a casa sem rancores para ninguém: “Ele a mim não   me   tirava,   foi   sem   querer”.   Ao   João   não   lhe   fizeram   assinar   nenhuma declaração,   mas   aquilo   não   livraria   a  Narciso  do  castigo.  Narciso   foi  levado num   furgão   da  Guardia   Civil,   diz­se   que   os   chamou   o   colega   retirado,   o encarregado de lhe meter a punhada afortunada… A reitoral onde morava o Narciso   foi   esquadrinhada   e  por   fim   soube­se   a   verdade   sobre   a   lenda   das armas;   já   sorriem   os   que   assim   o   antecipavam:   em   casa   de   Narciso   havia muitas armas de Deus, ademais das pistolas havia escopetas e rifles e até uma metralhadora. Os refistoleiros dizem que só de munições encheram uma teiga, que de enchê­la de grão levaria uns treze quilos. Ninguém parece alegrar­se, excepto o guarda civil e o cacique, do que lhe passou a Narciso. Uns dizem que o   pobre   está   tolo,   outros   que   se   foi   da   bebida…   e   todos   parecem   estar   de acordo   em   que   se   alguém   tomara   medidas   antes,   isto   não   teria   porquê   ter passado,  já  que tanto o bispo como as autoridades estavam informadas das andanças  do  cura.   As  gentes  de Ameixeiras, o mesmo que os das freguesias vizinhas, sabem que a eles ninguém lhes faz caso até que algo que já não tem remédio se passa… “Pois anda que não estava toda a gente sabida do que se passava e do que não”  Agora andam todos os da freguesia à espreita a ver o que fazem co crego… “Para aqui que não se lhes ocorra mandá­lo outra vez”, dizem alguns; “já verás que pouco dura no cárcere”, dizem outros; “coitado homem”, dizem os mais deles. Não, a gente não queria a Narciso de volta, um homem que faz essas cousas,   ainda   que   seja   por   causa   do   álcool,   não   serve   para   cura.   Com   este

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acontecimento, e outros do mesmo estilo, as gentes de por aqui já aprenderam a fazer­se escolhidas, e depois disso têm­se visto abades rejeitados por alguma freguesia. Como lhe passou ao Laruças da Boulhoeira. A cousa vinha passando dês que o Aurélio, que era o pároco de Penacova e outra freguesia daí abaixo, tolejara  de  tudo  e  tiveram  que o substituir;  à primeira viera Dom Narciso  a dizer algumas missas, se calhar cada quinze dias ou assim, pois o homem não dava   feito.   Depois,   quando   se   passou   o   que   se   passou   no   enterro   da Hermesinda, pois claro, já não pôde vir mais o Narciso e daquela o bispo quis mandar o Laruças. Então foi quando os vizinhos de Penacova, especialmente uma   mulher   que   vai   muito   à   missa,   se   revolveram   como   as   cobras. Telefonaram   ao   bispo   desde   o   locutório   da   taberna,   onde   estava   o   único telefone que havia daquela, e asseguraram­lhe que se vinha o tal da Boulhoeira já podia estar preparado porque ninguém lhe iria à missa; e claro, o bispo não se atreveu e mandou a esse rapaz que há agora.  Narciso   fora   detido   e   julgado   num   santiamém.   Meteram­no   no psiquiátrico, pois somente a tolémia podia justificar o fazer da Igreja naquele assunto,  e  só   a  loucura   podia   dissimular   um  chisco   a  ençoufada  face   desta instituição, que por certo, não anda ela lá mui limpa por este lado da terra. Sem contar a sotana do Cacholas de Vilarinho, que vai sempre emporcalhada, nem os costumes do Laruças de arrepanhar o que não é dele nem de Deus, ficam, e ficarão, outras muitas cousas por limpar e aclarar. Por exemplo, que feito foi dos altares da igreja de Penacova. Quando o Aurélio, o abade desta freguesia, que por certo viera corrido a pedradas da de Medouchos – ainda que aqui isto tardou em se saber –, pois quando ele levou os altares disse que os ia queimar ali   no   pátio   da   reitoral   de   Aguins,   a   outra   freguesia   da   que   também   se encarregava.   Mas   ninguém   cheirara   ao   ardido,   nem   vira   bafeirada   de   fumo nenhum… daquela ainda não estava tão tolo como para destruir coas chamas aquela   beleza;   tolo   pôs­se   depois,   e   não   é   milagre,   de   novo   um   fá­las   mas depois,   de   velho,   paga­as.   É   certo   que   aquelas   colunas   torneadas   cos   seus cangalhos de uvas, e santinhos, e mil chinguilinadas, precisavam um repasso. Os dourados já diziam grises, e os prateados não se distinguiam das manchas de humidade. Precisavam que alguém lhes botara uma mão, mas não assim. O Aurélio pedira­lhes aos homens de Penacova que lhe ajudaram a carregá­los

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num   carro   e   levá­los   à   reitoral   de   Aguins.   Primeiro   seica   fizera   contas   de enterrá­los,   mas  logo   se  se  desenterrassem   seria  um  escândalo,   e  disse  que melhor os queimaria, que era ainda mais fácil. O que fez ou não fez só ele o sabe. Por conseguinte o de Narciso já chovia sobre molhado e o próprio bispo era conforme com colhê­lo e confiná­lo…, ora não no cárcere, que isso diz mui mal. Melhor que seja um tolo: vamos, asinha a crucificá­lo. E assim foi como o Narciso se encontrou naquele psiquiátrico. Ali soube que era um doente e que iam a tratá­lo, mas a ele já tanto lhe tinha. Primeiro viria a desintoxicação do álcool: coa ajuda dumas pílulas e umas injecções nem se aperceberia de que lhe faltava o vinho. E era certo, o Narciso andava à primeira como um fantasma adormecido   polos   andares   daquela   residência.   Depois,   pouco   a   pouco,   foi espertando   um   algo,   mas   seica   não   tem   mostrado   muitos   devezos   de   se recuperar. Os doutores parecem não dar co cerne da sua loucura, mas também lhes está custando encontrar indícios que lhes permitam confirmar que já está bem  e  soltá­lo.   Tudo   isto  mantêm­no secreto os batas­brancas e diz­se que andam   algo   danados   por   não   dar   entendido   o  que   é  que   lhe   passa   a   Dom Narciso;   porque  parecer  parece um  tolo,  mas depois não  parece que o seja deveras. Entretanto, no Zebreiro as lembranças iam empurrando a Dom Narciso monte arriba, tal que um cavalo, caminho da Fonte da Cunca. Parecia­lhe que já não tinha mais nada para tirar do saco escuro dos miolos, porém não sentia o   homem   alívio   nenhum;   nem   lhe   parecia   que   aquela   nova   possessão,   ou reconstrução, ou como quer que se lhe chame, o levasse a sítio nenhum. Ali apegado àquela pia seguia ele, e mesmo se tinha figurado que porventura era tudo um sonho e que agora co susto, onde houvera um disparo e tudo, teria acordado… Mas não era assim, e sabia que teria de seguir algo mais naquele caminho nocturno. Como um condenado que não conhece a duração do seu castigo, assim se sentia Narciso. E que madurecido andava! Já não sabia em que   lado   afincar   o   pinho   para   turrar   daquele   chedeiro   tão   carregado.   Em ambos ombros tinha esfoladuras que já lhe levantaram a pele mais duma vez… as fêveras do seu coiro passaram nalguma ocasião a se fundir coas do tecido do lenço da camisa. As maniotas iam­se acumulando umas por riba das outras; aquela era uma dor física impossível de aturar, e às vezes via­se o homem na

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obriga de se esconder como se fosse um animal e com ambas as mãos sujeitar bem   o   pinho   e   apoiá­lo   no   lombo   dobrado,   e   mesmo   na   cabeça.   Quando chegou  ao  alto, mesmo ao  pé  da fonte, soltou  o pinho e decatou­se de que aquela fora a sua última jornada na dianteira, já não podia mais. Ele seguiria às voltas coa carga, ora para o pinho já não lhe davam os fôlegos. Deixou­se cair ao  longo  da  fonte,  co   olhar no céu estrelado.  A  terceira lua estava pronta a começar,   e   ele   seguia   sem   muita   clareza,   fora   ou   dentro.   Os   três   homens tiveram   quase   meia   noite   de   descanso  e   tempo   para  saciar   as   suas   sedes  e cumprir co ritual de dar de beber à pia; depois esconderam a vida que levavam e   deixaram   o   Zebreiro   até   a   noite   seguinte.   Aquela   última   subida escorrichara­lhes as forças a todos, por sorte amanhã começaria o descenso, e bem seguro que seria mais fácil. Mas isso seria amanhã. * * * O   diário  Nuestra   Región  leva   vários   dias   sem   oferecer   cousa   com   jeito sobre o tema não resolvido da pia. Tudo se vai em bons desejos, mas sem nada que aportar aos seus leitores. Assim, alguns, devecidos polas novas que não chegam,   começaram   a   mandar   notas   de   protesta   à   redacção   do   jornal, acusando­os de falta de formalidade; porque ora nem se menciona o tema ora se se trata é de jeito casqueiro, pouco sério. Algumas das cartas recebidas nos seus escritórios parece que levam mui má raça, segundo os comentários do próprio jornal, e não merecem ser arejadas na sua publicação. O diário afirma que se alguém tem algo positivo e de ajuda, que o pode comunicar, e se não é assim, que não lhes façam perder o tempo.  Contudo e isso a gente segue a vê­las vir sem nada fiável sobre assunto que nos concerne e preocupa. Contudo,   os   da   cidade   velha   seguem   coa   sua   dança   de   infrutuosas reuniões e não saem disso, não dando­lhe a  Nuestra Región nem sequer uma escusa para seguir falando deles tão sequer, e tampouco é cousa de lhe botar a culpa ao jornal por não nos oferecer informação do bem que esta organização resolve   as   suas   diferenças.   Não   se   pode   fazer   notícia   se   não   se   tem   algum indício, ainda que seja mínimo, ainda que seja mentira… mas algo, sobre o que Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  63

criar. A verdade seja dita, nem estes da cidade velha, nem as autoridades, lhe estão facilitando nada a Nuestra Región a sua tarefa informativa.

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Capítulo III

A FONTE DA CUNCA Apesar   do   descanso,   que   bem   merecido   tinha,   Narciso   seguia   meio arrelado das costas; custava­lhe um nada endireitar o martirizado sarriço, e o coiro da parte alta do corpo seguia encetado em vários sítios. Mas não era essa terrível dor física a que trazia o homem revolvido, não, o que lhe remexia nas suas entranhas surdia da escuridão que ainda sentia rebolir lá dentro. Narciso sabia que tinha de seguir aquela andaina, mas não sabia para onde se devia dirigir. Foi assim como se decatou de que lhe chegara a hora de soltar aquele temão que até agora levara. Não, a Narciso já não lhe valiam as forças para o pinho,   polo   que   quando   naquela   primeira   noite   desta   terceira   lua   nova trataram de se pôr ao caminho, o Narciso recuou da dianteira e situou­se atrás da roda esquerda. O   Perfeuto   Racha­Pedras   dum   brinco   apoderou­se   da   dianteira, decatando­se assim ele, e anunciando co seu gesto, de que lhe chegara a ele a rolda.   Desde   a   Fonte   da   Cunca   até   a   Veiga,   onde   encontrarão   o   quarto manancial,  tudo  será  baixar.  O Racha­Pedras terá um fácil começo, aqui no alto, e até passar do Penedo do Leão a pendente não será nada pronunciada, o que lhe ajudará a começar com bom pé a sua andaina. Aos três homens lhes amargava ter que deixar aquele recanto da Cunca. É esta   uma   fonte   singular,   à   que   quiçá   seria   mais   adequado   chamar   fontes, porque sai em duas cochas separadas, mas à que toda a gente se refere como fonte   porque   ambas   têm   idêntica   água.   Ambas   as   duas   de   pedra,   uma quadrada e a outra circular, mas as duas com água de idênticas propriedades. Precisamente   polas   qualidades   que   se   lhe   atribuem   recebe   o   seu   segundo nome: Fonte da Fame. Todo aquele que sofre por falta ou merma de apetite não tem mais que beber um golo destas águas e aí mesmo se lhe abre, e as Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  65

ganas, por mui bico­furado que um for, são mais grandes que nunca. Dar­lhes aos cativos de beber destas águas de quando em vez está considerado o melhor remédio contra os maus hábitos alimentares que costumam ter as crianças. Já se sabe que a água toda desgasta: “a água lavra o caminho, e não como o vinho, que sabe no focinho”. Ora, o desta fonte sai­se dos lindes do comum. Um jeito de comprovar os poderes destas águas é botar um coiro duro nelas e aguardar; de ali a um pedaço o coiro começa de amolecer e vai­se pondo esbrancujado como   se   estivesse   entrecozido.   Para   os   de   Penacova   este   método,   sendo objectivo e portanto livre do efeito da possível sugestibilidade, é a evidência definitiva das qualidades medicinais destas águas. Porque a gente de Penacova, que   não   é   parva,   bem   sabe   que   depois   de   subir   desde   a   aldeia   até   o   alto caminhando,   vem­lhes   a   fome   até   às   pedras,   e   por   isso   a   cousa   podia   ser enganosa. Ora, co método do coiro, que há­de ser de jamão bem curado, não fica dúvida nenhuma.  Para maior deleite desta riqueza transparente construiu­se uma mesa cos seus bancos de pedra e até uma forninha para poder assar ali se se quiser. Ora que, na frescura daquele monte, como comer de seco não há, e o que mais presta é o jamão co pão centeio. A mesa e a fornalheira são bonitos adornos de pedra, e atraem às gentes de fora se por ali ligara que viessem, que por certo não   é   este   o   caso.   Estes   três   homens   da   pia   foram   os   únicos   visitantes forasteiros em subirem lá acima durante a corrente primavera, e quem sabe se os últimos.  Contudo,   eles,   após   o   seu   descanso   e   logo   de   saciar   a   sede   da   pia, colheram   o   andante   para   o   Sudeste,   caminho   da   Veiga.   O   Perfeuto   vai   na cabeceira, e os outros dous detrás de ambas as rodas. O Alcaide vai sumido numa quase inexistência, ambos os outros, embebidos lá nas suas cousas, não lhe fazem muito caso. Por um lado Narciso parece como se hoje andara algo ausente; e o Perfeuto, em contraste, vai bem esperto e ágil, mesmo semelha que o espírito que lhe falta aos seus companheiros ele lho tirara. Salta por cima de carpaços, uzeiras, carquejas e mais tojos, ou o que se ponha por diante, com um passo bem ligeiro. Os outros dous fazem o que podem, ora mais que ajudar dir­se­ia que ainda o freiam, mas o Perfeuto não se apercebe e segue coa sua marcha acelerada rodeira abaixo. Ao Perfeuto Racha­Pedras havia mui poucas

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cousas que o frearam, ele era homem botado para diante. Nisso ele não saíra a seu pai, que era acovardado e pouco homem. Ainda quando viera o tremor da terra lá polo ano sessenta e nove, creu que eram os ladrões que lhe andavam às voltas coas entradas da casa para lhe roubar o dinheiro que aquele mesmo dia fizera coa venda duma almalha. O homenzinho sentou na cama e tremendo como um junco, marelinho, ali ficou diante da sua mulher envergonhada, até que um vizinho, trás ouvir os berros, lhes acudiu. Mas o Perfeuto não herdara aquela  habilidade  do  seu  pai de se pôr amarelo e de tremer; ele era tudo  o contrário, um homem acendido e de prontos bravos. E ainda que aquela raça que ele tinha não lhe vinha mal a cotio, alguma que outra vez também o metia nalguma leia.  De rapaz ele já se tinha por valente e outros mais velhos não se atreviam a importuná­lo. E bem leda que se sentia a sua mãe, mesmo se lhe enchia a boca ao   falar   no   valor   do   seu   filho.   Era   aquela   uma   mulher   de   falar   fácil   e   sem cancelas,  e às vezes  dizia mais do que, se quadra, era adequado. Dês que o Perfeuto   foi   garoto,   logo   de   cumprir   nove   anos   ou   dez,   ela   via   nele   a   um homem; e foi por aquele então quando começara a dizer, diante de quem for, que agora na sua casa já havia um homem, mas que o tivera que parir ela. O coitado do marido, que não era tão coitado, pois por diante calava e fazia que ria   a   broma   mas   logo   depois   seica   lhas   fazia   pagar   caras…   que   ele   bom tampouco não che era…, não era, não, que ia ser, senão que lhe perguntem ao Perfeuto polas marcas que as vergalhadas da correia do seu pai lhe deixaram muitas  vezes  no   lombo…   Claro   que   muito   tempo   isto   não   durou   porque   o Perfeuto fez­se homem asinha e repunha­se cara ao pai, que pouco a pouco se foi apoucando; mas antes de se fazer o rapaz grande muita malheira lhe meteu o seu pai. Contam os vizinhos que uma vez até o atou com uma corda como se fosse um animalzinho, bem rente para que não pudesse burlar as vergalhadas, e depois brigou nele até que um vizinho lhe acudiu e lho tirou... “Mas tu seica viraste   tolo,   deixa   o   rapaz   que   ainda   vais   fazer   uma   desgraça!”   A   mãe   do Perfeuto muitas vezes nem se decatava, mas tampouco pensava ela que aquilo fosse   tão   mau…   “A   poder   de   golpes   aprendem   até   as   pedras”.   Por consequência o rapaz teve de aprender asinha a se defender. Praticava muito malhando noutros rapazes da aldeia, um pequeno lugar perto de Ginzo. Isto

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trazia os vizinhos quase sempre de mal coa família. A dizer verdade a família do Perfeuto Racha­Pedras nunca se levou bem de todo co resto dos vizinhos do lugar. O pai do Perfeuto, ao que lhe diziam Hermínio, o pobre já morreu, viera casar ali coa Balbina, a que foi a mãe do Perfeuto, Deus os perdoe. O Hermínio já trazia com ele a alcunha de Racha­Pedras quando veio aqui casar, e assim lhe ficou   a  este  filho  mais  velho.  Diz­se que a alprecha lhe vinha dum avó, quem também se tivera que valer da sua manha coas pedras para ganhar um jornal aí nas canteiras do Montefurado, co que seica o Perfeuto guarda muita semelhança; ainda que isto mui em contra da Balbina, que sempre se arranja para lhe encontrar parecido cos dela. Ora os da gente dela vinham tirando a ruivos e de olhos garços, enquanto que o Perfeuto, e mesmo o seu pai, eram morouchos   e   de   pêlo   algo   crencho.   Ele   polo   que   for,   esta   família   nunca assentou completamente, e de quando em vez levantavam o voo e marchavam. Passaram muitos anos em Alemanha e alguns outros em Barcelona. Às vezes retornavam como se fossem ficar na aldeia para sempre de vizinhos e de ali a nada preparavam a bagagem e… bota­lhe um cão ao rastro! Foram tendo filhos e deixando­os por aí espargidos num sítio e noutro trabalhando, enquanto eles seguiam coa sua movedela de cá para lá até que morreram os velhos, que tanto ele quanto ela nunca o foram; morreram sendo mui novos. Os filhos partiram o capital,   que   andava   meio   à   poula,   e   aqui   só   volveu   o   Perfeuto   para   se encarregar  da  vida  dos  Racha­Pedras; e assim foi como ficou  coa lavrada, e mais coa alcunha da família.  O Perfeuto leva o pinho com tanta celeridade que aos outros dous até lhes custa dá­lo seguido. Dom Narciso já caiu num fachonco um par de vezes, e para o pouco que pode ajudar coa carga tampouco vai ir a mata­cavalos. O Alcaide, já farto de ter que correr, sentou dum brinco na traseira do chedeiro e vai ali trás da pia fazendo de contrapeso, que como é costa abaixo não vem mal de todo. O Perfeuto segue baixando caminho do Penedo do Leão, alheio aos andares   dos   que   vêm   na   traseira;   leva   a   cabeça   algo   quente   de   tanto pensamento   descontrolado   que   lhe   traz   a   soidade   do   pinho.   As   suas lembranças   andam  aos  brincos,  escolhendo   algo  aqui  e  algo  acolá   para  lho trazer à cabeça, e isto causa­lhe muito desassossego. Porquê não será capaz de ver   com   clareza   certas   cousas   que   pensa   que   lhe   têm   passado.   Como   essa

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imagem   persistente   que   se   lhe   apresenta   subitamente   e   não   dá   tirado   do sentido.   Vê   a   sua   irmã   com   cinco   ou   seis   anos,   deitada   no   patamar   do vizinho… acochada num saco como se fosse um cãozinho, assim ali a dormir. Ele teria então sete anos, se os tinha, e não entendia mui bem o que se passava em casa; como é que a Esperança estava ali a dormir na escada dos vizinhos? Agora enquanto puxa do pinho apercebe­se do mal que tiveram de passar de meninhos… e a pobre Esperança sempre com tanto medo… ela escondia­se quando pensava que o seu pai lhe queria bater, e depois ele fechava­lhe a porta e deixava­a fora toda a noite. E a mãe? Porquê não lhe acudia à meninha? E o Perfeuto   vai  lembrando   como   a  sua  mãe  gostava   da   aguardente,   e  às   vezes tinha­a visto deitada no escano co garrafão ao lado, parecia estar dormida mas o certo é que estava borracha. Pobre Esperancinha! – pensa agora o Perfeuto, enquanto lembra aquela vez que a sua mãe não estava, diz­se que fora visitar a um primo que andava para morrer, ou algo assim lhes disseram a eles – O caso foi que a sua mãe passou uns quantos dias fora da casa. Durante aqueles dias eles passaram muita fome, fome e medo. Houve vezes de o seu pai marchar para fora e não volver no dia, nem para o seguinte; alguns dizem que tinha uma amiga lá na Ribeira, e que aproveitava a ausência da mulher para ir onda ela. Ele quando o pai marchava, como era algo tacanho, deixava­lhes tudo fechado com chave e os coitados não tinham nem um zarapulho de pão para levar à boca. Recorriam a tudo, alguma vez escondiam batatas no palheiro da erva ou no   combarro  da   lenha,   assegurando­se   de  que   o  pai   não   as  pudesse   topar, senão… Ainda assim, havia vezes nas que passavam o dia quase inteiro sem comer;   em   mais   duma   ocasião   tiveram   os   dous   meninhos   que   baixar caminhando até ao rio e varrer a roda do moínho para fazer umas papinhas ou uma bica do testo e não esmorecer. Mentes   estas   dolorosas   lembranças   andam   aos   pinotes   na   cabeça   do Perfeuto,  ele  fecha os   olhos   e  segue andando sem muito controlo,  e não  se apercebe de que se saiu da rodeira e vai polos tojos abaixo, como levado do demo,  nem  sequer  sente   as  picadelas  nas  canelas.   Dom  Narciso   segue  pola rodeira, e tem que botar uma carreirinha aos poucos para não despistar­se dos companheiros.   O   Alcaide   continua   sentado   na   traseira   do   chedeiro,   vai agarrado aos dous estadulhos de trás com ambas as mãos, e tudo lhe cumpre

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para  não   sair   disparado   polos   brincos   que   dá   o  carreto.   Desde   a  rodeira,   o Narciso vê  como a  cabeça  do Alcaide sobe e baixa como se se movesse aos saltos, e assim é, leva o cu como um pandeiro, mas dali não se move…, vá, que o levem! Narciso olha para o Racha­Pedras e quase se estremece, ele já se viu primeiro naquele pinho e conhece a força coa que é capaz de te manejar como um   bonifrate;   ele   sabe   da   ligação   coa   que   te   jungem   essas   sogas   invisíveis. Durante  uns   momentos   ao  Narciso  vêm­lhe   ganas   de   ir  lá  e   botar­lhe  uma mão, mas as aguilhoadas de dor que lhe chegam desde a parte das omoplatas fazem­lhe engrunhar o focinho e desistir de tal ideia. Ademais ele já o levara a sua jeira, e agora tinha que deixar andar; afinal ele não sabia bem para onde tinha   que   tirar,   e   nem   sequer   daria   andando   ao   passo   do   Racha­Pedras. Portanto decidiu, em total conformidade coas maçaduras do seu corpo, seguir pola rodeira. Isso sim, sem tirar os olhos de acima do Perfeuto. Aquele Perfeuto alheio ao seu entorno mais imediato, olhos fechados, canelas que não sentem o   sangue   que   sai   das   tantas   picadelas   dos   tojos,   sem   ouvir   os   gemidos   do Alcaide   que   como   um   mostrengo   segue   a   ser   lançado   arriba   e   abaixo   no chedeiro. Aquele Perfeuto seguia o seu andar cara ao Penedo do Leão como um meninho   que   não   sabe   ter   controlo,   ou   que   realmente   não   o   tem.   Quando chegou ao pé do penedo parou, olhou para o céu e viu a Estrelinha do Luzeiro, como se lhe quisesse piscar o olho, e sem sequer reparar se os outros vinham detrás ou não marchou­se. Os outros dous fizeram outro tanto e ali ficou a pia arrimada à base das pedras. Narciso foi o último em se marchar, em parte polo bocado que teve que andar desde a rodeira ao penedo.  Só que aquele não era o Penedo do Leão; ao se saírem da rodeira vieram bater um pouco mais ao Leste e aqui onde chegaram não é o Leão senão as Fatigas. Se tivessem levantado a vista para a beira do penedo teriam visto um buraco na parte baixa da peneda que lá no alto assoma a jeito de solaina ou corredor. Desde abaixo aquele parece um simples furado na rocha, algo no que alguém passou o tempo, golpe vai e golpe vem na pedra. Às vezes no monte a gente, e ainda mais se anda um só e nem sequer tem com quem falar e muito menos   jogar   à   porca,   não   dá   passado   o   tempo   e   acode   a   cousas   que   o distraiam. Ora que se um se atreve de subir acima, e se tem o poder para o fazer, porque se precisa poder e manha para dar posto o pé do outro lado do

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furado,   então   o  que  vê  é  algo  mais que  um  cocho   que  atravessa  o  penedo. Diz­se que há tempo, quando estes montes andavam cheios de gado, os moços se   dedicavam   a   ver   quais   deles   eram   capazes   de   subir   e   quais   não;   ainda estavam também os que não se atreviam de o tentar. As moças, de andar ali co gado, não se dedicavam a essas competições, ademais levando saia, tampouco parecia bem ensinar assim as pernas. Algumas seica subiam quando não havia homens   por   ali   ao   seu   redor,   então   refuciam   as   saias   para   a   cintura   e brincavam polos penedos arriba.  Quando   se   chega   arriba,   à   primeira   um   esquece­se   de   olhar   para   o buraco, desde o alto avistam­se tantos vales e regatas e lugares… que um fica por um instante descolocado. Parece como se de súbito um estivesse noutro sítio. Depois, quando já se começam de distinguir os lindes do conhecido… ali anda A Boulhoeira, e Penalapa; por acolá fica Bande; ali o monte do Castro, e a Rousia, e o Larouco; lá em baixo anda a Límia, e… agora é quando um repara no buraco; e aí vem a surpresa que realmente desconcerta o curioso. O penedo não debalde se chama das Fatigas, quiçá pola sua feitura a jeito de carrelas ou fatigas de pão apoleiradas umas em riba das outras. O buraco está dentro do que semelha uma silhueta humana afundada na pedra do alto. A um supor, vem sendo uma marca como a que deixaria o corpo que se deitara na neve cos braços apegados, só que a marca está feita na pedra e portanto o que a lavrou fez algo mais que deitar­se na dura rocha; ora, também é mais pequena que os corpos da gente de agora. Seica diz­se que naquele lugar sacrificavam a gentes noutros tempos mais antigos, e que o buraco se fez para que por ele decorrera o sangue do que era ali cuinchado até que estinhava, e a lenda não diz mais nada. Por ter­se desviado da rodeira, os três homens amanhã terão que ir um nada de través, pois de passar polo Leão ninguém os há­de livrar. * * * Uma leda nova fez­se pública ontem nas páginas de  Nuestra Región; na secção   de   ecos   de   sociedade   informa­se­nos   de   que   o   senhor   aquele adinheirado, sim, esse que anda a querer fazer uma obra benéfica e que se vê obrigado   a   demorá­la   e   demorá­la,   pois   seica   topou   uma   moça   e   anda   o Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  71

homem mais feliz que um aparvado. Ele já fora casado mas agora, por razões que o jornal não entra a detalhar, morava só. Diz­se que até parece mais novo, para aí vinte anos, agora parece o pai da moça e não o avó, como antes. O que conta é que ele agora namorou e é feliz, e o demais são­che lérias. Desde o jornal mandam­lhes os parabéns a ele e a essa beleza que vai apegada a ele tal que uma lapa. Num   apartado   no   que   o   jornal   recolhe   notícias   de   há   cem   anos,   lê­se como este diário fazia público o anúncio da próxima corrida de lobos que se está a preparar lá nos montes do Zebreiro, que ficam na freguesia de Penacova, bem ao sul desta província, mesmo nos lindes do Couto Misto. Também se diz que os vizinhos de Penacova andam já a reparar em se as paredes estão prontas para a corrida; a eles o que lhes importa é que venha muita gente e liquidar a uma boa cheia de feras, que por ali não as precisam. A notícia estava escrita num castelhano ortopédico que não desmerece do que Nuestra Región usa na actualidade. * * * Aquela noite, quando se juntaram os homens da pia, olharam­se por um instante e mesmo semelhava que se quiseram botar a falar, mas não fizeram tal, e seguiram calados; calados como eles são. O Perfeuto pensou que quiçá teria   gostado   de   dizer   que   sentia   tê­los   desviado   do   caminho,   mas   as condenadas   das   palavras   não   só   não   saíam   senão   que   se   tornavam   para adentro e faziam­no rabear; faziam­no sentir torpe e parvo como um meninho, felizmente aquilo não durava muito. Cada vez que isto sucede ele põe­se da cor da   cereja   e   com   essa   pujança   colhe   o   pinho   e   arranca   sem   esperar   por ninguém. O Narciso quis dizer que aguardara, “…que te ajudamos” mas calou; ademais cumpriam­lhe as forças para dar andado. O Alcaide, sem imutar­se, meteu uma carreirinha, e dum brinco saltou ao carro, tomara­lhe gosto a ir sentado e que o levassem. Narciso apurou o passo e foi a correr ao seu posto e arrimando o seu esfolado ombreiro fez o que pôde. Numa ocasião em que se parou o carro, Narciso aproveitou para lhe meter um empurrão ao Alcaide e botá­lo   abaixo.   Pilhara­o   descuidado   e   fê­lo   cair   ao   chão   como   um   saco. Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  72

Ergueu­se pronto e resmungando colocou­se na roda que lhe tocava. Aquele estrume polo que agora cruzavam, que havia já tempo que teria agradecido que o gadanhote o roçara, transportou ao Perfeuto a outra noite passada em que ele e outro rapaz, andariam nos treze anos, lhe entraram a roubar os coelhos a uns vizinhos da aldeia do lado. O Perfeuto, afeito a ter­se que desfazer da fome, aprendera logo a dar co jeito de topar comida. E naquela corte dos Carrascos havia   mais   coelhos   que   os   que   puder   haver   hoje   na   melhor   granja.   Eles foram­se lá de noite quando os dous velhos dormiam e arramplaram co que puderam   dar   apanhado,   quatro   coelhos   polo   menos   bem   levaram.   Aqueles dous velhos, aos que a dentadura já não lhes defendia grande cousa, eram de pouca  ração,   e  os   coelhos   inçavam e  inçavam que não  havia  quem  os  dera controlado. Por conseguinte, quase lhes fizeram favor, porque aqueles velhos orgulhosos,   que   se   tinham   por   ricos,   não   queriam   vender   o   que   tanto   lhes sobrava. Aquela noite o Perfeutinho, como lhe chamava a sua avó, andou às apalpadelas,   às   escuras   pola   corte  adiante,   na   procura   daqueles  bichos   que fugiam   como   raios;   nas   mãos   levou   bem   picadelas   dos   tojos,   mas   valer   a pena… quem sabe, se calhar valeu­lhe. Agora enquanto cruza o Zebreiro e se pica nas canelas quase quer arrepender­se das mais das cousas que fez; mas já se sabe… ele era novo, e o juízo não lhe chegava… quem não ia desculpá­lo? Uma   vez   entre   ele   e   outro,   igual   era   o   mesmo   que   lhe  ajudou   no   dos coelhos, convenceram a uma velha que andava canda eles no monte co gado, de que eles tinham um remédio para curar as verrugas. A pobre da velhinha, que em inocente não tinha quem lhe ganhasse, disse que sim, que os deixava que   o   tentaram,   porque   estava   já   mui   farta   de   padecer   por   causa   daquelas verrugas que tanto lhe afeavam as mãos. Já até se oferecera ao São Bentinho. Um deles pegou na mulher para que parara enquanto o outro, trás queimar no lume um cacho duma polaina, lhe ia pingando o plástico derretido no coiro verruguento. Os berros que a mulherzinha meteu aboujaram até os penedos que os fizeram ressoar aqui e acolá, chegando até à aldeia, e diz­se que dês que ela  faltou,   anos   mais   tarde,   os   berros  se  volveram  a  escutar  alguma  vez.  Às vezes  o Perfeuto   sente­os   de  noite  na cama  e  acovilha­se  coas   mantas pola cabeça, mas os berros persistem e não se marcham até que se cansam. Porquê lhe   tardara   tanto   em   vir   a   ele   o   juízo?   Todas   as   lembranças   parecem

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desagradáveis,  e  ele  devece  por  agarrar­se a algo que seja mais prazenteiro. Como aquela vez que se emborcalhara com uma moça no lameiro.  Tudo   começara   como   um   jogo   de   rapazes,   andar   às   emborcalhinhas campo abaixo. Primeiro botava­se um e depois o outro e assim iam rodando até o fundo tendo tino de não bater coa cabeça numa pedra das do caminho. Que bem o estavam a passar, riam­se como tolinhos, e a subir arriba e aos rolos outra vez para abaixo.  À primeira ele aguardava a que ela chegara ao fundo para logo ele botar­se; mas pouco a pouco foi adiantando a sua saída até irem quase juntos. Tal foi  assim que agora iam quase apegados e os seus corpos alguma vez se roçavam; isto começou de o acender e numa das vezes pilhou à moça por baixo e ali mesmo a forçou sem atender as suas súplicas. A verdade é que a ele custava­lhe entender como se passara tudo, ele não tinha planos de botar­se assim à rapariga, ele teria quinze anos e experiência em como aturar certos   pulos,   pouca,   ou   nenhuma.   Ela   era   do   tempo   dele   mas   aquele   dia sentira­se avelhentada, como se alguém de súpeto lhe roubara a sua infância; roubara­lha e escondera­lha para sempre num sítio secreto; um sítio ao que ela já não daria jamais chegado, o sítio onde se guardam os sonhos, um sítio para o que ela tem já o caminho borrado. E desde agora em diante terá que ver mui bem com quem anda, e velar­se mais dos homens, forem desconhecidos ou não.  Quando  ele rematou aquele jogo,  ao que já só  ele jogava,  liscou de ali asinha e deixou­a só, deitada na erva à beira dos salgueiros. Este fugir a correr seguia sendo o modo  de  actuar do Perfeuto, liscar e não olhar para trás. Se aquela vez tivesse torcido a cabeça e mirado, teria visto como as bágoas caíam em fio polas meixelas da Ana, e talvez o sofrer dela reflectiria no dele, a modo de espelho que obriga a deixar que a luz fure pola menina do olho; e quiçá… Mas não, ele era teimoso naquele seu jeito de dar a volta e bulir asinha; nisso   guardava   parecido   co   jazer   familiar,   acovilhar   o   lixo   que   não   praz contemplar e desaparecer; e acordar num sítio novo, um sítio limpo. Onde um é um desconhecido e nada nem ninguém tem a habilidade de reflectir cousa nenhuma. Ai, que bem se respira o ar que não sai das ventas das conhecias! Mágoa   só   é  que  esta   ficção   não   dure,   e  sem   um  o  querer   sequer  logo   essa familiaridade  das  cousas  fá­lo  volver  a um ao seu,  volver ao rego, e não  há maneira… só fugir de novo  aprazará o ferro ardente nas carnes curtidas,  só

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fugir te leva a um lugar onde tu ainda pensas que podes descobrir um eu novo, o teu eu livre, o verdadeiro. Mas o Perfeuto não planeia as suas escapadelas, não, a ele apresentam­se­lhe como a única alternativa possível, e portanto sem uma   possibilidade   real   de   eleição.   Logo   então   para   que   lhe   iam   servir   os remorsos, se ele era inocente, vítima dum capricho do destino que o maneja? Não, o Perfeuto não mirava para trás, detrás só concebe sombras, sombras e mais sombras, e as vezes os berros da velhinha  à que queimaram a mão co plástico ardendo. Que bem se sentia ele quando se achegava à fria pedra da pia para escondê­la no escuro. Aquela pedra não lhe reflectia nada negro dele, e ali junto a ela  não sentia os berros que o faziam tapar­se pola cabeça no leito, entrementes a sua mulher, que é algo coitada, não diz nada quando sente que ele se converteu em novelo e quiçá até ande a tremer.  Ela cala. A Virtudes depreendeu a estar no seu sítio, a ouvir e engolir sem dizer nada. Ela sente algo de mágoa quando o vê assim, a boa mãe que leva dentro gostaria de acarinhá­lo e ao passo frear o desacougo que lhe causa o sofrimento alheio. Ela, como o resto das mulheres, foi bem ensinada para curar dos   demais…   com   mensagens,   que   como   agulhas,   se   lhe   foram   espetando desde pequeninha: “Cuida ali do teu irmão, que fica só… Limpa­lhe os mocos ao pequeno, que lhe chegam ao focinho… Faz­lhe a cama ao teu primo, que senão não dorme a gosto à noite… Lava­lhe o pano das mãos a teu tio, que é solteiro e não tem quem o governe… Cose­lhe as calças ao outro… Leva­lhe tantinho leite ali a tal ou qual… Vai por tantinha água fresca à fonte para que almoce teu pai”… E quando foste medrando a cousa não melhorou senão ao revés…   Ir   a  seitura,   e  andar  lá  brigando  como  eles,  ao limite  do  teu  poder, depois volves à pressa para lhe ajudar à tua mãe co jantar… levar tudo à mesa, e mais servi­los, e a retirá­lo todo, e esfregar bem a louça coa água fria que primeiro   hás   de   ir   procurar   à   fonte…   e   agora   corre   ao   poço   enquanto   eles botam a sesta aí na sombra da figueira; e tu ainda tens tempo de lhe pôr sabão a uma tina de roupa… e vamos, deluva bem as calças contra o lavadoiro de pedra para que amoleça… esfrega duro e bule asinha em rematar, não vês que já   chama   por   ti   tua   mãe…?   A   correr   para   as   leiras   que   a   seitura   já   volveu começar… e tu vais e sentes­te bem porque lhe adiantaste o trabalho a tua mãe que  cos  pequeninhos  não  dá feito… e toda a tarde andas na sega e à noite

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volves para a casa malhada como o que mais… e volta a ajudar coa ceia… e a acomodar os porcos e as vacas… e eia, a carrejar água e lenha para amanhã, que   ainda   não   há   butano   para   cozinhar…   e   ajuda   a   tua   mãe   a   deitar   os pequeninhos e se ainda te sobra tempo, que não ganas, repassa essas meias que tem comesto o calcanhar… E pouco a pouco o fitar que descobre onde é que se te precisa vai­se alargando e alargando até que te excede, abrange tal que   em   ti   não   cabe…   tanto,   que   sai   de   ti   e   se   mete   nos   demais…   e   eles, conhecedores disso, tirarão dos fios invisíveis e porão em marcha a marioneta em que te tens convertido, e ti afanarás­te em cuidar de tudo e de todos e dos que   estarão   por   vir…   E   vais­te   vendo   no   que   eles   te   devolvem,   no   que   te manifestam,… e ti queres­lhes agradar e até te pintas os beiços de encarnado… Pensas em todos e te esqueces sempre de alguém, de ti… não tens tempo de olhar­te no espelho  da  tua  alma e ver ao ser humano que também tu levas dentro, que sofre, que sente, o que trazes tão descuidado e que quer dizer que não,… ou que sim, ou o que lhe dê na gana… Mas a Virtudes tardará muito, demasiado, em contemplar­se neste espelho e segue sem poder ver nela nada, e cala, e segue velando na noite até que ele enfim se destapa e ronca forte. A Virtudes faz tudo o que for preciso com tal de não enraivar ao seu homem, tudo é pouco se com isso se pode evitar o peso da sua mão. Ele é muito forte, e não é que o faça por mal, que nem sequer se apercebe do sofrer dela. Ele não se apercebe de nada.  Que   novinhos   casaram!   Ela   cumprira   os   dezasseis,   e   ele   já   viera   de Alemanha, com aquelas cadeias de ouro que por aqui ninguém levava, alguns chamavam­lhes   chocalhos   polo   desconforme   do   tamanho,   e   ela   deixou­se engaiolar. E a cousa vai indo, e a Virtudes sempre alegre, e até sente que ele a ama, e quem sabe, talvez ele, ao seu jeito, sim que a ama e não o sabe sequer. Este   homem   sabe   tão   poucas   cousas,   e   às   vezes   as   que   sabe   nem   pode exprimi­las; se alguém lhe oferecera um canistrelo de palavras que ele pudesse ir escolhendo e gastando sem temor a ficar em branco. Mas que bem se sentia ali onde a pia, muda pedra centenária que como ele ouvia e calava. Aquelas duas   noites   que   lhes   levou   ir   das   Fatigas   ao   Leão   fizeram­se­lhe   a   ele   mui curtas,   quiçá   porque   o   pedaço   não   era   mui   grande,   ou   porque   os   outros ajudaram mais, ou porque… que sei eu! Ele como for, o Perfeuto encontrou­se

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no pé do penedo sem decatar­se do esforço que lhe custara. De aqui em diante, e até baixar a Currelo, por debaixo da Cabana, a pendente vai ir medrando e a cousa não lhe vai ser tão voluntária; mas isso não será agora, e que bem que a Estrelinha do Luzeiro aguardara a que chegaram até o Penedo do Leão para apagar­se. Agora sim, agora havia que marchar. O Perfeuto e mais o Alcaide marcharam primeiro.  Dom   Narciso,   deixando­se   levar   polo   cansaço   e   a   tentação   que   lhe oferecia o sítio, sentou no chão e estirou as costas magoadas contra o penedo. A frescura da pedra fez­lhe chegar um alivio lá mui adentro, depois desfechou os olhos e viu no céu uma luz cintilante que vinha direitinha ao alto do penedo no que ele estava recostado. Trás do sobressalto inicial Narciso pensou que se tratava   duma   estrela   que   antes   de   que   rematasse   a   noite   ainda   queria   que alguém a vira botar­se. Ora Dom Narciso, como tantas outras vezes, não podia estar mais enganado. Pois ainda que ele o ignorava, aquele penedo, o do Leão, era o  sítio  ao  que chegavam os  martelos que do Castelo da Rainha Loba  se lançavam. Os penedos da Rainha Loba custodiam a outra beira de Penacova, eles lá ergueitos. Se o Narciso tivesse querido, ou se sequer tivesse manifestado algo   de   interesse,   as   gentes   de   Penacova   poder­lhe­iam   ter   contado…   que agora já não se passava, mas que em tempos as gentes que moravam pola zona do Leste, como estavam os mais altos e de tudo se apercebiam primeiro que ninguém, quando viam que se achegava o inimigo, lançavam um martelo que ia dando voltas polo ar e atravessava todos estes vales até bater no altinho do Penedo do Leão, e deste jeito avisavam a todos os moradores do Zebreiro. As histórias não dizem nada de que os martelos se usassem para avisar do outro lado também. Semelha que os perigos vieram sempre por esse lado, o da Límia, o de…onde agora fica a Castela… e nunca polo da Raia. Como quer que fosse, o dos martelos caiu em desuso e agora já só sobe a gente lá aos penedos da Rainha Loba  para ver o  mundo desde o alto e para colher cacos  de olas de barro escachadas polas mãos dos nossos antepassados. Pouco a pouco estas gentes   que   habitavam   todas   e   cada   uma   destas   fragas   foram   reduzindo   os lugares   onde   assentavam,   e   de   sete   passaram   a   quatro,   e   logo   à   última juntaram­se todos no que hoje se chama Penacova. Prova disto são os nomes que ainda se usam para designar a estes montes. Há para aí três sítios distintos

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que recebem o nome de Cemitério, lá no meio do monte, e se ali cavas, saem os ossos dos que foram os nossos antepassados. Outro sítio chama­se a Igreja, e outro pertinho a Missa, e assim se poderia seguir até aborrecer a um santo. Ademais a estas cousas já ninguém lhes dá importância, e como ia um cura perder o seu santo tempo escutando essas parvadas? Narciso era um homem pragmático,   e  de   martelos,   por   aqueles   tempos,   só   entendia   quando   os   via debuxados ao lado duma fouce, ou se ligava que tiver que trabalhar com eles para fazer algum arranjo na casa. Não, a Dom Narciso chegava­lhe com pensar que  aquela fora uma estrela que chegara ao fim da sua viagem polo espaço celeste e que a ele lhe tocara ver a sua derradeira luz. Se Narciso tivesse sido um homem mais religioso, quiçá teria visto a silhueta dum santo que desde o céu   o   iluminava   para   lhe   ensinar   o   bom   caminho.   Ora   Dom   Narciso   era parente   dos   ateus,   e   portanto   um   romântico,   um   sonhador,   e   aquele   dia marchou contente.

* * * No   apartado   de   ecos   de   sociedade  conta­nos  Nuestra   Región,   como parece   que   o   senhor   adinheirado,   ao   que   não   estaria   mal   de   todo   que chamássemos Benigno, visto que outro nome não lhe temos e esse não parece casar mal coa sua pessoa, organizou uma viagem de noivos para ele e a sua amiguinha   polas   terras   do   Caribe…   “Olha   lá   como   gosta   de   passear   o peneireiro …” mais dum ainda há­de estourar pola inveja, como se o velho lhe tivesse   a   culpa.   Homem,   casar   diz­se   que   não   casaram   por   não   sei   que miudalho de uns papéis que ainda tem assinados coa sua mulher, Hortênsia. Polo que dizem, à rapariga tanto lhe tem casar como não… se vê que o dela é um amor cego, ou sabe Deus se não tem outras manhas para ir mungindo o velho. Ou porventura o Benigno, que parvo de tudo não há­de ser, pois mirai para aí como juntou riquezas onde outros juntaram fomes, não se acaba de fiar das intenções da mocinha e vai­lhe fazendo lérias e concessões mas sem passar polo altar, nem assentar no livro sequer, não for que depois ela se lhe marche, pois não seria a primeira vez que isso se passa. Afinal, cada um negoceia como Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  78

sabe, ou co que pode. E quem não te diz a ti as cousas que eles não cavilarão para os seus adentros? O jornal manifesta o seu contento pola felicidade do senhor Benigno e só lhe magoa que não casara, e a poder ser na Igreja. E é que já se sabe que Nuestra Región lhe tem muito ‘aquele’ ao fulano. A que ainda vai resultar que este caráfio de Benigno lhes unta a fraldiqueira? Tanta graxa que lhe dão…, já cheira! * * * Esta noite Dom Narciso chegou em primeiro e teve tempo para reviver a sensação prazenteira que lhe deixara a noite passada, nunca antes vira ele tão próxima, nem tão intensa a luz duma estrela. Dom Narciso, apesar das suas revelações interiores, ainda não tinha achado acoito nos seus adentros mais profundos,   mas   semelhava­se­lhe   a   ele   que   ultimamente   tinha   melhores habilidades   para   captar   a   boa   essência   das   cousas…   Quando   chegaram   os outros dous, a um tempo ainda que por caminhos separados, ele já estava de pé   direito   onde   a   pia   e   preparado.   O   Perfeuto   vinha   sério   tal   que   capador quando está coas mãos na massa. O Alcaide, como sempre, nem se sabe. Pola calada,   como   era   o   seu   costume,   ocuparam   os   seus   postos,   e   só   a   voz   de Narciso   rompeu   o   cerco   do   silêncio:   “Ânimo   companheiros,   que   seguimos costa abaixo!” O silêncio dos outros devolveu­lhe a Narciso as suas próprias palavras.   Puseram­se   ao   caminho,   a   costa   abaixo   era   algo   de   bimbarreira nalgumas partes e os dous de atrás em lugar de puxar tiravam polas pontas do sedenho,   e  assim  freavam  algo a carga, não  fosse esmagar ao de diante. Ali seguia   o   Perfeuto,   tratando   de   manter   a   calma   entrementes   se   lhe   vinha   o mundo em cima. Igualzinho que sentira quando chegara à Alemanha, sendo ele já rapazolo. Daquela, sofrera polo silêncio que amuralhavam todas aquelas palavras   em   língua   estranha.   Ele   estava   afeito   aos   falares   da   sua   língua conhecida, que quando lhe entrava nos miolos não maçava como sim o faziam aquelas   palavras   alemãs.   Por   sorte   aquela   estadia   durara   só   uns   anos,   não muitos, ora que a ele lhe pareceram bem longos. De ali foram a Barcelona e aquilo era outra cousa. Ele seguia sem entender as palavras, mas as melodias do catalão eram­che menos estranhas e não lhe faziam estourar a cabeça.  Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  79

O da Alemanha fora muito, ele ainda hoje recorda com terror quando a polícia   quase  deteve  ao  seu   pai porque o amo dera queixas dele. O seu pai trabalhava numa fábrica de não sei que cousa, ele com dizer­te que quando entravam à manhã pola porta, ainda que fosse no inverno, já se tinham que despir aí mesmo e a suor já lhes começava a cair, era­vos demais, saíam de ali derretidos, não me estranha que todos morreram novos. Ele como quer que fosse   o   dono   daqueles   fornos   deu   conta   do   Hermínio.   A   cousa   se   passou durante um fim­de­semana em que o Hermínio andava a trabalhar nos jardins da casa do seu chefe, como a cotio fazia. E vá casaria que tinha o amo daquela fábrica, só de terreno ao redor poder­se­iam sementar mais de três tegas de pão   se   o   lavrassem,   que   não   era   esse   o   proveito   que   lhe   tiravam.   Eles tinham­no todo coberto de erva, e com plantinhas agarradas ao chão perto da casa, e outras mais grandes por aqui e por acolá, e árvores de muitas classes. O pai do Perfeuto cuidava de toda aquela vida nos fins­de­semana: segava a erva e empacava­a com uma máquina pequeninha, apanhava as folhas e metia­as em   sacos   de   papel   que   tinham   folhinhas   debuxadas   por   fora,   decotava   as árvores quando lhe mandavam… e assim o Hermínio apanhava algo mais de paga. O mau veio quando apanhou mais do que lhe era dado. E não é que ele roubasse ao amo, polo menos na casa não o fazia, ainda que tivesse a falta, que a tinha, não  ia  ser  tão parvo.  Não, o que a ele o perdeu foi arrepanhar uns coelhinhos que por ali passeavam. Como ia o homem saber que aos da casa não lhes incomodava que lhe pasceram no seu campo, e lho deixassem todo lixoso… tanto como eles gostavam da limpeza? Até pensou que lhe faria favor se lhos caçava. E que maneira de lho pagar, botando­lhe a polícia, que quase lhe houve de custar  um desgosto! Foi assim deste jeito como aprendeu que aqueles coelhos, ainda que não fossem de ninguém, deviam ser respeitados. E ainda por sorte quando chegou a polícia estava ali um de Mogueimes, um tal Servando,   que   sabia   algo   de   alemão,   e   foi   o   que   lhe   valeu,   que   senão   co balbuciamento de espanhol dos polícias alemães e mais o do Hermínio, quem sabe a que se armaria. Pois claro, contudo e isso, o pai do Perfeuto ficou sem trabalho  e  uma  vez  mais encheram as malas co enxoval e meteram­se num autocarro   rumo   a   Barcelona.   Todos   tão   contentes,   ali   tão   sequer   poderiam caçar   coelhos.   Enquanto   empurrava   na   pia   o   Perfeuto   lembrou   os   muitos

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coelhos   que   ele   pilhara   naqueles   montes   de   Penacova   enquanto   teve   ali   a canteira.  Apanhou   quantos   pôde,  e assim  desquitou­se polos  que não  pôde papar  por   culpa   dos   alemães.   Sempre   a  culpa   há­de  ser  de  alguém;  grande como o demo e mais não tem quem a queira de gana. Por certo o Perfeuto não sentia nenhuma atracção por ela; e isso que ele fizera das dele, e tinha motivos para querê­la. No dos coelhos fez alguma que outra falcatrua. Por exemplo, ele não diferenciava entre tempo de caça ou de veda, para ele era tudo o mesmo. Ele andava por aqueles montes das fraldas da Rainha Loba e apanhava quanto coelhinho havia. Punha laços a moreias, ainda que estivesse proibido, para ele não o estava. Metia o furão nas toqueiras para que botara ao coelho para fora, e depois com um saco esperava­o na boca da entrada para que se metesse no fardel, e a golpes contra o penedo o matava. Cos laços pilhou teixugos, raposos, javalis,  e tudo  o  que cair neles; a ele tanto lhe tinha com tal de ver algo ali atrapado à manhã. E agora enquanto se acorda disso parece que sente como um amargor na gorja, não gosta de sentir isso e cospe, e o amargor converte­se em carraspeira que se estende por toda a goela e obriga­o a tossir, mas nada, aquilo   segue   ali.   Felizmente   a   Estrelinha   do   Luzeiro  resgatou­o   de   ter   que seguir a pensar. Chegaram quase a Currelo, mesmo à beira do caminho que une Penacova e Gomesende. Desde este ponto pode­se já adivinhar lá no pé do Laspedo a Fonte de Requeijo, aquele é o seu próximo destino. Não semelha longe já, ainda que eles ignoram o sítio, terão tempo avondo para chegarem antes de que se esgote o que lhes resta de lua. Marcharam, ora primeiro de partir,  o Perfeuto  tossiu e tossiu,  e quase trousa ali a figadeira. O Alcaide já colhera o caminho, e o Narciso demorou­se ali um nada, quedo, afincado na parede dum lameiro; olhou um pedaço para o céu mas vendo que não vinha nenhuma luz a o despedir marchou, marchou co seu andar devagar. * * * …Quando os dous agentes, logo de deixar à tia Maria coas suas verças, foram rua abaixo para o meio do lugar, toparam­se com um moço que levava um sacho no ombreiro. Sem saber se vem ou vai, eles achegaram­se a ele e, como sempre, foi o mais velho o que encetou a conversa. Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  81

– Bons dias rapaz, para onde vais? – Bons dias… vou pra aí! Polo tom do rapaz deduziram que a ele não lhe amargava a conversa. E estavam no certo, em particular quando a conversa era com gentes que vieram de fora da contorna; e eles semelhavam de muito mais acolá.  – Refiro­me a que se vais a trabalhar para algum lado. –  Homem, se lhe parece o sacho levo­o assim de atavio no ombreiro… que pergunta…! E ademais, quem o quer saber? –  Nós vimos de Ourense e andamos tratando de esclarecer um assunto relacionado com uma pia que houve noutrora neste lugar… O rapaz sorriu como pensando “olha os chalados estes”, afincou o sacho no chão enquanto espreitava o que os outros falavam, depois disse: –  Olhem que se  se vão  fiar do que dizem que houve em tempos neste lugar, vão vocês arranjados…! vão, ho, digo­lho eu! –  Homem,   não   digo   eu   que   vá   crer   o   que   possam   dizer   as   histórias populares, mas o da pia não é conto nenhum, que para isso estão os papéis que registram o feito. –  Os papéis? Pois vá, como se os papéis soubessem o que vai neles. Se vamos a isso também logo há que crer que o Senhor Santiago andou montado no seu cavalo polos penedos da Rainha Loba adiante matando mouros. – Homem…! Não me irás tu comparar uma lenda, ainda que eu disto que dizes nunca ouvi nada, com um feito histórico constatável. – Eu não lhe sei mui bem de feitos constatáveis, mas se quer provas suba você ao Castelo da Rainha Loba e veja cos seus próprios olhos as marcas das pegadas do cavalo polas rochas arriba. – Homem! Não me quererás tu dizer que crês que o cavalo pôde deixar as pegadas marcadas na rocha? – Mas… por quem me toma? Como lhe vou eu dizer isso, nem que fosse um parvo!  Eu  não creio  nada de nada, se não me engano são  vocês  os que andam a indagar sobre alguma dessas trapalhadas. O agente que levava a carga daquela conversa começava a mostrar acenos de   impaciência.   Não   podia   ser,   uma   vez   mais   estava   indo   a   cousa   rumo   a nenhures e àquelas horas da manhã já pouca gente, quem não andara no seu

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labor, poderiam topar. Aquele rapaz parecia não devecer por marchar a onde é que fosse, e mesmo semelhava que gostava daquela visita dos forasteiros. Ele sempre  ali   enterrado   na   aldeia   cos   de  sempre,   tanto   quanto   ele   gostava   da gente   que   souber   falar   doutros   mundos,…   mas   estes   dous   pareciam   meio parvos, mira que andar interessando­se por essas cousas do passado!  –  Mira   rapaz,   tu   és   novo   e   não   aprendeste   ainda   a   ver   com   clareza   a diferença que há entre as lendas propriamente ditas e os feitos históricos. – Pois porquê não mo explica você, que parece estar bem informado? –  Mira,   uma   lenda   é   um   dito   popular   que   a   gente   repete   e   repete   de geração   em   geração,   mas   sem   que   exista   nada   que   demostre   que   isso   se passara de verdade, entendes…? – Percebo. – …E um feito histórico é uma cousa que aconteceu, talvez há também muitos anos, da que temos uma prova irrefutável que demostra que se passou de verdade; compreendes? Vês agora a diferença? – Dou­me conta, mas não sei se colhi bem a diferença. Vejamos: segundo você, ante um feito que ocorreu, passar o tempo que passar desde então, se o que  assim o viu ocorrer o escreveu num papel, é que a cousa foi certa e se passou de verdade; ora, se o que fez foi gravá­lo numa pedra então é que não foi certo, e pode tê­lo inventado; não sim? – Pois vá que tens tu uma maneira estranha de misturar as cousas. Mira, não tem nada que ver uma cousa coa outra; podes crer­me porque é assim, digo­cho eu. – Eu poderia crê­lo, mas só porque você o diz, que parece que algo sabe, e tão   sequer   não   é   de   por   aqui;   mas   se   tanto   sabe,   porquê   lhe   preocupam parvalhadas sobre uma pia da que por certo eu não ouvi falar na minha vida, e bem pudesse ser uma lenda como a do Senhor Santiago? Quem lhe diz a você que o da pia não é inventado? Porque a mim, se lhe hei­de dizer a verdade, não me lembra nada. Naquele momento o detective fez um cálculo rápido e decatou­se de que sem dúvida a pia fora sacada da igreja de Penacova anos antes de nascer aquele rapaz. E que seguramente ele já recebera as águas baptismais na nova. Que era uma pia distinta; mas desta nova cunca, com base de ferros negros e rodinhas,

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que devem de ser de adorno pois no chão de lousas não roucham, não sabia muito o detective, já que jamais a tinha visto; quando eles olharam desde o átrio para adentro polas vidraças não a viram; claro, co pequena e pouca cousa que é, não é milagre. O que sim imaginaram, e com razão, é que ali haveria, em vez da original, uma pia substituta, por ruim que puder ser. Porque tampouco era o caso que por causa  da avarenta natureza dos abades se fosse deixar à gentinha   sem   baptizar   ou   sem   poder   molhar   os   dedos   para   fazer   o por­la­señal. Mas o detective não sabia como era esta substituta; não sabia da sua cor gris e esbrancujada, como parida polo cimento e mais a areia, o que amiúde faz parecer que a água se enlourara, tingindo­se duma cor arruelada, e daquela à gente dá­lhe reparo meter ali a mão, por mui bendita que for… Para a água como a pedra não há, Deus sabe que fazem um matrimónio perfeito, mas aqui veio um cura e divorciou­as. Mas este moço novo que nem sequer recebera as águas  baptismais  na pia de pedra,  não  sabia nada do  assunto  e tampouco se importava. É como se a água suja que lhe botaram pola cabeça abaixo o dia do seu baptizado lhe enturvara o sentido que lhe teria de vir. Ele já fora ensinado a valorar cousas que valham de verdade. Ele sabe mui bem o que quer e até diz­se que já sabe onde procurá­lo. Qualquer dia colhe a mala e não volve até que o possa fazer como é devido… com um bom carro, bem equipado com   aparelho   musical,   roupas   de   marca…   e   o   que   mandar   a   moda   no momento. Ora que ele já sabe onde ir procurar tudo isso. Tem um irmão em Barcelona, que leva lá já bem anos, e se quadra vai parar onde ele; ou senão vai para Canárias, que seica se ganha bem. Este moço novo só aguarda o momento de partir, mas a paciência já não lhe aguardou, essa foi­se­lhe há anos…  A gente daqui vê como os seus filhos, passada a primeira infância, lhe são roubados sem poderem eles fazer nada, nada mais que deixá­los marchar cos seus amos e calar. Dentro de pouco, este colherá os seus sonhos e quiçá saia voando. Cambiará o sacho pola pá e a erva polo cimento, e pouco a pouco irá conquistando essas cousinhas que agora tanto anseia possuir. E quiçá algum dia   regresse   à   sua   terra,   e   construirá   uma   casa.   Levantará   mui   asinha   as paredes com tijolos e cimento, esquecendo­se da pedra já para sempre… Mas para isto faltam anos e ele agora tem de ir sachar nas batatas que o que é de Deus não o há­de levar o Demo. 

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– Tu és mui novo, rapaz, e ainda che falta muito por aprender, mas a nós já se nos fez tarde e temos que pensar em irmo­nos indo. Ademais, tu não vais a algures com esse sacho? – A que algures hei­de ir, ó? A nenhures é a onde se pode ir aqui, que isto não vale nada. A olhada do rapaz parecia caída no chão, perto donde afincara o sacho desde o começo da conversa; mas ele não olhava ao chão, nem tão sequer o via, ele mirava longe, mui longe, tão longe que a sua olhada se perdia. Os dous agentes despediram­se dele e marcharam de volta para o seu carro. Ambos os homens  foram   andando   devagar   e   calados.   Calados   mas  dizendo   as   cousas coas caras para os que com eles se cruzaram. Ninguém se cruzou. O mais velho levava   um   gesto   que   era   a   mistura   da   sua   contrariedade   e   a   mágoa;   algo ambígua lhe resultaria a quem lha vira. Na cara do mais novo, Riba, que poucos mais anos tinha que o rapaz que acabavam de deixar, podia­se ver a dor do que sente  o   sofrer   dum   irmão   e   não   lhe  pode  valer;   também  há   nessa   cara   um assomo   de   esperança   como   emanado   dum   conhecimento   prévio,   do conhecimento   do   que  sabe  que  as  cousas   podem   ser  diferentes…   Riba  não perde   a   esperança   para   esta   terra,   que   tão   bonita,   ainda   que   estranha,   lhe parece.  O rapaz colhera o sacho e com ele ao ombreiro marchara para… por aí. * * * Narciso seguia sendo o primeiro em chegar cada noite onde a pia, não se sabe se polo desacougo que lhe trouxera a primavera ou porque anda o homem buscando   novas   luzes   ao   amparo   da   escuridão   e   a   soidade.   Ele   quando   os outros chegam, no meio da noite negra, o Narciso já leva ali um bom bocado. Estas últimas jornadas têm sido algo monótonas; de quitado esse tossir que se lhe pôs a Perfeuto na gorja, e que parece não ter pressa de se lhe ir, tudo segue com   normalidade.   Os   vales   que   andam   a   atravessar   mostram,   apesar   da escuridão  que obriga  a  adivinhar,  uma beleza que reborda por onde quer… tudo florido e coberto duma erva que dá cem nomes à cor verde. Mágoa destas touças de Penacereija que se tornaram de cor preta; quando os homens saíram Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  85

para fora das carvalheiras olharam­se as mãos riscadas polos tições ardidos, e vendo  o  cómicos   que   estavam  quase  lhes  houvera  de  dar  o  riso  se  não  lho congelara na face o saber que esses riscos eram o sinal da morte que o lume segara  havia  poucas   semanas.   Quem  seria  o  bruto que  foi  capaz de  atentar contra tanta beleza, trocando­a em luto poeirento e cinza.  Dom Narciso odiava esta atitude arrasadora que tinham alguns homens; ele estava bem certo de que eram homens os que prendiam o lume. Ele não dava   imaginado,   por   mais   que   o   tentasse,   a   uma   mulher   causando   tanta destruição. Para ele estes seres, jungidos mais rente à terra, vinculados a ela pola   sua   própria   realidade   cíclica,   possuíam   uma   maior   capacidade   para suportar pacientemente as incomodidades e a lentidão que impõe a natureza e, por   certo,   não   as   via   capazes   de   semelhante   violência.   E   quem   sabe? Porventura não lhe falta razão; mas para que serve esta análise, seja certa ou falsa?  O   Perfeuto   também   anda   a   pensar   por   culpa   dos   tições,   ora,   as   suas cavilações são bem outras. E como não o hão­de ser se aquela vez quase perde o carro por causa do lume…? E que mais tem quem o plantara! Ele precisava despejar os arredores daqueles penedos para poder rachar a pedra. O lume à pedra não lhe faz mal, pois logo quem vai andar levando trabalho a cortar nas carvalheiras e roçar o monte baixo que tanto abunda. Um fósforo faz o trabalho da limpa e depois ele racha a pedra. Sim, o Perfeuto usava com frequência o método da mecha e sempre lhe tinha dado bons resultados até aquele dia no que quase lhe custou um desgosto. Ele, como sempre, punha o lume quando tinha a canteira parada e assim ninguém lhe podia botar as culpas ainda que soubessem bem que fora ele … “Este lume foi prendido o domingo quando nós não   estávamos   aqui   e   por   pouco   nos   arde   o   compressor,   que   não   é   o mesmo…” Alguma vez incluso deixavam que lhes ardesse alguma ferramenta que já não servia ou algum outro ferrancho para dissimular. E claro, a situação ia­se   pondo   cada   vez   mais   negra,   mas   ninguém   vira   nunca   cos   seus   olhos próprios ao Perfeuto co fósforo na rascadeira. Ora, que aquele dia que o lume se larejara tão asinha, houve de o assar como uma sardinha dentro da lata. Ele, para   que   ninguém   o   pudesse   olhar   desde   a   aldeia,   escondia   o   automóvel arrimando­o bem dentro da rodeira entre a folhatada, e depois subia monte

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arriba para soltar a chispa. Depois baixava a escape e tinha tempo e tempo para marchar   pola   pista   que   sobe   para   Chão­de­Lamas   sem   que   ninguém   lhe pudesse seguir o rastro. Sempre lhe tinha saído o plano à perfeição, mas aquela vez   ao   raio   do   fotingo   deu­se­lhe   por   não   querer   acender,   e   ele   volta   que dá­lhe,  e  o ar  que ia achegando o bruar da labareda. Ele começa de se pôr nervoso e olha lá para arriba e vê que as chamas galopam mui à pressa; e ainda que  andam  retiradas  já  se  começam de sentir os  estalos  da madeira que se retorce ao ser abrasada. Também se podem já ver pássaros que vão daqui para acolá, magoados por não poder levar nos seus voares as crias pequerrechas do ninho…   E   ele   ali   atrapado   na   folhagem   enquanto   o   inferno   anda   a   baixar. Blasfema como ninguém podia fazê­lo, da sua boca saem palavras que mesmo se poderia dizer que botam lume, mas de nada lhe servem. Não, ele não podia deixar   que   lhe   ardera   assim   o   auto   e   ainda   por   riba   que   se   riram   e   o descobriram; portanto, como um animal rabioso empurrou e empurrou, e coa ajuda   do   terreno   deu   separado   o   veículo   dos   carvalhetes   que   estavam destinados às chamas; depois, já no caminho de terra batida, como havia algo de pendente, pôde arrancar o motor sem ter de usar a bateria, que parecia ser a fonte do problema. O Perfeuto liscou dali como um foguete e diz­se que aquela vez aprendeu a sua lição e que nunca mais deixou o carro perto do lume. Ora bem, do lume seguiu fazendo uso, ele não vê nada mau em beneficiar­se duma técnica   de   limpa   que   não   lhe   custa   dinheiro   nem   lhe   dá   muito   trabalho. Mesmo agora, se não fosse porque não vai só, e ademais não está mui seguro de rumo a onde teria que empontar as chamas, já teria usado o seu isqueiro por estes montes. Enquanto anda ele com estas incendiárias lembranças, trata de se acordar de qual foi a última vez que pôs lume. Dês que fechou a canteira já não precisa usar este método para abrir­se caminho, e disto há já uns aninhos, polo que não dá encontrado o que busca na sua saturada cabeça. Com esses pensamentos   traz   o   homem   os   miolos   quentes   e   não   se   apercebe   de   que andam   já   pola   Veiga   fora;   atrás,   pola   esquerda,   ficou   Guriz,   e   já   estão   no pedaço   do   cabo   para   chegar   à   Fonte   de   Requeijo.   Quando   quis   acordar,   já estava ali ao pé mesmo do pipel de pedra.  O primeiro foi apagar a sede que levava e mais ver, enviando os golos com força, se isso que lhe fazia tossir se lhe tirava duma vez da gorja; ora por mais

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que bebeu o pruício seguiu no seu sítio. Os outros dous homens molharam também  um   nada   e   cumprindo   o  mandato   deram   água   à  fartura   à   sedenta pedra. Que bem sabia aquela água! E com aquele deleite cristalino ali ficaram quedos co seu silêncio. Dom Narciso espreitava o som da água que bulia rego abaixo para ir ao encontro do regueiro que a há­de ir ajudando na sua travessia para o mar. O Perfeuto  seguia  co  seu pensamento posto nos lumes que ele plantara,   não   acertava   com   adivinhar   qual   fora   o   último   monte   que   fizera desaparecer, ou transformar de verde a preto. Cos dedos ia o homem contando lumes,   como   seguindo   uma   ordem   cronológica   guiada   pola   sua   pobre memória,   mas   nada,   acabaram­se­lhe   os   dedos   e   não   dá   encadilhado   à resposta   que   busca.   Enfastiado   polo   desacougo   que   lhe   causava   não   poder lembrar,  marchou   sem  despedir­se.  Ninguém  se surpreendeu. O Alcaide fez outro   tanto.   Dom   Narciso   ficou   só   e   em   silêncio   por   uns   instantes,   depois marchou a modinho e olhando para o céu. * * * No   apartado   de   notícias   de   há   cem   anos,   recolhe­se   hoje   em  Nuestra Región o da corrida de lobos que se mencionara com anterioridade e que teve lugar o sábado e por certo seica foi um êxito completo. Mais de quinze lobos caíram no buraco, polo que a festa foi a rachar.  Depois de encarar as animálias para o fojo e obrigá­las a saltar para que fossem topar a morte lá no fundo do buraco, toda a gente baixou para a aldeia e a troula continuou até bem entrada a noite. Ora, como cabia esperar, sobre isto Nuestra Región não oferecia informação, nem comentário. A gente, tanto a da aldeia, quanto a que viera de fora, baixou para o lugar a montar a foliada. A maior parte do tempo passaram­na na corte onde guarda o tio Manuel o boi. É um boi manso, e passa todo o tempo deitado lá num recanto remoendo ou comendo na erva que lhe sobrou no presel; de vez em quando olha para aos bailarins e segue no seu pacífico jazer. A gente dançou ao ritmo dos mesmos instrumentos que horas antes usaram para escorrentar as feras. Toda a gente gozou   e   se   divertiu   quanto   quis.   Houve   alguma   que   levou   a   roca   para dissimular a sua presença na corte, mas ali ninguém fiou. Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  88

Capítulo IV

A FONTE DE REQUEIJO Do meio e meio da terra vem nascer mesmo no pé do Laspedo. Lá como pode, fura entre as lajas da dura rocha e cai abaixo sobre outra pedra lisa que a modo de leito a recolhe e a agarima, para mui passeninhamente deixar sair a sobrante pola pipela a caminho do rio. Porque se chama Requeijo ninguém o sabe, mas não seria de estranhar que tivesse algo que ver coa esquisitice desta água. Nesta fonte, por estar ali na beira mesmo da Veiga, que se enche sempre de gado, toda a gente molha um nada à hora da merenda. Lá pola direita, um pouco mais abaixo, fica a Pedrosa, que é um monte baixo mui pelado e coberto todo de pedras. Mas não são estes uns pedregulhos escangalhados por ali onde quer; não, na maioria dos sítios as pedras topam­se juntas e amoreadas, como acovilhando algo. Ninguém sabe o que ali há, nem o que ali se passou, se é que é certo que se passara. Só se diz que há muito tempo se enterrara ali a um general.   O   certo   é   que   haverá   por   aí   uns   cinquenta   anos   um   forasteiro adinheirado que viera de não se sabe onde encarregou ali umas escavações na procura   de   algo.   Cavaram   todos   os   homens   de   Penacova,   e   assim   foram pagados, mas nada ali não saiu, e aquilo segue tudo empedrado. Os três homens da pia reconheciam, cada um para os seus adentros e pola calada, que aquela água tinha algo que lhe dava tal suavidade no paladar como nunca antes tiveram experimentado. Como o tempo lhes chegava – a lua nova ainda   não   se   encetara   –   aquela   noite   parecia   que   não   tinham   pressa,   e enquanto bebiam e davam água à pia repousaram à beira da fonte, coas costas afincadas   na   peneda   que   há   em   frente   do   manancial.   Depois   o   Perfeuto, quando teve o seu corpo bem saciado e com reservas para a noite, colheu o pinho e pôs­se ao caminho sem consultar a ninguém, como é o seu costume; os outros dous seguiram­no e pouco a pouco tudo volveu à rotina de sempre. Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  89

Vão agora Lama abaixo e cruzando para onde fica o Penedo Esmigalhado; eles não   hão­de   subir   tão   arriba,   pois   a   rodeira   vai   por   aqui   mais   à   beira   do regueiro.   O   Perfeuto   hoje   não   parece   que   ande   lá   o   homem   com   tantas pujanças   como   as  que   o   outro   dia   lhe   fizeram   sair   da   rodeira   e   ir   bater   às Fatigas. Não, hoje vai ir polo caminho traçado sem afastar­se mais que umas polegadas ali onde lhe faça falta para evitar que a roda vá ao buraco quando o houver.   Parece   que   a   tosse   lhe   foi   a   menos,   mas   não   se   lhe   tirou completamente  enquanto  ele  segue  às  voltas,   também  hoje,  co  assunto  dos incêndios, e segue sem encontrar qual foi a sua última queima. De seguro que foi nos montes de Penacova.  Ele   montara   aquela   canteira   com   tantas   ilusões…   co   dinheiro   que ganhara   na   Alemanha   mercou   as   máquinas   que   precisava   para   rebentar   os penedos e um camião para carregar depois a pedra. Tudo começara bem. A pedra  saía­lhe quase  debalde  e as ganâncias engordavam como as vacas do moinheiro no inverno. Em menos dum ano já tinha comprado outro camião e pagava a quem o guiava. Nos salários também pouco se lhe ia, trazia homens do lado de lá da Raia sem papéis e nem seguro lhes pagava. Pouco a pouco, coa força destes homens mal pagados, a pedra ia­se transformando em dinheiro que  se  amoreava nas mãos  do  Perfeuto.  Quando  se acaba um penedo,  pois venha   lume   e   a   arrancar­lhe   a   alma   ao   monte,   que   aqui   há   muito   que arramplar. Os vizinhos de Penacova, ainda que fartos polos estouros que não param   em   todo   o   dia   e   que   salpicam   a   tranquilidade   destas   terras   de sobressaltos inecessários, fizeram o que a cotio sabem fazer quando se trata de defender­se contra o mal que vem de fora… nada. Não fizeram nada. Um por ti e   outro  por   mim  foram   passando   a  cousa   e teve de  ser  o   destino  o  que   se encarregara   do   Perfeuto.   E   olha   que   lhe   dava   reganho   ao   Perfeuto   ter   que lembrar o mal que rematou o que tão bem principiara.  Durante as noites que lhe levou chegar ao seguinte ponto no seu destino ele   tentou   com   todas   as   suas   forças   evitar   que   lhe   viessem   à   cabeça   as lembranças dos acontecimentos que o levaram a ter de vender os camiões e mais as máquinas para dar pago aos advogados. Mas se por algo se caracteriza o Perfeuto é por saber arrumar assuntos e deixá­los apodrecer ao seu antojo até que rebentam e então não há remédio; mas, por enquanto, a cousa vai indo

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mais ou menos pola calada e ele tenta levar a sua mente em branco, e vá se isso lhe ajuda a manter­se na rodeira. Dom Narciso agradece aquela tranquilidade que até lhe permite de quando em vez levantar os olhos do húmido carroucho e  voar  montado   no  alto   dos  seus  sonhos  na procura  das  estrelas.  Penacova quase sempre tem um céu limpo de nuvens nas noites da primavera, sobretudo quando entra o mês do São João. Desde onde andam hoje eles às voltas, as estrelas poder­se­iam contar por milheiros e nunca se daria rematado. Pouco mais se vê que o amplo espaço celeste que os cobre a modo de manto negro e prateado, e depois o grande pano vai caindo e vai morrendo lá na borda onde se junta cos montes que debuxam ondulado o seu remate. Dom Narciso vai ledo   no   seu   andar,   que   contrasta   coa   apatia   do   Alcaide   e   coa   teimosia   do Racha­Pedras.   Narciso   sabe   que   ainda   lhe   faltam   por   passar   jornadas   de sofrimento, porque ainda não sente que chegasse a onde a sua intuição lhe diz que deveria chegar… Mas que mais pode haver na escuridão do não lembrado? Ele agora prefere deixar que o rodeiro rouche e o vá empuxando aonde quer que ele vá. O Perfeuto também teria preferido seguir na mesma de não pensar; mas olha que lhe estava a custar, ele tinha que fazer um verdadeiro esforço para não ver­se assaltado polas imagens que fotografaram, mui ao seu pesar, os seus derradeiros dias na canteira de Penacova. Por vezes era tal o esforço que até   se   lhe   ouvia   como   falava   só;   ia   ele   ensimesmado   numa   discussão   com alguém, que aos outros se figurava invisível, com quem desatava a sua fúria soltando mais blasfémias que palavras. Esta conversa levava­a ele num falar mui baixinho,  e os outros dous compreendiam que não se estava a dirigir a eles. E se assim fosse preferiam fazer o mouco e, como a Virtudes, ouvir e calar. Dês que começaram aqueles diálogos, que haveria que denominar monólogos de palavrões, parece que o Perfeuto guiava algo mais devagar o carro; como se aquele falar lhe roubasse a energia que a cotio o fazia ir às carreiras e sair­se do caminho. Os de trás seguiram fazendo como que não ouviam nada e às vezes, para dissimular ainda melhor, assobiavam um chisco.  Ao   remate   da   noite   deixaram   a   pia,   ainda   com   muita   água,   perto   do Castelo Velho, que fica na metade do caminho entre Requeijo e o pé do Castelo da   Rainha   Loba,   onde   lhes   aguarda   a   quinta   fonte.   No   Castelo   Velho encontram­se   também   cachos   de   olas   partidas   se   se   rabunhar   um   nada   na

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terra, que perto dos penedos mesmo parece cinza, ligeira e duma cor como griseira. Mas os penedos deste Castelo Velho não retêm lenda nem nada que os faça ressaltar, em contraste cos seus vizinhos da direita, os penedos da Rainha Loba;   estes   sim   que   sabem   como   atrair   os   mortais,   erguendo­se   esbeltos   e desafiantes.   São   prova   palpável   da   divindade   para   alguns   habitantes   deste lugar que insistem, ante o materialismo que os abafa – a eles e ao seu modo de viver minimalista – em que… sim, eles bem sabem que o homem pode fazer muitas cousas… casas, carros, aviões… mas os penedos da Rainha Loba! Esses não os fez homem nenhum, esses só uma Mão Poderosa os pôde fazer. Assim é como a Conceição se refere a Quem os criou: “a Mão Poderosa”, que é quem de tocar cada uma das cousas e milagres que acontecem no mundo natural, e no sobrenatural.   Ela   é  a  que  faz  andar  o mundo…  Mão  Poderosa, se te tivesse nomeado noutro sítio farias quiçá da Conceição uma filósofa, mas aqui, nesta beira  da  Raia,  passarás  sem  influência alguma no  saber dos mortais, desses mesmos que tanto conhecimento derramam pola nossa terra adiante. Os ecos dum   Deus   alheio   aboujam   já   para   sempre   o   espírito   do   Nosso   próprio,   e connosco morrerá, e connosco morreremos,  e ninguém nunca saberá quem somos. Nada mais duro e doloroso que a existência que sabe do seu não existir vindeiro.  Ele,   como   queira   que   for,   estes   penedos   têm   um   encanto   que   não desaparece   co   andar   dos   tempos.   Mas   os   três   viageiros   das   estrelas   pouco sabem ainda e para ali se dirigem ignorando a onde chegam. Agora, deixando tudo   escondido,   foram­se   ao   encontro   da   luz   do   dia.   Hoje   Dom   Narciso marchou canda os outros. * * * Nuestra Región  anuncia a apresentação dum novo livro do poeta Budial, que terá lugar na livraria do jornal. O livro é um conjunto de poemas que o autor criou ao redor do tema da primavera…. A mais de um, o tema fará­lhe lembrar aquelas tediosas redacções que na escola se obrigava a escrever aos meninhos e meninhas cada ano…  “La primavera es bonita; a mi me gusta la primavera,   las   flores   nacen   y   los   pajaritos   cantan…,  senhorita  já   rematei   a Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  92

redacción…”  E entrementes os montes rebentavam pola pujança que a terra lhe   fornece   desde   dentro,   e   se   tapavam   coas   flores,   e   ainda   assim   eram ignorados…   e   os   meninhos   e  as   meninhas   não   tinham   jeito   de   descobrir   a primavera. Vai neles e não a conhecem. Quem podia encontrar o carreiro entre aquelas estéreis palavras da redacção e o verdadeiro milagre de cores que de súpeto cobre a terra…? Os poemas de Budial fazem uma reflexão sobre essa destruição   do   mundo   que   está   arredor   de   nós,   e   que   em   lugar   de   ser interiorizado,   criando   harmonia   interior,   é   bloqueado,   tornado   para   fora, ignorado, instalando­se nos nossos miolos um olho de vidro que dirige o olhar a esse mundo… Um olhar que há­de o não ver, que há­de o negar, para o odiar, para   desejar   eliminá­lo,   para   lhe   deitar   lixo,…   e   para   quiçá   algum   dia queimá­lo… Escusado é dizer que  Nuestra Región  não tem suspeita qualquer sobre as inquedanças do poeta, mas quem se atreve de decifrar um poema, ainda que o lera. Ele escreve… Sem esperanças de ver­te te miro, tojo amarelo De ti aqui não dizem nada, estranha uzeira avinhada Fora gestas e carpaços, dos jardins assenhorados. Primavera estéril dos livros aqui exportados… carregados coas primaveras grises de outros lares. O poema segue e segue e se estende por mais de duas ou três páginas das que Nuestra Región não nos fala. * * * Com aquele caminhar pausado foram­se achegando estes peregrinos da noite   aos  refaixos   da   Rainha   Loba.  De  súpeto  o Perfeuto,  que  vai  à cabeça, sentiu água nos sapatos e, olhando para onde o tinham levado os pés, viu­se rodeado de pedras rachadas que resplandeciam como fantasmas no meio da escuridão. Perfeuto tirou co pinho e botou a correr monte arriba; ia levado do demo. Os outros dous seguiram­lhe os passos e assim chegaram ao alto dos penedos   da   Rainha   Loba.   Na   fugida   para   arriba   o   Perfeuto   ia   voando,   aos Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  93

poucos botava as mãos à cabeça e a apertava tapando os ouvidos, mas sem diminuir o passo. Os companheiros correram quanto puderam, evitando tojos, carvalhos   e   carpaços,   mas   não   lhe   deram   alcance   até   chegarem   ao   alto. Chegaram   boqueando,   Perfeuto   estava   acochado   no   chão   na   junta   de  dous penedos numa pequena fárria, chegara arriba desfeito, não parecia o mesmo homem, e quiçá não o fosse. Os companheiros quiseram perguntar polo que lhe   passava,   mas   não   o   fizeram,   algo   lho   impediu,   e   Perfeuto   com   toda   a certeza tampouco lhes teria contado do que escapava, ele apenas conseguia ficar ali no chão  tremendo  como um junco.  Apesar do muito que correu  as lembranças  deram­lhe  alcance.  Foi  assim  como  descobriu  que  os  berros  da velhinha   das   mãos   queimadas   se   tornavam   muito   mais   terroríficos   ao apresentarem­se acompanhados doutros berros.  Berros   de   homens.   Homens   que   para   ele   trabalhavam   de   sol   a   sol. Homens   da   Raia,   dum   lado   e  mais   do   outro.   Homens  que   arriscam  a   vida. Homens mui mal pagados. Homens sem seguro, e sem as condições mínimas de segurança no trabalho. Homens sem horário. Homens sem papéis, e sem direito   a   reclamar   nada.   Homens   sem   voz.   Homens   que   trabalhavam   até   o esgotamento. Homens aos que um dia se lhes acabaram os fôlegos antes que a tarefa   e   não   deram   corrido   a   tempo   para   escaparem   quando   já   prendera   a mecha… Um deles caiu morto no chão; era o mais velho, pai de família. E aí começaram os pesadelos do Perfeuto. Juízo trás juízo para evitar o cárcere. As ganâncias derretidas no processo. Agora não tinha nada mais que os berros dos que  foram  sacudidos  pola  pólvora enraivada,  que obrigam a ser lembrados. Tudo perdido. Ele sente­se o mais desgraçado de todos. Mas ele não sabe que do outro lado da Raia, a poucos quilómetros de Penacova, há vidas arruinadas, viúva   sem   homem   na   casa   e   com   pequenos   por   criar…   filhos   para   sacar adiante, o mais velho de doze anos e o mais pequeno no colo, foi tudo o que lhe deixou àquela mulher o estourido da canteira.  O   Perfeuto   comprimiu   quanto   pôde   as   suas   lembranças,   à   força   de premer na cabeça, mas os efeitos foram os mesmos. Via­se o homem acabado. E   os   companheiros   pola   mágoa   que   lhes   dava   aguardaram   ali   até   que   ele ordenou de baixar. Botaram um bom pedaço lá no alto. Naquela trapa da noite e   ao   silêncio,   a   Dom   Narciso   espertou­lhe   a   imaginação   e   pareceu­lhe   ver

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como se o penedo que ficava enfrente, pola parte de detrás da Rainha Loba, se cobrira com uma melena de cabelo ruivo, algo ondulado. Pronto desbotou tal ideia,   pois   aquilo   não   tinha   jeito.   Não   podia   ser   tal.   Pensou   que   a   falta   de dormir de noite já lhe estava afectando, e ele era dado às visões, polo que não acreditando   naquilo,   pôs­se   a   olhar   para   outro   lado.   Quando   o   Alcaide   lhe perguntou se ele não vira nada… “e logo que ia ver?” – Narciso dissimulou. “Nada,   nada”   –   o   Alcaide   tampouco   acredita   naquela   melena   dourada   que baixa pola pedra abaixo. Aquele era o Penedo da Mulher. Em tempos a melena foi de verdade, mas agora só se pode adivinhar polos riscos que o pente foi lavrando rocha abaixo cada quando que ela se penteava. São poucos os mortais aos que ainda lhes está permitido ver, sempre no lusco­fusco, aquele cabelo que durante séculos acarinhou o penedo, diz­se que alguns também ouvem o estrondo que se produziu quando a mulher por querer colher o pente, que lhe resvalara rocha abaixo, caiu. Agora tudo fica lenda. Agora tudo fica nada. * * * …Os   detectives   chegaram   perto   da   eira   da   festa   e   com   alívio comprovaram que não se passeava por ela o homem do cabelo prateado…  –  Eh! Olhai aqueles dous que trajados vêm! Mágoa que tenha passado o Entroido, pois havíamos­lhes fazer comer farinha até polos olhos, com essas roupas mesmo parece que vão chamando por ela. – Deixa­os lá aos pobres, que quem sabe na procura de que andam. – E de que será? – Olha que aí te vêm para cá…  – Não virão aqui onda nós?! –  Deixa­os vir, que mal nos vão fazer? Divertiremo­nos um pouco à sua conta. As três moças estavam sentadas no maçadoiro da porta da escola, era logo meia  manhã   e  não  parecia   que tivessem muita pressa por marchar;  parecia como se aguardassem por algo ou por alguém. Os dous agentes caminharam até onde as moças estavam e saudaram­nas.

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–  Bons dias  moças,  poderíamo­vos fazer umas  perguntas…?  Se quereis perguntamo­vos uma por uma, e seguimos assim à rolda. – Bons dias moços… ai, se vos parece escolhei qual quereis que conteste às   vossas   perguntas,   que   devem   ser   mui   importantes   a   julgar   pola   vossa vestimenta…  – A nós tanto nos tem, ide uma e logo outra, e assim vamos indo à rolda.  – Ai sim! Assim vamos indo à rolda nós, e com vós, como vamos fazer…? Perguntais os dous à vez, ou primeiro tu e logo ele? – Não, eu sou o que faz as perguntas, ele é o meu ajudante. – E a que che ajuda, se se pode saber? Porque se tu fazes as perguntas, que lhe deixas a ele? –  Mirai, não me comeceis com leas, que depois se perco o tino do que ando a fazer, não dou encadilhado bem a cousa.  –  Não   será   por   nossa   causa   que,  a   se   meter   você   num   sarilho,   nós   só queríamos saber que faz este moço tão guapo se o dele não é perguntar. – Não faz nada, vem comigo, não vos deveis preocupar dele. – Não é que nos preocupemos, a nós o que se nos perdeu no assunto? É simples curiosidade. – Pois menos curiosidade e mais colaboração, que já vamos outra vez por mau caminho. –  Olha tu, que de mau caminho nada! Nós estamos aqui sentadas e não nos   pensamos   mover   para   ir   a   nenhures   convosco,   ademais   estamos aguardando polo  bomboneiro  que já passou para Gomesende, e talvez depois ao vir de volta passa e não o sentimos.  – Mui bem, então movamos a cousa para rematar antes de que chegue o dos bombóns e vos marcheis com ele. – E dá­lhe com marchar, já vos dissemos que nós não nos movemos daqui até  que   chegue   o  bomboneiro,   e  não   traz   bombóns,   que   traz  bombonas2  de butano, vós sim que estais bombóns…! – Entendido…! Agora, se sois tão amáveis, poderíeis me dizer que sabeis sobre uma pia que desapareceu daqui há bastantes anos? Seríeis vós pequenas.

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Bombona: botija de gás (castelhanismo).

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– Se há tantos anos, como quer que lhe digamos o que se passou…? E já que pareceis meios adivinhos, quanto tempo pensais logo que nós temos?  –  Não sei o tempo que tendes, e mal aproveitado tampouco não parece que o tenhais… Mira, porque não nos contas tu que pareces a mais velha? – Eu se quisesse algo sei, mas eu desses temas não falo. – Pois logo eu tampouco direi nada. – E de mim ide esperando outro tanto. –  Pois   olha   que   começamos   bem   a   cousa!   A   ver   se   antes   de   nada aclaramos   quem   das   três   está   disposta   a   contestar   algo   do   que   nós perguntamos. E ademais, por que dianhos não quereis falar no tema? – O tema tanto nos tem, é a Igreja a que nos dá reganho.  – Mas a pia já não tem relação nenhuma coa Igreja, agora pertence a um museu de Ourense. –  Que pertença ao que quiser, a pia sempre será da Igreja, e essa é uma instituição de homens, e ali as mulheres não pintam nada, portanto de mim polo menos não vão sacar uma palavra.  – Pois de mim tampouco. – Nem de mim, ademais essa pia foi roubada à gente deste lugar polos que vão de santos, e a gente por burra ainda lhe segue indo à missa. – Olha as mocinhas! Pareceis mui opinadas. – Que pareçamos o que quisermos, ademais a vós… que se vos perdeu por aqui? –  Nós estamos ao cargo duma investigação sobre o paradeiro da pia,… que   raios   se   passa   aqui   neste   lugar,   que   ninguém   nos   responde   às   nossas perguntas? –  Homem!   É   que   vós   fazeis   umas   perguntas   mui   estranhas.   Se   nos perguntares  por   cousas   mais  divertidas em lugar de temas relacionados cos velhacos da Igreja e as suas falcatruas, outro galo cantaria. – E que quereis que vos perguntemos, se esse é o tema que nos interessa? – Pois já vos podiam interessar outras cousas menos aborrecidas, vamos digo eu. –  Não, se a nós tampouco nos interessa tanto que digamos, nós não o escolhemos, veio­nos encarregado de arriba, se por nós fosse…

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–  Pois   logo,   porque   não   o  mandais  amolar   e   que  o   investiguem  os   da sotana que outra cousa que ranhar não têm, e ademais o que se passara ou deixara de se passar coa pia foi por causa deles? – …E falando de cousas que vos interessam, ademais de isso da pia, que outras cousas vos têm causado impressão por estes lares? –  Homem,  pois   não   temos visto muito,  mas a julgar  polo  presente,  de moças não anda mal este lugar… –  Ai!   obrigadas   polo   piropo   mas   não   era   preciso,   na   nossa   casa   há espelhos… As   três   moças   riram   abertamente   e   coa   naturalidade   do   que   goza   da liberdade que lhes outorga o conhecido, a liberdade do domínio do mundo no que se sucedem estes acontecimentos.  – A soberba, polo que vejo, também vos chega. –  Não   é   soberba   nenhuma,   é   conhecimento   de   causa   …   é   que   vós tampouco ignorais que ides bem engabachados? – Pois sim que o sabemos, mas isto é parte do nosso trabalho… –  Ai, pois não sabia eu que para ir por aí com essas perguntas que vós fazeis tínheis que ir emperiquitados. – Isto? Mas se só é um traje, o que conta é o que vai por debaixo… – Olha lá o que falava da soberba… –   …E   por   riba   nós   não   lho   podemos   negar,   que   não   temos   essa informação privilegiada… – Homem, pois isso boa solução teria, e já que o dia já se anuviou para o assunto da pia, a ver se ainda se vai arranjar a cousa… – Eu não me faria demasiadas ilusões, porque se bem certo é que até que se arrancam as batatas não se pode falar no que há debaixo da terra, nós temos melhores moços aguardando na verbena… – E logo onde é a verbena? – Em Fontearqueira, e nós pensamos ir a ela se encontrarmos quem nos leve. – Se calhar ainda podemos chegar todos a um apanho… –  De   apanhar   ninguém   disse   nada,   mas   se   queredes   ir   à   verbena   nós podemo­vos ensinar o caminho…

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– Pois logo combinamos assim e, se vos parece bem, passamos por aqui às sete para irmos juntos. – Pois que seja logo às sete… já que não pode ser mais cedo, e logo de aí em diante já veremos… Desde  o  maçadoiro   as   três  moças  olharam  como   os  detectives subiam para   ir   para   a   Coanheira   a   caminho   do   seu   veículo;   depois,   arrimando   as cabeças um nada, mouminharam algo e riram­se, riram­se com aquela pícara inocência que ainda não perderam…

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Capítulo V

 A FONTE DO GALO Quando   Perfeuto   se  sentiu   um   pouco   recuperado   saiu   do   seu   acocho, pôs­se de pé e marchou por um caminho que passava por longe donde ficara a pia. Os  dous  companheiros  compreenderam que  ele não lhes ajudaria mais aquela noite, assim que desceram e foram cumprir co ritual de dar de beber e mais beber eles. Aquela fonte nascia no meio dum chão cheio de cachos de pedra. Tanto Dom Narciso como o Alcaide pensaram que aquela fonte estava bem descuidada, ou melhor dito esnaquiçada; acordaram­se de que o Perfeuto lhes dissera à primeira que ele tivera ali uma canteira, e aos dous se lhes veio à cabeça se ele teria algo que ver com aquela desfeita, e se isso explicaria a sua fugida nada mais acercar­se ao lugar. Sabendo que não poderiam satisfazer a sua   curiosidade,   pois   a   ver   quem   é   capaz   de   fazer   falar   ao   Racha­Pedras, esconderam a pia e marcharam cada um por seu sítio.  Dom   Narciso,   enquanto   caminhava,   ia   pensando   no   que   se   passara enquanto estavam lá em riba no alto do Castelo da Rainha Loba. No do cabelo dourado não quis pensar mais porque cuidava que era fruto da falta de sono ou do seu sentidinho, que às vezes colhia para onde não devia. Mas além disso, a ele parecera­lhe ver um cavalo subindo polos penedos arriba, e isso ainda que pareça difícil não é impossível, pois toda a gente sabe que esses animais podem subir   escadas e alpendres  bem inacessíveis. Por  conseguinte a imagem, que ademais durara pouco, não lhe parecera desatinada de todo; polo menos não até que viu como cavalo e cavaleiro com espada, logo de chegar ao ponto mais alto do penedo, desapareceram como por arte de magia. Narciso achegou­se àquela  rocha   para  comprovar  se polo  lado  de atrás, como ele pensava,  lhes seria   fácil   baixar   e   esfumar­se   tão   asinha   como   o   fizeram…,   nem   que   os sumisse uma bruxa! Portanto arrimou­se à rocha e até trepou por ela pisando Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  100

polas marcas que sobem derredor a jeito de escada. Desde arriba pôde ver que o único sítio polo que se podia aceder ao alto da rocha, e baixar dela, era por onde ele acabava de escalar; qualquer outro acesso era, para qualquer animal, fora os pássaros, impossível. Por conseguinte a desaparição do cavaleiro e mais do   seu   cavalo   eram   um   mistério.   E   quando   já   ia   baixando   e   descartando   a imagem   como   absurda   e   irreal,   tudo   uma   ilusão,   descobriu   que   o   cavalo deixara na rocha as suas pegadas, pois logo não fora um sonho…!   “Mas que estou   a   pensar…   as   pegadas   na   pedra…!”       “Pois   tampouco   há   de   que   se estranhar”  diriam  os de  Penacova; toda a gente é sabida  que o Santiago do Cavalo   Branco   subia   e   andava   polos   penedos   adiante   a   perseguir   e   matar mouros. Isto, que a Narciso lhe parecia impossível, não era conto nenhum para os   vizinhos   de  Penacova,   que   todos   desde mui  pequenos  sobem   ao  alto  de quando em vez para apalpar as pegadas com forma de ferradura que seguem a dar fé da sua história. Ora, não se atrevem a ir contando­o por aí a qualquer; ademais…   “isso   se  passou   antigamente”   frase  esta   que  serve  para   referir­se tanto ao que aconteceu nos tempos do reinado da Rainha Loba, como ao que aconteceu na infância dos habitantes de mais de sessenta anos.  O forasteiro, com um sorriso de ironia nos beiços, caminha pola aldeia pensando que estas gentes têm que ser bem ignorantes para se referir a um tempo   tão   recente   co   qualificativo   de   “antigo”   O   forasteiro   gaba­se   da   sua superior   formação   intelectual   que   lhe   permite   estabelecer   essa  diferença.   O que o forasteiro não conhece, ou quiçá sabe mas não entende, é que desde esse “antigamente”   ainda   que   só   passaram   cinquenta   e   tantos   anos,   passaram vários   séculos   de   História.   Nesse   curto   espaço   temporal   produziram­se   tais mudanças, e a tal velocidade, que o tempo não se pode já medir de jeito tão simples   como   faz   o   forasteiro.   E   mais   não   é   preciso   aludir   à   Teoria   da Relatividade   para   o   entender;   baste­nos   um   simples   exemplo   que   mostre   o desenfreio do ritmo de tal mudança; isto é: a transformação do arado de pau, também chamado romano, no arado vertedeira do tractor.  Escusado   é   dizer   que   Dom   Narciso   não   era   conhecedor   da   realidade histórica, ou fantástica, depende onde se queira pôr o acento, de Penacova, e agora estava a pagar por isso; por conseguinte, temendo­se que aquilo ia de mal a pior, afastou­se da rocha e volveu ao campinho onde estavam os outros

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dous para aguardar que o Perfeuto ressuscitasse. O Alcaide estava adormecido à beira dum piorno e Narciso deitou­se olhando para o céu; e numa dessas viu que uma luz saía do alto do castelo e se ia cruzando o amplo pano estrelado caminho do Zebreiro onde desapareceu. Aquela visita fez mui feliz a Narciso, que cuidou que se tratava da sua amiga que afinal ainda andava polo espaço celeste e viera­o saudar de novo. Na verdade, aquela noite a sua estrela fizera uma travessia mui estranha; apesar de que as suas noções de física não iam muito mais lá da Lei da Gravidade, Narciso intuía que aquilo não podia ser tal; como podia uma estrela viajar tanto espaço em tão pouco tempo? Ademais, primeiro subiu mui alto e depois foi baixando mais a modo. Aquilo, somado ao do cavalo,  confundira­o tanto  que fechou  os olhos e escutou  em silêncio,  e então ouviu cousas, mas tampouco fez caso. Como ia ele dar creto aos berros duma cabra ali no meio do monte…? De noite, e com tantos lobos quantos sempre tem havido… Não podia ser, não podia ser. As gentes de Penacova não falavam   muito   da   cabrinha   de   ouro,   e   não   porque   pensaram   que   era   uma história   ridícula,   senão   porque   todos   e   cada   um   deles   mantinha   a   secreta ambição   de   topá­la   e   fazer­se  rico…     “E   tu   que   farias   se   a   encontrasses…? Sabes que há­de ser entregue a um museu…”  “Homem, pois eu – os pequenos sempre com soluções à mão – meteria­a numa saca e pensariam que levava batatas”   Mas Narciso não  conhecia das grandes aspirações dos vizinhos da pequena Penacova, e tentou pensar noutra cousa  para aboujar os berros do animal e nem sequer abriu os olhos para comprovar se havia tal chiba ou era outra dessas alucinações que emanavam do ar daquele estranho lugar. Aquilo não podia ser, não podia. E deste jeito também evitou ter que ser testemunha da chegada dos de Pexeirós. Os de Pexeirós subiram até ao alto do castelo para matar a Rainha Loba. Aqueles eram vales ricos mas à faminta rainha nada lhe chegava   e   cada   dia   tinha   que   comer   uma   vaca;   e   até   ao   alto   tinham   que levar­lha;   só   que   os   de   Pexeirós   aquela   vez   levaram­lhe   a   morte,   e   assim   o refere o cantar: Matastes a Rainha Loba  Fidalgos de Pexeirós Matastes a Rainha Loba 

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Fidalgos ficastes vós E esta é a razão pola que os de Pexeirós ficaram livres da paga do conde. Todos os demais tiveram que a pagar até não há muito… perto de há cem anos; ora bem, os de Pexeirós não volveram soltar um real. E logo quem raios serão esses de Pexeirós? E eu que sei, serão os de Ameixinhas… Mas Narciso ignorava também aquela história, o que o fazia vulnerável, não por ignorá­la, senão por não pertencer à comunidade que lhe daria sentido, e não lhe ficou outra que fechar os olhos e ao mesmo tempo evitar ver aquela ringleira de vacas, todas ruivas elas e galhadas, que subiam polo lado dos campos arriba. Eram as vacas que ao longo dos tempos foram subindo para ser devoradas pola Rainha Loba. Mais   tarde,   enquanto   caminha   de   volta   para   as   obrigas,   no   seu   caso   são pequenas ainda que não fáceis de aturar, que lhe traz a luz do dia, Narciso não pára de cavilar naquela luz prateada que navegara todo o céu aquela noite; não podia ser, não podia ser… e tentou todo o dia esquecer­se do assunto. Quando à noite seguinte chegou à Fonte do Galo, onde deixaram a pia, fez tudo o possível por não olhar para o céu. Narciso já não podia confiar no que lhe diziam os seus sentidos; e ele não estava ao tanto do brilho prateado que podem soltar os martelos, enquanto dão voltas polo ar até chegar ao alto do Penedo do Leão para avisar aos compatriotas da presença de intrusos nos seus domínios. Só lhe ficava não olhar para nenhures enquanto aguardava; e assim fez. Depois dum bocado sentiu pegadas que se achegavam a ele; era o Alcaide, a cotio o derradeiro em chegar; miraram um para o outro e escusaram­se as palavras, sabiam que era cousa deles dous tirar a pia daquela fonte que parecia, apesar das suas frias águas, ter escaldado ao Perfeuto. Cumprindo co ritual de apagar   a   sede   da   pia   deram­lhe   de   beber   por   última   vez   naquele   triste manancial e puseram­se ao caminho. O Alcaide, sem dizer nada, agarrou­se ao pinho, ali era terra chã e não parecia que fosse difícil guiar aquele carro. Dom Narciso colocou­se na roda esquerda como era o seu costume ultimamente, e começaram   a  chouchar   para   onde   as  estrelas   lhes   indicavam   o   caminho.   A poucos metros donde estava a Fonte do Galo, que se identificava pola presença de cachotes de granito espalhados por ali adiante sobre um terreno lamacento que no meio formava uma poceca, apareceu o Perfeuto. Saiu de detrás dumas

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gestas floridas. Encolhido, coa olhada no chão, e sem dizer nada, foi­se colocar detrás da roda que ficava livre. Naquele instante Narciso sentiu uma grande ternura   para   o   seu   companheiro   e   olhando­o   por   debaixo   da   copa   da   pia disse­lhe   num   tom   que   a   Perfeuto   lhe   transmitiu   tranquilidade   e   mesmo   o arrolou como a um neno no berço: “Um dia chegaremos a ser nós outra vez”. Mal rematou aquela frase que saíra quase ela soa pola sua boca, Narciso pôs­se a analisar o seu conteúdo e pensou que lhe teria que ter dito outra cousa, que aquilo que lhe saíra polos beiços parecia raro… chegar a ser nós outra vez… que raios andaria pola sua cabeça? Horamá abrira a boca, oxalá não tivera dito nada  ou tivera pensado em  que dizer antes de falar; agora já era tarde para mudá­lo. Contudo, a Perfeuto tanto lhe tinha o que quiseram dizer as palavras juntas ou por separado; ele abraçara a música que lhe levavam e sentira­se por primeira vez irmanado co cura.  Na dianteira  o  Alcaide  sentia  o peso  da  soidade  que como  uma névoa vasta sempre anda ali diante; agora entendia a escravitude do pinho, na roda, se te vês mui apurado ainda podes endireitar um nada as costas, mas o pinho não   se   deixa   soltar   assim   como   assim.   Que   pouco   gostava   ele   de   que   o jungissem tão apertado! Ele não é que ele fosse amigo de não fazer alianças, que as fazia, mas reservando­se sempre o direito de poder rachá­las ou safar­se delas. Ele sempre foi claro com isso, e ninguém poderia dizer que ele era um mau   governante.   Ele   nascera   para   político,   já   o   diziam   em   casa…   “Este vai­che­nos   sair   ministro…  olhai   pra   aí   a  manha   que   tem   para   livrar­se   do trabalho!”  Sim,   era certo que  ele sempre  convencia à sua  mãe para que lhe deixasse escolher tanto à hora do trabalho como na mesa. “Assim leva as boas talhadas, não é burro não, o condenado”. Mal teve idade convenceu a seu pai para   que   movesse   tudo   o   que   havia   que   mover,   e   coa   ajuda   do   abade,   o fizessem alcaide. E assim foi, mal rematara o serviço militar e já tinha a vara do mando. Mui contente estava ele, e que feliz fez à sua mãe, e ao pai encheu­o de orgulho. Ele seria um bom governante e ao mesmo tempo levaria a sua talhada. Ainda agora se acorda de quando asfaltou a primeira estrada,… “Bota fino o chapapote   que   o   que   há   dá­se   bem   gasto”   E   o   contratista   fazia­lhe   caso   e apertava a bilha do alcatrão para que rendera mais; havia que ter contente ao Alcaide, que senão a próxima obra se quadra não lha dava. E assim a estrada

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ficara igual de bonita, só um bocadinho mais delgada. E o peto do Alcaide, ao que por aquele então ainda não chamavam Rebenta­Ruas, medrava. Ele não é que quisesse roubar ao Concelho, não, não, livre­o Deus. Sucedia que ele era tão bom administrador que sempre lhe sobrava, e claro, depois já não podia volver   a   investir   o   já   gastado,   e   tinha   de   ficar   com   ele.   E   certo   é   que   um concelho   como   o   de   Os   Mouros   precisa   ter   um   alcaide   que   não   vá   por   aí parecendo  mal;  isso,  compraria boas roupas,  que vestir bem é parte do  seu trabalho.   Ele   ia   por   aí   adiante   representando   ao   concelho   e   tinha   que   ir elegante. Homem…, o que sobrara da estrada era algo muito para o meter em trajes! E se fizera uma granja…? Um bom alcaide tem que saber de negócios… e   que   melhor   jeito   de   aprender   que   montar   um   negocio   próprio?   Assim demostrará a todos o empreendedor que é, e renovar­lhe­ão o cargo.  Com   nostalgia   lembrava   ele   agora   aquela   época   em   que   só   tinha   que convencer aos de arriba para que o deixassem seguir sendo alcaide. Que bem se estava sem essa trangalhada das eleições! E o caras que lhe saíam… Nos seus começos   tudo   fora   como   a   seda,   nem   se   tinha   que   preocupar   por   esses indivíduos de barbas que depois mais adiante lhe começaram a fazer a vida impossível. Barbudos e mulheres, não queres caldo…duas cuncas. Ai, mas para que se queria ele lembrar dessa parte dos barbudos e das da saia, que por certo não   gastavam?   Ele   queria   que   só   se   tivesse   gravado   na   sua   cabeça   aquela primeira época do seu mandato, quando ele ordenava e mandava com total liberdade, essa sim que era maioria absoluta. E mira que lhe durou anos, os mesmos que lhe durara a granja…, não, que a granja ainda lhe dura, embora a traga trespassada. Que doce lembrança a daquela estrada tão negrinha como o pez! Mágoa que por culpa dos camiões da pedra que baixam de Penacova se enchesse toda de buracos. E que culpa ia ter o alcaide de que se fizera uma canteira  lá no  alto?  Ele só  lhes dera a permissão requerida. E claro, ei­los a pedir que lha governasse… esta gente não entende de orçamentos fechados! E ele bem que lho explica a quem o quisser saber. Mas eles, venha que dá­lhe coa devandita estrada, e ao final teve que acabar solicitando um orçamento novo e arranjar­lha. Olha que não lhe chegava bem como estava… de terra batida lha tinha que ter deixado, como esta pola que andam hoje eles e a pia, e nem conta se dariam.  Quanto mais  lhe  dão mais pedem, é o conto de nunca acabar, e

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agora com isso da liberdade e de tantas trapalhadas a alguns subiram­se­lhe os fumos à cabeça. Com   estes   monólogos   do  pensar   andava   o  Alcaide   entretido   e  não   lhe rendera tanto a jornada como em dias passados. Isso fez­lhe sentir­se mui bem consigo.   Ele   pensava,  a  julgar   polo  que vira  cos  que  lhe  precederam,  que o tempo se lhe faria eterno ali só naquela dianteira, ora não foi tal. Ao menos esta primeira noite a cousa se passou a escape. Andaram um bom pedaço, estavam agora atravessando já a Missa para depois baixar pola Alobada para o Castelar, onde lhes aguarda o sexto e penúltimo manancial desta andaina. Arrimaram a pia  e   mais   o   resto   das  cousas   a   um  penedo   que  havia   não   muito   longe   do caminho e foram­se. Antes de se separar definitivamente Narciso olhou para a rocha e pareceu­lhe que tinha lã; lã? Que raro, e depois pensou que não podia ser e foi­se como quem não vira nada. E o certo é que aquele penedo podia ter algo de lã, não em vão se chamava “o penedo de se ranhar as ovelhas”. Mas Dom Narciso, que não sabia nada de pastoreio, polo menos com esta casta de ovelhas, e escamado  polo  da melena dourada da outra noite, não se deixou arrastar polo que bem podia ser real. Marchou embora. Os três marcharam, e o dia não tardou em inundar os vales todos de luz. * * * Hoje Nuestra Región, que nos oferece toda a sua portada em galego, põe uma   nota,   no   interior,   protestando   polos   comentários   que  alguns   cidadãos, apoiados   por   certos   programas   de   rádio,   andam   a   fazer   sobre   o   estilo jornalístico deste diário. Parece mentira que nesta altura, depois do muito que eles levam feito, e demostrado, tenham que se ver na obriga de redefinir quem são, e de reiterar a seriedade que os caracteriza; porque  Nuestra Región  é um jornal sério que tem ido atingindo cada vez maiores quotas de compromisso social   e   cultural.   Um   jornal   que   nos   últimos   anos   tem   incrementado notavelmente   a   sua   sensibilidade   em   prol   da   conservação   do   nosso património, como exemplo baste ver a portada do diário de hoje… …Claro,  senão  nas  notícias  da televisão  quando  disseram:  “a imprensa galega   por   inteiro   saca   hoje,   17   de   Maio,   Dia   das   Letras   Galegas,   as   suas Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  106

portadas   em   galego”,   figura­te   o   mal   que   ficaria   se   tivessem   que   dizer:   “a imprensa galega, com excepção de  Nuestra Región, saca hoje, 17 de Maio, as suas  portadas   em  galego”.   Isso   ficaria  muito   feio;   e  por   culpa   da  frase  essa fazem o esforço como os outros, e logo então!  A   alguns   intelectuais   diz­se   que   esta   frase,   que   já   se   está   fazendo tradicional e se repete cada dezassete de Maio, isto é, uma vez ao ano, lhes parece uma redundância. Vejamos: “a imprensa galega saca hoje, 17 de Maio, as suas portadas em galego” – Homem pois a mim não me parece raro,… a imprensa galega não as vai sacar em chinês… – Pois eu digo­che a ti que aqui há algo que não me… a ver que te parece estoutro: “a imprensa espanhola saca hoje, 17 de Maio, as suas portadas em galego” a que se ouve muito melhor? – não che digo que não, não obstante tampouco pode ser, porque não toda a imprensa espanhola saca as suas portadas em galego – Pois também vais ter razão… a ver  logo  assim: “a imprensa espanhola na Galiza saca hoje, 17 de Maio, as suas portadas em galego. – Olha, a mim parece­me bem, mas para já com tanta imprensa  espanhola que me vai estourar a cabeça. – Eu não  sou quem de fazer isso… se por mim fosse já podia dizer até: “a imprensa galega saca hoje, primeiro de Abril, as suas portadas em castelhano” – E a que vem isso do primeiro de Abril? – O primeiro de Abril todos os burros vão onde não devem de ir. – Ah já, o dia das pulhas! Pois aqui burros não faltam. – Não ho! Também cho digo, aqui há muitos e bem deles… São   estes   pensamentos   dialogados   que,   se   bem   que   revelam   a bidimensionalidade da personalidade dos galegos, não servem para sustentar a tese que ultimamente está a ganhar prestigio nas melhores universidades da Península   e  que  vai  em   favor  de  postulados   sobre  a   bidimensionalidade   da personalidade na gente das nações que se vêem submetidas ao avassalamento por parte doutras culturas mais poderosas. Ora bem, nos postulados originais destas teorias,  que cada dia estão mais na moda, supõe­se que o monólogo dialogado   se   levaria   a   cabo   nas   duas   línguas   que   representam   a   ambas   as culturas. Isto é, que a pessoa alternaria, de jeito sucessivo, as duas línguas, a própria e a assumida como própria, que estarão em constante luta até a pessoa morrer, e diz­se que logo disso as línguas seguem na sua polos cemitérios. 

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O mais problemático parece ser encontrar uma denominação para estes tipos. O monólogo precedente não encerra dificuldade visto que se trata dum caso   galego­galego,   isto   é,   que   tem   como   língua   própria   o   galego,   e   como língua   assumida   como   própria   o   galego;   mas   como   já   dissemos   este caso­exemplo não nos serve para apoiar a hipótese da bidimensionalidade. Ora bem, aos que têm como língua própria o galego e como língua assumida como própria   o   castelhano,   ponhamos   por   caso,   poder­se­ia   um   referir   como “gastelhanos”, por aquilo de pôr primeiro a raiz da língua materna. Por outro lado,   para   os   que   têm   como   língua   própria   o   castelhano   e   como   língua assumida como própria o galego… é verdade, esses não existem. E que me diz dos que procedendo de fora destas terras, de Terra Ancha por exemplo, tomam o   galego   como   língua   assumida   como   própria?   Ah,   já   percebo!   É   diferente, nestes casos o galego nunca desloca no seu ego mais interno à língua própria, que seguem sempre a saber qual é, por muito que amem o galego… Por certo este colectivo vai em aumento! Curiosamente este grupo e o dos gastelhanos aumentam a um ritmo similar. – Pois olha que seria muito bom que viessem mais desses para cá. –Isso, ora… o que fazemos cos gastelhanos? – Pois que se decidam duma vez, que a vida não lhes vai durar sempre e vão­se ir para o outro   mundo   coa   retesia.   –  Eu   sei   dum   que   estando   já   às   portas   da   morte resolveu o assunto e despachou ao curinha que o atendera toda a vida e quis que lhe administraram os últimos sacramentos em galego… “coitado, te perdió el sentidinho” Frase que, em boca da sua mulher, mostra o domínio gastelhano no que se movera o moribundo até o momento da lucidez final… E quando chegou o novo sacerdote tranquilizou­os a todos… “não se preocupem vocês que tem a minha absolvição, e Deus já lhe perdoou” – E é que isto de ser crente é   um   negócio   feito...   vais   e   arrependes­te   no   último   momento   e   já   está,   a recolher benefícios como se fosses um santo toda a tua vida…! * * * Quando os viageiros da noite retornaram junto à pia, Dom Narciso fê­lo cos   olhos   fechados   para   não   ter   que   ver   a   lã   que   não   podia   existir,   mas   a curiosidade   foi   mais   forte   que   ele,   o   que   não   é   milagre   nenhum,   e   com Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  108

dissimulo   passou   a   mão   como   cofiando   o   baixo   ventre   do   penedo.   Em realidade ele só buscava tentar a dura pedra para que as visões não se burlaram mais   dele.   O   sentir   sedoso   entre   as   pontas   dos   dedos   fez­lhe   estremecer   e retirou a mão bem asinha. Agora,  enquanto iam baixando pola esquerda do Jungal e as Ribeirinhas, para as touças do Castelar, ia pensando naquele mole apalpar que topara no penedo. Lã não podia ser. Seguro que são musgos, quem sabe como é o tocar do musgo? Sobretudo com esta humidade que põe tudo tão meloso. Quanta gente vistes por aí acarinhando os penedos, e menos cos olhos fechados…? De seguro que eram musgos que neste tempo estão verdes e amantinhos. Com aquela conclusão tranquilizadora deixou a questão.  Aquela   noite   Perfeuto   parecia   menos   encolhido,   desde   a   penúltima jornada   o   seu   aspecto   tinha­se   humanizado   bastante.   Enquanto   o   Alcaide seguia co pinho às voltas, hoje não parecia que lhe foram tão bem as cousas. O terreno colhera  um  nadinha  de inclinação mas a ele parecia não lhe ajudar muito. Ele andava que parecia um rabioso a quem ninguém lhe fizera nada. Mas sim que lhe fizeram, sim. Se Perfeuto e Narciso souberam polo que ele tivera de passar. Ele nascera para alcaide, isso ninguém o discute, e agora já não o era. Isso não podia ser, é essencialmente erróneo que se lhe frustre a um homem a sua vocação assim, sem mais explicações. E tudo por culpa dos das barbas.   Olha   que   lhe   iam   bem   as   cousas   a   ele   sem   democracia.   Mas   nada, houve que se adaptar e não ficou outro remédio. Ora, a que as mulheres vão ao concelho e ainda por cima levem calças, a isso não se dava adaptado. E por culpa disso teve que deixar a alcaidia. Não, não foram justos com ele; depois de tantos anos cumprindo no seu posto vão e dão­lhe uma patada. E ele mira que se esforçou por adequar­se ao que fosse preciso. Ninguém poderia dizer que ele   fosse   um   reaccionário.   Houve   que   escolher   partido   para   meter­se,   pois vamos, ao que a Deputação me mande, que para isso são os que me dão os orçamentos das obras. Que depois é preciso mudar e meter­se noutro partido mais grande, pois que não se fale mais. Se é preciso ainda se compra outro fato. Não será por falta de casacas… E mira que ele era um alcaide agradecido, ele é certo que o chefe da Deputação fizera muito para lhe ajudar a ele a manter o seu posto vitalício de alcaide d'Os Mouros; mas ele também lho pagara. Isso ainda  se  pode  ver hoje:  “Edifício  Multifuncional  José Luís Bande”, “Avenida

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José Luís Bande”, “Praça José Luís Bande”; esta última com estatuazinha do tal J. L. Bande e tudo, uma cabeça de pedra à que o alcaide se refere como o busto de Bande. Por causa da cabeça esta já se têm montado algumas liortas: – E quem diz que é esse da cabeça de pedra? – Um tal Agusto de Bande. –  E  que  faz  a  cabeça  dum de Bande aqui nos Mouros? Eles têm o seu próprio concelho. –  Não, homem, não – veio o terceiro em discórdia – que não se chama Agusto, nem é de Bande. Este é o busto do senhor Bande, o chefe da Deputação. –  Mira,   pois   não   se   chamará  Agusto  nem   será   de   Bande,   mas   daqui digo­che eu que não é, e mais olha onde o foram pôr… no meio da eira da Festa, de espantalho. –  É   que   esta   já   não   é  a   eira  da   Festa,   agora  chama­se  Praça   José   Luís Bande. – E dá­lhe cos de Bande, pois já podiam fazer as praças no seu concelho e pôr ali as cabeças. – Mira que sois pesados vós co de Bande também… – Pesado é ele, que é de pedra, que senão… Sem esquecer­nos do Vertedouro Incontrolado Municipal J. L. Bande. Se bem que aqui a cousa não está nada clara tampouco, acontece como coa eira da Festa. Não, se o do vertedouro está mais claro que a luz do dia, que desde quase a Fontecova já se vêem branquejar as máquinas de lavar, as neveiras, e toda clase de refugalhos e trapalhadas porcalheiras inclassificáveis que ficaram antiquadas para a vida moderna, e que já não servem mais que para se desfazer delas. São­vos estes seres mecânicos nada fáceis de apodrecer; alma não terão, mas custar, custa­lhes morrer uma boa cheia de tempo, e enquanto agonizam levam por diante não só a paisagem senão a vida toda do monte, e a do rio Eiroá,   que   baixa   entusiasmado   desde   o   alto   do   Zebreiro   para   chegar   à Golpelheira e ver­se assim acurralado por latas oxidadas, tijolos esnaquiçados, canhotas   de   castanheiros   menosprezadas   depois   de   arrancadas   nos   soutos queimados… O rio Eiroá, onde noutrora moíam os moinhos, e o pão cozia nos fornos graças a esta água que baixava até a beira d'Os Mouros. E que culpa tinha   o   alcaide?   Ele   não   era   o   que   deitava   ali   todos   esses   cadáveres   da

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industrialização; e mais esses reganhudos que não lhe querem bem sempre lhe estavam atacando por culpa de que a gente botara ali o que já não lhe fazia jeito, ou não queriam. E que lhe ia fazer ele? Não quereriam que se pusesse ali de guarda noite e dia. Mas esses insaciáveis não pararam aí, não; eles dá­lhe com que a Golpelheira não era nenhum vertedouro e que por conseguinte era responsabilidade do Concelho mantê­la limpa. E ele vai e não se lhes ocorre outra   cousa,   porque   diz­se   que   não   pôde   ser   ninguém   mais   que   eles,   que plantar ali um cartaz na beira da estrada que baixa de Penacova? E não se lia “Proibido deitar lixo” não, que esse tão sequer ainda podia ter quiçá ajudado; não,   o   que   se   lia   no   devandito   cartazinho   era   “Vertedouro   Incontrolado Municipal José Luís Bande”, e houve que o tirar, e eles ei­los a o pôr outra vez, e uns a o tirar, e outros a o pôr… E não houve outro remédio que chantar lá um guarda   dia   e   noite   para   parar­lhes   os   pés   a  esses…   Quando  alguém  depois vinha ali a lhe fazer o funeral à sua  Westinghouse, após quinze anos de fiéis serviços, ficava confundido, pois eles não contrataram a enterrador nenhum, nem pensavam que ninguém assistiria a estes últimos ritos.  – Olhe! – dirigindo­se ao guarda – aqui é onde se deixam as cousas que já não valem? –  Ai, eu não diria  tal, olhe que algumas ainda lhe estão boas! Que não todas as que vêm ficar aqui são velhas… – Quero dizer que se poderia eu deixar aqui esta máquina de lavar que já não entrefuga lá mui bem e… –  Pois  com  efeito,   deixe  você  o que  quiser, ou  melhor dito,  o que não quiser.  – E logo você para que está aqui? Se não é muito perguntar… –  Eu?   Pois   para   que   uns   vândalos,   que   seica   são   do   que   não   há,   não chantem aqui o cartaz de Vertedouro.  – Mas olhe…, e logo isto não é um Vertedouro? –  E eu que sei! A mim disso ninguém me disse nada, eu estou aqui pra vigiar   por   se   ligaram   de   vir   os   do   cartaz   esse…   e   agora   despida­se   da   sua lavadora e deixe­me que tenho muito que fazer… que se isto segue assim ainda vou   ter   que   me   repartir   entre   aqui   e   a   praça   do   Bande,   que   seica   esses   já ameaçaram  com que não  voltam a fazer um cartaz novo e que no lugar do

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cartaz   vão  colocar   o   cabeção   de   pedra   que  dizem   que  iria   mais  acorde   cos despojos urbanos do vertedouro, que não é tal, por certo. – E por causa disso o vão fazer ir a você até lá a Bande? –  Não mulher, não, que vão fazer! Marche, marche tranquila, que a sua máquina de lavar não vai estranhar nada aqui. – Pois logo, até outro dia, e perdoe. Que a gente se confundisse quanto quiser, mas ele tinha que mostrar o seu agradecimento ao chefe da Deputação. Também é certo que ele aqui desde o seu posto no Concelho lhe ajudava a arrecadar os votos que tanto precisava o seu patrão para o partido. A ver quem ia de casa em casa a repartir boletins na véspera das eleições! Ai, é que o Bande não pode estar em todas as partes…! Pois  que  vão  os   alcaides!  E   ele  ia,  que  ademais   assim  ia  mantendo   o  forno quente para as Municipais, que eram as que realmente lhe coziam a ele o pão. A ver quem fazia as promessas, de aldeia em aldeia, de casa em casa…  “se me votas fago­che um poço para regar a leira toda”   “Pois nem que eu fosse um parvo, voto, voto, inda que depois caia nele e afogue, e hei levar à mulher e o filho”   “Leva também o tio velho que para votar vale qualquer”   “Mas olhe que ele não lhe serve para nada… está tolheitinho e não se pode mover”   “Pois o levais num cesto desde o carro até a mesa eleitoral”…  E assim de casa em casa, ninguém sabia o duro que era o seu trabalho. Não era Rebenta­Ruas a alcunha que lhe ligava a ele não, a ele teria­lhe ficado muito melhor o de Casalandreiro, porque nisso consistia o seu trabalho em época de eleições, sempre de casa em casa.   E   depois   ter   que   os   convencer   de   que   ele   representava   a   melhor alternativa, a única alternativa possível de eleição. Por sorte contava coa ajuda do pároco de Vilarinho, que sempre teve claro o que era ser um homem de sotana, ainda que a leve emporcalhada, e organizava magustos ou o que for preciso à hora dos meetings dos outros, e assim ninguém se apercebia nem que se apresentassem. Quanto trabalho para ao remate perdê­lo todo. Às vezes ter que improvisar discursos, e à medida da situação, porque liga de estar ali na taberna algum mais duro de roer. Como aquela vez na cantina de Penacova… já tinha pago o vinho de todos os presentes, já apertara bem as mãos e lhes dera os boletins de voto, já estava a cousa quase pronta e chega o Manuel e lá se foi tudo prò nabo. Ele não vai o mui… e se lhe ocorre perguntar­me que por

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quem me apresentava….?   “E tu de que partido vens sendo, se não é muito perguntar?”   Essas foram as palavrinhas exactas que o Manuel lhe soltara, e assim ficaram gravadas nos miolos do Alcaide. Justamente agora quando já era escusado, quando já estava tudo meio bem atado, ter que andar coa política. Mas eu, que daquela ainda era de centro, dei­lhe uma resposta bem atinada: “Mirai, eu sou de centro, porque no centro é onde melhor se está”   A julgar polas caras que o guichavam dir­se­ia que aquilo não fora mui convincente; sobretudo a do Manuel, com aquele meio sorriso como dizendo “pilhei­te…!” E   agora   que   me   lembro   dele…   daquela   o   Manuel   gastava   algo   de   barba também. Então o orador que levo dentro, o que sempre convencia à minha mãe   para   aquilo   das   boas   talhadas,   saiu   ao   resgate:   “Mirai,   para   que   me entendais todos vou­vos pôr um exemplo que nem precisa das palavras… Se um de vós está, ponhamos por caso, a cortar fatias no jamão, donde vos parece que   tirará   melhores   talhadas,   polas   bordas   ou   do   meio?   Claro   que  sim!   No centro está sempre o melhor, no jamão e em tudo!” Ao Manuel mudara­lhe a cara,   em   vez   do   sorriso   tinha   agora   uma   enruga   na   testa,   mas   não   era   de enraivado, não, era como se dissesse “estou pensando”… e de repente o sorriso outra vez na face, agora, quando a cousa volvia ir bem e todos se mostravam satisfeitos e calmos, outra volta que vai ele e diz: “Mui escolhido o exemplo; mas agora responda­me a mim também: se passar por onde um rio e ligar de cair, onde quer melhor ir parar… a uma borda ou ao meio?”   O que mais lhe doera foram os comentários dos outros: “Homem, caralho – dissera o tio Rua, que eu já contava com ele – se caires na borda ainda te podes agarrar mesmo que  só  for a  umas  ervinhas,  e esgardunhas para fora; ora bem, se caíres no meio ainda te podes afogar”   A taberna encheu­se de risadas, que desde fora podiam escutar  até  as  mulheres… O Manuel deu meia  volta, como boi que vence ao outro na chega, e pediu uma cerveja desprezando assim o seu vinho. E ele ter que aturar aquelas burlas depois de lhes ter pagado o vinho e tudo… Claro que depois quando fora de casa em casa tanto o Rua quanto os outros asseguraram­lhe que votariam por ele… ali na taberna, pois claro, tiveram­se que pôr do lado do do lugar, mas… “não se preocupe você, pode contar co nosso voto”   “então pra que ríeis?!” 

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E ele contava e recontava, e antes de se abrirem as urnas para o reconto ele   já   sabia   o   que   sacara.   Chegava­lhe   com   contar   os   que   trazem   as furgonetas…   “Quantos   carregastes   já?”     “Dezasseis   de   Fontearqueira   – incluindo o do cesto –, dezanove de Lourelos, quinze de Penacova e quatro de Ameixeiras”   “Mecagoe  nos de Ameixeiras que sempre me fazem igual… vão seguir sem as luzes públicas outro par de aninhos mais, a ver se aprendem…!” “E ti quantos levas?”  “Oito de…”  E assim ia um por um até rematar o conto. Bom, então tenho já cento quarenta e sete justos, se as contas não me falham. Isto de contar os carregados nas furgonetas era, e segue a ser, um método fiável e por conseguinte usado; e não só polo Alcaide,  os  dos  outros  partidos não ignoram que ali dentro dos carros se fazem repartições. E poucos são os que se atrevem a contar o que ali se passa, e quando o fazem fazem­no tarde demais… –  Sim homem sim, quando fôramos co Mulas, bom, tu não foras que já votaras, pois tal como cho conto, tirou­me o voto e rompeu­mo em pedaços, se não foi certo que não veja mais a luz do dia. – Qual voto? –  O que levava da casa, e isso que o trazia bem guardado; mas ele coa teima: “ensina­mo a ver se vale”, e eu de burra… – Ai raio o nunca parta! Olha ti o galopim; e tu ficarias danada, não sim? –  Pois   logo   não   ia   ficar,   como   querias   que   ficasse…   a   fé,   que   fiquei rabiosa! – E logo depois tu não fizeste nada? –  Eu? E eu que ia fazer, eu não sei ler nem cousa  nenhuma, e pra não parecer  que  não  me  apercebia nem donde soprava o ar  pois não tive outro remédio que meter o que ele me dera.  –  Olha  lá o  languiceiro,   e isso que che é sobrinho e tudo;  não,  se esse tem­che boa saia, parece um alpavarda e depois mata­as calando! –  Ai, digo­te que aquele dia quase estouro co reganho, e eu que queria votar o que me dera a tua rapaza, e vai o fada…! Pois como iam deixar escapulir a uma e enfastiar a recontagem? Assim deste jeito era muito mais fácil…! Por cada burro seu molho, e a cousa não falhava.   Porque   na   verdade  isso  dos  inquéritos  à  saída da escola,  onde  está agora o colégio eleitoral, e também se velam ali os mortos, não se sabe mui

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bem porquê, mas não funciona. Por muito que os profissionais do jornalismo se esforcem por o fazer bem, não che é nada… – Mire senhora, você já votou? – Sim, senhora, já votei. – E poderia dizer­me você, se for tão amável, para quem votou? –  Olhe, você tem que perdoar mas a mim disseram­me que o voto era secreto. – Sim que o é, o voto é secreto. –  E mas vai você e pergunta­mo; e logo não vê que se lho digo a você já não é secreto? – Pois tem você razão, e perdoe. – Não há de quê, mulher, não há de quê… E o certo é que o voto não era secreto, que ia ser! Aqui toda a gente sabe para quem vota  toda a gente. E a Conceição tem vários filhos com barba, e filhas dessas que não levam saia, e escusado é que lho diga à jornalista porque toda a gente o sabe…todos fora a jornalista, claro. “Se não saís destas eu já não vou   votar   mais,   que   já   canso   de   andar   arriba   e   abaixo,   eu   e   dous   mais   no autocarro eleitoral” No mundo tradicional que vai dentro da cabeça das gentes desta terra, este não é jeito de guardar os segredos, aí expostos ao público em caixinhas de vidro. No mundo tradicional, que mais de um levamos dentro, os segredos, se os houver, nunca deve de saber­se que existem, senão não se dão guardado.  Em resumidas contas, que ao Alcaide não se lhe escapava nenhum voto sem contar. E antes do fecho das mesas já ia encarregando a ceia num bom comedeiro   da   Límia   para   ele   e   os   seus   sequazes.   Ali   comerão   e   beberão   à fartura, mas antes de que comece a ceia, ou cousa nenhuma, ele repartirá­lhes as pagas, cada um polo que carrejou. Porque ele era bom pagador, e pontual, antes de sair os resultados já tem os homens pagados. Ele era um homem de palavra, e cumpridor. As mais das cousas que os outros lhe apunham não eram tal, ou eram miudalhos sem importância. E esses condenados que tudo têm que saber. Mira que foram descobrir o da retenção dos votos por correio; pois ninguém lhe fora lá co conto e mas eles souberam­no. Mas já não podiam fazer nada,   depois   de   retidos   tanto   tempo   já   não   contavam.   E   é   que   o   voto   por

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correio também tem esse defeito de não ser secreto. Mas eles não os abriam, de isso   não   podiam   acusá­los…   “de   quem   vem   este?”   “Este   vem   de   fulana   ou sicrano…” Pois a escondê­lo. Mas não é certo que os abrissem sem permissão, isso são tudo calúnias que lhes levantam os outros …esses, esses sim que... E ademais   isso   das   retenções   são   miudezas   comparado   coas   intenções   dos nossos   rivais,   que   mesmo   se   lhes   lê   na   cara   que   se   pudessem… cuinchavam­nos! Eu com eles a sós não me queria topar, e menos no dia das votações… e a alguns das furgonetas já lhes fizeram recuar… não, digo­te eu que  são de  caralho  virado… felizmente por aqui dos novos não se faz caso, gente nova e lenha verde só faz fumo. Tão sequer, a conta dos anos ainda lhes vamos   ganhando,   e   eles,   ainda   por   riba,   assim   que   vão   servindo   vão­se marchando às cidades, e a cousa ia indo; mas numa dessas vão e sacam um representante no Concelho, e ainda por riba uma mulher… o que me faltava…! O   Alcaide,   travado   polo   mau   génio   daquela   lembrança,   parou   de   súpeto   e disse­lhe aos outros que já chegava por aquela noite, que ele já estava canso e que as noites não se acabavam num dia, polo que… E ao olhar para o Perfeuto lembrou­se de todos os homens indomesticáveis cos que se tinha ele topado ao longo  da  sua   andaina  polas   freguesias do  concelho  quando ia pedir o voto. Perfeuto estaria canso e abatido mas ainda levava na face aquele ar indomável. E vai o Alcaide e soltou­lhe: – E tu de que raios estás feito? –  De   pedra,   eu   estou   feito   de   pedra…   e   tu   porquê   o   perguntas, manteigueiro do caralho? O   Alcaide   marchou   mal­humorado,   manteigueiro   ele?   Que   caraino acredita   esse   Racha­Pedras   que   ele  é…?   Maldição,   porque   é   que   sempre   se tinha ele que topar com esses seixos no caminho? Perfeuto também marchou, e Narciso ficou só por uns instantes. Ainda havia vagar para a rompida do dia, e a ele chegava­lhe bem o tempo. Arrimou­se à boca da pia e viu como a lua cheia bailava   lá   dentro   dela,   no   bambear  das  ondinhas   que   ainda   havia  na   água. Assim com aquela tanta luz, parecia­lhe que a pedra fora perdendo o grisalho e cada vez estava mais amarelada… como se se misturasse o dourado coa cor das avelãs. Uma cor que lhe outorgava à pia um esplendor que ele nunca tinha visto. Pensou que seguramente seria polo efeito daquelas águas que sempre a

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mantinham húmida. Narciso não queria cavilar no assunto; ele tinha a mente jogando às adivinhas,… de que estaria feito ele…? Se o Perfeuto estava feito de pedra, e o Alcaide de manteiga,… de que se supõe que estaria feito ele? Seguro que de algo intermédio. Por mais voltas que lhe dava não se lhe ocorria nada. E pôs­se então a pensar em matérias das que ele gostaria estar feito. De pó das estrelas,   ou   da   luz   delas,   ou   de…  Não,   isso   não   valia   porque   ele  sempre   ia escolher   materiais   que   lhe   fossem   gratos,   ou   nobres.   Faria   algo   diferente, tentaria   imaginar   os   materiais   dos   que   quer   o   Alcaide   quer   o   Perfeuto pensariam que estava ele feito. Até lhe saiu em forma de diálogo: – E eu Perfeuto, de que crês que estou feito eu? – Tu? Tu… de queijo.  – Porque o dizes?  – Porque és brando mas ainda se te pode tragar, não como ao repugnante esse da manteiga, que te anoja o bandulho. – Queijo! Bom, a mim não me desgosta o queijo, contudo… que classe de queijo? Duro, brando, de vaca, de ovelha, de…? – Um queijo calado, assim é como deverias ser, que os queijos não falam. Mas a ideia de ser de queijo não acabava de ser do seu agrado; a ver o que pensava o Alcaide…  – E tu, Alcaide? – Eu, quê? – De que pensas que estou feito eu? – Tu? De hóstias amoreadas umas em riba das outras. Não,   aquilo   não   lhe  estava   a   dar   a   sensação   que  ele   andava  a   buscar. Deitou­se no chão e agora olhava para a lua que desde o alto do pano negro da noite   dependurava,   e   ficou   calado.   Os   braços   estirados   no   chão,   os   joelhos dobrados   –   E   tu,   lua,   de   que   pensas   que   estou   feito?   Enquanto   aguardava olhando para o céu, por uns instantes os dedos entretiveram­se enredando nas ervinhas  do   chão  e  mais  na   terra.  – Não  me vais dizer  nada, eh?  E  Narciso sentou e viu como por debaixo das unhas assomava a terra húmida e negra… de terra! Eu estou feito de terra, de terra e de todas e cada uma das maravilhas que   há   nela,   de   terra,   da   minha   Terra…   E   marchou   contente   cantarujando aquela melodia dum  cantar que de neno lhe entoava a sua avó, e que a ele

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agora se lhe juntava com um verso que não acertava a saber donde lhe viera… E cantarujou: Leva a terra com ele  sem ele sabê­lo… Naaarará…narará narararaina… Leva a terra com ele  sem ele sabê­lo… Quem sabe, quiçá as cantigas da sua avó encerrassem alguma mensagem que   ele   nunca   se   parara   a   decifrar,   e   que   agora   ao   se   lhe   misturarem   com aquelas rimas ele sentia cobrarem um sentido verdadeiro, um sentido que não descobrira   enquanto   cavava   na   horta   da   reitoral   em   Ameixeiras.   Talvez tampouco a sua avó sabia destas mensagens das músicas, mas cada quando que ele as escutava, ou as cantava, faziam­lhe sentir­se outro, faziam­lhe sentir que era o Narciso que ele queria ser, o que ele era realmente e não dava sido de todo… sem  poder  ver com clareza quais eram as silvas que o prendiam. Se calhar   isso   de   misturar   a   terra   e   o   céu   dentro   dum   não   sempre   dá   bom resultado…   Narciso   sonha  com  encontrar  uma  estrela  que  possa  escutar  os seus nararainas sem ter de subir­se ao céu, sem ter de renunciar à terra, da que está feito. * * * Os dous agentes eram para os de Penacova dous forasteiros semelhantes a outros muitos que tinham cruzado já antes polo lugar. Alguns de passo para a Raia   e   outros   buscando   informação   acerca   da   Rainha   Loba;   estes   últimos sempre rematavam subindo aos penedos do  Castelo para embrulhar no seu pano das mãos algum queixil, aparentemente humano, e metê­lo no bolso do seu gabão.  Estoutros   forasteiros   chegaram   hoje   ao   lugar   com   uma   boa   sensação. Começavam a gostar de respirar tão livremente como o podiam fazer naquele Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  118

lugar,   enchendo   os   seus   pulmões   uma   e   outra   vez   como   se   quisessem oxigenar­se; certo é que donde vêm eles tampouco está o ar mui poeirento que se diga; ora isso sim, há muitos automóveis. E ali não havia automóveis, ou se os havia estavam guardados ou andavam por aí nas estradas, longe daquele paraíso.   Ainda   que   o   trabalho   seu   ia   devagar,   eles   começavam   a   se   sentir cómodos.   Ia   como   tinha   que  ir   porque   ali   era   assim,   em   Penacova   tudo   ia devagar, e não valia que eles quisessem correr, que ademais já não queriam. Quando entravam em Penacova era como se tivessem que botar um freio às suas   ânsias   profissionais,   e   até   desandar   um   pedaço   do   andado   antes. Penacova ia tão a modinho que se diz que não chegaram ao presente, ou polo menos   não   ao   presente   dos   detectives.   Penacova   andava   lá   num   ponto intermédio entre a era dos martelos da Rainha Loba e a do telefone. E diz­se que às vezes os do lugar topam­se com gente que corre muito, muito mais que eles, e que os passa, e despois vêem­nos lá adiante escangalhados. Também se diz que às vezes vêem, ainda que pareça mentira, outros que vêm ao pra atrás, como aquele que vem de volta. Com estes já não se podem entender… – Não, que isso do sulfato não está bem, tínheis vós razão dantes, não se deve usar;  agora já  também  o têm descoberto os cientistas, fazei­me caso e parai de botá­los… –  Olha…! E que queres, que vá eu ali à leira das batatas e espavente os escaravelhos com um folhato…? E logo então para que raios serve se não o sulfato? E agora, que já gastamos o dinheiro…! – Mirai, que a celulose não vos é nada boa para a pele, por não falar dos carvalhos, e ademais aqui tendes agua à fartura, devíeis usar os cueiros laváveis como os que se gastavam dantes.  –  E que me mije o meninho no colo…? Porque isso era o que acontecia dantes, agora com estes descartáveis e com tantos adiantos, está uma sempre preparada…   e   não   quererás   que   volvamos   ao   da   verça   em   vez   do   papel higiénico, porque a horta fica longe,… é que dantes era ali o retrete. Por   sorte   a   estes   que   vêm   de   volta   não   lhes   calha   amiúde   passar   por Penacova, que senão… já não saberiam se seguir ou ficar parados. Às vezes os de Penacova escutam cousas dessas na televisão, mas então fica a cousa no que é… “é película,… fazem­no ver”

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Como quer que fosse, ele aos dous agentes ainda mal não chegavam a Penacova e até o coração lhes começava de ir devagar, quiçá tinha algo que ver coa altitude da  montanha  que, como diria o outro, não é o mesmo.  Ora de certo, quem o sabe? Aquele dia sentiam­se eles muito à vontade caminhando pola rua do Rego abaixo, iam em mangas de camisa e sem gravata. Na mão o bloco das perguntas e na cara um sorriso amigável. Quando chegaram onde a casa do Ferreiro viram a porta da forja fechada e olharam para arriba… a porta do corredor estava aberta, e lá dentro, sentado no escano, estava o tio Serafim, que lhes acenou coa mão para que passassem adentro. O tio Serafim ia algo velho, e dês que já não valia para a forja, que fora a companheira que marcara o   latejar  do   seu   coração   ao  longo   da   vida,   ficava  só   no   corredor   ainda   que gostara bem de ter companha. Eles passaram e sentaram a petição do ferreiro; Riba sentou ao lado dele no escano, e o seu chefe numa cadeira à direita, quase enfrente do tio Serafim.  –  Olha,   olha…  então   vocês   são   os   forasteiros   que  andam   a  visitar   este nosso mundo… – Pois sim, somos nós…  E entretanto o mais velho dos agentes dizia isto, olhou para o tio Serafim, que  teria  bem  para  aí  uns   noventa e tantos,  e viu que na orelha  levava um audiofone. À primeira pensou que era uma fatalidade, mas depois pensou que não era tão má cousa que o tivesse porque é certo que nestas idades quer mais quer menos todos lhe topam a falha ao ouvir, e assim sequer, sabemos que nos ouve.   Acrescentou:…   e   já   que   estamos   aqui,   poderíamos­lhe   pedir   que   nos contara o que souber você da pia? –  Sim, sim eu bem que lia, e ainda leio se tenho o que, escusado é dizer que o que é vagar não me falta. Olhem, trai­me o meu neto os jornais atrasados que vai juntando ao longo do ano, é que ele vive fora daqui e claro, trai­mos quando lhe ligar. E eu leio tudo o que vem neles, até as temperaturas todas do mundo. O outro dia saiu uma carta dum homem que falava disto mesmo, não das temperaturas… senão de se se lia ou se não lia. E publicaram­lha aí no diário, sim, sim…como lho conto, agora um pode mandar as cousas aos jornais e eles publicam­nas e não se passa nada. Não é como dantes, que havia que andar medindo mui bem o que se dizia, quanto mais o que se escrevia… Ora

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este fulano que escrevia no jornal do outro dia, desses que me guarda o Daniel, penso que era num dos boletins de Agosto, a ver se o tenho… é uma notícia que inda não tem nem um ano…  O  tio  Serafim   fez   ademães  de  querer   buscar   na   moreia   de   jornais   que tinha ao seu lado no escano e depois disse… – Mais não é preciso que o colha, posso­lhes repetir o que dizia…, o que escrevera a carta tinha um nome assim como catalão, é que o Daniel mora em Barcelona, … não me vem arestora à cabeça como se chamava, ora o que dizia inda não me esqueceu, e isso é o que conta… Pois diz­se que segundo conta o tal catalão que escreveu a carta, que eu não tiro nem ponho, se por mentira veio   que   por   mentira   vá…   mas   segundo   o   tal…   Albert,   veio­se­me   agora   à cabeça, chamava­se Albert, Albert… não sei que mais. O tal Alberte diz que, segundo uns estudos que se fizeram, os políticos de agora deixam muito que desejar a respeito dos seus hábitos de leitura. Que manda…! Poder falar assim dos governantes…! E baixando um chisco a voz o tio Serafim acrescentou: – …E seica, que olha que eu não sei se o crer, que esse presidente que há agora, esse último que entrou das direitas, é o que menos lê de todos eles. Ele diz­se que a cousa vai a menos e que se isto segue assim, que os livros chegará um dia no que desaparecerão. – Pois homem, pois é,… E da pia, que me diz você da pia? – Como? Que o que lia? Pois o que podia. Dês que o Daniel me guarda os jornais não tenho queixa, mas antes lia até o que vem nos macetes do tabaco… o que ligasse. O caso é ler algo, para não perder aquele costume, depois de que o tens colhido, claro. Porque também vos direi que aprendido ninguém nasce. E não é assim de hoje para amanhã que um lhe colhe o gosto à cousa. Não, que vai ser. À primeira custa até de manter a vista no carreiro… quanto mais! Vem sendo como o da arada; a primeira leira na que te atreves a ir detrás da rabiça, minha   madrinha   querida…!   Não  te  quero  nem   contar   como   vão   ficar   esses regos,   não   há   nenhum   direito.   Ora   depois   mole   e   mole   a   cousa   vai­se compondo e uma vez que o sabes fazer já é pra sempre. Esse saber não há quem cho tire, nem  o partem irmãos.  Pois  isto da leitura é­vos o mesmo,  é questão de apontar bem co temão as palavrinhas e não soltar a rabiça; e se

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ligasse que te saltaras uma linha, pois já volverás ao rego, o caso é não perder a paciência. Também, e seguindo co do arado, cumpre que se tenha boa relha, que isso sei­vo­lo eu bem que apontei umas quantas. Se a relha não é boa o arado vai aos golpes e colhe­che para onde quer, mesmo podes enrelhar uma vaca,  ora  que,  se  a  relha   defende…! A relha vem a ser como o interesse do leitor… se gostas do que lês não há linha que se possa resistir; isso é, por dura que   esteja   a   terra,   mesmo   à   hora   da   decrua,   se   a   relha   está   apontada   a consciência – e eu deixava­as como se fossem cutelos, Deus me perdoe – rego vai e rego vem, abres a terra sem te dar conta. Tudo tem a sua ciência, e se dás com ela, qualquer que seja a tarefa que empreendes, de ali em diante todos os santos te hão­de ajudar…  Quando o detective chefe escutou isto último espertou­se­lhe um grande interesse   de   repente…   Tinha   sentido   o   que   dizia   o   velho   ferreiro,   e   isso explicaria  porquê   eles  ainda  não  deram  convencido  a  ninguém  de  que lhes contara o da pia… “Claro, agora compreendo” Entrementes ele andava com estas reflexões, o tio Serafim seguia falando, e Riba procurava que não se lhe escapasse nenhuma das palavras que saíam da boca do homem sem analisá­la bem primeiro.  – …e agora há muito que ler, não lhe é como nos meus tempos, dantes só liam os mestres e mais os curas. O cura inda porventura era um homem mais lido   que   o   mestre,   polo   menos   naqueles   tempos,   talvez   agora   têm   baixado também… Essas   últimas   palavras   sobre  o   saber  dos  cregos   foram   a  convergir   cos pensamentos   do   detective,   que   andava   a   buscar   onde   podia   topar   esse elemento científico que lhe abriria o caminho das perguntas como relha que labora na terra… Claro, o abade, como não se lhe teria ocorrido antes? Iriam ao lugar de repouso onde morava dom Aurélio, o velho abade, e falariam com ele. Se há alguém que saiba algo esse será ele. Aquela entrevista ajudara­os mais do que   eles   poderiam   ter   antecipado,   e   com   mais   atenção   que   antes   escutava agora o que o Serafim ia dizendo. – …pois olha que te anda a cousa bem ao revés, agora que se pode ler o que se quiser, pois não vai a gente e se nega…? Claro que tampouco fica já quem are as terras, nem quem aponte uma relha… se quadra vai tudo junto,

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fruto   da   mesma   doença…   mas   eu   estou   falando   demais,   falem   vocês   que seguro   que   têm   cousas   mais   importantes   que   contar;   eu   só   sou   um   velho ferreiro que já nem ofício tem, nem ninguém a quem lho deixar, quanto mais saber do que falar. – Não, você disse cousas que nos serão de grande ajuda…. E enquanto o detective dizia isto, o tio Serafim botou a mão e pôs­se a apalpar na orelha, mentres dizia:  – Perdoe você, que não escutei o que me dizia… é que tinha a cousa esta baixada para não me aboujar enquanto eu falo… siga, siga, que agora já lhe ouço bem. – Nada, é que nós já nos temos de ir indo. –  Pois que mágoa que tenha de ser assim, porque com vocês dava gosto de falar. Despediram­se do senhor Serafim, que ficou lá no seu escano com um dos velhos diários na mão e entoando uma canção que a eles lhes pareceu mui agradável,   ainda   que   desde   abaixo   não   podiam   entender   o   que   dizia. Perguntaram­se se o senhor Serafim baixaria o volume do aparelho da orelha para não ouvir as suas próprias melodias, ou se pola contra, aproveitando que ouvia bem agora, queria saborear a sua cantiga. Contentes por ter dado coa ideia de visitar ao velho abade marcharam rua arriba em direcção ao seu carro. * * * Atinara   bem   o   Alcaide   querendo   parar   mais   cedo   a   outra   noite… dissera­lhes aos  companheiros  que lhes chegava bem o tempo,  e assim era, numas poucas noites estarão na sua próxima fonte, a Fonte do Jardim. Só umas quantas   jornadas   mais,   portanto   ele   guiaria   devagar,   para   quê   matar­se   se tinham   lua   avondo   para   chegarem.   Na   verdade,   pensava   o   Alcaide,   que também tivera sorte, por aqui por onde andam o terreno tornara­se agradável e ademais   ao   irem­se   achegando   à   aldeia   os   caminhos   andam   algo   melhor governados e tudo são facilidades. Deve de ser o seu destino, que sempre se encarrega de lhe dar a ele a melhor parte. Talvez haja muitas cousas que já iam no seu sino, como aquilo de nascer para ser alcaide para sempre. E vão esses, Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  123

que não fazem mais que fumaceira, e fazem­lhe perder a cabeça. O desses não tinha  nome,  fazer  que  se  torça assim o destino dum homem… que nascera para mandar. Aturou­os quanto pôde, e mira que nas aldeias onde havia destes ele sempre lhes dava graxa…, fazendo como que os entendia. E mas eles não se contentavam com nada. As últimas obras públicas que ele recorda ter feito em Penacova,   quase   os   tem   que   obrigar   a   aceitá­las   e   compreender   os   seus benefícios. Ele queria­lhes fazer uma calçada como tinha feito noutros lados. Deu­lhes   a   escolher   por   onde   é   que   a   queriam.   Polo   meio   do   lugar   estava descartado porque senão depois já não passam nem os carros, ou os tractores, que vêm a ser o mesmo. Isso qualquer o entende, e eu compreendi­o também. Mas logo vai e ofereço­lhes fazer uma calçada ao longo da estrada que vai do lugar até ao cemitério, e vão eles e dizem que não, que eles não gostam… que não sei quê de estragar a paisagem rural, e não sei quantas cousas mais. Vou eu com toda a minha boa intenção de lhes levar algo de progresso e modernidade e saltam­me com essas parvadas… e não sei que mais do meio ambiente... E que ademais os mortos não precisavam de calçadas para os seus passeios, que havia  que  fazer   algo  mais  polos  vivos…  Vamos,   que ainda  se  riram à conta minha.   Pois   logo…   que   vos   parece  se em  lugar   de nessa   estrada  fazemos   a calçada da aldeia até à Ranha?   “Sim claro, mui atinado, para que passeiem as ovelhas que são as que vão para esse lado… ou senão para subir­se por elas e coa carretilha ir às verças…”  Pois logo não faço nada e assim não me meto em sarilhos. E eles venha é dá­lhe co que eles queriam…  “nós queremos empedrar aí abaixo a canelha que vai ao Campo, e falando do cemitério, ali não nos viria mal uma bilha para colher água, que há que a andar carrejando desde o meio da  aldeia…   isso   sim   que   faz   boa   falta”.   “Olha   que  são   burros”   –  pensava   o Alcaide –, “não entendestes nada, o dinheiro já está aprovado e, ou vos coloco as aceras, ou ficais sem nada”  E aí foi onde quase lhes ganhei a partida, porque alguns avarentos, que não podem rejeitar nada, começaram de reformular o da calçada essa da estrada…   “Homem, se os vai devolver…, melhor é isso que nada”       “Mas   olha   que   sois   néscios,   e   não   vos   valorais   nada   –   seguia   um lenha­verde, ou até penso que era ‘uma’ – a calçada aqui escaralha a paisagem, que é o único que nos fica já, ainda que já está bem escaralhada…”   “Mais olha que lá ao monte a calçada não chega, não escaralha tanto a paisagem, vamos

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digo eu, ora eu muito disso não entendo…” – o avarento treme só de pensar que um peso escape – Mas eles, nada, seguiam e seguiam e seguiam… “Mirai o que   vos   digo!”   –  segue   a   dizer  a  da  saia   verde,   enquanto  saca  as   mãos   dos bolsos dos seus  jeans  e as move gesticulando – “…uma calçada cara à Ranha ficaria   tão   bonita   como   uma   vezeira   de   ovelhas   pascendo   na   Praça   do Obradoiro  em Santiago de Compostela”   E lá gargalhadas, e eu, canso já de tanta risada dos de Penacova, estive para marchar, mas afinal, e para não ficar tão mal, porque alguns ainda me votavam, os mais deles eu diria, autorizei o da bilha para o cemitério, e marchei dali como fugindo do inferno. Mas eles nunca se contentam, parece que não lhes chega nada. Arranjei­lhe os poços de lavar, onde havia um velho de pedra, no seu lugar fiz três novos com cimento, um para beber o gado e outro para lavar, e o outro para…, três, para que não se queixem,   e   tampouco   gostaram   deles.     “Nós   queremos   que   nos   arranjem   o forno que está caindo aos cachos”.  E para que querem o forno se não cozem? Vão lá para aí vinte anos que não cozem nada e acordam­se agora de se lhes chove no tendal, ou que se o pavilhão precisa uma porta nova, e dá­nos algo para a pá, o rodo e mais o vassoiro, e que não lhe metam tijolos refractários, que para cozer é preciso usar os de barro… Pedir, pedir, pedir,… e os que mais pedem são os que menos me votam; ora claro, por não ficar mal cos velhos, que são dos que me eu nutria…, e por certo não de todos, que em Penacova já desde a época de Franco houve desses revirados que falavam de política e que não iam muito à Missa; claro que enquanto não morreu o Velho estavam todos calados, e eu feliz como o rapaz que queria ser alcaide. Ora dês que morreu o Velho, estes, junto cos barbas­verdes, e mais algumas mulheres, fizeram­me a vida impossível… até que quase perco o sentido, e aconteceu o que tinha de acontecer.  Estes pensamentos traziam ao Alcaide triste e mal­humorado. Porquê não o   queriam   todos?   Se   ele   era   o   melhor   alcaide   que   tiveram,   ainda   mais   que melhor,  ele  era  quase   que   o  único  alcaide  que  tiveram…  e  mas  alguns  não depreenderam a querê­lo. Em que falhou? Que teria que ter feito que não fizera para   contentá­los?   E   com   aqueles   pensamentos   chegara,   quase   sem   ele decatar­se, à primeira fonte da sua guiada. Era cedo, e depois de beber eles e mais dar­lhe a sua parte à pia, sentaram à beira daquele formoso manancial.

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Era a Fonte do Jardim. Com uma água esquisita. Com uma paisagem nocturna única. * * * Por certo que Nuestra Región não volveu a mencionar o assunto aquele do velho…   sim   homem,   sim,   aquele   que   namorara   e   se   fora   lá   ao   Caribe   coa mocinha aquela nova em lua­de­mel sem casar nem nada. Eia, isso sim que está bem feito! Comer o mel sem aguentar o aguilhão…! Quem sabe, se calhar a cousa não foi adiante e não vão arejar assim o sofrer do pobre homem, que já lhe chega bem com não poder fazer a sua obra benéfica e teve por riba que perder tão pronto a moça, agora que lhe saíra. Ou diz­se que pôde morrer, que era bem velho… homem, velho, velho, não era, mas com esses desgastes que se diz que lhe levava fazer vida de… de como se fosse moço, vá! Pois não se diga nada…, olha que os golpes fazem amolecer até as pedras. Mas não, mulher, não pode ser, que se morrera já se teria sabido polo jornal, não sim? Pois claro, não iam desaproveitar uma ocasião como esta para lhe brindar homenagem a um homem que lutou toda a sua vida por… polo que fosse, isso é o menos importante… Mas um homem lutador bem merece ser reconhecido  quando morrer,   senão   é   como   se   não   tivesse   vivido.   E   ele   viveu,   vá   que   viveu.   E viveu­che bem. Mas agora de morto Nuestra Región já nem sequer se lembra de que ele queria ter feito a sua obra benéfica, e por culpa de que ninguém topara a pia ia ele ter que deixar este mundo sem cumprir esse desejo… ele, que não estava afeito a deixar assim como assim um desejo sem saciar. Homem! É que, se calhar, ultimamente andava tão saciado doutras cousas que nem sequer se apercebeu  que ia deixar este mundo sem fazer a obra essa. Ele quereria ser lembrado por algo mais que por ter ido ao Caribe coa mocinha essa que… que quem sabe que andará agora fazendo a pobre. Terá­lhe deixado algo o velho? Mira   que   se   ainda   por   riba   vai   e   não   lhe   deixa   nada,   sim   que   seria   foda… Homem pois é, mas ela já sabia bem a que se expunha, ora que uma cousa é saber e outra saber… Porque se soubera não teria… ou talvez sim… A gente é­che mui má de entender, e isso são­che tudo murmurações, ou pensamentos dos que não lhe querem bem. Seguro que ele está por aí vivo, o que se passa é Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  126

que há gente à que lhe dá reganho que os ricos vivam tantos ou mais anos que os   pobres.   Homem,   pois   também   não   estaria   mal   que   fosse   uma   cousa proporcional… tu queres viver melhor, pois gasta­se­che a cousa antes, e agora morres novo… e tu, aquele outro de acolá,  vais­te sacrificar e não  dilapidar nada, … pois vais viver algo mais… e assim se calhar isso de ser milionário não tinha  tanto  aquele, e a  gente seria menos invejosa uma da outra, e não lhe desejariam a morte a ninguém…, vamos digo eu… Ora quem o sabe, se calhar nem morreu. 

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Capítulo VI

A FONTE DO JARDIM Entre   coucheiras   de   juncos   e   de   fentos,   onde   a   primavera   espargiu generosa as suas flores, ali, no meio da regata húmida e frondosa, abrolha a Fonte do Jardim. À sua esquerda ficam as touças do Castelar, que bem seguro recebem esse nome por subirem­se os seus carvalhos quase até às fraldas do Castelo Velho. Em frente, os lameiros da Alobada descansam agora, nem a água da rega precisam receber de noite; são eles ricos e fazem sentir rico a quem os contar entre as suas meras. Fazem sentir afortunado a quem tiver a sorte de os ver, ainda que só fosse estando de passo e no meio da escuridão, como lhes acontece a estes três viageiros da noite. A humidade desta fraga que estoura de tanta   vida   que   mantém,   carvalhos,   vidoeiros,   castanheiros,   amieiros, salgueiros, sabugueiros, cepas de vimeiros, azevinhos, loureiros, sanguinhos, ameixeiras, espinheiros, gestas, piornos, uzeiras, carquejas, tojos, carpaços,… dá­lhe ao verde o seu senso plural. Nenhum dos três homens sentira nunca, apesar de que a luz que os alumia não sobrava, um abraço como o que a Mãe Natureza lhes estava dando  no Jardim, e que cada um ao seu jeito estava a experimentar.  Ainda havia vagar até que chegara a hora de marcharem, portanto os três e a pia beberam e gozaram das sensações que mesmo os anovavam. Beber e empapar­se.   Dom   Narciso   sentia­se   um   coa   terra   e   quis   incorporar   à   sua vivência   àqueles   seus   companheiros…   se   eles   eram   parte   da   terra,   daquela deviam,   por   força,   formar   parte   também   dele.   E   Narciso   olhou­os   com   tal franqueza   que   os   dous   homens   pareceram   sentir   aquele   abraço   emocional. Perfeuto quis torcer a cara, dar a volta e olhar para outro lado, mas não o fez e em  vez  disso   resistiu.   As   bágoas   em fio   face   abaixo.   Dentro  a  batalha  entre sentires que semelhavam contrários, e afinal, a calma. Enxugou os olhos coas Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  128

costas das mãos e ajoelhou­se cara à fonte e bebeu. Com cada golo enviado sentiu   como   aqueles   pedaços   negros,   que   se   lhe   desfizeram   coa   luta,   eram lavados e expulsados fora dele. Já não os sentia.  Já não  mancavam… fora o medo aos espelhos da alma, fora o medo à mornura do olhar amigo, fora o medo   a   querer­se   a   si   mesmo.   Por   primeira   vez,   num   tempo   que   a   ele   lhe parecera eterno, Perfeuto gostava de olhar o seu próprio reflexo na água limpa do Jardim. Ergueu­se, caminhou até Narciso, e pondo uma mão sobre o seu ombreiro,   disse:   “graças   amigo”.   “Não   se   merecem,   irmão”   foram   as   tenras palavras   de   Narciso.   Sentaram   nas   pedras   da   beira   do   caminho   e   os   dous buscaram o Alcaide coa olhada.  O Alcaide, de costas para eles e a fonte, lá a uns poucos metros, estava de pé direito cos braços caídos em frente dos carvalhos. Ele também quisera ter experimentado   o   que,   a   julgar   pola   sua   reacção,   fizera   estremecer   o   seu companheiro.   Ele   também   recebera   a   mirada   de   Narciso,   ora…   recebera­a realmente?   Porque   ele  não   sentira   nada.   Que   levava   ele   dentro   que   parecia filtrar   tudo   o   que   até   ele   chegava   deixando   assim   estéreis   os   mais   sinceros intentos de comunicação? De que dianhos estava ele feito? Nem sequer seria de manteiga, que a manteiga tem a capacidade de tremer e até de se derreter co calor. E ele não sentia nada. Ele era como aqueles carvalhos aos que tanto lhes tem  que   chova   ou   vá  calor.  Ele  devia estar feito de pau. De  madeira seca  e velha.   E   com   aqueles   pensares,   que   não   sentires,   foi­se   bosque   adentro   e desapareceu.   Até   a   noite   seguinte   não   o   volveram   ver.   Narciso   e   Perfeuto falaram e beberam e deram água à pia…   “Toma tu amiga, que nos trazes a todos por duros caminhares” dissera Perfeuto com um tom que a Narciso lhe parecera   tranquilo   e   até   tenro.   Narciso   achegou­se   com   as   suas   mãos carregadas   de  água   para   lhe  dar  também  ele.   E   os   homens  perguntaram­se polas sedes da sua companheira de pedra; mas não tentaram topar resposta em vãos exercícios intelectuais. Não, a sua não era realmente uma pergunta, era só um querer fazer próprio o sentir da pia de pedra. Uma pedra que cada vez se via  mais  reluzente e dourada.  Aquela noite quando  a esconderam na beira da folhagem da carvalheira, trataram­na com muito agarimo… como se fosse um ser vivo. Até um deles dissera: “aí ficas sozinha até amanhã à noite”. Mágoa   que   o   outro   companheiro   não   pudesse   participar   daquele

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renascimento, onde andaria o Alcaide? Aguardaram um bocado. Não chegava. Narciso e Perfeuto marcharam juntos para o dia. * * * –   …Vês  tu   como   levava   eu  razão,  e  Nuestra   Región  não   falou  nada   do abade esse que assou os santos? – E a ti que mais che tem, se tu só lês o chiste do Carrabouxo?  – Que terá que ver isso! Eu bem vi que não puseram nada de nada, ainda que eu não o pensasse ler, eu para perder o tempo chega­me co chiste. – Pois não fazes mal de todo, porque eu leio quase por inteiro o que diz o jornal e ao cabo sempre penso que foi uma perda de tempo… – Ai pois logo por sorte a ti tempo não te falta! Que senão… –  Quê?   O   que   me   sobra   a   mim   é   vagar,   que   aqui   nesta   Delegação   da Conselharia não há nada que ranhar… – Então tanto che tem, dum jeito ou doutro há­lo ter que matar… –  É o  que eu digo, e o jornal vem­me ali de graça,  oh, senão também, caralho! Um cão por ele não malgastava, não tivesses medo. – Homem, eu o chiste guicho­o ali na taberna, e depois passo pra ali um pedaço de parola cos gandaias do Pardieiro e já não che tenho vagar para mais nada, mas tu lá sem nada co que te distraíres, nem gente à que atender, que vais fazer…? –  Nada homem, nada, se não fosse por  Nuestra Región encheria­che­me eu de pensar…

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* * * …Os   agentes   iniciaram   aquela   entrevista   carregados   de   expectativas,   e fizeram um trabalho excepcionalmente paciente. De não ser assim já se teriam marchado nos primeiros minutos, logo de ver que o abade desconfiava tanto deles. E eles volta a lhe assegurar que não tinha de que se preocupar, que eles vinham de boa fé; mas isso da boa fé já não era suficiente para aquele homem algo avelhentado pola vida de semi­reclusão voluntária, ou por vai saber tu o que… – … –  Não, não tem nada de que se preocupar, como já lhe disse, nós só lhe queremos falar dum assunto relacionado com uma das últimas freguesias onde você disse missa, mas não deve apurar­se, que nós só estamos interessados em ver se a sua memória nos poderia guiar nalguma direcção para poder seguir investigando   o   tema   que,   desde   há   uns   meses   já,   nos   ocupa   e   ao   que   não damos entrado bem. – … –  Sim, pode­se dizer que nós somos como… vá, que pertencemos assim como à Polícia; mas nós só vimos a falar com você para ver se logramos alguma pista que nos leve a saber algo da pia desaparecida. – … – Não, nós não pensamos que fosse você, que já nos disse que não sabia onde fora parar quando a levaram do museu, mas a nós o que nos seria de grande ajuda é saber se você tinha alguma informação de quando a pia fora levada de Penacova por primeira vez, e não desta última desaparição. – … – Não, nós só estamos interessados pola pia. Nem os altares barrocos nem os confessionários, nem mantéis ou cousas polo estilo nos preocupam neste momento… Mentres o mais velho dos agentes seguia a levar o peso daquela monótona conversa,   Riba   tratava   de   imaginar   os   altares   barrocos   dos   que   o   abade   se pusera   a  falar.   É  certo   que  eles  não   entraram dentro da igreja  nunca,  entre Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  131

outras cousas porque eles visitavam Penacova em dia solto e daquela a igreja estava  fechada.  Quando   se  encontravam  com alguém  a quem lhe poderiam quiçá   perguntar   pola   chave,   preferiam   aproveitar   para   lhe   fazer   perguntas relacionadas coas sua investigações, e a cousa foi indo sem que eles passaram nunca   adentro,   tendo   que   conformar­se   coa   olhada   através   dos   vidros   da janela que dá à parte de atrás do sagrado. A igreja estava fechada para evitar que  desaparecera  nada…  Mas  como  dizia o  outro… – “Pois  não  sei eu  que haviam  de levar da nossa  igreja, como não levem o abade, outro dianho de cousa ali não fica!” – “Mira que eu conheço bem igrejas, e mais nunca vi uma tão desvalijada como a nossa” – “Homem, está calada por Deus, que até lhe arrancaram as lousas da parte em alça onde estavam colocados os altares… agora, Deus me perdoe, parece uma corte para as vacas” – “Mesmo dá reganho ouvir missa assim … e que me dizes dos poucos santinhos que ficaram?”  “Isso, felizmente alguém teve a ocorrência de os esconder das rapinheiras mãos do pároco   durante   aquela   temporada,   que   senão   também   teriam   desaparecido canda o resto, e nós ficávamos a vê­las vir” – “Ai, eu hoje vou­vos ir à missa do Corpus   a   Ameixeiras,   que   ali   tão   sequer   ainda   não   desfizeram   a   igreja”   – “Contudo, os cregos roubam muito de Deus…”   Pedaços de conversas como esta   batem   de   vez   em   quando   nos   miolos   do   abade,   e   isto   deixa­se   notar porque ele relampa muito os olhos e põe­se como se vira o demo ou a sua própria  senha…   mas   neste   instante   o   senhor   abade   escuta   o   que   lhe  diz   o detective e parece sossegado. – …nós não temos nada na sua contra, ao revés, eu diria que nos merece você o respeito devido a um servidor da comunidade… em certo jeito como nós mesmos. E esta é precisamente a razão pola que o seu testemunho nos parece de grande valor. Você passou muitos anos naquela freguesia e tratou com toda a gente que poderia ver ou estar interessada na pia que desde sempre estivera ali na igreja… Aguardo que não duvide das nossas intenções, dou­lhe a nossa palavra. – disse assim, sem sequer consultar o Riba coa olhada.  O abade ficou calado um pouco, como processando o que lhe diziam… ou   quiçá   estivesse   sendo   visitado   por   algum   daqueles   diálogos   que   desde dentro do seu crânio lhe boureavam a cabeça, e depois pôs­se a falar outra vez. 

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Riba   aproveitou   a   desorientação   do   abade   para   seguir   a   trazer   à   sua memória   lembranças   da   Igreja   de   Penacova.   Ultimamente   andaram limpando­a por fora e ficara com essa cor amarelada característica da pedra velha que a ele lhe parecia formosíssima. – “andam a ponhê­la mui gabacha” – sentira   Riba   numa   conversa   um   dia   –   “se   calhar   é   que   também   a   querem levar… claro que só têm que levar as paredes, o resto já lá o têm…” – “e por sorte   os   homens   daquela,   quando   marchara   o   abade   com   tudo,   não   lhe deixaram levar o relógio, que senão… onde ele iria?” – “Não saberíamos nem a hora que é” “Ele não, filha, não”. Riba participava da admiração colectiva para aquela pedra com forma de homem que está lá na direita onde começa de se erguer o campanário, e que dá a hora co sol. A Riba dera­lhe algo que matinar a diferença que havia entre a hora que marcava o seu relógio de pulso e o de pedra, quase duas horas… uma hora era explicável, por aquilo da mudança para o aforro de energia, lá onde suponha tal, ora duas… mas não tardou em aperceber­se   de   que   a   hora   que   se   veste   nas   agulhas   dos   relógios   é   a   do Mediterrâneo,   ainda   que   aqui   se   viva   na   do   Atlântico,   como   na   vizinha Montalegre. O abade pôs­se de novo a falar: – … –  Mire eu não posso fazer outra cousa que dar­lhe a minha palavra; ora bem,   posso­lhe   prometer   que   o   que   saia   desta   reunião   não   terá   nenhuma repercussão negativa para você. Só queremos que nos ajude na procura da pia, não prejudicá­lo a você. – … – Não, a você ninguém o acusou de nada, nem há denúncia de nenhum roubo   de  altares  ou   confessionários  ou  cousas  assim… que já sabemos  que você   levou   tudo   isso   mas   não   foi   para   vendê­lo,   que   não   serviam.   Não   se incomode,   que   já   mais   gente   nos   disse   que   os   altares   andavam   caindo   e precisavam que  alguém lhes  botasse uma mão… Ora como o orçamento co que você se tinha que arranjar não lhe abundava para governá­los, pois que decidira  outro   meio  para   resolver   o  assunto  antes   de que  lhe  caíra   o  Santo António em riba, que já andava buligando lá no alto da repisa. E sim, também sabemos que por causa disso você colocou o santo no chão, num recanto junto co Santiago, a quem lhe partira a espada e mais perdera o chapéu, e coa virgem

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do Carmo, que andava ela mui mal pintada… e quando depois marchou cos altares esqueceu os três ali no chão… e que quando volveu por eles para os levar para a incineração final, não os topou por lado nenhum e logo mais tarde compreendeu que a gente os levara e os escondera nas suas casas, que também cumpre valor; e também nos disse que afinal os devolveram à Igreja, mas que ao Santo António lhe fizeram um banco de madeira, ao Santiago lhe colocaram um livrinho tapando o pedaço de espada rota que lhe ficava na mão e levava agora um chapéu feito de palhas… desses de ir à seitura, e que à virgem do Carmo traziam­na toda pintada que era um primor… E claro, já era tarde para os levar e se desfazer deles… ora já sabemos, que no­lo repetiu você muitas vezes,   que   não   eram   para   vender   nem   cousa   nenhuma…   que   isso   só   lho apunham as más línguas, mas de certo não tinha nada. Que você sim que o queimara tudo no pátio da reitoral da outra freguesia de abaixo, porque em Penacova você já não tinha reitoral, que a vendera nada mais chegar, e que agora no que fora a reitoral de Penacova estava a taberna, que era a única tenda que havia no lugar, e da que se servia a gente para comprar desde aspirinas até lixívia,   sem   esquecermo­nos   do   tabaco,   as  pilhas  e  os   pitos   congelados…  E claro que tem razão… por culpa de estar ali a taberna… que tampouco se podia fazer ali lume no meio do pátio e que ardera tudo junto cos altares e todas essas cousas douradas e retorneadas fora de moda… Mas nós já o sabíamos e não desconfiamos, como outros fazem, de que você não lhe chispara um fósforo a tanta cousa inservível… E também concordamos com você em que a ideia de queimá­los era melhor que a de enterrá­los no horto… que sim, que você à primeira   dissera­lhes   aos   vizinhos   de   Penacova   que   os   enterraria   como   lhe sugeriram  eles…  mas  que  logo você  pensou­o melhor  e que creu que se se enterravam   tardariam   em   apodrecer   e   sairiam   quando   se   cavasse   ou esgaravatassem os cães e não pareceria nada bem, portanto escolheu o lume que derrete tudo a escape… E não se alvorice, que nós sabemos que não é certo que lhes dissera o do lume para poder ir levando tudo para a outra freguesia e depois vendê­lo tudo a um museu ou a um coleccionista privado de… donde disse você que dizem que era o tal coleccionista? – …

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–  Não, se eu já sei que é tudo inventado por esses de Penacova que já deixaram de crer nos curas e agora levantam­lhe contos para a gente ir por aí pensando que os abades são todos uns aproveitados e uns desalmados... mas não  se   preocupe  que   nós  isso já lho  sabíamos.  E  não  acreditamos  nisso   do coleccionista que diz­se que viera de fora daqui, e que nem sabia falar o galego, nem tão sequer o castrapo, e que lhe enchera a bolsa de dinheiro… ademais tem você razão, quanto pensam eles que lhe podiam dar por uns altares aos que   já   não   lhes   brilhavam   os   dourados   e  nos   que   alguns   santos   buligavam entre as colunas retorneadas dos cangalhos…? E ademais eram mais antigos que Matusalém, … nós cremos o que você diz, e por isso gostaríamos de que nos falasse algo da pia… – … – Homem…! Como vamos nós pensar que você tentou queimar a pia? Já sabemos  bem que  não, que ademais à pia ao ser de pedra não  lhe passaria nada…   já   nos   ficou   claro   que   você   só   lhe   plantou   lume   aos   altares   e   os confessionários e mais aos santinhos que deu apanhado… e também já nos contou   que  alguns   se  lhe  escaparam…  e que não  era  culpa sua,  que fora a gente a que os escondera nas casas… tampouco ia ir você de casalandreiro a meter as ventas a ver se estava ali o Santo António ou algum dos outros. E tem muita razão ao pensar que esses de Penacova ainda se haviam de rir à conta de você se o fazia… e lhe diriam: – “Passe, passe senhor abade, que o santinho está­lhe aqui connosco ceando ao quente…” E agarrando um tição desses mais gordos da lareira acrescentariam: “ai, que se chamuscou um nada no lume o coitado…! Se vê que bebeu muito vinho na ceia e deu­lhe o sono e caiu no lume… mas olhe,  assim ainda lhe dará menos trabalho a você, não sim? Se quer   rematamos   aqui   o   trabalho   e   assim   tão   sequer   ainda   nos   quenta   as canelas…” E tudo o diriam só para burlar­se enquanto escondiam o santinho lá no   fundo   da   ucha   entre   a   brancura   dos   lençóis   de   linho,   ou   envolvido   nas roupas do casamento que guardam no mesmo sítio, ou até debaixo da erva no presel do boi chegariam a esconder a Virgem… – “Porque em casa se calhar dá­se­lhe por entrar a dom Aurélio e… a um cura não se lhe pode dizer que não passe   assim   como   assim…   e   ademais   eles   coa   sua   lábia   vão­te   enredando, enredando, e quando te queres dar conta já lhe disseste do ninho, e porventura

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nem te apercebes… ai, mas eu amolei­o de raio! A ver se se atreve de entrar à corte onde o boi!”  Por isso você não fez por topar os santinhos que faltavam, e depois,   claro,   quando   apareceram   já   era   tarde…   e   não   é   certo   que   o coleccionista não lhos fosse a querer… ainda que alguns dizem que depois da repinta que lhe meteram à virgem do Carmo não havia Deus que a quisesse… e isso   que   lhe   colocaram   bonitas   alfaias   a   jogo   coa   sua   coroa…;   contudo   já sabemos que isso do coleccionista era mentira. Que você só fez o que fez, e mais nada.  A cousa seguia e seguia, mas o abade não soltava prenda, e tiveram que marchar, mas não sem antes falar cos encarregados daquele lugar de repouso por se escutaram a Aurélio falar alguma vez do assunto que lhes interessava. Segundo   os   cuidadores,   havia   já   tempo   que   Aurélio   se   empenhava   só   em repetir   a   história   da   queima   daquele   património   da   Igreja   de   Penacova   ou património   de   todos,   segundo   a   gente,   deixado   ali   polos   antepassados,   e roubado polos curas. Ele houve um tempo em que o crego chegara quase a aceitar a ideia de que quiçá pudesse ser que tivessem razão os que diziam que os vendera ao coleccionista  que viera da Terra Ancha. Alguns incluso diz­se que lembram como o tal coleccionista presumia de experto e que até se gabava de que sabia onde, e a quem lhas fazia. E assim aproveitando a ignorância dos que desconhecem o valor do que têm, e pensam que ainda lhes fazes favor se lho liquidas, ele ia­se pondo cada vez mais rico. “Pode­se­lhes roubar tudo o que   têm   e   nem   se   apercebem,   …se   me   apuras   até   a   língua   lhes   poderia arrancar, ainda que a levem na boca, e ainda que a levem fechada; porque a mim,   como   sabem   que   são   de   fora,   não   me   ladram”   diz­se   que   dizia   o coleccionista, se bem ele dizia­o na sua língua, que por certo não a deixava descansar muito, que seica latricava até polos cotovelos. Ora esta aceitação da possibilidade da venda e do coleccionista não durara muito, apenas uns meses, e de volta coas luminárias. Os cuidadores não acreditam que queimasse nem os santos nem os altares, bem seguro que os levou, e por riba com enganos para que os vizinhos lhe carregaram tudo no carro… E a gente, de parva, não desconfiara   nada,   e   isso   que   ele   repetia­lhes   a   todos:   “tende   conta,   que   os quero intactos” ou talvez alguém sim que compreendera, mas tampouco era

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boa cousa  ir contra o abade, que daquela ainda tinha algo de autoridade,  e mais lábia para te fechar bem o bico se o abrias sem a sua licença. Ora bem, enquanto  o  andava  rondando a imagem do coleccionista,  parecia o homem mais   sossegado,   e   todos   desejavam   que   a   aceitara   definitivamente,   mas   ele nada,   volta   co   lume,   e   daí   não   há   quem   o   tire.   Não,   eles   não   crêem   que queimasse nem os santos nem os altares, porque senão, para que queria andar co  trabalho de os levar para a freguesia de baixo,  onde ninguém, por certo, cheirara o fumo nem cousa nenhuma? Ou é que para carbonizar os santos e as outras trapalhadas não lhe chegava a eira das Cabras, mentes elas andam no monte? Ou a da Linheira, que o linho deste ano já está maçado e mais fiado, ou mesmo   a   da   Festa,   que   antes   de   que   se   celebre   já   se  haviam   de   apagar   as chamas… E ademais fazendo­o ali teria muito quem lhe botara uma mão e lhe ajudara a chegar o lume… “Eh tu, que fica atrás um cangalho de uvas que caiu daquela coluna retorcida que botaste…!”   “Ai, pois bota para cá, caralho, que estes para fazer vinho não valem…”   “E aquele santinho pequerrecho, de pêlo crespo e dourado, como dis ti que se chama,… ou chamava?”   “Aí che passo o braço da santa Luzia que deste lado não arde, e por aí tendes mais brasa…” “Eh,   olhai  a  cor   da  labareda   que  faz  o  manto  daquele santo…!”    E  assim  a foliada   teria   sido   para   todos…   e   ademais   a   gente   poderia   aproveitar   para queimar os farrapos velhos, como faz uma vez ao ano, e aforrar­se­ia um lume, e mais lenha e trabalho. Porque a roupa velha, só, não arde de gana e há­de andar­se   sempre   a   remexer   e   acrescentar   lenha…   olha   se   teriam   ajudado aqueles altares velhos tão sequinhos como estavam...  Afinal   de   contas,   tudo   aponta   a   que   teria   sido   mais   fácil,   e   de   mais proveito, que se armasse  a fogueira ali em Penacova. Isto era prova de que, efectivamente, o da queima era uma escusa que dom Aurélio utilizava para não ter que dizer que o vendera todo e se lucrara. O agente que dirigia a conversa insistiu­lhes   uma   vez   mais   aos   cuidadores   que   tentassem   fazer   memória   e lembrar qualquer comentário que dom Aurélio pudesse ter feito sobre uma pia de pedra que também levara o mesmo caminho que os confessionários e todo o demais. Mas a sorte tampouco estava ali para eles hoje, e logo de dedicar muito tempo e esforço marcharam daquele lugar de repouso, perto da cidade das  Burgas,   esgotados.   Foram­se  com  um  ar  de desesperança  e também  co

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desassossego que lhes deixara a teimosia do velho abade co lume; tanto dá­lhe com as chamas que mesmo lhes parecia agora que saíam do inferno. * * * Narciso e Perfeuto chegaram de novo às beiras do Jardim. Vinham juntos, e quando se iam achegando à fontela viram que ali, frente aos carvalhos, no mesmo sítio que a noite antes, estava o Alcaide. Não se imutou sequer ao sentir que   eles   chegavam,   semelhava   como   se   andasse   meio   hipnotizado   polas árvores. Os seus companheiros fitaram um para o outro sem saber mui bem o que fazer; ali ficaram de pé direito olhando ao seu companheiro, que seguia sem   mover   um   músculo.   Depois,   Narciso   e   Perfeuto   sentaram   nas   mesmas pedras que ocuparam a noite anterior, e miraram em silêncio para o Alcaide que seguia ali tão quedo como os carvalhos que encarava. O tempo começou de passar, mui a modinho à primeira e algo mais ligeiro depois, ou assim lhes pareceu a eles. O Alcaide, que seguia em reunião com as árvores, semelhava mesmo estar fora da dimensão temporal. Narciso e Perfeuto até duvidaram se seria real aquela silhueta ou simplesmente era o espectro da noite anterior. Um espectro não podia durar tanto, não podia ter resistido após todo o dia ao sol. Em todo o caso seria a senha que já se andava deixando ver, sinal de que a morte rondava já ao homem ausente. Para nenhum dos dous era de agrado a ideia de que o seu companheiro fosse abandonar este mundo assim sem avisar, sem rematar a travessia na que andavam, porque aquele não podia ser o final, pressentiam que não.  Diferentes  teorias   sobre   aquela   imagem   foram­se   sucedendo.  E  se   não fosse o Alcaide? A dúvida fez­lhes saltar dos seus assentos de pedra, desde ali eles não lhe viam o rosto… e com aquela escasseza de luz que havia, bem podia ser outro o que ali estava de pé… e tão perto da pia… A pia! Perfeuto correu até onde a esconderam a noite anterior enquanto Narciso se achegava ao homem que, teso como uma candeia, ali seguia chantado sem se trugir. Era o Alcaide, ou polo menos tinha as suas feições, ainda que não correspondesse à olhada de Narciso nem quiçá sequer o vira. O Alcaide tinha os olhares perdidos pola janela que mirava para o seu interior, na que ele se afincava desde havia uns Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  138

dias.   O   que   via   deixava­o   sem   resposta   possível.   E   assim   ficou   até   que   de súpeto,   quando   já   os   companheiros   estavam   sentados   de   novo   e   mais tranquilos,   logo   de   saudar   a   pia   e   molhá­la   coa   água   fresca   do   Jardim, desapareceu como a noite anterior.  No céu algumas nuvens tapavam as guias que a cotio eles seguiam para não errar no seu caminho. Perfeuto e Narciso perguntaram­se para onde é que teriam que tirar aquela noite, mas ao não achar estrelas que os guiassem, ali ficaram.   Falaram.   Escutaram.   Sentiam­se   cantar   as   cloucas   do   regueiro   do Pradonovo. A água da fontela guardava silêncio. Seria verdade o que se diz de que as águas de noite dormem? Aquelas do Jardim baixavam com tal sigilo, que de   não   ser   polas   ervinhas   que   se   bambeiam   lá   no   meio   do   rego,   ninguém poderia crer que estivessem em movimento. Certo é que viajam por terra chã aqui nas beiras do recanto da fontela, e ademais o seu passear transcorre sobre uma   almofada   de   morujas   onde   nem   os   passos   dum   gigante   soariam.   Mas outras águas não corriam com tanta sorte; a algumas mesmo ao toparem­se num dos remates da terra, só lhes restava tirar­se aos saltos polos rochedos abaixo, fervendo como o caldo que escapa do cu do pote. Estas sim que hão­de andar bem cansas de tanto brinco, e seguro que quando se lhes vem a noite, dormem. Os vizinhos de Penacova polo menos assim o pensam, ainda que não todos são do mesmo parecer… –  Mas mulher! Como vai dormir a água? Isso que tu dizes não tem jeito nem direito. –  Pois não o terá mas eu digo­che a ti que dorme. Olha que aquela que ferve a cachão lá em Chão­de­Lamas, que de dia mete medo o barulho que ela arma, pois vai e colhe pola noite e dorme… se quadra é que aproveita o estar lá agachada detrás do Penedo do Peão para dormir, ora diz­se que dorme toda a noite. – Parecer­lhe­á à gente, porque se calhar não a têm sentido rugir, ora, daí a que durma… – E logo diga­me, porquê não se sente? Porque de dia bem barulho que ela mete, que até ressoa lá pola Xaravelha, por detrás do Castelo Velho e o Penedo da Uzeira… mas de noite está calada, nem sequer um chio.

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–  Pois porque a gente não se pararia a espreitar ou não se achegaria o suficiente para a sentir, que queres que eu che diga… –  Pois eu tenho­me posto a espreitar e tenho ouvido até os ouleos dos lobos quando andam à janeira, mas a água jamais a pude escutar. – Ora mulher! Tu achegaste­te alguma vez de noite lá ao fundo de Aguiar para ver se a cachoeira dormia ou ficava esperta? –  Pois  não,   que  não  sou   tão valente  e tenho  medo,  e ademais não  me havia de tirar as minhas dúvidas, que já é sabido que se te achegas muito, pois quiçá já a espertas e daquela já não sabes que pensar. –  Pois   daquela   já   sabes   que   está   esperta   e   ponto,   que   mais   queres descobrir? –  Eu queria saber se antes de que eu, ou qualquer outro, se achegasse o suficiente como para poder senti­la, ela dormia. – E como pensas que vai dormir? – Coma nós, ficando caladinha e indo rego abaixo sem aperceber­se…  – Pois há gente que fala mentres dorme, e alguns até se levantam, diz­se que lhes chamam sonâmbulos. –  Pois  não  pensara  eu  nisso… talvez os que pensam que as águas não dormem é que sentiram a alguma sonâmbula dessas… – Que não, mulher, que a gente sonâmbula faz cousas mui raras. Mira, aí tens  por exemplo o  que fizera a Maruja da Cristalina dias antes de marchar para Alemanha. Uma noite seica se ergueu e ceivou todas as portas das cortes, deixando   sair   vacas,   bezerros,   porcos   e   ovelhas,   e   até   às   pitas   lhe   abriu   o buraco do poleiro. Quando deram com ela ia tangendo tudo polo Eiró fora, em direcção à Pedralta, caminho dos lameiros do Campo do Val, ou das leiras da Portelinha, de seguro ninguém o sabe. Mas ela marchava coa fazenda toda para algures. – Ai! E como lhe colheria o sentido para ali…? – Quem sabe…, se calhar é que se lhe fazia muito isso de ter que marchar tão novinha para Alemanha e deixar aqui a sua vida, e não descansava nem tão sequer de noite.

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– Não che digo que não, porque isso de marchar­se e deixar o sítio dum não toda a gente o dá aguentado, para alguns diz­se que mesmo é como se lhe entrara um andaço que não dão botado para fora. – Diz­mo a mim, que o levo no sangue… – E logo tu de quem o herdaste? –  Da   minha   avó,     a     mãe     da   minha   mãe,     Deus     a     tenha     no     Céu, chamavam­na Felesvina, eu não a acordei de viva. Ela, no que pegava no sono, erguia­se, desfechava a porta com jeito, pola calada, e marchava a caminhar desde aqui até Penalapa, donde viera para casar co meu avô. Deus os perdoe aos dous. Ao chegar lá metia­lhe um bom susto a todos quando sentiam andar na  cravelha   da  porta   para  entrar.  Quando  viam que  era  ela, então é que  se assustavam deveras, porque cuidavam que algo mau ocorrera e que ela lhes vinha avisar. Depois de descobrir o que lhe passava já não se assustavam tanto; mas à primeira chegou­lhes bem. – E logo porquê não lhe fechavam a porta e escondiam a chave onde ela não a topara? – Depois já o faziam, mas o meu avô à primeira até chegou a pensar que ela se queria afastar dele e que por isso se marchara; e olha que ele a queria… diz­se que quando a primeira noite que se ergueu e não topou a sua mulher na casa, por pouco morre do desgosto, e até se lhe retirou a fala, e não sei que mais.   Depois   quando   a   vieram   guiar   as   irmãs   dela   e   lhe   explicaram   o   que acontecia, ele já se tranquilizou, e depois já guardava ele sempre a chave. Ela era gostante do trato, pois tampouco lhe fazia graça saber que ia a andar de noite por esses montes, e com tantos lobos que havia daquela!  – E com isso a ela tirar­se­lhe­ia a mania, claro, não é milagre. –  Que   se   lhe   havia   de   tirar!   Cada   vez   que   o   meu   avô   se   esquecia   de esconder a chave, à manhã…u­la mulher? Rematou por atá­la com um rebite ao pescoço… a chave, se entende… – Daquela a tua avó sim que não teve mais escapatória. – Mas olha que diz­se que ela se arranjava para dar­se uma escapada de quando em vez lá a Penalapa, onda os dela. – E como é que se arranjava se o homem lhe tinha a chave bem guardada?

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– Pois às vezes andava co gado lá no monte e dava­lhe o sono e quando queria ter tino já estava em Penalapa. – Que problema para o teu avô! –  Homem cala, que afinal acabou por rifar com ela, apesar do bem que seica se entendiam… – E daquela ela sim que pararia coas fugidas… – Parar? Ele não; daquela nem sequer aguardava a prender no sono, que ainda esperta colhia o andante e ia­se cos dela. – E o teu avô a aguardá­la, não sim? –  Em primeiras sim, mas depois à última acordaram de irem viver lá a Penalapa; ali os dela também tinham muito capital, e a ela tocara­lhe uma boa mera, assim trabalhavam o daqui e mais o de lá. –  Pois   fez   bem   o   teu   avô   indo­se   para   lá   com   ela,   assim   quiçá descansariam algo melhor. –  Pois olha que  eu  não  diria tanto, que seica depois ela alguma vez se escapou de lá para cá. –  Que complicado che é isso de ser sonâmbulo, logo não me estranha a confusão da gente co das cachoeiras… – Não me venhas lá outra vez com isso de que a água dorme, que eu estou farto dos dormires raros… – Não che me estranha nadinha…! E mais já deverias estar afeito… sendo da gente de quem vens sendo… a saber o que andarás a fazer tu pola noite! –  Se tens muito interesse deixa a porta desfechada hoje à noite e verás como o descobrimos juntos… – Ai sim, homem! Era­che a conta! Eu para isso prefiro estar bem esperta, que não sei das tuas intenções, e não me fio… –  Pois para saber se che sirvo, primeiro hás­de me ter que provar… – e arrimando a boca à orelha dela murmurou­lhe o velho cantar: Esta noite hei­de ir alá, meninha não tenhas medo, deixa­me a porta atrancada c'uma palha de centeio

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A   Aurora   sorri   coa   cumplicidade   do   que   goza  por   sentir­se   parte   dum mundo  próprio,  um mundo  para eles dous.  Um mundo fechado para os de fora, para os que a palha de centeio se converteria em tranca de carvalho seco que  só desde dentro se pode tirar. Ela sorri,  e vendo como o Manuel se vai caminhando, imagina que um dia ela talvez terá que levar um rebite com uma chave ao pescoço. Narciso e Perfeuto falaram e falaram e aos poucos  espreitaram para as touças, a ver se sentiam ao Alcaide, mas ele não apareceu. Onde se meteria aquele   homem?   Se   tão   sequer   ele   mesmo   o   soubesse   poderia   quiçá   dar resposta   àquela   e  outras   perguntas   que   o   acossavam,   e   já   não   se   teria   que esconder   entre   os   carvalhos   que   tão  pacientemente   o  acolhiam  dia  e noite. Ninguém   o   estranhava,   contrariamente   ao   que   noutrora   pudera   pensar Narciso, o Alcaide não tinha mulher nem filhos; ele tudo o perdera por salvar a alcaidia,   e   afinal   também   a   perdeu,   e   agora   até   ele   anda   perdido.   Os companheiros aguardaram toda a noite mas ele não saiu. Eles marcharam. O Alcaide passou o dia entre os carvalhos e de tanto silêncio foi­se­lhe abrindo a janela da esperança; ajudado polas fisgas que por entre as canas das árvores lhe baixavam a luz do céu, foi acougando. O pior eram as noites, ele não queria ser   visto;   nem   sequer   polos   seus   companheiros,   que   de   seguro compreenderiam o seu  sofrer;  nem sequer naquela penumbra nocturna. Ele queria que só o vissem os carvalhos.  De   dia   passeava   as   touças   arriba   e   abaixo,   observando   cada   rebento daquela tanta beleza… aqui fechava os olhos e enchia os foles do peito coa recendência da flor dum sabugueiro, …acolá arrancava as flores dos são­joãos, e fazia­as estralar contra a palma da mão esquerda, …observava a pujança coa que   os   gamões   das   abrótegas   subiam,   com   aquela   humidade   parece   que mesmo se viam medrar. Quando a fome o avisava de que já passava outro dia sem   comida,   ele   rebulia   nos   carpaços   e   coas   póutigas   maduras   que   topava distraía o seu cativo apetite. Tanta beleza, tanta riqueza, e ele tão feio. Ele tão pobre. Ele tão pouca­cousa. O que mais lhe amolava era não ter­se apercebido. Saber   que   fora   protagonista   daquela   vida   de   tanto   despropósito,   de   tanta ruindade, de tanta desconsideração com os demais e não ter­se apercebido de

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nada. Ter sido sempre como um carvalho que habitara entre os humanos  e nem sequer se soubera carvalho. Mas talvez ele não fosse carvalho, que é esta árvore nobre e amiga da sua terra. Não, ele fora pinheiro, de beleza ausente e perene. Ele fora algo mais essa árvore monótona. Mas não, ele ainda fora pior que o pinheiro que se deixa levar ali onde o plantam e vai medrando. Ele fora algo mais activo no seu afã de destruir, mesmo a vida, ao seu redor. Ele fora… sim,  ele fora eucalipto. Ele  envenenara a terra que o sustenta. Ele fizera­lhe pouco fácil o viver a outros. Ele fora um estrangeiro que nascera aqui. Ele não fora carvalho, que ia ser! Mas agora queria ser, como o carvalho, merecedor da touça que o alberga. E ali ficaria até que o sentisse. Até que olhasse a sua mão e visse   os   musgos   prateados   que   sobem   como   se   duma   pôla   de   carvalho   se tratasse. Deitou­se no chão e recebeu o abraço da terra almofada que o acolhia sem críticas, com silêncio aceitador que só se rompeu para lhe murmurar no ouvido   o   anúncio   daquele   renascer   possível:   “Tu   também   Ovídio,   se   o desejares,  tu  também podes  ser meu filho” E ele entrega a sua  alma àquela mensagem.   Ele   quer   ser   filho   da   terra,   como   o   carvalho,   como   a   mesma pedra… * * * Hoje Nuestra Región, num editorial eloquente e quase profundo, analisa a função   dos   meios   de   comunicação   na   consecução   do   bem   social,   e   à   sua contribuição   na   procura   da   justiça   e   a   transformação   da   sociedade.   Não   é preciso   dizer   que   a   meta   do   jornal,   neste   senso,   é   conduzir   a   opinião   em direcção   à   consolidação   de   uns   valores   (morais   e   espirituais)   cos   que   o periódico comunga. O artigo faz uma reflexão sobre o papel que aos meios lhe corresponde   à   hora   de   resolver   enigmas   como   o   da   desaparição   da   pia   do museu. Este facto, que a muitos lhes poderia parecer pouco transcendente de um ponto de vista social, não é tal para Nuestra Región, que sustém que do que se trata não só é do seu valor material e artístico, ou se se quer até patrimonial, senão do seu valor como símbolo de religiosidade popular, etc. etc. Foi também num número desta semana onde teve cabida uma entrevista ao   poeta   Budial,   após   receber   este   um   prémio   de   poesia   galega Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  144

contemporânea. E também foi assim como se deu a conhecer por primeira vez o   nome   do   poeta,   Castor   Ribeiro,   que   ademais   da   poesia   tem   afecção   pola antropologia   e   mais   a   arqueologia…   quem   sabe,   se   quadra   um   dia   destes vemo­lo lá polos penedos da Rainha Loba dum pau matar duas lebres… * * * Narciso   e  Perfeuto   vieram  juntos   de   novo   também   esta  noite;  dês   que chegaram às terras do Jardim juntam os seus atalhos lá onde lhes é possível e fazem o resto do caminhar em companhia um do outro. Que lhes aguardaria hoje? Poderiam seguir já a sua andaina? O céu, por primeira vez em bastante tempo,   estava   despejado,   e   a   noite   estava   clara   com   lua   grande.   Estaria aguardando   o   Alcaide   como   as   noites   passadas?   Narciso   e   Perfeuto   já depreenderam   a   falar   entre   eles,   e   bem   que   aproveitavam   aquela   nova habilidade, e agora perguntavam­se, mentres seguiam o caminho para a beira da   fontela,   se   seria   possível   que   um   dia   o   Alcaide   se   unisse   a   eles   no   seu conversar. Chegaram ao Jardim. Surpreenderam­se de não ver o Alcaide ali de pé frente aos carvalhos. Beberam. Deram água à companheira, à qual com cada golo parecia que lhe envivecia mais a cor dourada. Sentaram nos assentos que já são  habituais  para  eles, Narciso sempre ocupa  o da esquerda, o que está mais perto das carvalheiras. Onde andará esta noite o Alcaide?  De   súpeto   sentiram   aquelas   palavras   que   acompanhavam   a   figura   do homem  que  as  pronunciava  enquanto saía de entre  as árvores:  “Aqui  estou companheiros, e eu sou Ovídio.”  Os dous homens miraram a Ovídio como se o vissem por primeira vez, mostrando surpresa por aquela naturalidade coa que se apresentava  ante eles.  Narciso  achegou­se à fonte e com ambas as mãos apanhou a água fria que lhe levou a Ovídio: “Toma irmão, pareces rendido.” Ovídio   bebeu   sem   dizer  nada,   depois   deu   um   fundo   suspiro   e  agradeceu   a Narciso aquela  água   que  tanta falta lhe  fazia. Perfeuto não  queria ficar fora daquela   reunião   e   fez   chegar   a   sua   voz   até   onde   os   outros   dous   homens estavam:   “Hoje   pareces­me  outro,   Ovídio”     “Graças,   Perfeuto,”   –  respondeu Ovídio – “hoje sou outro, e quanto me alegra que ti o tenhas notado”.  Ovídio contou­lhes   da   sua   tortura   interior,   e   do   seu   espertar.   Contou­lhes   do   que Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  145

sentira e do desprezo tão grande que se dedicara a si mesmo. Da sua luta no silêncio das touças. Da luta ganhada e do perdido na batalha. Do passado e do esquecido.   Ovídio   contou­lhes   tudo   o   que   pôde  dar   lembrado   dum   Alcaide ruim, dum homem vazio que nunca se dava enchido. Pouco a pouco foi­lhes debuxando com palavras, com punhos fechados que se sacodem no ar, quem ele fora. Os olhos de Ovídio fecharam­se enquanto lembrava, ora para atrair os recordos mais facilmente, ora para evitar ver as olhadas dos que o escutam. Quisera ficar calado mas as condenadas das lembranças querem sair; ele sabe que   deve  ser  julgado,   e  aceita   essa  imposição   como   um  jeito  de   começar  a render contas polo que fez… embolsar­se o dinheiro que devia ter ido a obras públicas;  castigar as  aldeias nas que havia pessoas que não votavam ao seu partido; contratar no concelho, ou na deputação, ou onde fosse, aos filhos dos que lhe ajudavam a manter a sua rede caciquil funcionando, condenando aos que   não   se   deixavam   dominar   à   emigração;   burlar­se   dos   seus   próprios votantes referindo­se a eles  como “a granja de pombos que me votam” que ademais, segundo ele mesmo dizia, era a granja que mais ganâncias lhe dava… E por último, Ovídio admitiu o mais baixo ao que chegara: bater­lhe a uma pessoa,   uma   mulher,   uma   secretária   do   concelho;   e   não   por   quem   ela   era, senão   por   quem   ele,   coa   sua   olhada   deformada,   via   nela.   Ele   chegara   a   tal extremo de precisar controlar aos demais que perdeu o controlo de si próprio. Aquilo custara­lhe a Alcaidia. Daquela pensou que isso era o pior que lhe pôde ter   passado,   agora   sabe   que   estava   bem   errado.   Ovídio   falou­lhes   da   sua cegueira,   e  enquanto  o   fazia   seguia  com os  olhos  fechados  e com as  mãos, agora abertas, gesticulava como para pôr em cena o que pensava, o que queria que viram, o que queria ele que ocorresse agora. Estava envergonhado de si próprio…   Depois   calou   e   as   bágoas   que   caíram   face   abaixo   ocuparam   o silêncio que deixaram as palavras e as mãos gesticulantes. Perfeuto e Narciso deixaram que respirasse para adentro aquele instante e se anovara com ele, depois cada homem por seu lado deixou cair cadansua mão nos ombreiros de Ovídio. Não disseram nada. Ninguém disse nada, e por primeira vez o silêncio era silêncio e estava calado. Por fim acharam as palavras que os achegavam, que os punham em contacto e agora nem tão sequer precisavam delas. Sem mais demora colheram a pia, e depois de lhe dar a sua água, puseram­se ao

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caminho.  – Faltar­nos­á muito? – Não sei, mas tanto tem, eu acho que poderíamos seguir ainda que fosse por toda a eternidade. –  A mim dá­me no corpo que não há­de ser tanto, e só de o pensar já parece que vos estranho. Sabiam   que   ainda   lhes   aguardava   caminho   por   diante   mas   ignoravam quanto. Intuíam que não seria tanto quanto o que já levavam andado. Aquela noite o carro rodou sereno, como se andasse de passeio. E aquela noite o carro cantou;   quiçá   já   tivesse   cantado   antes   mas   aquela   noite   os   três   homens sentiram   o   seu   musical   rechouchio.  Polo   Pradonovo   arriba,   aquela  noite   as cloucas calaram para espreitar o ranger daquele carro. Subiram polo caminho das   leiras   da   Igreja   e   viram   como   o   centeio   já   agachava   a   cabeça,   isso   era indicativo de que a espiga já estava carregada e os gadanhos já não haviam de tardar em levar ali a seitura. A luz da noite não lhes permitia ver a cor daquela messe tão granada, mas pola caída da espiga adivinharam que já iria tirando a marelinha com algo mais de verdor lá no fundo da palha. Pararam um pouco à beira   da   parede,   e   admiraram   aquela   abundância,   e   os   três   desejaram   ser seitureiros.   Imaginaram­se   segando   aquela   leira   de   pão   entre   os   três,   e calcularam quanto lhes levaria. Até chegaram a repartir os trabalhos: – Tu serias o ateiro, Perfeuto, que polo corpo que tens bem se vê que se che daria bem apanhar as gavelas… E ti Ovídio, a julgar por como és capaz de dobrares o lombo, em fouce não haveria quem pegasse em ti… E eu, mesmo para   dar   as   vencelhas   bem   sirvo,   ora   que   tampouco   me   amargaria   segar,   e pouco se me poria para vestir os zagões e atar os molhos. Co bom humor que os rondava chegaram às eiras do Penedo, deixando os lameiros   da   Carrancova,   e  os   nabais  da  Praça,   à   sua   esquerda.   Desde  onde andam arestora já quase se adivinha o começo da aldeia, e intuem que aquele é o seu destino, quiçá o ponto final da sua andaina. Amanhã teriam vagar para descobrir   isso,  mas  agora  é  a  hora de partir, não  for que  alguém  madrugue hoje, mesmo para ir à seitura, e os veja. E com boa sensação por primeira vez os   três   homens   marcharam  a  uma  e  polo   mesmo  caminho.  Atravessaram   a Canelha   do   Fojo   e   subiram   pola   Tapada   para   as   leiras   da   Burata,   e   ali

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perderam­se. Quando baixavam viram como a névoa ia subindo da Límia por ali arriba; amanhã será dia de calor e de segada. E tal como a névoa prognosticava, o dia veio ardente e os de Penacova aproveitaram   para   deitar   o   centeio   que   ainda   estava   de   pé;   e   se   eles desandaram um nada o caminho que levaram ontem à noite, teriam visto que aquele pão que queriam segar eles já estava agora amedouchado no meio da leira, mas não sem antes enredar ali um bom bocado da manhã aos seitureiros. * * * Os três homens chegaram juntos aquela noite, se alguém os tivesse visto pensaria que eram viageiros que estavam de passo, seguramente a caminho da Raia.   Metia­lhes   algo   de   respeito   andar   tão   perto   da   aldeia;   quando   se   iam achegando avistaram as primeiras casas, logo de passarem o cemitério; eram as casas dos do Penedo. Estremeceram­se de pensar o que se passaria se alguém os via, que iam pensar que eram? Se nem sequer eles estavam mui certos do que pensar de si próprios, quanto mais se as gentes do lugar os descobriam assim de noite e coa pia. Aquela incerteza dos ânimos durou só uns segundos. Não tinham de que se preocupar, eles estavam a ser guiados por uma força alheia às suas vontades e que os levaria aonde tivessem de chegar. Noutrora teriam permanecido sujeitos à ideia do perigo, que lhes impediria de seguir. Agora já são quem de saber que o seu poder é limitado, e portanto também a sua responsabilidade; eles só são parte dum destino que os leva pola terra, e às vezes até os arrasta, mas já não vão sem guia, não vão vagando sem rumo nem meta no horizonte. Até as mesmas estrelas se ordenaram lá no céu para que eles   o   entendam.   Ora,   paradoxalmente,   estes   três   homens   sentiam­se   mais livres,   apesar   do   grande   peso   que   têm   que   levar   com   eles.   Fazem­no   com vontade,   fazem­no   com   aceitação,   e   como   não,   fazem­no   com   amor.   Por conseguinte, fora temor, só deviam de ter muito tino como fizeram até agora.  À lua nova faltava­lhe pouco para se estrear. A sua próxima fonte estaria perto  e  seria a  última,  ainda que talvez não  fosse esse o final. Vendo que a aldeia estava tão cerca decidiram ir sem a pia até ao meio do lugar para ver se estava tudo despejado. Atravessaram o caminho do Eido e passaram por onde Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  148

o   forno,   já   desde   ali   viram   o   arco   de   meio   ponto   que   anunciava   a   Fonte. Achegaram­se e ajoelharam­se os três a um tempo para provar as suas águas. Aquela não era a primeira vez que eles bebiam naquele manancial, ora sem dúvida aquela  era  a  primeira  vez que bebiam juntos.  Que  bebiam a mesma água.   Repousaram   sentados   na   pedra   da   beira   esquerda   e  conversaram   um pouco,   em   voz   baixa,   não   fosse   que   alguém   os   sentisse,   das   experiências passadas que cada um tivera naquele lugar. E veio­lhes a hora da partida antes da   fim   da   conversa,   e   falando   marcharam   sem   trazer   adiante   a  pia,   que   os aguardou até à noite seguinte.

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Capítulo VII

A FONTE Penacova, apesar de não ser uma aldeia lá mui grande, conta com uma mitologia   abundante   e   quiçá   desproporcionada,   difícil   de   manter   viva   à medida   que   desaparece   a   sua   povoação.   Neste   marco   mitológico   destaca   a Fonte como símbolo essencial do seu mito fundacional. Inicialmente, as terras que pertencem hoje a Penacova estavam povoadas por gentes que se repartiam polo vale em sete assentamentos diferentes, espalhados por Aguiar, a Pedrosa, a   Auguela,   o   Zebreiro,…   posteriormente   os   assentamentos   reduziram­se   a quatro e finalmente decidiram juntar­se todos e construir a aldeia conhecida hoje por Penacova. Todas as vivendas se construíram inicialmente ao redor da fonte;   esse   foi,   e   é,   o   lugar   chamado   O   Meio   da   Aldeia,   ainda   que   na actualidade, dês que a povoação se foi alargando pola Fonteuceira fora, já não seja o seu centro geográfico.  Sim, ali no meio de Penacova ergue a Fonte orgulhosa o seu arco de meio ponto, e protege com ele os seus mais de dous metros de fundura. Toda ela revestida   de   pedra   até   à   mesma   nascença   onde   abrolha   a   água   com   um bule­bule que só se pode perceber quando é esvaziada cos caldeiros para ser limpada até que, como se fosse de prata, reluz o seu interior. Ela é a riqueza de Penacova.   Durante   centos   de   anos   abasteceu   de   água   a   uma   povoação inteira…  gente,   terra   e  gado.   Ao  lado   do   arco  foi  construída   uma  poça que acada a água que lhe sobra à Fonte. Um reguinho talhado na ancha pedra que os separa vai carrejando a água para a poça, onde sacia a sua sede a fazenda e que é esvaziada, ceivando­lhe o boqueiro para que a água saia a cachão, a rolda polos vizinhos quando chegado o verão se reinstaura cada ano o reparto da água, cada quem segundo os direitos de rega herdados por cada terra. Sempre igual…   “comprei   esta   mera   e   com   ela   as   sete   horas   de   rega   que   lhe Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  150

pertencem… hoje vem a mim a rolda, tapo às doze e ceivo às sete; atrás de mim tapa o Maximino…” E aquele reguinho liso, afundado polo passo da água e mais   do   tempo   vai   fazendo   o   seu   trabalho.   No   meio   desse   rego   há   uma cochinha mais funda onde bebem as crianças… “tu és mui pequena, ainda não podes beber na Fonte, ajoelha­te na pedra e bebe aqui na pipela” A Fonte era a riqueza da aldeia, mas naquela sua fartura encerrava também os seus perigos. As mães não se cansam de lho repetir às suas filhas e filhos… “À Fonte não te me achegues, prendinha, que pode colher­te e depois não tenho meninha…” E as crianças tardavam em querer­se achegar para beber olhando para a fundura como   sim   o   hão­de   fazer   de   grandes…   e   certo   é   que   em   toda   a   história lembrada nunca caiu ninguém nela.  Louvada e temida; partícipe da vida mesma, mas também da morte se se terçar. Salvadora. Abafadora de lumes que ameaçaram o lugar. Salvou casas e palheiros, combarros e ainda leiras de pão. Infinda fartura que nunca na vida estinhou, ainda que o seu caudal se visse afectado polas obras que o concelho de   Os   Mouros   impôs   sobre   a   vontade   da   gente.   Noutrora,   o   verdadeiro   e legítimo concelho de Penacova se juntaria e co seu pedâneo à frente, jamais teria   permitido   achegar   aquelas   gábias   tão   profundas   a   que   dessangraram assim a Fonte. Mas agora são­che tempos de água corrente nas casas e a da Fonte só vai à mesa à hora do jantar, e já não é tão importante o seu caudal. Ainda   assim   segue   sendo   visitada   por   todos   os   do   lugar;   incluso   os   da Coanheira e os do Eiró, que têm fontes mais próximas, se vêm a servir dela quando as suas no verão agostam. Mas ela, alheia ao passo do tempo, ou à mudança de estação, sempre tem o mesmo caudal, e a mesma temperatura, o que faz que se sinta mais fresquinha durante o verão, e mais borna no tempo frio. Agora,  quando os três homens da pia se arrimam adiante a beber nela, ei­la frescura agradável.  Era a segunda noite perto da aldeia, e os três estiveram de acordo em que antes de ir onde tinham escondida a pia deveriam dar uma volta polo meio do lugar   e   comprovar   que   tudo   estava   tranquilo.   Passaram   ao   lado   da   Fonte, beberam, depois colheram o andante caminho do Penedo onde lhes aguardava o   início   da   travessia   de   hoje.   Ovídio   seguia   a   cargo   do   pinho   e   os   outros ocupavam   cada   um   seu   lado   do   carro.   Caminharam   um   bocadinho   mui   a

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modo, para evitar que o carro cantasse. O seu andar era tão passeninho que nem sequer parecia que se movessem. Apesar do vagar do seu caminhar foram penetrando   na   aldeia.   Reinavam   o   silêncio   e   mais   a   calma.   Ainda   mal   não chegaram onde o forno, que está quase no cabo da aldeia, quando lhes pareceu sentir vozes. Pararam. Espreitaram e depois achegaram­se ao combarro onde sempre fica algo de lenha das últimas fornadas e esconderam a pia e mais o carro. Agora o forno não coze porque já vem o padeiro co pão à casa e a gente não quer andar com esse trabalho de quentar e requentar. Ademais com tão poucos como ficam para fazer pão, não dariam juntado lenha para manter o forno.   Agora   o   que   se   leva,   em   vez   do   pão   centeio,   é   fazer   ali   enchentes   e foliadas quando chega a gente no verão. Assar ali uns cabritos ou uns anhos, uns lagostins e mais umas empanadas… ainda que sempre há a que vem lá coa encomenda   do   pão…   “pois   logo   já   que   está   quente   deixai­me   meter   um pãozinho que já trago a massa levedada, e só me resta dar­lhe a forma aí no tendal…” E os olhos de todos os presentes tendem com ela… ritual das suas infâncias que jamais esquecerão. E apesar da fartura que se anda a cozinhar todos ficam pendentes do humilde pão… “olha que vigia bem o pãozinho, não se nos queime…” E esta é tarefa difícil desde que na restauração lhe meteram os tijolos refractários para minguar o pavilhão que se fazia algo grande para tão pouca gente. “Escaralharam o forno, assim como está não serve”. Haverá que vigiar amiúde. A longa pá penetra no pavilhão e colhendo o pão no seu colo, achega­o fora onde os olhos das crianças, hoje medradas, comprovam que já vai estando… Noutrora cozia o forno a metade dos dias do mês, e o primeiro em sair eram as bolas das crianças… “Hoje coze a minha tia Dorinda, e fará­me uma bolinha”… aquele dia sim que prestava a merenda… E prà festa… a de roscões que ali cabiam! Todas as mulheres a bater os ovos nos grandes caldeiros de zinco,   e   entrementes   fala­que­fala.   Que   longo   era   o   processo…   e   elas bate­que­bate e os seus homens quenta­que­quenta; e entre uns e outros ia­se montando já ali a festa…  “A ver se ides acabando de bater, que isto já o temos quente e são horas de ir metendo…”     Entretanto as crianças só tinham uma cousa   nas   suas   mentes…     “que   rematem,   que   rematem   para   empeçar   a lamber…!”  E que longa a espera para meter os dedos no que sobrara ao encher

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as formas…  “mamã, já está batido?”  “Logo, logo, já vai estando” …  “e quanto mais vai tardar…?”  “Aguarda filhinha, aguarda, que há que ter mais paciência” E assim era como as crianças aprendiam a aguardar. Assim iam depreendendo co ritmo próprio das cousas. Saber aguardar é um dos princípios, ou assim polo menos o definiria o filósofo da Índia, que regem a vida em Penacova. Porque o da espera não se dava só o dia dos caldeiros de interior doce da víspora da festa. Não, o de saber esperar   impregnava   cada   dia,   cada   hora,   cada   segundo   da   vida…   “mamã, tenho um buraco na ponta deste sapato, quando me vão comprar uns novos?” “Pois  quando   venha  a  feira,   …hoje estamos a  primeiros,…  pois   por  aí polo catorze haverá que ir por eles a Ginzo” … “Tenho fome, quando vai estar o jantar pronto?”   “Trai­me uns guiços mais de lenha que já o imos apurar”   E assim se ia construindo a fortaleza interior. O mais difícil, e prova já definitiva de madureza dum rapaz, era andar no monte co gado e aguardar sem comer a merenda.   Claro   que   primeiro   viera   o   adestramento…     “Papá,   comemos   a merenda?”   “Aguarda filha outro nada que depois o tempo rende e ainda nos volve   dar   a   fome”     E   a   nena   aguentava.   E   por   fim,   quando   aquela   hora chegava… “Vais buscar o bornal ali ao salgueiro onde o deixámos colgado...?” Ela   não   corre,   que   voa,   e   já   parece   que   polo   caminho   vai   saboreando   os bocados. Depois comerão a modinho, mentres falam do que comem, e mais do bom   que   está   aquele   pão   e   mais   o   mimo   que   o   acompanha…   tantinho toucinho   ou   um   chouriço,   ou   o   que   houvesse,   e   ao   remate   se   ligar   de   que meteram   uma   onça   de   chocolate…   ela   colhe­a   na   mão   e   antes   de   comê­la debate­se: “Se te como não te tenho, se te tenho não te como”  e ao final dum só bocado a chapa. E assim se ia construindo a habilidade que empapa todo o fazer dos do campo: a espera. Saber esperar.  O mestre hindu ainda iria mais longe e afirmaria que esta nena, que tem que  aguentar  as  ganas  de  comer mentres passa o tempo que irá vagarinho, olhando   como   pasce   o   gado,   hoje   no   monte,   como   o   próprio   Siddhartha, praticará as três virtudes do sábio: esperar, jejuar, e meditar… e quiçá não lhe falte razão, mas quem tem vagar para pensar nessas cousas agora…? Os três homens da pia, após de dissimulá­la coa lenha, tiveram também que esperar para indagar as origens daquelas vozes que pareciam vir do fundo

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do lugar. Narciso, caminhando acachapado pola beira das meras da cortinha, achegou­se à Fonte e sentiu que as falas vinham de mais longe. Eram umas vozes   procedentes   da   rua;   o   seu   soar   era   de   preocupação   mas   não   de desespero. A curiosidade levou a Narciso a achegar­se pola beira de atrás das casas para as eiras de Baixo; ali, arrimando­se à parede, foi avançando polo lateral até que foi quem de entender o que diziam as falas… Não se passava nada   grave,   eram   os   do   tio   Taranheira,   que   lhe   paria   uma   vaca;   Narciso espreitou um pouco e regressou onda os companheiros a informá­los do que se passava. Decidiram que seria melhor não achegar­se mais de momento e lá ficaram,  ao  lado  do  forno.  Depois foram procurar  algo de lenha que tivesse folha para cobrir melhor a pia e que não se visse nada; mas apesar de que tudo estava   bem   coberto   decidiram   que   um   deles   ficasse   a   curar   dela.   Ovídio ofereceu­se   voluntário,   e   nenhum   dos   outros   o   deu   convencido   de   que   ele precisava descanso, que levara maus dias. Ele insistiu em que a ele era a quem menos lhe iriam topar a falta durante o dia, e pediu­lhe aos companheiros que se   fossem   tranquilos,   que   ele   ficaria   ali   deitado   debaixo   do   chedeiro   numa pouca palha, e teria vagar de descansar. Marcharam. Ovídio ficou só para o resto da noite e mais o dia seguinte.  Pola manhãzinha acordou co cantar dos pássaros que andavam a chamar polo   novo   dia.   Ovídio   sentiu­se   privilegiado   por   gozar   daquele   concerto matutino, e até se ergueu e se arrimou à parede do combarro para olhar como por  trás  dos  penedos da  Rainha Loba chegavam as primeiras raiolas de sol. Respirou   fundamente   e   deixou   que   aquele   ar   da   manhã   lhe   acarinhara   os cabelos e a  face. Durante o dia assomou muitas vezes o focinho àquele seu miradoiro, sempre com escrupuloso tino para não ser descoberto. Desde ali pôde ver os andares da gente de Penacova. O Primeiro que viu foi uma moça que   vinha   com   uma   jarra   de  vidro   a  buscar   água   à  Fonte.   A   moça  chegou, ajoelhou­se e bebeu; depois encheu a jarra e marchou de volta. E viu fazendas passar   e  beber  no   poço   da   água,   e  viu   gentes  e   mais   cães,   e  a  carrinha   do padeiro   que  passou   para   o  Penedo   a   deixar­lhe   ali   o  pão,   e  depois   foi­se  a Penalapa, onde só fica um vizinho, e dali a um bocado viu­o passar lá por em riba,   polo   caminho   do   Gorgolão.   E   Ovídio   aguardou,   no   mesmo   sítio   onde noutrora   aguardavam   as   crianças  enquanto   desesperavam   co   seu   olhar   nos

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caldeiros e relambendo os bicos. Aguardou, e teve assim maré de praticar essa arte tão típica do lugar, a que a noite lhe devolvera os companheiros.  Não se fizeram rogados, não essa noite; Narciso e Perfeuto vieram cedo e com   eles   cada   um   carrejava   seu   bornal   com   merenda.   Ovídio,   no   alto   da moreia   da   lenha,   tal   que   num   trono   sentado,   comeu   como   um   rei.   Depois aguardaram um bom pedaço. Tempo não lhes faltava, porque ainda que a lua estava   pronta   a   se  encetar,   a   Fonte   estava   ali   mesmo   e   em   nada   de   tempo chegariam até ela. À pia ainda lhe ficava água da que lhe botaram no Jardim, logo   não   havia   apuro.   Havia   que   assegurar­se   bem   primeiro   de   que   tudo estivesse  preparado   para  dar  esse passo em direcção  do  meio de Penacova. Bem   cruzada   a   meia   noite   meteram­se   por   entre   as   casas   e   percorreram   a aldeia com muito sigilo. Não se ouvia nem um chio. Todos dormem. Na beira dalguma casa até sentiram roncadas. E um cão de acolá, perto da Fonteuceira, que   ladrava   sem   descanso,   depois   ficou   também   quedo.   Tudo   ficou   quedo; tudo menos eles, que volveram a colher a pia e começaram a sua andaina a caminho da Fonte.  Cem   metros   escassos   de   distância   que   lhes   levou   mais   de   duas   horas andar. Iam tão a modichinho para que o carro não cantasse que apenas davam desbastado.   Por   fim   chegaram   à   Fonte.   Deram­lhe   água   a   fartura   e   eles beberam  de  novo.  Depois,   adivinhando  que a  igreja  era  o  próximo  destino, calcularam o que lhes levaria chegar com aquele passo que traziam. A distância entre   a   Fonte   e   a   porta   do   sagrado   vinha   sendo   umas   três   vezes   a   que acabavam de atravessar desde o forno. Não podiam tentar nada naquela noite que ia mais de mediada, precisavam bem uma inteira. Buscaram o sítio mais ajeitado  na  direcção  desejada  para deixar ali a pia escondida.  Encontraram, detrás   duma   casa   velha,   um   palheiro   de   erva   seca   acabado   de   fazer, exactamente ao lado dum sabugueiro. Por detrás da parede na que se afincava o palheiro, e arrimado ao sabugueiro, havia sítio avondo para esconder a pia e mais os trebelhos. Esconderam bem todo, desde fora não se podia ver nada, nem sequer adivinhar que houvesse ali cousa nenhuma. Aproveitaram o tempo que lhes sobrava para achegar­se à igreja e ver se as portas estavam boas de abrir ou como era. 

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A porta pequena precisava duma chave, mas a grande podia­se desfechar desde dentro movendo o enorme passador que se mete por um buraco feito adrede   na   parede.   Rodearam   o   edifício,   indo   pola   esquerda   do   sagrado,   e abriram a janela que dá à parte traseira, e que fica por dentro algo alta mas por fora a rés do chão. Desde ali empuxaram a folha da janela, e esta cedeu um nada. Depois Dom Narciso, lembrando que por dentro, no peitoril, podia haver trapalhadas,  meteu  a sua mão delgada e tirou  para fora o que havia… uma copa de vidro com tampa, na que, dês que desaparecera a urna do altar, se guardam as hóstias consagradas que sobram; uma jarrinha diminuta, também de vidro, para carregar água da fonte para misturar co vinho de missa; e poucas cousas mais. Livre o passo de atrancos, foi Perfeuto o encarregado de baixar por  dentro  da  parede  e  ir  às  apalpadelas por entre as bancadas até dar coa porta grande e comprovar que era fácil de abrir. Desfechou o passador e assim comprovaram   que   tudo   estava   pronto   para   dar   o   passo   definitivo   à   noite seguinte. Perfeuto fechou de novo desde dentro, e caminhou até onde estava a janela para esgardunhar pola parede arriba para fora, ali os outros aguardavam para dar­lhe a mão e mais acotegar as chilindradas primeiro de fechar a janela, não fosse haver um enterro ou algo e lhe topassem a falta. Depois regressaram onde o palheiro que  escondia a pia e os três estiveram conformes com que ninguém   iria   ali   rebulir   detrás;   este   era   um   palheiro   novo   e   a   gente   ainda andaria a gastar o refugalho do velho. Por conseguinte, não era preciso ficar ali de  guarda   durante  o  dia,  nem sequer prudente, já que  estando  no  meio  da aldeia alguém os podia sentir remexer e descobri­lo tudo. Marcharam cedo. A noite seguinte será uma noite longa, uma noite na que haverá que ir devagar. * * * Os   detectives,   desanimados   pola   falta   de   êxito   das   suas   pesquisas, dirigiram­se  a Penacova  com  poucas  esperanças de encontrar algo que lhes fosse ajudar no seu labor. O do cura não saíra nada bem, e do que atingiram cos vizinhos de Penacova tampouco tinham que alardear. Em que falharam? Ou melhor… em que falhou o detective chefe? Já que a responsabilidade foi sua,   ainda   que   a  culpa   fosse   de  não   poder   seleccionar   melhor   as   fontes   de Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  156

informação.   Penacova   era   um   sítio   tão   pequeno   que   eles   não   podiam desperdiçar   o   testemunho   de   ninguém,   por   conseguinte   enquanto   viam   a alguém já se apuravam a pilhá­lo, e claro, isso não lhes funcionara, e ainda por riba  co  da   camuflagem…  Talvez  as gentes  daquele  lugar  não  respondessem bem quando estavam na presença de desconhecidos, e por isso a cousa não fora adiante. Ou pôde ser que lhes tocaram primeiro todos os maus, e agora os que lhes faltavam por ver eram os que haviam de falar. Algo lhes dizia que não havia de ser assim,  mas eles,  sem desanimar­se, quiseram provar mais uma vez. – “Se desta volta não achamos nada que valha a pena, não perguntaremos mais, e que seja o que tenha de ser.” O detective chefe declarou assim ao seu companheiro   o   plano   de   acção   quando   estavam   já   no   auto   a   caminho   da aldeia, e prosseguiu “Riba, hoje a cousa vai ou racha” Riba ficou quedo, não abriu   o   bico,   em   parte   por   não   estar   seguro   de   entender   bem   o   que   o   seu companheiro   queria   dizer,   e  em   parte  porque   apesar   de  que  as   palavras  se dirigiam a ele, a entoação coa que se apresentavam indicava que não era assim, e que não era precisa resposta alguma.  Chegaram, arrumaram o automóvel na eira da Festa. Não viram a Ciro. Colheram o caminho que baixa para a Fonte, ali torceram à direita para o meio do lugar, neste trecho não se cruzaram com ninguém. Quando se iam achegar ao  cruze  que   vai  para  o  Eiró   viram  a um  homem  debaixo  dum  corredor.  O homem   acabava   de   pousar   algo   no   chão   e   dirigia­se   à   porta   da   corte, presumivelmente para desfechá­la. Ao detective deu­lhe no corpo que aquele homem andava a fazer algo e quiçá não tivesse vagar para lhes dispensar a eles; porém,  e trás  ver  que  pola aldeia não andava muita gente, decidiu tentá­lo. Aquele homem pouco mais teria de sessenta e tantos, seria moço feito quando ocorrera  o  da   pia   e  ainda  era   o suficientemente  novo como  para lembrar  a história. Justamente o homem que tinham andado a procurar todos estes dias. Agora faltava descobrir se lho quereria contar, ou se tinha tempo, ou… já se verá!   Apuraram   o   passo   e   desde   a   distância   já   lhe   foram   avisando   da   sua intenção de falar com ele. – Eh…! Bons dias senhor…! O homem soltou o fecho da porta e em lugar de desfechar deu a volta cara a eles.

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– Bons dias, logo, para vocês também. – Mire, você seguro que já ouviu falar em nós… somos os que vimos lá de Ourense para perguntar sobre a pia que havia em tempos aí na igreja e que desapareceu.  – Ah…! Mui bem, mui bem; sim já ouvi pra aí algo. E   o   homem   volveu   botar   a   mão   ao   fecho,   e  esta   vez   sim   desfechou   e empuxou para trás a porta.  – Mas, seria você tão amável de contestar­nos a umas perguntas sobre o assunto da pia? – Como não, vocês perguntem, que eu enquanto vou jungindo, que senão depois faz­se­me tarde. O Manuel, mentres falava, ia tirando a tranca, que afincada num buraco feito   adrede   na   parede   sujeitava   por   detrás   a   outra   folha   da   porta.   Depois empurrou­a coa mão até que se sentiu bater contra a parede do cortelho. Ali, ainda deitadas, havia duas vacas grandes, uma amarela e outra mais arruivada. Eles fizeram­lhe uma pergunta, mas o Manuel não a escutara, e seguiu a falar. – Vá, bonitas, que há que se erguer, que a manhã já vai logo mediada! – e olhando para os agentes acrescentou – Hoje fez­se­me algo tarde para jungir porque   me   enredei   pra   aí   algo   mais   da   conta   coa   esterroa   duma   mera   de batatas,   que   as   estavam   a   comer   as   ervas   e   já   davam   vergonha.   Elas   – referindo­se às vacas – já não estão sem nada, comeram tantinha erva, e agora só jungo para levar o carro à poula onde tenho umas gavelas de estrume já roçado, e mentres eu carrego elas têm vagar de pascer no lameiro. E depois, ao meio­dia, trazemos o carro dos tojos para casa, que mesmo estão as cortes a chamar por eles. Neste tempo, depois de tanto estercar para as sementeiras, ficam as cortes varridas, e a fazendinha sem cama, e agora que já metemos a erva toda, há que estar prontos para a carreja, que já logo vão lá oito dias que rematámos a sega, e como dizia o outro… volta feita não tem pressa… Mas perdoem vocês que eu falo muito, e a vocês isto seguro que lhes aborrece… Então, por primeira vez dês que andam coas suas perguntas por Penacova adiante, o Riba abriu a boca e apurou­se a dizer a escape: –  Não, disso nada, todo o contrário, parece­me mui interessante o que você conta do seu trabalho…

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Ainda  o  Riba  não  rematara a frase e já se estava a arrepender de a ter formulado… pois supõe­se que ele não deveria ter dito nada, e muito menos aquele comentário tão determinante para a direcção da conversa. O detective mais velho, que era intermédio em idade entre o seu companheiro e o Manuel, não teve outro remédio que mostrar o seu acordo, não fosse ele ali fazer­lhe àquele homem, que quase poderia ser seu pai, um desprezo. Ora, por ganas não   foi,   porque   mália   a   graça   que   lhe   fazia   a   ele   estar   ali   aos   viosbardos escutando àquele homem porolar sobre a vida do campo. Nem que ele não soubera   como   era   a   cousa.   Ele   procedia   das   terras   do   Deza,   duma   aldeia pequerrecha na que lhe tocara lidar até que aprovou os exames para polícia. Malditas   as   ganas   que   ele   tinha   agora   de   perder   o   tempo   com   aquelas parvadas.   Olha   que   não   roçara   ele   tojos   antes   de   ir   para   Santiago   àquela academia que tanto lhe custara a seu pai pagar. Seu pai também tivera vacas, e bem delas por  certo, mas agora já só ficam três ou quatro… ele já não está seguro, há tanto tempo que não vai por lá, e dessas cousas polo telefone não fala. Claro que as de seu pai eram leiteiras, não como as que ele via agora na corte do Manuel, que são galhardas e fortes. Muito ao seu pesar o detective teve   que   reconhecer   que   aquelas   eram   uns   formosos   animais,   e   cos   seus correões enramados para lhes colgar as suas campainhas…, não, não levavam chocalhos… E assim foi como o labrego que adormecia lá nas profundidades dos miolos do polícia acordou de súbito, e sem saber como, disse: – Se quer eu posso­lhe ajudar, que a mim isso de jungir ainda não se me esqueceu de tudo. – Ai sim? E logo donde vem sendo você? Se não é muito perguntar… – Da comarca do Deza, mesmo à beira de Lalim… E   enquanto   eles   falavam   o   mais   novo   olhava   para   o   seu   chefe,   e   não acreditava no que via… mesmo semelhava outro; por primeira vez viu como a cara do seu superior se relaxava enquanto lhe botava a mão àquele jugo, que em olhos do catalão deveria ser levado a um museu… que peça bem talhada na madeira, e polida polos anos e as mãos que tantas vezes a colheram para, sobre as molidas, pousá­la na cabeça das vacas e depois atar… E o labrego­detective escutou­se a si próprio perguntando polas sogas que, segundo disse o Manuel, ia cosendo seu pai, que para isso ainda se arranjava… e que bem cosidas estão!

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Coas polegadas em cruz, com uns malhões delgados para que não mosseguem ao animal na cabeça. Ainda que só lhe toquem aqui onde nasce o corno, mas esta é­che zona delicada… –  Ai, vá que o é! Ainda uma vez um homem daqui deste lugar, vendo­se acurralado por um boi que andava ceive pola veiga de Sampaio, não teve outro remédio que repor­se cara a ele… e meteu­lhe tal cajadada, – dantes gastava­se muito   o  cajado   –  justamente  a rentes  do  pêlo,  onde se apegam  o coiro  e o corno; e o boi caiu ao chão como um trapo; depois ergueu­se e marchou meio desorientado… Mas o Emílio era­che um homem que… amiguinho, havia que tirar o chapéu… Dantes aqui havia muita gente digna de admirar… Riba estava determinado a não intervir mais, já bastante tivera coa sua estreia   momentos   antes.   Ora   tampouco   era   preciso   já,   porque   o   pobre detective de Lalim estava­se vendo acurralado em si mesmo… e o labrego, que tantos   anos   estivera   lá   dentro   dele   agachado,   sem   causar   maiores desassossegos,  estava  agora  tirando­lhe o mando  e dirigindo;  ele próprio se pasmava quando escutava os falares que saíam da sua própria gorja, até lhe mudara o sotaque e falava agora com voz menos afectada e mais harmoniosa. O seu companheiro teve que torcer as orelhas com as mãos para adiante para entender   o   que   o   seu   chefe   dizia,   enquanto   seguia   admirado   pola transformação daquele homem. Que dianhos lhe tinha passado para mudar até a fala? Como ia o Riba adivinhar que o seu chefe levava um labrego dentro, um labrego   que   aquele   dia   colhera   as   rédeas   e   dirigia   o   fazer.   Com   que naturalidade se desenvolvia hoje o seu chefe, com que serenidade de carácter; e por primeira vez o frio respeito que sentira até então por ele trocou­se em afecto.   Mas  lá   dentro  do   seu   superior   não   tudo   era   tão  fácil;   o  polícia,  que queria só passear­se pola cidade, revolvia­se como as serpes e vinha­lhe roubar do prazer que tanto lhe estava a prestar.  – Temos tempo o que quisermos, pois se tal vamos com você e conta­nos polo caminho – disse o detective enquanto seguia a cruzar a soga por riba da cabeça da Marquesa.  – Isso estaria bem, que eu gosto da companhia. – E eu também – dissera o Riba, mas ele próprio se deu conta de que os outros não o ouviram, ainda que a ele tanto lhe tinha, ele sentia­se afortunado

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de estar ali presenciando a arte de jungir. Uma arte da que ele só ouvira falar, e não amiúde pois este ofício que de tanto durar semelha eterno, não só para quem o observa senão para quem o pratica já passou; este ofício já passou. O próprio Manuel não ignora isto… – Mete­lhe um bom saculeão co ombreiro aí por baixo mentres apertas a soga,   que   essa   Marquesa   é­che   uma   condenada   que   torce   o   pescoço   a propósito, e se não repara um sempre há­de ficar folgada. Em câmbio, a esta Toura é uma ledícia jungi­la… mira, é melhor que tu te passes para este lado e eu me encarrego da Marquesa que já lhe tenho o falho tomado… pois nem tem jeito que te deixe a ti o pior trabalho quando aqui hoje és o meu convidado. O Manuel passou por trás do detective, ao que quiçá deveríamos começar a   chamar   Rafael,   pois   esse   é   o   nome   que  lhe   puseram   seus   pais,   ou   senão Canchés, que era o nome que lhe deram de pequeno na aldeia… e tudo por ter as pernas um nada torcidas, cancheadas no meio para fora. Depois foram­lhe endireitando   e   já   ninguém   lhe  chamava  assim,  ainda   que   agora  mesmo  ele pouco se teria importado. O Manuel, que quer ser educado, passou por trás dele e mostrou­lhe como tinha que fazer­se coa Marquesa, que era algo pícara e escapava da juntura. Em câmbio, a sua companheira, que tinha a força dum boi, era outra cousa. A Toura era doce para o amo, que podia levá­la como se ela falara… – Esta até se teve que afazer a que lhe chamáramos Toura, pois também era Marquesa quando a mercamos lá em Gomesende. Compramo­lha ao tio Justo, e inda agora quando a vê lá no monte se se juntam os gados, ele chama­a Marquesa, e ela bem que cho conhece, apesar do novinha que era quando se veio   para   onda   nós.   Daquela   já   vinha   amansada,   e   olha   tu   que   também   a amansaram à direita, como estoutra que nós tínhamos na casa; e tivemos que ensinar à Toura, que era mais nova, a ser jungida à esquerda, e parece que não lhe custasse aprender. E agora pode ser jungida às duas mãos, e digo­te eu que com poucas vacas se pode fazer isso. – Olha, que bem sabe jungir você, a mim já se me acabava a soga e a você ainda lhe dá para outra volta. –  Não   faço  favor  nenhum,  é­che  o ofício  que tenho,   e não me amarga tampouco ter que fazê­lo.

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E  enquanto dizia isto ia  colocando o temoeiro nas mossas  do meio do jugo,   nesse   espaço   que   fica   entre   as   cabeças   das   vacas,   e   que   as   distancia; depois mandou­as ir de ceia­cú e elas recuaram, sem ele precisar de aguilhada, até  que   estiveram   postas   cada   uma   pola   sua   beira,   rente   ao   carro.   Então   o Manuel ergueu o pinho e afincou­o no ombro, para logo o amarrar ao jugo co temoeiro, mentres dizia… – O carro está preparado, agora a ver se a mulher nos dá a merenda por se nos  desse algo  de  fome…  “Aurora,  olha que eu já che estou pronto pra me ire…! Trazes­me logo esse bornal abaixo se fazes favor…? E mete algo aqui pra estes amigos…” A seguir das palavras do Manuel baixou ligeira a Aurora, poder­se­ia dizer que não lhe dera tempo de cumprir coa sua encomenda. E assim era, ela já tinha a merenda pronta e por triplicado para quando ele ordenar de marchar. Ela   escutara   a   conversa   e   já   ia   por   diante   do   planeado   por   o   Manuel   e   os forasteiros.  – Olha que cho meti neste de material que é algo mais avantajado do que o que levas a cotio para ti só.  E enquanto falava alongou o braço, desde o penúltimo banço da escada, achegando   o   bornal   para   o   seu   homem.   O   Manuel   colgou­o   ao   ombro   e dedicou  um sorriso à sua mulher. Os dous forasteiros saudaram à mulher e deram­lhe   as   graças   por   pensar   assim   neles.   Ela,   sem   rematar   de   baixar   a escada, respondeu os seus saúdos e disse “não se merecem” O Manuel chamou a   jugada   adiante,   e   sacaram   o   carro   da   corte.   Rodou   pola   rua   do   Eiró   e dirigiu­se ao caminho das Lamas do Santo. O Manuel e o Rafael iam diante conversando,   o   Riba   ia   detrás   à   espreita.   Chegaram   à   poula   e   soltaram. Enquanto as vacas pasciam, em baixo no lameiro, eles carregaram o carro cos tojos. Tinha razão Manuel, não eram muitos. Depois puseram­se à merenda. Sentaram à sombra do carvalho, evitaram a do vidoeiro que diz­se que não é tão   sã,   e   entre   bocado   e   bocado   foram   falando.   O   Rafael   já   se   esquecera completamente do detective e o Riba seguia a observar.  – Estou seguro de que tu com esta jugada já tens carrejado mais grandes carros que o que hoje te ajudamos a carregar…

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– Pois não te enganarias, que com estas duas já tenho carregado mais do que me daria o tempo para contar… E   o   Manuel   contou­lhes   das   valentias   da   sua   jugada.   Dos   carretos   de lenha que trouxeram este mesmo ano da decota de uns carvalhos das touças do Castelar. Contou­lhes do muito que ele era quem de meter no carro duma vez, e do bem que o fazia cantar… “não podias nem andar cem metros sem untar o eixo… não se fosse a queimar de tanto fretar contra das treitoiras… e ao o untar sentias como o unto rijava tal que se o rustriram numa caçoula” Ao Manuel enchia­se­lhe a boca falando do valentes que eram as suas vacas, sobretudo a Toura, que já vencera a dous bois cos que tinha lutado… “e isso há mui poucas que   o   façam”…   e   que   em   toda   a   comarca   não   havia   outra   que   se   pudesse igualar com ela…  –  Pois   é,   estas   duas   pode   que   sejam   a   minha   última   jugada…   mas enquanto eu viver delas não me hei­de desfazer… ainda que nos façamos bem velhos… – E logo não tens filhos que continuem coa lavoura? –  Não   homem,   não.   Tenho   um   rapaz   que   se   marchou   para   Alemanha quando era novo, esteve lá alguns anos e fez dinheiro. Agora voltou mas para aí em   Ginzo   e   disto   não   quer   saber   nada…   também   como   não   precisa…   e ademais   se   ele   vier   gastaria   só   o   tractor,   assim   que   quando   eu   morra   tudo morrerá comigo… O Rafael enchera­se de mágoa, mágoa de que todo aquele mundo que ele hoje revivera fosse desaparecer… E quem era ele para falar, se tinha um capital de   primeira   lá   no   Deza   abandonado.   Ele   não   era   quem   de   dar   exemplo   a ninguém… – Deve de ser bem duro não ter quem lhe possa herdar a um no ofício. – Podes estar bem certo, e senão pergunta­lhe a teu pai, já verás o que te diz. Aquela frase última do Manuel cravou­se dentro do Rafael, que lembrou a conversa  que  não  fazia  ainda  muito mantivera com seu pai, que seguia coa teima de que se tinha que ir morar mais perto e botar mão da vida… que ele já não defendia para a granja e os lavradios... E desde tão longe, desde quase a mesma beira da Rousia, por fim recebera ele a mensagem das palavras de seu

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pai. Agora vê que eram as palavras dum náufrago, e não as dum pai caprichoso que o quisesse controlar a ele… Que mal entendera ele o seu velho. E que bem lhe fizeram as palavras do Manuel, até se esquecera da pia. Agora, ao a lembrar de novo, a Rafael entra­lhe a curiosidade; mas é uma curiosidade de labrego que quer saber como foi que se sacou daqui, e não uma ânsia profissional de detective.   Lançou­lhe   uma   pergunta   a   Manuel   de   tal   jeito   que   ele   não   a pudesse rejeitar: –  Qual dirias ti, Manuel, que foi a cousa mais pesada que viste carregar num carro em toda a tua vida? – O Manuel sorriu e disse… – Já vejo por onde vais, tu queres­me levar à pia…, mas não che é cousa tão fácil de explicar… –  Pois   homem,   aqui   entre   nós,   devo   admitir   que   tenho   as   minhas curiosidades por saber como se deu sacado da igreja e mais do sagrado. – E isso mesmo me pergunto eu… e deixa­me dizer­che que ainda que eu não sei nada, não tinha pensado contar­vos cousa nenhuma, mas tu caralho…, ganhaste a minha confiança, e agora não tenho outro remédio que responder eu também. Sei que posso confiar em ti. Ademais já che disse que não se sabe bem o que se passou… e tampouco ninguém presta já atenção a estes falares.  E Manuel foi­lhes contando como crê ele que tiveram de fazer para sacar a pia da igreja, porque tanto ele como os outros vizinhos tinham a sua teoria sobre   o   roubo   bem   elaborada   e   aperfeiçoada   nas   muitas   conversas   e pensares…   E   com   uma   mistura   de   raiva   e   triste   pesar   polo   acontecido, conta­lhes como teve que ser de noite quando a levaram… porque ninguém escutou nada… como tiveram que ser vários os ladrões, pois é uma pia mui grande   e   mui   pesada…   como   ninguém   sabe   quem   foi  mas   toda   a   gente   os conhece, e como a ele lhe enfastia que esses moinantes sigam passeando­se entre   a   gente   alheios   à   justiça   e   aos   castigos…   Rafael   perguntou­lhe   quem foram logo os que a levaram… – Isso ninguém o sabe… mas todos sabemos que foram eles… quem ia ser mais que os curas? – Mas ainda que fosse o abade… alguém lhe teria que ter ajudado… –  Pois ajudariam­lhe os outros, que os curas também têm força… e não fazem favor… co mantidos que estão os condenados…! E bem seguro que ali

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onde o transformador  da  luz  um camião estaria à sua espera para levá­la… mesmo   ali   onde   entra   o   do   Pito   para   carregar   os   bezerros   quando   há   que empontá­los para o matadoiro… – E para onde a levariam? – …como tenho que mandar eu a uma bezerra, filha da Marquesa, que agora já não me atrevo de a amansar, e se souberas o que me amarga… mas assim   é   a   vida…   uma   almalha   tão   boa,   parecida   à   mãe.   O   pai   é­lhe   de Ameixeiras…   aqui   em   Penacova   já   não   há   boi   para   botar   às   vacas,   quanto mais…  – E porque levariam a pia? –  E eu que che sei filho…, levariam­na para a vender como fizeram cos santos e as outras cousas, que havia muitas e bem delas, e agora está a igreja vazia…   e   a   parva   da   gente,   que   é   uma   ignorante,   começando   pola   minha Aurora, eia, a lhe dar aos curas para que comprem isto ou aquilo… Eu se fosse vós falava  co  abade a  ver se  se lhe escapa algo… que ele saber tem­no que saber. – Co senhor abade já falámos, fomos lá o outro dia mas esse tal Aurélio já não lhe anda lá mui bem da memória, e não nos soube dizer cousa com jeito. – Não, se o Aurélio não estava aqui aquela temporada. É certo que já tinha levado os altares e os confessionários e mais os santos e as roupas todas que deixara   o   seu   predecessor.   Mas   a   pia   não,   a   pia   levou­se   estando   aqui   o Narciso,   que   viera   uma   temporada   a   substituir   ao   Aurélio,   que   depois   de roubar à igreja diz­se que não se sentia o homem lá mui bem; teria remorsos…, afinal de contas tinha que seguir a mentir cada dia desde o altar e predicar o “no   robarás”   a   uma   gente   que   seria   incapaz   de   roubar   nem   o   valor   duma agulha; e a gente ter­lho que aguentar… Mas os remorsos não o mataram, não tivesses   medo,   e   depois   de   ali   a   nada   ainda   veio   de   segundas   para   aqui   e tivemos que o aturar até que por fim se marchou de vez. Mas a pia já não estava quando ele veio de segunda… claro que isso não impede que fosse obra dele, os curas sabem também operar desde a distância, afinal de fontas ele seguia a ser o mandaricas da freguesia ainda que o Narciso dissera os responsos por ele… Não penso eu que o tal Aurélio se deixasse tirar assim um caramelo da boca… se calhar é que não se atrevia; porque de ali a logo de levar os altares e

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todo o demais, tratou também de levar o homem de pedra que marca a hora co sol lá no arranque do campanário. Mas então o Emílio, o mesmo que tombara ao boi coa sardoada, disse­lhe: “se lhe põe você a mão em riba ao homem de pedra   não   volva   subir   a   Penacova   para  dizer a  missa,   porque  não   baixa”;   e daquela bem seguro que artelhou outro plano para asegurar­se de que não lhe botassem a ele a culpa… – E não protestaram vocês… nem nada? – E a quem lhe íamos reclamar? Quem nos ia escutar…? Graças se não nos botavam as culpas… os curas têm­che estudos e sabem­se cobrir bem para não ser descobertos… e ademais conhecem à gentinha e actuam como o lobo que sabe por onde vai a vezeira… Eu era novo daquela, acabava de casar e tinha à mulher esperando um filho… e já não lhe pude pôr Dario naquela pia. Todos ficamos   danados,   mas   então   não   sabíamos   mais,   e   fizemos   o   único   que sabemos fazer bem por aqui… aguentar… E olha que se nos levam feito quatro, e não só os cregos, não… Ora isso sim, eles levam a palma das falcatruas.  Enquanto   escuta,   pensamentos   pouco   benévolos   para   cos   ladrões   das igrejas  ocupam   o   pensamento   de   Riba…   e   isso   que   ele   não   sabia   até   onde podia   chegar  aquele  fada  do   Aurélio,   quem uma  vez  no  enterro  dum moço novo de Ameixeiras se atreveu a dizer que “Deus escolhia a quem pagava a pena salvar e a quem não… e que havia que ser mui bons para poder gozar de tal   privilégio…”   E   mil   merdas   mais   saíram   ainda   cagadas   pola   sua   boca enquanto   Ameixeiras   se   tinha   que   despedir   daquele   moço   e   entregar­lho   à terra… Um moço que não chegava aos vinte anos, são e forte, a quem o Minho coas suas trampas em forma de remoinhos arrancara dos seus pais, e dos seus amigos, e dos seus vizinhos, e de nós todos… E vem o lobo do Aurélio e faz­nos sentir de novo desprotegidos, indesejáveis nos olhos de Deus e impotentes no nosso destino… e todos sabem que o disse porque o moço estava­se deixando medrar   a   barba   e   já   não   ia   pola   missa   e   também   depreendera   a   falar   de dignidade e de justiça, e de respeito, e de direito a pensar por nós mesmos… E no seu enterro vem a animália do Aurélio e coa sua cruenta falta de piedade derriça nos corações dos presentes como fera na carniça… enquanto à gente lhe começa a ferver o sangue e cheia de rábia sai ao átrio e debate­se em que fazer… Uns querem­lhe ajustar as contas mas outros os refreiam, e uma vez

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mais,   a   gente   faz   o   único   que   sabe   fazer   bem:   aguentar,   aguentar   e   dizer amém… Se Riba chegasse a saber isto… mas ele, como havia de o saber? E o reganho que sentia foi­se­lhe dissipando quando ficou de novo prendido nos falares do Manuel…  – E logo então já perdestes a esperança de a volver ver? –  Eu não acho que a possa já ver em vida, mas isso não quita para que chegue um dia em que os homens se tornem civilizados e aprendam a respeitar que as cousas têm o seu sítio, e que a esse, e a nenhum outro, pertencem, e ninguém lho deve usurpar nem mudar, nem… mas isso são os meus pensares quando me colhe para aí o sentido, abofé, como penso que antes do fim do mundo a nossa pia há­de volver ao seu sítio, ainda que alguns já não o dêmos acordado… – Pois que esperanças tão honoráveis tem você para o ser humano… – Não sou eu só o que cavila nisso; aqui entre nós, hei­che dizer que em Penacova não há pessoa de mais de trinta e tantos que não tenha a esperança de que um dia a pia volva.  – E porque ninguém nos quis falar no tema quando andámos a perguntar? –  Pois   em   parte   porque   não   há   muito   que   dizer,   e   ademais   éreis   uns estranhos… agora eu já vos conheço, mas tudo leva o seu tempo… isto é­che como todas as cousas, por mais que te mates, e corras, num mesmo dia não podes juntar a sementeira coa sega. E também em parte porque a gente não gosta de lembrar as desgraças que se levam passado… assim polas boas, sem que seja por uma boa razão… – Ora, nós tínhamos uma boa causa, nós também buscávamos a pia. – E para que a buscáveis, se se pode saber…? Acaso a ides retornar aqui ao seu sítio? – Não, nós nem sequer sabíamos que este era o seu sítio… –  Pois  aí tens a tua  resposta, não  lhe dês  mais voltas.  Vós andáveis ao vosso, e nós ao nosso… E digo eu, quando será o dia que andemos todos para o mesmo   sítio?   Porque   assim   não   chegamos   a   nenhures,   já   o   vistes   vós mesmos… e aqui já começamos a estar fartos… Produziu­se um silêncio trás do qual Manuel ergueu arriba e disse: – “Já vão sendo horas de se pôr a andar!”   Não se sabia se se referia a que já eram

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horas de ir jungindo ou se se estava a referir a esse caminhar da gente para um mesmo fim. Ou quiçá tudo fosse parte duma mesma cousa. Tangeu as vacas para arriba, jungiram, levaram o estrume à casa. Manuel insistiu­lhes muito em que ficaram a jantar… mas Rafael disse que não tinham nada de fome, que depois   do   bom   almoço   que   ele   lhes   dera   já   se   escusava   jantar…   que   lhe agradeciam o convite mas que deveras não podiam… e que já passariam outro dia que lhes ligara de vir a Penacova. –  Pois   logo   tomo­vos   a   palavra   e   aqui   vos   aguardo;   cada   quando   que venhais sereis bem recebidos. Esta casa e o que há nela estará ao vosso dispor e ao de quem convosco tragais.  Agradecendo a amizade coa que o Manuel os despedia marcharam para o carro. Como sempre, o mais velho era o que guiava. Quando já baixavam da Ranha, Rafael disse­lhe a Riba – “Hoje, se ti não tens outro compromisso, em lugar de parar na cidade vamo­nos chegar até às terras do Deza, que a mim já me vão sendo horas de dar por ali uma volta”  “Irei com sumo gosto com você” “Pois logo não se fale mais, e podes­me tratar de tu, que eu não sou tão velho… poderíamos ser irmãos… e hoje vou­te ensinar uma terra bonita de verdade… uma das zonas mais formosas que há no mundo… já verás, já”.  E marcharam a caminho das terras do Deza; nem sequer se acordaram de parar em Ourense. Não volveram tampouco por Penacova.

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DESCOBRIMENTO Aquela  madrugada marcharam mui cedo,  e como ainda havia tempo e tempo  antes  de   que  o   dia   viera,   foram­se   caminhando   devagar   pola  rua   da Arribada para a eira da Festa e de ali subiram à Ranha. Com sigilo afastaram­se das casas e depois começaram a falar. De quando em vez viam­se assaltados por um medo súbito que lhes sacudia só de pensar que alguém pudesse dar co lugar onde ficava a pia. Por vezes viram­se dando volta e indo a caminho de Penacova outra vez, e depois tiveram que se refrear e seguir a se separar da aldeia e do que tinham escondido nela. Sabiam que o mais prudente e também o mais seguro era deixá­la ali só todo o dia… E eles não tinham outro remédio que aturar os seus próprios e legítimos medos…  À noite voltaram ligeiros; chegaram, como já sempre fazem, juntos os três. Era um pouco mais cedo do habitual, as ânsias de chegar fizeram­lhes apurar o passo   caminho   arriba.   Chegaram   asinha,   e   não   puderam   fazer   mais   que aguardar até que tudo ficasse tranquilo e quedo. Não bulia uma folha, era uma noite   sereninha   e   cheia   de   estrelas,   todas   cravadas   neles   tal   que   olhos vigilantes; a lua parecia que se via medrar, logo queria ser cheia. Apegados às casas avançaram mais à pressa que outras noites, quando quiseram dar conta iam  galgados…  que  imprudentes! E diminuíram  a marcha durante  o último trecho que cobriram mui a modinho adrede, como de castigo. Com cada passo, seu pensamento de perigo, e seu estremecimento polo corpo arriba enquanto o coiro   se   arrepia.   Por   fim,   uma   última   alancada   e  já   se   dobra   a   esquina   em direcção   ao   recuncho   do   palheiro.   Nas   caras   dos   três   homens   reflecte­se   a ledícia de chegar… o palheiro via­se inteiro, tal como eles o tinham deixado. Tudo   parecia   indicar   que   ali   ninguém   tinha   tocado,   contudo   haveria   que passar atrás e ver se era assim… Passam pola beira do paredão e lá, entre a erva Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  169

e o sabugueiro, vêem estar a sua pia apoleirada no chedeiro, tal como eles a deixaram.   Quase   querem   correr   e   abraçá­la,   mas   em   lugar   disso   vão­se achegando e…, como casualmente, com um braço rodeiam­na dissimulando um meio  abraço  e  sentindo  um abraço pleno.  Apesar do muito que tinham avançado   todos,   algo   parecia   interpor­se   impedindo­lhes   exprimir   o   que sentiam.   Alegraram­se   de   ter­se   apercebido   dos   seus   próprios   sentimentos, ainda   que   não   soubessem   como   mostrá­los   ante   a   pia.   Era   como   se   ela conhecesse algo mais deles, algo que eles não lembram, e que faz que se vejam como meninhos, como meio despidos na sua presença. Mas faltava tempo por andar, quem sabe, talvez dariam atingido essa sensação que agora lhes estava restando intensidade à manifestação do seu sentir. Se quadra eles não eram tão merecedores como pareciam ser. Ainda faltava uma jornada para ganhar o que ficava por conseguir. Uma jornada. Coa esperança nas suas olhadas saíram a percorrer o lugar. Tudo semelhava tranquilo, deixando adivinhar que as gentes andariam  já   a  dormir.   Estamos   no  tempo  da   carreja,  e  toda  a  gente  sabe  o moídos que andam os corpos. Chega co que se há­de madrugar à manhã. Antes da rompida do dia já vão os carros a caminho das leiras onde aguardam os medouchos   e   as   rodas   feitos   cos   molhos   segados   e   atados.   Tudo   há­de   ser carrejado num dia, e que não chova. A ninguém se lhe ocorreria ir­se dormir e deixar  a meda aberta e  sem  rematar.  Uma jornada, estes labregos,  como os homens da pia, só contam com uma jornada. E como os deles, os seus cálculos tinham   que   ser   mui   precisos.   Antes   de   começar   o   pé   da   meda   dever­se­ia calcular  as pousadas  de  messe que colhia  aquela casa; a messe não deveria sobrar, mas tampouco podia faltar para rematar a meda como é devido… Co orgulho na olhada baixa o mestre da meda, que depois de levar bem os seus cálculos   chega   ao   cabo   e   diz­lhe   aos   de   abaixo   “falta­me   um   molho   para fechar…” e um molho é tudo o que falta para livrar o carro. E havia que o fazer tudo numa jornada. Os da carreja fazem polo dia o que eles hão de ter que fazer na noite que lhes falta.  Vieram,   comprovando   que   polo   rueiro   não   havia   nada   que   pudesse impedir  o  seu  passo.   Mui  devagar,  como  a  noite  anterior,   ou  mais  se  cabe, começaram a sua andaina. Hoje andariam por entremeio das casas e não se podia escapar nem um chio do eixo, não só porque pudesse espertar a gente,

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senão   porque   ao  o   ouvir   alguém   pudesse   pensar   que  outros   colheram   já   a dianteira em madrugar e iam indo a caminho das leiras para a carreja. Não se podia  cometer  nem  um  erro.   Deviam ter a exactidão  do  bom levantador de medas   e   assim   como   não   lhes   podia   faltar   o   tempo   para   dar   chegado, tampouco se podiam permitir que lhes sobrasse. Avançaram passeninho, e tal como tinham calculado levou­lhes a noite toda chegar. Estavam para abrir as portas do  átrio quando a  Estrelinha do Luzeiro  lhes dedicou  o seu primeiro pestanejo… ainda havia vagar para que essa amiga se despedira desde o céu… Conseguiram passar pola entrada do átrio e passo a passo foram­se arrimando à porta da igreja. Narciso corre à janela que dá à parte traseira, abre uma fisga e mete o braço com jeito para livrar o peitoril de por dentro, depois pousa os objectos   de  vidro   na  erva   e  empuxa   a  folha  contra   a  parede;  ele mesmo  se dependura para adentro. Corre ao fundo, ele conhece bem os andares e escusa de ir às apalpadelas, abre o portalão para dentro e agarra o pinho. Passam coa pia.  Uma vez dentro já se sentem mais tranquilos, as grossas paredes dão­lhe acovilho às suas falas e rugires. Levam o carro até o alto da igreja, primeiro tiveram que arredar uns  bancos e mais uns reclinatórios. Ali à esquerda, tal como Narciso agora lembra, estava o sítio da pia… se um reparasse, e houvesse luz, ainda se poderia ver a diferença na cor da pedra do chão. Fizeram recuar para esse lugar o chedeiro, Narciso manteve o pinho ergueito enquanto os seus companheiros iam deixando resvalar a pia pouquinho a pouco polas tábuas. Finalmente,   a   borda   da   pedra   da   base   tocou   no   chão,   então,   enquanto   os outros dous sujeitavam a pia para que não caísse de golpe, Narciso foi tirando do   pinho   e   movendo   a   modichinho   o   carro   adiante.   Por   fim   a   base   inteira apoiou­se   naquele   chão   de   pedra   no   que   estivera   toda   a   vida,   e   o   chão estremeceu   co   pousar   dela.   E   eles   puderam   por   fim   deixar   sair   o   ar   das respirações   contidas.   Asinha   tiraram   o   carro   e   esconderam­no   na   casa esborralhada que há por riba do átrio, na que já só vivem sabugueiros e silvas… “aqui  ninguém   virá   rebulir   de  momento,   e  depois   já   se  verá…”   Volveram  a correr   à   igreja.   O   dia,   pronto   a   despontar,   ameaçava   com   descobri­los.   A Estrelinha do Luzeiro  já se tinha acovilhado debaixo da luz que começava de querer   banhar   tudo   por   este   lado   da   terra.   Enquanto   Ovídio   e   Perfeuto

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acotegavam os bancos movidos e mais os reclinatórios, Narciso correu à parte de atrás do átrio, recolheu a copa e mais a jarrinha de vidro e volveu a escape. Depois   subiu­se   num   móvel   de   gavetas   enormes   onde   guarda   as   roupas   o abade, fechou a janela e recolocou os frágeis objectos detrás, no peitoril. Os companheiros pregam­lhe que se apure, que o sol não se faz rogado para sair e se não bolem asinha não se sabe o que pode acontecer…  Narciso pegou um brinco e caiu ao chão justamente quando a primeira raiola de sol entrava pola janelinha lateral, uma abertura estreita na parede, demasiado   estreita   para   ser   chamada   propriamente   janela,   mas   o suficientemente ancha e esbelta como para não catalogada como troneira. No alto, na parte de fora, remata com umas ondas a jeito de concha de vieira que está coroada polas cinco estrelas da mitra de Santiago, e por ali entram os raios de luz quando chegam do Leste. Os dous companheiros viram como Narciso e a   luz   chegavam   abaixo   a   um   tempo.   Narciso   ergueu­se   a   correr,   e   já   se dispunha a botar­lhe a ultima olhada a pia, a jeito de despedida, quando viram que da água iluminada saía um resplendor dourado no que se podia ver uma imagem   nebulosa,   como   se   estiver   formada   por   essas   multitudinárias partículas que dançam nas franjas de luz quando estas atravessam a escuridão, mas que pouco a pouco foi aclarando até que a puderam ver com nitidez. Era a imagem duma mulher nova que corria com um meninho nos braços, apegado ao seu peito. O pequeno semelhava recém­nado… a mulher asinha achegou a cabecinha da criatura à borda da pia e coa outra mão botou­lhe uma mada de água, como se dum baptizo se tratasse… depois já, tranquilamente, marchou com ele para a casa. Os três homens não o sabiam, mas aquela era a Áurea, que acabava  de  parir,   mãe  solteira e só,  a quem sem ajuda nenhuma lhe levara tempo demais dar a luz à criatura. Temendo que não chegasse ao outro dia, correra a socorrê­lo. A visão daquela luz apagou­se mas após ela veio outra, e depois outra, e outra, e outras mais… e os três homens ali ficaram presos, sem poder fazer mais nada que desfechar os olhos e deixar entrar aquelas imagens da luz… E viram como uma velhinha de estranhas roupas entrava com uma jarra  de  barro  e   a  enchia  da   água da  pia;  depois  persignou­se e marchou  a correr   para   levar­lha   à   Conceição,   que   parira   dous   meninhos,   gémeos   dum ventre,   o   primeiro   e   mais   pequerrecho   nascera   bem,   mas   ao   mais   grande

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saíra­lhe primeiro um braço… e também viram como a tia Esperança, com as suas mãos esbeltas e sábias, lhe ajudava a recolocar­se na postura da nascença, mas   o   meninho   precisava   outros   cuidados…   e   vendo   que   se   lhe   queria   ir, botaram­lhe na sua cabecinha a água de socorro da jarra… depois choraram… e   a   ledícia   de   parir   um   filho   vivo   viu­se   assumiçada   pola   perda   do   seu irmãozinho…   e   viram   também   como   nas   mãos   do   seu   pai   umas   tábuas   se convertiam numa caixa pequena… e o pai caleou­a por fora para que dissera branca…  depois   achegaram­se  ao   sagrado   e  arredaram   um  nada   a   terra   da sepultura da sua avó, há poucos dias enterrada, e deixaram­no ao lado dela para toda a eternidade. E esse mesmo dia de luto e despedida foi também dia de   baptismo   para   o   outro   pequeno   que   se   salvara   e   que   sem   dúvida   já estranhava o latejar do irmão que o deixara para sempre. E mal essa imagem se apagou apareceu uma mulher chorando, baptizara o seu meninho havia tão só dous meses e agora tinha que o destetar e marchar longe a dar o seu leite a filhos que não parira. Era a Erundina, que chorava bágoas de sangue por ter que   lhe   roubar   o   leite,   que   era   dele   e   só   dele,   ao   seu   meninho   para   o   ir malvender e assim poderem comer todos. Ela marcha chorando em silêncio, mas   a   intensidade   da   sua   dor   não   passa   desapercebida,   e   mesmo   se   deixa sentir nos berros do seu filho, que até aos vizinhos, só de o ver sem a sua mãe tão   pequeno,   faz   chorar…   E   o   pranto   do   meninho   trocou­se   em   pranto   de gentes   grandes,   eram   homens   e   mulheres   que   choravam   a   meninha   da Dorinda, que lhe morrera. Três anos escassos entre nós e agora fora­se para sempre. Todos os da aldeia de luto, a morte duma meninha é nunca fácil de entender… e quando lhe botaram a terra por riba à caixa, a Dorinda mirou ao vazio   e   perdido   parecia   para   sempre   o   seu   olhar…   Depois   viram   como   a Dorinda se prostrou no leito e se negava a comer cousa nenhuma. Os da casa já desesperam;   entram   então   os   vizinhos   e   todos   juntos   revivecem   a   dor,   e choram juntos outra vez, e assim até que os prantos foram botando para fora a negrura do seu sofrer e a Dorinda volveu comer. Logo que aquela imagem se foi viram como uns homens corriam pola beira do átrio arriba, entre quatro levam suspendido um colchão, e sobre dele ao Delmiro, que andando fazendo na casa, caíra­lhe a trave enriba e deixara­o arrelado… têm que chegar até Os Mouros   onde   podem   colher   um   auto   para   o  levar   a   Ginzo,   ou   se   quadra   a

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Ourense,   antes   de   que   seja   tarde   demais.   E   depois   viram   como   os   quatro homens voltavam cansos, com eles traziam o colchão e a esperança de que o Delmiro se salve. E unida àquela imagem chegou a duma mulher berrando, que no meio da rua chora e também maldiz, porque seu filho tem de se ir à Alemanha, e aquela mulher duplica­se e agora são duas as que berram, e logo três e depois quatro, em pouco tempo já são todas as mães da aldeia as que têm que chorar os filhos que lhes rouba a emigração. E a tristura enche os lares de Penacova; depois pouco a pouco passam os dias e as semanas e por fim o sorriso se debuxa nas suas caras ao ver chegar uma carta. Para o Natal chega um giro de marcos que ao se converter em pesetas muito rende. E vem o verão e de repente um dia, mentres andas cavando na horta, sentes à vizinha que te chama para que volvas, que che está um filho à porta… “Qual? Qual deles?” repetes ti enquanto tiras co sacho por enriba das ervilhas e corres pola mera arriba sem mirar onde pões o pé… tanto tem qual deles seja, tens quatro lá na Alemanha   e   a   todos   estranhas   tanto   como   o   palpitar   do   coração   se   cho quitaram como chos quitaram a eles. Quando vês o teu rapaz tão gabacho lá de pé   onde   a   porta,   sentes   uma   ledícia   breve   e   depois   chorais   os   dous,   num abraço, pola alegria de ver­vos. E aquela mesma cena repete­se de casa em casa e de ano em ano… E, pouco a pouco, canda os filhos vêm os netos, e Penacova recobra no verão a vida que durante todo o ano parece adormecida… mas é uma alegria breve, logo volvem a soidade o silêncio e a escasseza do rebulir das crianças polas ruas do lugar. E a vida do campo, já cíclica de por si, torna­se cíclica   outra   vez   com   estas   idas   e   vindas…   Idas   e   vindas   de   gentes   que   se avelhentam, que se transformam e se vão convertendo em estranhos, e todos presos nesse caminho que leva à morte, à extinção… O cíclico dentro do cíclico na   espiral   que   leva   a   nenhures,   ou   a   algures…   E   quando   as   imagens   já pareciam chegar ao seu remate o resplendor rachou em três, e de cada raiola emanou sua imagem, uma para cada um.  Ovídio vê numa delas a um alcaide arrogante e ruim que insiste em passar a gábia pola beira mesmo da Fonte… porque se andam com cuidados gastarão todos os tubos, e para quê tantos rodeios e gastos desnecessários… E a gábia passa   a   ser   vizinha   da   Fonte   e   ainda   mais   funda   que   ela;   favorecida   pola inclinação do terreno e o fácil decorrer ao longo do cimento, rouba­lhe a sua

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água… Que desprezível lhe parece agora a Ovídio aquele homem que se fazia chamar  alcaide! Apesarado pola sua própria imagem deixa­se cair no banco que acabava de colocar; como pôde ele ter estado tão cego? Mas agora que via, teria   que   ser   capaz   de   o   amanhar…   Fazer   emendas.   Estava   determinado   a restaurar o que devia. Entrementes Perfeuto senta na pedra fria do chão, o que viu ele não o deixava melhor parado que ao companheiro. Viu a um espoliador da pedra que pouco a pouco se vai achegando a um penedo que no alto tem uma fonte que o banha; aquela era a Fonte do Galo. Na fronte do penedo havia afundada para dentro a silhueta duma grande pia, agora dá­se conta de que é a mesma que andaram a carrar… Viu também como uns pedreiros muito mais velhos que ele a arrincavam do penedo cos seus cinzéis e martelos sem esnacar mais do que era inevitável, deixando  a silhueta para sempre ali esculpida, protegida pola água que a banhava… E chega ele e com um só petardo rebenta fonte, silhueta e água. Que casta de besta era ele? Sentia­se desprezível mas não tentou fugir daquele   sentir,   pola   contra   deixou   que   esse   sentir   lhe   ajudara   ao   seu pensamento   a   encontrar   o   jeito   de   repará­lo…   Ainda   estava   a   tempo   de reparar…, e ali no chão ficou a cavilar. Narciso   estava   agora   ajoelhado   e   prostrado   ao   pé   da   pia,   como   se estivesse   rogando   ser   perdoado.   E   assim   era,   porque   ele   vira   a   um   homem cambaleando­se mentres desfecha a porta da igreja para que um comando de curas dirigido polo Aurélio entre e marche coa pia. Logo levam­na em silêncio até o alto do lugar onde a carregam no camião do fulano que a há­de levar, é o mesmo forasteiro que diz­se que já tinha levado os altares tempo atrás. E agora marcha com ela, e os bolsos do Aurélio se incham, e assim foi como pôde ir a Vigo a comprar prédios para os sobrinhos… ele dirá que é bom aforrador, mas toda a gente sabe que da paga que lhe dão não os podia sacar e que se dedica a roubar… depois tolejou… alguns dizem que tolo já estava, outros dizem que de tolo nada, que o nome que lhe pertence é o de ladrão, ladrão e criminal. Um criminal  que chegou  a  Penacova fugindo das pedradas que lhe lançavam as mulheres de Medouchos, onde não o deram aguentado mais… por ladrão e por rufião… e por não sei quanto mais. E Narciso agora sente as cutiladas da dor que noutrora lhe anestesiara o álcool. E em voz baixinha, só para ele e a pia,

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suplica ser perdoado… Incansável e prostrado no chão repete: “nunca mais, nunca mais…” Ainda  andavam os   três  homens tentando endireitar­se e orientar­se na confusão   que   lhes   deixaram   aquelas   imagens   quando   sentiram   vozes procedentes do fundo do átrio. A correr erguem­se e colocam­se nas bancadas da cabeça, de costas à entrada. A gente vai entrando e situando­se como lhes manda o costume: as mulheres mais atrás, polos bancos que há no fundo e à esquerda da igreja; e os homens, ou o homem, que se vem um já são muitos, ocupando os assentos do alto, arrimadinhos ao altar, mesmo à direita do abade se missasse de cu para eles, porém isso já não está na moda, polo que agora os homens,   se   viessem,   estariam   à  esquerda   do   padre.   A  gente   era   pouca,   ora seguia passando adentro; porquê entravam era um mistério que eles deveriam tentar resolver se não queriam que a ansiedade os rilhasse por dentro… que por fora já se encarregavam as olhadas das mulheres desde lá atrás. Tentando não  ladear   as  faces   para  que  ninguém  reconheça  o  seu  perfil,  permanecem imóveis… e aguardando que se lhes ocorra algo que pudesse justificar, no caso de   ser   preciso,   a   sua   entrada   na   igreja,   e   ademais   entrando   assim… arrombando porta e tudo… Entrementes a gente que entrava ia repartindo as olhadas entre os três homens e a pia, de admiração por esta, e interrogantes para os forasteiros. Não podiam crer que lhes devolveram a pia, a que era deles para sempre, a que os viu vir ao mundo a todos, a que antes de entrar nesta igreja por primeira vez já bebera nas sete fontes dos sete Penacovas distintos que   povoaram   estes   vales,   a   que   era   sua   e   só   sua   e   dos   penedos   que   lha deram… E enquanto a gente ia entrando eles seguiam ali arriba imóveis. Quiçá a gente ainda se marcha… Mas ninguém se moveu do seu sítio, e de ali a um pouco entrou o abade, e quando se deu a volta, viram­lhe a cara de ledícia que levava, mesmo semelhava que tinha presenciado um milagre. Ele era um rapaz novo, de feições suaves e, se não fosse sacerdote, quase se poderia dizer que atractivas. A gente parecia conforme co jeito de dizer missa deste abade que ia acorde coa sua idade: curta. A gente gostava dessa brevidade, para quê perder muito tempo se se pode arranjar com menos… “E logo… já saístes da missa? Pois   olha,   hoje   colocou­vo­la   à   pressa…”,   burlam­se   os   novos.   “Ele   di­la correcta, como é, mas não se anda lá com sermões nem trapalhadas para lhe

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fazer a um perder mais tempo”, respondem os velhos. Este cura parecia ter um estilo   que   à   gente   não   lhe  desagradava…   Vamos,   a   bulir   a   escape!   E   não   é porque tenham pressa, que muitas vezes ao sair da missa botam uma hora de conversa pola rua fora antes de volverem para casa. De qualquer jeito o remate precoce   daquelas   missas   parecia   servir   a   um   e   a   outras.   Mas   aquele   dia   o pároco   parecia   transformado,   e   aplicou­se   a   fundo,   e   ademais   dos   serviços mínimos que sempre lhes prestava, meteu­lhes um sermão sobre a qualidade do saber dar… que nem rediola. Usou metáforas e exemplos do bom fazer que aparecem   nas   escrituras   cristãs,   e   do   bem   que   fazia   sentir   o   regalar…   não obstante não lhe serviu de nada o sermão porque o contido das suas escolhidas palavras chegou aos ouvidos das gentes em forma de bla­bla­blas, e ninguém reparou no que o abade dizia. Elas tinham bastante com cumprir co seu dever, que têm automatizado,… ora de pé,… ora de joelhos,… ora podem sentar­se, ora fazer a “por­la­señal” ou o “nombre­del­padre”… mas fazer isto não requer pensar, e assim enquanto cos gestos do corpo fazem que fazem, a cabeça anda às voltas para adivinhar quem são os três forasteiros que sem lugar a dúvida foram os que lhe ajudaram ao abade a devolver­lhes a pia. Cada um para os seus   adentros   mantém   um   monólogo   dialogando   consigo   mesmo,   que   se poderia estandarizar do seguinte jeito: “Pois aquele do meio, o do pêlo abrancaçado, parece­che­me o Domingos de Ninhodáguia… não, não pode ser, que este é muito mais alto… pois logo a ver se vai ser… e aquele da esquina… que me leve o demo se não é o Perfeuto das canteiras…! Pois logo os outros também hão­de ser de por aqui,… a ver se me arrimo à ponta do banco e vejo algo mais desde ali… porquê estarão tão atentos, que nem sequer ladeiam a face…? Polas roupas parecem gente coma nós, ora vão algo mais descuidados… claro que para carregar essa pia tiveram que suar… Não me digas que aquele vai ser o alcaide velho… olha lá…” Enquanto a gente segue coa sua adivinhadela, os três homens fazem o próprio por outro lado, e de quitado o Narciso, que sim lhe atende para ver se dá   pilhado   chave   que   lhes   ajude   a   sair   da   situação,   os   outros   tampouco entendem nada do discurso desse cura arrapazado que tanto latrica hoje. Ao remate do sermão Narciso avisou­os de que podiam estar tranquilos, a cousa

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não   parecia   ir   mal   encaminhada…   Tudo   dito   num   murmúrio   e   coa   mão apoiada na cara tapando a boca para dissimular o movimento dos beiços: –  A julgar polo que disse o abade no sermão, ele pensa que a gente é a responsável de que esteja aí a pia, logo por esse lado estamos salvados… –  Mas donde sacarias tu isso, se não se lhe entende uma palavra do que sai pola sua boca? – E que vai pensar a gente? – Pois que lhe viemos ajudar ao abade a devolver o que é deles, e que não tinha que ter sido nunca roubado, e eu fui responsável, polo que a ninguém lhe estranhará  ver­me  aqui  participando.  Logo podemos sentar  e descansar um pouco, que a cousa parece controlada.  –  Não   sei,   não   sei…  a   ti   parece­che   normal   que   fite   tanto   para   nós   o abade? –  Homem  não   lho  hás­de tomar  a mal, ele pensa que  somos  possíveis novos clientes para engordar a vezeira, que tem arrarado muito… e anda­nos a fazer as beiras… Narciso e Perfeuto riram um nada. – Se não parais ainda nos vão botar fora… –  Isso é o que eu quereria, que isto está­se­me fazendo interminável… donde caralho tirais tanta lábia os curas, que não há Deus que o dê aturado…? –  Eu   já   não   sou   cura,   irmão,   que   esgarcei   o   hábito…   que   muito   me apertava e mesmo me parecia que me ia esmagar ou pôr louco…  – E digo eu… ao abade não lhe estranhará que a gente traga uma pia tão grande assim polas boas? –  Ao abade não lhe vai estranhar nada, ademais por aqui a gente ainda anda  com   isso   das   oferecedelas…  e ele  pensará   que   esse  foi  o  motivo,   e  aí morrerá o conto… Olha, esta igreja foi enchida no seu tempo antigo graças aos esforços das gentes que então viviam… agora, graças ao fazer dos curas volvia a estar vazia, e já vês que pouco a pouco se volve encher… – E que razão tinha Narciso –, o altar do meio que agora havia fora regalado por um vizinho que se oferecera quando  se  viu a morrer… e os outros dous comprou­os  a gente a escote, e há pouco pedira­se­lhes que deram também para governar o telhado e comprar casulas novas, que as que o Dom Narciso velho deixara já foram

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roubadas, e quiçá vendidas também… e também lhe pediu para livros e para não sei que mais… e a gente a dar, e a dar… E ninguém parece importar­se de que este ano não se vão colher feijões, porque o sistema de rego precisava dum escote para meter uns meios tubos e evitar que a pouca água que fica se escape polas toupeiras e não dê chegado às meras… mas à gente não lhe fica dinheiro que dar para mais escotes este ano… o cura pediu antes de que chegasse a rega… e agora já lá vai o dinheiro… E assim, mole e mole, irá­se enchendo a igreja outra vez. E um dia, talvez dentro de alguns anos, chegará outro cura que precise para lhe comprar os prédios aos sobrinhos, e volverá vendê­lo todo…, e volta a começar de novo o conto; portanto ao abade não lhe vai estranhar nada, e nada dirá. –  Pois   olha,   e  eu  que  pensava  que os  curas  vos entendíeis melhor coa gente … – Não me volvas chamar isso, que eu já estou curado… E aguardo que me chegue o tempo desta vida para reparar o mal que fiz co hábito… –  Perdoa   homem,   que   a   ti   não   te   queria   ofender,   já   sei   que   ti   te   tens governado… –  Vós segui a falar e vereis como ainda havemos de ir fora antes de que remate o segundo acto.  – Se ainda fosse como no teatro que te dão intermédio, e se não gostas da representação   já  te  vais  embora… mas aqui se te marchas nota­se muito, e todos   os   olhos   cravados   em   ti…como   para   perguntar:     “Passou­te   algo?” “Desmaiaste?”     Pois   já   verás   quando   tenhas   de   sair   de   primeiro   e   todas   as mulheres do fundo te reconheçam… – E porquê vou sair eu primeiro…? Que saiam elas e eu vou detrás…  – Não che são as cousas assim. – Pois já é hora de as mudar. – Calai duma vez…! Narciso então acordou­se de três raparigas que vieram alguma vez à missa quando ele estivera naquela freguesia substituindo ao Aurélio… sim, vinham e sentavam­se nos bancos dos homens, e se sentavam abaixo era para lhe dar nas  ventas  a  todos  e  sair  elas  as primeiras… pois  só por  isso,  e nada  mais, vinham   à  missa   alguma   vez,… e  até  se  perguntou   por  onde  andariam…  de

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certo que não iam estar na igreja, ora que quando souberam que a pia voltara entrariam a tocar com as suas mãos a pedra na que todos os seus antepassados puseram a mão primeiro… quanto daria ele por poder falar com elas, agora de tu a tu…! – Parece que estamos a chegar ao último acto… Por   fim   mandou­os   em   paz   e   eles   os   três   saíram   tão   completos,   e   as mulheres viram saciadas as suas curiosidades. Trás dos homens vão­se elas, e agora, enquanto o abade anda dentro a pelejar cos saiotes para despir­se, todos estão a saudarem­se polo átrio… Quando o pároco dá saído vê como os três homens já  se vão para fora.  Então  chama­os com um berro  e um aceno da mão, e eles pensam que aquele pasmão ainda os vai descobrir… – Eh! Aguardai aí, bons homens, que ainda vos tenho que dar as graças…! – Não se merecem, e ademais já no­las deu você desde o altar… Narciso apurou a dizer aquilo para lhe tapar a boca ao cura, não fosse falar   mais   do   que   eles   desejavam   que   se   soubesse.   Aguardaram   a   que   se achegasse a eles e amigavelmente fizeram como que charlavam… sem dizer nada   que   a   gente   pudesse   interpretar.   Aquela   naturalidade   coa   que   se desenvolveram confirmou­lhe à gente que os três vieram a ajudar coa pia. E coa   mesma,   toda   a   gente,   de   dous   em   dous,   foi   deixando   o   sagrado,   e parando­se polos recunchos da aldeia para falar. Os três caminhantes também se foram   e  o  abade,  vendo­se  só no átrio, também marchou.  E aqui  não  se passou nada. Os vizinhos não sacarão nunca o assunto a reluzir, não fosse o demo, já lha levaram uma vez… e o abade fez o mouco. O bispo não chegou nunca   a   saber   nada   de   nada,   e   as   autoridades   fecharam   o   caso.   Bom,   isto último não está totalmente claro.  Segundo   o   jornal  Nuestra   Región,   não   é   que   o   fecharam   senão   que   o abandonaram. Na verdade, o mais novo dos agentes nunca se ocupara a sério dele; ele andava ali camuflado de detective para fazer um estudo de campo sem que ninguém se desse conta. E por certo, não se chamava Riba por catalão, que ainda que nascera em Barcelona era filho de galegos, e galego se declarava ele também, ainda que fale tão bem o catalão como o idioma de Rosalia. E agora já anda  lá por  Barcelona  tentando escrever a sua tese na área da antropologia social. Já lhe tem um título buscado: “Bi­dimensionalidade e suicídio cultural

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dos galegos” Ainda não sabe se encontrará quem lha publique na nossa língua; em   Barcelona   mandará   uma   síntese   à  Revista   Catalana   de   Estudis Transculturals e sairá co título “Bidimensionalitat i suicidi cultural dels gallecs” Escusado   é   dizer   que   os   de  Nuestra   Región  não   lhe   vão   publicar   nem   uma entrevista,   quanto   mais…   e   vá   que   lhes   amola   que   se   ande   a   falar   dessas cousas…! E vai­nos falar de bi­dimensionalidade ele, precisamente ele que tem duas ou três falas, ele podia valer como exemplo da bi­dualidade essa… Mas a Camilo Riba, filho e neto de Camilos Ribas – todos, até ao confim das memórias familiares, eram galegos e ele tem clara a sua identidade – não dá crédito às críticas   que   lhe   possa   fazer   um   panfleto   ao   que   o   qualificativo   de   folha paroquial lhe assentaria melhor que o de jornal. A ele agora o único que lhe consome o seu tempo é a sua tese, que há­de ser brilhante.  De vez em quando pára­se a pensar nas possíveis críticas que os membros do júri lhe possam fazer e vai introduzindo mudanças no corpo do texto que ajudem a argumentar as posturas que ele agora, no momento de redigir, toma. A   quem   mais   teme   é   ao   professor   Loureses,   sendo   como   é   natural   duma freguesia   achegada   a   Penacova,   ainda   que   agora   pare   em   Barcelona.   Ele aguarda que o professor Loureses lhe critique a sua excessiva psicologização na terminologia, e lhe diga quiçá que bota em falta uma interpretação de corte mais   simbólico   que   fosse   capaz   de   dar   conta   de   toda   a   complexidade   do elemento   mágico,   inseparável   da   vida   de   Penacova.   Camilo   aproveita   estas projecções que faz para ir fazendo os ajustes que lhe permitam sair airoso o dia da sua dissertação. Contudo, o que Camilo Riba jamais poderia ter adivinhado é uma das perguntas do professor Loureses, uma sobre as serpes voadoras e os seus poderes. E daquela Camilo terá­se que arrepender de não ter perguntado mais aos vizinhos enquanto andava por Penacova… Mas se fizera isso as suas observações já não seriam tão objectivas… e esse será o argumento usado para mitigar   o   efeito   da   pergunta.   Claro   que   sim,   não   interferir   co   objecto   da observação fora o seu lema, e bem difícil que lhe foi às vezes… por isso não lhes   pôde   perguntar   nada…   e   ademais,   que   ia   a   pensar   a   gente,   e   o   seu companheiro, se entre as perguntas sobre a pia lhes solta uma sobre cobras voadoras? Não, isso qualquer entenderia que não se podia fazer. E isso que se o tivesse feito a gente bem que responderia, pois falar disso era­lhe bem mais

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fácil que falar da pia. Ao cabo, o das serpes essas que voavam acontecia lá por longe; daqui de Penacova, que se saiba, só as viu o Teófilo, quando andava polo Norte, e mais diz­se que… “Eram grandes como os temões dos arados, e polo lombo fora, dos dous lados, estavam cheias dumas asas pequeneiras… como as conchas das vieiras… Quando erguiam o seu voo, já te podias vigiar. Elas não mordiam, não, o perigo delas vinha do poder da sua sombra… se che roça a sombra   duma   dessas,   por   nada   que   seja,   aí   mesmo   ficas   tolheito   e   para sempre… por conseguinte as gentes andam sempre à procura da sombra das árvores para que não lhes roce a delas jamais…” Contudo, apesar de não saber nada disso, Camilo sairá bem airoso, e o professor Loureses alegrará­se de ver como os galegos ainda somos quem de nos observarmos e de nos criticarmos, e   fazemo­lo   bem,   ainda   que   às   vezes   para   poder­nos   ver   com   clareza   nos tenhamos   que  afastar  da  nossa  terra. Ele  mesmo vê tudo  o relativo à nossa cultura   com   mais   clareza   dês   que   está   aqui   em   Barcelona,   onde   lhe   é reconhecido o respeito que merece mais que na sua própria terra, não só como professor   senão   também   como   galego.  Esta  tarde  achegar­se­á   a  algum  dos bares dos Nou Barris dos tantos nos que se escuta falar na nossa língua, e quiçá presencie   algo   que   lhe   permita   manter   as   esperanças   da   supervivência   da nossa   cultura.   Que   desconcertantes   lhe   resultam   as   cousas   que   se   estão   a passar na nossa terra… mas quando vê gente como Camilo Riba, que desde aqui é capaz de ir­se até lá coa sua olhada invulnerável frente ao raquitismo, a tentar   resgatar  o  que   ainda   se puder  salvar…  põe­se  contente e  até  alberga esperanças de que nos salvemos, de que um dia nós também sejamos um país normal…   Quiçá,   desta   geração   de   galegos   criados   fora,   livres   da   influência directa da bidimensionalidade essa da que falava o já doutor Riba, possam sair homens e mulheres que voltem a ajudar aos que andam hoje já a lutar contra o suicídio colectivo, contra a desmembração e a auto­mutilação crónicas.  “Homem   Loureses,   que   gosto   saudar­te”   Era   C.   Rousia,   que   desde   a entrada do Cinco Estrelas o convidava a passar…  “Olá! Que fazes tu por aqui? Olha que também che é casualidade, precisamente hoje venho eu dum júri de tese no que um colega falava da nossa terra, mais falava da tua que da minha, se calhar viste­o por lá, haverá um ano que visitou aquilo, e…”  Conversam um bom   bocado,   os   dous   têm   vagar   e  querência  de  fazê­lo…   Depois  C.   Rousia

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despede­se dele: “Já me  tenho de ir,  alegrou­me deveras ter­me encontrado contigo,   e  não   te  preocupes   tanto,  que  qualquer  dia  se  resolve…  isto  é­che como dantes quando às mulheres, logo de três dias parindo, lhes davam a água de   ferver   os   cornozelos…   ‘parir   ou   rebentar’   diziam   então…   e   quando   as parideiras  enviavam para abaixo aquele xaropote amargo já tanto lhes tinha morrer   como   não…   algumas   já   estavam   mais   mortas   que   vivas…   pois   nós também nos livraremos… qualquer dia acaba­se o sofrimento… tanto sentir­se vulnerável… e isso que eu ainda sou nova, mas há gente que já leva uma vida longa nesta merda… e de que nos estranhamos ao ver como muitos e eles se passam ao outro bando e preferem que os seus filhos se alimentem do montão grande de esterco…? Eles, como os vermes, só pensam na própria subsistência, e devoram a maçã que lhe serve de alimento, e assim destruem o seu próprio universo…   eles,   os   coitados,   só   pensam   que   se   estão   a   afastar   do   mal   que ameaça   com   extingui­los,   e   fogem   moribundos   a   esconder­se   debaixo   do escudo   do   inimigo,   porque   assim   tão   sequer   já   não   se   apercebem   de   que morrem… correm sem dar­se conta de que quando se albergam lá debaixo já estão   mortos…   Fogem   espantados   por   um   espelho   que   lhes   devolve   uma imagem   de   si   próprios   como   seres   feios   e   desprezíveis,   ora   eles,   tal   que esganados, não podem ver outra cousa no espelho que têm diante; botam­lhe a culpa à língua, pois é a diferença que mais ressalta, e contra ela arremetem… E arrasam a terra tal que mortos viventes que como os vermes se arrastam por riba dela… Não, não me invejes porque me vou para lá, compadece­me…”

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UM ANO DEPOIS Trás   o   jantar   cos   membros   do   júri,   como   manda   a   tradição,   Camilo dedicou­se a andar passeando solitário polas ruas de Barcelona. Sentia­se feliz. Os membros do júri felicitaram­no por tão brilhante trabalho e, naturalmente, deram­lhe a máxima qualificação. Agora só lhe faltava encontrar uma revista galega que lhe ajudara a dar a conhecer os seus descobrimentos. Mas não hoje, hoje não queria pensar… hoje queria sentir… como fazia quando andava lá por Penacova com Rafael a primavera passada… Rafael… que seria feito dele? Não volveram a falar desde o dia em que se despediram em Santiago quando Rafael o fora levar ao aeroporto. Teria que lhe telefonar… e porque não agora que tinha tempo? Após a dissertação tinha umas semanas de descanso e ainda não planeara   o   que   fazer   com   elas.     E   enquanto   se   enchia   de   imagens   da   sua Barcelona natal, ia pensando no que gostaria de fazer nessas duas semanas. Pensou que gostaria de ver a gente de Penacova… A Manuel e a sua mulher Aurora,   e   lembrou   aquele   rebite   encarnado   que   lhe   vira   a   ela   colgando   do pescoço… daquela não podia falar mas se a visse agora havia de lhe perguntar polo seu significado… também gostaria de ver ao Ciro e dizer­lhe que era todo ouvidos, que lhe podia contar todas as histórias de pias que desse lembrado… E que seria feito daquele moço, cos seus sonhos de escapar lá a Canárias…? E a tia Maria? Seguirá podendo apanhar nas suas verças…? E o tio Serafim? Toparia quem   lhe   abra   a   forja…?   E,   claro,   as   três   moças   do   maçadoiro…   sim, definitivamente queria ver às do maçadoiro, a ele amolara­lhe não poder ter falado mais durante aquela fase da sua investigação, mas assim são as cousas. Agora podia volver e arranjar tudo… explicar­lhes porque estivera tão calado. E enquanto   anda   ele   com   aquelas   evocações,   as   imagens   do   passado   vão­lhe entrando misturadas com as que lhe regala a cidade que se move ao seu redor Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  184

enquanto   ele   anda…   que   formosa   é   esta   Barcelona…   e   enquanto   revive   as lembranças nasce nele a imagem duma gesta florida da primavera de Penacova que se mistura coa dum formoso lagarto de porcelana… Se pudesse colher e dobrar o mapa da Ibéria… e juntar Penacova com Barcelona… E ele pensava que aquela era uma ideia mui original que se lhe acabava de ocorrer a ele… como se nota que passara pouco tempo em Penacova! Ele marchara antes do Agosto e nunca escutara aos que cada ano a finais desse mês têm que se pôr ao volante   para   irem   a   Barcelona   de   volta:   “Ai,   quanto   quilometro   inútil   polo meio… se se pudesse dobrar o mapa… com uma alancada já chegava!”   Mas ele,   sem   nada   saber   disto,   aquele   dia   ia   dobrando   o   mapa   e   saltando   de Penacova a Barcelona com toda a facilidade. Ainda que o que ele fazia era uma superposição que lhe permitia andar polos dous sítios a um tempo, e ele ia escolhendo dum e doutro, criando assim o seu mundo ideal… Um mundo no que ambas as duas realidades tinham plena razão de ser; onde nenhuma é pior nem melhor, senão dous mundos irmãos… e pensando naquilo, e sentindo a imensidade   dos   seus   universos,   foi­se   na   procura   dum   telefone.   Falou   co Rafael, que muito se alegrou de o escutar. E quase sem aperceber­se sequer já estava no aeroporto de Santiago de novo…  –  Mesmo parece que foi ontem quando me vieste trazer ao aeroporto e logo vai lá um ano… – E polo que me contaste, para ti não foi mal aproveitado…  – Não tenho queixa, mas conta­me agora de ti, que ainda não me contaste nada… O  reencontro fora  intenso,  tal que de parentes se tratasse, e depois  de visitar   Compostela,   aquela   mesma   tarde   volveram   às   terras   do   Deza   onde Camilo gozou duma familiar acolhida. Logo planearam uma visita a Penacova. À primeira não estavam mui certos de se o deviam fazer, eles já não eram quem foram, e talvez também já ali as cousas andavam doutra maneira… porque não deixar tudo como está, e reter aquela lembrança tão suave e doce que ambos conservavam? Camilo tinha outros sítios que visitar, lá pola Fonsagrada onde moram os da sua gente pola parte de seu pai, e podia adiantar a sua marcha… Mas não há­de ser tal… e puseram­se ao caminho para o outro dia à manhã. 

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Quando iam subindo pola estrada d'Os Mouros, mesmo em chegando a Ameixeiras, avistaram a um grupo de gente toda junta na beira do caminho. Rafael   conduzia   devagar   e   puderam   ver   como   de   dous   em   dous   se   iam metendo todos na taverna. Pararam o automóvel e, danados pola curiosidade, entraram   no   bar   eles   também,…   afinal   de   contas,   era   um   lugar   público   e ninguém   lhes   ia   dizer   nada,   ainda   que   aquilo   parecia   uma   reunião…   um conselho, diria a gente. Ficaram de pé direito na esquina do balcão, perto da porta.   A  gente,   alguma   sentada  e outra   de   pé,  olhava   para  um  homem   que tinha agora a palavra e começava a falar… –  Pois eu peço­vo­lo deveras a todos… e já vos digo que a candidatura está aberta… e eu seria mui gostante de que alguém de Ameixeiras se unisse a ela…   já   há   gente   de   Penacova   também   apontada,   e   de   Fontearqueira,   e   de todos os lugares, se me apuras até de Penalapa levaremos gente… já só ficais vós para as listas estarem completas, e mais estarmos todos representados…  Um   homem   de   uns   sessenta   e   tantos   anos   falou   então,   e   parecia representar bem o sentir de todos, porque todos acenaram coa cabeça ao que ele dizia, …e disse que não se devia estranhar se a gente semelhava um bocado remissa, mas que já escarmentaram muito… e não precisamente na cabeça dos outros… que eles tinham os seus reparos para fiar­se da política…  – Eu compreendo o que me dizes, Severo, e não te falta razão nenhuma, contudo tens que admitir que todos nos equivocamos, e que de não ser assim não se precisariam as segundas oportunidades…  E   o  orador  seguiu   a  falar  das  segundas   oportunidades e  do  muito  que aprende a gente quando não sabe o que tem e o perde… e assegura­lhes que se o apoiam não se vão arrepender… A Camilo e a Rafael parecia­lhes que aquele homem   falava   com   sinceridade,   e   perguntaram­lhe   ao   de   detrás   do   balcão quem era – “É o velho alcaide, que se quer apresentar outra vez”… E o orador seguiu a falar, mesmo semelhava que tinha pressa por sair eleito outra vez,… e que certo era, ele tinha assuntos pendentes que resolver, assuntos que estavam à  sua   espera  e  ele  já  não   via  a hora de poder  começar…  à  Fonte ser­lhe­ia devolto o seu  caudal,  ainda que ele  mesmo tivesse que  abrir  o buraco  coas mãos e fazer um muro de contenção… e ademais tinha ele outras contas que saldar e havia de ir pouco a pouco até pagar por todas; e com essa esperança

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seguia a falar, e a gente a interpelar. Rafael e Camilo foram­se embora e não ouviram como rematava aquele meeting, no que o orador, que estava a deixar medrar a barba ou talvez se esquecera hoje de se barbear, se empregou a fundo para  colocar   a  sua  mensagem  dentro das  cada vez mais  atentas cabeças da gente.  Camilo e Rafael chegaram a Penacova, e em vez de meter­se para a aldeia decidiram dar uma volta co automóvel polas pistas, primeiro foram caminho de Penalapa e ao passarem A Tapada colheram o caminho que polas Lamas do Baio leva à Travessa; ali pararam e saíram do auto, estavam no pé do Castelo da Rainha Loba. Sentiram um bouchear intermitente que vinha de lá do fundo das carvalheiras.   Atraídos   pola   sua   natural   curiosidade,   caminharam   por   um carroucho   estreito   entre   os   carvalhos   e   foram   ter   a   um   lugar   onde   havia cachotes de pedra escangalhados. Ali nascia o boureio e não tardaram em dar co responsável, um homem de mediana idade que semelhava estar a fazer uma escultura, ou algo parecido. A eles surpreendeu­lhes que aquele homem, em vez de começar por uma grande rocha e ir tirando o que lhe sobrasse, parecia fazer ao revés, e andava a juntar cachotes e fazendo­os casar uns cos outros e mais com um plano que parecia consultar lá dentro da sua cabeça. O homem nem reparou neles, e continuou a colher e a provar pedaços de pedra nos ocos que faltavam. Eles olharam um pouco para aquele pedreiro que parecia cego para tudo menos para aquelas pedras e os seus martelos, e só descansava para botar uma olhada lá para os montes da Rousia, ou cara aos vales da Límia, com um olhar que mostrava que ele também tinha outras contas por pagar. Camilo e   Rafael   admiraram   a   habilidade   que   parecia   ter   nas   suas   mãos,   depois marcharam. Debateram­se entre dar a volta e ir buscar o automóvel ou baixar polo monte abaixo até chegar ao meio de Penacova. Decidiram deixar o seu veículo para mais tarde, e foram­se caminhando até às casas. Primeiro foram dar   uma   volta   polo   lugar.   Eram   muitas   as   lembranças   guardadas   e   agora também,   por   ambos   os   dous,   prezadas,   ainda   que   algumas   não   fossem   tal quando   as   viveram.   A   Camilo   amolou­lhe   não   dar   visto   as   três   moças   do maçadoiro e até quis ficar sentado ao pé da casa da escola, enquanto Rafael ia visitar o Manuel, mas aquilo não estava bem, e resignando­se a ser lembrado polo   seu   silêncio,   marchou   co   seu   amigo   a   caminho   do   fundo   da   aldeia.

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Recebeu­os a Aurora, o Manuel andava no monte… “chega este tempo e não há quem pegue nele em casa… tem tanto labor do que botar mão… hoje foi amorear tantinha erva, ao passo que levou o gado para o monte… como lhe vai amolar não os ter visto… se não fosse tão longe davam­me ganas de ir na sua procura…!”     A   eles   também   lhes   amargou   não   ver   o   Manuel,   mas conformaram­se com ver a Aurora, e perguntaram­lhe que tal iam as vacas, e se   levaram   para   o   matadoiro   a   bezerra   da   Marquesa   ou   a   criaram…   “Já, homem, já; onde ela vai! E mais, muito lhe amargou ao meu homem ter­se que desfazer   dela…”   disse­lhes   Aurora   com   uma   fala   carregada   de   saudade. Marcharam. Passaram por diante da casa do Serafim e botaram uma olhada para o corredor… Não viram a ninguém, o ferreiro não estava sentado no seu escano ao lado dos jornais que lhe juntara o seu neto Daniel este último ano. Deram­lhes ganas de subir e bater, mas decidiram seguir, e ao reparar na porta da   forja,   viram   que   estava   aberta;   lá   dentro   um   homem   soprava   as   brasas ardentes  nas   que  já  se  estava  a  temperar  o ferro.   Aquele  homem  não  era  o Serafim;   era   um   homem   muito   mais   novo   que   ele,   um   homem   que   agora deixava descansar os  foles  e com as tenazes sacava o reluzente ferro  e com força começava a bouchear nele. Com cada golpe, sua estrela de faíscas que se funde e esvaece no espaço que o rodeia. Aquele homem era o Narciso, ainda que eles nunca o saibam, e enquanto seguem o seu caminho Rego arriba, vão escutando   como   os  bateres  do martelo deste novo ferreiro  se misturam cos ecoares  duma   canção…   aquela   melodia  faz­lhes   lembrar   o   velho   ferreiro,   e como então tampouco agora entendem o que diz a letra… e marcham. Mas não   é   de   estranhar   que   a   não   entendam,   o   próprio   Narciso,   que   a   canta, tampouco acaba de saber o que quer dizer. A melodia segue­lhe a lembrar as cantigas que de pequeno lhe ensinava sua avó, ora na poesia intui­se uma força nova,   uma   força   que   em   lugar   de   amolecer   o   seu   espírito   vai   fazendo­o resistente,   tão  rijo   como   o   próprio   ferro   no  que  boura.   E   enquanto   golpeia decata­se   de   que   o   ferro   reluzente   mais   que   relha   parece   espada,   e   nesse instante   entende   o   sentido   da   sua   canção…   e   com   mais   força,   se   couber, golpeia   agora   enquanto   vai   calculando   se   haverá   relhas   de   avondo   para desterrar o selvagismo que assola a Terra.

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GLOSSÁRIO Definições   e/ou   sinónimos   segundo   os   usos   na   Galiza.   Este glossário   foi   elaborado/adaptado   a   partir   do   Dicionário   Estraviz (disponível na Internet em www.agal­gz.org/estraviz/).

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A Abofé  adv. Certamente, em verdade.  Abofé que o fez: em verdade que o fez [de a + boa + fé]. 

Argalhar  v.   tr.  (1)   Inventar   mentiras.   Mentir. Tramar. (2) Armar ou promover embrulhos. (3) Discorrer,   inventar   contos   ou   histórias.   (4) Conceber um plano com uma finalidade prática.

Aboujar v. tr. Aturdir a berros e com forte ruído.

Arramplar  v. t. Arrepanhar, arrebatar .

Acadar  v.   tr.   (1)   Recolher,   colher.   (2)   Alcançar,

Arrelar  v. i. e r.  (1) Fadigar­se  com o muito  peso

conseguir. (3) Dar no alvo. [lat. accaptare]. Acaer  v.   i.  (1)   Ser   próprio,   ajeitado,   ajustado:

que se leva às costas. (2) Dobrar­se com a carga. (3) Derrear.

acae­lhe   bem   a   alcunha.  (2)   Assentar   bem,

Artelhar v. tr. Articular, organizar.

favorecer: acae­lhe bem o vestido. [lat. accadere].

Assolagar v. t. Anegar, submergir, alagar.

Acochar  v.   tr.  (1)   Cobrir.   Abrigar.   (2)   Ocultar. Esconder.   (3)   Proteger.   Amparar.   v.   r.   (1)

Assumiçar  v.   t.   e   r.  Fazer   parecer   mais   pequeno, menos importante.

Abrigar­se bem na cama. (2) Meter­se na cama a

Atarricado adj. Atestado, abarrotado, atarracado.

causa de uma doença [de cochar].

Avantar v. tr. Ir para adiante. Adiantar. Avançar.

Acotegar v. t. Arrumar. Acougo  s.   m.  (1)   Acto   ou   efeito   de   acougar   ou

Avondo adv. (1) Avonde, abundantemente; (2) adj. Suficiente [lat. Abunde].

acougar­se,   acoito   (2)   Sossego,   tranquilidade,

B

calma, repouso. Agarimar v. tr. (1) Proteger, amparar. (2) Arrimar a outrem algo que o abrigue e lhe dê calor. (3) Por

Bágoa s. f. Lágrima.

ext.  Tratar   com   carinho.  v.   r.  (1)   Pôr­se   ao

Balorecer v. i. ou v. t. Bolorecer. 

agarimo   de   alguém.   (2)   Pôr­se   ao   abrigo.   (3)

Barquela s. f. Recipiente de madeira em que se põe

Abrigar­se bem com roupa. Alancada s. f. Passo muito largo.  Alcaide  s. m. Autoridade administrativa espanhola que   corresponde   a   presidente   da   câmara   em

a comida aos porcos. Bica do testo s. f. Pão de trigo comprimido e chato que se coze numa tigela. Bimbarreira s. f. Pendente, encosta.

Portugal.  Alpavarda  s.   m.   Papa­moscas.   Pessoa   sem resolução. adj. Atontado. Aparvado. Simples. Alprecha s. f. Alcunha.

Bourar v. i. Golpear, bater, malhar. Boureio  s.   m.  (1)   Algazarra,   tumulto.   (2)   Faina, trafego. 

Amalhoar v. tr. Atar com amalhó.

Bouchear v. i. Martelar.

Amalhó s. m. Cordão de coiro para atar os sapatos.

Broma s. f. Brincadeira, piada.

Amedouchado  adj.   Disposto   em   forma   de

Bruar v. i. Rugir, zoar.

medoucho, ou meda pequena.

Buligar v. i. Mover­se, bulir, oscilar.

A modo loc. adv. Com jeito, muito de vagar.

C

Amoreado  adj.   Posto   em   moreia   ou   montão. Amontoado. Apanho  s.   m.  (1)   Acomodo,   arranjo:  tenho   este apanho para ir vivendo. (2) Trato ilícito e oculto com pessoa de distinto sexo. Apoleirar v. tr. e r. Empoleirar. Arestora  adv.   t.   A   esta   hora.   Neste   momento. Agora. [lat. hac + ista + hora].

Cachote  s.   m.  Pedaço   de   pedra   de   cantaria   sem lavrar. Pedra grande desprendida de um penedo. Cadanseu/Cadansua  adj.   Cada   um   seu/sua:  iam com cadanseu carro. Canchês  adj. e s.  Aquele que tem as pernas tortas ou arqueadas, cambaio.

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Cão  s.   m.  Denominação   popular   duma   antiga moeda de dez cêntimos de peseta. Cara a prep. (1) Indica direcção: marchou­se cara à vila. (2) Aproximação temporal: recolhe as vacas cara a tarde. (3) Aproximação local: cara a serra vê­se o nevoeiro. Caráfio  Interjeição que denota surpresa ou enojo (eufemismo de caralho).

Clouca s. f.  Sapela ou rã pequena. Cocho  s. m.  Buraco. Toca. Fojo. Esconderijo, lugar secreto,   pequeno   refúgio   de   um   animal.     [lat. copulu].  Combarro  s. m.  Lugar onde se guarda a lenha do inverno, lenheira. Comesto p. p. irreg.  de comer.  adj. (1) Consumido, acabado,   extenuado.   (2)   Que   foi   comido:

Carpaço s. m. Carrapiço.

comesto   dos   cães,   dos   vermes.  (3)   Carcomido,

Carrela s. f. Talhada, fatia. 

roído, gasto: comesto polos anos. 

Carroucho s. m. Carreiro difícil de transitar. 

Conhecias s. f. persoas conhecidas; conhecidos. 

Casalandreiro  adj.  Diz­se   da   pessoa   amiga   de

Cornozelo  s.   m.  Cornição,   cornecho,   crava­

andar polas casas alheias. Castrapo  s.  m. pop.  despect.  Variante dialectal do idioma   castelhano,   muito   influída   polo galego­português, falada na Galiza.

gem­do­centeio, doença do centeio causada por um   fungo   que   contém   alcalóides   de propriedades medicinais e psicotrópicas. Coucheira  s.   f.  Conjunto   de   plantas   ou   ervas   da

Cativo s. m. Menino.

mesma espécie  que se  distingue no terreno do

Ceia­cú  adv.  Com   retrocesso,   movendo­se   para

resto pela sua espessura e altura.

trás. Ceivar  v. t.  (1) Soltar o gado que estava atado. (2) Soltar   os   animais   do   jugo.   Desjungir.   (3)   Dar liberdade a uma pessoa:  o juiz mandou ceivá­lo

Couchopé   (Ao)  loc.   adv.  A   pé­cochinho,   andar apoiando um só pé no chão. Cova­terra  s. f.  Esconderijo debaixo da terra onde vivem as toupeiras.

por   ser   inocente.  Deixar   livre.   (4)   Destapar   as

Crego s. m. Clérigo [lat. Clericu].

águas.

Crencho  adj.   Crespo,   riço,   enguedelhado:  tem   o

Ceive  adj.   Livre,   sem   nenhum   tipo   de   atadura, falando de animais, terras. Chantar v. t. Plantar de estaca, espetar. Che Gram. Forma do pronome pessoal de segunda pessoa quando funciona como objecto indirecto,

cabelo crencho (var: crecho). Creto s. m. Crédito, credibilidade, fama, confiança. Cuinchar  v. i.  cuincar, grunhir, particularmente o porco.   v. t.  por extensão, cravar­lhe o cutelo ao porco para o matar, provocando que cuinche.

comum na Galiza em substituição da forma te: vou­che   dar   o   que   che   prometi;   não   cho   posso contar.  Forma de dativo de «solidariedade» (no diálogo   designa   um   interlocutor   a   quem,   sem recair   nele   nem   direita   nem   indirectamente   a acção   verbal,   de   algum   modo   interessamos   ou implicamos   no   que   enunciamos,   como concedendo­lhe   simpaticamente   participação): dói­che­me muito a cabeça; quando vem? –  Não cho sei. Chinguilinada  s.   f.  Cousa   miúda   e   de   pouca importância. Chouchar v. i. Rolar: a pedra foi chouchando monte abaixo.

D Daquela  adv. t. e m.  (1) Naquela ocasião, naquele tempo:  já   daquela   falavam   de   vir.   (2)   Então, nesse   caso:  daquela,   não   o   pago;  daquela   não temos mais que falar [de de + aquela]. Dar  +   particípio   verbal  Construção   que   expressa capacidade ou possibilidade de o sujeito atingir a acção do verbo (exemplo: dar chegado a tempo: ser capaz de chegar a tempo). Decatar­se v. r.  Dar­se conta, aperceber­se.  Decolgar v. i. Colgar; pendurar.  Decotar  v.   tr.  Cortar   por   cima   ou   em   volta, especialmente pôlas de árvores.

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Decrua  v. t.  Acto de decruar; primeiro amanho ou lavra da terra para a sementeira.  Deica pouco loc. adv. Quase, perto de. Deluvar  v. tr. (1) Esfregar suavemente:  deluvar os

Esnaquiçar  v.   tr.  Fazer   pedaços   alguma   cousa, destroçar,   esnacar.  v.   r.  Fazer­se   pedaços, romper­se. Estinhar v. i. e t. Estiar, deixar sem líquido. 

olhos   pola   manhã.  (2)   Esfregar   com   força   a

Estrelinha do Luzeiro   Estrela da Manhã. 

roupa.

Estrume  s. m.  (1) Mato, palha e despojos vegetais

Deputação  s. f.  Câmara territorial de província, na Galiza.

que   se   empregam   como   cama   do   gado   para obter esterco.  (2) Resíduos vegetais   misturados

Desacougo  s.   m.  Desassossego,   inquietude, intranquilidade. Desacoito

com os excrementos dos animais, com os que se adubam as terras para as fertilizar.

Devandito  adj.  Que   já   fica   dito.   Mencionado

F

anteriormente. Devezer  v.   i.  Sentir   um   intenso   desejo   por   algo (devezo). Devezido adj. Com devezo ou apetência insaciável. Devezo s. m. Ânsia ou desejo muito intenso de algo.

E Emborcalhar­se  v.   tr.   e   i.  Rebolar­se   polo   chão como os animais. Encadilhar  v.   tr.  Entrançar,  enrestiar.  Por   ext. Organizar as acções na direcção ajeitada.

Fachonco  s. m.  Buraco pequeno que se enche de água.  Fárria  s.   f.  (1)   Classe   de   rocha   de   estrutura piçarrosa, da mesma composição que o granito, mas submetida a distinta pressão geológica. (2) Abertura estreita entre rochas. Fento s. m. Feto. Fotingo s. m. pop. Automóvel de pouca potência.  Frôncega s. f. Fronça.  Fame s. f. Fome. [lat. Fame].

Escrebadela s. f.  Sonadela, sono curto e ligeiro.

G

Ençoufado adj. Sujo, manchado, lixado. Enferrar v. i. Enganar.  Engabachado  v.   i.  Gabacho,   muito   bem   vestido, como para uma festa.  Ensinar  v.   t.  (1)   Transmitir   conhecimentos   e competências   a;   (2)   Mostrar,   deixar   ver;   (3) Indicar, sinalar. Entear v. i.  Avivar o lume. v. t. Avivar­se o lume. Entroido s. m. Entrudo.  Enviar  v. tr.  (1) Mandar alguém ou alguma cousa:

Gesta  s.f.  giesta,   nome   de   algumas   plantas subarbustivas   da   família   das   Leguminosas,   de talo   lenhoso,   com   polas   delgadas   e   flexíveis   e flores   amarelas   ou   brancas,   algumas   das   quais são   espontâneas   na   Galiza   e   Portugal.   [lat. Genista]. Guichar  v.  t.  Espreitar,  vigiar, observar desde  um lugar oculto para não ser visto.

enviar um criado às compras.   (2) Tragar:  enviei

H

um   osso   do   frango.  v.   i.  Tragar,   comer   sem mastigar:  este,   em   vez   de   tragar,   envia  [lat.

Ho   Interjeição que exprime certeza.

inviare].

Homem da moca  s. m. Personagem fantástica que

Enxoito adj. Enxuto.

representa   o   sono,   e   dá­nos   mocadas   para

Escacaranhar­se v. ref. Perder­se de riso. 

induzi­lo.

Escarrapatar  v. i.  Remexer  a terra com as unhas, esgaravatar.

I Intriquidência s. f. Complicação, embaraço.

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  192

J Jamão  s.   m.  Variedade   de   presunto   preparado   à moda da Galiza.

Meixela  s.   f.  Maçã  do   rosto.  Cada   uma   das   duas proeminências do rosto debaixo dos olhos. [lat. maxilla]. Mentres adv. t. Mentes, enquanto, entretanto. [lat.

Janeira s. f. Cio dos gatos e outros animais.

L Lacazanear v. i. Andar à preguiça.   Larejar v. i. Arder mui rápido o lume. Larpar v. tr. Engolir rapidamente. Latricar v. i. Falar à toa, sem sentido e berrando. Lea  s.   f.  (1)   Luta,   briga,   peleja.   (2)   Complicação, enredo, confusão. Ligar de  Acontecer por um acaso. Calhar de. Liorta  s.   f.  (1)   Confusão,   enredo,   barafunda.   (2) Disputa, peleja. Liscar  v.   i.  (1)   Marchar,   ir­se.   (2)   Fugir:  liscou quando viu a polícia. Lispar v. t. fig. Larapiar, roubar.

de um interim]. Mera  s.   f.  (1)   Parte   da   herança   que   toca   a   cada herdeiro. (2) Parte comunal que lhe corresponde a cada vizinho [gr. meros]. Porção. Moinheiro  adj.   e   s.  Pertencente   ou   relativo   ao moinho ou à moagem.  s. m.  O que tem ao seu cargo um moinho.   Mole e mole  Pouco a pouco.  Molida s. f. Protecção que levam as vacas e os bois para   que   não   moleste   o   peso   ou   a   carrega   ao jungi­los; molídia. Mornura s. f. Mornidão, tepidez. Moruja  s. f.  Morugens, planta herbácea frequente nos terrenos areosos, e nas fontes.  Mouminhar v. tr. Falar polo baixo. Murmurar.

Lumieira s. f. Peça longa de pedra ou madeira que

N

se   põe   sobre   os   marcos   das   portas   e   janelas. Lintel. 

Neno/nena s. m./f.  (1) Ser humano de pouca idade.

M

(2) Moço/Moça novo/a. 

O

Maçoucado adj. Que tem maçaduras. Mada s. f. Quantidade de cousas que cabem numa só mão, mão­cheia. Mália  interj. Mal  haja:  mália  quem te  criou.  conj. Apesar de: mália que não ando bem, irei. Malhões s. m. Correias de coiro com que se atam os socos ou chancas, amalhões. Cordões. Malpocado  adj.   e   s.  Infeliz,   coitado,   desgraçado. adv. Mal­pecado.

Ola  s.   f.  (1)   Vasilha   arredondada   para   preparar comidas.   (2)   Recipiente   de   barro   para   carrejar agua. (3) Caçoula de barro na que se guardam os chouriços.   (4)   Recipiente   de   madeira   para guardar   ou   maçar   o   leite.   (5)   Medida   de capacidade equivalente a 16 litros. Ombreiro s. m. Ombro. Ouleo s. m. Uivo. 

Mancar v. tr. Magoar, lastimar, ferir.

P

Maniota  s.   f.   (1)   Freio   para   prender   a   mão   dos animais. Peia. (2)  pl. Dor que se sente nalguma parte  do corpo depois  de realizar um exercício muito violento ou muito seguido. Marelo adj. Amarelo.  Matinar  v.   t.   e   i.  Pensar   com   empenho   e

Passeninho adv. Devagarinho. Pedâneo  adj. (1) Antigamente, juiz que numa vila ou aldeia julgava de pé. (2) Alcaide duma aldeia [lat. pedaneu].

detidamente alguma cousa. Cavilar, discorrer.

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  193

Peso  s.   m.  Denominação   popular   na   Galiza   da

Queixil  adj.   Queixal.   Do   queixo.  s.   m.  (1)   Dente

antiga   moeda   espanhola   de   cinco   pesetas.

molar.   (2)   Mandíbula   inferior   do   porco.   (3)

Moeda espanhola que valia cinco pesetas.

Queixada, mandíbula. 

Petar v. i. (1) Chamar dando golpes numa porta. (2)

Quadra (se) adv. Talvez, quiçá. Se é do caso, pode

Fazer   ruído   andando,   trabalhando   com   um

acontecer que: se quadra, vem hoje. Dar quadra:

martelo, etc. (3) Pegar, golpear.

dar razão, lembrar­se.

Pinho  s.   m.  Parte   do   carro   de   bois   por   onde   se

R

puxa,   e   que   habitualmente   se   amarra   co temoeiro ao jugo. Pipela, ou pipel  s. f.  Cano lavrado na pedra,  polo que sai a água duma fonte. Porca s. f. (1) Jogo que consiste em fazer um buraco grande   (porca)   e   vários   pequenos   (quichos)   e com cajados intentar uns jogadores meter a bola de urze ou de outro material dentro, no entanto lho   impedem   os   outros.   Os   jogadores

Rabunhar  v.   tr.   Ferir   com  as   unhas.   Esgaravatar, ranhar, arranhar.  Ranhar  v. tr. e i.  Arranhar. Esfregar a pele com as unhas. Não ter que ~ não ter que fazer. Rauto s. m. (1) Rapto. (2) Arrebato [lat. raptu]. Rechouchio s. m. Trinado, gorjeio.  Recuncho s. m. Recanto, canto. 

chamam­se   porqueiros   e   têm   que   defender   a

Refaixo s. m. Espécie de saia curta e rodada, que se

porca   e   o   quicho   para   impedir   que   os   outros

leva   de   baixo   da   saia   de   fora.   Saia   de   baixo.

metam   a   bola   no   buraco.   No   caso   de   que   a

Saiote.

alguém lhe colham o quicho tem que seguir com

Refistolar v. i. Remexer tudo buscando algo.

a porca. Quando a bola entra no grande têm que

Refistoleiro  s.   m.  Diz­se   da   pessoa   que   remexe

se mudar os que guardam os buracos pequenos

tudo buscando algo.

com rapidez e o que meteu a porca sempre tem

Refucir v. t. Arregaçar.

que ficar depois num pequeno; o buraco grande:

Reganho s. m. Raiva.

cocha  e os pequenos  guichos; o buraco grande:

Renguelear v. i. Andar de jeito rengo ou derreado.

cocha;   os   pequeninhos:  cochinhos.   (2)   A   bola

Ringleira  s.   f.  Linha   de   cousas   ou   pessoas   em

redonda para jogar. (3) Buraco grande no jogo da porca. Dar tronos, significa meter a cabeça (bola) na   buraca   e   apertá­la   com   os   paus.   A   «trela» consiste em pôr os cajados na porca e meter­lhe a   cabeça   no   buraco   ao   que   não   quer   seguir

ordem. Fileira. Rolda s. f. (1) Turno no reparto da água de rega. (2) Turno, vez. [lat. rotula]. Roscão s. m. Doce elaborado com farinha, ovo, leite e açúcar, cozido no forno. Rouchar v. i. Andar da roda, rodar.

jogando [lat. porca]. Poula  s.   f.  Terreno   de   pousio,   inculto,   mas

Rustrir v. tr. (1) Frigir algo em azeite, manteiga ou gordura,   alho,   etc.,   para   condimentar   um

cultivável. Póutega:  s. f.  Pútega; planta herbácea, comestível,

manjar. [fránc. hraustjan,prov. raustir].

da família das Raflesiáceas, parasita das raízes de

S

várias   plantas,   que   se   encontra  na   Galiza  e   no Norte e Centro de Portugal, também conhecida por coalhadas.

Sarriço  s. m.  Espinhaço muito visível num animal fraco.

Presel s. m. Pesebre. Pruício s. m. Pruído, comichão, prurido.

Q

Saculeão  s.   m.  Sacudidela,   empurrão,   particu­ larmente o que se dá co ombro debaixo do corno da vaca, mentes se puxa pola soga com a que se junge, para que fique melhor apertada.

Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes  194

Santa Companha  s. f. Procissão de almas penadas

Trousar v. tr. (1) Vomitar; (2) Trouçar, trasfegar.

que, segundo as crenças tradicionais da Galiza e

Tega  s.   f.  Teiga.  (1)   Medida   de   capacidade   para

do Norte de Portugal, percorre de noite as fragas

cereais com valores diversos segundo as zonas.

e caminhos para ir recolher as almas das pessoas

(2) Recipiente de madeira usado para a medida

que morrem ou para anunciar­lhes a sua morte. 

de áridos. (3) Quantidade de grão que colhe na

Sedenho  s. m.  Corda   grossa  para  atar a carga  do

tega. Trugir v. i. Mover­se (vai sempre acompanhado da

carro, adival. Seica  adv. de dúvida. Acaso, talvez, quiçá, parece;

negação não: não te trujas).

dá origem a numerosas locuções ou modismos

U

com certo matiz interrogativo.  Seica estás  tolo?: que   dizes,   fazes   ou   te   propões?  Seica,   seica: quiçá,   quiçá.  Seica   sim:   parece   ser  certo,   pode ser. Seica sim?: de modo que é certo. Seitura s. f. (1) Acto ou efeito de segar. (2) Época de segar os cereais. Ceifa, sega [lat. sectura].

U  adv.

 ant.   Onde.   Forma   um   pronome

interrogativo   referido   tanto   a   pessoas   como cousas: u­lo, u­la [lat. ubi]. Uzeira s. f. Urzeira.

Senha  s.   f.  Na   mitologia   popular   galega,   imagem

V

fantasmal duma pessoa que não está presente, cuja visão anuncia a próxima morte desta. [lat.

Vaso s. m. Copo.

signa, pl. de signu].

Velaí interj. Eis aí: velaí o que fez.

Solaina s. f. (1) Sítio ou paragem onde dá o sol. (2) Lugar   aberto   com   balaustrada   de   pedra,   com uma grande escada de aceso que acostuma ser a entrada principal nos paços galegos.  Sona s. f. Fama, creto, renome.

T Tarabelo s. m. Taramela, pessoa tagarela. Tendal s. m. Tendedeira, lugar da casa do forno em que se tende a massa e se faz o pão.  Topenejar  v.   i.  Dar   cabeçadas   com   o   sono, dormitar.  Trebelho  s.   m.  Aparelho   empregado   numa determinada actividade.

Vê­las vir (estar a ~) Ficar pasmado. Vencelha  s. f.  Vencilho,  corda feita de palha e de um só lado, empregado para atar os molhos. Vieiro s. m. Caminho. [lat. viariu]. Vindeiro adj. O que está por vir, que está próximo. s. m. pl. Sucessores, os que hão de nascer ou vir depois. Viosbardos s. m. Gambozinos; Andar aos ~ andar desnorteado.

Z Zagões s. m.  Espécie de avental de coiro que se usa na faina de atar os molhos ou gabelas da messe. Zarapulho s. m. Migalho.

Troula s. f. Diversão buliçosa, pândega.

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Índice

Ficha técnica

2

Sobre a autora

3

Dedicatória

4

Prólogo

5

Limiar

11

Capítulo I – A Fontecova

13

Capítulo II – A Fonte da Auguela

36

Capítulo III – A Fonte da Cunca

65

Capítulo IV – A Fonte de Requeijo

89

Capítulo V – A Fonte do Galo

100

Capítulo VI – A Fonte do Jardim

128

Capítulo VII – A Fonte

150

Descobrimento

169

Um ano depois

184

Glossário

189

Índice

196

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Edições ArcosOnline.com www.arcosonline.com

Literatura ode a um poeta naturalista (narrativa) A Busca Entre o Vazio (narrativa) O Livro Verde das Verdades (poesia) é preciso calar o monólogo (poesia) Antes do Fim (narrativa) Histórias Que Acabam Aqui (contos para a infância) As Sete Fontes (romance)

Actualidade e cultura A Língua Portuguesa no Alto Minho (ensaio) European Writings on Psychology (textos científicos)

Humor O Bando dos 6 ou 7 (crónicas) O Malogrado Capitão Osório (folhetim)

Em preparação: A Vida Extrema (poesia) O Salústio Nogueira (romance) Lince Ibérico – Revista Literária de Expressão Ibérica

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