Concha Rousia
As Sete Fontes romance
Edições ArcosOnline.com
Título As Sete Fontes
Autora Concha Rousia
Editor Victor Domingos
[email protected]
Data de edição 17 de Maio de 2005
Edição
Edições ArcosOnline.com www.arcosonline.com
Este trabalho encontra-se registado na Inspecção Geral das Actividades Culturais, sendo agora a sua publicação e distribuição gratuita, sob a forma de e-book, efectuada com a autorização da autora. É permitida a sua impressão e redistribuição em papel ou suporte digital, desde que isso seja feito sem propósitos comerciais e todo o seu conteúdo permaneça inalterado.
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SOBRE A AUTORA
Concha Rousia nasceu em 1962 numa pequena aldeia muito similar a Penacova, no Sul da Galiza, entre Ginzo da Límia e Montalegre, onde passou a sua infância. Deslocouse posteriormente a Vigo, onde cursou estudos secundários na Universidad Laboral, um internato público para raparigas de famílias camponesas e operárias. Lá sofreu por primeira vez o choque de não poder utilizar com normalidade a sua língua galegoportuguesa na sua própria terra, e iniciou uma militância cultural e política a favor dos direitos linguísticos e de identidade da Galiza que continua até hoje. Após diversas peripécias vitais, cursou tardiamente estudos de Psicologia na Universidade de Santiago de Compostela, e depois residiu vários anos nos Estados Unidos, completando um mestrado em Terapia Familiar na Universidade de Maryland. Na actualidade partilha a sua actividade literária com a prática da Psicologia Clínica perto da cidade compostelã. As Sete Fontes é o seu primeiro romance; anteriormente, deu a conhecer na rede alguns relatos curtos agrupados baixo o título “Lobos”. No ano 2004 ganhou o Certame de Narrativa Curta do Concelho de Marim, na Galiza, com o relato “Segredo de Confissão”.
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A Suso, sempre
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PRÓLOGO Isaac Alonso Estraviz Universidade de Vigo
Acabo de ler muito atentamente e com verdadeiro prazer o romance de Concha Rousia intitulado As Sete Fontes. Romance que começa na cidade das Burgas, uma das cidades mais tratadas na nossa literatura. Mas este tem o seu desenvolvimento em terras provincianas, que não têm sido ultimamente alheias à literatura galega. Nele a autora enfrentase frontalmente ao problema do caciquismo político e religioso e à corrupção que grassa por toda a parte. Tira à superfície uma série de problemática que faz que o nosso povo não seja o que deve ser. A luta entre a sobrevivência e a falta de forças ou de interesse para nos enfrentarmos a todo um entramado de condicionamentos que não permitem que o povo galego saia da sua submissão estúpida e lhe falte a força suficiente para ser dono da sua história e do seu futuro, romper os laços que o inutilizam, destripar os que não permitem que seja livre e dono do seu destino e dos seus bens. Pedemme que ao começo deste romance diga umas palavras sobre as peculiaridades da nossa variante linguística. É muito pouco o que tenho a dizer se estamos a pensar nos falares populares. O leitor que pegue no romance olhará isto com toda naturalidade. Mas vou fazer um bocado de história. Na história do nosso relacionamento, tem havido um bocado de tudo. Às vezes produto da ignorância. Na década dos cinquenta houve em Braga um grupo que tentava publicar textos galegos com lhes mudar tão só a ortografia dos mesmos, deixando formas e vocábulos de duvidosa autenticidade. Lá se publicaram obras como Nos Picoutos de Antoim de Carré Alvarelhos, Seitura de
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Bouça Brei e colaborações de personalidades de ambas pátrias na revista Quatro Ventos. Quer nos livros, quer na revista, os textos galegos deixam muito que desejar. Depois e ainda hoje se segue com a mania de falar de traduções de galego para português ou de português para galego como se de duas línguas diferentes se tratasse. É realmente uma estupidez, pois um texto português percebese muito melhor com a sua ortografia que com o invento ortográfico empregado na Galiza, que tudo desfigura. As palavras galegas, que são as mesmas que as portuguesas não se podem escrever de maneira diferente. É certo que o português da Galiza é um bocado diferente se comparado com o chamado português padrão. Mas não se a comparação se estabelece com os falares populares do Norte de Portugal. Falares tão portugueses e tão galegos como os outros. Nos falares de aquém e além Minho há as mesmas contracções: pra, prò, co, coa... Estas chegam a Lisboa e ultrapassam o seu domínio. As mesmas formas irregulares de certos verbos: dixe, dixeste, dixo, dixemos, dixestes, dixerom; quige, quigeste... Pronúncia do v como b; formas verbais graves: amavamos, matavamos... Podo, poda... Qualquer pessoa que tenha contacto e um bocadinho de ouvido para escutar os falantes, perceberá que isto e outras cousas mais são assim. O que não tiver tempo para os deslocamentos, que consulte as inúmeras publicações monográficas que de uma ou outra maneira incidem no mesmo. O artigo indefinido ũa, algũa, era assim como se pronunciava ainda em 1850 sendo condenadas polos gramáticos as pronúncias que hoje são oficiais, mas que seguem a ser normais na Galiza, no Norte de Portugal e em grande parte do Brasil. Grande parte do que hoje se considera norma é fruto de uma transgressão. Para que olhar despectivamente para pronúncias ou léxico que não se conhece a sua existência? Muito léxico que os portugueses definem como léxico galego, é também português. O meu Dicionário é considerado polas gentes do Norte de Portugal como o melhor dicionário português com que contam para consultarem nele vocábulos, frases, expressões que não encontram em nenhum dicionário chamado português. Na história da lexicografia portuguesa houve uma
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tendência para suprimirem todo o léxico nortenho e imporem um léxico bastante reduzido do sul. Hoje Os Lusíadas de Camões é muito mais compreensível para galegos do que para portugueses. A maioria das anotações – excepto aquelas que se referem à Mitologia – são inúteis para galegos. As Novelas do Minho de Camilo Castelo Branco, o mesmo que toda a sua obra resulta muito mais inteligível para nós do que para a maioria dos portugueses. Miguel Torga, Bento da Cruz e muitos outros – apesar de que muitas vezes se deixam levar polas modas de Lisboa – são para nós o léxico mais normal. A Sibila de Augustina Bessa Luís, tem um léxico tão próprio do Norte de Portugal como da Galiza, como da minha aldeia. Que português é capaz de ler obras de Aquilino Ribeiro sem um dicionário na mão. De Coimbra para o Norte estáse a perder ou ocultar muito léxico plenamente português e plenamente galego. Infelizmente ainda se trata de um trabalho por fazer, pois aquilo que está feito resulta muito incompleto e não sei por que razão alguns vocábulos nem sequer se recolhem. De TrásosMontes temos um Dicionário dos Falares de TrásosMontes de Vitor Fernando Barros que estando muito bem feito, são muito poucos os verbetes recolhidos. Só em quarenta aldeias galegas recolhi eu 13.000. O Falar do Barroso de Rui Dias Guimarães, um trabalho também muito bem feito, resulta a todas luzes incompleto. O Vocabulário Minhoto de Manuel Boaventura de grandes pretensões ficou no vocábulo Espocar. Posteriormente, O Falar do Minho, de Gabriel Gonçalves, que abrange do A ao Z, tem menos verbetes do que o de M. Boaventura. Podíamos ir citando um por um todos os materiais recolhidos e que fazem parte de outras obras. Que pretendo dizer com isto? Pois que a maioria do léxico do Norte de Portugal, melhor dito da chamada Galiza Histórica, está ainda sem recolher. Isto faz pensar que muitos portugueses conhecedores de um padrão aprendido nas escolas mais aquilo que ainda lhes fica da sua comarca ou de parte da sua província, ignorantes, portanto, do seu léxico, considerem muito léxico como exclusivo da Galiza, quando todas essas palavras se estão a empregar nos umbrais das suas casas.
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Ainda assim, pode haver algumas palavras que não tenham correspondência nalgum lugar. Isto resulta totalmente compreensível, pois quando uma língua se fala num território extenso e com variantes orográficas e climáticas, logicamente sempre tem que haver palavras num lugar que não sejam próprias de outros. Os do interior não podemos ter o mesmo vocabulário que os da costa. Mas estamos a falar a mesma língua e esse vocabulário é tão nosso como deles. Pode, portanto, que algumas palavras se empreguem na Galiza e não em Portugal ou viceversa, mas isso não quer dizer que aquelas que são autenticamente galegas não se considerem como autenticamente portuguesas e que as que são autenticamente portuguesas não se possam considerar como autenticamente galegas. O léxico que emprega Concha Rousia no seu romance é galego e é português, pode ser que algum vocábulo não esteja recolhido ainda, mas que existe estou plenamente convencido. Em trabalhos feitos com portugueses, inclusive teses de mestrado e de doutoramento me encontro com as maiores surpresas. Encontrar em Arcos de Valdevez vocábulos que considerava unicamente próprios da comarca de Santiago de Compostela. Ou com as formas verbais tal e como se empregam popularmente na Galiza!! Esperemos, pois, que esse puritanismo que às vezes apresentam os nossos colegas portugueses dê passo a uma maior liberdade de espírito e de criatividade. Compreendese que para um tipo de literatura oficial haja um modelo mais ou menos estandarizado, mas para a poesia e para a prosa não podemos matar o léxico que nos é comum e que está aí vivo. A obra de arte não pode estar limitada aos estreitos cânones de abafamento. De seguirmos assim seriam inúteis a maioria dos vocábulos que recolhem os dicionários e de aqueles que ainda é necessário recolher. A língua tem de estar em todos os âmbitos do saber e em todo tipo de culturas. Acho perfeitamente válido que C. Rousia incorpore afinal do seu romance um vocabulário com aquelas palavras que considera desconhecidas no mundo português. Assim facilita o melhor entendimento do romance. Mas isto teria que ser frequente em muitas outras obras sejam elas da procedência que sejam.
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AS SETE FONTES
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Angustiado, o discípulo acudiu ao seu mestre espiritual e perguntoulhe: – Como posso liberarme, mestre? – O instrutor contestou: – Meu amigo, e quem é que te ata? Pensamento tradicional da Índia
…Como aranhas fantasmais que tecem o esquecimento da sua própria existência. Castelão
Quem dera volvermos nascer, e saber o que sabemos! Pensamento tradicional de Penacova
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LIMIAR A notícia lerase no diário Nuestra Región a quarta à manhã. O jornal quase não podia acreditar no que, porém, era uma realidade inegável. Assim, como sumida por uma bruxa, desaparecera do Museu Arqueológico de Ourense uma pia de baptismo datada do século dezassete e que pesa mais de quinhentos quilos. As autoridades interrogaram os vizinhos, poucos, pois na vizinhança o que mais abonda são as tabernas, na procura de qualquer informação que os ponha na pista da pia. A porta não fora forçada, e a peça fora tirada do museu com todo o cuidado, como para não danar nada ao seu passo, o que permitia descartar qualquer acto de vandalismo. Nas tabernas da Rua do Manco não se falava doutra cousa nos dias que seguiram à notícia e aos feitos. Os clientes das tascas não desperdiçaram a maré para brincar cos taberneiros e até algum gracioso chegou a dizer que se bem se mirava não estava tão mal a cousa… “Agora tão sequer não poderão baptizar o vinho…” A polícia local vigia noite e dia, desde o sucedido, as duas entradas da rua. As fechaduras das duas portas exteriores do museu foram mudadas também coa finalidade de tornar aos ladrões de pias. A cidade anda toda alvorotada, e o sentir da gente fica bem reflectido nos versos do não mui conhecido poeta do momento, um tal Budial: Bágoas ardentes pola pia de pedra Bágoas escaldantes chora hoje a terra
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De quando em vez o diário Nuestra Región salientará o que se for sabendo do processo de busca e recuperação da peça roubada, além de darnos conta do latejar da cidade. Deste jeito esperam que os ourensãos se tranquilizem e não percam a confiança no labor que desempenham as autoridades.
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Capítulo I
A FONTECOVA Ainda que os seus caminhos já se tinham cruzado muitas vezes, tempo atrás, os três custodiadores da pia de pedra não lembravam tais encontros, nem as faces, bastante mais novas, que os viveram. Estes três homens foram destinados, sem eles saberem muito bem como ou porquê, para cuidar de que a pia chegue ao seu destino. Andarão durante sete luas, que começarão a contar quando chegarem à primeira das sete fontes polas que háde passar a pia antes de arribar ao seu destino definitivo. Terão que esconder a pia durante o dia para que não seja vista por ninguém, e marchar às suas casas, onde não lhes hãode topar a falta. Cada noite voltarão a se reencontrar e seguir coa peregrinação até ao amanhecer, e assim até ao remate do tempo do que dispõem. Sete são os pontos polos que a hãode levar, e cada um correspondese com uma das sete fontes das que darão de beber à pia antes de a depositar no lugar que foi destinado a ela. A primeira noite, chegaram coa encomenda à Fontecova, o primeiro dos sete mananciais. Ainda havia vagar para o arraiar do dia, polo que antes de esconderem a pia tiveram tempo para falar ali na beira da fonte. Nas noites precedentes àquela, os três homens não tiveram tempo nem fôlegos para se darem a conhecer. Reinava a confusão nas suas cacholas. Eles os três lembravam um sonho em que ficavam de pé direito nas portas do Museu Arqueológico de Ourense; Dom Narciso, o cura, mirando aos outros dous homens dissera então: “que faço eu à porta deste museu?” Os outros dous, o Perfeuto RachaPedras e o exalcaide do concelho de Os Mouros, a quem todos conheciam por RebentaRuas polo seu afã de encanar mais fundo que o inferno; estes últimos não tinham percebido que aquelas eram as portas dum museu, eles só passaram polas tabernas da rua sem reparar nunca nele. Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 13
Seguido daquele encontro de ensono tudo sucedera tão depressa que os três homens não tiveram tempo nem para falarem. Agora repousavam na beira da fonte; aquela fonte, na que com sucessivas mãoscheias beberam eles e mais deram a sua água à pia, fora destinada, quiçá pola sua localização, a ser a primeira das sete polas que teria de passar aquela procissão nocturna. O Perfeuto RachaPedras, que andava algo torpe ultimamente, caíra no rego da água e ficara todo enlamadurado; Dom Narciso, para lhe tirar importância ao pequeno incidente, repetialhe que não se preocupasse, pois antes de que chegasse o dia havialhe enxugar e trapalatrá…; ao Perfeuto amargavalhe bem ter que aturar esses conselhos, sobretudo sabendo que vinham dum cura. Ainda que Narciso afirmara e negara essa condição na mesma frase (“Fui cura mas… agora já não…”) ao Perfeuto, como a toda a gente, não lhe abondava com que Narciso não dissesse missa para o deixar de ver cura, e como uma víbora revolviase cara a ele: “que saberás tu, tu nem sequer foste nunca casado e não lhe tens que dar conta do que fazes ou não fazes pola noite à mulher!” E isso era certo, o Narciso não lhe tinha que dar contas a mulher alguma, mas o que não sabia ainda o RachaPedras era que este cura cada noite, logo da ceia, tinhase que escapar do psiquiátrico do Couto, onde residia desde um incidente que tivera numa freguesia que linda co vale onde fica a Fontecova. Tampouco era certo que o RachaPedras lhe tivesse que dar contas à mulher, ainda que a tinha; e apesar de que muitos lhe aconselharam que o deixasse, ela seguia a o aturar. O exalcaide, baptizado coa alprecha de RebentaRuas polos seus exvotantes, tentou fazer de intermediário entre o cura e o canteiro… “Calai já, tarabelos, que sois mais maus de aturar do que… ainda nos hãode descobrir por vossa causa… porquê não tratamos de esclarecer onde é que nos topamos…? Lembrais se algum de vós esteve antes por aqui, ou lhe resulta familiar este sítio?” O cura engrunhou o focinho e moveu a cabeça em sinal de não ter ideia de que lugar era aquele; a escasseza de luz que manda a lua nova não ajudava muito. O RachaPedras botou uma olhada mais longa e até subiu ao alto do lameiro no que fica a fonte, depois meteuse no carroucho e disse: “sim, eu conheço isto, estamos em terras dum lugar que se chama Penacova, e que fica do outro lado desse outeiro; seio eu bem porque desde o carroucho vi que acolá para o fundo
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estão os penedos da Rainha Loba. Na base daqueles penedos tive eu há anos uma canteira.” “Penacova… – repetiu Narciso –, eu disse missa em Penacova alguma vez, já vão lá alguns anos disso… o cura de Penacova tinha andado algo desassentado… Penacova…” repetiu o cura, e ficou calado, a olhar para o chão como tentando achar nas ervas, ou quiçá nos seus miolos, alguma ideia que lhe dera luz àquela noite de incertezas. “Penacova pertence ao concelho de Os Mouros” – disse o exalcaide. – “Eu fui alcaide nesse município alguns anos, há também já tempo, mas não me portei mal cos de Penacova…” E disse isto como quem rosna uma queixa, manifestando a sua desconformidade com um destino que intuía lhe vinha acima. Começavam a desaparecer algumas estrelas, polo que esconderam a pia e foramse, cada quem por seu carreiro. Partiram sem despedirse sequer, os três sabiam, e então não era preciso mentálo, que à noite seguinte teriam que juntarse ali de novo, onde ficava escondida a valiosa peça. Esconder a pia não era tarefa difícil, pois o lugar no que ficava a fonte estava rodeado de poulas com gestas e piornos de mais de dous metros, e tojais nos que se via perfeitamente que ninguém entrara a roçar desde havia muitos anos; portanto escolheram o que ficava mais à mão e encaminhado na direcção que consoante com as estrelas teriam de seguir na próxima jornada, e ali a esconderam junto cos trebelhos que usavam para a deslocar: uma espécie de chedeiro pequeno sobre duas rodas eixadas e um pinho polo que um deles puxava quando havia que mover a carga. Os outros dous, cada um co ombro à roda e a empuxar. As pegadas, que ali perto da fonte se espetaram mais, e as rodeiras, tinham de ser bem dissimuladas antes de partirem para as lavouras do dia; feito isso, aqueles homens eram livres de voltarem ao seu cotio. * * * Pola manhãzinha em Nuestra Región podese ler que as autoridades andam a investigar a história da pia para ver se dão descoberto quem pôde estar detrás da sua desaparição. Com esta finalidade fizeram uma visita ao Bispado, na rua do Progresso, no meio e meio de Ourense, já que a pia fora, e porventura ainda era, propriedade da Igreja. Há perto de vinte e poucos anos Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 15
que foi sacada da freguesia na que estava, e para a que fora criada, e anda ambulante por aí; mas sobre disto o Bispado não tinha documentação que o pudesse provar, já que nos seus arquivos, actualizados antes dessas datas, não rezava nenhum movimento de pias. A peça fora recentemente adquirida polo Museu Arqueológico de Ourense, numa hasta pública, e nele estava exposta até à noite da sua desaparição. Representantes do Bispado, trás cotejar a descrição que lhe ofereceram os agentes com as suas avelhentadas notas, sugeriram o nome duma freguesia como possível origem da peça; porém, isso deveria ser confirmado, pois nos arquivos não consta pia nenhuma desaparecida em tal lugar. Ora que também se poderia tratar doutra pia e doutra freguesia, pois, ainda que não o pareça, todas são similares. Na secção de sociedade, o diário recolhe a notícia de como os vizinhos da cidade velha iniciaram uma campanha de recolhida de fundos para mandar fazer outra pia exacta, e que não lhe perca ponto, à desaparecida. O jornal também publica um novo verso de Budial, e o anúncio dum adinheirado ourensão que oferece uma soma respeitável a quem proporcionar informação fidedigna que ajude a dar co paradeiro da pia. O nome deste enriquecido cidadão é omitido para lhe evitar a avalancha de possíveis informadores no seu domicílio. Aquelas pessoas que tenham, pois, algum tipo de informação que pensem poder ser de interesse, podem achegarse aos escritórios deste jornal, ou ligar por telefone a um número que é facilitado também polo diário. * * * – Cala, RachaPedras, e agacha o lombo que a cousa não se háde mover só; deixao tranquilo co pinho, já te chegará a ti a rolda. O RachaPedras seguia um pouco enfronhado porque ontem caíra no rego e hoje enterrara na lama um sapato que trazia esgalochado e molhara o calcanhar, polo que não pára de lançar ataques a Dom Narciso, quem semelha todo calmo e sempre com conselhos de como se hãode fazer as cousas… – “mas que saberá este, se é um cura qualquer…!?” Não, aquele não era um cura qualquer, mas o RachaPedras desconhecia a história de Dom Narciso. Dom Narciso não fora um cura qualquer nunca, nem sequer antes de ser cura; ele, Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 16
para começar, mália as ganas que tinha de se meter cura, contudo os pais… os devezos de que estudasse,… de o livrar de ter que estar atado à terra como lhes passa a eles,… que se não servia para outra cousa,… que volta e que dálhe, e que tal e que sei eu… Por conseguinte, o Narciso rematou no seminário e foise deixando levar. Ele era um moço alegre, mesmo tinha uma graça com ele que facilitava a relação com qualquer, polo que os curas do internato mui pronto ficaram seduzidos por ele e deixavamlhe ir passando as mais das cousas que fazia, muitas não estavam bem de todo para um futuro ministro de El Senhor, não obstante já se formalizaria quando se ordenasse; isto que ele fazia agora eram cousas de rapaz, que com a idade e a ensinança iriam minguando. E assim foi indo este moço levado polas amparadelas dos que se ocupavam da sua formação espiritual, e que o converteram em cura. Cura feito e direito; assim, quase sem se aperceber, Narciso era o titular duma freguesia não mui afastada da cidade de Ourense. De hoje para amanhã converterase em Dom Narciso, atrás ficavam os muros de pedra do seminário que o agacharam durante uma mada ou duas de anos, e agora livre… Quem seria ele ali fora, sem a frialdade das pedras para dar acougo à sua juventude ainda por viver? Não tinha outro remédio que descobrilo por si mesmo, e assim, com um talante quase que de explorador, sem ele nem o querer, começou a sua andaina de pastor. Aqueles dias primeiros na freguesia seriam no futuro lembrados por Dom Narciso como dias livres e felizes, nos que a ilusão era o temão que guiava o seu fazer quotidiano. Toda aquela gente mostrandolhe respeito…, e não só na igreja, senão também quando se cruzavam com ele pola rua; mesmo os homens, que só de se achegarem ao sagrado já tiram a gorra da cabeça e lhe saúdam com esse aceno submisso, comunicandolhe a Narciso o reconhecimento da sua superioridade. E o Narciso começou de sentirse grande, mesmo partícipe merecedor da bondade infinda do Criador… assim foi como começaram as suas ideações gloriosas… – Queres tirar duma vez! Sempre estamos na mesma… parece que este sempre anda nos viosbardos. Aquele RachaPedras sempre a tanger no Narciso; soltavalhas sem sequer dirigirse ou fitar para ele a metade das vezes; mas o abade hoje parecia
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não importarse demasiado, andava o homem a olhar para dentro e não percebia muito as aguilhoadas que coa língua lhe lançava o canteiro; felizmente a roda lhe mantém o poder ocupado ao RachaPedras, senão este hoje saltavalhe no pelejo ao cura; e tudo bem seguro que por causa de se lhe atoar o sapato na lama e ter que andar ao couchopé quando saíram do lameiro… À medida que o arraiar se achegava, Fontecova ia ficando atrás. A Fontecova, um manancial que fervia da terra, dava nome àquele frondoso vale. O lameiro em que rebentavam aquelas boas águas reverdecia, e já desde longe se diferenciava bem dos outros; mesmo se sentia latejar a água naquelas tornas sachadas de ano em ano. Fontecova é o primeiro manancial da freguesia de Penacova subindo polo caminho de Ameixeiras e não há viageiro da comarca que não entrara alguma vez a saciar a sua sede com estas ricas águas. Sim, a Fontecova é muito apreciada. E vá se agradecem os de abaixo o que lhes decorre. Tal é, que há uns anos quase entraram em litígio uns vizinhos porque os herdeiros do lameiro onde abrolha a fonte não se ocuparam de desentupir as tornas, e assim a água era toda sumida e consumida, sem que decorresse nem gota para os campos lindeiros dos vizinhos, que quase se atreveram a meter os seus sachos nas tornas da fontela. Tudo se arranjou polas boas, quiçá porque não lhe ligou de passar por ali a nenhum advogado, ou quiçá porque todos gostam de não ter que pleitear, ou quiçá por outras razões. Aprenderam todos daquela que a água da Fontecova não só pertence ao lameiro no que nasce rompendo os seus torrões, senão que os donos, logo de se servirem dela, devemna deixar marchar para que livremente banhe outros lameiros próximos; e certo é que são muitos e bem deles os que se servem destas águas… Como delas se serviram os três homens, que logo de se saciarem, e dar de beber à pia que háde estar sempre molhada, partiram e caminharam. Caminharam bem, e apesar da fraqueza mostrada polo encarregado do pinho, como frequentemente lhe lembra o RachaPedras: “se faria mais um mosquito que este palerma…!”, essa noite atravessaram as terras lindeiras a Fontecova, e internaramse nas carvalheiras da Lagoa. Aquela jornada avançaram avondo, ainda que não todos ou quiçá nenhum o pudesse reconhecer… tal era o seu fado. Esconderam a pia e os aparelhos e foramse, cada quem por onde viera.
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* * * Na edição de hoje, Nuestra Región pede aos cidadãos o favor de não fazerem mais ligações à direcção do jornal para dar informação sobre a pia, de não ser que a viram passar polas próprias ventas. O jornal dá queixas da enorme quantidade de ligações recebidas, muitas delas de bandarras e gandaias que nunca hãode faltar, e que mantiveram todas as linhas do jornal ocupadas noite e dia… …Dizse que houve chamadas bem pândegas, se bem que disso só conhecem os vizinhos de Seixalvo onde os comentários foram espalhados por uma recepcionista de Nuestra Región. Segundo a tal rapaza telefonista seica houve uma mulher que se encheu de porfiar e porfiar, até ligou mais de duas ou três vezes, dizendo que aquilo só podia ser obra de El Demónio e que o único que se podia era rezar e confiar em El Senhor. Outro comunicante dizse que insistiu em que ele vira a pia recentemente, embora não lhe diria a ninguém, excepto ao senhor milionário, onde é que ele a guichara. Outros afirmavam que viram a pia em sonhos e lhes falara dandolhes a entender a onde é que se encaminhava, e cousas assim polo estilo. * * * As noites seguintes transcorreram sem maiores intriquidências; o canteiro parecia menos enraivado co abade, se calhar porque a Lagoa era chã e o Perfeuto não se tinha que esforçar tanto e tampouco se lhe ençoufavam os sapatos, que por certo agora levava bem amalhoados; ou também quiçá porque Dom Narciso seguia ensimesmado com as suas cavilações e não lhe andava a dar conselhos a ninguém; ou se calhar fosse por ambas as razões ou talvez por nenhuma delas. O caso é que o exalcaide, que como de costume não tinha muito que dizer, gozava daquela calma que reinaria nas noites que lhes levou atravessar a Lagoa de Penacova. A Lagoa de Penacova, como o seu nome indica, é um terreno parcialmente asolagado, se bem que eles o atravessavam por uma parte enxoita. A planície vemlhe bem a Dom Narciso para seguir cos
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seus pensamentos, que por certo traziamno algo confundido… Como pôde ele, tão bem como começara a sua andaina, rematar onde rematou? Narciso seguia a relembrar os dias dourados da sua primeira freguesia, onde nasceram tantos sonhos… Aquele tanto respeito que sentia ele que lhe tinham todos… e a adoração que lhe mostravam as mulheres…! Esse era o seu deleitar sublime… verse assim admirado por esses seres que ele considerava doces e suaves, ainda que, para dizer a verdade, nunca os provara. Ele entrara tão novinho no seminário, muito antes de descobrir os sentires do corpo, e foi ali nessa pequena freguesia onde o corpo acordou, correu o trecho que lhe faltava, e alcançou a sua realização, igualandose corpo e espírito. E sem decatarse sequer de como, o Narciso passava o dia numa névoa de imagens quase proibidas que pouco a pouco se foram encarnando… e até acabou debuxandolhes cara àqueles corpos imaginados. Agora já sempre a mesma cara, e a seguir também já sempre o mesmo corpo. Inevitavelmente, namorou. Ela converteuse no ser mais maravilhoso do mundo de Narciso, o seu sol, o seu temão… e dado quem ele era daquela, a sua perdição. Novamente se ergueram os muros do seminário e Narciso e os seus superiores conferenciaram, e o Bispado sentenciou: “Vaiste ir a esta nova freguesia e não volverás ver essa mulher”… Ora ele amavaa… e até pensara… mas cedeu, deixouse resgatar, deixouse arrapazar novamente polos seus mestres que tão benevolamente lhe aconselhavam e lhe perdoavam as suas fraquezas de homem novo. O bispo que havia daquela, ao que todos os de dentro se referiam como “O rechonchudo Severino”, conhecia das debilidades do corpo; e ainda que ele nunca sentira essa classe de urgências ardorosas baixo as suas apertadas vestiduras, apertadas não por justas senão por enchidas, mesmo semelhava que se lhe ia sair o unto polas aberturas de entre botão e botão… e mais de um dizse que recebeu uma botoada, ao sair um, comprimido pola gordura amoreada, propulsado… Pois este bispo, seica, entendia da fraqueza humana. Este bispo mole de corpo e espírito devezia polo chocolate e mais as roscas… era superior a ele, a sua cadeia escravizadora. Polas noites, antes de dormir, dom Severino rezava e rezava para evitar aquelas imagens obsessivas de cunquinhas coloradas com corninhos e um rabo afiado. Assim, a contar
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avemarias, se dormia, e pronto o sorriso se debuxava no seu rosto… nos seus sonhos habitavam taças douradas com brancas asas, e ele fartavase de dormir…, o que podia fazer um homem da sua condição? Mas à manhã vinham os remorsos por entregarse assim nos sonhos. E por isso era um ser compreensivo. A Narciso serviulhe essa benevolência, polo menos para ir aguentando. Da Lagoa já faltava cada vez menos, e o Lombo, cheio de pinheiros, ficava aí mesmo a os aguardar quando rematasse o dia. Agora havia que marchar, e assim, como as outras vezes, trás esconderem a pia, esvaeceramse os três homens. * * * Parece que o diário Nuestra Región se vai arrefecendo um pouco e cada vez publica menos notícias ou comentários referentes à pia, talvez seja para lhe tirar importância ao assunto e ver se a avalancha de ligações diminui, que seica por certo tem baixado bem nos últimos dias. E também se diz que algumas das ligações estão a ser estudadas a fundo, e que alguns informadores estiram já os seus longos dedos, mas nada, o milionário não solta um peso até que a pia fique no sítio em que estava, ou tão sequer localizada polas autoridades. Na edição de hoje, entre louvanças à colaboração do Bispado, Nuestra Región confirma que efectivamente as autoridades, após a sua visita à rua do Progresso, têm conhecimento exacto tanto da história da pia quanto da sua freguesia de procedência, e poderão iniciar o seu labor investigador propriamente dito… …e não é mentira nenhuma, que agora os encarregados da investigação têm uma ideia sobre qual pôde ser a freguesia da que inicialmente se tirara a pia que agora desapareceu do museu. Mas dado que o Bispado não pôde corroborálo nem negálo, terão que ser os agentes quem confirmem a identidade da peça e mais da freguesia da que fora levada. Em primeiro lugar terão que confirmar que, efectivamente, nessa freguesia desapareceu uma pia e que, com efeito, se trata da mesma que desapareceu agora do museu. Também, enquanto, irão arrecadando pistas que lhes ajudem a descobrir Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 21
quem a pôde ter levado a primeira vez, e estudar a sua possível relação coa desaparição mais recente. Para isto, os dous agentes vão ir visitar esse lugar e falar cos vizinhos. …o nome desta freguesia, que fica polo sul da nossa província, será polo de agora omitido para não contaminar a atmosfera da investigação e enfastiar o êxito das pesquisas. O jornal seguirá a informar dos progressos que se produzirem. Na secção de sociedade, Nuestra Región informanos de que os promotores da iniciativa popular encaminhada a arrecadar fundos para uma nova pia, idêntica à primeira e se couber mais bonita – com incrustações de pedras semipreciosas ao redor da sua boca…–, afirmam que já quase juntaram dinheiro suficiente para a dita pia substituta, e que com ânsia aguardam o momento dessa realização. O jornal faz uma exaltação das iniciativas da vizinhança quando se trata de lutar por salvaguardar os verdadeiros valores da nossa sociedade. * * * Atravessar o Lombo não lhes custaria muito a estes três homens, ademais era algo de baixada, não muito mas sim o justo para não ter que fazer força nas rodas daquele trebelho sobre o que levavam a pia. À lua faltavalhe alguma noite para encher e essa tanta luz que lhes lançava ajudavaos a não precisarem dos faróis que a cotio levavam instalados em cadanseu lado do chedeiro para alumiarse. Além disso, esta lua anunciava o minguante, e é esse o tempo que lhes resta para chegarem à Auguela, o segundo manancial do seu percorrido. Com um chisco de boa sorte rematariam o Lombo em três ou quatro noites e ainda lhes sobraria tempo e tempo antes da nova lua. Por este terreno, algo de bimbarreira, Dom Narciso anda ligeiro, às vezes até deixa aos outros dous atrás e se vai ele só coa carga. Esta ligeireza que semelha euforizante faz aparecer ao cura como menos sereno, menos calmo,… como se realmente andasse na procura de algo… Algo que parece esvaecerselhe cada vez que tenta achegarse. “Oh, claro, cara abaixo todos os santos ajudam, e este deve de estar abonado…!” Aquele RachaPedras não perdoava uma, não Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 22
desperdiçava maré para lhe botar a Dom Narciso as culpas por qualquer cousa que este fizesse ou não fizesse. Esta vez, como outras, o alcaide quis dizer algo, quis de novo tentar suavizar a tensão que se respirava ao redor daquela pia, e que sempre ia dirigida do RachaPedras ao padre. O alcaide queria que não houvesse tensão, o alcaide estava afeito a ter todos os apoios, a mercálos se fizer falta… por conseguinte ultimamente corrigia ao canteiro, porém, sem entrar em maior contradição com ele, e este já não lhe fazia tampouco muito caso, ou melhor dito, nenhum. Esta última vez o alcaide abriu a boca, mas antes de sequer bafejar o RachaPedras fechoulha de contado: “Cala, cala, advogado, que tu só dizes parvadas, não te queres nem molhado nem enxoito, jogando sempre a duas bandas, assim nem perdes nem ganhas. Se não tens nada com jeito que dizer, caladinho ficas mais guapo”. O alcaide emudeceu e mouminhou algo para os seus adentros sem que o outro percebesse. Dom Narciso, enquanto, ajudado pola inclinação do terreno, apurava o passo; parecia como se o seu andar se pusesse a um co seu percorrer interior, que hoje é dinâmico e rebordante de energia. Sim, Dom Narciso chegara à nova freguesia com uma maleta que não semelhava muito grande, ora sim cheia; ia carregada das ganas de o fazer tudo bem, cheia de sãos devezos e esperanças… desta vez seria o abade ideal, o bom cristão, o bom vizinho… Atrás ficaria aquele Narciso moço sempre com sede de louvanças, que se sentia tão grande polo respeito dos homens; agora seria um mais entre eles. Dom Narciso abriu a abandonada casa reitoral da freguesia e deulhe o uso que levava atrasado. Cavou a horta, criou fazenda, cortou a sua própria lenha, carregou esterco, e até começou de ir ao concelho para ajudar nos labores comunais: limpar poços, abrir os regos para a rega, ou o que fizer falta; um vizinho responsável, ele não quer viver só do conto como um cura. E claro…, as botas verdes de goma não ligam bem co negro da sotana… mal pensava ele que por aí lhe viriam as críticas. Ora ele não se desanimou, e seguiu co seu propósito. Aqueles eram já tempos de os curas começarem de se servir do automóvel… com varias freguesias para atender… mas o Narciso, fazendo um grande sacrifício, ia a todas partes a andar, às vezes dando que dizer, porque todos os curas da zona tinham carro; e alguns até vários. Como esse outro daí
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abaixo em quase chegando à Límia que tem dous da mesma cor e da mesma marca, mas só um com documentação; e assim lho diz aos guardas quando liga de o pararem por ir a contramão, ou deixar o auto no meio da estrada; mas os guardas não o multam, nem sequer o recriminam, “tenha você conta…” e é que o negro da sotana, que por certo sempre a leva emporcalhada, ainda pode co verde dos uniformes. Mas Dom Narciso não háde levar sotana, e isso que bem que lhe ajustaria, pois ele tem o corpo direito e sem barriga, não como esses curas dos carros que andam a criar gorduras e que de não levar sotana semelhariam pipotes cheios de pingo. Narciso trabalha e não precisa das travaduras da sotana, a ele cumpremlhe roupas que não pejem e permitam mover os músculos, roupas que lhe hãode ir avantajadas, mas não demasiado, só o justo para caberem folgadas e facilitar o movimento necessário para o trabalho; com uns jeans, uma camisa do comércio e umas boas botas de bezerro, vai servido. As meias hãode ser de lã. Porque ele é trabalhador, Narciso fezse trabalhador e tiralho ao lombo cada dia, e isso… confunde aos vizinhos e amola aos outros cregos, que engrunham os focinhos e pouco a pouco o vão isolando. Este cura, que cada dia parece menos cura e mais labrego em boca dos vizinhos, vai ficando mais e mais só. E cada dia lhe vêm menos fregueses à missa; e ainda quando o fazem, às vezes tem Narciso que ouvir o que não quer… Como aquele dia que o caneco do Rolo, que nem sequer à missa era capaz de ir sem levar um vaso demais, acirrado polos outros, disselhe em plena igreja: “hoje digo eu a missa, Dom Narciso, que você já não é cura nem é nada” E Narciso não teve outro remédio que colhêlo polo braço para o botar fora… Achegouo até a porta e ali deulhe um couce no cu; depois deu meia volta e todo ancho pôsse a caminhar até chegar ao altar enquanto dizia: “pra colhões, eu!” Os labregos respeitam o homem que lhes ajuda no concelho, mas já não vêem nele ao cura, e a igreja fica vazia. Contudo Dom Narciso insiste: “Hoje vinheste só tu – disseralhe àquele moço um domingo – pois para si digo eu a missa e os demais que se arranjem sem ela” Enquanto, os curas de toda a contorna desprezam o que Dom Narciso simboliza… que caráfio é isso de que os curas trabalhem!? Isso Deus não o permita… E Dom Narciso descobre os sofreres desta vida. Os outros sotanaspretas vão tolerando a Narciso porque lho
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ordenam desde acima, mas por detrás vêm a burla e mais a crítica. Dom Narciso vêse só, predicando co exemplo mas só, predicandolhes às paredes do seu horto… O labrego que surgia lá dentro deste cura começou a ver a vida doutro jeito, começou a vêla como realmente fora pintada para o labrego: dura e escrava. Mas a quem dizerlho, se já ninguém o escutava? Só os moços, e por desgraça desses cada dia ficam menos na freguesia. Mas ele resiste, e achegase até Ginzo para ver à gente nova e falarlhes da injustiça, do avassalamento, dos caciques, dos Guardias Civiles retirados, dos inspectores de granjas de UTECO1… estes dous últimos tipos humanos são os mais detestados por Narciso, que se por ele for fazerseia com eles uma boa empanada para lha botar aos cadelos. Dom Narciso viaja no coche de linea, esses esfrangalhados autocarros da Vilaça, nos que te congelas ou te abafas, ou as duas cousas a um tempo; os sapatos vãoche ardendo enquanto pola janela, que não fecha, gelaseche a cabeça. A linea dá mil voltas antes de chegar atarricada a Ginzo, vai percorrendo lugares e enchendose até que não cabe um cristo mais; a gente amorease polo espaço entre as ringleiras dos assentos, e até nos degraus… “Sente, sente Dom Narciso” dizlhe alguma velhinha que o reconhece; mas ele declina a invitação e enquanto, ali de pé, aproveita a conjuntura para soltar o seu sermão sobre a injustiça, mas as suas palavras vãose por cima das cabeças e fogem polos vidros rachados do autocarro. E o vazio entra no coração de Narciso, que já mostra tristura de pessoa abatida… que fazer? Como aturar a angústia, a soidade, o desprezo…? Por mais que ele tentava manterse no bom caminho, não parecia obter resultados e vai passo a passo cavilando mais no que ele sente, em lugar de pensar melhor aquilo do que fala. E pensando na mágoa que o habita entra nos bares, onde não falta quem o convide a um vaso… “Beba, beba, Dom Narciso, que esta rolda vai minha” E Narciso bebe, e conversa, e sentese melhor, e bebe e conversa, e bebe…e quase sem que se decate está metido no vinho. A Estrelinha do Luzeiro ordenalhes a partida aos portadores da pia. Cada um vai por seu carroucho, e como sempre sem se despedir. O Narciso parece 1
UTECO – Sigla da organização de cooperativas agro-pecuárias ourensãs, organismo que agrupava a muitas granjas na província de Ourense nos anos 70-80, de estrutura e funcionamento caciquis.
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tão canso que até o RachaPedras o percebe e por primeira vez dês que compartem destino morde a língua e não arremete contra o curinha. E assim pensativos partem os homens cara ao dia. * * * Vai lá perto de cumprirse o mês desde a desaparição da pia e as autoridades seguem trabalhando na procura de pistas. Os últimos informes, segundo o que se filtrou ao diário Nuestra Región, parecem indicar que dous agentes foram despachados à freguesia da que fora tirada a pia no seu dia, antes de vir parar ao Museu Arqueológico de Ourense. Lembranos também o jornal que é uma pequena freguesia, sem maior importância, lá no sul da província, na Raia, na que os dous investigadores deslocados ali durante uns dias se aplicarão para conseguir o que buscam. O jornal não duvida que estes dous oficiais, dada a sua profissionalidade e ofício, não tardarão em topar as peças que lhes faltam para completar o quebracabeças da misteriosa desaparição… …e como se de um verdadeiro quebracabeças de pedra se tratasse, os dous homens empreenderam o seu labor. Duvidaram entre deslocaremse cada dia desde Ourense ou parar num dos pequenos hotéis de Ginzo. Afinal optaram, decisão do chefe, por se deslocar diariamente desde a capital, afinal de contas nem fica tão afastada. Também, dado o seu conhecimento da reacção da gente das aldeias ante as autoridades, decidiram ir de incógnito, ainda que isto lhes fizer ter que aturar certas atitudes, que doutro jeito não teriam porquê tolerar. Num dos números que Nuestra Región publicou a passada semana ressaltase como o milionário do que se viera falando anteriormente estabeleceu relações com algum dos pretendidos informadores que resultaram ser uns aproveitados que só tentavam tirar um peso do peto do pobre adinheirado. E como não, também nas páginas da passada semana assinalou um espaço Nuestra Región para ressaltar e louvar a organização vizinhal da cidade
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velha, e para o anúncio da apresentação dum livro de versos do poeta Budial, que terá lugar a sextafeira dessa mesma semana na livraria do jornal. Polo que se vê, a Nuestra Región não chegaram os rumores que se criam polas ruas, segundo os quais as cousas andam revoltas, e onde antes havia consenso agora há desarmonia, sem dúvida produzida pola divisão de pareceres entre os vizinhos que integram a comissão organizadora da campanha de recolhida de fundos para governar o da pia. Dizse que de não ser pola má fortuna a estas horas já teriam falado co escultor para lhe ir encarregando a encomenda. Seica se produziram enfrentamentos entre duas facções: por um lado estão os que defendem a postura inicial de todos, e querem começar quanto antes o projecto de reposição; por outro, estão os que após descobrirem que há tanto interesse no tema, querem gastar o que juntaram fazendo uma viagem ao Caribe, e que seja o milionário o que pague pola pia, dizse que cada vez são mais os adeptos a ideia do Caribe. * * * Numas quantas noites mais remataram de cruzar o Lombo, que é um outeiro coberto de pinheirais com grandes zonas ardidas. Depois baixaram à Auguela, onde fica a segunda das fontes polas que hãode passar nesta andaria, e descansaram umas quantas horas ao redor da fonte que nasce no meio e meio da cavada dum vizinho de Penacova. As cavadas fizeramse no monte vai lá para perto de trinta anos. Iam vir os pinos; o pedâneo, que daquela era o tio Serafim, deu ordem de que o que quiser podia fazer cavada para ele. Mais de um correra então coa enxada para sachar nas terras ao redor da fontela, mas só os primeiros puderam escolher essa sorte. Agora aquela fonte andava mui bem cuidada e dava as melhores morujas que se possam imaginar. Ainda há vizinhos de Penacova que se achegam até ali de quando em vez a trazer água para ir bebendo uns dias. Os três homens e a pia beberam e beberam daquela água, e depois sentaram ao redor da fonte e topenearam um chisco… claro, assim quedos a qualquer não o tenta o sono! Estes homens não tinham prática no diálogo: Dom Narciso, acostumado aos seus sermões… sempre aconselhando; o Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 27
Perfeuto RachaPedras só sabia dar ordens, mandar, mandar, mandar… era o seu; e que dizer do exalcaide… esse não só dizia embustes senão que os cria ele mesmo e depois já não precisava escutar a mais ninguém. Não, de escutar não sabiam muito estes três, e agora não tinham público, nem fregueses, nem empregados, nem ninguém a quem largar o contido das suas cacholas, e andam algo confundidos. Que fazer ali no meio da noite tendo só o interior dum mesmo para dialogar, e não vendo com muita clareza? Só restava deixar que fosse o homem da moca, quem ditara a conversa, muda, e assim iam fazendo. Ao Narciso ficaralhe o pensamento prendido na silveira daqueles bares de Ginzo; ele, que agora era abstémio, polo menos no que respeita ao vinho e outras drogas que se possam engolir sem prescrição facultativa, não dava entendido como se fora metendo na bebida. Ele lembra a fortaleza que tinha e a firmeza dos seus propósitos e parece que não recorda a angústia com que o seu espírito tinha que carregar já desde a manhã; era como vestir um corpete que premesse de dentro para fora. Mas essa angústia esmagadora andava agora agachada, coa ajuda das pastilhas cada vez lembra menos, já nem sente… mas claro, agora com tanto tempo para espreitar… Agora, enquanto o sono lhe obriga a deixar pender a cabeça, vai vendo como os pensamentos se entrecortam com imagens que manam do fundo dos sonhos… são imagens desconcertantes que abrolham desse escuro mundo do que ele não tem controlo, e o que aparece é um homenzinho com um vaso na mão erguida; um homenzinho que se cambaleia, um homenzinho que cai e desde o chão segue a falar. Está rodeado de gente e ele pensa que o escuta… mas agora desde a claridade da noite na Auguela pode ver como aqueles do seu redor se dão de olho e riem enquanto ele solta o seu discurso sobre a injustiça e a escravitude. Felizmente essas imagens tremebundas se interrompem e o espertam do seu ser adormecido. Dom Narciso fica logo confundido, as lembranças que ele recorda não eram tão cruas nem tão vivas como estas que o visitam agora enquanto adorminha na Auguela junto à pia. Ele achegase à pedra fria e interrogase, que faria ele ali com aqueles dous homens aos que nem sequer conhecia? Claro que ele ultimamente não conhece a muitos que digamos, mas ainda assim
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aqueles dous não eram dos que iam à missa, e também é certo que ele leva já bem tempo sem freguesia nem fregueses. O alcaide lembralhe a Dom Narciso àqueles inspectores de UTECO que ele tanto aborrecera: bem entrado nos sessenta e com algo de bandulho criado pola falta de trabalho e a preguiça. O RachaPedras fazialhe pensar no cacholudo que sempre lhe lançava alguma para se rir dele quando ia aos trabalhos comunais co concelho, que se pouca cousa, mequetrefe, que se só estorvava, e até trabalhoso lhe deixava cair para humilhálo; e assim dia trás dia e ano trás ano enquanto durou a sua estadia na freguesia de Ameixeiras, última na que ele dissera missa e da que fora arrancado de jeito brusco e definitivo. E agora achavase Dom Narciso ali com aqueles companheiros que ele jamais teria escolhido. Porquê era ele merecedor de tal castigo? Ele sabia que cara ao final não actuara bem de todo em Ameixeiras, contudo ainda andava o homem tentando de adivinhar como fora ou como não, quando se topou com aqueles dous, e prendido a eles ficava pola pia. Mas o porquê não o alcançava ainda nem de longe… e assim seguia cedendo ao sofrer; que por certo, naquele novo jeito em parte consistente em não saber, não lhe era de todo desagradável. Assim, deixandose levar polo seu fado ia passando as jornadas nocturnas, que hoje eram descansadas, mas amanhã viriam as subidas e os esforços que levarão a sabe Deus onde. Aquela noite o Narciso bebeu muita água, quiçá por terem espertado nele ressacas passadas, esquecidas pola mente mas não polo corpo que as sofrera e agora as sentia. O pior ainda era quando à manhã havia que trousar até a figadeira; logo viria aquele nojo, o arrependimento e a rábia que não topando outra forma de expressão se encarregava de o devolver aos bares de Ginzo, ou às tabernas da freguesia. Mas agora só bebia água, dês que o meteram no psiquiátrico só bebia água, muita água. Donde lhe vinha toda aquela sede que parecia não dar saciado? Porque, de algures lhe teria que vir, não é? Dês que os batasbrancas se encarregavam da sua dieta bem suplementada com pílulas, venha água e mais água. Mas agora, vendo correr aquela tanta água que se espargia pola cavada abaixo, Dom Narciso sentiase melhor, quase se sentia bem. E ainda teve tempo de perguntarse que seria o que se andava passando polos miolos dos seus companheiros.
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Ainda que tanto o RachaPedras como o RebentaRuas representavam para Narciso a duas castas de gente bem desprezadas por ele, e coas que ele nunca se juntaria, agora vendoos assim, decaídos, coas cabeças topeneantes, sentiu compaixão; afinal de contas, ele tinha prática nesse assunto de compreender e perdoar, como lhe acai a um servidor da religião… ainda que ele não fosse um homem muito religioso. E Narciso fez um esforço e quis imaginar àqueles homens sendo bons e generosos; quis imaginar a filhos que os viam como heróis, quis imaginar a mulheres que os queriam, ainda que não os chegassem a amar, e também a vizinhos que os apreciavam ou tão sequer que os reconheciam como tais vizinhos,… e Narciso sentiu inveja. Eles, ainda que não conscientes disso, tinham filhos, ou quiçá os tivessem; eram casados, e ademais tinham vizinhos… enquanto ele ficava só; só e incompreendido, só e anónimo, só e no psiquiátrico, só e sem visitas, só e isolado… desaparecendo do contacto cos outros, desaparecendo das lembranças dos que o tinham conhecido, dos que quase lhe puderam ter sido amigos, desaparecendo do seu próprio pensar, desaparecendo… E Narciso fez um esforço por recuperarse, por sentirse de novo, por sentirse novo, ou polo menos por sentirse. Este esforço introspectivo, ao que ele não estava afeito, fez que Narciso corresse o sono e se mantivesse esperto o resto da noite, de jeito que deixaram de o amolar as imagens procedentes do seu passado inconsciente, se bem é certo que ainda o mancava a esteira por elas deixada e que o afundia na mais escura soidade. E ali em frente dos companheiros entregados às escrebadelas, obrigados polo sono, e portanto alheios a tudo, Narciso chorou, e foi ele quem se encarregou de avisar de que a Estrelinha do Luzeiro andava a pestanejar. Sem mediar palavras nem olhadas, os três homens, logo de se espreguiçarem e de cumprir com as obrigas últimas, partiram pola calada naquela manhã de Março, um Março que por sorte vinha tépido este ano; se o tempo seguia assim não teriam que aturar mais chuvas nem geadas. Na Auguela entraram na segunda lua e já com um pé na primavera viajariam ao altinho do Zebreiro onde se topa o terceiro manancial das suas obrigas. Mas isso háde ser amanhã; agora há que partir, e os três homens marcharam asinha pisando sem decatarse algumas das florzinhas amareladas de São Bento que a primavera espargira já nas abrigosas beiras da fontela.
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* * * Nuestra Región, faz uma resenha no diário de hoje na que se adivinha qual vai ser o cometido, e mais o paradoiro, dos agentes lá pola beira da Rousia, mesmo correndo o risco de que alguém pudesse deduzir o lugar exacto ao que se dirigem. Mas o jornal, fazendo alarde do conhecimento que tem da realidade social do país, não duvida em fazer públicos estes comentários. Parece como se soubessem que as suas páginas nunca serão lidas lá por essa parte do mundo. Excepto por algum exemplar atrasado que algum visitante deixar para ajudar a prender o lume. É sabido que o papel do jornal é quase tão bom como a frôncega da gesta para pegar na labareda enquanto o lume não enteia, ainda que lareie mais asinha. De qualquer jeito, por se ligara de que os olhos se pousarem no papel antes de tempo, bastará com evitar a menção do nome do lugar. * * * Quando os agentes chegaram à freguesia olharam polos vidros da igreja para ver se dentro estava a pia. O relógio de pedra do campanário andava aí polas dez e meia da manhã, hora esta mui propícia para não topar às gentes do campo nas suas casas; e menos neste tempo de sementeiras e cavas, mas isso, como haviam de o adivinhar os agentes da cidade? A igreja semelhava vazia, excepto por uns bancos de madeira e dous ou três santinhos pequenos. Pia não viram. Entraram no lugar polo caminho da Ranha, e nada mais apagar o automóvel que levavam, avistaram a um homem de pêlo abrancaçado que se passeava, cigarro em mão, eira abaixo, eira arriba. Aquela, ainda que os agentes não o sabiam, era a eira da festa, mas agora não estávamos no tempo da festa e a eira estava vazia, excepto por esse indivíduo que se movia devagar pola sua superfície como se não tivesse pressa, como se não tivesse a onde ir. E claro que não tinha outro sítio a onde ir, mas isso os detectives, julgando polo passo do homem, já o intuíam; ainda assim quiseram avantar a andar e falar com ele
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não fosse que se escapasse. Aquele que eles viam não havia de marchar, mas, como iam eles adivinhar que aquele homem tinha por ofício o de gandaia? Senão, como ia ele andar a passearse àquela hora naquelas manhãs de esterco, sementeiras, e vessadelas? Trás a olhada através dos vidros da igreja apuraram o passo cara ao homem do que saía um fio de fumo gris, e que agora visto mais de perto lhes parecia de pêlo como mais prateado, e isso que era novo. Aviaram o andar não fosse o demo… – Bons dias! Poderia dizernos você como se chama? – Pois claro que poderia, eu poderia lhes dizer a vocês como me chamo, mas depois vocês saberiam mais de mim que eu de vocês… Ora, também é certo que eu já sei que vocês não são de por aqui, senão não teriam arrimado tanto o auto ao alpendre, porque saberiam, inda que não fossem deste mesmo lugar, que esse alpendre está mui bem orientado e baixo o seu telhado nunca entram chuvas nem orvalhos, o que o faz atractivo para as andorinhas e polo menos quatro delas andam a fazer o ninho para este ano… eu não lhe vou contar a vocês, que ademais seguro que já o sabem, do danento efeito dessa lama na chapa, mas ainda lhe é pior o ácido das cagadas… mas não devem preocuparse demais, pois este é lugar de muita água e sempre poderão vocês darlhe uma lavadela ao carro antes de marcharem e assunto arranjado… Vejo que a sua matrícula… E aqui foi onde o detective de mais idade e graduação o interrompeu porque lhe parecia que aquele homem não tinha intenção de parar ali. O detective ergueu algo a mão e disse: – Mire, agradecemoslhe a advertência, e para que veja que não somos pontilhosos, pois não é preciso que nos diga você o nome; isso é, o nome tanto tem, se quer podemoslhe chamar senhor… M, por exemplo. – Senhor M? Mas eu não me chamo senhor M, ademais não gosto muito de como se ouve: “senhoreme”… Por não dizer que por M começa a morte, e o medo, e a missa, e a merda, e … – Vale, vale! Escusamos o nome, nós o que queríamos saber é se você sabe algo que nos possa dizer duma pia que havia em tempos aqui na igreja e que agora já não está, que deveu desaparecer já há uns quantos anos…
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– Claro! Para vocês que tudo o sabem medir, há uns quantos anos mas para mim a cousa se passou tal que ontem… e olhem vocês bem o que lhes digo, nessa pia recebi eu o meu nome, sim, sim… esse nome que me faz eu e que a vocês parece que tanto lhes tem, vamos, que o mesmo lhes dá lé como cré… pois não, a verdade é sempre única, como única háde ser a sua fórmula e a palavra que a nomeia, olhem… – Mire…, a nós não nos interessam os nomes, o único que queremos saber é se você sabe algo da pia! – Pois claro que sei algo da pia, os que parece que não se decatam são vocês… não lhes acabo de dizer que eu recebi o nome nessa pia? E sim, já sabemos que quando te escolhem um nome não se sabe ainda se vai ser bonito ou feio até muito mais tarde, porque o nome fálo a pessoa… e o dia que te molham a cabeça na água ainda o nome está de estreia, ainda que depende de quem to escolhesse, também tem a sua história, quase sempre se escolhe aquele do que gostam os padrinhos, afinal de contas eles são os que te levam à pia. Vocês sabem quem era o meu padrinho? Como o vão saber…! Porque se o soubessem já se teriam decatado que não me podia chamar ‘Senhoreme’… eu figurome que ‘Senhoreme’ só se pode chamar… O agente mais novo escacaranhavase com o riso e ao mais velho iamselhe apequenando os olhos e engrunhando o coiro da testa. – A nós tanto nos tem quem se possa chamar senhor M ou quem não. Olhe, se você não sabe nada da pia, pois diganolo e não nos faça perder mais o tempo e ao mesmo tempo tampouco perderá você o seu! – Mas eu não lhe disse que eu sei muito da pia? Se não vão topar a ninguém que saiba mais que eu dessa pia…! Dessa ou de outra qualquer de todas as pias que há aqui neste lugar… por exemplo, sabiam vocês que só aqui há mais de trezentas pias…? Das quais polo menos cem são de madeira; a estas últimas é mais apropriado chamálas barquelas, e que… – Mire, não nos interessam essas trezentas pias ou barquelas, a nós só nos interessa a pia que havia na igreja, e parece que você não nos está a dar informação, polo que será melhor marcharmos a ver se topamos alguém com quem poder falar.
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– Eh, que eu não os mandei vir, eu só me limito a responder às suas perguntas… Ora, se você – ele dirigiase só ao mais velho dos agentes, o mais novo estava algo mais retirado tentando dissimular o seu sorriso – não entende mais que de cousinhas mui concretas, pois mais lhe vale sair daqui e irse embora… e ademais não são trezentas pias ou barquelas; desculpe mas eu disse trezentas pias, das quais polo menos cem são de madeira, e a essas é apropriado chamálas barquelas, mas às outras duzentas não, não senhor, não o é; para que me entendam… é como se eu dissera: havia ali trezentos automóveis, dos quais cem eram furgonetas, seguro que a você não lhe parece apropriado que dissera que havia trezentas furgonetas, vamos digo eu… e perdoe o exemplo mas pareciame a mim que você não colhera o matiz…, e é que se bem todas as barquelas são pias, não todas as pias são barquelas, nem servem para fazer a velha rima: Vaite névoa nevoarela filha do cão e da cadela Vai comer a lavadura que te ficou na barquela …e se repetes estas palavras a névoa, por fecha que ande, acaba afastando; também senão está um perdido, pois coa névoa perdese o tino, e se andas por fora ou num monte sem carreiro… O Ciro percebeu então de que aquela névoa que agora apartava era a que saía polo tubo de escape do Ford Escort gris que já se afastava caminho adiante… – Quanta pressa traziam esses, assim não se pode falar sequer… – disse o Ciro para si, enquanto seguia a olhar com certa nostalgia como o automóvel se afastava, e com ele as possibilidades de companhia; pois neste tempo de sementeira todo cristo anda nos eidos e ele aborrecese um pouco; se tão sequer lhe deixassem a taberna aberta… Em ocasiões como estas o Ciro era mais consciente da sua singularidade, ele era diferente dos demais… que não serviam para outra cousa que não fosse trabalhar; não, ele estudara nos livros, e prova tinha para todo aquele incrédulo
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que a quisesse ver. Debaixo da cama guardava Ciro uma mala cheia deles; alguns já se vão vendo velhos, mas ele muito os estima… “ai, se eu não me tivera juntado com más companhias… hoje seria eu alguém e de mim não se ririam!” E tampouco se riem tanto, pois sabem que leu nos livros, e ademais… “olha para aí que bem vive!”
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Capítulo II
A FONTE DA AUGUELA A Auguela, apesar do seu nome, tem uma água mui boa, e os três caminhantes assim o apreciaram, mas já iam sendo horas de marchar. Estreando lua, logo de lhe dar o último golo à pia, começaram a andaina para o alto do Zebreiro, lá a Fonte da Cunca os aguarda. Aquelas são águas de altura e as próximas noites serão noites de muita subida nas que Dom Narciso segue sem apear o pinho, e isso vá se o manca. Por estes empinados montes muitas vezes quase perde o homem a consciência. Certamente vêselhe apoucado e até por momentos semelha que lhe vai faltar o ar e vai desfalecer. Dês que deixaram a Auguela tudo eram costas; a terra chã das cavadas durara menos de uma noite. Aquele pedaço ainda fora tolerável e deixaralhe fôlegos ao homem para tentar relembrar as suas vivências de jeito pausado. Ele queria a terra chã, ele queria dar volta para trás, mas não encontrava o jeito. Ele queria lembrar e relembrar os dias dourados da sua primeira freguesia, onde tudo era paz, respeito e amor… e não agradecia nada aqueloutras visitas inesperadas de imagens que eram mesmo aborrecíveis, sobre as que não tinha controlo, e que apareceram muito mais tarde na sua vida. Como aquela visão que o andava mesmo acossando dês que começara a subida. Naquela viase a ele próprio com um saco ao lombo caminhando em pleno sol de meia tarde; e que haveria no saco? Ai, sim, o saquete estava atestado de livros, e como pesavam os condenados! Havia livros grossos e outros mais delgados, isso sim, todos eles velhos e escuros, e precisando uma amparadela; nalguns, antes de os ler, havia que mudar as folhas que estavam co de acima para abaixo. Dês que ele chegara à freguesia de Ameixeiras falara sobre o tema dos livros paroquiais co responsável da zona, mas estoutro, menos afeiçoado às leituras, não lhe dava tanta urgência ao assunto. Por fim Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 36
parece que coalhara a ideia da restauração. Sim, essa ideia fora de Narciso, o que não pensava ele era que para a levar a cabo o fariam assistir a uma juntança com todos os outros cregos da contorna. Porém ao outro, ao que chamam arcipreste, que leva duas freguesias ademais de mandar nos demais curas, não lhe amargava perder o tempo, que tem muito e não sabe como gastálo. Ele é certo que, ademais de mandar, diz missa em duas igrejas; e daquela os cregos já começavam de andar algo mais atarefados, não porque lhes aumentara a clientela, que vai a menos cada dia, senão porque são menos os empregados e têm que se repartir as freguesias; a uns tocamlhes menos, como lhe passa o mandamais, para isso manda, e a outros tocamlhes mais, como lhe passa a Dom Narciso, que lhe vamos fazer. Esta espécie de chefe dos outros leva Os Mouros e Vilarinho, que por certo são duas freguesias que têm as igrejas mesmo pertinho uma da outra… uns dez minutos caminhando devagar. Ora que isso tanto tem porque este abade, que está ele mui bem cevado, tem dous carros; os dous da mesma cor e coa mesma documentação… para que malgastar. O ser o homem agradecido e engordar com tanta facilidade faz que alguns se refiram a ele como “O Cacholas”, porque realmente lembra o pobre a um desses que… fora a alma e a figura… são como nós. Sim, ou se calhar ainda os do cortelho se semelham mais aos humanos normais que este cura de sotana sempre emporcalhada, ele sempre mal asseado; mas isso sim, bem motorizado. Dizse que vêlo comer dá risa e nojo… “um bocado no chouriço e o que resta para o bolsão e a colher outro, e assim enquanto durar o que há acima da mesa… depois vaise para a casa com um fardel escondido por dentro da sotana cheio de chouriços encetados e pedaços de toucinho e magro, e o que dera arrebanhado… e a sotana resplandecendo desde longe coas pingadas da gordura…” O pobre não tem vergonha, até há quem lhe chama porco à cara e a ele tanto lhe tem. E apesar de não conhecer as normas para circular pola terra, nem topar melhor sítio para arrumar o carro que o meio e meio da estrada, ele vaise salvando… se calhar o da mesma marca e cor dos dous carros é para que se lhe localize bem, não vá ser o Demo e o for Deus confundir, ligara o homem de ter que morrer na estrada. Pois como as freguesias lhe ficam mesmo uma à beira da outra, e com tanto carro, o homem
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não sabe que háde fazer co tempo que lhe sobra logo de fartarse de comer e de beber, que isso também lhe ocupa. Mas os dias no verão são longos e há que topar o jeito de enfastiar os outros mais ocupados com as suas muitas freguesias, e bem longe umas das outras. E isso que alguns, ou melhor dito algum, não tem nem carro; eilo caso de Narciso, ele é homem de caminhar, e amargar não lhe amarga, contudo há vezes que a cousa já é demais. Como aquele dia, que ainda por riba era no verão, e na Raia o ar que se bafeja neste tempo de seitura é mais seco que os fumos do Inferno, e ele co saco dos livros ao lombo. Certo é que se oferecera o mandariqueiro a o levar a ele, e mais os livros, até Vilamenor, onde se ia celebrar a reunião para tratar o tema. E assim combinaram: passaria por Ameixeiras, que ademais ficava de caminho, bem cedo de manhã, e recolheria a Narciso e a sua moreia de livros pesados. Os livros eram bons mas, co tempo e a falta de cuidados do predecessor de Narciso, baloreceram tanto que sem abrilos sequer já te entravam as ganas de espirrar com tantos mofos flutuando ao seu redor. Se não se lhes botava uma mão a bulir não durariam muito mais do que os pobres levavam rengueleado polas enormes gavetas do armário da… ali seria a sacristia se a houvesse, que numa igreja tão pequena não faz falta tal… o crego não toca a campa até que já está vestido, e ademais os refaixos não os quita, então digamos que esses caixões estão por ali aposentados perto do Santo António, que seguro que se sente ali mui bem tão abrigadinho, qualquer não o estaria. O Santo António tem algo de mão coas mulheres, que são as que distribuem os espaços e os atavios; ele anda mui bem pintadinho e tem mui bons mantéis. Outra que tinha bons mantéis é a Virgem do Carmo, mas esses caíramlhe duma promessa que fizera a Maruxa da Cristalina quando se lhe pusera o meninho a morrer; e vá que bem lhe curou depois! Então ela buscou e buscou até que encontrou o melhor mantel que se puder comprar, e não lhe amargou gastar o dinheiro que daquela não sobrava. E contudo logo veio o Aurélio, que foi abade em Penacova, e marchou co raio do mantel para outra freguesia… E claro…! Quem se atreve a lhe dizer nada…? Ademais de lispar os mantéis, ainda arramplou com cousas de mais valor e mas ninguém disse nada, ou polo menos à cara... Oh, por detrás qualquer fala! O que levava as de perder dês que se desmantelara a igreja era o Santiago, até o deixaram ao pobre
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sem espada e agora anda o homem com um livro, e não era por ser Dom Narciso afeiçoado a ler, pois quando ele veio a Penacova para lhe botar uma mão ao seu colega Aurélio que não regulava o homem lá mui bem, o Santiago já andava metido nas leituras… quem sabe, quiçá foi algum desses anarquistas que diz que ainda há no lugar… ou algum inocente que pensara que como o Santiago mora em Compostela se calhar estranhava a vida universitária, e ademais ali em Penacova, a quem ia o pobre espetar coa espada…? Daquela, quando Dom Narciso passou por Penacova, já faltava pouco por escaralhar, de isso já se encarregara o titular da paróquia, o tal Aurélio, que por certo fez um bom trabalho, e logo vai e põese tolo… “Tolo, o que se diz tolo, dizse que já estava, e que o dissimulava…” Outros dizem que de tolo nada, que faz o tolo mas que é mui avisado… o que se passa é que agora tem medo polas falcatruas que leva feito… Contudo, quando a Dom Narciso lhe mandaram ir substituir ao crego de Penacova, em parte por ser o que mais perto estava, ainda andavam, de milagre, alguns livros por ali. Ele juntouos cos de Ameixeiras para restaurálos todos. Daquela, Dom Narciso ocupavase de quatro freguesias, e eilo cura a correr de missa em missa coa hóstia na boca, com perdão. Às vezes acabavamselhe as existências e velaí o homem amassando e cozendo um pãozinho chato, a jeito de bica do testo, acima da prancha de ferro da cozinha, para repartir depois na missa. Não, algumas vezes não era fácil não ter carro para servirse, co bem que lhe iria em ocasiões como aquela na que aguardou e aguardou polo seu colegachefe, o da cabeça grande, e vendo que não parecia que se fosse apresentar não teve outro remédio que botar o saco ao lombo e meterse ao caminho em pleno meiodia. O plano inicial, tal e como lhe explicaram a Narciso, era jantarem todos juntos na reitoral de Vilamenor da Boulhoeira, onde os convidara o Laruças, alcunhado assim polos vizinhos de Penacova e outros lugares. O Laruças, apesar de não ser pessoa à que lhe encha dar, pois tivera o homem o detalhe de convidar ao jantar, e depois da enchente teriam tempo de falar de como seria melhor considerarem a devandita restauradela essa dos livros, que tão urgente lhe parecia ao abade de Ameixeiras. Por certo o lugar da reunião não fora escolhido por Narciso, que a casa do Laruças é a que mais longe fica de todas, não obstante, como o iam levar em carro, ficou o homem conforme. O que não
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lhe acabara de caber na sua cabeça de cura teimudo era a ideia de que o Laruças, nada conhecido polas dádivas senão por todo o contrário, se mostrasse tão generoso convidando ao jantar a tanta boca, seriam polo menos sete ou oito comensais. Que rareza era aquilo de que o Laruças se oferecera a dar nada, ele que até se se terçava era dos que, malpocado, ainda se atrevia a levar o que não era dele. Assim foi como lhe arramplou com uma porta de cerejeira ao tio João. Sim, já sabemos que a cerejeira não é a melhor madeira, mas ainda assim e tudo aquela era uma porta que dava que ver, tão enramada… já lhe oferecera o Maragato não sei quanto por ela, e ele de parvo não lha deu, e deixoua ali debaixo da solaina exposta, afincada na parede. Mal pensava ele que na Terçafeira de confissão viria o Laruças, logo de repartir penitências, e não daria resistido à chamada da formosura da porta. Mas como ia o tio João adivinhar isso, o tio João não sabia muito de curas porque ele só ia à missa o obrigado – baptizados, casamentos, enterros… para que não se dissesse que ele era um desses que lutara contra Franco, e ainda que isso era certo e toda a gente o sabia, o tio João tinha que dissimular, não fosse que o foderam… mas ainda assim ele não conhecia bem os curas, e não podia imaginar que uma Terçafeira de confissão viria algum deles roubar aquela porta que ele já herdara. Ademais, ele pouco sabia do Laruças, que só vinha a Penacova aos enterros e ajudar no dia este da confissadela, que era cousa séria naqueles tempos. O tio João ficou amolado pola rouba da porta mas não quis o homem dar que falar e deixou a cousa assim, sem lhe pedir contas ao ladrão. Como tampouco as conhecia Dom Narciso, senão já se teria decatado, como lhe passou depois, de que aquilo de se juntarem em Vilamenor da Boulhoeira fora um plano argalhado polo Laruças coa ajuda e colaboração do da cachola grande. O que pretendiam era amolar a Narciso e ver se o espaventavam e se ia a dizer missa a outra parte; tão bem que eles estavam antes de chegar este padre trabalhador, e que ademais visita as tabernas. Não, beber não é que esteja mal mas… não tanto, e por riba em público. Mas estes dous tampouco conheciam bem a Dom Narciso nem a sua teimosia e resistência. Narciso estava afeito a caminhar e sofrer passando fome e até sede se fizer falha. Portanto, aquele dia, botou o pesado fardel dos livros ao lombo e
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caminhou duro até bater na porta da reitoral de Vilamenor da Boulhoeira, a mais de duas horas de caminho. Passava bem já da hora do jantar, mas estes, como eram curas, ainda andavam nela quando sentiram a pesada aldraba de ferro bater na porta de fora com uma força do demo. “Quem raios...!” E todos os cregos se puseram à espreita enquanto a criada do Laruças baixava asinha as escadas de pedra e lhe dava a volta à cravelha do portalão. O Narciso passou sem mediar palavra coa criadinha, à que porém dedicou uma olhada de esguelha; era aquela uma mulher pequena e estava algo desmelhorada, Narciso pensou que o Laruças não lhe devia dar boa vida, e isso ainda aumentou o seu reganho. Com aquele rauto dele passou ao meio do pátio e desde ali berroulhes aos de dentro, que estavam a guichar desde a janela que dá a fora quem era que petara. “Onde está o porco de Vilarinho que me deixou chantado?” Foram as palavras que subiram até à mesa na que ainda ficavam restos de comida e bebida. Foi um desses curinhas menores que estavam na reunião o que saiu ao patamar e lhe pediu a Narciso que passasse dentro, que não estava bem formar ali tanta liorta. O Narciso nem escutou àquele comparsa, e seguiu botando berros enquanto caminhava para a escada: “Parecevos bonito, que enquanto vós estais aí jantando cos colhões sentados eu tenha que vir carregado co saco às costas Aguiar abaixo?” Por fim, passou para dentro e sermonouos bem, falando da falta de palavra e do mal que estava isso de confundir a um e trapalatrá… os outros escutavam mas não ouviam nada, logo da comilotada, com aquela carne assada e um vinho que coroava, todo o sangue lhes baixara ao bandulho deixando as cabeças sem rego; e estas caíam de quando em vez co topeneio da sesta, e o Narciso aceleravase todo ao ver que não lhe prestavam atenção. E coa fome que ele trazia! Pois comer não comera nada ainda que algo já molhara antes de sair de casa. Daquela, já à manhã cedo tinha que lhe meter algo ao corpo, senão não dava o homem encadilhado. Aqueles dias já ninguém em Ameixeiras, nem em Penacova, lhe fazia grande caso, e por riba estoutros sacerdotes que deviam de o animar e o apoiar vão e enraivamno mais… pois era o que lhe cumpria! Narciso estava começando a fartarse, e agora enquanto o lembra a caminho da Fonte da Cunca, fecha os olhos e puxa do pinho com tal
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serenidade que parece uma jugada. Ele nunca esquecerá a sensação causada pola dureza dos livros nas costas, e davam boa conta disso os maçoucados das suas carnes que duraram vários dias; mas aqueles trilhados contra as costelas, por feios que pareceram, não foram o que mais mancara a Dom Narciso, nem o que o levara a tomar medidas. Visto o que lhe fizeram, e ainda por riba se riram dele fazendo que o escutavam enquanto dormiam… aquilo não podia seguir assim. Teria que se preparar para defenderse dessas feras negras, algumas com sotana. Aquele dia, e mesmo na beira da Raia, decidiu que haveria de cruzar para comprar com que se defender, dele não se ia rir nem Deus. Tampouco era nada novo, outros muitos já a traziam, e a ele, que sempre ia andando, boa falta lhe fazia. Foi esta resolução a que lhe dera acougo aquele dia na casa do Laruças; e agora, ao lembrálo, sente o alívio que deveu sentir aquele dia, pousa o pinho e toma alento enquanto se relaxa com ambos os olhos fechados. Quando os abre vê o punho do RachaPedras que lhe vem direitinho às ventas, mas a tempo ele se agacha e esquiva o golpe, mas não o insulto que o acompanha: “Animal, que quase nos fazes cair! Quantas vezes te teremos que dizer que antes de parar avises!” Como já era hora para a partida aí morreu o conto e Narciso, sem dizer rem, marchou embora, como marchara aquele dia de Vilamenor da Boulhoeira, e para o outro dia à manhã colheu o andante caminho da fronteira, que daquela seica se diz que havia, ainda que ninguém de por aqui a vira. Mais adiante, logo de se informar, pensou que poderia terse aforrado aquela viagem, pois há muitos que lhe poderiam ter arranjado uma dessas pistolinhas sem ele se mover da casa; mesmo ali em Penacova dizse que havia quem as trazia, e em Gomesende, e noutros sítios; mas então ele não o sabia e lá foi, e veiose à noite prà casa carregado e sem medo já. Medo?… Ulo? * * * Do que não se esqueceu Nuestra Región, no seu apartado de sociedade, foi de fazer referência aos da associação da cidade velha, que como todos nós lembraremos, dedicamse a recadar fundos para mandar reconstruir a pia, ou polo menos essa era a sua intenção inicial. É de domínio público que andam Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 42
agora divididos em três bandos. Por um lado estão os que querem reconstruir a pia com exactidão fotográfica a respeito da antiga, estes até dizse que querem falar cos negociantes daquela comarca para extrair dos montes da freguesia donde nasceu a pia a pedra que seria precisa para a cópia, e em tais cousas andam enquanto tratam de convencer a uma das outras facções para que os apoie. Outro dos grupos também quer a reconstrução da pia, ora, porque não melhorála algo? E dado que dinheiro têm, seica o que querem estes é que ao redor da boca, a meia quarta da borda, se lhe faça um colar de pedras semipreciosas fazendo ondinhas para que diga mais bonita. Este assunto das pedrinhas de cores afastaos dos puristas e faz que ninguém tenha maioria, e que a porfia siga viva. Entanto, o terceiro grupo, que já se distanciara dos outros há algumas semanas, segue cos olhos postos no Caribe e até andam a mirar agências de viagens e sítios aos que iriam de não ser polos teimudos dos outros. Felizmente há gente para animarnos nestes tempos de monotonia, como o poeta Budial, que nos oferece um novo verso em Nuestra Región co que nos regala o sorriso. Seica diz também que a apresentação do seu livro não teve tanto êxito como em princípio coubesse augurar. Qualquer poderia concluir que o interesse das gentes destas terras pola palavra escrita, apesar dos poetas e escritores que daqui saíram, não medra. * * * Dês que se fizera com aquela amiga de coronha recoberta de osso esbrancujado em Montalegre, ou quiçá em outro lugar, Dom Narciso não se sentia tão só; esta era uma seguidora fiel, a onde ia ele ia ela e se algo se passava ela responderia por ele, que mais seguridade precisa um homem? A primeira vez que a deixou ver em público foi numa dessas tabernas que ele frequentava; ergueu um nada o pulôver e tiroua da cintura onde a levava oculta; sem mediar palavra com ninguém pousoua mesmo perto da sua bebida como quem pousa o bilhete para que lhe cobrem. Naquela taberna quase sempre eram todos conhecidos dele, e se às vezes havia algum forasteiro já se lhe informava de quem era aquele cura. Narciso fazia o parvo mas de Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 43
parvo não tinha nada, e bem via como lhe davam de olho aos que fitavam surpreendidos quando ele começava de discursar… “vem contente hoje o Narciso”… ele quase adivinhava os comentários que pola calada se faziam “éche o cura de Ameixeiras, que lhe dá algo à bebida”. Mas aquele dia quando pousou a sua pistola acima do mostrador, perto da cunca do vinho, ninguém se trujiu; não, não houve piscadela de olhos nem comentários polo baixinho. Outra vez sentia Narciso que retornava aquele respeito que noutrora sentira que todos lhe tinham lá na sua primeira freguesia. Por fim respeitado de novo, agora ninguém ria. O dono do bar, que era quem sempre estava por trás do balcão, era homem afeito a estas cousas, e foi o menos sobressaltado dos presentes. Na sua taberna, pola proximidade com um clube da estrada 505, entravam às vezes indivíduos de aspecto suspeitoso, e alguma vez viralhe a algum, quando arredou o casaco para tirar a carteira, assomar a coronha duma destas. Aqueles davam mais medo que Dom Narciso; aqueles aquelavamte o ânimo só de vêlos. A vestimenta, essa face meia sem barbear, esses olhos apequenados sempre fitando com rancor, essa voz que arrelava as palavras, e os movimentos de gorila, eram os sinais que lhe serviam ao taberneiro para identificar a estes chimpafigos que viviam nada mais que de lhe chuchar a bolsa a quatro coitadas. As pobres prostitutas sempre encerradas como toupas na covaterra; sempre fechadas nesses prédios de Ginzo para que não pudessem fugir; só as deixavam sair quando o negócio o requerer, e daquela bem que as vigiavam. Estes sim que eram animais, e a estes temia o taberneiro, mas quando viu que Narciso sacava a pistola e a pousava acima do balcão, achegouse a ele e disselhe polo baixo: “Guarde isso Dom Narciso, que ainda se vai meter você num compromisso” O cura sorriu para o taberneiro e disse: “de mim não se vai rir ninguém” e a seguir guardou a arma. Apesar de que a gente que havia na taberna não se assustou, eram os de sempre, os que se viam ali a cotio, sim que lhes sobressaltou um chisco a pistola. E se por acaso começaram a rir menos quando o cura estava a soltar uma das suas paroleadas, nenhum deles temia a Dom Narciso, sabiam que era um bom homem, se quadra algo tarabelo demais; mas, ai, tampouco ignoravam que o álcool e o ferro misturados não fazem boa jeira, e a partir de
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então andaram os homens com tino, e algum até deixou de ir por ali uma temporada até que comprovou que não se passava nada. E foi assim como o Narciso sentiu chegar até ele de novo aquele respeito do que ele tanto gostava. Começou de sentirse poderoso, e ia cada vez apresentando àquela sua amiga de coronha de osso velho em mais encontros. Pouquinho a pouco toda a gente era sabida de que o Narciso portava arma. Já nunca saía da casa sem ela; a pequena pistola formava parte dos hábitos do sacerdote. Às vezes, estando na taberna, algum incluso lhe pedia que a ensinara, e ele não se fazia rogado; sacavaa, mostravaa entrementes a cofiava como quem acarinha a um cãozinho, e volviaa guardar. Alguma vez escutou a um dizer que aquela pistoleta era engraçada mas não era nada grande, que mesmo parecia um brinquedo, que ele sabia de gente que as trouxera desse mesmo sítio donde ele trouxera a sua e que eram do nove largo… Aquilo deixou a Narciso amolado; agora que tinha o homem tudo outra vez controlado vem esse comentário e… raios te partam, deixa ao homem desarmado! Esse mesmo dia se informou Narciso de quem eram os que traziam tal contrabando, e antes duma semana já tinha ele o seu nove largo. Ali, na mesma taberna, como sacara a pequena a primeira vez, sacou agora em vez desta a grande. Esta era negra, como um cão grande de raça; os que lá estavam calaram, até se diria que se assustaram. Dom Narciso ficou um nada surpreendido por aquele tanto silêncio, tampouco tencionava assustálos; Narciso só queria respeito e não que lhe tivessem medo. O taberneiro olhou para Narciso, mas esta vez não abriu o bico. Narciso guardou a arma e dizse que naquela taberna nunca mais a volveu sacar. Ele sempre a levava nos bolsos, ou na cintura, escondida, e sentiase o homem mais seguro e mais respeitado sem ter nem sequer que ensinála. Coa boa sensação de ter atingido uma meta, marchou Narciso a saudar um novo dia, e o mesmo fizeram os outros dous homens. Levavam já um terço da subida ao Zebreiro. Desde onde deixaram hoje escondida a pia puderam ver a Veiga do Fojo e os Penedos da Cabana. Atrás, pola esquerda, ficava já a Vela de Penalapa. Os Penedos da Cabana, pola parte de detrás, chegam quase até Gomesende, formando uma serra que vai minguando a modinho até rematar numa espécie de sarriço estreito. Por detrás da Cabana passam as paredes dos lobos, que vão morrer lá na Veiga do Fojo, onde ficam, como o seu nome bem
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indica, os restos do que foi o poço onde caíam os lobos. Tanto as paredes quanto o fojo foram feitos há mais de cem anos coa finalidade de atrapar e dar cabo dos lobos, que eram as animálias que mais inçavam por estes montes. Eram tantos os que havia que às vezes matavam até vinte ovelhas duma volta, e a gente não teve outro remédio que artelhar o das paredes. Quando se faziam as corridas vinha gente de toda a província e espalhavase por todos os lindes do Zebreiro; depois, quando tudo estava pronto e toda a gente no seu sítio, desde a Vela de Penalapa acendiase o lume para avisar a todos de que começava a troula. A gente organizava uma autêntica verbena com instrumentos musicais tais como latas de azeite ou do pimentão vazias, caçoulas de ferro e chaves, e cousas desse estilo; e os animais espaventados polo barulho iamse metendo mais e mais na boca das paredes. Já perto do final, onde aparecia o cocho – que era um buraco bem fundo – as paredes iamse juntando. Àqueles pobres não lhes restava mais caminho que saltar e cair no fojo da morte. Os anos foram passando e do buraco só fica um resto quase inapreciável, o tempo e mais a falta de uso foramse encarregando de cegálo. Das paredes fica algo mais, nalguns sítios ainda levantam bem, mas noutros estão esborralhadas. Dos lobos fica a memória; já só cria uma loba lá em Penacereija. Agora nestes montes há só javalis e corças e outros animalzinhos, mas lobos não, como daquela não, desses não ficam. Então tinhaselhes medo porque te comiam a fazenda, ou o que ligara. Nesses montes tão grandes se se te perdia algum animalzinho, lá ia. Havia uma cheia de cantares e coplas que davam boa conta desses acontecimentos, porém, também foram, como os lobos, desaparecendo; a alguns salvouselhes, como às paredes, um bocado: Chove, neva, escarrapateia, fogem os lobos do monte prà aldeia. Numa ocasião perdeuselhes o cavalo a duas irmãs, vizinhas de Penacova, e o pândego que havia daquela na aldeia ofereceuse a lhe botar o responso para que estivesse o animal a salvo; mas confundiuse e em lugar do responso saiulhe a cantiga que ainda ressoa hoje polo lugar:
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Lobos que andais polos montes avivai bem os sentidos que anda o cavalo da Flores e o da Mercedes perdido. E se os lobos não o topam que o esfandanguem cem mil diabos. “Ai, dianhos te não levem, tu é que a arranjas…!” As duas mulherzinhas ficaram desesperançadas. Daquela no Zebreiro havia muita vida. Agora, de descontado os javalis, as corças, os teixugos, os raposos, os coelhos, as gardunhas, as doninhas, toda uma cheia de pássaros e outros animalzinhos pequerrechos como o ouriçocacheiro, já só ficam estes três homens da pia. Também é certo que lá no pico mais alto dos montes da contorna está a emissora desde onde se vigia para que não ardam os pinheiros. O Zebreiro agora está coberto de pinheiros, e há que guardar de que não venha um lume e os larpe. Um homem que dedicou alguns anos da sua vida a esta vigilância foi o Ciro. Subia aí pola tardinha caminhando até acima; já sabemos que ao Ciro não lhe amarga caminhar. Mas agora já nunca sobe arriba, mas é só por mor de não andar ele lá muito bom. Agora há outros mais novos que sobem. Pois logo mais lhes vale aos da pia ter conta dos faróis, não vão ser avistados desde o alto. Claro que, se não vêem lume, quem pode crer que ande alguém polas touças ou os pinheirais…? “Será a Santa Companha”, chancearão os dous vigias e seguirão a velada “dorme tu que eu já miro, e depois cambiamos”. * * * Nuestra Región segue sem mencionar o destino dos agentes que supostamente seguem lá pola Raia na procura de informação, ou se calhar já se vieram e não se sabe nada. O que sim menciona Nuestra Región é que, segundo parece, o adinheirado cidadão que dizse que se oferecera a dar uma boa mão de bilhetes àquele que proporcionasse informação fidedigna, segue com essas Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 47
intenções, porque não tem tido sorte e não pôde polo de agora fazer a sua boa obra. Pola sua porta passeiamse diariamente pessoas a procurálo. Apesar de que o jornal não dava pistas do domicílio do tal rico, seica houve quem o adivinhou, e desde então não pára de lhe chegar gente à porta. Ali o seu criado, ou se se preferir, secretário, tem ordens de não soltar nem um real. Ele disse que até que se veja a pia ele não dá nada, que senão não é obra benéfica e nem sequer lhe serve para reduzir impostos. Pois também tem razão o homem, ao ter de fazer uma boa obra que lhe vai, seguramente, contar no Além, porque não que seja qualificada de benéfica e que também lhe sirva no aquém? Há quem quer fazer o bem, e tem dinheiro com que fazêlo, mas não pode… e dizse que anda o coitado do homem amolado. * * * Os homens da pia seguem sem descanso, noite vai e noite vem, a sua escalada para o alto do Zebreiro. Às vezes mesmo lhes custa topar sítio polo que possam ir esgardunhando. Na parte das touças tiveram sorte porque a rodeira segue aberta; aquela é uma rodeira feita durante vários séculos, por ela encheramse de subir carros e mais carros que ano trás ano baixariam carregados de lenha para quentar as lareiras de Penacova, e ainda outras doutros lugares onde havia menos monte. Organizavamse os carretos, com sete ou oito jugadas, e levavase a lenha a Ginzo, ou onde for preciso. Hoje já só sobem de quando em vez os tractores, mas avonda para manter o vieiro aberto. Logo as touças vão ficar detrás e adiante aguardam as plantações dos pinheiros. Andar por entre estas árvores de folhas afiadas tem a vantagem de estar bem protegidos e contra à manhã poder marchar sem ter que levar muito trabalho em esconder a sua mercancia. Às vezes acodem às devassas, e se vão na direcção atinada, usamnas como se fossem caminhos; nestes casos têm que andar com mais cuidado para não ficar muito ao descoberto, ora que aqui no meio destes montes quem os vai pensar. Se alguém os visse faria o mouco para que ninguém possa dizer que virou tolo. Dom Narciso segue a puxar polo pinho, ora com força, ora com raiva, e enquanto e assim, tira também da memória e vai vendo o homem como foi que Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 48
ele veio bater àquele cárcere do que o tiraram asinha para o levar ao psiquiátrico no que ainda passa os dias, e do que tem que escapulirse para vir cumprir co seu destino. O Narciso estava afeito a que o andaram trazendo e levando, e mais ou menos ele sabia quem manejava os fios, mas agora não tinha nem a mais remota chispa de claridade sobre quem, ou quê, dirigia os seus andares. O único que sentia ele era que uma força o empurrava monte arriba e que não podia detêla, nem sequer sabia o homem se queria parála. Algo lhe transmitia a sensação de que por primeira vez se dirigia a algures. Mas não é novidoso que Dom Narciso se sinta bem sendo guiado, a isto estáche ele bem afeito, quiçá afeito demais, e portanto não tinha lá muita manha co de dirigirse só, e cada vez que o tentava acabava perdendo o norte e outra vez o pilhavam e o amarravam curto, como faziam agora os senhores das batas brancas. Mal pensavam todos naquela residência que Narciso fosse capaz de argalhar extravagantes artimanhas para escapulirse, e fazêlo ele sozinho. Ele já descobrira que se estás calado e não dás que fazer, pois és considerado bom e bem se vê que vais curando; e que melhor jeito de estar calado que não estar! A ausência pode ser mui informadora das andanças de qualquer se se conhece, mas se se pensa que esse vulto de almofadas é um homem que descansa, logo não te diz nada. E a ausência passa pola calada noite trás noite polo leito de Narciso. Ora, a Narciso não se lhe pode esquecer esconder as pílulas de diversas cores que lhe dão a tomar antes de ir à cama; ele faz como que as engole enquanto as oculta como pode baixo a língua, depois cospeas no retrete e lá vai o homem curando. Se as enviasse para abaixo não teria outro remédio que ocupar de noite o sítio das almofadas, e claro, isso não é o que ele tem que fazer. Ele não está quase nunca seguro do que deve ou do que deve não fazer; ora, co das pílulas não tem dúvidas. Oxalá tivera as cousas assim de claras quando se dedicara a acumular armas. A cousa começou por uma pistola pequena, logo seguiulhe o negro novelargo, e mole e mole, como diziam as más línguas, montara o homem uma armaria na reitoral. Ora, muitos não acreditam no que se ouve: “isso são lendas e trapalhadas”. Uns que sim, outros que não, mas sem criada que o pudesse ir falando, porque Narciso não tinha a ninguém para servilo, não se
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podia estar certo de tudo. Se tão sequer tivesse uma criadinha… Narciso sempre soube governarse só, ou ao menos ele iase arranjando; às vezes algum de brincadeira perguntavalhe que como era que não tinha criada para servirse dela como os outros curas… que colhesse uma, que não fosse parvo. Ele meio a sério meio a brincar admitia estar cansado, mas que o seu cansaço não lhe vinha dos trabalhos que lhe podia aforrar a criada senão de ter que aturar a tanto alpavarda na freguesia, é que não há Deus que os dê levado a caminho, e isso que ele tentarao tudo… e mas olha que de nada lhe serviu. Mesmo agora, dês que conseguira essas amigas de ferro, algum domingo em lugar de tocar a campa botavalhe uns tiros ao ar desde o pátio; mas não vale, os de Ameixeiras perderam a fé completamente, ou já não têm nem vergonha, e não visitam a igreja mas que quando se vêm obrigados, alguns cos pés por diante… E Narciso eilo a protestar, agora as suas dissertações em lugar de versar sobre a injustiça e a humilhação só falam do que ele quereria que se passasse, e isso que nem sequer ele o sabe. Portanto anda o homem danado e vai dizendo que já foi falar co bispo e que lho deixou bem claro: “…que se não me cambia de freguesia, que caso” Mas nada, o bispo não o cambiava de freguesia e o Narciso andava doente sem ter sequer moça buscada. Porque será o que fosse mas, a diferença de outros curas, a Narciso nunca se lhe conheceu moça. Se a teve sabeo ele, mas de falar por essa causa não te deu nada. E claro, sem moça, como ia casar o pobre do abade? Ali seguia em Ameixeiras. O porquê o bispo não lhe cambiava de freguesia ninguém o sabe, é um desses mistérios inexplicáveis. Mas não seria de estranhar que ao bispo lhe custasse algo muito encontrar outro que quisesse vir para o posto de Narciso. Ameixeiras, depois de que uns moçotes se montaram uma vez, há já muitos anos, a cavalo dum cura, não tem mui boa sona entre os abades. E isso que depois fizeramlhas pagar; ai fizeram, fizeram, a um deles, que era primo do Colmeias, mataramno daí a logo da broma. Bem seguro que o tal crego dera conta dele, e naqueles tempos a Guardia Civil não se fazia rogada. O caso é que pouco a pouco a distância entre o Narciso e os vizinhos de Ameixeiras foi medrando e o que se via vir era um divórcio traumático. Se o bispo o tivesse escutado…
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Algumas cousas dizse que são bem certas, como quando dizia a missa com as pistolas no altar pousadas. Era um contraste bem grande ver aquela pistola tão preta perto da Sagrada Hóstia tão branca. No entanto os que dizem que fez muitas vezes uso das armas em público mentem, ele só as ensinava; e quando tirava tiros era em privado, ora claro… ele não podia impedir que os vizinhos de Ameixeiras os escutassem. Mas o Narciso em público só disparou uma vez, e pôde ser um acidente, quem o sabe, isso nunca se dará aclarado. O caso é que a Dom Narciso foramlhe apondo cousas, como mulheres não tinha… filhos não se lhe podiam apor… pois a ordenarlhe histórias! Escusado é dizer que ele cos outros abades não se levava dês que… desde sempre, dês que chegara à freguesia. Estoutros faziam que não o conheciam e só se juntavam com ele nos enterros de obrigado; nestas ocasiões Narciso aproveitava para zangálos; melhor dito ele tentavao, porque os outros não lhe faziam caso nenhum, nem sequer o escutavam. Narciso andava ao dele, e enquanto os outros ainda andam no adro co defunto, às voltas co “ora pro nobis” dos responsos pagados, ele aguarda dentro da igreja e vai falando. E os outros que não param de cantar e ele dálhe que dálhe a falar. Dentro há gente que o escuta, ou ao menos que não tem outro remédio que ouvilo. Algumas destas pessoas são maiores, ou estão cansas por ter vindo ao enterro a andar e querem ir pilhando sítio, que depois enchemse as bancadas e logo de pé não se está nada bem. Ele qualquer que for o motivo que os fez entrar a sentar, eles estão ali e a Narciso, aborrecido de esperar, já lhe abondam como público, enquanto os outros curas não entram e anda o funeral polo sagrado. Algumas vezes dizse que dizia: “tanto a chiba de Vilarinho como a cabra de Vilamenor, já podiam parar de berrar e ir comer verças às hortas” e cousas assim. Claro que se bem se mira, a quem não lhe rende o tempo numa igreja aguardando? Ele nas igrejas já se sabe… e até há gente que não dá passado o tempo nem com missas nem com cânticos. Como dizia o Afonso logo de sair ao adro: “minha madrinha, que longa se me fez a missa, ai, como me rende aqui o tempo! Cada segundo uma hora… E ali a fazer que rezo, e sem entender nada de nada, só movendo um chisco os beiços para não passar vergonha…!” Parece que isto de se aborrecer na igreja não é nenhuma novidade; e se ainda por cima já tens aquilo mui visto, como deve de lhe passar a Narciso, pois não fica outro
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remédio que o tomar com paciência. E a paciência não era precisamente o que lhe sobrava por aquele então a Dom Narciso. Sobrar, sobrar, há quem diz que o único que lhe sobravam eram as armas; é que… onde se viu outra…? A alguns vizinhos parecelhes mentira que a Guardia Civil não tenha feito algo, saber bem que o sabem, porque uma cousa é fazer o cego, e outra querernos fazer cegos a todos. Houve vezes que a sacou mesmo na presença deles, e eles foramse para outro lado. Como ainda lembram todos os que estavam presentes na antiga escola de Ameixinhas (lugar que não deve ser confundido com Ameixeiras) aquele domingo de eleições. Narciso cumpria coa sua obriga, ele no fundo sabia mais que muitos o que tinha que fazer mas não encontrava o jeito, e ainda por riba agora coa bebedela tudo se lhe punha anuviado… mas contudo ele cumpria co seu dever e antes de dizer a missa sequer, ia votar. E isso que bem reganho que lhe dava porque, como toda a gente sabe, no concelho de Os Mouros tudo está sempre amarrado; évos este um concelho onde, se se me apura, há mais caciques que gente. Ele o caso é que aquele dia as cobrejantes estradas andam transitadas polas furgonetas carregadoras dos votantes; vazio irá detrás o autocarro oficial. Há quem diz que uma vez dentro da dekauve lhe dão à gente o boletim para que saibam por quem têm que votar; há quem diz que lhe cambiam a que levam se não é do partido deles… Mas isso nem sequer teria sido preciso, Os Mouros e a sua comarca andam ainda enraizados nos hábitos tradicionais e de todos é sabido que o intercâmbio é a chave de toda interacção social. Se o voto fosse secreto toda a gente poderia ir votar sem medo, mas ele que vai ser! Todos sabem a quem dá um o voto, e sendo assim, pois não o vais dar a câmbio de nada e que pensem que tu és parvo, pois logo… aí vai o boletim… vá a câmbio doutra cousa que me deste, ou fizeste, ou hásde dar ou fazer… e senão para que nabiça ia um ir lá tocar a chanca. Nos Mouros contamse cos dedos duma mão os que votam só para escolher representantes, e ainda te sobram dedos. O voto de Narciso tampouco é secreto para ninguém, e não é porque a Igreja se presente às eleições, ou que ele fosse a votarlhes; ele é um homem de ideias e ainda que vista os hábitos as ideias não as perde. Os outros curas tampouco as perdem e o domingo desde o púlpito sagrado muitos deles fazem propaganda, nem proibições nem o caralho. E todos, ao sair da missa, direitinhos a lhe votar
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àquele que disse o abade. Ora Narciso não é como os outros e por isso as cousas não se lhe arranjam. Mira que já lho dizia sua mãe “filho, não faças isso… olha que na terra dos lobos há que uivar como eles” mas a Narciso não se lhe dobra a língua para uivar como os outros, e anda o homem só e meio calado. Aquele dia das eleições, e logo de introduzir o sobre co boletim polo buraco da urna, sacou Narciso a pistola e em presença de todos os da mesa e muitos outros que havia, apontoulhe à caixinha transparente, na que já se viam três ou quatro furgonetas de votos, e enquanto os canos da sua arma roçavam o metacrilato dissera: “arranjaivos, que senão arranjovos eu!” Mas os papelinhos seguiram ali pousados tão inertes como antes; e uma vez mais os votos, apesar da advertência de Narciso, não se arranjaram. Aquela vez dizse que há quem viu como a parelha da Guardia Civil saía da casinhola para não ter que o ver. A Guardia Civil só andava ali para que ninguém não fosse depois dizer o que não era; e que não fossem vir logo a denunciar aos honrados trabalhadores das furgonetas por darlhes o boletim aos que carrejavam. Os guardas civis eram testemunhas do bom transcorrer e da normalidade com que a gente entrava, só, e quase sempre polo seu próprio pé, e votava. E nem seria cousa com jeito ter que prender o cura, e isso em domingo e tudo, e sem ter permissão, e…, deixa andar! E assim foram passando os meses e os anos, e as eleições…, e mas não vale... Aquela noite fizeraselhe mui curta a Narciso, e até teve que ser avisado polos companheiros de que eram horas de ir parando. Desde a devassa que sobe em direito das touças, tudo para acima, até a Regueira Funda, que vai ter ao pé do Penedo do Leão, podia ver como a Estrelinha do Luzeiro pestanejava em presencia daquela claridade que queria vir; e os três homens apuraramse a esconder tudo e irse bulindo asinha. * * * Logo de deixar a Ciro, co seu fio de fumo ainda seguindolhe, os detectives detiveram o carro a meio caminho entre a Coanheira e a Lajeira, perto dum souto de castanheiros, e baixaram andando polas poulas. Em chegando perto das casas do Eiró avistaram uma mulher que andava apanhado Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 53
verças numa horta rente ao caminho, pola parte de abaixo. Era uma mulher já metida em anos, pequeneira, pouco mais levantava que as verças nas que depenicava uma folha aqui e outra acolá, com tino de não deixar umas covelheiras mais despidas que outras; se a viram logo foi polo contraste da cor. Vestia toda inteira de preto, com excepção dum avental riscado, um desses que se cingem à cintura com uns arrebites que atam cara atrás. A mulher erguera a olhada quando sentiu o carro e viu como dous desconhecidos baixavam campo abaixo; quando viu que eles se achegavam à sua mera, botou a apanhar nas verças fazendo como se não os vira… – Bons dias, senhora. – Buenosdias… – Olhe, nós vimos de Ourense e estamos interessados em qualquer informação que nos possa dar sobre um assunto que se passou… O homem seguiu falando e acrescentou nova informação, mas a tia Maria não escutou além dessa primeira frase. Na cabeça da mulher ressoaram fortes as palavras: “Ourense”… “interessados”… “assunto que se passou”… e co zunido dos ecoares dessas poderosas palavras não pôde ouvir mais nada; e isso que ela para andar nos noventa e tantos anos ouvia bem. – Olhem, eu soulhes velha e já não sirvo mais que para apanhar aqui duas verças para o caldo… – Não, se nós não queremos que você faça nada, nós só queremos informação sobre uma pia… se você nos pudesse responder a umas perguntas… De novo esse ressoar aboujador das palavras que, ressaltando elas, acovilham as outras, deixandoas assim escangalhadas por entre as perneiras das verças: “queremos informação”… “responder”… “perguntas”… – Mas olhem o que lhes vou dizer, aqui neste lugar, coma nos outros da sua comarca, que têm ido a menos nos últimos tempos e já não hã tanta gente como havia dantes… que vai haver! Se aqui eram polo menos oitenta os vizinhos de jugada e agora ficam dous com vacas, e isso poucas… mas agora levase mais o ter ovelhas. Ai, quem o diria algum dia! Essa Veiga cheia de vacas e Deus te livre de que entrasse ali uma ovelha, e agora…
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A Maria decatouse dos acenos de impaciência que os homens manifestavam sem querer e apurouse a acrescentar: – …pois bem, ainda assim e tudo, há gente que entende algo, eu não sirvo para nada…, dês que um vai velho só serve para ir passando o tempo que lhe puder restar. – Sim, senhora, entendemos bem o que nos quer dizer e sabemos que quando um vai para velho a memória vai indo a menos e… A Maria não aguardou que o detective rematara o discurso sobre as fraquezas da memória, e não perdeu tempo em agarrarse àquela palavra como o náufrago a um canhoto, e apurouse a dizer : – Isso é…, a memória não lhe me serve para nada…, olhem lá…! Hoje à manhã quando me ergui,… cedo porque eu não gosto de estar à preguiça esperta na cama, de perder o tempo na cama não gosto nadinha…, homem se estivéssemos no inverno ainda tinha um passe… pode um estar ali quente até que esteja o lume aceso, mas agora neste tempo que vai bom… pois não gosto de lacazanear e ergome cedo… Pois verão, quando me ergui almocei, e agora se mo perguntassem não lhe saberia dizer o que comi, ou o que não…, ainda que eu, desde há muitos anos sempre almoço o mesmo; mas desde que um vai velho já não che é o mesmo…; desde que um tem o caminho andado não vale…, quem fosse novo outra vez e sabendo o que sabe…! – Pois ainda não é você tão velha, e seguro que sabe mais do que você pensa… “Sabe”… “sabe”… “sabe”…, que teimosos eram aqueles dous! Melhor dito um, o mais velho, porque o mais moço ainda não desfechara a boca… – E eu que vou saber, eu não lhes sei nada, se dantes deica pouco não íamos à escola, e ademais só havia o Catón e o Silabario, como vamos nós saber… não, não, nós como quem diz não sabemos nada, perguntemlhe vocês aos novos que esses agora lêem muito nos livros e não é milagre que saibam, co tempo que lhe dedicam não fazem favor; mas uma já não serve para falar coa gente…, uma só serve para ir chouchando enquanto Deus o quiser. – Depois havemos de ir falar coa gente nova do lugar mas primeiro queríamos que você nos dissesse se sabe algo relativo a uma pia que desapareceu…
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– Não, eu não lhes sei nada da pia que desapareceu, ademais disso há tantos anos que qualquer se vai acordar agora … – Então você… acordase? – Eu? Eu como me lhe heide acordar…! Aos meus anos! Foram vocês os que o mencioram trazendo a cousa ao rego, e não eu…, eu já não se pode um fiar do que se acorda e do que não. Agora nós, chegado este tempo, que pouco nos resta já por andar, só servimos para estorvar…, estorvar e dar trabalho. Os agentes insistiram e insistiram mas não puderam tirar cousa com jeito daquela conversa. Amolados por não obter muita mais informação que da primeira, foramse rua fora caminho do Eiró. Bem que lhes amargou deixar a velha com as suas verças mas nem fazia jeito forçála muito, ao cabo ela parecia algo confusa, e quem sabe, se calhar era certo que lhe não defendia muito a memória. Contudo e isso eles tiveram que bulir de ali co rabo entre as pernas, ou como se diz por Penacova… “saiulhes a porca furada” O agente mais novo parecia não alvoriçarse muito; andava ele algo distraído olhando para a paisagem que neste lugar parecia sobrar por todos os lados. Ele viera de Barcelona destinado a Ourense uma temporada, e ainda andava o homem tentando entender a língua e mais a paisagem, ambas as duas cousas irmãs na estranheza para ele. Coa língua já se ia defendendo na cidade, mas quando chegou a esta aldeia compreendeu de que tinha que afundar algo mais, encontrava muitas palavras que não tinha jeito de acotegar no seu delgado dicionário; mas ele insistia e co passo do tempo havia de ir aprendendo. Palavras e carvalhos, assim tudo revolto, verde e são, entravam polos seus saturados sentidos e iam fazendo o seu efeito; “sim homem, sim, se o que faz falta é querer…”; e a ele vontade não lhe faltava, foi por isso que quando se decidiu a vir desde a beira do Mediterrâneo pensou que de seguro as similitudes do galego co seu catalão natal lhe facilitaria a sua adquisição, polo menos à primeira. Claro que quiçá lhe teria sido melhor ir um chisco mais arriba no território galego, digamos por exemplo à Corunha; ora, se calhar ir ali não lhe servia para os seus propósitos de adquirição da língua. Dizse que muitos habitantes daquela cidade, apesar de passarem a vida inteira nela, não conseguiam aprender nunca, logo a escolha não fora tão má como pudesse parecer. Ourense, e em particular esta zona da Raia, tem um jeito de falar bem
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diferenciado, e às vezes custavalhe entender o que dizia a gente ainda que fosse sabendo o que queriam dizer as palavras. Olha o catalão, para que logo nos venham dizendo que são… o que não são… Já gostaria eu de que outros, mesmo alguns de dentro da casa, fossem…, eu bem me entendo. Entrementes, a tia Maria seguia na horta: “por sorte marcharam… pensei que não me dava livrado deles, que dianhos andarão a procurar,… e mira que virme cá com isso da pia… como que alguém vai ser tão inocente de lhes crer que andam interessados pola pia… a mim não me enferram, alguma outra cousa terão tramada… e claro, não lho vão dizer assim a qualquer; pois logo de mim tampouco vão levar muito…” A tia Maria, como a maioria das viúvas e outras pessoas que passam muito tempo em soidade, tinha o são costume de falar só… De que outro jeito ia senão ela escutar a voz humana? E certo é que quando uma fica viúva por muito tempo estranha tanto a voz do companheiro, e estranha tanto a voz de dentro… A Maria havia já tempo que se afizera a escutar só a sua voz, e por isso não era fácil que agora alguém chegasse e lhe fizesse dizer o que ela não quer só por não dar aturado os devezos de falar. Se os agentes tivessem ficado por ali acochados perto do cadabulho da horta, teriam escutado o que a Maria acabou dizendo sobre da pia; porque já que lhe lembraram a cousa ela aproveitoua para manter a sua conversa, pois certo é que quando um conversa só custalhe mais encontrar temas sobre dos que falar. Mas os agentes tinham tanto apuro por encontrar informantes que não puderam perder nenhum do seu precioso tempo espreitando a uma velha. Ademais, se alguém os via, que ia pensar? E como iam eles adivinhar que ela falava só? Consequentemente os dous homens recolheram as suas ânsias de saber e foramse rua abaixo; ali no meio do lugar toparamse com gente mais nova. * * * Estas noites de lua cheia eram de grande ajuda para os três homens, que assim não tinham que alumiarse cos faróis nem passar medo de ser descobertos. Os medos que eles traziam, em particular os de Narciso, eramche bem outros, bem não escuros e frios. Os temores que se rebuliam dentro do Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 57
peito de Narciso vinhamlhe da sua cabecinha, pois por aquele solitário Zebreiro lobos dos que amedrontarse já não havia. Mas apesar da muita luz que a lua derramava na devassa pola que eles subiam, aquelas noites foram as mais negras, as mais escuras e criminais para Narciso. Ele via como aquele homem, ou crego, que protagonizava o seu passado, andava já sempre desencarreirado. Era a sua uma cruzada perdida e mal levada por ele. Agora já só em contra dos caciques da zona. Não ficava nunca claro, nem sequer para ele, quanta gente caía dentro dessa categoria. De seguro que ademais dos clássicos, os de toda a vida, os que toda a gente pode distinguir polos seus traços identificadores: bem mantidos, soberbos, e com mal gosto para quase todo, especialmente para vestir, Dom Narciso também incluía entre os caciques contra os que erguera aquele combate de falares incendiários, aos inspectores de granjas de UTECO e aos guardas civis retirados. Cada quando que ele agora se topava com um desses, montava um cristo verdadeiro. Às vezes até saca a sua arma e então a cousa vai piorando. E claro, viase vir a desgraça. Agora até no sagrado se enfrentava a estes indivíduos, para ele indesejáveis; mais dum, seica farto de o ouvir, faz por evitar todo o possível contacto que os possa pôr num compromisso. Apesar do cautelosos que se volveram alguns, particularmente para não dar que dizer, há vezes que a ocasião requer a presença dum. Como lhe passou ao Saturnino no enterro da sua tia em Ameixeiras. O sobrinho da Hermesinda era um dos caciquinhos de pouca monta repudiados por Narciso, um desses que entre outros têm o ofício de carregador de furgoneta no dia das eleições; felizmente, vivendo noutra freguesia eram mínimas as ocasiões nas que se cruzavam ele e o abade. Mas morreu a Hermesinda e o tal sobrinho não teve outro remédio que assistir ao funeral que tinha lugar em Ameixeiras. Já estava a defunta no sagrado, pronta a entrar na igreja, quando por entre as caras dos ali presentes avistou Narciso ao cacique. Interrompe os “ora pro nobis” e os “secula seculorum” e algo rosnou baixinho. Depois começou a dizer que a Hermesinda era uma ateia que nunca lhe ia à missa e que não deveria ter sepultura no sagrado... E ele é certo que a Hermesinda ultimamente não assistira com frequência a cumprir coa sua obriga do domingo, mas por razões que lho impediam, pois desde fazia já
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algum tempo ficara a mulher tolheita de tudo, e não lhe valiam as pernas para nada, quase não se podia mover. O Narciso não pára de rosnar e rosnar, e os vizinhos surpreendidos por aquele despropósito não sabem o que hãode fazer e olham uns para os outros até que finalmente todos os olhares se dirigem ao sobrinho da defunta, ao Saturnino, para ver que é o que se faz, pois ele é o mais achegado dos da gente dela. A Hermesinda tivera um filho de viúva mas morreralhe e agora só lhe ficava uma irmã e o sobrinho para defender o seu nome. Aquelas tantas olhadas acurralam o Saturnino, e mais que ajudálo põemno cara ao precipício. Não tem outro remédio que obrigar o abade a que cumpra co seu dever de sacerdote. E assim, com essa determinação, começa a caminhar em direito ao abade, enquanto a cara se lhe vai acendendo polo reganho e a vergonha que já são inevitáveis, e dizlhe que aquilo ele não o permite, e que será polas boas ou polas más, mas ele enterra a defunta. Então foi quando o Narciso tirou a arma do peto e apontou ao Saturnino enquanto lhe dizia: “se te moves metote um tiro” O Saturnino ficou cravado no chão como um espeque e o encarnado da cara trocouse em céreo. Narciso seguelhe apontando enquanto lhe diz que não se apure, que ele não quer matálo, só pretende capálo, e por isso lhe vai tirar aos colhões. Nesse momento todas as olhadas vêem como, efectivamente, a inclinação dos canos do nove largo indicam que a bala, de sair disparada, passaria por essa zona de entrepernas, mesmo onde se juntam as brilhas e se decolgam as partes. Alguns dos presentes, que não gostam do caciquinho, sorriem, e para os seus adentros, bem que se alegram do que ali se está a armar. Mas ninguém abre a boca, e a cousa continua. Narciso segue coa teima de que ele à velha não a enterra e que em vez disso lhe vai enterrar um cacho ali ao sobrinho, um cacho que lhe sobra porque ele não é homem nem é nada… Aquilo semelha estancado e mesmo parece que vai durar eternamente. Alguns pacificadores começam de falar… “que remate co enterro e logo depois já terá tempo de lhe arranjar lá as contas ao sobrinho…” mas nada, Narciso segue na sua postura e apontando ao Saturnino. Estava tão atento ao que se passava por diante dos seus olhos que não se apercebe de que por detrás se lhe vai arrimando um homem, um guarda civil retirado, vizinho do Saturnino, e até amigo dele.
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O guarda retirado, acostumado a actuar pola sua conta e sem permissão de ninguém, decide então meterlhe uma punhada ao cura no braço co que aponta, para ver se solta a pistola. Todos viram como o braço de Narciso baixava e a arma se disparava. Um homem caiu ao chão, todos pensam que está morto. A bala, trás passar por entre os joelhos do Saturnino, foi bater no pé do João, um moço de Penacova que estava ali no enterro como o resto dos vizinhos. Ao João levaramno à urgência e tudo ficou em nada, a bala não lhe causara mais do que uma ferida leve. Aquilo parecialhes aos que o atenderam um milagre… o projéctil atravessara o artelho e não causara nenhum dano nem em osso nem em ligamento nenhum. O João volveu logo para a casa sem rancores para ninguém: “Ele a mim não me tirava, foi sem querer”. Ao João não lhe fizeram assinar nenhuma declaração, mas aquilo não livraria a Narciso do castigo. Narciso foi levado num furgão da Guardia Civil, dizse que os chamou o colega retirado, o encarregado de lhe meter a punhada afortunada… A reitoral onde morava o Narciso foi esquadrinhada e por fim soubese a verdade sobre a lenda das armas; já sorriem os que assim o antecipavam: em casa de Narciso havia muitas armas de Deus, ademais das pistolas havia escopetas e rifles e até uma metralhadora. Os refistoleiros dizem que só de munições encheram uma teiga, que de enchêla de grão levaria uns treze quilos. Ninguém parece alegrarse, excepto o guarda civil e o cacique, do que lhe passou a Narciso. Uns dizem que o pobre está tolo, outros que se foi da bebida… e todos parecem estar de acordo em que se alguém tomara medidas antes, isto não teria porquê ter passado, já que tanto o bispo como as autoridades estavam informadas das andanças do cura. As gentes de Ameixeiras, o mesmo que os das freguesias vizinhas, sabem que a eles ninguém lhes faz caso até que algo que já não tem remédio se passa… “Pois anda que não estava toda a gente sabida do que se passava e do que não” Agora andam todos os da freguesia à espreita a ver o que fazem co crego… “Para aqui que não se lhes ocorra mandálo outra vez”, dizem alguns; “já verás que pouco dura no cárcere”, dizem outros; “coitado homem”, dizem os mais deles. Não, a gente não queria a Narciso de volta, um homem que faz essas cousas, ainda que seja por causa do álcool, não serve para cura. Com este
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acontecimento, e outros do mesmo estilo, as gentes de por aqui já aprenderam a fazerse escolhidas, e depois disso têmse visto abades rejeitados por alguma freguesia. Como lhe passou ao Laruças da Boulhoeira. A cousa vinha passando dês que o Aurélio, que era o pároco de Penacova e outra freguesia daí abaixo, tolejara de tudo e tiveram que o substituir; à primeira viera Dom Narciso a dizer algumas missas, se calhar cada quinze dias ou assim, pois o homem não dava feito. Depois, quando se passou o que se passou no enterro da Hermesinda, pois claro, já não pôde vir mais o Narciso e daquela o bispo quis mandar o Laruças. Então foi quando os vizinhos de Penacova, especialmente uma mulher que vai muito à missa, se revolveram como as cobras. Telefonaram ao bispo desde o locutório da taberna, onde estava o único telefone que havia daquela, e asseguraramlhe que se vinha o tal da Boulhoeira já podia estar preparado porque ninguém lhe iria à missa; e claro, o bispo não se atreveu e mandou a esse rapaz que há agora. Narciso fora detido e julgado num santiamém. Meteramno no psiquiátrico, pois somente a tolémia podia justificar o fazer da Igreja naquele assunto, e só a loucura podia dissimular um chisco a ençoufada face desta instituição, que por certo, não anda ela lá mui limpa por este lado da terra. Sem contar a sotana do Cacholas de Vilarinho, que vai sempre emporcalhada, nem os costumes do Laruças de arrepanhar o que não é dele nem de Deus, ficam, e ficarão, outras muitas cousas por limpar e aclarar. Por exemplo, que feito foi dos altares da igreja de Penacova. Quando o Aurélio, o abade desta freguesia, que por certo viera corrido a pedradas da de Medouchos – ainda que aqui isto tardou em se saber –, pois quando ele levou os altares disse que os ia queimar ali no pátio da reitoral de Aguins, a outra freguesia da que também se encarregava. Mas ninguém cheirara ao ardido, nem vira bafeirada de fumo nenhum… daquela ainda não estava tão tolo como para destruir coas chamas aquela beleza; tolo pôsse depois, e não é milagre, de novo um fálas mas depois, de velho, pagaas. É certo que aquelas colunas torneadas cos seus cangalhos de uvas, e santinhos, e mil chinguilinadas, precisavam um repasso. Os dourados já diziam grises, e os prateados não se distinguiam das manchas de humidade. Precisavam que alguém lhes botara uma mão, mas não assim. O Aurélio pediralhes aos homens de Penacova que lhe ajudaram a carregálos
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num carro e leválos à reitoral de Aguins. Primeiro seica fizera contas de enterrálos, mas logo se se desenterrassem seria um escândalo, e disse que melhor os queimaria, que era ainda mais fácil. O que fez ou não fez só ele o sabe. Por conseguinte o de Narciso já chovia sobre molhado e o próprio bispo era conforme com colhêlo e confinálo…, ora não no cárcere, que isso diz mui mal. Melhor que seja um tolo: vamos, asinha a crucificálo. E assim foi como o Narciso se encontrou naquele psiquiátrico. Ali soube que era um doente e que iam a tratálo, mas a ele já tanto lhe tinha. Primeiro viria a desintoxicação do álcool: coa ajuda dumas pílulas e umas injecções nem se aperceberia de que lhe faltava o vinho. E era certo, o Narciso andava à primeira como um fantasma adormecido polos andares daquela residência. Depois, pouco a pouco, foi espertando um algo, mas seica não tem mostrado muitos devezos de se recuperar. Os doutores parecem não dar co cerne da sua loucura, mas também lhes está custando encontrar indícios que lhes permitam confirmar que já está bem e soltálo. Tudo isto mantêmno secreto os batasbrancas e dizse que andam algo danados por não dar entendido o que é que lhe passa a Dom Narciso; porque parecer parece um tolo, mas depois não parece que o seja deveras. Entretanto, no Zebreiro as lembranças iam empurrando a Dom Narciso monte arriba, tal que um cavalo, caminho da Fonte da Cunca. Parecialhe que já não tinha mais nada para tirar do saco escuro dos miolos, porém não sentia o homem alívio nenhum; nem lhe parecia que aquela nova possessão, ou reconstrução, ou como quer que se lhe chame, o levasse a sítio nenhum. Ali apegado àquela pia seguia ele, e mesmo se tinha figurado que porventura era tudo um sonho e que agora co susto, onde houvera um disparo e tudo, teria acordado… Mas não era assim, e sabia que teria de seguir algo mais naquele caminho nocturno. Como um condenado que não conhece a duração do seu castigo, assim se sentia Narciso. E que madurecido andava! Já não sabia em que lado afincar o pinho para turrar daquele chedeiro tão carregado. Em ambos ombros tinha esfoladuras que já lhe levantaram a pele mais duma vez… as fêveras do seu coiro passaram nalguma ocasião a se fundir coas do tecido do lenço da camisa. As maniotas iamse acumulando umas por riba das outras; aquela era uma dor física impossível de aturar, e às vezes viase o homem na
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obriga de se esconder como se fosse um animal e com ambas as mãos sujeitar bem o pinho e apoiálo no lombo dobrado, e mesmo na cabeça. Quando chegou ao alto, mesmo ao pé da fonte, soltou o pinho e decatouse de que aquela fora a sua última jornada na dianteira, já não podia mais. Ele seguiria às voltas coa carga, ora para o pinho já não lhe davam os fôlegos. Deixouse cair ao longo da fonte, co olhar no céu estrelado. A terceira lua estava pronta a começar, e ele seguia sem muita clareza, fora ou dentro. Os três homens tiveram quase meia noite de descanso e tempo para saciar as suas sedes e cumprir co ritual de dar de beber à pia; depois esconderam a vida que levavam e deixaram o Zebreiro até a noite seguinte. Aquela última subida escorricharalhes as forças a todos, por sorte amanhã começaria o descenso, e bem seguro que seria mais fácil. Mas isso seria amanhã. * * * O diário Nuestra Región leva vários dias sem oferecer cousa com jeito sobre o tema não resolvido da pia. Tudo se vai em bons desejos, mas sem nada que aportar aos seus leitores. Assim, alguns, devecidos polas novas que não chegam, começaram a mandar notas de protesta à redacção do jornal, acusandoos de falta de formalidade; porque ora nem se menciona o tema ora se se trata é de jeito casqueiro, pouco sério. Algumas das cartas recebidas nos seus escritórios parece que levam mui má raça, segundo os comentários do próprio jornal, e não merecem ser arejadas na sua publicação. O diário afirma que se alguém tem algo positivo e de ajuda, que o pode comunicar, e se não é assim, que não lhes façam perder o tempo. Contudo e isso a gente segue a vêlas vir sem nada fiável sobre assunto que nos concerne e preocupa. Contudo, os da cidade velha seguem coa sua dança de infrutuosas reuniões e não saem disso, não dandolhe a Nuestra Región nem sequer uma escusa para seguir falando deles tão sequer, e tampouco é cousa de lhe botar a culpa ao jornal por não nos oferecer informação do bem que esta organização resolve as suas diferenças. Não se pode fazer notícia se não se tem algum indício, ainda que seja mínimo, ainda que seja mentira… mas algo, sobre o que Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 63
criar. A verdade seja dita, nem estes da cidade velha, nem as autoridades, lhe estão facilitando nada a Nuestra Región a sua tarefa informativa.
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Capítulo III
A FONTE DA CUNCA Apesar do descanso, que bem merecido tinha, Narciso seguia meio arrelado das costas; custavalhe um nada endireitar o martirizado sarriço, e o coiro da parte alta do corpo seguia encetado em vários sítios. Mas não era essa terrível dor física a que trazia o homem revolvido, não, o que lhe remexia nas suas entranhas surdia da escuridão que ainda sentia rebolir lá dentro. Narciso sabia que tinha de seguir aquela andaina, mas não sabia para onde se devia dirigir. Foi assim como se decatou de que lhe chegara a hora de soltar aquele temão que até agora levara. Não, a Narciso já não lhe valiam as forças para o pinho, polo que quando naquela primeira noite desta terceira lua nova trataram de se pôr ao caminho, o Narciso recuou da dianteira e situouse atrás da roda esquerda. O Perfeuto RachaPedras dum brinco apoderouse da dianteira, decatandose assim ele, e anunciando co seu gesto, de que lhe chegara a ele a rolda. Desde a Fonte da Cunca até a Veiga, onde encontrarão o quarto manancial, tudo será baixar. O RachaPedras terá um fácil começo, aqui no alto, e até passar do Penedo do Leão a pendente não será nada pronunciada, o que lhe ajudará a começar com bom pé a sua andaina. Aos três homens lhes amargava ter que deixar aquele recanto da Cunca. É esta uma fonte singular, à que quiçá seria mais adequado chamar fontes, porque sai em duas cochas separadas, mas à que toda a gente se refere como fonte porque ambas têm idêntica água. Ambas as duas de pedra, uma quadrada e a outra circular, mas as duas com água de idênticas propriedades. Precisamente polas qualidades que se lhe atribuem recebe o seu segundo nome: Fonte da Fame. Todo aquele que sofre por falta ou merma de apetite não tem mais que beber um golo destas águas e aí mesmo se lhe abre, e as Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 65
ganas, por mui bicofurado que um for, são mais grandes que nunca. Darlhes aos cativos de beber destas águas de quando em vez está considerado o melhor remédio contra os maus hábitos alimentares que costumam ter as crianças. Já se sabe que a água toda desgasta: “a água lavra o caminho, e não como o vinho, que sabe no focinho”. Ora, o desta fonte saise dos lindes do comum. Um jeito de comprovar os poderes destas águas é botar um coiro duro nelas e aguardar; de ali a um pedaço o coiro começa de amolecer e vaise pondo esbrancujado como se estivesse entrecozido. Para os de Penacova este método, sendo objectivo e portanto livre do efeito da possível sugestibilidade, é a evidência definitiva das qualidades medicinais destas águas. Porque a gente de Penacova, que não é parva, bem sabe que depois de subir desde a aldeia até o alto caminhando, vemlhes a fome até às pedras, e por isso a cousa podia ser enganosa. Ora, co método do coiro, que háde ser de jamão bem curado, não fica dúvida nenhuma. Para maior deleite desta riqueza transparente construiuse uma mesa cos seus bancos de pedra e até uma forninha para poder assar ali se se quiser. Ora que, na frescura daquele monte, como comer de seco não há, e o que mais presta é o jamão co pão centeio. A mesa e a fornalheira são bonitos adornos de pedra, e atraem às gentes de fora se por ali ligara que viessem, que por certo não é este o caso. Estes três homens da pia foram os únicos visitantes forasteiros em subirem lá acima durante a corrente primavera, e quem sabe se os últimos. Contudo, eles, após o seu descanso e logo de saciar a sede da pia, colheram o andante para o Sudeste, caminho da Veiga. O Perfeuto vai na cabeceira, e os outros dous detrás de ambas as rodas. O Alcaide vai sumido numa quase inexistência, ambos os outros, embebidos lá nas suas cousas, não lhe fazem muito caso. Por um lado Narciso parece como se hoje andara algo ausente; e o Perfeuto, em contraste, vai bem esperto e ágil, mesmo semelha que o espírito que lhe falta aos seus companheiros ele lho tirara. Salta por cima de carpaços, uzeiras, carquejas e mais tojos, ou o que se ponha por diante, com um passo bem ligeiro. Os outros dous fazem o que podem, ora mais que ajudar dirseia que ainda o freiam, mas o Perfeuto não se apercebe e segue coa sua marcha acelerada rodeira abaixo. Ao Perfeuto RachaPedras havia mui poucas
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cousas que o frearam, ele era homem botado para diante. Nisso ele não saíra a seu pai, que era acovardado e pouco homem. Ainda quando viera o tremor da terra lá polo ano sessenta e nove, creu que eram os ladrões que lhe andavam às voltas coas entradas da casa para lhe roubar o dinheiro que aquele mesmo dia fizera coa venda duma almalha. O homenzinho sentou na cama e tremendo como um junco, marelinho, ali ficou diante da sua mulher envergonhada, até que um vizinho, trás ouvir os berros, lhes acudiu. Mas o Perfeuto não herdara aquela habilidade do seu pai de se pôr amarelo e de tremer; ele era tudo o contrário, um homem acendido e de prontos bravos. E ainda que aquela raça que ele tinha não lhe vinha mal a cotio, alguma que outra vez também o metia nalguma leia. De rapaz ele já se tinha por valente e outros mais velhos não se atreviam a importunálo. E bem leda que se sentia a sua mãe, mesmo se lhe enchia a boca ao falar no valor do seu filho. Era aquela uma mulher de falar fácil e sem cancelas, e às vezes dizia mais do que, se quadra, era adequado. Dês que o Perfeuto foi garoto, logo de cumprir nove anos ou dez, ela via nele a um homem; e foi por aquele então quando começara a dizer, diante de quem for, que agora na sua casa já havia um homem, mas que o tivera que parir ela. O coitado do marido, que não era tão coitado, pois por diante calava e fazia que ria a broma mas logo depois seica lhas fazia pagar caras… que ele bom tampouco não che era…, não era, não, que ia ser, senão que lhe perguntem ao Perfeuto polas marcas que as vergalhadas da correia do seu pai lhe deixaram muitas vezes no lombo… Claro que muito tempo isto não durou porque o Perfeuto fezse homem asinha e repunhase cara ao pai, que pouco a pouco se foi apoucando; mas antes de se fazer o rapaz grande muita malheira lhe meteu o seu pai. Contam os vizinhos que uma vez até o atou com uma corda como se fosse um animalzinho, bem rente para que não pudesse burlar as vergalhadas, e depois brigou nele até que um vizinho lhe acudiu e lho tirou... “Mas tu seica viraste tolo, deixa o rapaz que ainda vais fazer uma desgraça!” A mãe do Perfeuto muitas vezes nem se decatava, mas tampouco pensava ela que aquilo fosse tão mau… “A poder de golpes aprendem até as pedras”. Por consequência o rapaz teve de aprender asinha a se defender. Praticava muito malhando noutros rapazes da aldeia, um pequeno lugar perto de Ginzo. Isto
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trazia os vizinhos quase sempre de mal coa família. A dizer verdade a família do Perfeuto RachaPedras nunca se levou bem de todo co resto dos vizinhos do lugar. O pai do Perfeuto, ao que lhe diziam Hermínio, o pobre já morreu, viera casar ali coa Balbina, a que foi a mãe do Perfeuto, Deus os perdoe. O Hermínio já trazia com ele a alcunha de RachaPedras quando veio aqui casar, e assim lhe ficou a este filho mais velho. Dizse que a alprecha lhe vinha dum avó, quem também se tivera que valer da sua manha coas pedras para ganhar um jornal aí nas canteiras do Montefurado, co que seica o Perfeuto guarda muita semelhança; ainda que isto mui em contra da Balbina, que sempre se arranja para lhe encontrar parecido cos dela. Ora os da gente dela vinham tirando a ruivos e de olhos garços, enquanto que o Perfeuto, e mesmo o seu pai, eram morouchos e de pêlo algo crencho. Ele polo que for, esta família nunca assentou completamente, e de quando em vez levantavam o voo e marchavam. Passaram muitos anos em Alemanha e alguns outros em Barcelona. Às vezes retornavam como se fossem ficar na aldeia para sempre de vizinhos e de ali a nada preparavam a bagagem e… botalhe um cão ao rastro! Foram tendo filhos e deixandoos por aí espargidos num sítio e noutro trabalhando, enquanto eles seguiam coa sua movedela de cá para lá até que morreram os velhos, que tanto ele quanto ela nunca o foram; morreram sendo mui novos. Os filhos partiram o capital, que andava meio à poula, e aqui só volveu o Perfeuto para se encarregar da vida dos RachaPedras; e assim foi como ficou coa lavrada, e mais coa alcunha da família. O Perfeuto leva o pinho com tanta celeridade que aos outros dous até lhes custa dálo seguido. Dom Narciso já caiu num fachonco um par de vezes, e para o pouco que pode ajudar coa carga tampouco vai ir a matacavalos. O Alcaide, já farto de ter que correr, sentou dum brinco na traseira do chedeiro e vai ali trás da pia fazendo de contrapeso, que como é costa abaixo não vem mal de todo. O Perfeuto segue baixando caminho do Penedo do Leão, alheio aos andares dos que vêm na traseira; leva a cabeça algo quente de tanto pensamento descontrolado que lhe traz a soidade do pinho. As suas lembranças andam aos brincos, escolhendo algo aqui e algo acolá para lho trazer à cabeça, e isto causalhe muito desassossego. Porquê não será capaz de ver com clareza certas cousas que pensa que lhe têm passado. Como essa
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imagem persistente que se lhe apresenta subitamente e não dá tirado do sentido. Vê a sua irmã com cinco ou seis anos, deitada no patamar do vizinho… acochada num saco como se fosse um cãozinho, assim ali a dormir. Ele teria então sete anos, se os tinha, e não entendia mui bem o que se passava em casa; como é que a Esperança estava ali a dormir na escada dos vizinhos? Agora enquanto puxa do pinho apercebese do mal que tiveram de passar de meninhos… e a pobre Esperança sempre com tanto medo… ela escondiase quando pensava que o seu pai lhe queria bater, e depois ele fechavalhe a porta e deixavaa fora toda a noite. E a mãe? Porquê não lhe acudia à meninha? E o Perfeuto vai lembrando como a sua mãe gostava da aguardente, e às vezes tinhaa visto deitada no escano co garrafão ao lado, parecia estar dormida mas o certo é que estava borracha. Pobre Esperancinha! – pensa agora o Perfeuto, enquanto lembra aquela vez que a sua mãe não estava, dizse que fora visitar a um primo que andava para morrer, ou algo assim lhes disseram a eles – O caso foi que a sua mãe passou uns quantos dias fora da casa. Durante aqueles dias eles passaram muita fome, fome e medo. Houve vezes de o seu pai marchar para fora e não volver no dia, nem para o seguinte; alguns dizem que tinha uma amiga lá na Ribeira, e que aproveitava a ausência da mulher para ir onda ela. Ele quando o pai marchava, como era algo tacanho, deixavalhes tudo fechado com chave e os coitados não tinham nem um zarapulho de pão para levar à boca. Recorriam a tudo, alguma vez escondiam batatas no palheiro da erva ou no combarro da lenha, assegurandose de que o pai não as pudesse topar, senão… Ainda assim, havia vezes nas que passavam o dia quase inteiro sem comer; em mais duma ocasião tiveram os dous meninhos que baixar caminhando até ao rio e varrer a roda do moínho para fazer umas papinhas ou uma bica do testo e não esmorecer. Mentes estas dolorosas lembranças andam aos pinotes na cabeça do Perfeuto, ele fecha os olhos e segue andando sem muito controlo, e não se apercebe de que se saiu da rodeira e vai polos tojos abaixo, como levado do demo, nem sequer sente as picadelas nas canelas. Dom Narciso segue pola rodeira, e tem que botar uma carreirinha aos poucos para não despistarse dos companheiros. O Alcaide continua sentado na traseira do chedeiro, vai agarrado aos dous estadulhos de trás com ambas as mãos, e tudo lhe cumpre
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para não sair disparado polos brincos que dá o carreto. Desde a rodeira, o Narciso vê como a cabeça do Alcaide sobe e baixa como se se movesse aos saltos, e assim é, leva o cu como um pandeiro, mas dali não se move…, vá, que o levem! Narciso olha para o RachaPedras e quase se estremece, ele já se viu primeiro naquele pinho e conhece a força coa que é capaz de te manejar como um bonifrate; ele sabe da ligação coa que te jungem essas sogas invisíveis. Durante uns momentos ao Narciso vêmlhe ganas de ir lá e botarlhe uma mão, mas as aguilhoadas de dor que lhe chegam desde a parte das omoplatas fazemlhe engrunhar o focinho e desistir de tal ideia. Ademais ele já o levara a sua jeira, e agora tinha que deixar andar; afinal ele não sabia bem para onde tinha que tirar, e nem sequer daria andando ao passo do RachaPedras. Portanto decidiu, em total conformidade coas maçaduras do seu corpo, seguir pola rodeira. Isso sim, sem tirar os olhos de acima do Perfeuto. Aquele Perfeuto alheio ao seu entorno mais imediato, olhos fechados, canelas que não sentem o sangue que sai das tantas picadelas dos tojos, sem ouvir os gemidos do Alcaide que como um mostrengo segue a ser lançado arriba e abaixo no chedeiro. Aquele Perfeuto seguia o seu andar cara ao Penedo do Leão como um meninho que não sabe ter controlo, ou que realmente não o tem. Quando chegou ao pé do penedo parou, olhou para o céu e viu a Estrelinha do Luzeiro, como se lhe quisesse piscar o olho, e sem sequer reparar se os outros vinham detrás ou não marchouse. Os outros dous fizeram outro tanto e ali ficou a pia arrimada à base das pedras. Narciso foi o último em se marchar, em parte polo bocado que teve que andar desde a rodeira ao penedo. Só que aquele não era o Penedo do Leão; ao se saírem da rodeira vieram bater um pouco mais ao Leste e aqui onde chegaram não é o Leão senão as Fatigas. Se tivessem levantado a vista para a beira do penedo teriam visto um buraco na parte baixa da peneda que lá no alto assoma a jeito de solaina ou corredor. Desde abaixo aquele parece um simples furado na rocha, algo no que alguém passou o tempo, golpe vai e golpe vem na pedra. Às vezes no monte a gente, e ainda mais se anda um só e nem sequer tem com quem falar e muito menos jogar à porca, não dá passado o tempo e acode a cousas que o distraiam. Ora que se um se atreve de subir acima, e se tem o poder para o fazer, porque se precisa poder e manha para dar posto o pé do outro lado do
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furado, então o que vê é algo mais que um cocho que atravessa o penedo. Dizse que há tempo, quando estes montes andavam cheios de gado, os moços se dedicavam a ver quais deles eram capazes de subir e quais não; ainda estavam também os que não se atreviam de o tentar. As moças, de andar ali co gado, não se dedicavam a essas competições, ademais levando saia, tampouco parecia bem ensinar assim as pernas. Algumas seica subiam quando não havia homens por ali ao seu redor, então refuciam as saias para a cintura e brincavam polos penedos arriba. Quando se chega arriba, à primeira um esquecese de olhar para o buraco, desde o alto avistamse tantos vales e regatas e lugares… que um fica por um instante descolocado. Parece como se de súbito um estivesse noutro sítio. Depois, quando já se começam de distinguir os lindes do conhecido… ali anda A Boulhoeira, e Penalapa; por acolá fica Bande; ali o monte do Castro, e a Rousia, e o Larouco; lá em baixo anda a Límia, e… agora é quando um repara no buraco; e aí vem a surpresa que realmente desconcerta o curioso. O penedo não debalde se chama das Fatigas, quiçá pola sua feitura a jeito de carrelas ou fatigas de pão apoleiradas umas em riba das outras. O buraco está dentro do que semelha uma silhueta humana afundada na pedra do alto. A um supor, vem sendo uma marca como a que deixaria o corpo que se deitara na neve cos braços apegados, só que a marca está feita na pedra e portanto o que a lavrou fez algo mais que deitarse na dura rocha; ora, também é mais pequena que os corpos da gente de agora. Seica dizse que naquele lugar sacrificavam a gentes noutros tempos mais antigos, e que o buraco se fez para que por ele decorrera o sangue do que era ali cuinchado até que estinhava, e a lenda não diz mais nada. Por terse desviado da rodeira, os três homens amanhã terão que ir um nada de través, pois de passar polo Leão ninguém os háde livrar. * * * Uma leda nova fezse pública ontem nas páginas de Nuestra Región; na secção de ecos de sociedade informasenos de que o senhor aquele adinheirado, sim, esse que anda a querer fazer uma obra benéfica e que se vê obrigado a demorála e demorála, pois seica topou uma moça e anda o Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 71
homem mais feliz que um aparvado. Ele já fora casado mas agora, por razões que o jornal não entra a detalhar, morava só. Dizse que até parece mais novo, para aí vinte anos, agora parece o pai da moça e não o avó, como antes. O que conta é que ele agora namorou e é feliz, e o demais sãoche lérias. Desde o jornal mandamlhes os parabéns a ele e a essa beleza que vai apegada a ele tal que uma lapa. Num apartado no que o jornal recolhe notícias de há cem anos, lêse como este diário fazia público o anúncio da próxima corrida de lobos que se está a preparar lá nos montes do Zebreiro, que ficam na freguesia de Penacova, bem ao sul desta província, mesmo nos lindes do Couto Misto. Também se diz que os vizinhos de Penacova andam já a reparar em se as paredes estão prontas para a corrida; a eles o que lhes importa é que venha muita gente e liquidar a uma boa cheia de feras, que por ali não as precisam. A notícia estava escrita num castelhano ortopédico que não desmerece do que Nuestra Región usa na actualidade. * * * Aquela noite, quando se juntaram os homens da pia, olharamse por um instante e mesmo semelhava que se quiseram botar a falar, mas não fizeram tal, e seguiram calados; calados como eles são. O Perfeuto pensou que quiçá teria gostado de dizer que sentia têlos desviado do caminho, mas as condenadas das palavras não só não saíam senão que se tornavam para adentro e faziamno rabear; faziamno sentir torpe e parvo como um meninho, felizmente aquilo não durava muito. Cada vez que isto sucede ele põese da cor da cereja e com essa pujança colhe o pinho e arranca sem esperar por ninguém. O Narciso quis dizer que aguardara, “…que te ajudamos” mas calou; ademais cumpriamlhe as forças para dar andado. O Alcaide, sem imutarse, meteu uma carreirinha, e dum brinco saltou ao carro, tomaralhe gosto a ir sentado e que o levassem. Narciso apurou o passo e foi a correr ao seu posto e arrimando o seu esfolado ombreiro fez o que pôde. Numa ocasião em que se parou o carro, Narciso aproveitou para lhe meter um empurrão ao Alcaide e botálo abaixo. Pilharao descuidado e fêlo cair ao chão como um saco. Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 72
Ergueuse pronto e resmungando colocouse na roda que lhe tocava. Aquele estrume polo que agora cruzavam, que havia já tempo que teria agradecido que o gadanhote o roçara, transportou ao Perfeuto a outra noite passada em que ele e outro rapaz, andariam nos treze anos, lhe entraram a roubar os coelhos a uns vizinhos da aldeia do lado. O Perfeuto, afeito a terse que desfazer da fome, aprendera logo a dar co jeito de topar comida. E naquela corte dos Carrascos havia mais coelhos que os que puder haver hoje na melhor granja. Eles foramse lá de noite quando os dous velhos dormiam e arramplaram co que puderam dar apanhado, quatro coelhos polo menos bem levaram. Aqueles dous velhos, aos que a dentadura já não lhes defendia grande cousa, eram de pouca ração, e os coelhos inçavam e inçavam que não havia quem os dera controlado. Por conseguinte, quase lhes fizeram favor, porque aqueles velhos orgulhosos, que se tinham por ricos, não queriam vender o que tanto lhes sobrava. Aquela noite o Perfeutinho, como lhe chamava a sua avó, andou às apalpadelas, às escuras pola corte adiante, na procura daqueles bichos que fugiam como raios; nas mãos levou bem picadelas dos tojos, mas valer a pena… quem sabe, se calhar valeulhe. Agora enquanto cruza o Zebreiro e se pica nas canelas quase quer arrependerse das mais das cousas que fez; mas já se sabe… ele era novo, e o juízo não lhe chegava… quem não ia desculpálo? Uma vez entre ele e outro, igual era o mesmo que lhe ajudou no dos coelhos, convenceram a uma velha que andava canda eles no monte co gado, de que eles tinham um remédio para curar as verrugas. A pobre da velhinha, que em inocente não tinha quem lhe ganhasse, disse que sim, que os deixava que o tentaram, porque estava já mui farta de padecer por causa daquelas verrugas que tanto lhe afeavam as mãos. Já até se oferecera ao São Bentinho. Um deles pegou na mulher para que parara enquanto o outro, trás queimar no lume um cacho duma polaina, lhe ia pingando o plástico derretido no coiro verruguento. Os berros que a mulherzinha meteu aboujaram até os penedos que os fizeram ressoar aqui e acolá, chegando até à aldeia, e dizse que dês que ela faltou, anos mais tarde, os berros se volveram a escutar alguma vez. Às vezes o Perfeuto senteos de noite na cama e acovilhase coas mantas pola cabeça, mas os berros persistem e não se marcham até que se cansam. Porquê lhe tardara tanto em vir a ele o juízo? Todas as lembranças parecem
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desagradáveis, e ele devece por agarrarse a algo que seja mais prazenteiro. Como aquela vez que se emborcalhara com uma moça no lameiro. Tudo começara como um jogo de rapazes, andar às emborcalhinhas campo abaixo. Primeiro botavase um e depois o outro e assim iam rodando até o fundo tendo tino de não bater coa cabeça numa pedra das do caminho. Que bem o estavam a passar, riamse como tolinhos, e a subir arriba e aos rolos outra vez para abaixo. À primeira ele aguardava a que ela chegara ao fundo para logo ele botarse; mas pouco a pouco foi adiantando a sua saída até irem quase juntos. Tal foi assim que agora iam quase apegados e os seus corpos alguma vez se roçavam; isto começou de o acender e numa das vezes pilhou à moça por baixo e ali mesmo a forçou sem atender as suas súplicas. A verdade é que a ele custavalhe entender como se passara tudo, ele não tinha planos de botarse assim à rapariga, ele teria quinze anos e experiência em como aturar certos pulos, pouca, ou nenhuma. Ela era do tempo dele mas aquele dia sentirase avelhentada, como se alguém de súpeto lhe roubara a sua infância; roubaralha e esconderalha para sempre num sítio secreto; um sítio ao que ela já não daria jamais chegado, o sítio onde se guardam os sonhos, um sítio para o que ela tem já o caminho borrado. E desde agora em diante terá que ver mui bem com quem anda, e velarse mais dos homens, forem desconhecidos ou não. Quando ele rematou aquele jogo, ao que já só ele jogava, liscou de ali asinha e deixoua só, deitada na erva à beira dos salgueiros. Este fugir a correr seguia sendo o modo de actuar do Perfeuto, liscar e não olhar para trás. Se aquela vez tivesse torcido a cabeça e mirado, teria visto como as bágoas caíam em fio polas meixelas da Ana, e talvez o sofrer dela reflectiria no dele, a modo de espelho que obriga a deixar que a luz fure pola menina do olho; e quiçá… Mas não, ele era teimoso naquele seu jeito de dar a volta e bulir asinha; nisso guardava parecido co jazer familiar, acovilhar o lixo que não praz contemplar e desaparecer; e acordar num sítio novo, um sítio limpo. Onde um é um desconhecido e nada nem ninguém tem a habilidade de reflectir cousa nenhuma. Ai, que bem se respira o ar que não sai das ventas das conhecias! Mágoa só é que esta ficção não dure, e sem um o querer sequer logo essa familiaridade das cousas fálo volver a um ao seu, volver ao rego, e não há maneira… só fugir de novo aprazará o ferro ardente nas carnes curtidas, só
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fugir te leva a um lugar onde tu ainda pensas que podes descobrir um eu novo, o teu eu livre, o verdadeiro. Mas o Perfeuto não planeia as suas escapadelas, não, a ele apresentamselhe como a única alternativa possível, e portanto sem uma possibilidade real de eleição. Logo então para que lhe iam servir os remorsos, se ele era inocente, vítima dum capricho do destino que o maneja? Não, o Perfeuto não mirava para trás, detrás só concebe sombras, sombras e mais sombras, e as vezes os berros da velhinha à que queimaram a mão co plástico ardendo. Que bem se sentia ele quando se achegava à fria pedra da pia para escondêla no escuro. Aquela pedra não lhe reflectia nada negro dele, e ali junto a ela não sentia os berros que o faziam taparse pola cabeça no leito, entrementes a sua mulher, que é algo coitada, não diz nada quando sente que ele se converteu em novelo e quiçá até ande a tremer. Ela cala. A Virtudes depreendeu a estar no seu sítio, a ouvir e engolir sem dizer nada. Ela sente algo de mágoa quando o vê assim, a boa mãe que leva dentro gostaria de acarinhálo e ao passo frear o desacougo que lhe causa o sofrimento alheio. Ela, como o resto das mulheres, foi bem ensinada para curar dos demais… com mensagens, que como agulhas, se lhe foram espetando desde pequeninha: “Cuida ali do teu irmão, que fica só… Limpalhe os mocos ao pequeno, que lhe chegam ao focinho… Fazlhe a cama ao teu primo, que senão não dorme a gosto à noite… Lavalhe o pano das mãos a teu tio, que é solteiro e não tem quem o governe… Coselhe as calças ao outro… Levalhe tantinho leite ali a tal ou qual… Vai por tantinha água fresca à fonte para que almoce teu pai”… E quando foste medrando a cousa não melhorou senão ao revés… Ir a seitura, e andar lá brigando como eles, ao limite do teu poder, depois volves à pressa para lhe ajudar à tua mãe co jantar… levar tudo à mesa, e mais servilos, e a retirálo todo, e esfregar bem a louça coa água fria que primeiro hás de ir procurar à fonte… e agora corre ao poço enquanto eles botam a sesta aí na sombra da figueira; e tu ainda tens tempo de lhe pôr sabão a uma tina de roupa… e vamos, deluva bem as calças contra o lavadoiro de pedra para que amoleça… esfrega duro e bule asinha em rematar, não vês que já chama por ti tua mãe…? A correr para as leiras que a seitura já volveu começar… e tu vais e senteste bem porque lhe adiantaste o trabalho a tua mãe que cos pequeninhos não dá feito… e toda a tarde andas na sega e à noite
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volves para a casa malhada como o que mais… e volta a ajudar coa ceia… e a acomodar os porcos e as vacas… e eia, a carrejar água e lenha para amanhã, que ainda não há butano para cozinhar… e ajuda a tua mãe a deitar os pequeninhos e se ainda te sobra tempo, que não ganas, repassa essas meias que tem comesto o calcanhar… E pouco a pouco o fitar que descobre onde é que se te precisa vaise alargando e alargando até que te excede, abrange tal que em ti não cabe… tanto, que sai de ti e se mete nos demais… e eles, conhecedores disso, tirarão dos fios invisíveis e porão em marcha a marioneta em que te tens convertido, e ti afanaráste em cuidar de tudo e de todos e dos que estarão por vir… E vaiste vendo no que eles te devolvem, no que te manifestam,… e ti quereslhes agradar e até te pintas os beiços de encarnado… Pensas em todos e te esqueces sempre de alguém, de ti… não tens tempo de olharte no espelho da tua alma e ver ao ser humano que também tu levas dentro, que sofre, que sente, o que trazes tão descuidado e que quer dizer que não,… ou que sim, ou o que lhe dê na gana… Mas a Virtudes tardará muito, demasiado, em contemplarse neste espelho e segue sem poder ver nela nada, e cala, e segue velando na noite até que ele enfim se destapa e ronca forte. A Virtudes faz tudo o que for preciso com tal de não enraivar ao seu homem, tudo é pouco se com isso se pode evitar o peso da sua mão. Ele é muito forte, e não é que o faça por mal, que nem sequer se apercebe do sofrer dela. Ele não se apercebe de nada. Que novinhos casaram! Ela cumprira os dezasseis, e ele já viera de Alemanha, com aquelas cadeias de ouro que por aqui ninguém levava, alguns chamavamlhes chocalhos polo desconforme do tamanho, e ela deixouse engaiolar. E a cousa vai indo, e a Virtudes sempre alegre, e até sente que ele a ama, e quem sabe, talvez ele, ao seu jeito, sim que a ama e não o sabe sequer. Este homem sabe tão poucas cousas, e às vezes as que sabe nem pode exprimilas; se alguém lhe oferecera um canistrelo de palavras que ele pudesse ir escolhendo e gastando sem temor a ficar em branco. Mas que bem se sentia ali onde a pia, muda pedra centenária que como ele ouvia e calava. Aquelas duas noites que lhes levou ir das Fatigas ao Leão fizeramselhe a ele mui curtas, quiçá porque o pedaço não era mui grande, ou porque os outros ajudaram mais, ou porque… que sei eu! Ele como for, o Perfeuto encontrouse
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no pé do penedo sem decatarse do esforço que lhe custara. De aqui em diante, e até baixar a Currelo, por debaixo da Cabana, a pendente vai ir medrando e a cousa não lhe vai ser tão voluntária; mas isso não será agora, e que bem que a Estrelinha do Luzeiro aguardara a que chegaram até o Penedo do Leão para apagarse. Agora sim, agora havia que marchar. O Perfeuto e mais o Alcaide marcharam primeiro. Dom Narciso, deixandose levar polo cansaço e a tentação que lhe oferecia o sítio, sentou no chão e estirou as costas magoadas contra o penedo. A frescura da pedra fezlhe chegar um alivio lá mui adentro, depois desfechou os olhos e viu no céu uma luz cintilante que vinha direitinha ao alto do penedo no que ele estava recostado. Trás do sobressalto inicial Narciso pensou que se tratava duma estrela que antes de que rematasse a noite ainda queria que alguém a vira botarse. Ora Dom Narciso, como tantas outras vezes, não podia estar mais enganado. Pois ainda que ele o ignorava, aquele penedo, o do Leão, era o sítio ao que chegavam os martelos que do Castelo da Rainha Loba se lançavam. Os penedos da Rainha Loba custodiam a outra beira de Penacova, eles lá ergueitos. Se o Narciso tivesse querido, ou se sequer tivesse manifestado algo de interesse, as gentes de Penacova poderlheiam ter contado… que agora já não se passava, mas que em tempos as gentes que moravam pola zona do Leste, como estavam os mais altos e de tudo se apercebiam primeiro que ninguém, quando viam que se achegava o inimigo, lançavam um martelo que ia dando voltas polo ar e atravessava todos estes vales até bater no altinho do Penedo do Leão, e deste jeito avisavam a todos os moradores do Zebreiro. As histórias não dizem nada de que os martelos se usassem para avisar do outro lado também. Semelha que os perigos vieram sempre por esse lado, o da Límia, o de…onde agora fica a Castela… e nunca polo da Raia. Como quer que fosse, o dos martelos caiu em desuso e agora já só sobe a gente lá aos penedos da Rainha Loba para ver o mundo desde o alto e para colher cacos de olas de barro escachadas polas mãos dos nossos antepassados. Pouco a pouco estas gentes que habitavam todas e cada uma destas fragas foram reduzindo os lugares onde assentavam, e de sete passaram a quatro, e logo à última juntaramse todos no que hoje se chama Penacova. Prova disto são os nomes que ainda se usam para designar a estes montes. Há para aí três sítios distintos
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que recebem o nome de Cemitério, lá no meio do monte, e se ali cavas, saem os ossos dos que foram os nossos antepassados. Outro sítio chamase a Igreja, e outro pertinho a Missa, e assim se poderia seguir até aborrecer a um santo. Ademais a estas cousas já ninguém lhes dá importância, e como ia um cura perder o seu santo tempo escutando essas parvadas? Narciso era um homem pragmático, e de martelos, por aqueles tempos, só entendia quando os via debuxados ao lado duma fouce, ou se ligava que tiver que trabalhar com eles para fazer algum arranjo na casa. Não, a Dom Narciso chegavalhe com pensar que aquela fora uma estrela que chegara ao fim da sua viagem polo espaço celeste e que a ele lhe tocara ver a sua derradeira luz. Se Narciso tivesse sido um homem mais religioso, quiçá teria visto a silhueta dum santo que desde o céu o iluminava para lhe ensinar o bom caminho. Ora Dom Narciso era parente dos ateus, e portanto um romântico, um sonhador, e aquele dia marchou contente.
* * * No apartado de ecos de sociedade contanos Nuestra Región, como parece que o senhor adinheirado, ao que não estaria mal de todo que chamássemos Benigno, visto que outro nome não lhe temos e esse não parece casar mal coa sua pessoa, organizou uma viagem de noivos para ele e a sua amiguinha polas terras do Caribe… “Olha lá como gosta de passear o peneireiro …” mais dum ainda háde estourar pola inveja, como se o velho lhe tivesse a culpa. Homem, casar dizse que não casaram por não sei que miudalho de uns papéis que ainda tem assinados coa sua mulher, Hortênsia. Polo que dizem, à rapariga tanto lhe tem casar como não… se vê que o dela é um amor cego, ou sabe Deus se não tem outras manhas para ir mungindo o velho. Ou porventura o Benigno, que parvo de tudo não háde ser, pois mirai para aí como juntou riquezas onde outros juntaram fomes, não se acaba de fiar das intenções da mocinha e vailhe fazendo lérias e concessões mas sem passar polo altar, nem assentar no livro sequer, não for que depois ela se lhe marche, pois não seria a primeira vez que isso se passa. Afinal, cada um negoceia como Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 78
sabe, ou co que pode. E quem não te diz a ti as cousas que eles não cavilarão para os seus adentros? O jornal manifesta o seu contento pola felicidade do senhor Benigno e só lhe magoa que não casara, e a poder ser na Igreja. E é que já se sabe que Nuestra Región lhe tem muito ‘aquele’ ao fulano. A que ainda vai resultar que este caráfio de Benigno lhes unta a fraldiqueira? Tanta graxa que lhe dão…, já cheira! * * * Esta noite Dom Narciso chegou em primeiro e teve tempo para reviver a sensação prazenteira que lhe deixara a noite passada, nunca antes vira ele tão próxima, nem tão intensa a luz duma estrela. Dom Narciso, apesar das suas revelações interiores, ainda não tinha achado acoito nos seus adentros mais profundos, mas semelhavaselhe a ele que ultimamente tinha melhores habilidades para captar a boa essência das cousas… Quando chegaram os outros dous, a um tempo ainda que por caminhos separados, ele já estava de pé direito onde a pia e preparado. O Perfeuto vinha sério tal que capador quando está coas mãos na massa. O Alcaide, como sempre, nem se sabe. Pola calada, como era o seu costume, ocuparam os seus postos, e só a voz de Narciso rompeu o cerco do silêncio: “Ânimo companheiros, que seguimos costa abaixo!” O silêncio dos outros devolveulhe a Narciso as suas próprias palavras. Puseramse ao caminho, a costa abaixo era algo de bimbarreira nalgumas partes e os dous de atrás em lugar de puxar tiravam polas pontas do sedenho, e assim freavam algo a carga, não fosse esmagar ao de diante. Ali seguia o Perfeuto, tratando de manter a calma entrementes se lhe vinha o mundo em cima. Igualzinho que sentira quando chegara à Alemanha, sendo ele já rapazolo. Daquela, sofrera polo silêncio que amuralhavam todas aquelas palavras em língua estranha. Ele estava afeito aos falares da sua língua conhecida, que quando lhe entrava nos miolos não maçava como sim o faziam aquelas palavras alemãs. Por sorte aquela estadia durara só uns anos, não muitos, ora que a ele lhe pareceram bem longos. De ali foram a Barcelona e aquilo era outra cousa. Ele seguia sem entender as palavras, mas as melodias do catalão eramche menos estranhas e não lhe faziam estourar a cabeça. Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 79
O da Alemanha fora muito, ele ainda hoje recorda com terror quando a polícia quase deteve ao seu pai porque o amo dera queixas dele. O seu pai trabalhava numa fábrica de não sei que cousa, ele com dizerte que quando entravam à manhã pola porta, ainda que fosse no inverno, já se tinham que despir aí mesmo e a suor já lhes começava a cair, eravos demais, saíam de ali derretidos, não me estranha que todos morreram novos. Ele como quer que fosse o dono daqueles fornos deu conta do Hermínio. A cousa se passou durante um fimdesemana em que o Hermínio andava a trabalhar nos jardins da casa do seu chefe, como a cotio fazia. E vá casaria que tinha o amo daquela fábrica, só de terreno ao redor poderseiam sementar mais de três tegas de pão se o lavrassem, que não era esse o proveito que lhe tiravam. Eles tinhamno todo coberto de erva, e com plantinhas agarradas ao chão perto da casa, e outras mais grandes por aqui e por acolá, e árvores de muitas classes. O pai do Perfeuto cuidava de toda aquela vida nos finsdesemana: segava a erva e empacavaa com uma máquina pequeninha, apanhava as folhas e metiaas em sacos de papel que tinham folhinhas debuxadas por fora, decotava as árvores quando lhe mandavam… e assim o Hermínio apanhava algo mais de paga. O mau veio quando apanhou mais do que lhe era dado. E não é que ele roubasse ao amo, polo menos na casa não o fazia, ainda que tivesse a falta, que a tinha, não ia ser tão parvo. Não, o que a ele o perdeu foi arrepanhar uns coelhinhos que por ali passeavam. Como ia o homem saber que aos da casa não lhes incomodava que lhe pasceram no seu campo, e lho deixassem todo lixoso… tanto como eles gostavam da limpeza? Até pensou que lhe faria favor se lhos caçava. E que maneira de lho pagar, botandolhe a polícia, que quase lhe houve de custar um desgosto! Foi assim deste jeito como aprendeu que aqueles coelhos, ainda que não fossem de ninguém, deviam ser respeitados. E ainda por sorte quando chegou a polícia estava ali um de Mogueimes, um tal Servando, que sabia algo de alemão, e foi o que lhe valeu, que senão co balbuciamento de espanhol dos polícias alemães e mais o do Hermínio, quem sabe a que se armaria. Pois claro, contudo e isso, o pai do Perfeuto ficou sem trabalho e uma vez mais encheram as malas co enxoval e meteramse num autocarro rumo a Barcelona. Todos tão contentes, ali tão sequer poderiam caçar coelhos. Enquanto empurrava na pia o Perfeuto lembrou os muitos
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coelhos que ele pilhara naqueles montes de Penacova enquanto teve ali a canteira. Apanhou quantos pôde, e assim desquitouse polos que não pôde papar por culpa dos alemães. Sempre a culpa háde ser de alguém; grande como o demo e mais não tem quem a queira de gana. Por certo o Perfeuto não sentia nenhuma atracção por ela; e isso que ele fizera das dele, e tinha motivos para querêla. No dos coelhos fez alguma que outra falcatrua. Por exemplo, ele não diferenciava entre tempo de caça ou de veda, para ele era tudo o mesmo. Ele andava por aqueles montes das fraldas da Rainha Loba e apanhava quanto coelhinho havia. Punha laços a moreias, ainda que estivesse proibido, para ele não o estava. Metia o furão nas toqueiras para que botara ao coelho para fora, e depois com um saco esperavao na boca da entrada para que se metesse no fardel, e a golpes contra o penedo o matava. Cos laços pilhou teixugos, raposos, javalis, e tudo o que cair neles; a ele tanto lhe tinha com tal de ver algo ali atrapado à manhã. E agora enquanto se acorda disso parece que sente como um amargor na gorja, não gosta de sentir isso e cospe, e o amargor convertese em carraspeira que se estende por toda a goela e obrigao a tossir, mas nada, aquilo segue ali. Felizmente a Estrelinha do Luzeiro resgatouo de ter que seguir a pensar. Chegaram quase a Currelo, mesmo à beira do caminho que une Penacova e Gomesende. Desde este ponto podese já adivinhar lá no pé do Laspedo a Fonte de Requeijo, aquele é o seu próximo destino. Não semelha longe já, ainda que eles ignoram o sítio, terão tempo avondo para chegarem antes de que se esgote o que lhes resta de lua. Marcharam, ora primeiro de partir, o Perfeuto tossiu e tossiu, e quase trousa ali a figadeira. O Alcaide já colhera o caminho, e o Narciso demorouse ali um nada, quedo, afincado na parede dum lameiro; olhou um pedaço para o céu mas vendo que não vinha nenhuma luz a o despedir marchou, marchou co seu andar devagar. * * * …Quando os dous agentes, logo de deixar à tia Maria coas suas verças, foram rua abaixo para o meio do lugar, toparamse com um moço que levava um sacho no ombreiro. Sem saber se vem ou vai, eles achegaramse a ele e, como sempre, foi o mais velho o que encetou a conversa. Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 81
– Bons dias rapaz, para onde vais? – Bons dias… vou pra aí! Polo tom do rapaz deduziram que a ele não lhe amargava a conversa. E estavam no certo, em particular quando a conversa era com gentes que vieram de fora da contorna; e eles semelhavam de muito mais acolá. – Refirome a que se vais a trabalhar para algum lado. – Homem, se lhe parece o sacho levoo assim de atavio no ombreiro… que pergunta…! E ademais, quem o quer saber? – Nós vimos de Ourense e andamos tratando de esclarecer um assunto relacionado com uma pia que houve noutrora neste lugar… O rapaz sorriu como pensando “olha os chalados estes”, afincou o sacho no chão enquanto espreitava o que os outros falavam, depois disse: – Olhem que se se vão fiar do que dizem que houve em tempos neste lugar, vão vocês arranjados…! vão, ho, digolho eu! – Homem, não digo eu que vá crer o que possam dizer as histórias populares, mas o da pia não é conto nenhum, que para isso estão os papéis que registram o feito. – Os papéis? Pois vá, como se os papéis soubessem o que vai neles. Se vamos a isso também logo há que crer que o Senhor Santiago andou montado no seu cavalo polos penedos da Rainha Loba adiante matando mouros. – Homem…! Não me irás tu comparar uma lenda, ainda que eu disto que dizes nunca ouvi nada, com um feito histórico constatável. – Eu não lhe sei mui bem de feitos constatáveis, mas se quer provas suba você ao Castelo da Rainha Loba e veja cos seus próprios olhos as marcas das pegadas do cavalo polas rochas arriba. – Homem! Não me quererás tu dizer que crês que o cavalo pôde deixar as pegadas marcadas na rocha? – Mas… por quem me toma? Como lhe vou eu dizer isso, nem que fosse um parvo! Eu não creio nada de nada, se não me engano são vocês os que andam a indagar sobre alguma dessas trapalhadas. O agente que levava a carga daquela conversa começava a mostrar acenos de impaciência. Não podia ser, uma vez mais estava indo a cousa rumo a nenhures e àquelas horas da manhã já pouca gente, quem não andara no seu
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labor, poderiam topar. Aquele rapaz parecia não devecer por marchar a onde é que fosse, e mesmo semelhava que gostava daquela visita dos forasteiros. Ele sempre ali enterrado na aldeia cos de sempre, tanto quanto ele gostava da gente que souber falar doutros mundos,… mas estes dous pareciam meio parvos, mira que andar interessandose por essas cousas do passado! – Mira rapaz, tu és novo e não aprendeste ainda a ver com clareza a diferença que há entre as lendas propriamente ditas e os feitos históricos. – Pois porquê não mo explica você, que parece estar bem informado? – Mira, uma lenda é um dito popular que a gente repete e repete de geração em geração, mas sem que exista nada que demostre que isso se passara de verdade, entendes…? – Percebo. – …E um feito histórico é uma cousa que aconteceu, talvez há também muitos anos, da que temos uma prova irrefutável que demostra que se passou de verdade; compreendes? Vês agora a diferença? – Doume conta, mas não sei se colhi bem a diferença. Vejamos: segundo você, ante um feito que ocorreu, passar o tempo que passar desde então, se o que assim o viu ocorrer o escreveu num papel, é que a cousa foi certa e se passou de verdade; ora, se o que fez foi graválo numa pedra então é que não foi certo, e pode têlo inventado; não sim? – Pois vá que tens tu uma maneira estranha de misturar as cousas. Mira, não tem nada que ver uma cousa coa outra; podes crerme porque é assim, digocho eu. – Eu poderia crêlo, mas só porque você o diz, que parece que algo sabe, e tão sequer não é de por aqui; mas se tanto sabe, porquê lhe preocupam parvalhadas sobre uma pia da que por certo eu não ouvi falar na minha vida, e bem pudesse ser uma lenda como a do Senhor Santiago? Quem lhe diz a você que o da pia não é inventado? Porque a mim, se lhe heide dizer a verdade, não me lembra nada. Naquele momento o detective fez um cálculo rápido e decatouse de que sem dúvida a pia fora sacada da igreja de Penacova anos antes de nascer aquele rapaz. E que seguramente ele já recebera as águas baptismais na nova. Que era uma pia distinta; mas desta nova cunca, com base de ferros negros e rodinhas,
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que devem de ser de adorno pois no chão de lousas não roucham, não sabia muito o detective, já que jamais a tinha visto; quando eles olharam desde o átrio para adentro polas vidraças não a viram; claro, co pequena e pouca cousa que é, não é milagre. O que sim imaginaram, e com razão, é que ali haveria, em vez da original, uma pia substituta, por ruim que puder ser. Porque tampouco era o caso que por causa da avarenta natureza dos abades se fosse deixar à gentinha sem baptizar ou sem poder molhar os dedos para fazer o porlaseñal. Mas o detective não sabia como era esta substituta; não sabia da sua cor gris e esbrancujada, como parida polo cimento e mais a areia, o que amiúde faz parecer que a água se enlourara, tingindose duma cor arruelada, e daquela à gente dálhe reparo meter ali a mão, por mui bendita que for… Para a água como a pedra não há, Deus sabe que fazem um matrimónio perfeito, mas aqui veio um cura e divorciouas. Mas este moço novo que nem sequer recebera as águas baptismais na pia de pedra, não sabia nada do assunto e tampouco se importava. É como se a água suja que lhe botaram pola cabeça abaixo o dia do seu baptizado lhe enturvara o sentido que lhe teria de vir. Ele já fora ensinado a valorar cousas que valham de verdade. Ele sabe mui bem o que quer e até dizse que já sabe onde procurálo. Qualquer dia colhe a mala e não volve até que o possa fazer como é devido… com um bom carro, bem equipado com aparelho musical, roupas de marca… e o que mandar a moda no momento. Ora que ele já sabe onde ir procurar tudo isso. Tem um irmão em Barcelona, que leva lá já bem anos, e se quadra vai parar onde ele; ou senão vai para Canárias, que seica se ganha bem. Este moço novo só aguarda o momento de partir, mas a paciência já não lhe aguardou, essa foiselhe há anos… A gente daqui vê como os seus filhos, passada a primeira infância, lhe são roubados sem poderem eles fazer nada, nada mais que deixálos marchar cos seus amos e calar. Dentro de pouco, este colherá os seus sonhos e quiçá saia voando. Cambiará o sacho pola pá e a erva polo cimento, e pouco a pouco irá conquistando essas cousinhas que agora tanto anseia possuir. E quiçá algum dia regresse à sua terra, e construirá uma casa. Levantará mui asinha as paredes com tijolos e cimento, esquecendose da pedra já para sempre… Mas para isto faltam anos e ele agora tem de ir sachar nas batatas que o que é de Deus não o háde levar o Demo.
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– Tu és mui novo, rapaz, e ainda che falta muito por aprender, mas a nós já se nos fez tarde e temos que pensar em irmonos indo. Ademais, tu não vais a algures com esse sacho? – A que algures heide ir, ó? A nenhures é a onde se pode ir aqui, que isto não vale nada. A olhada do rapaz parecia caída no chão, perto donde afincara o sacho desde o começo da conversa; mas ele não olhava ao chão, nem tão sequer o via, ele mirava longe, mui longe, tão longe que a sua olhada se perdia. Os dous agentes despediramse dele e marcharam de volta para o seu carro. Ambos os homens foram andando devagar e calados. Calados mas dizendo as cousas coas caras para os que com eles se cruzaram. Ninguém se cruzou. O mais velho levava um gesto que era a mistura da sua contrariedade e a mágoa; algo ambígua lhe resultaria a quem lha vira. Na cara do mais novo, Riba, que poucos mais anos tinha que o rapaz que acabavam de deixar, podiase ver a dor do que sente o sofrer dum irmão e não lhe pode valer; também há nessa cara um assomo de esperança como emanado dum conhecimento prévio, do conhecimento do que sabe que as cousas podem ser diferentes… Riba não perde a esperança para esta terra, que tão bonita, ainda que estranha, lhe parece. O rapaz colhera o sacho e com ele ao ombreiro marchara para… por aí. * * * Narciso seguia sendo o primeiro em chegar cada noite onde a pia, não se sabe se polo desacougo que lhe trouxera a primavera ou porque anda o homem buscando novas luzes ao amparo da escuridão e a soidade. Ele quando os outros chegam, no meio da noite negra, o Narciso já leva ali um bom bocado. Estas últimas jornadas têm sido algo monótonas; de quitado esse tossir que se lhe pôs a Perfeuto na gorja, e que parece não ter pressa de se lhe ir, tudo segue com normalidade. Os vales que andam a atravessar mostram, apesar da escuridão que obriga a adivinhar, uma beleza que reborda por onde quer… tudo florido e coberto duma erva que dá cem nomes à cor verde. Mágoa destas touças de Penacereija que se tornaram de cor preta; quando os homens saíram Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 85
para fora das carvalheiras olharamse as mãos riscadas polos tições ardidos, e vendo o cómicos que estavam quase lhes houvera de dar o riso se não lho congelara na face o saber que esses riscos eram o sinal da morte que o lume segara havia poucas semanas. Quem seria o bruto que foi capaz de atentar contra tanta beleza, trocandoa em luto poeirento e cinza. Dom Narciso odiava esta atitude arrasadora que tinham alguns homens; ele estava bem certo de que eram homens os que prendiam o lume. Ele não dava imaginado, por mais que o tentasse, a uma mulher causando tanta destruição. Para ele estes seres, jungidos mais rente à terra, vinculados a ela pola sua própria realidade cíclica, possuíam uma maior capacidade para suportar pacientemente as incomodidades e a lentidão que impõe a natureza e, por certo, não as via capazes de semelhante violência. E quem sabe? Porventura não lhe falta razão; mas para que serve esta análise, seja certa ou falsa? O Perfeuto também anda a pensar por culpa dos tições, ora, as suas cavilações são bem outras. E como não o hãode ser se aquela vez quase perde o carro por causa do lume…? E que mais tem quem o plantara! Ele precisava despejar os arredores daqueles penedos para poder rachar a pedra. O lume à pedra não lhe faz mal, pois logo quem vai andar levando trabalho a cortar nas carvalheiras e roçar o monte baixo que tanto abunda. Um fósforo faz o trabalho da limpa e depois ele racha a pedra. Sim, o Perfeuto usava com frequência o método da mecha e sempre lhe tinha dado bons resultados até aquele dia no que quase lhe custou um desgosto. Ele, como sempre, punha o lume quando tinha a canteira parada e assim ninguém lhe podia botar as culpas ainda que soubessem bem que fora ele … “Este lume foi prendido o domingo quando nós não estávamos aqui e por pouco nos arde o compressor, que não é o mesmo…” Alguma vez incluso deixavam que lhes ardesse alguma ferramenta que já não servia ou algum outro ferrancho para dissimular. E claro, a situação iase pondo cada vez mais negra, mas ninguém vira nunca cos seus olhos próprios ao Perfeuto co fósforo na rascadeira. Ora, que aquele dia que o lume se larejara tão asinha, houve de o assar como uma sardinha dentro da lata. Ele, para que ninguém o pudesse olhar desde a aldeia, escondia o automóvel arrimandoo bem dentro da rodeira entre a folhatada, e depois subia monte
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arriba para soltar a chispa. Depois baixava a escape e tinha tempo e tempo para marchar pola pista que sobe para ChãodeLamas sem que ninguém lhe pudesse seguir o rastro. Sempre lhe tinha saído o plano à perfeição, mas aquela vez ao raio do fotingo deuselhe por não querer acender, e ele volta que dálhe, e o ar que ia achegando o bruar da labareda. Ele começa de se pôr nervoso e olha lá para arriba e vê que as chamas galopam mui à pressa; e ainda que andam retiradas já se começam de sentir os estalos da madeira que se retorce ao ser abrasada. Também se podem já ver pássaros que vão daqui para acolá, magoados por não poder levar nos seus voares as crias pequerrechas do ninho… E ele ali atrapado na folhagem enquanto o inferno anda a baixar. Blasfema como ninguém podia fazêlo, da sua boca saem palavras que mesmo se poderia dizer que botam lume, mas de nada lhe servem. Não, ele não podia deixar que lhe ardera assim o auto e ainda por riba que se riram e o descobriram; portanto, como um animal rabioso empurrou e empurrou, e coa ajuda do terreno deu separado o veículo dos carvalhetes que estavam destinados às chamas; depois, já no caminho de terra batida, como havia algo de pendente, pôde arrancar o motor sem ter de usar a bateria, que parecia ser a fonte do problema. O Perfeuto liscou dali como um foguete e dizse que aquela vez aprendeu a sua lição e que nunca mais deixou o carro perto do lume. Ora bem, do lume seguiu fazendo uso, ele não vê nada mau em beneficiarse duma técnica de limpa que não lhe custa dinheiro nem lhe dá muito trabalho. Mesmo agora, se não fosse porque não vai só, e ademais não está mui seguro de rumo a onde teria que empontar as chamas, já teria usado o seu isqueiro por estes montes. Enquanto anda ele com estas incendiárias lembranças, trata de se acordar de qual foi a última vez que pôs lume. Dês que fechou a canteira já não precisa usar este método para abrirse caminho, e disto há já uns aninhos, polo que não dá encontrado o que busca na sua saturada cabeça. Com esses pensamentos traz o homem os miolos quentes e não se apercebe de que andam já pola Veiga fora; atrás, pola esquerda, ficou Guriz, e já estão no pedaço do cabo para chegar à Fonte de Requeijo. Quando quis acordar, já estava ali ao pé mesmo do pipel de pedra. O primeiro foi apagar a sede que levava e mais ver, enviando os golos com força, se isso que lhe fazia tossir se lhe tirava duma vez da gorja; ora por mais
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que bebeu o pruício seguiu no seu sítio. Os outros dous homens molharam também um nada e cumprindo o mandato deram água à fartura à sedenta pedra. Que bem sabia aquela água! E com aquele deleite cristalino ali ficaram quedos co seu silêncio. Dom Narciso espreitava o som da água que bulia rego abaixo para ir ao encontro do regueiro que a háde ir ajudando na sua travessia para o mar. O Perfeuto seguia co seu pensamento posto nos lumes que ele plantara, não acertava com adivinhar qual fora o último monte que fizera desaparecer, ou transformar de verde a preto. Cos dedos ia o homem contando lumes, como seguindo uma ordem cronológica guiada pola sua pobre memória, mas nada, acabaramselhe os dedos e não dá encadilhado à resposta que busca. Enfastiado polo desacougo que lhe causava não poder lembrar, marchou sem despedirse. Ninguém se surpreendeu. O Alcaide fez outro tanto. Dom Narciso ficou só e em silêncio por uns instantes, depois marchou a modinho e olhando para o céu. * * * No apartado de notícias de há cem anos, recolhese hoje em Nuestra Región o da corrida de lobos que se mencionara com anterioridade e que teve lugar o sábado e por certo seica foi um êxito completo. Mais de quinze lobos caíram no buraco, polo que a festa foi a rachar. Depois de encarar as animálias para o fojo e obrigálas a saltar para que fossem topar a morte lá no fundo do buraco, toda a gente baixou para a aldeia e a troula continuou até bem entrada a noite. Ora, como cabia esperar, sobre isto Nuestra Región não oferecia informação, nem comentário. A gente, tanto a da aldeia, quanto a que viera de fora, baixou para o lugar a montar a foliada. A maior parte do tempo passaramna na corte onde guarda o tio Manuel o boi. É um boi manso, e passa todo o tempo deitado lá num recanto remoendo ou comendo na erva que lhe sobrou no presel; de vez em quando olha para aos bailarins e segue no seu pacífico jazer. A gente dançou ao ritmo dos mesmos instrumentos que horas antes usaram para escorrentar as feras. Toda a gente gozou e se divertiu quanto quis. Houve alguma que levou a roca para dissimular a sua presença na corte, mas ali ninguém fiou. Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 88
Capítulo IV
A FONTE DE REQUEIJO Do meio e meio da terra vem nascer mesmo no pé do Laspedo. Lá como pode, fura entre as lajas da dura rocha e cai abaixo sobre outra pedra lisa que a modo de leito a recolhe e a agarima, para mui passeninhamente deixar sair a sobrante pola pipela a caminho do rio. Porque se chama Requeijo ninguém o sabe, mas não seria de estranhar que tivesse algo que ver coa esquisitice desta água. Nesta fonte, por estar ali na beira mesmo da Veiga, que se enche sempre de gado, toda a gente molha um nada à hora da merenda. Lá pola direita, um pouco mais abaixo, fica a Pedrosa, que é um monte baixo mui pelado e coberto todo de pedras. Mas não são estes uns pedregulhos escangalhados por ali onde quer; não, na maioria dos sítios as pedras topamse juntas e amoreadas, como acovilhando algo. Ninguém sabe o que ali há, nem o que ali se passou, se é que é certo que se passara. Só se diz que há muito tempo se enterrara ali a um general. O certo é que haverá por aí uns cinquenta anos um forasteiro adinheirado que viera de não se sabe onde encarregou ali umas escavações na procura de algo. Cavaram todos os homens de Penacova, e assim foram pagados, mas nada ali não saiu, e aquilo segue tudo empedrado. Os três homens da pia reconheciam, cada um para os seus adentros e pola calada, que aquela água tinha algo que lhe dava tal suavidade no paladar como nunca antes tiveram experimentado. Como o tempo lhes chegava – a lua nova ainda não se encetara – aquela noite parecia que não tinham pressa, e enquanto bebiam e davam água à pia repousaram à beira da fonte, coas costas afincadas na peneda que há em frente do manancial. Depois o Perfeuto, quando teve o seu corpo bem saciado e com reservas para a noite, colheu o pinho e pôsse ao caminho sem consultar a ninguém, como é o seu costume; os outros dous seguiramno e pouco a pouco tudo volveu à rotina de sempre. Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 89
Vão agora Lama abaixo e cruzando para onde fica o Penedo Esmigalhado; eles não hãode subir tão arriba, pois a rodeira vai por aqui mais à beira do regueiro. O Perfeuto hoje não parece que ande lá o homem com tantas pujanças como as que o outro dia lhe fizeram sair da rodeira e ir bater às Fatigas. Não, hoje vai ir polo caminho traçado sem afastarse mais que umas polegadas ali onde lhe faça falta para evitar que a roda vá ao buraco quando o houver. Parece que a tosse lhe foi a menos, mas não se lhe tirou completamente enquanto ele segue às voltas, também hoje, co assunto dos incêndios, e segue sem encontrar qual foi a sua última queima. De seguro que foi nos montes de Penacova. Ele montara aquela canteira com tantas ilusões… co dinheiro que ganhara na Alemanha mercou as máquinas que precisava para rebentar os penedos e um camião para carregar depois a pedra. Tudo começara bem. A pedra saíalhe quase debalde e as ganâncias engordavam como as vacas do moinheiro no inverno. Em menos dum ano já tinha comprado outro camião e pagava a quem o guiava. Nos salários também pouco se lhe ia, trazia homens do lado de lá da Raia sem papéis e nem seguro lhes pagava. Pouco a pouco, coa força destes homens mal pagados, a pedra iase transformando em dinheiro que se amoreava nas mãos do Perfeuto. Quando se acaba um penedo, pois venha lume e a arrancarlhe a alma ao monte, que aqui há muito que arramplar. Os vizinhos de Penacova, ainda que fartos polos estouros que não param em todo o dia e que salpicam a tranquilidade destas terras de sobressaltos inecessários, fizeram o que a cotio sabem fazer quando se trata de defenderse contra o mal que vem de fora… nada. Não fizeram nada. Um por ti e outro por mim foram passando a cousa e teve de ser o destino o que se encarregara do Perfeuto. E olha que lhe dava reganho ao Perfeuto ter que lembrar o mal que rematou o que tão bem principiara. Durante as noites que lhe levou chegar ao seguinte ponto no seu destino ele tentou com todas as suas forças evitar que lhe viessem à cabeça as lembranças dos acontecimentos que o levaram a ter de vender os camiões e mais as máquinas para dar pago aos advogados. Mas se por algo se caracteriza o Perfeuto é por saber arrumar assuntos e deixálos apodrecer ao seu antojo até que rebentam e então não há remédio; mas, por enquanto, a cousa vai indo
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mais ou menos pola calada e ele tenta levar a sua mente em branco, e vá se isso lhe ajuda a manterse na rodeira. Dom Narciso agradece aquela tranquilidade que até lhe permite de quando em vez levantar os olhos do húmido carroucho e voar montado no alto dos seus sonhos na procura das estrelas. Penacova quase sempre tem um céu limpo de nuvens nas noites da primavera, sobretudo quando entra o mês do São João. Desde onde andam hoje eles às voltas, as estrelas poderseiam contar por milheiros e nunca se daria rematado. Pouco mais se vê que o amplo espaço celeste que os cobre a modo de manto negro e prateado, e depois o grande pano vai caindo e vai morrendo lá na borda onde se junta cos montes que debuxam ondulado o seu remate. Dom Narciso vai ledo no seu andar, que contrasta coa apatia do Alcaide e coa teimosia do RachaPedras. Narciso sabe que ainda lhe faltam por passar jornadas de sofrimento, porque ainda não sente que chegasse a onde a sua intuição lhe diz que deveria chegar… Mas que mais pode haver na escuridão do não lembrado? Ele agora prefere deixar que o rodeiro rouche e o vá empuxando aonde quer que ele vá. O Perfeuto também teria preferido seguir na mesma de não pensar; mas olha que lhe estava a custar, ele tinha que fazer um verdadeiro esforço para não verse assaltado polas imagens que fotografaram, mui ao seu pesar, os seus derradeiros dias na canteira de Penacova. Por vezes era tal o esforço que até se lhe ouvia como falava só; ia ele ensimesmado numa discussão com alguém, que aos outros se figurava invisível, com quem desatava a sua fúria soltando mais blasfémias que palavras. Esta conversa levavaa ele num falar mui baixinho, e os outros dous compreendiam que não se estava a dirigir a eles. E se assim fosse preferiam fazer o mouco e, como a Virtudes, ouvir e calar. Dês que começaram aqueles diálogos, que haveria que denominar monólogos de palavrões, parece que o Perfeuto guiava algo mais devagar o carro; como se aquele falar lhe roubasse a energia que a cotio o fazia ir às carreiras e sairse do caminho. Os de trás seguiram fazendo como que não ouviam nada e às vezes, para dissimular ainda melhor, assobiavam um chisco. Ao remate da noite deixaram a pia, ainda com muita água, perto do Castelo Velho, que fica na metade do caminho entre Requeijo e o pé do Castelo da Rainha Loba, onde lhes aguarda a quinta fonte. No Castelo Velho encontramse também cachos de olas partidas se se rabunhar um nada na
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terra, que perto dos penedos mesmo parece cinza, ligeira e duma cor como griseira. Mas os penedos deste Castelo Velho não retêm lenda nem nada que os faça ressaltar, em contraste cos seus vizinhos da direita, os penedos da Rainha Loba; estes sim que sabem como atrair os mortais, erguendose esbeltos e desafiantes. São prova palpável da divindade para alguns habitantes deste lugar que insistem, ante o materialismo que os abafa – a eles e ao seu modo de viver minimalista – em que… sim, eles bem sabem que o homem pode fazer muitas cousas… casas, carros, aviões… mas os penedos da Rainha Loba! Esses não os fez homem nenhum, esses só uma Mão Poderosa os pôde fazer. Assim é como a Conceição se refere a Quem os criou: “a Mão Poderosa”, que é quem de tocar cada uma das cousas e milagres que acontecem no mundo natural, e no sobrenatural. Ela é a que faz andar o mundo… Mão Poderosa, se te tivesse nomeado noutro sítio farias quiçá da Conceição uma filósofa, mas aqui, nesta beira da Raia, passarás sem influência alguma no saber dos mortais, desses mesmos que tanto conhecimento derramam pola nossa terra adiante. Os ecos dum Deus alheio aboujam já para sempre o espírito do Nosso próprio, e connosco morrerá, e connosco morreremos, e ninguém nunca saberá quem somos. Nada mais duro e doloroso que a existência que sabe do seu não existir vindeiro. Ele, como queira que for, estes penedos têm um encanto que não desaparece co andar dos tempos. Mas os três viageiros das estrelas pouco sabem ainda e para ali se dirigem ignorando a onde chegam. Agora, deixando tudo escondido, foramse ao encontro da luz do dia. Hoje Dom Narciso marchou canda os outros. * * * Nuestra Región anuncia a apresentação dum novo livro do poeta Budial, que terá lugar na livraria do jornal. O livro é um conjunto de poemas que o autor criou ao redor do tema da primavera…. A mais de um, o tema farálhe lembrar aquelas tediosas redacções que na escola se obrigava a escrever aos meninhos e meninhas cada ano… “La primavera es bonita; a mi me gusta la primavera, las flores nacen y los pajaritos cantan…, senhorita já rematei a Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 92
redacción…” E entrementes os montes rebentavam pola pujança que a terra lhe fornece desde dentro, e se tapavam coas flores, e ainda assim eram ignorados… e os meninhos e as meninhas não tinham jeito de descobrir a primavera. Vai neles e não a conhecem. Quem podia encontrar o carreiro entre aquelas estéreis palavras da redacção e o verdadeiro milagre de cores que de súpeto cobre a terra…? Os poemas de Budial fazem uma reflexão sobre essa destruição do mundo que está arredor de nós, e que em lugar de ser interiorizado, criando harmonia interior, é bloqueado, tornado para fora, ignorado, instalandose nos nossos miolos um olho de vidro que dirige o olhar a esse mundo… Um olhar que háde o não ver, que háde o negar, para o odiar, para desejar eliminálo, para lhe deitar lixo,… e para quiçá algum dia queimálo… Escusado é dizer que Nuestra Región não tem suspeita qualquer sobre as inquedanças do poeta, mas quem se atreve de decifrar um poema, ainda que o lera. Ele escreve… Sem esperanças de verte te miro, tojo amarelo De ti aqui não dizem nada, estranha uzeira avinhada Fora gestas e carpaços, dos jardins assenhorados. Primavera estéril dos livros aqui exportados… carregados coas primaveras grises de outros lares. O poema segue e segue e se estende por mais de duas ou três páginas das que Nuestra Región não nos fala. * * * Com aquele caminhar pausado foramse achegando estes peregrinos da noite aos refaixos da Rainha Loba. De súpeto o Perfeuto, que vai à cabeça, sentiu água nos sapatos e, olhando para onde o tinham levado os pés, viuse rodeado de pedras rachadas que resplandeciam como fantasmas no meio da escuridão. Perfeuto tirou co pinho e botou a correr monte arriba; ia levado do demo. Os outros dous seguiramlhe os passos e assim chegaram ao alto dos penedos da Rainha Loba. Na fugida para arriba o Perfeuto ia voando, aos Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 93
poucos botava as mãos à cabeça e a apertava tapando os ouvidos, mas sem diminuir o passo. Os companheiros correram quanto puderam, evitando tojos, carvalhos e carpaços, mas não lhe deram alcance até chegarem ao alto. Chegaram boqueando, Perfeuto estava acochado no chão na junta de dous penedos numa pequena fárria, chegara arriba desfeito, não parecia o mesmo homem, e quiçá não o fosse. Os companheiros quiseram perguntar polo que lhe passava, mas não o fizeram, algo lho impediu, e Perfeuto com toda a certeza tampouco lhes teria contado do que escapava, ele apenas conseguia ficar ali no chão tremendo como um junco. Apesar do muito que correu as lembranças deramlhe alcance. Foi assim como descobriu que os berros da velhinha das mãos queimadas se tornavam muito mais terroríficos ao apresentaremse acompanhados doutros berros. Berros de homens. Homens que para ele trabalhavam de sol a sol. Homens da Raia, dum lado e mais do outro. Homens que arriscam a vida. Homens mui mal pagados. Homens sem seguro, e sem as condições mínimas de segurança no trabalho. Homens sem horário. Homens sem papéis, e sem direito a reclamar nada. Homens sem voz. Homens que trabalhavam até o esgotamento. Homens aos que um dia se lhes acabaram os fôlegos antes que a tarefa e não deram corrido a tempo para escaparem quando já prendera a mecha… Um deles caiu morto no chão; era o mais velho, pai de família. E aí começaram os pesadelos do Perfeuto. Juízo trás juízo para evitar o cárcere. As ganâncias derretidas no processo. Agora não tinha nada mais que os berros dos que foram sacudidos pola pólvora enraivada, que obrigam a ser lembrados. Tudo perdido. Ele sentese o mais desgraçado de todos. Mas ele não sabe que do outro lado da Raia, a poucos quilómetros de Penacova, há vidas arruinadas, viúva sem homem na casa e com pequenos por criar… filhos para sacar adiante, o mais velho de doze anos e o mais pequeno no colo, foi tudo o que lhe deixou àquela mulher o estourido da canteira. O Perfeuto comprimiu quanto pôde as suas lembranças, à força de premer na cabeça, mas os efeitos foram os mesmos. Viase o homem acabado. E os companheiros pola mágoa que lhes dava aguardaram ali até que ele ordenou de baixar. Botaram um bom pedaço lá no alto. Naquela trapa da noite e ao silêncio, a Dom Narciso espertoulhe a imaginação e pareceulhe ver
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como se o penedo que ficava enfrente, pola parte de detrás da Rainha Loba, se cobrira com uma melena de cabelo ruivo, algo ondulado. Pronto desbotou tal ideia, pois aquilo não tinha jeito. Não podia ser tal. Pensou que a falta de dormir de noite já lhe estava afectando, e ele era dado às visões, polo que não acreditando naquilo, pôsse a olhar para outro lado. Quando o Alcaide lhe perguntou se ele não vira nada… “e logo que ia ver?” – Narciso dissimulou. “Nada, nada” – o Alcaide tampouco acredita naquela melena dourada que baixa pola pedra abaixo. Aquele era o Penedo da Mulher. Em tempos a melena foi de verdade, mas agora só se pode adivinhar polos riscos que o pente foi lavrando rocha abaixo cada quando que ela se penteava. São poucos os mortais aos que ainda lhes está permitido ver, sempre no luscofusco, aquele cabelo que durante séculos acarinhou o penedo, dizse que alguns também ouvem o estrondo que se produziu quando a mulher por querer colher o pente, que lhe resvalara rocha abaixo, caiu. Agora tudo fica lenda. Agora tudo fica nada. * * * …Os detectives chegaram perto da eira da festa e com alívio comprovaram que não se passeava por ela o homem do cabelo prateado… – Eh! Olhai aqueles dous que trajados vêm! Mágoa que tenha passado o Entroido, pois havíamoslhes fazer comer farinha até polos olhos, com essas roupas mesmo parece que vão chamando por ela. – Deixaos lá aos pobres, que quem sabe na procura de que andam. – E de que será? – Olha que aí te vêm para cá… – Não virão aqui onda nós?! – Deixaos vir, que mal nos vão fazer? Divertiremonos um pouco à sua conta. As três moças estavam sentadas no maçadoiro da porta da escola, era logo meia manhã e não parecia que tivessem muita pressa por marchar; parecia como se aguardassem por algo ou por alguém. Os dous agentes caminharam até onde as moças estavam e saudaramnas.
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– Bons dias moças, poderíamovos fazer umas perguntas…? Se quereis perguntamovos uma por uma, e seguimos assim à rolda. – Bons dias moços… ai, se vos parece escolhei qual quereis que conteste às vossas perguntas, que devem ser mui importantes a julgar pola vossa vestimenta… – A nós tanto nos tem, ide uma e logo outra, e assim vamos indo à rolda. – Ai sim! Assim vamos indo à rolda nós, e com vós, como vamos fazer…? Perguntais os dous à vez, ou primeiro tu e logo ele? – Não, eu sou o que faz as perguntas, ele é o meu ajudante. – E a que che ajuda, se se pode saber? Porque se tu fazes as perguntas, que lhe deixas a ele? – Mirai, não me comeceis com leas, que depois se perco o tino do que ando a fazer, não dou encadilhado bem a cousa. – Não será por nossa causa que, a se meter você num sarilho, nós só queríamos saber que faz este moço tão guapo se o dele não é perguntar. – Não faz nada, vem comigo, não vos deveis preocupar dele. – Não é que nos preocupemos, a nós o que se nos perdeu no assunto? É simples curiosidade. – Pois menos curiosidade e mais colaboração, que já vamos outra vez por mau caminho. – Olha tu, que de mau caminho nada! Nós estamos aqui sentadas e não nos pensamos mover para ir a nenhures convosco, ademais estamos aguardando polo bomboneiro que já passou para Gomesende, e talvez depois ao vir de volta passa e não o sentimos. – Mui bem, então movamos a cousa para rematar antes de que chegue o dos bombóns e vos marcheis com ele. – E dálhe com marchar, já vos dissemos que nós não nos movemos daqui até que chegue o bomboneiro, e não traz bombóns, que traz bombonas2 de butano, vós sim que estais bombóns…! – Entendido…! Agora, se sois tão amáveis, poderíeis me dizer que sabeis sobre uma pia que desapareceu daqui há bastantes anos? Seríeis vós pequenas.
2
Bombona: botija de gás (castelhanismo).
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– Se há tantos anos, como quer que lhe digamos o que se passou…? E já que pareceis meios adivinhos, quanto tempo pensais logo que nós temos? – Não sei o tempo que tendes, e mal aproveitado tampouco não parece que o tenhais… Mira, porque não nos contas tu que pareces a mais velha? – Eu se quisesse algo sei, mas eu desses temas não falo. – Pois logo eu tampouco direi nada. – E de mim ide esperando outro tanto. – Pois olha que começamos bem a cousa! A ver se antes de nada aclaramos quem das três está disposta a contestar algo do que nós perguntamos. E ademais, por que dianhos não quereis falar no tema? – O tema tanto nos tem, é a Igreja a que nos dá reganho. – Mas a pia já não tem relação nenhuma coa Igreja, agora pertence a um museu de Ourense. – Que pertença ao que quiser, a pia sempre será da Igreja, e essa é uma instituição de homens, e ali as mulheres não pintam nada, portanto de mim polo menos não vão sacar uma palavra. – Pois de mim tampouco. – Nem de mim, ademais essa pia foi roubada à gente deste lugar polos que vão de santos, e a gente por burra ainda lhe segue indo à missa. – Olha as mocinhas! Pareceis mui opinadas. – Que pareçamos o que quisermos, ademais a vós… que se vos perdeu por aqui? – Nós estamos ao cargo duma investigação sobre o paradeiro da pia,… que raios se passa aqui neste lugar, que ninguém nos responde às nossas perguntas? – Homem! É que vós fazeis umas perguntas mui estranhas. Se nos perguntares por cousas mais divertidas em lugar de temas relacionados cos velhacos da Igreja e as suas falcatruas, outro galo cantaria. – E que quereis que vos perguntemos, se esse é o tema que nos interessa? – Pois já vos podiam interessar outras cousas menos aborrecidas, vamos digo eu. – Não, se a nós tampouco nos interessa tanto que digamos, nós não o escolhemos, veionos encarregado de arriba, se por nós fosse…
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– Pois logo, porque não o mandais amolar e que o investiguem os da sotana que outra cousa que ranhar não têm, e ademais o que se passara ou deixara de se passar coa pia foi por causa deles? – …E falando de cousas que vos interessam, ademais de isso da pia, que outras cousas vos têm causado impressão por estes lares? – Homem, pois não temos visto muito, mas a julgar polo presente, de moças não anda mal este lugar… – Ai! obrigadas polo piropo mas não era preciso, na nossa casa há espelhos… As três moças riram abertamente e coa naturalidade do que goza da liberdade que lhes outorga o conhecido, a liberdade do domínio do mundo no que se sucedem estes acontecimentos. – A soberba, polo que vejo, também vos chega. – Não é soberba nenhuma, é conhecimento de causa … é que vós tampouco ignorais que ides bem engabachados? – Pois sim que o sabemos, mas isto é parte do nosso trabalho… – Ai, pois não sabia eu que para ir por aí com essas perguntas que vós fazeis tínheis que ir emperiquitados. – Isto? Mas se só é um traje, o que conta é o que vai por debaixo… – Olha lá o que falava da soberba… – …E por riba nós não lho podemos negar, que não temos essa informação privilegiada… – Homem, pois isso boa solução teria, e já que o dia já se anuviou para o assunto da pia, a ver se ainda se vai arranjar a cousa… – Eu não me faria demasiadas ilusões, porque se bem certo é que até que se arrancam as batatas não se pode falar no que há debaixo da terra, nós temos melhores moços aguardando na verbena… – E logo onde é a verbena? – Em Fontearqueira, e nós pensamos ir a ela se encontrarmos quem nos leve. – Se calhar ainda podemos chegar todos a um apanho… – De apanhar ninguém disse nada, mas se queredes ir à verbena nós podemovos ensinar o caminho…
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– Pois logo combinamos assim e, se vos parece bem, passamos por aqui às sete para irmos juntos. – Pois que seja logo às sete… já que não pode ser mais cedo, e logo de aí em diante já veremos… Desde o maçadoiro as três moças olharam como os detectives subiam para ir para a Coanheira a caminho do seu veículo; depois, arrimando as cabeças um nada, mouminharam algo e riramse, riramse com aquela pícara inocência que ainda não perderam…
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Capítulo V
A FONTE DO GALO Quando Perfeuto se sentiu um pouco recuperado saiu do seu acocho, pôsse de pé e marchou por um caminho que passava por longe donde ficara a pia. Os dous companheiros compreenderam que ele não lhes ajudaria mais aquela noite, assim que desceram e foram cumprir co ritual de dar de beber e mais beber eles. Aquela fonte nascia no meio dum chão cheio de cachos de pedra. Tanto Dom Narciso como o Alcaide pensaram que aquela fonte estava bem descuidada, ou melhor dito esnaquiçada; acordaramse de que o Perfeuto lhes dissera à primeira que ele tivera ali uma canteira, e aos dous se lhes veio à cabeça se ele teria algo que ver com aquela desfeita, e se isso explicaria a sua fugida nada mais acercarse ao lugar. Sabendo que não poderiam satisfazer a sua curiosidade, pois a ver quem é capaz de fazer falar ao RachaPedras, esconderam a pia e marcharam cada um por seu sítio. Dom Narciso, enquanto caminhava, ia pensando no que se passara enquanto estavam lá em riba no alto do Castelo da Rainha Loba. No do cabelo dourado não quis pensar mais porque cuidava que era fruto da falta de sono ou do seu sentidinho, que às vezes colhia para onde não devia. Mas além disso, a ele pareceralhe ver um cavalo subindo polos penedos arriba, e isso ainda que pareça difícil não é impossível, pois toda a gente sabe que esses animais podem subir escadas e alpendres bem inacessíveis. Por conseguinte a imagem, que ademais durara pouco, não lhe parecera desatinada de todo; polo menos não até que viu como cavalo e cavaleiro com espada, logo de chegar ao ponto mais alto do penedo, desapareceram como por arte de magia. Narciso achegouse àquela rocha para comprovar se polo lado de atrás, como ele pensava, lhes seria fácil baixar e esfumarse tão asinha como o fizeram…, nem que os sumisse uma bruxa! Portanto arrimouse à rocha e até trepou por ela pisando Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 100
polas marcas que sobem derredor a jeito de escada. Desde arriba pôde ver que o único sítio polo que se podia aceder ao alto da rocha, e baixar dela, era por onde ele acabava de escalar; qualquer outro acesso era, para qualquer animal, fora os pássaros, impossível. Por conseguinte a desaparição do cavaleiro e mais do seu cavalo eram um mistério. E quando já ia baixando e descartando a imagem como absurda e irreal, tudo uma ilusão, descobriu que o cavalo deixara na rocha as suas pegadas, pois logo não fora um sonho…! “Mas que estou a pensar… as pegadas na pedra…!” “Pois tampouco há de que se estranhar” diriam os de Penacova; toda a gente é sabida que o Santiago do Cavalo Branco subia e andava polos penedos adiante a perseguir e matar mouros. Isto, que a Narciso lhe parecia impossível, não era conto nenhum para os vizinhos de Penacova, que todos desde mui pequenos sobem ao alto de quando em vez para apalpar as pegadas com forma de ferradura que seguem a dar fé da sua história. Ora, não se atrevem a ir contandoo por aí a qualquer; ademais… “isso se passou antigamente” frase esta que serve para referirse tanto ao que aconteceu nos tempos do reinado da Rainha Loba, como ao que aconteceu na infância dos habitantes de mais de sessenta anos. O forasteiro, com um sorriso de ironia nos beiços, caminha pola aldeia pensando que estas gentes têm que ser bem ignorantes para se referir a um tempo tão recente co qualificativo de “antigo” O forasteiro gabase da sua superior formação intelectual que lhe permite estabelecer essa diferença. O que o forasteiro não conhece, ou quiçá sabe mas não entende, é que desde esse “antigamente” ainda que só passaram cinquenta e tantos anos, passaram vários séculos de História. Nesse curto espaço temporal produziramse tais mudanças, e a tal velocidade, que o tempo não se pode já medir de jeito tão simples como faz o forasteiro. E mais não é preciso aludir à Teoria da Relatividade para o entender; bastenos um simples exemplo que mostre o desenfreio do ritmo de tal mudança; isto é: a transformação do arado de pau, também chamado romano, no arado vertedeira do tractor. Escusado é dizer que Dom Narciso não era conhecedor da realidade histórica, ou fantástica, depende onde se queira pôr o acento, de Penacova, e agora estava a pagar por isso; por conseguinte, temendose que aquilo ia de mal a pior, afastouse da rocha e volveu ao campinho onde estavam os outros
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dous para aguardar que o Perfeuto ressuscitasse. O Alcaide estava adormecido à beira dum piorno e Narciso deitouse olhando para o céu; e numa dessas viu que uma luz saía do alto do castelo e se ia cruzando o amplo pano estrelado caminho do Zebreiro onde desapareceu. Aquela visita fez mui feliz a Narciso, que cuidou que se tratava da sua amiga que afinal ainda andava polo espaço celeste e vierao saudar de novo. Na verdade, aquela noite a sua estrela fizera uma travessia mui estranha; apesar de que as suas noções de física não iam muito mais lá da Lei da Gravidade, Narciso intuía que aquilo não podia ser tal; como podia uma estrela viajar tanto espaço em tão pouco tempo? Ademais, primeiro subiu mui alto e depois foi baixando mais a modo. Aquilo, somado ao do cavalo, confundirao tanto que fechou os olhos e escutou em silêncio, e então ouviu cousas, mas tampouco fez caso. Como ia ele dar creto aos berros duma cabra ali no meio do monte…? De noite, e com tantos lobos quantos sempre tem havido… Não podia ser, não podia ser. As gentes de Penacova não falavam muito da cabrinha de ouro, e não porque pensaram que era uma história ridícula, senão porque todos e cada um deles mantinha a secreta ambição de topála e fazerse rico… “E tu que farias se a encontrasses…? Sabes que háde ser entregue a um museu…” “Homem, pois eu – os pequenos sempre com soluções à mão – meteriaa numa saca e pensariam que levava batatas” Mas Narciso não conhecia das grandes aspirações dos vizinhos da pequena Penacova, e tentou pensar noutra cousa para aboujar os berros do animal e nem sequer abriu os olhos para comprovar se havia tal chiba ou era outra dessas alucinações que emanavam do ar daquele estranho lugar. Aquilo não podia ser, não podia. E deste jeito também evitou ter que ser testemunha da chegada dos de Pexeirós. Os de Pexeirós subiram até ao alto do castelo para matar a Rainha Loba. Aqueles eram vales ricos mas à faminta rainha nada lhe chegava e cada dia tinha que comer uma vaca; e até ao alto tinham que levarlha; só que os de Pexeirós aquela vez levaramlhe a morte, e assim o refere o cantar: Matastes a Rainha Loba Fidalgos de Pexeirós Matastes a Rainha Loba
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Fidalgos ficastes vós E esta é a razão pola que os de Pexeirós ficaram livres da paga do conde. Todos os demais tiveram que a pagar até não há muito… perto de há cem anos; ora bem, os de Pexeirós não volveram soltar um real. E logo quem raios serão esses de Pexeirós? E eu que sei, serão os de Ameixinhas… Mas Narciso ignorava também aquela história, o que o fazia vulnerável, não por ignorála, senão por não pertencer à comunidade que lhe daria sentido, e não lhe ficou outra que fechar os olhos e ao mesmo tempo evitar ver aquela ringleira de vacas, todas ruivas elas e galhadas, que subiam polo lado dos campos arriba. Eram as vacas que ao longo dos tempos foram subindo para ser devoradas pola Rainha Loba. Mais tarde, enquanto caminha de volta para as obrigas, no seu caso são pequenas ainda que não fáceis de aturar, que lhe traz a luz do dia, Narciso não pára de cavilar naquela luz prateada que navegara todo o céu aquela noite; não podia ser, não podia ser… e tentou todo o dia esquecerse do assunto. Quando à noite seguinte chegou à Fonte do Galo, onde deixaram a pia, fez tudo o possível por não olhar para o céu. Narciso já não podia confiar no que lhe diziam os seus sentidos; e ele não estava ao tanto do brilho prateado que podem soltar os martelos, enquanto dão voltas polo ar até chegar ao alto do Penedo do Leão para avisar aos compatriotas da presença de intrusos nos seus domínios. Só lhe ficava não olhar para nenhures enquanto aguardava; e assim fez. Depois dum bocado sentiu pegadas que se achegavam a ele; era o Alcaide, a cotio o derradeiro em chegar; miraram um para o outro e escusaramse as palavras, sabiam que era cousa deles dous tirar a pia daquela fonte que parecia, apesar das suas frias águas, ter escaldado ao Perfeuto. Cumprindo co ritual de apagar a sede da pia deramlhe de beber por última vez naquele triste manancial e puseramse ao caminho. O Alcaide, sem dizer nada, agarrouse ao pinho, ali era terra chã e não parecia que fosse difícil guiar aquele carro. Dom Narciso colocouse na roda esquerda como era o seu costume ultimamente, e começaram a chouchar para onde as estrelas lhes indicavam o caminho. A poucos metros donde estava a Fonte do Galo, que se identificava pola presença de cachotes de granito espalhados por ali adiante sobre um terreno lamacento que no meio formava uma poceca, apareceu o Perfeuto. Saiu de detrás dumas
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gestas floridas. Encolhido, coa olhada no chão, e sem dizer nada, foise colocar detrás da roda que ficava livre. Naquele instante Narciso sentiu uma grande ternura para o seu companheiro e olhandoo por debaixo da copa da pia disselhe num tom que a Perfeuto lhe transmitiu tranquilidade e mesmo o arrolou como a um neno no berço: “Um dia chegaremos a ser nós outra vez”. Mal rematou aquela frase que saíra quase ela soa pola sua boca, Narciso pôsse a analisar o seu conteúdo e pensou que lhe teria que ter dito outra cousa, que aquilo que lhe saíra polos beiços parecia raro… chegar a ser nós outra vez… que raios andaria pola sua cabeça? Horamá abrira a boca, oxalá não tivera dito nada ou tivera pensado em que dizer antes de falar; agora já era tarde para mudálo. Contudo, a Perfeuto tanto lhe tinha o que quiseram dizer as palavras juntas ou por separado; ele abraçara a música que lhe levavam e sentirase por primeira vez irmanado co cura. Na dianteira o Alcaide sentia o peso da soidade que como uma névoa vasta sempre anda ali diante; agora entendia a escravitude do pinho, na roda, se te vês mui apurado ainda podes endireitar um nada as costas, mas o pinho não se deixa soltar assim como assim. Que pouco gostava ele de que o jungissem tão apertado! Ele não é que ele fosse amigo de não fazer alianças, que as fazia, mas reservandose sempre o direito de poder rachálas ou safarse delas. Ele sempre foi claro com isso, e ninguém poderia dizer que ele era um mau governante. Ele nascera para político, já o diziam em casa… “Este vaichenos sair ministro… olhai pra aí a manha que tem para livrarse do trabalho!” Sim, era certo que ele sempre convencia à sua mãe para que lhe deixasse escolher tanto à hora do trabalho como na mesa. “Assim leva as boas talhadas, não é burro não, o condenado”. Mal teve idade convenceu a seu pai para que movesse tudo o que havia que mover, e coa ajuda do abade, o fizessem alcaide. E assim foi, mal rematara o serviço militar e já tinha a vara do mando. Mui contente estava ele, e que feliz fez à sua mãe, e ao pai encheuo de orgulho. Ele seria um bom governante e ao mesmo tempo levaria a sua talhada. Ainda agora se acorda de quando asfaltou a primeira estrada,… “Bota fino o chapapote que o que há dáse bem gasto” E o contratista fazialhe caso e apertava a bilha do alcatrão para que rendera mais; havia que ter contente ao Alcaide, que senão a próxima obra se quadra não lha dava. E assim a estrada
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ficara igual de bonita, só um bocadinho mais delgada. E o peto do Alcaide, ao que por aquele então ainda não chamavam RebentaRuas, medrava. Ele não é que quisesse roubar ao Concelho, não, não, livreo Deus. Sucedia que ele era tão bom administrador que sempre lhe sobrava, e claro, depois já não podia volver a investir o já gastado, e tinha de ficar com ele. E certo é que um concelho como o de Os Mouros precisa ter um alcaide que não vá por aí parecendo mal; isso, compraria boas roupas, que vestir bem é parte do seu trabalho. Ele ia por aí adiante representando ao concelho e tinha que ir elegante. Homem…, o que sobrara da estrada era algo muito para o meter em trajes! E se fizera uma granja…? Um bom alcaide tem que saber de negócios… e que melhor jeito de aprender que montar um negocio próprio? Assim demostrará a todos o empreendedor que é, e renovarlheão o cargo. Com nostalgia lembrava ele agora aquela época em que só tinha que convencer aos de arriba para que o deixassem seguir sendo alcaide. Que bem se estava sem essa trangalhada das eleições! E o caras que lhe saíam… Nos seus começos tudo fora como a seda, nem se tinha que preocupar por esses indivíduos de barbas que depois mais adiante lhe começaram a fazer a vida impossível. Barbudos e mulheres, não queres caldo…duas cuncas. Ai, mas para que se queria ele lembrar dessa parte dos barbudos e das da saia, que por certo não gastavam? Ele queria que só se tivesse gravado na sua cabeça aquela primeira época do seu mandato, quando ele ordenava e mandava com total liberdade, essa sim que era maioria absoluta. E mira que lhe durou anos, os mesmos que lhe durara a granja…, não, que a granja ainda lhe dura, embora a traga trespassada. Que doce lembrança a daquela estrada tão negrinha como o pez! Mágoa que por culpa dos camiões da pedra que baixam de Penacova se enchesse toda de buracos. E que culpa ia ter o alcaide de que se fizera uma canteira lá no alto? Ele só lhes dera a permissão requerida. E claro, eilos a pedir que lha governasse… esta gente não entende de orçamentos fechados! E ele bem que lho explica a quem o quisser saber. Mas eles, venha que dálhe coa devandita estrada, e ao final teve que acabar solicitando um orçamento novo e arranjarlha. Olha que não lhe chegava bem como estava… de terra batida lha tinha que ter deixado, como esta pola que andam hoje eles e a pia, e nem conta se dariam. Quanto mais lhe dão mais pedem, é o conto de nunca acabar, e
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agora com isso da liberdade e de tantas trapalhadas a alguns subiramselhe os fumos à cabeça. Com estes monólogos do pensar andava o Alcaide entretido e não lhe rendera tanto a jornada como em dias passados. Isso fezlhe sentirse mui bem consigo. Ele pensava, a julgar polo que vira cos que lhe precederam, que o tempo se lhe faria eterno ali só naquela dianteira, ora não foi tal. Ao menos esta primeira noite a cousa se passou a escape. Andaram um bom pedaço, estavam agora atravessando já a Missa para depois baixar pola Alobada para o Castelar, onde lhes aguarda o sexto e penúltimo manancial desta andaina. Arrimaram a pia e mais o resto das cousas a um penedo que havia não muito longe do caminho e foramse. Antes de se separar definitivamente Narciso olhou para a rocha e pareceulhe que tinha lã; lã? Que raro, e depois pensou que não podia ser e foise como quem não vira nada. E o certo é que aquele penedo podia ter algo de lã, não em vão se chamava “o penedo de se ranhar as ovelhas”. Mas Dom Narciso, que não sabia nada de pastoreio, polo menos com esta casta de ovelhas, e escamado polo da melena dourada da outra noite, não se deixou arrastar polo que bem podia ser real. Marchou embora. Os três marcharam, e o dia não tardou em inundar os vales todos de luz. * * * Hoje Nuestra Región, que nos oferece toda a sua portada em galego, põe uma nota, no interior, protestando polos comentários que alguns cidadãos, apoiados por certos programas de rádio, andam a fazer sobre o estilo jornalístico deste diário. Parece mentira que nesta altura, depois do muito que eles levam feito, e demostrado, tenham que se ver na obriga de redefinir quem são, e de reiterar a seriedade que os caracteriza; porque Nuestra Región é um jornal sério que tem ido atingindo cada vez maiores quotas de compromisso social e cultural. Um jornal que nos últimos anos tem incrementado notavelmente a sua sensibilidade em prol da conservação do nosso património, como exemplo baste ver a portada do diário de hoje… …Claro, senão nas notícias da televisão quando disseram: “a imprensa galega por inteiro saca hoje, 17 de Maio, Dia das Letras Galegas, as suas Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 106
portadas em galego”, figurate o mal que ficaria se tivessem que dizer: “a imprensa galega, com excepção de Nuestra Región, saca hoje, 17 de Maio, as suas portadas em galego”. Isso ficaria muito feio; e por culpa da frase essa fazem o esforço como os outros, e logo então! A alguns intelectuais dizse que esta frase, que já se está fazendo tradicional e se repete cada dezassete de Maio, isto é, uma vez ao ano, lhes parece uma redundância. Vejamos: “a imprensa galega saca hoje, 17 de Maio, as suas portadas em galego” – Homem pois a mim não me parece raro,… a imprensa galega não as vai sacar em chinês… – Pois eu digoche a ti que aqui há algo que não me… a ver que te parece estoutro: “a imprensa espanhola saca hoje, 17 de Maio, as suas portadas em galego” a que se ouve muito melhor? – não che digo que não, não obstante tampouco pode ser, porque não toda a imprensa espanhola saca as suas portadas em galego – Pois também vais ter razão… a ver logo assim: “a imprensa espanhola na Galiza saca hoje, 17 de Maio, as suas portadas em galego. – Olha, a mim pareceme bem, mas para já com tanta imprensa espanhola que me vai estourar a cabeça. – Eu não sou quem de fazer isso… se por mim fosse já podia dizer até: “a imprensa galega saca hoje, primeiro de Abril, as suas portadas em castelhano” – E a que vem isso do primeiro de Abril? – O primeiro de Abril todos os burros vão onde não devem de ir. – Ah já, o dia das pulhas! Pois aqui burros não faltam. – Não ho! Também cho digo, aqui há muitos e bem deles… São estes pensamentos dialogados que, se bem que revelam a bidimensionalidade da personalidade dos galegos, não servem para sustentar a tese que ultimamente está a ganhar prestigio nas melhores universidades da Península e que vai em favor de postulados sobre a bidimensionalidade da personalidade na gente das nações que se vêem submetidas ao avassalamento por parte doutras culturas mais poderosas. Ora bem, nos postulados originais destas teorias, que cada dia estão mais na moda, supõese que o monólogo dialogado se levaria a cabo nas duas línguas que representam a ambas as culturas. Isto é, que a pessoa alternaria, de jeito sucessivo, as duas línguas, a própria e a assumida como própria, que estarão em constante luta até a pessoa morrer, e dizse que logo disso as línguas seguem na sua polos cemitérios.
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O mais problemático parece ser encontrar uma denominação para estes tipos. O monólogo precedente não encerra dificuldade visto que se trata dum caso galegogalego, isto é, que tem como língua própria o galego, e como língua assumida como própria o galego; mas como já dissemos este casoexemplo não nos serve para apoiar a hipótese da bidimensionalidade. Ora bem, aos que têm como língua própria o galego e como língua assumida como própria o castelhano, ponhamos por caso, poderseia um referir como “gastelhanos”, por aquilo de pôr primeiro a raiz da língua materna. Por outro lado, para os que têm como língua própria o castelhano e como língua assumida como própria o galego… é verdade, esses não existem. E que me diz dos que procedendo de fora destas terras, de Terra Ancha por exemplo, tomam o galego como língua assumida como própria? Ah, já percebo! É diferente, nestes casos o galego nunca desloca no seu ego mais interno à língua própria, que seguem sempre a saber qual é, por muito que amem o galego… Por certo este colectivo vai em aumento! Curiosamente este grupo e o dos gastelhanos aumentam a um ritmo similar. – Pois olha que seria muito bom que viessem mais desses para cá. –Isso, ora… o que fazemos cos gastelhanos? – Pois que se decidam duma vez, que a vida não lhes vai durar sempre e vãose ir para o outro mundo coa retesia. – Eu sei dum que estando já às portas da morte resolveu o assunto e despachou ao curinha que o atendera toda a vida e quis que lhe administraram os últimos sacramentos em galego… “coitado, te perdió el sentidinho” Frase que, em boca da sua mulher, mostra o domínio gastelhano no que se movera o moribundo até o momento da lucidez final… E quando chegou o novo sacerdote tranquilizouos a todos… “não se preocupem vocês que tem a minha absolvição, e Deus já lhe perdoou” – E é que isto de ser crente é um negócio feito... vais e arrependeste no último momento e já está, a recolher benefícios como se fosses um santo toda a tua vida…! * * * Quando os viageiros da noite retornaram junto à pia, Dom Narciso fêlo cos olhos fechados para não ter que ver a lã que não podia existir, mas a curiosidade foi mais forte que ele, o que não é milagre nenhum, e com Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 108
dissimulo passou a mão como cofiando o baixo ventre do penedo. Em realidade ele só buscava tentar a dura pedra para que as visões não se burlaram mais dele. O sentir sedoso entre as pontas dos dedos fezlhe estremecer e retirou a mão bem asinha. Agora, enquanto iam baixando pola esquerda do Jungal e as Ribeirinhas, para as touças do Castelar, ia pensando naquele mole apalpar que topara no penedo. Lã não podia ser. Seguro que são musgos, quem sabe como é o tocar do musgo? Sobretudo com esta humidade que põe tudo tão meloso. Quanta gente vistes por aí acarinhando os penedos, e menos cos olhos fechados…? De seguro que eram musgos que neste tempo estão verdes e amantinhos. Com aquela conclusão tranquilizadora deixou a questão. Aquela noite Perfeuto parecia menos encolhido, desde a penúltima jornada o seu aspecto tinhase humanizado bastante. Enquanto o Alcaide seguia co pinho às voltas, hoje não parecia que lhe foram tão bem as cousas. O terreno colhera um nadinha de inclinação mas a ele parecia não lhe ajudar muito. Ele andava que parecia um rabioso a quem ninguém lhe fizera nada. Mas sim que lhe fizeram, sim. Se Perfeuto e Narciso souberam polo que ele tivera de passar. Ele nascera para alcaide, isso ninguém o discute, e agora já não o era. Isso não podia ser, é essencialmente erróneo que se lhe frustre a um homem a sua vocação assim, sem mais explicações. E tudo por culpa dos das barbas. Olha que lhe iam bem as cousas a ele sem democracia. Mas nada, houve que se adaptar e não ficou outro remédio. Ora, a que as mulheres vão ao concelho e ainda por cima levem calças, a isso não se dava adaptado. E por culpa disso teve que deixar a alcaidia. Não, não foram justos com ele; depois de tantos anos cumprindo no seu posto vão e dãolhe uma patada. E ele mira que se esforçou por adequarse ao que fosse preciso. Ninguém poderia dizer que ele fosse um reaccionário. Houve que escolher partido para meterse, pois vamos, ao que a Deputação me mande, que para isso são os que me dão os orçamentos das obras. Que depois é preciso mudar e meterse noutro partido mais grande, pois que não se fale mais. Se é preciso ainda se compra outro fato. Não será por falta de casacas… E mira que ele era um alcaide agradecido, ele é certo que o chefe da Deputação fizera muito para lhe ajudar a ele a manter o seu posto vitalício de alcaide d'Os Mouros; mas ele também lho pagara. Isso ainda se pode ver hoje: “Edifício Multifuncional José Luís Bande”, “Avenida
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José Luís Bande”, “Praça José Luís Bande”; esta última com estatuazinha do tal J. L. Bande e tudo, uma cabeça de pedra à que o alcaide se refere como o busto de Bande. Por causa da cabeça esta já se têm montado algumas liortas: – E quem diz que é esse da cabeça de pedra? – Um tal Agusto de Bande. – E que faz a cabeça dum de Bande aqui nos Mouros? Eles têm o seu próprio concelho. – Não, homem, não – veio o terceiro em discórdia – que não se chama Agusto, nem é de Bande. Este é o busto do senhor Bande, o chefe da Deputação. – Mira, pois não se chamará Agusto nem será de Bande, mas daqui digoche eu que não é, e mais olha onde o foram pôr… no meio da eira da Festa, de espantalho. – É que esta já não é a eira da Festa, agora chamase Praça José Luís Bande. – E dálhe cos de Bande, pois já podiam fazer as praças no seu concelho e pôr ali as cabeças. – Mira que sois pesados vós co de Bande também… – Pesado é ele, que é de pedra, que senão… Sem esquecernos do Vertedouro Incontrolado Municipal J. L. Bande. Se bem que aqui a cousa não está nada clara tampouco, acontece como coa eira da Festa. Não, se o do vertedouro está mais claro que a luz do dia, que desde quase a Fontecova já se vêem branquejar as máquinas de lavar, as neveiras, e toda clase de refugalhos e trapalhadas porcalheiras inclassificáveis que ficaram antiquadas para a vida moderna, e que já não servem mais que para se desfazer delas. Sãovos estes seres mecânicos nada fáceis de apodrecer; alma não terão, mas custar, custalhes morrer uma boa cheia de tempo, e enquanto agonizam levam por diante não só a paisagem senão a vida toda do monte, e a do rio Eiroá, que baixa entusiasmado desde o alto do Zebreiro para chegar à Golpelheira e verse assim acurralado por latas oxidadas, tijolos esnaquiçados, canhotas de castanheiros menosprezadas depois de arrancadas nos soutos queimados… O rio Eiroá, onde noutrora moíam os moinhos, e o pão cozia nos fornos graças a esta água que baixava até a beira d'Os Mouros. E que culpa tinha o alcaide? Ele não era o que deitava ali todos esses cadáveres da
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industrialização; e mais esses reganhudos que não lhe querem bem sempre lhe estavam atacando por culpa de que a gente botara ali o que já não lhe fazia jeito, ou não queriam. E que lhe ia fazer ele? Não quereriam que se pusesse ali de guarda noite e dia. Mas esses insaciáveis não pararam aí, não; eles dálhe com que a Golpelheira não era nenhum vertedouro e que por conseguinte era responsabilidade do Concelho mantêla limpa. E ele vai e não se lhes ocorre outra cousa, porque dizse que não pôde ser ninguém mais que eles, que plantar ali um cartaz na beira da estrada que baixa de Penacova? E não se lia “Proibido deitar lixo” não, que esse tão sequer ainda podia ter quiçá ajudado; não, o que se lia no devandito cartazinho era “Vertedouro Incontrolado Municipal José Luís Bande”, e houve que o tirar, e eles eilos a o pôr outra vez, e uns a o tirar, e outros a o pôr… E não houve outro remédio que chantar lá um guarda dia e noite para pararlhes os pés a esses… Quando alguém depois vinha ali a lhe fazer o funeral à sua Westinghouse, após quinze anos de fiéis serviços, ficava confundido, pois eles não contrataram a enterrador nenhum, nem pensavam que ninguém assistiria a estes últimos ritos. – Olhe! – dirigindose ao guarda – aqui é onde se deixam as cousas que já não valem? – Ai, eu não diria tal, olhe que algumas ainda lhe estão boas! Que não todas as que vêm ficar aqui são velhas… – Quero dizer que se poderia eu deixar aqui esta máquina de lavar que já não entrefuga lá mui bem e… – Pois com efeito, deixe você o que quiser, ou melhor dito, o que não quiser. – E logo você para que está aqui? Se não é muito perguntar… – Eu? Pois para que uns vândalos, que seica são do que não há, não chantem aqui o cartaz de Vertedouro. – Mas olhe…, e logo isto não é um Vertedouro? – E eu que sei! A mim disso ninguém me disse nada, eu estou aqui pra vigiar por se ligaram de vir os do cartaz esse… e agora despidase da sua lavadora e deixeme que tenho muito que fazer… que se isto segue assim ainda vou ter que me repartir entre aqui e a praça do Bande, que seica esses já ameaçaram com que não voltam a fazer um cartaz novo e que no lugar do
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cartaz vão colocar o cabeção de pedra que dizem que iria mais acorde cos despojos urbanos do vertedouro, que não é tal, por certo. – E por causa disso o vão fazer ir a você até lá a Bande? – Não mulher, não, que vão fazer! Marche, marche tranquila, que a sua máquina de lavar não vai estranhar nada aqui. – Pois logo, até outro dia, e perdoe. Que a gente se confundisse quanto quiser, mas ele tinha que mostrar o seu agradecimento ao chefe da Deputação. Também é certo que ele aqui desde o seu posto no Concelho lhe ajudava a arrecadar os votos que tanto precisava o seu patrão para o partido. A ver quem ia de casa em casa a repartir boletins na véspera das eleições! Ai, é que o Bande não pode estar em todas as partes…! Pois que vão os alcaides! E ele ia, que ademais assim ia mantendo o forno quente para as Municipais, que eram as que realmente lhe coziam a ele o pão. A ver quem fazia as promessas, de aldeia em aldeia, de casa em casa… “se me votas fagoche um poço para regar a leira toda” “Pois nem que eu fosse um parvo, voto, voto, inda que depois caia nele e afogue, e hei levar à mulher e o filho” “Leva também o tio velho que para votar vale qualquer” “Mas olhe que ele não lhe serve para nada… está tolheitinho e não se pode mover” “Pois o levais num cesto desde o carro até a mesa eleitoral”… E assim de casa em casa, ninguém sabia o duro que era o seu trabalho. Não era RebentaRuas a alcunha que lhe ligava a ele não, a ele terialhe ficado muito melhor o de Casalandreiro, porque nisso consistia o seu trabalho em época de eleições, sempre de casa em casa. E depois ter que os convencer de que ele representava a melhor alternativa, a única alternativa possível de eleição. Por sorte contava coa ajuda do pároco de Vilarinho, que sempre teve claro o que era ser um homem de sotana, ainda que a leve emporcalhada, e organizava magustos ou o que for preciso à hora dos meetings dos outros, e assim ninguém se apercebia nem que se apresentassem. Quanto trabalho para ao remate perdêlo todo. Às vezes ter que improvisar discursos, e à medida da situação, porque liga de estar ali na taberna algum mais duro de roer. Como aquela vez na cantina de Penacova… já tinha pago o vinho de todos os presentes, já apertara bem as mãos e lhes dera os boletins de voto, já estava a cousa quase pronta e chega o Manuel e lá se foi tudo prò nabo. Ele não vai o mui… e se lhe ocorre perguntarme que por
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quem me apresentava….? “E tu de que partido vens sendo, se não é muito perguntar?” Essas foram as palavrinhas exactas que o Manuel lhe soltara, e assim ficaram gravadas nos miolos do Alcaide. Justamente agora quando já era escusado, quando já estava tudo meio bem atado, ter que andar coa política. Mas eu, que daquela ainda era de centro, deilhe uma resposta bem atinada: “Mirai, eu sou de centro, porque no centro é onde melhor se está” A julgar polas caras que o guichavam dirseia que aquilo não fora mui convincente; sobretudo a do Manuel, com aquele meio sorriso como dizendo “pilheite…!” E agora que me lembro dele… daquela o Manuel gastava algo de barba também. Então o orador que levo dentro, o que sempre convencia à minha mãe para aquilo das boas talhadas, saiu ao resgate: “Mirai, para que me entendais todos vouvos pôr um exemplo que nem precisa das palavras… Se um de vós está, ponhamos por caso, a cortar fatias no jamão, donde vos parece que tirará melhores talhadas, polas bordas ou do meio? Claro que sim! No centro está sempre o melhor, no jamão e em tudo!” Ao Manuel mudaralhe a cara, em vez do sorriso tinha agora uma enruga na testa, mas não era de enraivado, não, era como se dissesse “estou pensando”… e de repente o sorriso outra vez na face, agora, quando a cousa volvia ir bem e todos se mostravam satisfeitos e calmos, outra volta que vai ele e diz: “Mui escolhido o exemplo; mas agora respondame a mim também: se passar por onde um rio e ligar de cair, onde quer melhor ir parar… a uma borda ou ao meio?” O que mais lhe doera foram os comentários dos outros: “Homem, caralho – dissera o tio Rua, que eu já contava com ele – se caires na borda ainda te podes agarrar mesmo que só for a umas ervinhas, e esgardunhas para fora; ora bem, se caíres no meio ainda te podes afogar” A taberna encheuse de risadas, que desde fora podiam escutar até as mulheres… O Manuel deu meia volta, como boi que vence ao outro na chega, e pediu uma cerveja desprezando assim o seu vinho. E ele ter que aturar aquelas burlas depois de lhes ter pagado o vinho e tudo… Claro que depois quando fora de casa em casa tanto o Rua quanto os outros asseguraramlhe que votariam por ele… ali na taberna, pois claro, tiveramse que pôr do lado do do lugar, mas… “não se preocupe você, pode contar co nosso voto” “então pra que ríeis?!”
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E ele contava e recontava, e antes de se abrirem as urnas para o reconto ele já sabia o que sacara. Chegavalhe com contar os que trazem as furgonetas… “Quantos carregastes já?” “Dezasseis de Fontearqueira – incluindo o do cesto –, dezanove de Lourelos, quinze de Penacova e quatro de Ameixeiras” “Mecagoe nos de Ameixeiras que sempre me fazem igual… vão seguir sem as luzes públicas outro par de aninhos mais, a ver se aprendem…!” “E ti quantos levas?” “Oito de…” E assim ia um por um até rematar o conto. Bom, então tenho já cento quarenta e sete justos, se as contas não me falham. Isto de contar os carregados nas furgonetas era, e segue a ser, um método fiável e por conseguinte usado; e não só polo Alcaide, os dos outros partidos não ignoram que ali dentro dos carros se fazem repartições. E poucos são os que se atrevem a contar o que ali se passa, e quando o fazem fazemno tarde demais… – Sim homem sim, quando fôramos co Mulas, bom, tu não foras que já votaras, pois tal como cho conto, tiroume o voto e rompeumo em pedaços, se não foi certo que não veja mais a luz do dia. – Qual voto? – O que levava da casa, e isso que o trazia bem guardado; mas ele coa teima: “ensinamo a ver se vale”, e eu de burra… – Ai raio o nunca parta! Olha ti o galopim; e tu ficarias danada, não sim? – Pois logo não ia ficar, como querias que ficasse… a fé, que fiquei rabiosa! – E logo depois tu não fizeste nada? – Eu? E eu que ia fazer, eu não sei ler nem cousa nenhuma, e pra não parecer que não me apercebia nem donde soprava o ar pois não tive outro remédio que meter o que ele me dera. – Olha lá o languiceiro, e isso que che é sobrinho e tudo; não, se esse temche boa saia, parece um alpavarda e depois mataas calando! – Ai, digote que aquele dia quase estouro co reganho, e eu que queria votar o que me dera a tua rapaza, e vai o fada…! Pois como iam deixar escapulir a uma e enfastiar a recontagem? Assim deste jeito era muito mais fácil…! Por cada burro seu molho, e a cousa não falhava. Porque na verdade isso dos inquéritos à saída da escola, onde está agora o colégio eleitoral, e também se velam ali os mortos, não se sabe mui
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bem porquê, mas não funciona. Por muito que os profissionais do jornalismo se esforcem por o fazer bem, não che é nada… – Mire senhora, você já votou? – Sim, senhora, já votei. – E poderia dizerme você, se for tão amável, para quem votou? – Olhe, você tem que perdoar mas a mim disseramme que o voto era secreto. – Sim que o é, o voto é secreto. – E mas vai você e perguntamo; e logo não vê que se lho digo a você já não é secreto? – Pois tem você razão, e perdoe. – Não há de quê, mulher, não há de quê… E o certo é que o voto não era secreto, que ia ser! Aqui toda a gente sabe para quem vota toda a gente. E a Conceição tem vários filhos com barba, e filhas dessas que não levam saia, e escusado é que lho diga à jornalista porque toda a gente o sabe…todos fora a jornalista, claro. “Se não saís destas eu já não vou votar mais, que já canso de andar arriba e abaixo, eu e dous mais no autocarro eleitoral” No mundo tradicional que vai dentro da cabeça das gentes desta terra, este não é jeito de guardar os segredos, aí expostos ao público em caixinhas de vidro. No mundo tradicional, que mais de um levamos dentro, os segredos, se os houver, nunca deve de saberse que existem, senão não se dão guardado. Em resumidas contas, que ao Alcaide não se lhe escapava nenhum voto sem contar. E antes do fecho das mesas já ia encarregando a ceia num bom comedeiro da Límia para ele e os seus sequazes. Ali comerão e beberão à fartura, mas antes de que comece a ceia, ou cousa nenhuma, ele repartirálhes as pagas, cada um polo que carrejou. Porque ele era bom pagador, e pontual, antes de sair os resultados já tem os homens pagados. Ele era um homem de palavra, e cumpridor. As mais das cousas que os outros lhe apunham não eram tal, ou eram miudalhos sem importância. E esses condenados que tudo têm que saber. Mira que foram descobrir o da retenção dos votos por correio; pois ninguém lhe fora lá co conto e mas eles souberamno. Mas já não podiam fazer nada, depois de retidos tanto tempo já não contavam. E é que o voto por
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correio também tem esse defeito de não ser secreto. Mas eles não os abriam, de isso não podiam acusálos… “de quem vem este?” “Este vem de fulana ou sicrano…” Pois a escondêlo. Mas não é certo que os abrissem sem permissão, isso são tudo calúnias que lhes levantam os outros …esses, esses sim que... E ademais isso das retenções são miudezas comparado coas intenções dos nossos rivais, que mesmo se lhes lê na cara que se pudessem… cuinchavamnos! Eu com eles a sós não me queria topar, e menos no dia das votações… e a alguns das furgonetas já lhes fizeram recuar… não, digote eu que são de caralho virado… felizmente por aqui dos novos não se faz caso, gente nova e lenha verde só faz fumo. Tão sequer, a conta dos anos ainda lhes vamos ganhando, e eles, ainda por riba, assim que vão servindo vãose marchando às cidades, e a cousa ia indo; mas numa dessas vão e sacam um representante no Concelho, e ainda por riba uma mulher… o que me faltava…! O Alcaide, travado polo mau génio daquela lembrança, parou de súpeto e disselhe aos outros que já chegava por aquela noite, que ele já estava canso e que as noites não se acabavam num dia, polo que… E ao olhar para o Perfeuto lembrouse de todos os homens indomesticáveis cos que se tinha ele topado ao longo da sua andaina polas freguesias do concelho quando ia pedir o voto. Perfeuto estaria canso e abatido mas ainda levava na face aquele ar indomável. E vai o Alcaide e soltoulhe: – E tu de que raios estás feito? – De pedra, eu estou feito de pedra… e tu porquê o perguntas, manteigueiro do caralho? O Alcaide marchou malhumorado, manteigueiro ele? Que caraino acredita esse RachaPedras que ele é…? Maldição, porque é que sempre se tinha ele que topar com esses seixos no caminho? Perfeuto também marchou, e Narciso ficou só por uns instantes. Ainda havia vagar para a rompida do dia, e a ele chegavalhe bem o tempo. Arrimouse à boca da pia e viu como a lua cheia bailava lá dentro dela, no bambear das ondinhas que ainda havia na água. Assim com aquela tanta luz, parecialhe que a pedra fora perdendo o grisalho e cada vez estava mais amarelada… como se se misturasse o dourado coa cor das avelãs. Uma cor que lhe outorgava à pia um esplendor que ele nunca tinha visto. Pensou que seguramente seria polo efeito daquelas águas que sempre a
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mantinham húmida. Narciso não queria cavilar no assunto; ele tinha a mente jogando às adivinhas,… de que estaria feito ele…? Se o Perfeuto estava feito de pedra, e o Alcaide de manteiga,… de que se supõe que estaria feito ele? Seguro que de algo intermédio. Por mais voltas que lhe dava não se lhe ocorria nada. E pôsse então a pensar em matérias das que ele gostaria estar feito. De pó das estrelas, ou da luz delas, ou de… Não, isso não valia porque ele sempre ia escolher materiais que lhe fossem gratos, ou nobres. Faria algo diferente, tentaria imaginar os materiais dos que quer o Alcaide quer o Perfeuto pensariam que estava ele feito. Até lhe saiu em forma de diálogo: – E eu Perfeuto, de que crês que estou feito eu? – Tu? Tu… de queijo. – Porque o dizes? – Porque és brando mas ainda se te pode tragar, não como ao repugnante esse da manteiga, que te anoja o bandulho. – Queijo! Bom, a mim não me desgosta o queijo, contudo… que classe de queijo? Duro, brando, de vaca, de ovelha, de…? – Um queijo calado, assim é como deverias ser, que os queijos não falam. Mas a ideia de ser de queijo não acabava de ser do seu agrado; a ver o que pensava o Alcaide… – E tu, Alcaide? – Eu, quê? – De que pensas que estou feito eu? – Tu? De hóstias amoreadas umas em riba das outras. Não, aquilo não lhe estava a dar a sensação que ele andava a buscar. Deitouse no chão e agora olhava para a lua que desde o alto do pano negro da noite dependurava, e ficou calado. Os braços estirados no chão, os joelhos dobrados – E tu, lua, de que pensas que estou feito? Enquanto aguardava olhando para o céu, por uns instantes os dedos entretiveramse enredando nas ervinhas do chão e mais na terra. – Não me vais dizer nada, eh? E Narciso sentou e viu como por debaixo das unhas assomava a terra húmida e negra… de terra! Eu estou feito de terra, de terra e de todas e cada uma das maravilhas que há nela, de terra, da minha Terra… E marchou contente cantarujando aquela melodia dum cantar que de neno lhe entoava a sua avó, e que a ele
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agora se lhe juntava com um verso que não acertava a saber donde lhe viera… E cantarujou: Leva a terra com ele sem ele sabêlo… Naaarará…narará narararaina… Leva a terra com ele sem ele sabêlo… Quem sabe, quiçá as cantigas da sua avó encerrassem alguma mensagem que ele nunca se parara a decifrar, e que agora ao se lhe misturarem com aquelas rimas ele sentia cobrarem um sentido verdadeiro, um sentido que não descobrira enquanto cavava na horta da reitoral em Ameixeiras. Talvez tampouco a sua avó sabia destas mensagens das músicas, mas cada quando que ele as escutava, ou as cantava, faziamlhe sentirse outro, faziamlhe sentir que era o Narciso que ele queria ser, o que ele era realmente e não dava sido de todo… sem poder ver com clareza quais eram as silvas que o prendiam. Se calhar isso de misturar a terra e o céu dentro dum não sempre dá bom resultado… Narciso sonha com encontrar uma estrela que possa escutar os seus nararainas sem ter de subirse ao céu, sem ter de renunciar à terra, da que está feito. * * * Os dous agentes eram para os de Penacova dous forasteiros semelhantes a outros muitos que tinham cruzado já antes polo lugar. Alguns de passo para a Raia e outros buscando informação acerca da Rainha Loba; estes últimos sempre rematavam subindo aos penedos do Castelo para embrulhar no seu pano das mãos algum queixil, aparentemente humano, e metêlo no bolso do seu gabão. Estoutros forasteiros chegaram hoje ao lugar com uma boa sensação. Começavam a gostar de respirar tão livremente como o podiam fazer naquele Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 118
lugar, enchendo os seus pulmões uma e outra vez como se quisessem oxigenarse; certo é que donde vêm eles tampouco está o ar mui poeirento que se diga; ora isso sim, há muitos automóveis. E ali não havia automóveis, ou se os havia estavam guardados ou andavam por aí nas estradas, longe daquele paraíso. Ainda que o trabalho seu ia devagar, eles começavam a se sentir cómodos. Ia como tinha que ir porque ali era assim, em Penacova tudo ia devagar, e não valia que eles quisessem correr, que ademais já não queriam. Quando entravam em Penacova era como se tivessem que botar um freio às suas ânsias profissionais, e até desandar um pedaço do andado antes. Penacova ia tão a modinho que se diz que não chegaram ao presente, ou polo menos não ao presente dos detectives. Penacova andava lá num ponto intermédio entre a era dos martelos da Rainha Loba e a do telefone. E dizse que às vezes os do lugar topamse com gente que corre muito, muito mais que eles, e que os passa, e despois vêemnos lá adiante escangalhados. Também se diz que às vezes vêem, ainda que pareça mentira, outros que vêm ao pra atrás, como aquele que vem de volta. Com estes já não se podem entender… – Não, que isso do sulfato não está bem, tínheis vós razão dantes, não se deve usar; agora já também o têm descoberto os cientistas, fazeime caso e parai de botálos… – Olha…! E que queres, que vá eu ali à leira das batatas e espavente os escaravelhos com um folhato…? E logo então para que raios serve se não o sulfato? E agora, que já gastamos o dinheiro…! – Mirai, que a celulose não vos é nada boa para a pele, por não falar dos carvalhos, e ademais aqui tendes agua à fartura, devíeis usar os cueiros laváveis como os que se gastavam dantes. – E que me mije o meninho no colo…? Porque isso era o que acontecia dantes, agora com estes descartáveis e com tantos adiantos, está uma sempre preparada… e não quererás que volvamos ao da verça em vez do papel higiénico, porque a horta fica longe,… é que dantes era ali o retrete. Por sorte a estes que vêm de volta não lhes calha amiúde passar por Penacova, que senão… já não saberiam se seguir ou ficar parados. Às vezes os de Penacova escutam cousas dessas na televisão, mas então fica a cousa no que é… “é película,… fazemno ver”
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Como quer que fosse, ele aos dous agentes ainda mal não chegavam a Penacova e até o coração lhes começava de ir devagar, quiçá tinha algo que ver coa altitude da montanha que, como diria o outro, não é o mesmo. Ora de certo, quem o sabe? Aquele dia sentiamse eles muito à vontade caminhando pola rua do Rego abaixo, iam em mangas de camisa e sem gravata. Na mão o bloco das perguntas e na cara um sorriso amigável. Quando chegaram onde a casa do Ferreiro viram a porta da forja fechada e olharam para arriba… a porta do corredor estava aberta, e lá dentro, sentado no escano, estava o tio Serafim, que lhes acenou coa mão para que passassem adentro. O tio Serafim ia algo velho, e dês que já não valia para a forja, que fora a companheira que marcara o latejar do seu coração ao longo da vida, ficava só no corredor ainda que gostara bem de ter companha. Eles passaram e sentaram a petição do ferreiro; Riba sentou ao lado dele no escano, e o seu chefe numa cadeira à direita, quase enfrente do tio Serafim. – Olha, olha… então vocês são os forasteiros que andam a visitar este nosso mundo… – Pois sim, somos nós… E entretanto o mais velho dos agentes dizia isto, olhou para o tio Serafim, que teria bem para aí uns noventa e tantos, e viu que na orelha levava um audiofone. À primeira pensou que era uma fatalidade, mas depois pensou que não era tão má cousa que o tivesse porque é certo que nestas idades quer mais quer menos todos lhe topam a falha ao ouvir, e assim sequer, sabemos que nos ouve. Acrescentou:… e já que estamos aqui, poderíamoslhe pedir que nos contara o que souber você da pia? – Sim, sim eu bem que lia, e ainda leio se tenho o que, escusado é dizer que o que é vagar não me falta. Olhem, traime o meu neto os jornais atrasados que vai juntando ao longo do ano, é que ele vive fora daqui e claro, traimos quando lhe ligar. E eu leio tudo o que vem neles, até as temperaturas todas do mundo. O outro dia saiu uma carta dum homem que falava disto mesmo, não das temperaturas… senão de se se lia ou se não lia. E publicaramlha aí no diário, sim, sim…como lho conto, agora um pode mandar as cousas aos jornais e eles publicamnas e não se passa nada. Não é como dantes, que havia que andar medindo mui bem o que se dizia, quanto mais o que se escrevia… Ora
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este fulano que escrevia no jornal do outro dia, desses que me guarda o Daniel, penso que era num dos boletins de Agosto, a ver se o tenho… é uma notícia que inda não tem nem um ano… O tio Serafim fez ademães de querer buscar na moreia de jornais que tinha ao seu lado no escano e depois disse… – Mais não é preciso que o colha, possolhes repetir o que dizia…, o que escrevera a carta tinha um nome assim como catalão, é que o Daniel mora em Barcelona, … não me vem arestora à cabeça como se chamava, ora o que dizia inda não me esqueceu, e isso é o que conta… Pois dizse que segundo conta o tal catalão que escreveu a carta, que eu não tiro nem ponho, se por mentira veio que por mentira vá… mas segundo o tal… Albert, veioseme agora à cabeça, chamavase Albert, Albert… não sei que mais. O tal Alberte diz que, segundo uns estudos que se fizeram, os políticos de agora deixam muito que desejar a respeito dos seus hábitos de leitura. Que manda…! Poder falar assim dos governantes…! E baixando um chisco a voz o tio Serafim acrescentou: – …E seica, que olha que eu não sei se o crer, que esse presidente que há agora, esse último que entrou das direitas, é o que menos lê de todos eles. Ele dizse que a cousa vai a menos e que se isto segue assim, que os livros chegará um dia no que desaparecerão. – Pois homem, pois é,… E da pia, que me diz você da pia? – Como? Que o que lia? Pois o que podia. Dês que o Daniel me guarda os jornais não tenho queixa, mas antes lia até o que vem nos macetes do tabaco… o que ligasse. O caso é ler algo, para não perder aquele costume, depois de que o tens colhido, claro. Porque também vos direi que aprendido ninguém nasce. E não é assim de hoje para amanhã que um lhe colhe o gosto à cousa. Não, que vai ser. À primeira custa até de manter a vista no carreiro… quanto mais! Vem sendo como o da arada; a primeira leira na que te atreves a ir detrás da rabiça, minha madrinha querida…! Não te quero nem contar como vão ficar esses regos, não há nenhum direito. Ora depois mole e mole a cousa vaise compondo e uma vez que o sabes fazer já é pra sempre. Esse saber não há quem cho tire, nem o partem irmãos. Pois isto da leitura évos o mesmo, é questão de apontar bem co temão as palavrinhas e não soltar a rabiça; e se
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ligasse que te saltaras uma linha, pois já volverás ao rego, o caso é não perder a paciência. Também, e seguindo co do arado, cumpre que se tenha boa relha, que isso seivolo eu bem que apontei umas quantas. Se a relha não é boa o arado vai aos golpes e colheche para onde quer, mesmo podes enrelhar uma vaca, ora que, se a relha defende…! A relha vem a ser como o interesse do leitor… se gostas do que lês não há linha que se possa resistir; isso é, por dura que esteja a terra, mesmo à hora da decrua, se a relha está apontada a consciência – e eu deixavaas como se fossem cutelos, Deus me perdoe – rego vai e rego vem, abres a terra sem te dar conta. Tudo tem a sua ciência, e se dás com ela, qualquer que seja a tarefa que empreendes, de ali em diante todos os santos te hãode ajudar… Quando o detective chefe escutou isto último espertouselhe um grande interesse de repente… Tinha sentido o que dizia o velho ferreiro, e isso explicaria porquê eles ainda não deram convencido a ninguém de que lhes contara o da pia… “Claro, agora compreendo” Entrementes ele andava com estas reflexões, o tio Serafim seguia falando, e Riba procurava que não se lhe escapasse nenhuma das palavras que saíam da boca do homem sem analisála bem primeiro. – …e agora há muito que ler, não lhe é como nos meus tempos, dantes só liam os mestres e mais os curas. O cura inda porventura era um homem mais lido que o mestre, polo menos naqueles tempos, talvez agora têm baixado também… Essas últimas palavras sobre o saber dos cregos foram a convergir cos pensamentos do detective, que andava a buscar onde podia topar esse elemento científico que lhe abriria o caminho das perguntas como relha que labora na terra… Claro, o abade, como não se lhe teria ocorrido antes? Iriam ao lugar de repouso onde morava dom Aurélio, o velho abade, e falariam com ele. Se há alguém que saiba algo esse será ele. Aquela entrevista ajudaraos mais do que eles poderiam ter antecipado, e com mais atenção que antes escutava agora o que o Serafim ia dizendo. – …pois olha que te anda a cousa bem ao revés, agora que se pode ler o que se quiser, pois não vai a gente e se nega…? Claro que tampouco fica já quem are as terras, nem quem aponte uma relha… se quadra vai tudo junto,
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fruto da mesma doença… mas eu estou falando demais, falem vocês que seguro que têm cousas mais importantes que contar; eu só sou um velho ferreiro que já nem ofício tem, nem ninguém a quem lho deixar, quanto mais saber do que falar. – Não, você disse cousas que nos serão de grande ajuda…. E enquanto o detective dizia isto, o tio Serafim botou a mão e pôsse a apalpar na orelha, mentres dizia: – Perdoe você, que não escutei o que me dizia… é que tinha a cousa esta baixada para não me aboujar enquanto eu falo… siga, siga, que agora já lhe ouço bem. – Nada, é que nós já nos temos de ir indo. – Pois que mágoa que tenha de ser assim, porque com vocês dava gosto de falar. Despediramse do senhor Serafim, que ficou lá no seu escano com um dos velhos diários na mão e entoando uma canção que a eles lhes pareceu mui agradável, ainda que desde abaixo não podiam entender o que dizia. Perguntaramse se o senhor Serafim baixaria o volume do aparelho da orelha para não ouvir as suas próprias melodias, ou se pola contra, aproveitando que ouvia bem agora, queria saborear a sua cantiga. Contentes por ter dado coa ideia de visitar ao velho abade marcharam rua arriba em direcção ao seu carro. * * * Atinara bem o Alcaide querendo parar mais cedo a outra noite… disseralhes aos companheiros que lhes chegava bem o tempo, e assim era, numas poucas noites estarão na sua próxima fonte, a Fonte do Jardim. Só umas quantas jornadas mais, portanto ele guiaria devagar, para quê matarse se tinham lua avondo para chegarem. Na verdade, pensava o Alcaide, que também tivera sorte, por aqui por onde andam o terreno tornarase agradável e ademais ao iremse achegando à aldeia os caminhos andam algo melhor governados e tudo são facilidades. Deve de ser o seu destino, que sempre se encarrega de lhe dar a ele a melhor parte. Talvez haja muitas cousas que já iam no seu sino, como aquilo de nascer para ser alcaide para sempre. E vão esses, Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 123
que não fazem mais que fumaceira, e fazemlhe perder a cabeça. O desses não tinha nome, fazer que se torça assim o destino dum homem… que nascera para mandar. Aturouos quanto pôde, e mira que nas aldeias onde havia destes ele sempre lhes dava graxa…, fazendo como que os entendia. E mas eles não se contentavam com nada. As últimas obras públicas que ele recorda ter feito em Penacova, quase os tem que obrigar a aceitálas e compreender os seus benefícios. Ele querialhes fazer uma calçada como tinha feito noutros lados. Deulhes a escolher por onde é que a queriam. Polo meio do lugar estava descartado porque senão depois já não passam nem os carros, ou os tractores, que vêm a ser o mesmo. Isso qualquer o entende, e eu compreendio também. Mas logo vai e ofereçolhes fazer uma calçada ao longo da estrada que vai do lugar até ao cemitério, e vão eles e dizem que não, que eles não gostam… que não sei quê de estragar a paisagem rural, e não sei quantas cousas mais. Vou eu com toda a minha boa intenção de lhes levar algo de progresso e modernidade e saltamme com essas parvadas… e não sei que mais do meio ambiente... E que ademais os mortos não precisavam de calçadas para os seus passeios, que havia que fazer algo mais polos vivos… Vamos, que ainda se riram à conta minha. Pois logo… que vos parece se em lugar de nessa estrada fazemos a calçada da aldeia até à Ranha? “Sim claro, mui atinado, para que passeiem as ovelhas que são as que vão para esse lado… ou senão para subirse por elas e coa carretilha ir às verças…” Pois logo não faço nada e assim não me meto em sarilhos. E eles venha é dálhe co que eles queriam… “nós queremos empedrar aí abaixo a canelha que vai ao Campo, e falando do cemitério, ali não nos viria mal uma bilha para colher água, que há que a andar carrejando desde o meio da aldeia… isso sim que faz boa falta”. “Olha que são burros” – pensava o Alcaide –, “não entendestes nada, o dinheiro já está aprovado e, ou vos coloco as aceras, ou ficais sem nada” E aí foi onde quase lhes ganhei a partida, porque alguns avarentos, que não podem rejeitar nada, começaram de reformular o da calçada essa da estrada… “Homem, se os vai devolver…, melhor é isso que nada” “Mas olha que sois néscios, e não vos valorais nada – seguia um lenhaverde, ou até penso que era ‘uma’ – a calçada aqui escaralha a paisagem, que é o único que nos fica já, ainda que já está bem escaralhada…” “Mais olha que lá ao monte a calçada não chega, não escaralha tanto a paisagem, vamos
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digo eu, ora eu muito disso não entendo…” – o avarento treme só de pensar que um peso escape – Mas eles, nada, seguiam e seguiam e seguiam… “Mirai o que vos digo!” – segue a dizer a da saia verde, enquanto saca as mãos dos bolsos dos seus jeans e as move gesticulando – “…uma calçada cara à Ranha ficaria tão bonita como uma vezeira de ovelhas pascendo na Praça do Obradoiro em Santiago de Compostela” E lá gargalhadas, e eu, canso já de tanta risada dos de Penacova, estive para marchar, mas afinal, e para não ficar tão mal, porque alguns ainda me votavam, os mais deles eu diria, autorizei o da bilha para o cemitério, e marchei dali como fugindo do inferno. Mas eles nunca se contentam, parece que não lhes chega nada. Arranjeilhe os poços de lavar, onde havia um velho de pedra, no seu lugar fiz três novos com cimento, um para beber o gado e outro para lavar, e o outro para…, três, para que não se queixem, e tampouco gostaram deles. “Nós queremos que nos arranjem o forno que está caindo aos cachos”. E para que querem o forno se não cozem? Vão lá para aí vinte anos que não cozem nada e acordamse agora de se lhes chove no tendal, ou que se o pavilhão precisa uma porta nova, e dános algo para a pá, o rodo e mais o vassoiro, e que não lhe metam tijolos refractários, que para cozer é preciso usar os de barro… Pedir, pedir, pedir,… e os que mais pedem são os que menos me votam; ora claro, por não ficar mal cos velhos, que são dos que me eu nutria…, e por certo não de todos, que em Penacova já desde a época de Franco houve desses revirados que falavam de política e que não iam muito à Missa; claro que enquanto não morreu o Velho estavam todos calados, e eu feliz como o rapaz que queria ser alcaide. Ora dês que morreu o Velho, estes, junto cos barbasverdes, e mais algumas mulheres, fizeramme a vida impossível… até que quase perco o sentido, e aconteceu o que tinha de acontecer. Estes pensamentos traziam ao Alcaide triste e malhumorado. Porquê não o queriam todos? Se ele era o melhor alcaide que tiveram, ainda mais que melhor, ele era quase que o único alcaide que tiveram… e mas alguns não depreenderam a querêlo. Em que falhou? Que teria que ter feito que não fizera para contentálos? E com aqueles pensamentos chegara, quase sem ele decatarse, à primeira fonte da sua guiada. Era cedo, e depois de beber eles e mais darlhe a sua parte à pia, sentaram à beira daquele formoso manancial.
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Era a Fonte do Jardim. Com uma água esquisita. Com uma paisagem nocturna única. * * * Por certo que Nuestra Región não volveu a mencionar o assunto aquele do velho… sim homem, sim, aquele que namorara e se fora lá ao Caribe coa mocinha aquela nova em luademel sem casar nem nada. Eia, isso sim que está bem feito! Comer o mel sem aguentar o aguilhão…! Quem sabe, se calhar a cousa não foi adiante e não vão arejar assim o sofrer do pobre homem, que já lhe chega bem com não poder fazer a sua obra benéfica e teve por riba que perder tão pronto a moça, agora que lhe saíra. Ou dizse que pôde morrer, que era bem velho… homem, velho, velho, não era, mas com esses desgastes que se diz que lhe levava fazer vida de… de como se fosse moço, vá! Pois não se diga nada…, olha que os golpes fazem amolecer até as pedras. Mas não, mulher, não pode ser, que se morrera já se teria sabido polo jornal, não sim? Pois claro, não iam desaproveitar uma ocasião como esta para lhe brindar homenagem a um homem que lutou toda a sua vida por… polo que fosse, isso é o menos importante… Mas um homem lutador bem merece ser reconhecido quando morrer, senão é como se não tivesse vivido. E ele viveu, vá que viveu. E viveuche bem. Mas agora de morto Nuestra Región já nem sequer se lembra de que ele queria ter feito a sua obra benéfica, e por culpa de que ninguém topara a pia ia ele ter que deixar este mundo sem cumprir esse desejo… ele, que não estava afeito a deixar assim como assim um desejo sem saciar. Homem! É que, se calhar, ultimamente andava tão saciado doutras cousas que nem sequer se apercebeu que ia deixar este mundo sem fazer a obra essa. Ele quereria ser lembrado por algo mais que por ter ido ao Caribe coa mocinha essa que… que quem sabe que andará agora fazendo a pobre. Terálhe deixado algo o velho? Mira que se ainda por riba vai e não lhe deixa nada, sim que seria foda… Homem pois é, mas ela já sabia bem a que se expunha, ora que uma cousa é saber e outra saber… Porque se soubera não teria… ou talvez sim… A gente éche mui má de entender, e isso sãoche tudo murmurações, ou pensamentos dos que não lhe querem bem. Seguro que ele está por aí vivo, o que se passa é Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 126
que há gente à que lhe dá reganho que os ricos vivam tantos ou mais anos que os pobres. Homem, pois também não estaria mal que fosse uma cousa proporcional… tu queres viver melhor, pois gastaseche a cousa antes, e agora morres novo… e tu, aquele outro de acolá, vaiste sacrificar e não dilapidar nada, … pois vais viver algo mais… e assim se calhar isso de ser milionário não tinha tanto aquele, e a gente seria menos invejosa uma da outra, e não lhe desejariam a morte a ninguém…, vamos digo eu… Ora quem o sabe, se calhar nem morreu.
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Capítulo VI
A FONTE DO JARDIM Entre coucheiras de juncos e de fentos, onde a primavera espargiu generosa as suas flores, ali, no meio da regata húmida e frondosa, abrolha a Fonte do Jardim. À sua esquerda ficam as touças do Castelar, que bem seguro recebem esse nome por subiremse os seus carvalhos quase até às fraldas do Castelo Velho. Em frente, os lameiros da Alobada descansam agora, nem a água da rega precisam receber de noite; são eles ricos e fazem sentir rico a quem os contar entre as suas meras. Fazem sentir afortunado a quem tiver a sorte de os ver, ainda que só fosse estando de passo e no meio da escuridão, como lhes acontece a estes três viageiros da noite. A humidade desta fraga que estoura de tanta vida que mantém, carvalhos, vidoeiros, castanheiros, amieiros, salgueiros, sabugueiros, cepas de vimeiros, azevinhos, loureiros, sanguinhos, ameixeiras, espinheiros, gestas, piornos, uzeiras, carquejas, tojos, carpaços,… dálhe ao verde o seu senso plural. Nenhum dos três homens sentira nunca, apesar de que a luz que os alumia não sobrava, um abraço como o que a Mãe Natureza lhes estava dando no Jardim, e que cada um ao seu jeito estava a experimentar. Ainda havia vagar até que chegara a hora de marcharem, portanto os três e a pia beberam e gozaram das sensações que mesmo os anovavam. Beber e empaparse. Dom Narciso sentiase um coa terra e quis incorporar à sua vivência àqueles seus companheiros… se eles eram parte da terra, daquela deviam, por força, formar parte também dele. E Narciso olhouos com tal franqueza que os dous homens pareceram sentir aquele abraço emocional. Perfeuto quis torcer a cara, dar a volta e olhar para outro lado, mas não o fez e em vez disso resistiu. As bágoas em fio face abaixo. Dentro a batalha entre sentires que semelhavam contrários, e afinal, a calma. Enxugou os olhos coas Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 128
costas das mãos e ajoelhouse cara à fonte e bebeu. Com cada golo enviado sentiu como aqueles pedaços negros, que se lhe desfizeram coa luta, eram lavados e expulsados fora dele. Já não os sentia. Já não mancavam… fora o medo aos espelhos da alma, fora o medo à mornura do olhar amigo, fora o medo a quererse a si mesmo. Por primeira vez, num tempo que a ele lhe parecera eterno, Perfeuto gostava de olhar o seu próprio reflexo na água limpa do Jardim. Ergueuse, caminhou até Narciso, e pondo uma mão sobre o seu ombreiro, disse: “graças amigo”. “Não se merecem, irmão” foram as tenras palavras de Narciso. Sentaram nas pedras da beira do caminho e os dous buscaram o Alcaide coa olhada. O Alcaide, de costas para eles e a fonte, lá a uns poucos metros, estava de pé direito cos braços caídos em frente dos carvalhos. Ele também quisera ter experimentado o que, a julgar pola sua reacção, fizera estremecer o seu companheiro. Ele também recebera a mirada de Narciso, ora… receberaa realmente? Porque ele não sentira nada. Que levava ele dentro que parecia filtrar tudo o que até ele chegava deixando assim estéreis os mais sinceros intentos de comunicação? De que dianhos estava ele feito? Nem sequer seria de manteiga, que a manteiga tem a capacidade de tremer e até de se derreter co calor. E ele não sentia nada. Ele era como aqueles carvalhos aos que tanto lhes tem que chova ou vá calor. Ele devia estar feito de pau. De madeira seca e velha. E com aqueles pensares, que não sentires, foise bosque adentro e desapareceu. Até a noite seguinte não o volveram ver. Narciso e Perfeuto falaram e beberam e deram água à pia… “Toma tu amiga, que nos trazes a todos por duros caminhares” dissera Perfeuto com um tom que a Narciso lhe parecera tranquilo e até tenro. Narciso achegouse com as suas mãos carregadas de água para lhe dar também ele. E os homens perguntaramse polas sedes da sua companheira de pedra; mas não tentaram topar resposta em vãos exercícios intelectuais. Não, a sua não era realmente uma pergunta, era só um querer fazer próprio o sentir da pia de pedra. Uma pedra que cada vez se via mais reluzente e dourada. Aquela noite quando a esconderam na beira da folhagem da carvalheira, trataramna com muito agarimo… como se fosse um ser vivo. Até um deles dissera: “aí ficas sozinha até amanhã à noite”. Mágoa que o outro companheiro não pudesse participar daquele
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renascimento, onde andaria o Alcaide? Aguardaram um bocado. Não chegava. Narciso e Perfeuto marcharam juntos para o dia. * * * – …Vês tu como levava eu razão, e Nuestra Región não falou nada do abade esse que assou os santos? – E a ti que mais che tem, se tu só lês o chiste do Carrabouxo? – Que terá que ver isso! Eu bem vi que não puseram nada de nada, ainda que eu não o pensasse ler, eu para perder o tempo chegame co chiste. – Pois não fazes mal de todo, porque eu leio quase por inteiro o que diz o jornal e ao cabo sempre penso que foi uma perda de tempo… – Ai pois logo por sorte a ti tempo não te falta! Que senão… – Quê? O que me sobra a mim é vagar, que aqui nesta Delegação da Conselharia não há nada que ranhar… – Então tanto che tem, dum jeito ou doutro hálo ter que matar… – É o que eu digo, e o jornal vemme ali de graça, oh, senão também, caralho! Um cão por ele não malgastava, não tivesses medo. – Homem, eu o chiste guichoo ali na taberna, e depois passo pra ali um pedaço de parola cos gandaias do Pardieiro e já não che tenho vagar para mais nada, mas tu lá sem nada co que te distraíres, nem gente à que atender, que vais fazer…? – Nada homem, nada, se não fosse por Nuestra Región encheriacheme eu de pensar…
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* * * …Os agentes iniciaram aquela entrevista carregados de expectativas, e fizeram um trabalho excepcionalmente paciente. De não ser assim já se teriam marchado nos primeiros minutos, logo de ver que o abade desconfiava tanto deles. E eles volta a lhe assegurar que não tinha de que se preocupar, que eles vinham de boa fé; mas isso da boa fé já não era suficiente para aquele homem algo avelhentado pola vida de semireclusão voluntária, ou por vai saber tu o que… – … – Não, não tem nada de que se preocupar, como já lhe disse, nós só lhe queremos falar dum assunto relacionado com uma das últimas freguesias onde você disse missa, mas não deve apurarse, que nós só estamos interessados em ver se a sua memória nos poderia guiar nalguma direcção para poder seguir investigando o tema que, desde há uns meses já, nos ocupa e ao que não damos entrado bem. – … – Sim, podese dizer que nós somos como… vá, que pertencemos assim como à Polícia; mas nós só vimos a falar com você para ver se logramos alguma pista que nos leve a saber algo da pia desaparecida. – … – Não, nós não pensamos que fosse você, que já nos disse que não sabia onde fora parar quando a levaram do museu, mas a nós o que nos seria de grande ajuda é saber se você tinha alguma informação de quando a pia fora levada de Penacova por primeira vez, e não desta última desaparição. – … – Não, nós só estamos interessados pola pia. Nem os altares barrocos nem os confessionários, nem mantéis ou cousas polo estilo nos preocupam neste momento… Mentres o mais velho dos agentes seguia a levar o peso daquela monótona conversa, Riba tratava de imaginar os altares barrocos dos que o abade se pusera a falar. É certo que eles não entraram dentro da igreja nunca, entre Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 131
outras cousas porque eles visitavam Penacova em dia solto e daquela a igreja estava fechada. Quando se encontravam com alguém a quem lhe poderiam quiçá perguntar pola chave, preferiam aproveitar para lhe fazer perguntas relacionadas coas sua investigações, e a cousa foi indo sem que eles passaram nunca adentro, tendo que conformarse coa olhada através dos vidros da janela que dá à parte de atrás do sagrado. A igreja estava fechada para evitar que desaparecera nada… Mas como dizia o outro… – “Pois não sei eu que haviam de levar da nossa igreja, como não levem o abade, outro dianho de cousa ali não fica!” – “Mira que eu conheço bem igrejas, e mais nunca vi uma tão desvalijada como a nossa” – “Homem, está calada por Deus, que até lhe arrancaram as lousas da parte em alça onde estavam colocados os altares… agora, Deus me perdoe, parece uma corte para as vacas” – “Mesmo dá reganho ouvir missa assim … e que me dizes dos poucos santinhos que ficaram?” “Isso, felizmente alguém teve a ocorrência de os esconder das rapinheiras mãos do pároco durante aquela temporada, que senão também teriam desaparecido canda o resto, e nós ficávamos a vêlas vir” – “Ai, eu hoje vouvos ir à missa do Corpus a Ameixeiras, que ali tão sequer ainda não desfizeram a igreja” – “Contudo, os cregos roubam muito de Deus…” Pedaços de conversas como esta batem de vez em quando nos miolos do abade, e isto deixase notar porque ele relampa muito os olhos e põese como se vira o demo ou a sua própria senha… mas neste instante o senhor abade escuta o que lhe diz o detective e parece sossegado. – …nós não temos nada na sua contra, ao revés, eu diria que nos merece você o respeito devido a um servidor da comunidade… em certo jeito como nós mesmos. E esta é precisamente a razão pola que o seu testemunho nos parece de grande valor. Você passou muitos anos naquela freguesia e tratou com toda a gente que poderia ver ou estar interessada na pia que desde sempre estivera ali na igreja… Aguardo que não duvide das nossas intenções, doulhe a nossa palavra. – disse assim, sem sequer consultar o Riba coa olhada. O abade ficou calado um pouco, como processando o que lhe diziam… ou quiçá estivesse sendo visitado por algum daqueles diálogos que desde dentro do seu crânio lhe boureavam a cabeça, e depois pôsse a falar outra vez.
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Riba aproveitou a desorientação do abade para seguir a trazer à sua memória lembranças da Igreja de Penacova. Ultimamente andaram limpandoa por fora e ficara com essa cor amarelada característica da pedra velha que a ele lhe parecia formosíssima. – “andam a ponhêla mui gabacha” – sentira Riba numa conversa um dia – “se calhar é que também a querem levar… claro que só têm que levar as paredes, o resto já lá o têm…” – “e por sorte os homens daquela, quando marchara o abade com tudo, não lhe deixaram levar o relógio, que senão… onde ele iria?” – “Não saberíamos nem a hora que é” “Ele não, filha, não”. Riba participava da admiração colectiva para aquela pedra com forma de homem que está lá na direita onde começa de se erguer o campanário, e que dá a hora co sol. A Riba deralhe algo que matinar a diferença que havia entre a hora que marcava o seu relógio de pulso e o de pedra, quase duas horas… uma hora era explicável, por aquilo da mudança para o aforro de energia, lá onde suponha tal, ora duas… mas não tardou em aperceberse de que a hora que se veste nas agulhas dos relógios é a do Mediterrâneo, ainda que aqui se viva na do Atlântico, como na vizinha Montalegre. O abade pôsse de novo a falar: – … – Mire eu não posso fazer outra cousa que darlhe a minha palavra; ora bem, possolhe prometer que o que saia desta reunião não terá nenhuma repercussão negativa para você. Só queremos que nos ajude na procura da pia, não prejudicálo a você. – … – Não, a você ninguém o acusou de nada, nem há denúncia de nenhum roubo de altares ou confessionários ou cousas assim… que já sabemos que você levou tudo isso mas não foi para vendêlo, que não serviam. Não se incomode, que já mais gente nos disse que os altares andavam caindo e precisavam que alguém lhes botasse uma mão… Ora como o orçamento co que você se tinha que arranjar não lhe abundava para governálos, pois que decidira outro meio para resolver o assunto antes de que lhe caíra o Santo António em riba, que já andava buligando lá no alto da repisa. E sim, também sabemos que por causa disso você colocou o santo no chão, num recanto junto co Santiago, a quem lhe partira a espada e mais perdera o chapéu, e coa virgem
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do Carmo, que andava ela mui mal pintada… e quando depois marchou cos altares esqueceu os três ali no chão… e que quando volveu por eles para os levar para a incineração final, não os topou por lado nenhum e logo mais tarde compreendeu que a gente os levara e os escondera nas suas casas, que também cumpre valor; e também nos disse que afinal os devolveram à Igreja, mas que ao Santo António lhe fizeram um banco de madeira, ao Santiago lhe colocaram um livrinho tapando o pedaço de espada rota que lhe ficava na mão e levava agora um chapéu feito de palhas… desses de ir à seitura, e que à virgem do Carmo traziamna toda pintada que era um primor… E claro, já era tarde para os levar e se desfazer deles… ora já sabemos, que nolo repetiu você muitas vezes, que não eram para vender nem cousa nenhuma… que isso só lho apunham as más línguas, mas de certo não tinha nada. Que você sim que o queimara tudo no pátio da reitoral da outra freguesia de abaixo, porque em Penacova você já não tinha reitoral, que a vendera nada mais chegar, e que agora no que fora a reitoral de Penacova estava a taberna, que era a única tenda que havia no lugar, e da que se servia a gente para comprar desde aspirinas até lixívia, sem esquecermonos do tabaco, as pilhas e os pitos congelados… E claro que tem razão… por culpa de estar ali a taberna… que tampouco se podia fazer ali lume no meio do pátio e que ardera tudo junto cos altares e todas essas cousas douradas e retorneadas fora de moda… Mas nós já o sabíamos e não desconfiamos, como outros fazem, de que você não lhe chispara um fósforo a tanta cousa inservível… E também concordamos com você em que a ideia de queimálos era melhor que a de enterrálos no horto… que sim, que você à primeira disseralhes aos vizinhos de Penacova que os enterraria como lhe sugeriram eles… mas que logo você pensouo melhor e que creu que se se enterravam tardariam em apodrecer e sairiam quando se cavasse ou esgaravatassem os cães e não pareceria nada bem, portanto escolheu o lume que derrete tudo a escape… E não se alvorice, que nós sabemos que não é certo que lhes dissera o do lume para poder ir levando tudo para a outra freguesia e depois vendêlo tudo a um museu ou a um coleccionista privado de… donde disse você que dizem que era o tal coleccionista? – …
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– Não, se eu já sei que é tudo inventado por esses de Penacova que já deixaram de crer nos curas e agora levantamlhe contos para a gente ir por aí pensando que os abades são todos uns aproveitados e uns desalmados... mas não se preocupe que nós isso já lho sabíamos. E não acreditamos nisso do coleccionista que dizse que viera de fora daqui, e que nem sabia falar o galego, nem tão sequer o castrapo, e que lhe enchera a bolsa de dinheiro… ademais tem você razão, quanto pensam eles que lhe podiam dar por uns altares aos que já não lhes brilhavam os dourados e nos que alguns santos buligavam entre as colunas retorneadas dos cangalhos…? E ademais eram mais antigos que Matusalém, … nós cremos o que você diz, e por isso gostaríamos de que nos falasse algo da pia… – … – Homem…! Como vamos nós pensar que você tentou queimar a pia? Já sabemos bem que não, que ademais à pia ao ser de pedra não lhe passaria nada… já nos ficou claro que você só lhe plantou lume aos altares e os confessionários e mais aos santinhos que deu apanhado… e também já nos contou que alguns se lhe escaparam… e que não era culpa sua, que fora a gente a que os escondera nas casas… tampouco ia ir você de casalandreiro a meter as ventas a ver se estava ali o Santo António ou algum dos outros. E tem muita razão ao pensar que esses de Penacova ainda se haviam de rir à conta de você se o fazia… e lhe diriam: – “Passe, passe senhor abade, que o santinho estálhe aqui connosco ceando ao quente…” E agarrando um tição desses mais gordos da lareira acrescentariam: “ai, que se chamuscou um nada no lume o coitado…! Se vê que bebeu muito vinho na ceia e deulhe o sono e caiu no lume… mas olhe, assim ainda lhe dará menos trabalho a você, não sim? Se quer rematamos aqui o trabalho e assim tão sequer ainda nos quenta as canelas…” E tudo o diriam só para burlarse enquanto escondiam o santinho lá no fundo da ucha entre a brancura dos lençóis de linho, ou envolvido nas roupas do casamento que guardam no mesmo sítio, ou até debaixo da erva no presel do boi chegariam a esconder a Virgem… – “Porque em casa se calhar dáselhe por entrar a dom Aurélio e… a um cura não se lhe pode dizer que não passe assim como assim… e ademais eles coa sua lábia vãote enredando, enredando, e quando te queres dar conta já lhe disseste do ninho, e porventura
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nem te apercebes… ai, mas eu amoleio de raio! A ver se se atreve de entrar à corte onde o boi!” Por isso você não fez por topar os santinhos que faltavam, e depois, claro, quando apareceram já era tarde… e não é certo que o coleccionista não lhos fosse a querer… ainda que alguns dizem que depois da repinta que lhe meteram à virgem do Carmo não havia Deus que a quisesse… e isso que lhe colocaram bonitas alfaias a jogo coa sua coroa…; contudo já sabemos que isso do coleccionista era mentira. Que você só fez o que fez, e mais nada. A cousa seguia e seguia, mas o abade não soltava prenda, e tiveram que marchar, mas não sem antes falar cos encarregados daquele lugar de repouso por se escutaram a Aurélio falar alguma vez do assunto que lhes interessava. Segundo os cuidadores, havia já tempo que Aurélio se empenhava só em repetir a história da queima daquele património da Igreja de Penacova ou património de todos, segundo a gente, deixado ali polos antepassados, e roubado polos curas. Ele houve um tempo em que o crego chegara quase a aceitar a ideia de que quiçá pudesse ser que tivessem razão os que diziam que os vendera ao coleccionista que viera da Terra Ancha. Alguns incluso dizse que lembram como o tal coleccionista presumia de experto e que até se gabava de que sabia onde, e a quem lhas fazia. E assim aproveitando a ignorância dos que desconhecem o valor do que têm, e pensam que ainda lhes fazes favor se lho liquidas, ele iase pondo cada vez mais rico. “Podeselhes roubar tudo o que têm e nem se apercebem, …se me apuras até a língua lhes poderia arrancar, ainda que a levem na boca, e ainda que a levem fechada; porque a mim, como sabem que são de fora, não me ladram” dizse que dizia o coleccionista, se bem ele diziao na sua língua, que por certo não a deixava descansar muito, que seica latricava até polos cotovelos. Ora esta aceitação da possibilidade da venda e do coleccionista não durara muito, apenas uns meses, e de volta coas luminárias. Os cuidadores não acreditam que queimasse nem os santos nem os altares, bem seguro que os levou, e por riba com enganos para que os vizinhos lhe carregaram tudo no carro… E a gente, de parva, não desconfiara nada, e isso que ele repetialhes a todos: “tende conta, que os quero intactos” ou talvez alguém sim que compreendera, mas tampouco era
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boa cousa ir contra o abade, que daquela ainda tinha algo de autoridade, e mais lábia para te fechar bem o bico se o abrias sem a sua licença. Ora bem, enquanto o andava rondando a imagem do coleccionista, parecia o homem mais sossegado, e todos desejavam que a aceitara definitivamente, mas ele nada, volta co lume, e daí não há quem o tire. Não, eles não crêem que queimasse nem os santos nem os altares, porque senão, para que queria andar co trabalho de os levar para a freguesia de baixo, onde ninguém, por certo, cheirara o fumo nem cousa nenhuma? Ou é que para carbonizar os santos e as outras trapalhadas não lhe chegava a eira das Cabras, mentes elas andam no monte? Ou a da Linheira, que o linho deste ano já está maçado e mais fiado, ou mesmo a da Festa, que antes de que se celebre já se haviam de apagar as chamas… E ademais fazendoo ali teria muito quem lhe botara uma mão e lhe ajudara a chegar o lume… “Eh tu, que fica atrás um cangalho de uvas que caiu daquela coluna retorcida que botaste…!” “Ai, pois bota para cá, caralho, que estes para fazer vinho não valem…” “E aquele santinho pequerrecho, de pêlo crespo e dourado, como dis ti que se chama,… ou chamava?” “Aí che passo o braço da santa Luzia que deste lado não arde, e por aí tendes mais brasa…” “Eh, olhai a cor da labareda que faz o manto daquele santo…!” E assim a foliada teria sido para todos… e ademais a gente poderia aproveitar para queimar os farrapos velhos, como faz uma vez ao ano, e aforrarseia um lume, e mais lenha e trabalho. Porque a roupa velha, só, não arde de gana e háde andarse sempre a remexer e acrescentar lenha… olha se teriam ajudado aqueles altares velhos tão sequinhos como estavam... Afinal de contas, tudo aponta a que teria sido mais fácil, e de mais proveito, que se armasse a fogueira ali em Penacova. Isto era prova de que, efectivamente, o da queima era uma escusa que dom Aurélio utilizava para não ter que dizer que o vendera todo e se lucrara. O agente que dirigia a conversa insistiulhes uma vez mais aos cuidadores que tentassem fazer memória e lembrar qualquer comentário que dom Aurélio pudesse ter feito sobre uma pia de pedra que também levara o mesmo caminho que os confessionários e todo o demais. Mas a sorte tampouco estava ali para eles hoje, e logo de dedicar muito tempo e esforço marcharam daquele lugar de repouso, perto da cidade das Burgas, esgotados. Foramse com um ar de desesperança e também co
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desassossego que lhes deixara a teimosia do velho abade co lume; tanto dálhe com as chamas que mesmo lhes parecia agora que saíam do inferno. * * * Narciso e Perfeuto chegaram de novo às beiras do Jardim. Vinham juntos, e quando se iam achegando à fontela viram que ali, frente aos carvalhos, no mesmo sítio que a noite antes, estava o Alcaide. Não se imutou sequer ao sentir que eles chegavam, semelhava como se andasse meio hipnotizado polas árvores. Os seus companheiros fitaram um para o outro sem saber mui bem o que fazer; ali ficaram de pé direito olhando ao seu companheiro, que seguia sem mover um músculo. Depois, Narciso e Perfeuto sentaram nas mesmas pedras que ocuparam a noite anterior, e miraram em silêncio para o Alcaide que seguia ali tão quedo como os carvalhos que encarava. O tempo começou de passar, mui a modinho à primeira e algo mais ligeiro depois, ou assim lhes pareceu a eles. O Alcaide, que seguia em reunião com as árvores, semelhava mesmo estar fora da dimensão temporal. Narciso e Perfeuto até duvidaram se seria real aquela silhueta ou simplesmente era o espectro da noite anterior. Um espectro não podia durar tanto, não podia ter resistido após todo o dia ao sol. Em todo o caso seria a senha que já se andava deixando ver, sinal de que a morte rondava já ao homem ausente. Para nenhum dos dous era de agrado a ideia de que o seu companheiro fosse abandonar este mundo assim sem avisar, sem rematar a travessia na que andavam, porque aquele não podia ser o final, pressentiam que não. Diferentes teorias sobre aquela imagem foramse sucedendo. E se não fosse o Alcaide? A dúvida fezlhes saltar dos seus assentos de pedra, desde ali eles não lhe viam o rosto… e com aquela escasseza de luz que havia, bem podia ser outro o que ali estava de pé… e tão perto da pia… A pia! Perfeuto correu até onde a esconderam a noite anterior enquanto Narciso se achegava ao homem que, teso como uma candeia, ali seguia chantado sem se trugir. Era o Alcaide, ou polo menos tinha as suas feições, ainda que não correspondesse à olhada de Narciso nem quiçá sequer o vira. O Alcaide tinha os olhares perdidos pola janela que mirava para o seu interior, na que ele se afincava desde havia uns Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 138
dias. O que via deixavao sem resposta possível. E assim ficou até que de súpeto, quando já os companheiros estavam sentados de novo e mais tranquilos, logo de saudar a pia e molhála coa água fresca do Jardim, desapareceu como a noite anterior. No céu algumas nuvens tapavam as guias que a cotio eles seguiam para não errar no seu caminho. Perfeuto e Narciso perguntaramse para onde é que teriam que tirar aquela noite, mas ao não achar estrelas que os guiassem, ali ficaram. Falaram. Escutaram. Sentiamse cantar as cloucas do regueiro do Pradonovo. A água da fontela guardava silêncio. Seria verdade o que se diz de que as águas de noite dormem? Aquelas do Jardim baixavam com tal sigilo, que de não ser polas ervinhas que se bambeiam lá no meio do rego, ninguém poderia crer que estivessem em movimento. Certo é que viajam por terra chã aqui nas beiras do recanto da fontela, e ademais o seu passear transcorre sobre uma almofada de morujas onde nem os passos dum gigante soariam. Mas outras águas não corriam com tanta sorte; a algumas mesmo ao toparemse num dos remates da terra, só lhes restava tirarse aos saltos polos rochedos abaixo, fervendo como o caldo que escapa do cu do pote. Estas sim que hãode andar bem cansas de tanto brinco, e seguro que quando se lhes vem a noite, dormem. Os vizinhos de Penacova polo menos assim o pensam, ainda que não todos são do mesmo parecer… – Mas mulher! Como vai dormir a água? Isso que tu dizes não tem jeito nem direito. – Pois não o terá mas eu digoche a ti que dorme. Olha que aquela que ferve a cachão lá em ChãodeLamas, que de dia mete medo o barulho que ela arma, pois vai e colhe pola noite e dorme… se quadra é que aproveita o estar lá agachada detrás do Penedo do Peão para dormir, ora dizse que dorme toda a noite. – Parecerlheá à gente, porque se calhar não a têm sentido rugir, ora, daí a que durma… – E logo digame, porquê não se sente? Porque de dia bem barulho que ela mete, que até ressoa lá pola Xaravelha, por detrás do Castelo Velho e o Penedo da Uzeira… mas de noite está calada, nem sequer um chio.
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– Pois porque a gente não se pararia a espreitar ou não se achegaria o suficiente para a sentir, que queres que eu che diga… – Pois eu tenhome posto a espreitar e tenho ouvido até os ouleos dos lobos quando andam à janeira, mas a água jamais a pude escutar. – Ora mulher! Tu achegastete alguma vez de noite lá ao fundo de Aguiar para ver se a cachoeira dormia ou ficava esperta? – Pois não, que não sou tão valente e tenho medo, e ademais não me havia de tirar as minhas dúvidas, que já é sabido que se te achegas muito, pois quiçá já a espertas e daquela já não sabes que pensar. – Pois daquela já sabes que está esperta e ponto, que mais queres descobrir? – Eu queria saber se antes de que eu, ou qualquer outro, se achegasse o suficiente como para poder sentila, ela dormia. – E como pensas que vai dormir? – Coma nós, ficando caladinha e indo rego abaixo sem aperceberse… – Pois há gente que fala mentres dorme, e alguns até se levantam, dizse que lhes chamam sonâmbulos. – Pois não pensara eu nisso… talvez os que pensam que as águas não dormem é que sentiram a alguma sonâmbula dessas… – Que não, mulher, que a gente sonâmbula faz cousas mui raras. Mira, aí tens por exemplo o que fizera a Maruja da Cristalina dias antes de marchar para Alemanha. Uma noite seica se ergueu e ceivou todas as portas das cortes, deixando sair vacas, bezerros, porcos e ovelhas, e até às pitas lhe abriu o buraco do poleiro. Quando deram com ela ia tangendo tudo polo Eiró fora, em direcção à Pedralta, caminho dos lameiros do Campo do Val, ou das leiras da Portelinha, de seguro ninguém o sabe. Mas ela marchava coa fazenda toda para algures. – Ai! E como lhe colheria o sentido para ali…? – Quem sabe…, se calhar é que se lhe fazia muito isso de ter que marchar tão novinha para Alemanha e deixar aqui a sua vida, e não descansava nem tão sequer de noite.
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– Não che digo que não, porque isso de marcharse e deixar o sítio dum não toda a gente o dá aguentado, para alguns dizse que mesmo é como se lhe entrara um andaço que não dão botado para fora. – Dizmo a mim, que o levo no sangue… – E logo tu de quem o herdaste? – Da minha avó, a mãe da minha mãe, Deus a tenha no Céu, chamavamna Felesvina, eu não a acordei de viva. Ela, no que pegava no sono, erguiase, desfechava a porta com jeito, pola calada, e marchava a caminhar desde aqui até Penalapa, donde viera para casar co meu avô. Deus os perdoe aos dous. Ao chegar lá metialhe um bom susto a todos quando sentiam andar na cravelha da porta para entrar. Quando viam que era ela, então é que se assustavam deveras, porque cuidavam que algo mau ocorrera e que ela lhes vinha avisar. Depois de descobrir o que lhe passava já não se assustavam tanto; mas à primeira chegoulhes bem. – E logo porquê não lhe fechavam a porta e escondiam a chave onde ela não a topara? – Depois já o faziam, mas o meu avô à primeira até chegou a pensar que ela se queria afastar dele e que por isso se marchara; e olha que ele a queria… dizse que quando a primeira noite que se ergueu e não topou a sua mulher na casa, por pouco morre do desgosto, e até se lhe retirou a fala, e não sei que mais. Depois quando a vieram guiar as irmãs dela e lhe explicaram o que acontecia, ele já se tranquilizou, e depois já guardava ele sempre a chave. Ela era gostante do trato, pois tampouco lhe fazia graça saber que ia a andar de noite por esses montes, e com tantos lobos que havia daquela! – E com isso a ela tirarselheia a mania, claro, não é milagre. – Que se lhe havia de tirar! Cada vez que o meu avô se esquecia de esconder a chave, à manhã…ula mulher? Rematou por atála com um rebite ao pescoço… a chave, se entende… – Daquela a tua avó sim que não teve mais escapatória. – Mas olha que dizse que ela se arranjava para darse uma escapada de quando em vez lá a Penalapa, onda os dela. – E como é que se arranjava se o homem lhe tinha a chave bem guardada?
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– Pois às vezes andava co gado lá no monte e davalhe o sono e quando queria ter tino já estava em Penalapa. – Que problema para o teu avô! – Homem cala, que afinal acabou por rifar com ela, apesar do bem que seica se entendiam… – E daquela ela sim que pararia coas fugidas… – Parar? Ele não; daquela nem sequer aguardava a prender no sono, que ainda esperta colhia o andante e iase cos dela. – E o teu avô a aguardála, não sim? – Em primeiras sim, mas depois à última acordaram de irem viver lá a Penalapa; ali os dela também tinham muito capital, e a ela tocaralhe uma boa mera, assim trabalhavam o daqui e mais o de lá. – Pois fez bem o teu avô indose para lá com ela, assim quiçá descansariam algo melhor. – Pois olha que eu não diria tanto, que seica depois ela alguma vez se escapou de lá para cá. – Que complicado che é isso de ser sonâmbulo, logo não me estranha a confusão da gente co das cachoeiras… – Não me venhas lá outra vez com isso de que a água dorme, que eu estou farto dos dormires raros… – Não che me estranha nadinha…! E mais já deverias estar afeito… sendo da gente de quem vens sendo… a saber o que andarás a fazer tu pola noite! – Se tens muito interesse deixa a porta desfechada hoje à noite e verás como o descobrimos juntos… – Ai sim, homem! Erache a conta! Eu para isso prefiro estar bem esperta, que não sei das tuas intenções, e não me fio… – Pois para saber se che sirvo, primeiro hásde me ter que provar… – e arrimando a boca à orelha dela murmuroulhe o velho cantar: Esta noite heide ir alá, meninha não tenhas medo, deixame a porta atrancada c'uma palha de centeio
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A Aurora sorri coa cumplicidade do que goza por sentirse parte dum mundo próprio, um mundo para eles dous. Um mundo fechado para os de fora, para os que a palha de centeio se converteria em tranca de carvalho seco que só desde dentro se pode tirar. Ela sorri, e vendo como o Manuel se vai caminhando, imagina que um dia ela talvez terá que levar um rebite com uma chave ao pescoço. Narciso e Perfeuto falaram e falaram e aos poucos espreitaram para as touças, a ver se sentiam ao Alcaide, mas ele não apareceu. Onde se meteria aquele homem? Se tão sequer ele mesmo o soubesse poderia quiçá dar resposta àquela e outras perguntas que o acossavam, e já não se teria que esconder entre os carvalhos que tão pacientemente o acolhiam dia e noite. Ninguém o estranhava, contrariamente ao que noutrora pudera pensar Narciso, o Alcaide não tinha mulher nem filhos; ele tudo o perdera por salvar a alcaidia, e afinal também a perdeu, e agora até ele anda perdido. Os companheiros aguardaram toda a noite mas ele não saiu. Eles marcharam. O Alcaide passou o dia entre os carvalhos e de tanto silêncio foiselhe abrindo a janela da esperança; ajudado polas fisgas que por entre as canas das árvores lhe baixavam a luz do céu, foi acougando. O pior eram as noites, ele não queria ser visto; nem sequer polos seus companheiros, que de seguro compreenderiam o seu sofrer; nem sequer naquela penumbra nocturna. Ele queria que só o vissem os carvalhos. De dia passeava as touças arriba e abaixo, observando cada rebento daquela tanta beleza… aqui fechava os olhos e enchia os foles do peito coa recendência da flor dum sabugueiro, …acolá arrancava as flores dos sãojoãos, e faziaas estralar contra a palma da mão esquerda, …observava a pujança coa que os gamões das abrótegas subiam, com aquela humidade parece que mesmo se viam medrar. Quando a fome o avisava de que já passava outro dia sem comida, ele rebulia nos carpaços e coas póutigas maduras que topava distraía o seu cativo apetite. Tanta beleza, tanta riqueza, e ele tão feio. Ele tão pobre. Ele tão poucacousa. O que mais lhe amolava era não terse apercebido. Saber que fora protagonista daquela vida de tanto despropósito, de tanta ruindade, de tanta desconsideração com os demais e não terse apercebido de
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nada. Ter sido sempre como um carvalho que habitara entre os humanos e nem sequer se soubera carvalho. Mas talvez ele não fosse carvalho, que é esta árvore nobre e amiga da sua terra. Não, ele fora pinheiro, de beleza ausente e perene. Ele fora algo mais essa árvore monótona. Mas não, ele ainda fora pior que o pinheiro que se deixa levar ali onde o plantam e vai medrando. Ele fora algo mais activo no seu afã de destruir, mesmo a vida, ao seu redor. Ele fora… sim, ele fora eucalipto. Ele envenenara a terra que o sustenta. Ele fizeralhe pouco fácil o viver a outros. Ele fora um estrangeiro que nascera aqui. Ele não fora carvalho, que ia ser! Mas agora queria ser, como o carvalho, merecedor da touça que o alberga. E ali ficaria até que o sentisse. Até que olhasse a sua mão e visse os musgos prateados que sobem como se duma pôla de carvalho se tratasse. Deitouse no chão e recebeu o abraço da terra almofada que o acolhia sem críticas, com silêncio aceitador que só se rompeu para lhe murmurar no ouvido o anúncio daquele renascer possível: “Tu também Ovídio, se o desejares, tu também podes ser meu filho” E ele entrega a sua alma àquela mensagem. Ele quer ser filho da terra, como o carvalho, como a mesma pedra… * * * Hoje Nuestra Región, num editorial eloquente e quase profundo, analisa a função dos meios de comunicação na consecução do bem social, e à sua contribuição na procura da justiça e a transformação da sociedade. Não é preciso dizer que a meta do jornal, neste senso, é conduzir a opinião em direcção à consolidação de uns valores (morais e espirituais) cos que o periódico comunga. O artigo faz uma reflexão sobre o papel que aos meios lhe corresponde à hora de resolver enigmas como o da desaparição da pia do museu. Este facto, que a muitos lhes poderia parecer pouco transcendente de um ponto de vista social, não é tal para Nuestra Región, que sustém que do que se trata não só é do seu valor material e artístico, ou se se quer até patrimonial, senão do seu valor como símbolo de religiosidade popular, etc. etc. Foi também num número desta semana onde teve cabida uma entrevista ao poeta Budial, após receber este um prémio de poesia galega Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 144
contemporânea. E também foi assim como se deu a conhecer por primeira vez o nome do poeta, Castor Ribeiro, que ademais da poesia tem afecção pola antropologia e mais a arqueologia… quem sabe, se quadra um dia destes vemolo lá polos penedos da Rainha Loba dum pau matar duas lebres… * * * Narciso e Perfeuto vieram juntos de novo também esta noite; dês que chegaram às terras do Jardim juntam os seus atalhos lá onde lhes é possível e fazem o resto do caminhar em companhia um do outro. Que lhes aguardaria hoje? Poderiam seguir já a sua andaina? O céu, por primeira vez em bastante tempo, estava despejado, e a noite estava clara com lua grande. Estaria aguardando o Alcaide como as noites passadas? Narciso e Perfeuto já depreenderam a falar entre eles, e bem que aproveitavam aquela nova habilidade, e agora perguntavamse, mentres seguiam o caminho para a beira da fontela, se seria possível que um dia o Alcaide se unisse a eles no seu conversar. Chegaram ao Jardim. Surpreenderamse de não ver o Alcaide ali de pé frente aos carvalhos. Beberam. Deram água à companheira, à qual com cada golo parecia que lhe envivecia mais a cor dourada. Sentaram nos assentos que já são habituais para eles, Narciso sempre ocupa o da esquerda, o que está mais perto das carvalheiras. Onde andará esta noite o Alcaide? De súpeto sentiram aquelas palavras que acompanhavam a figura do homem que as pronunciava enquanto saía de entre as árvores: “Aqui estou companheiros, e eu sou Ovídio.” Os dous homens miraram a Ovídio como se o vissem por primeira vez, mostrando surpresa por aquela naturalidade coa que se apresentava ante eles. Narciso achegouse à fonte e com ambas as mãos apanhou a água fria que lhe levou a Ovídio: “Toma irmão, pareces rendido.” Ovídio bebeu sem dizer nada, depois deu um fundo suspiro e agradeceu a Narciso aquela água que tanta falta lhe fazia. Perfeuto não queria ficar fora daquela reunião e fez chegar a sua voz até onde os outros dous homens estavam: “Hoje parecesme outro, Ovídio” “Graças, Perfeuto,” – respondeu Ovídio – “hoje sou outro, e quanto me alegra que ti o tenhas notado”. Ovídio contoulhes da sua tortura interior, e do seu espertar. Contoulhes do que Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 145
sentira e do desprezo tão grande que se dedicara a si mesmo. Da sua luta no silêncio das touças. Da luta ganhada e do perdido na batalha. Do passado e do esquecido. Ovídio contoulhes tudo o que pôde dar lembrado dum Alcaide ruim, dum homem vazio que nunca se dava enchido. Pouco a pouco foilhes debuxando com palavras, com punhos fechados que se sacodem no ar, quem ele fora. Os olhos de Ovídio fecharamse enquanto lembrava, ora para atrair os recordos mais facilmente, ora para evitar ver as olhadas dos que o escutam. Quisera ficar calado mas as condenadas das lembranças querem sair; ele sabe que deve ser julgado, e aceita essa imposição como um jeito de começar a render contas polo que fez… embolsarse o dinheiro que devia ter ido a obras públicas; castigar as aldeias nas que havia pessoas que não votavam ao seu partido; contratar no concelho, ou na deputação, ou onde fosse, aos filhos dos que lhe ajudavam a manter a sua rede caciquil funcionando, condenando aos que não se deixavam dominar à emigração; burlarse dos seus próprios votantes referindose a eles como “a granja de pombos que me votam” que ademais, segundo ele mesmo dizia, era a granja que mais ganâncias lhe dava… E por último, Ovídio admitiu o mais baixo ao que chegara: baterlhe a uma pessoa, uma mulher, uma secretária do concelho; e não por quem ela era, senão por quem ele, coa sua olhada deformada, via nela. Ele chegara a tal extremo de precisar controlar aos demais que perdeu o controlo de si próprio. Aquilo custaralhe a Alcaidia. Daquela pensou que isso era o pior que lhe pôde ter passado, agora sabe que estava bem errado. Ovídio faloulhes da sua cegueira, e enquanto o fazia seguia com os olhos fechados e com as mãos, agora abertas, gesticulava como para pôr em cena o que pensava, o que queria que viram, o que queria ele que ocorresse agora. Estava envergonhado de si próprio… Depois calou e as bágoas que caíram face abaixo ocuparam o silêncio que deixaram as palavras e as mãos gesticulantes. Perfeuto e Narciso deixaram que respirasse para adentro aquele instante e se anovara com ele, depois cada homem por seu lado deixou cair cadansua mão nos ombreiros de Ovídio. Não disseram nada. Ninguém disse nada, e por primeira vez o silêncio era silêncio e estava calado. Por fim acharam as palavras que os achegavam, que os punham em contacto e agora nem tão sequer precisavam delas. Sem mais demora colheram a pia, e depois de lhe dar a sua água, puseramse ao
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caminho. – Faltarnosá muito? – Não sei, mas tanto tem, eu acho que poderíamos seguir ainda que fosse por toda a eternidade. – A mim dáme no corpo que não háde ser tanto, e só de o pensar já parece que vos estranho. Sabiam que ainda lhes aguardava caminho por diante mas ignoravam quanto. Intuíam que não seria tanto quanto o que já levavam andado. Aquela noite o carro rodou sereno, como se andasse de passeio. E aquela noite o carro cantou; quiçá já tivesse cantado antes mas aquela noite os três homens sentiram o seu musical rechouchio. Polo Pradonovo arriba, aquela noite as cloucas calaram para espreitar o ranger daquele carro. Subiram polo caminho das leiras da Igreja e viram como o centeio já agachava a cabeça, isso era indicativo de que a espiga já estava carregada e os gadanhos já não haviam de tardar em levar ali a seitura. A luz da noite não lhes permitia ver a cor daquela messe tão granada, mas pola caída da espiga adivinharam que já iria tirando a marelinha com algo mais de verdor lá no fundo da palha. Pararam um pouco à beira da parede, e admiraram aquela abundância, e os três desejaram ser seitureiros. Imaginaramse segando aquela leira de pão entre os três, e calcularam quanto lhes levaria. Até chegaram a repartir os trabalhos: – Tu serias o ateiro, Perfeuto, que polo corpo que tens bem se vê que se che daria bem apanhar as gavelas… E ti Ovídio, a julgar por como és capaz de dobrares o lombo, em fouce não haveria quem pegasse em ti… E eu, mesmo para dar as vencelhas bem sirvo, ora que tampouco me amargaria segar, e pouco se me poria para vestir os zagões e atar os molhos. Co bom humor que os rondava chegaram às eiras do Penedo, deixando os lameiros da Carrancova, e os nabais da Praça, à sua esquerda. Desde onde andam arestora já quase se adivinha o começo da aldeia, e intuem que aquele é o seu destino, quiçá o ponto final da sua andaina. Amanhã teriam vagar para descobrir isso, mas agora é a hora de partir, não for que alguém madrugue hoje, mesmo para ir à seitura, e os veja. E com boa sensação por primeira vez os três homens marcharam a uma e polo mesmo caminho. Atravessaram a Canelha do Fojo e subiram pola Tapada para as leiras da Burata, e ali
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perderamse. Quando baixavam viram como a névoa ia subindo da Límia por ali arriba; amanhã será dia de calor e de segada. E tal como a névoa prognosticava, o dia veio ardente e os de Penacova aproveitaram para deitar o centeio que ainda estava de pé; e se eles desandaram um nada o caminho que levaram ontem à noite, teriam visto que aquele pão que queriam segar eles já estava agora amedouchado no meio da leira, mas não sem antes enredar ali um bom bocado da manhã aos seitureiros. * * * Os três homens chegaram juntos aquela noite, se alguém os tivesse visto pensaria que eram viageiros que estavam de passo, seguramente a caminho da Raia. Metialhes algo de respeito andar tão perto da aldeia; quando se iam achegando avistaram as primeiras casas, logo de passarem o cemitério; eram as casas dos do Penedo. Estremeceramse de pensar o que se passaria se alguém os via, que iam pensar que eram? Se nem sequer eles estavam mui certos do que pensar de si próprios, quanto mais se as gentes do lugar os descobriam assim de noite e coa pia. Aquela incerteza dos ânimos durou só uns segundos. Não tinham de que se preocupar, eles estavam a ser guiados por uma força alheia às suas vontades e que os levaria aonde tivessem de chegar. Noutrora teriam permanecido sujeitos à ideia do perigo, que lhes impediria de seguir. Agora já são quem de saber que o seu poder é limitado, e portanto também a sua responsabilidade; eles só são parte dum destino que os leva pola terra, e às vezes até os arrasta, mas já não vão sem guia, não vão vagando sem rumo nem meta no horizonte. Até as mesmas estrelas se ordenaram lá no céu para que eles o entendam. Ora, paradoxalmente, estes três homens sentiamse mais livres, apesar do grande peso que têm que levar com eles. Fazemno com vontade, fazemno com aceitação, e como não, fazemno com amor. Por conseguinte, fora temor, só deviam de ter muito tino como fizeram até agora. À lua nova faltavalhe pouco para se estrear. A sua próxima fonte estaria perto e seria a última, ainda que talvez não fosse esse o final. Vendo que a aldeia estava tão cerca decidiram ir sem a pia até ao meio do lugar para ver se estava tudo despejado. Atravessaram o caminho do Eido e passaram por onde Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 148
o forno, já desde ali viram o arco de meio ponto que anunciava a Fonte. Achegaramse e ajoelharamse os três a um tempo para provar as suas águas. Aquela não era a primeira vez que eles bebiam naquele manancial, ora sem dúvida aquela era a primeira vez que bebiam juntos. Que bebiam a mesma água. Repousaram sentados na pedra da beira esquerda e conversaram um pouco, em voz baixa, não fosse que alguém os sentisse, das experiências passadas que cada um tivera naquele lugar. E veiolhes a hora da partida antes da fim da conversa, e falando marcharam sem trazer adiante a pia, que os aguardou até à noite seguinte.
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Capítulo VII
A FONTE Penacova, apesar de não ser uma aldeia lá mui grande, conta com uma mitologia abundante e quiçá desproporcionada, difícil de manter viva à medida que desaparece a sua povoação. Neste marco mitológico destaca a Fonte como símbolo essencial do seu mito fundacional. Inicialmente, as terras que pertencem hoje a Penacova estavam povoadas por gentes que se repartiam polo vale em sete assentamentos diferentes, espalhados por Aguiar, a Pedrosa, a Auguela, o Zebreiro,… posteriormente os assentamentos reduziramse a quatro e finalmente decidiram juntarse todos e construir a aldeia conhecida hoje por Penacova. Todas as vivendas se construíram inicialmente ao redor da fonte; esse foi, e é, o lugar chamado O Meio da Aldeia, ainda que na actualidade, dês que a povoação se foi alargando pola Fonteuceira fora, já não seja o seu centro geográfico. Sim, ali no meio de Penacova ergue a Fonte orgulhosa o seu arco de meio ponto, e protege com ele os seus mais de dous metros de fundura. Toda ela revestida de pedra até à mesma nascença onde abrolha a água com um bulebule que só se pode perceber quando é esvaziada cos caldeiros para ser limpada até que, como se fosse de prata, reluz o seu interior. Ela é a riqueza de Penacova. Durante centos de anos abasteceu de água a uma povoação inteira… gente, terra e gado. Ao lado do arco foi construída uma poça que acada a água que lhe sobra à Fonte. Um reguinho talhado na ancha pedra que os separa vai carrejando a água para a poça, onde sacia a sua sede a fazenda e que é esvaziada, ceivandolhe o boqueiro para que a água saia a cachão, a rolda polos vizinhos quando chegado o verão se reinstaura cada ano o reparto da água, cada quem segundo os direitos de rega herdados por cada terra. Sempre igual… “comprei esta mera e com ela as sete horas de rega que lhe Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 150
pertencem… hoje vem a mim a rolda, tapo às doze e ceivo às sete; atrás de mim tapa o Maximino…” E aquele reguinho liso, afundado polo passo da água e mais do tempo vai fazendo o seu trabalho. No meio desse rego há uma cochinha mais funda onde bebem as crianças… “tu és mui pequena, ainda não podes beber na Fonte, ajoelhate na pedra e bebe aqui na pipela” A Fonte era a riqueza da aldeia, mas naquela sua fartura encerrava também os seus perigos. As mães não se cansam de lho repetir às suas filhas e filhos… “À Fonte não te me achegues, prendinha, que pode colherte e depois não tenho meninha…” E as crianças tardavam em quererse achegar para beber olhando para a fundura como sim o hãode fazer de grandes… e certo é que em toda a história lembrada nunca caiu ninguém nela. Louvada e temida; partícipe da vida mesma, mas também da morte se se terçar. Salvadora. Abafadora de lumes que ameaçaram o lugar. Salvou casas e palheiros, combarros e ainda leiras de pão. Infinda fartura que nunca na vida estinhou, ainda que o seu caudal se visse afectado polas obras que o concelho de Os Mouros impôs sobre a vontade da gente. Noutrora, o verdadeiro e legítimo concelho de Penacova se juntaria e co seu pedâneo à frente, jamais teria permitido achegar aquelas gábias tão profundas a que dessangraram assim a Fonte. Mas agora sãoche tempos de água corrente nas casas e a da Fonte só vai à mesa à hora do jantar, e já não é tão importante o seu caudal. Ainda assim segue sendo visitada por todos os do lugar; incluso os da Coanheira e os do Eiró, que têm fontes mais próximas, se vêm a servir dela quando as suas no verão agostam. Mas ela, alheia ao passo do tempo, ou à mudança de estação, sempre tem o mesmo caudal, e a mesma temperatura, o que faz que se sinta mais fresquinha durante o verão, e mais borna no tempo frio. Agora, quando os três homens da pia se arrimam adiante a beber nela, eila frescura agradável. Era a segunda noite perto da aldeia, e os três estiveram de acordo em que antes de ir onde tinham escondida a pia deveriam dar uma volta polo meio do lugar e comprovar que tudo estava tranquilo. Passaram ao lado da Fonte, beberam, depois colheram o andante caminho do Penedo onde lhes aguardava o início da travessia de hoje. Ovídio seguia a cargo do pinho e os outros ocupavam cada um seu lado do carro. Caminharam um bocadinho mui a
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modo, para evitar que o carro cantasse. O seu andar era tão passeninho que nem sequer parecia que se movessem. Apesar do vagar do seu caminhar foram penetrando na aldeia. Reinavam o silêncio e mais a calma. Ainda mal não chegaram onde o forno, que está quase no cabo da aldeia, quando lhes pareceu sentir vozes. Pararam. Espreitaram e depois achegaramse ao combarro onde sempre fica algo de lenha das últimas fornadas e esconderam a pia e mais o carro. Agora o forno não coze porque já vem o padeiro co pão à casa e a gente não quer andar com esse trabalho de quentar e requentar. Ademais com tão poucos como ficam para fazer pão, não dariam juntado lenha para manter o forno. Agora o que se leva, em vez do pão centeio, é fazer ali enchentes e foliadas quando chega a gente no verão. Assar ali uns cabritos ou uns anhos, uns lagostins e mais umas empanadas… ainda que sempre há a que vem lá coa encomenda do pão… “pois logo já que está quente deixaime meter um pãozinho que já trago a massa levedada, e só me resta darlhe a forma aí no tendal…” E os olhos de todos os presentes tendem com ela… ritual das suas infâncias que jamais esquecerão. E apesar da fartura que se anda a cozinhar todos ficam pendentes do humilde pão… “olha que vigia bem o pãozinho, não se nos queime…” E esta é tarefa difícil desde que na restauração lhe meteram os tijolos refractários para minguar o pavilhão que se fazia algo grande para tão pouca gente. “Escaralharam o forno, assim como está não serve”. Haverá que vigiar amiúde. A longa pá penetra no pavilhão e colhendo o pão no seu colo, achegao fora onde os olhos das crianças, hoje medradas, comprovam que já vai estando… Noutrora cozia o forno a metade dos dias do mês, e o primeiro em sair eram as bolas das crianças… “Hoje coze a minha tia Dorinda, e faráme uma bolinha”… aquele dia sim que prestava a merenda… E prà festa… a de roscões que ali cabiam! Todas as mulheres a bater os ovos nos grandes caldeiros de zinco, e entrementes falaquefala. Que longo era o processo… e elas batequebate e os seus homens quentaquequenta; e entre uns e outros iase montando já ali a festa… “A ver se ides acabando de bater, que isto já o temos quente e são horas de ir metendo…” Entretanto as crianças só tinham uma cousa nas suas mentes… “que rematem, que rematem para empeçar a lamber…!” E que longa a espera para meter os dedos no que sobrara ao encher
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as formas… “mamã, já está batido?” “Logo, logo, já vai estando” … “e quanto mais vai tardar…?” “Aguarda filhinha, aguarda, que há que ter mais paciência” E assim era como as crianças aprendiam a aguardar. Assim iam depreendendo co ritmo próprio das cousas. Saber aguardar é um dos princípios, ou assim polo menos o definiria o filósofo da Índia, que regem a vida em Penacova. Porque o da espera não se dava só o dia dos caldeiros de interior doce da víspora da festa. Não, o de saber esperar impregnava cada dia, cada hora, cada segundo da vida… “mamã, tenho um buraco na ponta deste sapato, quando me vão comprar uns novos?” “Pois quando venha a feira, …hoje estamos a primeiros,… pois por aí polo catorze haverá que ir por eles a Ginzo” … “Tenho fome, quando vai estar o jantar pronto?” “Traime uns guiços mais de lenha que já o imos apurar” E assim se ia construindo a fortaleza interior. O mais difícil, e prova já definitiva de madureza dum rapaz, era andar no monte co gado e aguardar sem comer a merenda. Claro que primeiro viera o adestramento… “Papá, comemos a merenda?” “Aguarda filha outro nada que depois o tempo rende e ainda nos volve dar a fome” E a nena aguentava. E por fim, quando aquela hora chegava… “Vais buscar o bornal ali ao salgueiro onde o deixámos colgado...?” Ela não corre, que voa, e já parece que polo caminho vai saboreando os bocados. Depois comerão a modinho, mentres falam do que comem, e mais do bom que está aquele pão e mais o mimo que o acompanha… tantinho toucinho ou um chouriço, ou o que houvesse, e ao remate se ligar de que meteram uma onça de chocolate… ela colhea na mão e antes de comêla debatese: “Se te como não te tenho, se te tenho não te como” e ao final dum só bocado a chapa. E assim se ia construindo a habilidade que empapa todo o fazer dos do campo: a espera. Saber esperar. O mestre hindu ainda iria mais longe e afirmaria que esta nena, que tem que aguentar as ganas de comer mentres passa o tempo que irá vagarinho, olhando como pasce o gado, hoje no monte, como o próprio Siddhartha, praticará as três virtudes do sábio: esperar, jejuar, e meditar… e quiçá não lhe falte razão, mas quem tem vagar para pensar nessas cousas agora…? Os três homens da pia, após de dissimulála coa lenha, tiveram também que esperar para indagar as origens daquelas vozes que pareciam vir do fundo
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do lugar. Narciso, caminhando acachapado pola beira das meras da cortinha, achegouse à Fonte e sentiu que as falas vinham de mais longe. Eram umas vozes procedentes da rua; o seu soar era de preocupação mas não de desespero. A curiosidade levou a Narciso a achegarse pola beira de atrás das casas para as eiras de Baixo; ali, arrimandose à parede, foi avançando polo lateral até que foi quem de entender o que diziam as falas… Não se passava nada grave, eram os do tio Taranheira, que lhe paria uma vaca; Narciso espreitou um pouco e regressou onda os companheiros a informálos do que se passava. Decidiram que seria melhor não achegarse mais de momento e lá ficaram, ao lado do forno. Depois foram procurar algo de lenha que tivesse folha para cobrir melhor a pia e que não se visse nada; mas apesar de que tudo estava bem coberto decidiram que um deles ficasse a curar dela. Ovídio ofereceuse voluntário, e nenhum dos outros o deu convencido de que ele precisava descanso, que levara maus dias. Ele insistiu em que a ele era a quem menos lhe iriam topar a falta durante o dia, e pediulhe aos companheiros que se fossem tranquilos, que ele ficaria ali deitado debaixo do chedeiro numa pouca palha, e teria vagar de descansar. Marcharam. Ovídio ficou só para o resto da noite e mais o dia seguinte. Pola manhãzinha acordou co cantar dos pássaros que andavam a chamar polo novo dia. Ovídio sentiuse privilegiado por gozar daquele concerto matutino, e até se ergueu e se arrimou à parede do combarro para olhar como por trás dos penedos da Rainha Loba chegavam as primeiras raiolas de sol. Respirou fundamente e deixou que aquele ar da manhã lhe acarinhara os cabelos e a face. Durante o dia assomou muitas vezes o focinho àquele seu miradoiro, sempre com escrupuloso tino para não ser descoberto. Desde ali pôde ver os andares da gente de Penacova. O Primeiro que viu foi uma moça que vinha com uma jarra de vidro a buscar água à Fonte. A moça chegou, ajoelhouse e bebeu; depois encheu a jarra e marchou de volta. E viu fazendas passar e beber no poço da água, e viu gentes e mais cães, e a carrinha do padeiro que passou para o Penedo a deixarlhe ali o pão, e depois foise a Penalapa, onde só fica um vizinho, e dali a um bocado viuo passar lá por em riba, polo caminho do Gorgolão. E Ovídio aguardou, no mesmo sítio onde noutrora aguardavam as crianças enquanto desesperavam co seu olhar nos
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caldeiros e relambendo os bicos. Aguardou, e teve assim maré de praticar essa arte tão típica do lugar, a que a noite lhe devolvera os companheiros. Não se fizeram rogados, não essa noite; Narciso e Perfeuto vieram cedo e com eles cada um carrejava seu bornal com merenda. Ovídio, no alto da moreia da lenha, tal que num trono sentado, comeu como um rei. Depois aguardaram um bom pedaço. Tempo não lhes faltava, porque ainda que a lua estava pronta a se encetar, a Fonte estava ali mesmo e em nada de tempo chegariam até ela. À pia ainda lhe ficava água da que lhe botaram no Jardim, logo não havia apuro. Havia que assegurarse bem primeiro de que tudo estivesse preparado para dar esse passo em direcção do meio de Penacova. Bem cruzada a meia noite meteramse por entre as casas e percorreram a aldeia com muito sigilo. Não se ouvia nem um chio. Todos dormem. Na beira dalguma casa até sentiram roncadas. E um cão de acolá, perto da Fonteuceira, que ladrava sem descanso, depois ficou também quedo. Tudo ficou quedo; tudo menos eles, que volveram a colher a pia e começaram a sua andaina a caminho da Fonte. Cem metros escassos de distância que lhes levou mais de duas horas andar. Iam tão a modichinho para que o carro não cantasse que apenas davam desbastado. Por fim chegaram à Fonte. Deramlhe água a fartura e eles beberam de novo. Depois, adivinhando que a igreja era o próximo destino, calcularam o que lhes levaria chegar com aquele passo que traziam. A distância entre a Fonte e a porta do sagrado vinha sendo umas três vezes a que acabavam de atravessar desde o forno. Não podiam tentar nada naquela noite que ia mais de mediada, precisavam bem uma inteira. Buscaram o sítio mais ajeitado na direcção desejada para deixar ali a pia escondida. Encontraram, detrás duma casa velha, um palheiro de erva seca acabado de fazer, exactamente ao lado dum sabugueiro. Por detrás da parede na que se afincava o palheiro, e arrimado ao sabugueiro, havia sítio avondo para esconder a pia e mais os trebelhos. Esconderam bem todo, desde fora não se podia ver nada, nem sequer adivinhar que houvesse ali cousa nenhuma. Aproveitaram o tempo que lhes sobrava para achegarse à igreja e ver se as portas estavam boas de abrir ou como era.
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A porta pequena precisava duma chave, mas a grande podiase desfechar desde dentro movendo o enorme passador que se mete por um buraco feito adrede na parede. Rodearam o edifício, indo pola esquerda do sagrado, e abriram a janela que dá à parte traseira, e que fica por dentro algo alta mas por fora a rés do chão. Desde ali empuxaram a folha da janela, e esta cedeu um nada. Depois Dom Narciso, lembrando que por dentro, no peitoril, podia haver trapalhadas, meteu a sua mão delgada e tirou para fora o que havia… uma copa de vidro com tampa, na que, dês que desaparecera a urna do altar, se guardam as hóstias consagradas que sobram; uma jarrinha diminuta, também de vidro, para carregar água da fonte para misturar co vinho de missa; e poucas cousas mais. Livre o passo de atrancos, foi Perfeuto o encarregado de baixar por dentro da parede e ir às apalpadelas por entre as bancadas até dar coa porta grande e comprovar que era fácil de abrir. Desfechou o passador e assim comprovaram que tudo estava pronto para dar o passo definitivo à noite seguinte. Perfeuto fechou de novo desde dentro, e caminhou até onde estava a janela para esgardunhar pola parede arriba para fora, ali os outros aguardavam para darlhe a mão e mais acotegar as chilindradas primeiro de fechar a janela, não fosse haver um enterro ou algo e lhe topassem a falta. Depois regressaram onde o palheiro que escondia a pia e os três estiveram conformes com que ninguém iria ali rebulir detrás; este era um palheiro novo e a gente ainda andaria a gastar o refugalho do velho. Por conseguinte, não era preciso ficar ali de guarda durante o dia, nem sequer prudente, já que estando no meio da aldeia alguém os podia sentir remexer e descobrilo tudo. Marcharam cedo. A noite seguinte será uma noite longa, uma noite na que haverá que ir devagar. * * * Os detectives, desanimados pola falta de êxito das suas pesquisas, dirigiramse a Penacova com poucas esperanças de encontrar algo que lhes fosse ajudar no seu labor. O do cura não saíra nada bem, e do que atingiram cos vizinhos de Penacova tampouco tinham que alardear. Em que falharam? Ou melhor… em que falhou o detective chefe? Já que a responsabilidade foi sua, ainda que a culpa fosse de não poder seleccionar melhor as fontes de Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 156
informação. Penacova era um sítio tão pequeno que eles não podiam desperdiçar o testemunho de ninguém, por conseguinte enquanto viam a alguém já se apuravam a pilhálo, e claro, isso não lhes funcionara, e ainda por riba co da camuflagem… Talvez as gentes daquele lugar não respondessem bem quando estavam na presença de desconhecidos, e por isso a cousa não fora adiante. Ou pôde ser que lhes tocaram primeiro todos os maus, e agora os que lhes faltavam por ver eram os que haviam de falar. Algo lhes dizia que não havia de ser assim, mas eles, sem desanimarse, quiseram provar mais uma vez. – “Se desta volta não achamos nada que valha a pena, não perguntaremos mais, e que seja o que tenha de ser.” O detective chefe declarou assim ao seu companheiro o plano de acção quando estavam já no auto a caminho da aldeia, e prosseguiu “Riba, hoje a cousa vai ou racha” Riba ficou quedo, não abriu o bico, em parte por não estar seguro de entender bem o que o seu companheiro queria dizer, e em parte porque apesar de que as palavras se dirigiam a ele, a entoação coa que se apresentavam indicava que não era assim, e que não era precisa resposta alguma. Chegaram, arrumaram o automóvel na eira da Festa. Não viram a Ciro. Colheram o caminho que baixa para a Fonte, ali torceram à direita para o meio do lugar, neste trecho não se cruzaram com ninguém. Quando se iam achegar ao cruze que vai para o Eiró viram a um homem debaixo dum corredor. O homem acabava de pousar algo no chão e dirigiase à porta da corte, presumivelmente para desfechála. Ao detective deulhe no corpo que aquele homem andava a fazer algo e quiçá não tivesse vagar para lhes dispensar a eles; porém, e trás ver que pola aldeia não andava muita gente, decidiu tentálo. Aquele homem pouco mais teria de sessenta e tantos, seria moço feito quando ocorrera o da pia e ainda era o suficientemente novo como para lembrar a história. Justamente o homem que tinham andado a procurar todos estes dias. Agora faltava descobrir se lho quereria contar, ou se tinha tempo, ou… já se verá! Apuraram o passo e desde a distância já lhe foram avisando da sua intenção de falar com ele. – Eh…! Bons dias senhor…! O homem soltou o fecho da porta e em lugar de desfechar deu a volta cara a eles.
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– Bons dias, logo, para vocês também. – Mire, você seguro que já ouviu falar em nós… somos os que vimos lá de Ourense para perguntar sobre a pia que havia em tempos aí na igreja e que desapareceu. – Ah…! Mui bem, mui bem; sim já ouvi pra aí algo. E o homem volveu botar a mão ao fecho, e esta vez sim desfechou e empuxou para trás a porta. – Mas, seria você tão amável de contestarnos a umas perguntas sobre o assunto da pia? – Como não, vocês perguntem, que eu enquanto vou jungindo, que senão depois fazseme tarde. O Manuel, mentres falava, ia tirando a tranca, que afincada num buraco feito adrede na parede sujeitava por detrás a outra folha da porta. Depois empurroua coa mão até que se sentiu bater contra a parede do cortelho. Ali, ainda deitadas, havia duas vacas grandes, uma amarela e outra mais arruivada. Eles fizeramlhe uma pergunta, mas o Manuel não a escutara, e seguiu a falar. – Vá, bonitas, que há que se erguer, que a manhã já vai logo mediada! – e olhando para os agentes acrescentou – Hoje fezseme algo tarde para jungir porque me enredei pra aí algo mais da conta coa esterroa duma mera de batatas, que as estavam a comer as ervas e já davam vergonha. Elas – referindose às vacas – já não estão sem nada, comeram tantinha erva, e agora só jungo para levar o carro à poula onde tenho umas gavelas de estrume já roçado, e mentres eu carrego elas têm vagar de pascer no lameiro. E depois, ao meiodia, trazemos o carro dos tojos para casa, que mesmo estão as cortes a chamar por eles. Neste tempo, depois de tanto estercar para as sementeiras, ficam as cortes varridas, e a fazendinha sem cama, e agora que já metemos a erva toda, há que estar prontos para a carreja, que já logo vão lá oito dias que rematámos a sega, e como dizia o outro… volta feita não tem pressa… Mas perdoem vocês que eu falo muito, e a vocês isto seguro que lhes aborrece… Então, por primeira vez dês que andam coas suas perguntas por Penacova adiante, o Riba abriu a boca e apurouse a dizer a escape: – Não, disso nada, todo o contrário, pareceme mui interessante o que você conta do seu trabalho…
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Ainda o Riba não rematara a frase e já se estava a arrepender de a ter formulado… pois supõese que ele não deveria ter dito nada, e muito menos aquele comentário tão determinante para a direcção da conversa. O detective mais velho, que era intermédio em idade entre o seu companheiro e o Manuel, não teve outro remédio que mostrar o seu acordo, não fosse ele ali fazerlhe àquele homem, que quase poderia ser seu pai, um desprezo. Ora, por ganas não foi, porque mália a graça que lhe fazia a ele estar ali aos viosbardos escutando àquele homem porolar sobre a vida do campo. Nem que ele não soubera como era a cousa. Ele procedia das terras do Deza, duma aldeia pequerrecha na que lhe tocara lidar até que aprovou os exames para polícia. Malditas as ganas que ele tinha agora de perder o tempo com aquelas parvadas. Olha que não roçara ele tojos antes de ir para Santiago àquela academia que tanto lhe custara a seu pai pagar. Seu pai também tivera vacas, e bem delas por certo, mas agora já só ficam três ou quatro… ele já não está seguro, há tanto tempo que não vai por lá, e dessas cousas polo telefone não fala. Claro que as de seu pai eram leiteiras, não como as que ele via agora na corte do Manuel, que são galhardas e fortes. Muito ao seu pesar o detective teve que reconhecer que aquelas eram uns formosos animais, e cos seus correões enramados para lhes colgar as suas campainhas…, não, não levavam chocalhos… E assim foi como o labrego que adormecia lá nas profundidades dos miolos do polícia acordou de súbito, e sem saber como, disse: – Se quer eu possolhe ajudar, que a mim isso de jungir ainda não se me esqueceu de tudo. – Ai sim? E logo donde vem sendo você? Se não é muito perguntar… – Da comarca do Deza, mesmo à beira de Lalim… E enquanto eles falavam o mais novo olhava para o seu chefe, e não acreditava no que via… mesmo semelhava outro; por primeira vez viu como a cara do seu superior se relaxava enquanto lhe botava a mão àquele jugo, que em olhos do catalão deveria ser levado a um museu… que peça bem talhada na madeira, e polida polos anos e as mãos que tantas vezes a colheram para, sobre as molidas, pousála na cabeça das vacas e depois atar… E o labregodetective escutouse a si próprio perguntando polas sogas que, segundo disse o Manuel, ia cosendo seu pai, que para isso ainda se arranjava… e que bem cosidas estão!
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Coas polegadas em cruz, com uns malhões delgados para que não mosseguem ao animal na cabeça. Ainda que só lhe toquem aqui onde nasce o corno, mas esta éche zona delicada… – Ai, vá que o é! Ainda uma vez um homem daqui deste lugar, vendose acurralado por um boi que andava ceive pola veiga de Sampaio, não teve outro remédio que reporse cara a ele… e meteulhe tal cajadada, – dantes gastavase muito o cajado – justamente a rentes do pêlo, onde se apegam o coiro e o corno; e o boi caiu ao chão como um trapo; depois ergueuse e marchou meio desorientado… Mas o Emílio erache um homem que… amiguinho, havia que tirar o chapéu… Dantes aqui havia muita gente digna de admirar… Riba estava determinado a não intervir mais, já bastante tivera coa sua estreia momentos antes. Ora tampouco era preciso já, porque o pobre detective de Lalim estavase vendo acurralado em si mesmo… e o labrego, que tantos anos estivera lá dentro dele agachado, sem causar maiores desassossegos, estava agora tirandolhe o mando e dirigindo; ele próprio se pasmava quando escutava os falares que saíam da sua própria gorja, até lhe mudara o sotaque e falava agora com voz menos afectada e mais harmoniosa. O seu companheiro teve que torcer as orelhas com as mãos para adiante para entender o que o seu chefe dizia, enquanto seguia admirado pola transformação daquele homem. Que dianhos lhe tinha passado para mudar até a fala? Como ia o Riba adivinhar que o seu chefe levava um labrego dentro, um labrego que aquele dia colhera as rédeas e dirigia o fazer. Com que naturalidade se desenvolvia hoje o seu chefe, com que serenidade de carácter; e por primeira vez o frio respeito que sentira até então por ele trocouse em afecto. Mas lá dentro do seu superior não tudo era tão fácil; o polícia, que queria só passearse pola cidade, revolviase como as serpes e vinhalhe roubar do prazer que tanto lhe estava a prestar. – Temos tempo o que quisermos, pois se tal vamos com você e contanos polo caminho – disse o detective enquanto seguia a cruzar a soga por riba da cabeça da Marquesa. – Isso estaria bem, que eu gosto da companhia. – E eu também – dissera o Riba, mas ele próprio se deu conta de que os outros não o ouviram, ainda que a ele tanto lhe tinha, ele sentiase afortunado
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de estar ali presenciando a arte de jungir. Uma arte da que ele só ouvira falar, e não amiúde pois este ofício que de tanto durar semelha eterno, não só para quem o observa senão para quem o pratica já passou; este ofício já passou. O próprio Manuel não ignora isto… – Metelhe um bom saculeão co ombreiro aí por baixo mentres apertas a soga, que essa Marquesa éche uma condenada que torce o pescoço a propósito, e se não repara um sempre háde ficar folgada. Em câmbio, a esta Toura é uma ledícia jungila… mira, é melhor que tu te passes para este lado e eu me encarrego da Marquesa que já lhe tenho o falho tomado… pois nem tem jeito que te deixe a ti o pior trabalho quando aqui hoje és o meu convidado. O Manuel passou por trás do detective, ao que quiçá deveríamos começar a chamar Rafael, pois esse é o nome que lhe puseram seus pais, ou senão Canchés, que era o nome que lhe deram de pequeno na aldeia… e tudo por ter as pernas um nada torcidas, cancheadas no meio para fora. Depois foramlhe endireitando e já ninguém lhe chamava assim, ainda que agora mesmo ele pouco se teria importado. O Manuel, que quer ser educado, passou por trás dele e mostroulhe como tinha que fazerse coa Marquesa, que era algo pícara e escapava da juntura. Em câmbio, a sua companheira, que tinha a força dum boi, era outra cousa. A Toura era doce para o amo, que podia levála como se ela falara… – Esta até se teve que afazer a que lhe chamáramos Toura, pois também era Marquesa quando a mercamos lá em Gomesende. Compramolha ao tio Justo, e inda agora quando a vê lá no monte se se juntam os gados, ele chamaa Marquesa, e ela bem que cho conhece, apesar do novinha que era quando se veio para onda nós. Daquela já vinha amansada, e olha tu que também a amansaram à direita, como estoutra que nós tínhamos na casa; e tivemos que ensinar à Toura, que era mais nova, a ser jungida à esquerda, e parece que não lhe custasse aprender. E agora pode ser jungida às duas mãos, e digote eu que com poucas vacas se pode fazer isso. – Olha, que bem sabe jungir você, a mim já se me acabava a soga e a você ainda lhe dá para outra volta. – Não faço favor nenhum, éche o ofício que tenho, e não me amarga tampouco ter que fazêlo.
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E enquanto dizia isto ia colocando o temoeiro nas mossas do meio do jugo, nesse espaço que fica entre as cabeças das vacas, e que as distancia; depois mandouas ir de ceiacú e elas recuaram, sem ele precisar de aguilhada, até que estiveram postas cada uma pola sua beira, rente ao carro. Então o Manuel ergueu o pinho e afincouo no ombro, para logo o amarrar ao jugo co temoeiro, mentres dizia… – O carro está preparado, agora a ver se a mulher nos dá a merenda por se nos desse algo de fome… “Aurora, olha que eu já che estou pronto pra me ire…! Trazesme logo esse bornal abaixo se fazes favor…? E mete algo aqui pra estes amigos…” A seguir das palavras do Manuel baixou ligeira a Aurora, poderseia dizer que não lhe dera tempo de cumprir coa sua encomenda. E assim era, ela já tinha a merenda pronta e por triplicado para quando ele ordenar de marchar. Ela escutara a conversa e já ia por diante do planeado por o Manuel e os forasteiros. – Olha que cho meti neste de material que é algo mais avantajado do que o que levas a cotio para ti só. E enquanto falava alongou o braço, desde o penúltimo banço da escada, achegando o bornal para o seu homem. O Manuel colgouo ao ombro e dedicou um sorriso à sua mulher. Os dous forasteiros saudaram à mulher e deramlhe as graças por pensar assim neles. Ela, sem rematar de baixar a escada, respondeu os seus saúdos e disse “não se merecem” O Manuel chamou a jugada adiante, e sacaram o carro da corte. Rodou pola rua do Eiró e dirigiuse ao caminho das Lamas do Santo. O Manuel e o Rafael iam diante conversando, o Riba ia detrás à espreita. Chegaram à poula e soltaram. Enquanto as vacas pasciam, em baixo no lameiro, eles carregaram o carro cos tojos. Tinha razão Manuel, não eram muitos. Depois puseramse à merenda. Sentaram à sombra do carvalho, evitaram a do vidoeiro que dizse que não é tão sã, e entre bocado e bocado foram falando. O Rafael já se esquecera completamente do detective e o Riba seguia a observar. – Estou seguro de que tu com esta jugada já tens carrejado mais grandes carros que o que hoje te ajudamos a carregar…
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– Pois não te enganarias, que com estas duas já tenho carregado mais do que me daria o tempo para contar… E o Manuel contoulhes das valentias da sua jugada. Dos carretos de lenha que trouxeram este mesmo ano da decota de uns carvalhos das touças do Castelar. Contoulhes do muito que ele era quem de meter no carro duma vez, e do bem que o fazia cantar… “não podias nem andar cem metros sem untar o eixo… não se fosse a queimar de tanto fretar contra das treitoiras… e ao o untar sentias como o unto rijava tal que se o rustriram numa caçoula” Ao Manuel enchiaselhe a boca falando do valentes que eram as suas vacas, sobretudo a Toura, que já vencera a dous bois cos que tinha lutado… “e isso há mui poucas que o façam”… e que em toda a comarca não havia outra que se pudesse igualar com ela… – Pois é, estas duas pode que sejam a minha última jugada… mas enquanto eu viver delas não me heide desfazer… ainda que nos façamos bem velhos… – E logo não tens filhos que continuem coa lavoura? – Não homem, não. Tenho um rapaz que se marchou para Alemanha quando era novo, esteve lá alguns anos e fez dinheiro. Agora voltou mas para aí em Ginzo e disto não quer saber nada… também como não precisa… e ademais se ele vier gastaria só o tractor, assim que quando eu morra tudo morrerá comigo… O Rafael encherase de mágoa, mágoa de que todo aquele mundo que ele hoje revivera fosse desaparecer… E quem era ele para falar, se tinha um capital de primeira lá no Deza abandonado. Ele não era quem de dar exemplo a ninguém… – Deve de ser bem duro não ter quem lhe possa herdar a um no ofício. – Podes estar bem certo, e senão perguntalhe a teu pai, já verás o que te diz. Aquela frase última do Manuel cravouse dentro do Rafael, que lembrou a conversa que não fazia ainda muito mantivera com seu pai, que seguia coa teima de que se tinha que ir morar mais perto e botar mão da vida… que ele já não defendia para a granja e os lavradios... E desde tão longe, desde quase a mesma beira da Rousia, por fim recebera ele a mensagem das palavras de seu
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pai. Agora vê que eram as palavras dum náufrago, e não as dum pai caprichoso que o quisesse controlar a ele… Que mal entendera ele o seu velho. E que bem lhe fizeram as palavras do Manuel, até se esquecera da pia. Agora, ao a lembrar de novo, a Rafael entralhe a curiosidade; mas é uma curiosidade de labrego que quer saber como foi que se sacou daqui, e não uma ânsia profissional de detective. Lançoulhe uma pergunta a Manuel de tal jeito que ele não a pudesse rejeitar: – Qual dirias ti, Manuel, que foi a cousa mais pesada que viste carregar num carro em toda a tua vida? – O Manuel sorriu e disse… – Já vejo por onde vais, tu queresme levar à pia…, mas não che é cousa tão fácil de explicar… – Pois homem, aqui entre nós, devo admitir que tenho as minhas curiosidades por saber como se deu sacado da igreja e mais do sagrado. – E isso mesmo me pergunto eu… e deixame dizerche que ainda que eu não sei nada, não tinha pensado contarvos cousa nenhuma, mas tu caralho…, ganhaste a minha confiança, e agora não tenho outro remédio que responder eu também. Sei que posso confiar em ti. Ademais já che disse que não se sabe bem o que se passou… e tampouco ninguém presta já atenção a estes falares. E Manuel foilhes contando como crê ele que tiveram de fazer para sacar a pia da igreja, porque tanto ele como os outros vizinhos tinham a sua teoria sobre o roubo bem elaborada e aperfeiçoada nas muitas conversas e pensares… E com uma mistura de raiva e triste pesar polo acontecido, contalhes como teve que ser de noite quando a levaram… porque ninguém escutou nada… como tiveram que ser vários os ladrões, pois é uma pia mui grande e mui pesada… como ninguém sabe quem foi mas toda a gente os conhece, e como a ele lhe enfastia que esses moinantes sigam passeandose entre a gente alheios à justiça e aos castigos… Rafael perguntoulhe quem foram logo os que a levaram… – Isso ninguém o sabe… mas todos sabemos que foram eles… quem ia ser mais que os curas? – Mas ainda que fosse o abade… alguém lhe teria que ter ajudado… – Pois ajudariamlhe os outros, que os curas também têm força… e não fazem favor… co mantidos que estão os condenados…! E bem seguro que ali
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onde o transformador da luz um camião estaria à sua espera para levála… mesmo ali onde entra o do Pito para carregar os bezerros quando há que empontálos para o matadoiro… – E para onde a levariam? – …como tenho que mandar eu a uma bezerra, filha da Marquesa, que agora já não me atrevo de a amansar, e se souberas o que me amarga… mas assim é a vida… uma almalha tão boa, parecida à mãe. O pai élhe de Ameixeiras… aqui em Penacova já não há boi para botar às vacas, quanto mais… – E porque levariam a pia? – E eu que che sei filho…, levariamna para a vender como fizeram cos santos e as outras cousas, que havia muitas e bem delas, e agora está a igreja vazia… e a parva da gente, que é uma ignorante, começando pola minha Aurora, eia, a lhe dar aos curas para que comprem isto ou aquilo… Eu se fosse vós falava co abade a ver se se lhe escapa algo… que ele saber temno que saber. – Co senhor abade já falámos, fomos lá o outro dia mas esse tal Aurélio já não lhe anda lá mui bem da memória, e não nos soube dizer cousa com jeito. – Não, se o Aurélio não estava aqui aquela temporada. É certo que já tinha levado os altares e os confessionários e mais os santos e as roupas todas que deixara o seu predecessor. Mas a pia não, a pia levouse estando aqui o Narciso, que viera uma temporada a substituir ao Aurélio, que depois de roubar à igreja dizse que não se sentia o homem lá mui bem; teria remorsos…, afinal de contas tinha que seguir a mentir cada dia desde o altar e predicar o “no robarás” a uma gente que seria incapaz de roubar nem o valor duma agulha; e a gente terlho que aguentar… Mas os remorsos não o mataram, não tivesses medo, e depois de ali a nada ainda veio de segundas para aqui e tivemos que o aturar até que por fim se marchou de vez. Mas a pia já não estava quando ele veio de segunda… claro que isso não impede que fosse obra dele, os curas sabem também operar desde a distância, afinal de fontas ele seguia a ser o mandaricas da freguesia ainda que o Narciso dissera os responsos por ele… Não penso eu que o tal Aurélio se deixasse tirar assim um caramelo da boca… se calhar é que não se atrevia; porque de ali a logo de levar os altares e
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todo o demais, tratou também de levar o homem de pedra que marca a hora co sol lá no arranque do campanário. Mas então o Emílio, o mesmo que tombara ao boi coa sardoada, disselhe: “se lhe põe você a mão em riba ao homem de pedra não volva subir a Penacova para dizer a missa, porque não baixa”; e daquela bem seguro que artelhou outro plano para asegurarse de que não lhe botassem a ele a culpa… – E não protestaram vocês… nem nada? – E a quem lhe íamos reclamar? Quem nos ia escutar…? Graças se não nos botavam as culpas… os curas têmche estudos e sabemse cobrir bem para não ser descobertos… e ademais conhecem à gentinha e actuam como o lobo que sabe por onde vai a vezeira… Eu era novo daquela, acabava de casar e tinha à mulher esperando um filho… e já não lhe pude pôr Dario naquela pia. Todos ficamos danados, mas então não sabíamos mais, e fizemos o único que sabemos fazer bem por aqui… aguentar… E olha que se nos levam feito quatro, e não só os cregos, não… Ora isso sim, eles levam a palma das falcatruas. Enquanto escuta, pensamentos pouco benévolos para cos ladrões das igrejas ocupam o pensamento de Riba… e isso que ele não sabia até onde podia chegar aquele fada do Aurélio, quem uma vez no enterro dum moço novo de Ameixeiras se atreveu a dizer que “Deus escolhia a quem pagava a pena salvar e a quem não… e que havia que ser mui bons para poder gozar de tal privilégio…” E mil merdas mais saíram ainda cagadas pola sua boca enquanto Ameixeiras se tinha que despedir daquele moço e entregarlho à terra… Um moço que não chegava aos vinte anos, são e forte, a quem o Minho coas suas trampas em forma de remoinhos arrancara dos seus pais, e dos seus amigos, e dos seus vizinhos, e de nós todos… E vem o lobo do Aurélio e faznos sentir de novo desprotegidos, indesejáveis nos olhos de Deus e impotentes no nosso destino… e todos sabem que o disse porque o moço estavase deixando medrar a barba e já não ia pola missa e também depreendera a falar de dignidade e de justiça, e de respeito, e de direito a pensar por nós mesmos… E no seu enterro vem a animália do Aurélio e coa sua cruenta falta de piedade derriça nos corações dos presentes como fera na carniça… enquanto à gente lhe começa a ferver o sangue e cheia de rábia sai ao átrio e debatese em que fazer… Uns queremlhe ajustar as contas mas outros os refreiam, e uma vez
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mais, a gente faz o único que sabe fazer bem: aguentar, aguentar e dizer amém… Se Riba chegasse a saber isto… mas ele, como havia de o saber? E o reganho que sentia foiselhe dissipando quando ficou de novo prendido nos falares do Manuel… – E logo então já perdestes a esperança de a volver ver? – Eu não acho que a possa já ver em vida, mas isso não quita para que chegue um dia em que os homens se tornem civilizados e aprendam a respeitar que as cousas têm o seu sítio, e que a esse, e a nenhum outro, pertencem, e ninguém lho deve usurpar nem mudar, nem… mas isso são os meus pensares quando me colhe para aí o sentido, abofé, como penso que antes do fim do mundo a nossa pia háde volver ao seu sítio, ainda que alguns já não o dêmos acordado… – Pois que esperanças tão honoráveis tem você para o ser humano… – Não sou eu só o que cavila nisso; aqui entre nós, heiche dizer que em Penacova não há pessoa de mais de trinta e tantos que não tenha a esperança de que um dia a pia volva. – E porque ninguém nos quis falar no tema quando andámos a perguntar? – Pois em parte porque não há muito que dizer, e ademais éreis uns estranhos… agora eu já vos conheço, mas tudo leva o seu tempo… isto éche como todas as cousas, por mais que te mates, e corras, num mesmo dia não podes juntar a sementeira coa sega. E também em parte porque a gente não gosta de lembrar as desgraças que se levam passado… assim polas boas, sem que seja por uma boa razão… – Ora, nós tínhamos uma boa causa, nós também buscávamos a pia. – E para que a buscáveis, se se pode saber…? Acaso a ides retornar aqui ao seu sítio? – Não, nós nem sequer sabíamos que este era o seu sítio… – Pois aí tens a tua resposta, não lhe dês mais voltas. Vós andáveis ao vosso, e nós ao nosso… E digo eu, quando será o dia que andemos todos para o mesmo sítio? Porque assim não chegamos a nenhures, já o vistes vós mesmos… e aqui já começamos a estar fartos… Produziuse um silêncio trás do qual Manuel ergueu arriba e disse: – “Já vão sendo horas de se pôr a andar!” Não se sabia se se referia a que já eram
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horas de ir jungindo ou se se estava a referir a esse caminhar da gente para um mesmo fim. Ou quiçá tudo fosse parte duma mesma cousa. Tangeu as vacas para arriba, jungiram, levaram o estrume à casa. Manuel insistiulhes muito em que ficaram a jantar… mas Rafael disse que não tinham nada de fome, que depois do bom almoço que ele lhes dera já se escusava jantar… que lhe agradeciam o convite mas que deveras não podiam… e que já passariam outro dia que lhes ligara de vir a Penacova. – Pois logo tomovos a palavra e aqui vos aguardo; cada quando que venhais sereis bem recebidos. Esta casa e o que há nela estará ao vosso dispor e ao de quem convosco tragais. Agradecendo a amizade coa que o Manuel os despedia marcharam para o carro. Como sempre, o mais velho era o que guiava. Quando já baixavam da Ranha, Rafael disselhe a Riba – “Hoje, se ti não tens outro compromisso, em lugar de parar na cidade vamonos chegar até às terras do Deza, que a mim já me vão sendo horas de dar por ali uma volta” “Irei com sumo gosto com você” “Pois logo não se fale mais, e podesme tratar de tu, que eu não sou tão velho… poderíamos ser irmãos… e hoje voute ensinar uma terra bonita de verdade… uma das zonas mais formosas que há no mundo… já verás, já”. E marcharam a caminho das terras do Deza; nem sequer se acordaram de parar em Ourense. Não volveram tampouco por Penacova.
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DESCOBRIMENTO Aquela madrugada marcharam mui cedo, e como ainda havia tempo e tempo antes de que o dia viera, foramse caminhando devagar pola rua da Arribada para a eira da Festa e de ali subiram à Ranha. Com sigilo afastaramse das casas e depois começaram a falar. De quando em vez viamse assaltados por um medo súbito que lhes sacudia só de pensar que alguém pudesse dar co lugar onde ficava a pia. Por vezes viramse dando volta e indo a caminho de Penacova outra vez, e depois tiveram que se refrear e seguir a se separar da aldeia e do que tinham escondido nela. Sabiam que o mais prudente e também o mais seguro era deixála ali só todo o dia… E eles não tinham outro remédio que aturar os seus próprios e legítimos medos… À noite voltaram ligeiros; chegaram, como já sempre fazem, juntos os três. Era um pouco mais cedo do habitual, as ânsias de chegar fizeramlhes apurar o passo caminho arriba. Chegaram asinha, e não puderam fazer mais que aguardar até que tudo ficasse tranquilo e quedo. Não bulia uma folha, era uma noite sereninha e cheia de estrelas, todas cravadas neles tal que olhos vigilantes; a lua parecia que se via medrar, logo queria ser cheia. Apegados às casas avançaram mais à pressa que outras noites, quando quiseram dar conta iam galgados… que imprudentes! E diminuíram a marcha durante o último trecho que cobriram mui a modinho adrede, como de castigo. Com cada passo, seu pensamento de perigo, e seu estremecimento polo corpo arriba enquanto o coiro se arrepia. Por fim, uma última alancada e já se dobra a esquina em direcção ao recuncho do palheiro. Nas caras dos três homens reflectese a ledícia de chegar… o palheiro viase inteiro, tal como eles o tinham deixado. Tudo parecia indicar que ali ninguém tinha tocado, contudo haveria que passar atrás e ver se era assim… Passam pola beira do paredão e lá, entre a erva Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 169
e o sabugueiro, vêem estar a sua pia apoleirada no chedeiro, tal como eles a deixaram. Quase querem correr e abraçála, mas em lugar disso vãose achegando e…, como casualmente, com um braço rodeiamna dissimulando um meio abraço e sentindo um abraço pleno. Apesar do muito que tinham avançado todos, algo parecia interporse impedindolhes exprimir o que sentiam. Alegraramse de terse apercebido dos seus próprios sentimentos, ainda que não soubessem como mostrálos ante a pia. Era como se ela conhecesse algo mais deles, algo que eles não lembram, e que faz que se vejam como meninhos, como meio despidos na sua presença. Mas faltava tempo por andar, quem sabe, talvez dariam atingido essa sensação que agora lhes estava restando intensidade à manifestação do seu sentir. Se quadra eles não eram tão merecedores como pareciam ser. Ainda faltava uma jornada para ganhar o que ficava por conseguir. Uma jornada. Coa esperança nas suas olhadas saíram a percorrer o lugar. Tudo semelhava tranquilo, deixando adivinhar que as gentes andariam já a dormir. Estamos no tempo da carreja, e toda a gente sabe o moídos que andam os corpos. Chega co que se háde madrugar à manhã. Antes da rompida do dia já vão os carros a caminho das leiras onde aguardam os medouchos e as rodas feitos cos molhos segados e atados. Tudo háde ser carrejado num dia, e que não chova. A ninguém se lhe ocorreria irse dormir e deixar a meda aberta e sem rematar. Uma jornada, estes labregos, como os homens da pia, só contam com uma jornada. E como os deles, os seus cálculos tinham que ser mui precisos. Antes de começar o pé da meda deverseia calcular as pousadas de messe que colhia aquela casa; a messe não deveria sobrar, mas tampouco podia faltar para rematar a meda como é devido… Co orgulho na olhada baixa o mestre da meda, que depois de levar bem os seus cálculos chega ao cabo e dizlhe aos de abaixo “faltame um molho para fechar…” e um molho é tudo o que falta para livrar o carro. E havia que o fazer tudo numa jornada. Os da carreja fazem polo dia o que eles hão de ter que fazer na noite que lhes falta. Vieram, comprovando que polo rueiro não havia nada que pudesse impedir o seu passo. Mui devagar, como a noite anterior, ou mais se cabe, começaram a sua andaina. Hoje andariam por entremeio das casas e não se podia escapar nem um chio do eixo, não só porque pudesse espertar a gente,
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senão porque ao o ouvir alguém pudesse pensar que outros colheram já a dianteira em madrugar e iam indo a caminho das leiras para a carreja. Não se podia cometer nem um erro. Deviam ter a exactidão do bom levantador de medas e assim como não lhes podia faltar o tempo para dar chegado, tampouco se podiam permitir que lhes sobrasse. Avançaram passeninho, e tal como tinham calculado levoulhes a noite toda chegar. Estavam para abrir as portas do átrio quando a Estrelinha do Luzeiro lhes dedicou o seu primeiro pestanejo… ainda havia vagar para que essa amiga se despedira desde o céu… Conseguiram passar pola entrada do átrio e passo a passo foramse arrimando à porta da igreja. Narciso corre à janela que dá à parte traseira, abre uma fisga e mete o braço com jeito para livrar o peitoril de por dentro, depois pousa os objectos de vidro na erva e empuxa a folha contra a parede; ele mesmo se dependura para adentro. Corre ao fundo, ele conhece bem os andares e escusa de ir às apalpadelas, abre o portalão para dentro e agarra o pinho. Passam coa pia. Uma vez dentro já se sentem mais tranquilos, as grossas paredes dãolhe acovilho às suas falas e rugires. Levam o carro até o alto da igreja, primeiro tiveram que arredar uns bancos e mais uns reclinatórios. Ali à esquerda, tal como Narciso agora lembra, estava o sítio da pia… se um reparasse, e houvesse luz, ainda se poderia ver a diferença na cor da pedra do chão. Fizeram recuar para esse lugar o chedeiro, Narciso manteve o pinho ergueito enquanto os seus companheiros iam deixando resvalar a pia pouquinho a pouco polas tábuas. Finalmente, a borda da pedra da base tocou no chão, então, enquanto os outros dous sujeitavam a pia para que não caísse de golpe, Narciso foi tirando do pinho e movendo a modichinho o carro adiante. Por fim a base inteira apoiouse naquele chão de pedra no que estivera toda a vida, e o chão estremeceu co pousar dela. E eles puderam por fim deixar sair o ar das respirações contidas. Asinha tiraram o carro e esconderamno na casa esborralhada que há por riba do átrio, na que já só vivem sabugueiros e silvas… “aqui ninguém virá rebulir de momento, e depois já se verá…” Volveram a correr à igreja. O dia, pronto a despontar, ameaçava com descobrilos. A Estrelinha do Luzeiro já se tinha acovilhado debaixo da luz que começava de querer banhar tudo por este lado da terra. Enquanto Ovídio e Perfeuto
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acotegavam os bancos movidos e mais os reclinatórios, Narciso correu à parte de atrás do átrio, recolheu a copa e mais a jarrinha de vidro e volveu a escape. Depois subiuse num móvel de gavetas enormes onde guarda as roupas o abade, fechou a janela e recolocou os frágeis objectos detrás, no peitoril. Os companheiros pregamlhe que se apure, que o sol não se faz rogado para sair e se não bolem asinha não se sabe o que pode acontecer… Narciso pegou um brinco e caiu ao chão justamente quando a primeira raiola de sol entrava pola janelinha lateral, uma abertura estreita na parede, demasiado estreita para ser chamada propriamente janela, mas o suficientemente ancha e esbelta como para não catalogada como troneira. No alto, na parte de fora, remata com umas ondas a jeito de concha de vieira que está coroada polas cinco estrelas da mitra de Santiago, e por ali entram os raios de luz quando chegam do Leste. Os dous companheiros viram como Narciso e a luz chegavam abaixo a um tempo. Narciso ergueuse a correr, e já se dispunha a botarlhe a ultima olhada a pia, a jeito de despedida, quando viram que da água iluminada saía um resplendor dourado no que se podia ver uma imagem nebulosa, como se estiver formada por essas multitudinárias partículas que dançam nas franjas de luz quando estas atravessam a escuridão, mas que pouco a pouco foi aclarando até que a puderam ver com nitidez. Era a imagem duma mulher nova que corria com um meninho nos braços, apegado ao seu peito. O pequeno semelhava recémnado… a mulher asinha achegou a cabecinha da criatura à borda da pia e coa outra mão botoulhe uma mada de água, como se dum baptizo se tratasse… depois já, tranquilamente, marchou com ele para a casa. Os três homens não o sabiam, mas aquela era a Áurea, que acabava de parir, mãe solteira e só, a quem sem ajuda nenhuma lhe levara tempo demais dar a luz à criatura. Temendo que não chegasse ao outro dia, correra a socorrêlo. A visão daquela luz apagouse mas após ela veio outra, e depois outra, e outra, e outras mais… e os três homens ali ficaram presos, sem poder fazer mais nada que desfechar os olhos e deixar entrar aquelas imagens da luz… E viram como uma velhinha de estranhas roupas entrava com uma jarra de barro e a enchia da água da pia; depois persignouse e marchou a correr para levarlha à Conceição, que parira dous meninhos, gémeos dum ventre, o primeiro e mais pequerrecho nascera bem, mas ao mais grande
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saíralhe primeiro um braço… e também viram como a tia Esperança, com as suas mãos esbeltas e sábias, lhe ajudava a recolocarse na postura da nascença, mas o meninho precisava outros cuidados… e vendo que se lhe queria ir, botaramlhe na sua cabecinha a água de socorro da jarra… depois choraram… e a ledícia de parir um filho vivo viuse assumiçada pola perda do seu irmãozinho… e viram também como nas mãos do seu pai umas tábuas se convertiam numa caixa pequena… e o pai caleoua por fora para que dissera branca… depois achegaramse ao sagrado e arredaram um nada a terra da sepultura da sua avó, há poucos dias enterrada, e deixaramno ao lado dela para toda a eternidade. E esse mesmo dia de luto e despedida foi também dia de baptismo para o outro pequeno que se salvara e que sem dúvida já estranhava o latejar do irmão que o deixara para sempre. E mal essa imagem se apagou apareceu uma mulher chorando, baptizara o seu meninho havia tão só dous meses e agora tinha que o destetar e marchar longe a dar o seu leite a filhos que não parira. Era a Erundina, que chorava bágoas de sangue por ter que lhe roubar o leite, que era dele e só dele, ao seu meninho para o ir malvender e assim poderem comer todos. Ela marcha chorando em silêncio, mas a intensidade da sua dor não passa desapercebida, e mesmo se deixa sentir nos berros do seu filho, que até aos vizinhos, só de o ver sem a sua mãe tão pequeno, faz chorar… E o pranto do meninho trocouse em pranto de gentes grandes, eram homens e mulheres que choravam a meninha da Dorinda, que lhe morrera. Três anos escassos entre nós e agora forase para sempre. Todos os da aldeia de luto, a morte duma meninha é nunca fácil de entender… e quando lhe botaram a terra por riba à caixa, a Dorinda mirou ao vazio e perdido parecia para sempre o seu olhar… Depois viram como a Dorinda se prostrou no leito e se negava a comer cousa nenhuma. Os da casa já desesperam; entram então os vizinhos e todos juntos revivecem a dor, e choram juntos outra vez, e assim até que os prantos foram botando para fora a negrura do seu sofrer e a Dorinda volveu comer. Logo que aquela imagem se foi viram como uns homens corriam pola beira do átrio arriba, entre quatro levam suspendido um colchão, e sobre dele ao Delmiro, que andando fazendo na casa, caíralhe a trave enriba e deixarao arrelado… têm que chegar até Os Mouros onde podem colher um auto para o levar a Ginzo, ou se quadra a
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Ourense, antes de que seja tarde demais. E depois viram como os quatro homens voltavam cansos, com eles traziam o colchão e a esperança de que o Delmiro se salve. E unida àquela imagem chegou a duma mulher berrando, que no meio da rua chora e também maldiz, porque seu filho tem de se ir à Alemanha, e aquela mulher duplicase e agora são duas as que berram, e logo três e depois quatro, em pouco tempo já são todas as mães da aldeia as que têm que chorar os filhos que lhes rouba a emigração. E a tristura enche os lares de Penacova; depois pouco a pouco passam os dias e as semanas e por fim o sorriso se debuxa nas suas caras ao ver chegar uma carta. Para o Natal chega um giro de marcos que ao se converter em pesetas muito rende. E vem o verão e de repente um dia, mentres andas cavando na horta, sentes à vizinha que te chama para que volvas, que che está um filho à porta… “Qual? Qual deles?” repetes ti enquanto tiras co sacho por enriba das ervilhas e corres pola mera arriba sem mirar onde pões o pé… tanto tem qual deles seja, tens quatro lá na Alemanha e a todos estranhas tanto como o palpitar do coração se cho quitaram como chos quitaram a eles. Quando vês o teu rapaz tão gabacho lá de pé onde a porta, sentes uma ledícia breve e depois chorais os dous, num abraço, pola alegria de vervos. E aquela mesma cena repetese de casa em casa e de ano em ano… E, pouco a pouco, canda os filhos vêm os netos, e Penacova recobra no verão a vida que durante todo o ano parece adormecida… mas é uma alegria breve, logo volvem a soidade o silêncio e a escasseza do rebulir das crianças polas ruas do lugar. E a vida do campo, já cíclica de por si, tornase cíclica outra vez com estas idas e vindas… Idas e vindas de gentes que se avelhentam, que se transformam e se vão convertendo em estranhos, e todos presos nesse caminho que leva à morte, à extinção… O cíclico dentro do cíclico na espiral que leva a nenhures, ou a algures… E quando as imagens já pareciam chegar ao seu remate o resplendor rachou em três, e de cada raiola emanou sua imagem, uma para cada um. Ovídio vê numa delas a um alcaide arrogante e ruim que insiste em passar a gábia pola beira mesmo da Fonte… porque se andam com cuidados gastarão todos os tubos, e para quê tantos rodeios e gastos desnecessários… E a gábia passa a ser vizinha da Fonte e ainda mais funda que ela; favorecida pola inclinação do terreno e o fácil decorrer ao longo do cimento, roubalhe a sua
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água… Que desprezível lhe parece agora a Ovídio aquele homem que se fazia chamar alcaide! Apesarado pola sua própria imagem deixase cair no banco que acabava de colocar; como pôde ele ter estado tão cego? Mas agora que via, teria que ser capaz de o amanhar… Fazer emendas. Estava determinado a restaurar o que devia. Entrementes Perfeuto senta na pedra fria do chão, o que viu ele não o deixava melhor parado que ao companheiro. Viu a um espoliador da pedra que pouco a pouco se vai achegando a um penedo que no alto tem uma fonte que o banha; aquela era a Fonte do Galo. Na fronte do penedo havia afundada para dentro a silhueta duma grande pia, agora dáse conta de que é a mesma que andaram a carrar… Viu também como uns pedreiros muito mais velhos que ele a arrincavam do penedo cos seus cinzéis e martelos sem esnacar mais do que era inevitável, deixando a silhueta para sempre ali esculpida, protegida pola água que a banhava… E chega ele e com um só petardo rebenta fonte, silhueta e água. Que casta de besta era ele? Sentiase desprezível mas não tentou fugir daquele sentir, pola contra deixou que esse sentir lhe ajudara ao seu pensamento a encontrar o jeito de reparálo… Ainda estava a tempo de reparar…, e ali no chão ficou a cavilar. Narciso estava agora ajoelhado e prostrado ao pé da pia, como se estivesse rogando ser perdoado. E assim era, porque ele vira a um homem cambaleandose mentres desfecha a porta da igreja para que um comando de curas dirigido polo Aurélio entre e marche coa pia. Logo levamna em silêncio até o alto do lugar onde a carregam no camião do fulano que a háde levar, é o mesmo forasteiro que dizse que já tinha levado os altares tempo atrás. E agora marcha com ela, e os bolsos do Aurélio se incham, e assim foi como pôde ir a Vigo a comprar prédios para os sobrinhos… ele dirá que é bom aforrador, mas toda a gente sabe que da paga que lhe dão não os podia sacar e que se dedica a roubar… depois tolejou… alguns dizem que tolo já estava, outros dizem que de tolo nada, que o nome que lhe pertence é o de ladrão, ladrão e criminal. Um criminal que chegou a Penacova fugindo das pedradas que lhe lançavam as mulheres de Medouchos, onde não o deram aguentado mais… por ladrão e por rufião… e por não sei quanto mais. E Narciso agora sente as cutiladas da dor que noutrora lhe anestesiara o álcool. E em voz baixinha, só para ele e a pia,
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suplica ser perdoado… Incansável e prostrado no chão repete: “nunca mais, nunca mais…” Ainda andavam os três homens tentando endireitarse e orientarse na confusão que lhes deixaram aquelas imagens quando sentiram vozes procedentes do fundo do átrio. A correr erguemse e colocamse nas bancadas da cabeça, de costas à entrada. A gente vai entrando e situandose como lhes manda o costume: as mulheres mais atrás, polos bancos que há no fundo e à esquerda da igreja; e os homens, ou o homem, que se vem um já são muitos, ocupando os assentos do alto, arrimadinhos ao altar, mesmo à direita do abade se missasse de cu para eles, porém isso já não está na moda, polo que agora os homens, se viessem, estariam à esquerda do padre. A gente era pouca, ora seguia passando adentro; porquê entravam era um mistério que eles deveriam tentar resolver se não queriam que a ansiedade os rilhasse por dentro… que por fora já se encarregavam as olhadas das mulheres desde lá atrás. Tentando não ladear as faces para que ninguém reconheça o seu perfil, permanecem imóveis… e aguardando que se lhes ocorra algo que pudesse justificar, no caso de ser preciso, a sua entrada na igreja, e ademais entrando assim… arrombando porta e tudo… Entrementes a gente que entrava ia repartindo as olhadas entre os três homens e a pia, de admiração por esta, e interrogantes para os forasteiros. Não podiam crer que lhes devolveram a pia, a que era deles para sempre, a que os viu vir ao mundo a todos, a que antes de entrar nesta igreja por primeira vez já bebera nas sete fontes dos sete Penacovas distintos que povoaram estes vales, a que era sua e só sua e dos penedos que lha deram… E enquanto a gente ia entrando eles seguiam ali arriba imóveis. Quiçá a gente ainda se marcha… Mas ninguém se moveu do seu sítio, e de ali a um pouco entrou o abade, e quando se deu a volta, viramlhe a cara de ledícia que levava, mesmo semelhava que tinha presenciado um milagre. Ele era um rapaz novo, de feições suaves e, se não fosse sacerdote, quase se poderia dizer que atractivas. A gente parecia conforme co jeito de dizer missa deste abade que ia acorde coa sua idade: curta. A gente gostava dessa brevidade, para quê perder muito tempo se se pode arranjar com menos… “E logo… já saístes da missa? Pois olha, hoje colocouvola à pressa…”, burlamse os novos. “Ele dila correcta, como é, mas não se anda lá com sermões nem trapalhadas para lhe
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fazer a um perder mais tempo”, respondem os velhos. Este cura parecia ter um estilo que à gente não lhe desagradava… Vamos, a bulir a escape! E não é porque tenham pressa, que muitas vezes ao sair da missa botam uma hora de conversa pola rua fora antes de volverem para casa. De qualquer jeito o remate precoce daquelas missas parecia servir a um e a outras. Mas aquele dia o pároco parecia transformado, e aplicouse a fundo, e ademais dos serviços mínimos que sempre lhes prestava, meteulhes um sermão sobre a qualidade do saber dar… que nem rediola. Usou metáforas e exemplos do bom fazer que aparecem nas escrituras cristãs, e do bem que fazia sentir o regalar… não obstante não lhe serviu de nada o sermão porque o contido das suas escolhidas palavras chegou aos ouvidos das gentes em forma de blablablas, e ninguém reparou no que o abade dizia. Elas tinham bastante com cumprir co seu dever, que têm automatizado,… ora de pé,… ora de joelhos,… ora podem sentarse, ora fazer a “porlaseñal” ou o “nombredelpadre”… mas fazer isto não requer pensar, e assim enquanto cos gestos do corpo fazem que fazem, a cabeça anda às voltas para adivinhar quem são os três forasteiros que sem lugar a dúvida foram os que lhe ajudaram ao abade a devolverlhes a pia. Cada um para os seus adentros mantém um monólogo dialogando consigo mesmo, que se poderia estandarizar do seguinte jeito: “Pois aquele do meio, o do pêlo abrancaçado, parececheme o Domingos de Ninhodáguia… não, não pode ser, que este é muito mais alto… pois logo a ver se vai ser… e aquele da esquina… que me leve o demo se não é o Perfeuto das canteiras…! Pois logo os outros também hãode ser de por aqui,… a ver se me arrimo à ponta do banco e vejo algo mais desde ali… porquê estarão tão atentos, que nem sequer ladeiam a face…? Polas roupas parecem gente coma nós, ora vão algo mais descuidados… claro que para carregar essa pia tiveram que suar… Não me digas que aquele vai ser o alcaide velho… olha lá…” Enquanto a gente segue coa sua adivinhadela, os três homens fazem o próprio por outro lado, e de quitado o Narciso, que sim lhe atende para ver se dá pilhado chave que lhes ajude a sair da situação, os outros tampouco entendem nada do discurso desse cura arrapazado que tanto latrica hoje. Ao remate do sermão Narciso avisouos de que podiam estar tranquilos, a cousa
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não parecia ir mal encaminhada… Tudo dito num murmúrio e coa mão apoiada na cara tapando a boca para dissimular o movimento dos beiços: – A julgar polo que disse o abade no sermão, ele pensa que a gente é a responsável de que esteja aí a pia, logo por esse lado estamos salvados… – Mas donde sacarias tu isso, se não se lhe entende uma palavra do que sai pola sua boca? – E que vai pensar a gente? – Pois que lhe viemos ajudar ao abade a devolver o que é deles, e que não tinha que ter sido nunca roubado, e eu fui responsável, polo que a ninguém lhe estranhará verme aqui participando. Logo podemos sentar e descansar um pouco, que a cousa parece controlada. – Não sei, não sei… a ti pareceche normal que fite tanto para nós o abade? – Homem não lho hásde tomar a mal, ele pensa que somos possíveis novos clientes para engordar a vezeira, que tem arrarado muito… e andanos a fazer as beiras… Narciso e Perfeuto riram um nada. – Se não parais ainda nos vão botar fora… – Isso é o que eu quereria, que isto estáseme fazendo interminável… donde caralho tirais tanta lábia os curas, que não há Deus que o dê aturado…? – Eu já não sou cura, irmão, que esgarcei o hábito… que muito me apertava e mesmo me parecia que me ia esmagar ou pôr louco… – E digo eu… ao abade não lhe estranhará que a gente traga uma pia tão grande assim polas boas? – Ao abade não lhe vai estranhar nada, ademais por aqui a gente ainda anda com isso das oferecedelas… e ele pensará que esse foi o motivo, e aí morrerá o conto… Olha, esta igreja foi enchida no seu tempo antigo graças aos esforços das gentes que então viviam… agora, graças ao fazer dos curas volvia a estar vazia, e já vês que pouco a pouco se volve encher… – E que razão tinha Narciso –, o altar do meio que agora havia fora regalado por um vizinho que se oferecera quando se viu a morrer… e os outros dous comprouos a gente a escote, e há pouco pediraselhes que deram também para governar o telhado e comprar casulas novas, que as que o Dom Narciso velho deixara já foram
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roubadas, e quiçá vendidas também… e também lhe pediu para livros e para não sei que mais… e a gente a dar, e a dar… E ninguém parece importarse de que este ano não se vão colher feijões, porque o sistema de rego precisava dum escote para meter uns meios tubos e evitar que a pouca água que fica se escape polas toupeiras e não dê chegado às meras… mas à gente não lhe fica dinheiro que dar para mais escotes este ano… o cura pediu antes de que chegasse a rega… e agora já lá vai o dinheiro… E assim, mole e mole, iráse enchendo a igreja outra vez. E um dia, talvez dentro de alguns anos, chegará outro cura que precise para lhe comprar os prédios aos sobrinhos, e volverá vendêlo todo…, e volta a começar de novo o conto; portanto ao abade não lhe vai estranhar nada, e nada dirá. – Pois olha, e eu que pensava que os curas vos entendíeis melhor coa gente … – Não me volvas chamar isso, que eu já estou curado… E aguardo que me chegue o tempo desta vida para reparar o mal que fiz co hábito… – Perdoa homem, que a ti não te queria ofender, já sei que ti te tens governado… – Vós segui a falar e vereis como ainda havemos de ir fora antes de que remate o segundo acto. – Se ainda fosse como no teatro que te dão intermédio, e se não gostas da representação já te vais embora… mas aqui se te marchas notase muito, e todos os olhos cravados em ti…como para perguntar: “Passoute algo?” “Desmaiaste?” Pois já verás quando tenhas de sair de primeiro e todas as mulheres do fundo te reconheçam… – E porquê vou sair eu primeiro…? Que saiam elas e eu vou detrás… – Não che são as cousas assim. – Pois já é hora de as mudar. – Calai duma vez…! Narciso então acordouse de três raparigas que vieram alguma vez à missa quando ele estivera naquela freguesia substituindo ao Aurélio… sim, vinham e sentavamse nos bancos dos homens, e se sentavam abaixo era para lhe dar nas ventas a todos e sair elas as primeiras… pois só por isso, e nada mais, vinham à missa alguma vez,… e até se perguntou por onde andariam… de
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certo que não iam estar na igreja, ora que quando souberam que a pia voltara entrariam a tocar com as suas mãos a pedra na que todos os seus antepassados puseram a mão primeiro… quanto daria ele por poder falar com elas, agora de tu a tu…! – Parece que estamos a chegar ao último acto… Por fim mandouos em paz e eles os três saíram tão completos, e as mulheres viram saciadas as suas curiosidades. Trás dos homens vãose elas, e agora, enquanto o abade anda dentro a pelejar cos saiotes para despirse, todos estão a saudaremse polo átrio… Quando o pároco dá saído vê como os três homens já se vão para fora. Então chamaos com um berro e um aceno da mão, e eles pensam que aquele pasmão ainda os vai descobrir… – Eh! Aguardai aí, bons homens, que ainda vos tenho que dar as graças…! – Não se merecem, e ademais já nolas deu você desde o altar… Narciso apurou a dizer aquilo para lhe tapar a boca ao cura, não fosse falar mais do que eles desejavam que se soubesse. Aguardaram a que se achegasse a eles e amigavelmente fizeram como que charlavam… sem dizer nada que a gente pudesse interpretar. Aquela naturalidade coa que se desenvolveram confirmoulhe à gente que os três vieram a ajudar coa pia. E coa mesma, toda a gente, de dous em dous, foi deixando o sagrado, e parandose polos recunchos da aldeia para falar. Os três caminhantes também se foram e o abade, vendose só no átrio, também marchou. E aqui não se passou nada. Os vizinhos não sacarão nunca o assunto a reluzir, não fosse o demo, já lha levaram uma vez… e o abade fez o mouco. O bispo não chegou nunca a saber nada de nada, e as autoridades fecharam o caso. Bom, isto último não está totalmente claro. Segundo o jornal Nuestra Región, não é que o fecharam senão que o abandonaram. Na verdade, o mais novo dos agentes nunca se ocupara a sério dele; ele andava ali camuflado de detective para fazer um estudo de campo sem que ninguém se desse conta. E por certo, não se chamava Riba por catalão, que ainda que nascera em Barcelona era filho de galegos, e galego se declarava ele também, ainda que fale tão bem o catalão como o idioma de Rosalia. E agora já anda lá por Barcelona tentando escrever a sua tese na área da antropologia social. Já lhe tem um título buscado: “Bidimensionalidade e suicídio cultural
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dos galegos” Ainda não sabe se encontrará quem lha publique na nossa língua; em Barcelona mandará uma síntese à Revista Catalana de Estudis Transculturals e sairá co título “Bidimensionalitat i suicidi cultural dels gallecs” Escusado é dizer que os de Nuestra Región não lhe vão publicar nem uma entrevista, quanto mais… e vá que lhes amola que se ande a falar dessas cousas…! E vainos falar de bidimensionalidade ele, precisamente ele que tem duas ou três falas, ele podia valer como exemplo da bidualidade essa… Mas a Camilo Riba, filho e neto de Camilos Ribas – todos, até ao confim das memórias familiares, eram galegos e ele tem clara a sua identidade – não dá crédito às críticas que lhe possa fazer um panfleto ao que o qualificativo de folha paroquial lhe assentaria melhor que o de jornal. A ele agora o único que lhe consome o seu tempo é a sua tese, que háde ser brilhante. De vez em quando párase a pensar nas possíveis críticas que os membros do júri lhe possam fazer e vai introduzindo mudanças no corpo do texto que ajudem a argumentar as posturas que ele agora, no momento de redigir, toma. A quem mais teme é ao professor Loureses, sendo como é natural duma freguesia achegada a Penacova, ainda que agora pare em Barcelona. Ele aguarda que o professor Loureses lhe critique a sua excessiva psicologização na terminologia, e lhe diga quiçá que bota em falta uma interpretação de corte mais simbólico que fosse capaz de dar conta de toda a complexidade do elemento mágico, inseparável da vida de Penacova. Camilo aproveita estas projecções que faz para ir fazendo os ajustes que lhe permitam sair airoso o dia da sua dissertação. Contudo, o que Camilo Riba jamais poderia ter adivinhado é uma das perguntas do professor Loureses, uma sobre as serpes voadoras e os seus poderes. E daquela Camilo teráse que arrepender de não ter perguntado mais aos vizinhos enquanto andava por Penacova… Mas se fizera isso as suas observações já não seriam tão objectivas… e esse será o argumento usado para mitigar o efeito da pergunta. Claro que sim, não interferir co objecto da observação fora o seu lema, e bem difícil que lhe foi às vezes… por isso não lhes pôde perguntar nada… e ademais, que ia a pensar a gente, e o seu companheiro, se entre as perguntas sobre a pia lhes solta uma sobre cobras voadoras? Não, isso qualquer entenderia que não se podia fazer. E isso que se o tivesse feito a gente bem que responderia, pois falar disso eralhe bem mais
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fácil que falar da pia. Ao cabo, o das serpes essas que voavam acontecia lá por longe; daqui de Penacova, que se saiba, só as viu o Teófilo, quando andava polo Norte, e mais dizse que… “Eram grandes como os temões dos arados, e polo lombo fora, dos dous lados, estavam cheias dumas asas pequeneiras… como as conchas das vieiras… Quando erguiam o seu voo, já te podias vigiar. Elas não mordiam, não, o perigo delas vinha do poder da sua sombra… se che roça a sombra duma dessas, por nada que seja, aí mesmo ficas tolheito e para sempre… por conseguinte as gentes andam sempre à procura da sombra das árvores para que não lhes roce a delas jamais…” Contudo, apesar de não saber nada disso, Camilo sairá bem airoso, e o professor Loureses alegraráse de ver como os galegos ainda somos quem de nos observarmos e de nos criticarmos, e fazemolo bem, ainda que às vezes para podernos ver com clareza nos tenhamos que afastar da nossa terra. Ele mesmo vê tudo o relativo à nossa cultura com mais clareza dês que está aqui em Barcelona, onde lhe é reconhecido o respeito que merece mais que na sua própria terra, não só como professor senão também como galego. Esta tarde achegarseá a algum dos bares dos Nou Barris dos tantos nos que se escuta falar na nossa língua, e quiçá presencie algo que lhe permita manter as esperanças da supervivência da nossa cultura. Que desconcertantes lhe resultam as cousas que se estão a passar na nossa terra… mas quando vê gente como Camilo Riba, que desde aqui é capaz de irse até lá coa sua olhada invulnerável frente ao raquitismo, a tentar resgatar o que ainda se puder salvar… põese contente e até alberga esperanças de que nos salvemos, de que um dia nós também sejamos um país normal… Quiçá, desta geração de galegos criados fora, livres da influência directa da bidimensionalidade essa da que falava o já doutor Riba, possam sair homens e mulheres que voltem a ajudar aos que andam hoje já a lutar contra o suicídio colectivo, contra a desmembração e a automutilação crónicas. “Homem Loureses, que gosto saudarte” Era C. Rousia, que desde a entrada do Cinco Estrelas o convidava a passar… “Olá! Que fazes tu por aqui? Olha que também che é casualidade, precisamente hoje venho eu dum júri de tese no que um colega falava da nossa terra, mais falava da tua que da minha, se calhar visteo por lá, haverá um ano que visitou aquilo, e…” Conversam um bom bocado, os dous têm vagar e querência de fazêlo… Depois C. Rousia
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despedese dele: “Já me tenho de ir, alegroume deveras terme encontrado contigo, e não te preocupes tanto, que qualquer dia se resolve… isto éche como dantes quando às mulheres, logo de três dias parindo, lhes davam a água de ferver os cornozelos… ‘parir ou rebentar’ diziam então… e quando as parideiras enviavam para abaixo aquele xaropote amargo já tanto lhes tinha morrer como não… algumas já estavam mais mortas que vivas… pois nós também nos livraremos… qualquer dia acabase o sofrimento… tanto sentirse vulnerável… e isso que eu ainda sou nova, mas há gente que já leva uma vida longa nesta merda… e de que nos estranhamos ao ver como muitos e eles se passam ao outro bando e preferem que os seus filhos se alimentem do montão grande de esterco…? Eles, como os vermes, só pensam na própria subsistência, e devoram a maçã que lhe serve de alimento, e assim destruem o seu próprio universo… eles, os coitados, só pensam que se estão a afastar do mal que ameaça com extinguilos, e fogem moribundos a esconderse debaixo do escudo do inimigo, porque assim tão sequer já não se apercebem de que morrem… correm sem darse conta de que quando se albergam lá debaixo já estão mortos… Fogem espantados por um espelho que lhes devolve uma imagem de si próprios como seres feios e desprezíveis, ora eles, tal que esganados, não podem ver outra cousa no espelho que têm diante; botamlhe a culpa à língua, pois é a diferença que mais ressalta, e contra ela arremetem… E arrasam a terra tal que mortos viventes que como os vermes se arrastam por riba dela… Não, não me invejes porque me vou para lá, compadeceme…”
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UM ANO DEPOIS Trás o jantar cos membros do júri, como manda a tradição, Camilo dedicouse a andar passeando solitário polas ruas de Barcelona. Sentiase feliz. Os membros do júri felicitaramno por tão brilhante trabalho e, naturalmente, deramlhe a máxima qualificação. Agora só lhe faltava encontrar uma revista galega que lhe ajudara a dar a conhecer os seus descobrimentos. Mas não hoje, hoje não queria pensar… hoje queria sentir… como fazia quando andava lá por Penacova com Rafael a primavera passada… Rafael… que seria feito dele? Não volveram a falar desde o dia em que se despediram em Santiago quando Rafael o fora levar ao aeroporto. Teria que lhe telefonar… e porque não agora que tinha tempo? Após a dissertação tinha umas semanas de descanso e ainda não planeara o que fazer com elas. E enquanto se enchia de imagens da sua Barcelona natal, ia pensando no que gostaria de fazer nessas duas semanas. Pensou que gostaria de ver a gente de Penacova… A Manuel e a sua mulher Aurora, e lembrou aquele rebite encarnado que lhe vira a ela colgando do pescoço… daquela não podia falar mas se a visse agora havia de lhe perguntar polo seu significado… também gostaria de ver ao Ciro e dizerlhe que era todo ouvidos, que lhe podia contar todas as histórias de pias que desse lembrado… E que seria feito daquele moço, cos seus sonhos de escapar lá a Canárias…? E a tia Maria? Seguirá podendo apanhar nas suas verças…? E o tio Serafim? Toparia quem lhe abra a forja…? E, claro, as três moças do maçadoiro… sim, definitivamente queria ver às do maçadoiro, a ele amolaralhe não poder ter falado mais durante aquela fase da sua investigação, mas assim são as cousas. Agora podia volver e arranjar tudo… explicarlhes porque estivera tão calado. E enquanto anda ele com aquelas evocações, as imagens do passado vãolhe entrando misturadas com as que lhe regala a cidade que se move ao seu redor Edições ArcosOnline.com, As Sete Fontes 184
enquanto ele anda… que formosa é esta Barcelona… e enquanto revive as lembranças nasce nele a imagem duma gesta florida da primavera de Penacova que se mistura coa dum formoso lagarto de porcelana… Se pudesse colher e dobrar o mapa da Ibéria… e juntar Penacova com Barcelona… E ele pensava que aquela era uma ideia mui original que se lhe acabava de ocorrer a ele… como se nota que passara pouco tempo em Penacova! Ele marchara antes do Agosto e nunca escutara aos que cada ano a finais desse mês têm que se pôr ao volante para irem a Barcelona de volta: “Ai, quanto quilometro inútil polo meio… se se pudesse dobrar o mapa… com uma alancada já chegava!” Mas ele, sem nada saber disto, aquele dia ia dobrando o mapa e saltando de Penacova a Barcelona com toda a facilidade. Ainda que o que ele fazia era uma superposição que lhe permitia andar polos dous sítios a um tempo, e ele ia escolhendo dum e doutro, criando assim o seu mundo ideal… Um mundo no que ambas as duas realidades tinham plena razão de ser; onde nenhuma é pior nem melhor, senão dous mundos irmãos… e pensando naquilo, e sentindo a imensidade dos seus universos, foise na procura dum telefone. Falou co Rafael, que muito se alegrou de o escutar. E quase sem aperceberse sequer já estava no aeroporto de Santiago de novo… – Mesmo parece que foi ontem quando me vieste trazer ao aeroporto e logo vai lá um ano… – E polo que me contaste, para ti não foi mal aproveitado… – Não tenho queixa, mas contame agora de ti, que ainda não me contaste nada… O reencontro fora intenso, tal que de parentes se tratasse, e depois de visitar Compostela, aquela mesma tarde volveram às terras do Deza onde Camilo gozou duma familiar acolhida. Logo planearam uma visita a Penacova. À primeira não estavam mui certos de se o deviam fazer, eles já não eram quem foram, e talvez também já ali as cousas andavam doutra maneira… porque não deixar tudo como está, e reter aquela lembrança tão suave e doce que ambos conservavam? Camilo tinha outros sítios que visitar, lá pola Fonsagrada onde moram os da sua gente pola parte de seu pai, e podia adiantar a sua marcha… Mas não háde ser tal… e puseramse ao caminho para o outro dia à manhã.
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Quando iam subindo pola estrada d'Os Mouros, mesmo em chegando a Ameixeiras, avistaram a um grupo de gente toda junta na beira do caminho. Rafael conduzia devagar e puderam ver como de dous em dous se iam metendo todos na taverna. Pararam o automóvel e, danados pola curiosidade, entraram no bar eles também,… afinal de contas, era um lugar público e ninguém lhes ia dizer nada, ainda que aquilo parecia uma reunião… um conselho, diria a gente. Ficaram de pé direito na esquina do balcão, perto da porta. A gente, alguma sentada e outra de pé, olhava para um homem que tinha agora a palavra e começava a falar… – Pois eu peçovolo deveras a todos… e já vos digo que a candidatura está aberta… e eu seria mui gostante de que alguém de Ameixeiras se unisse a ela… já há gente de Penacova também apontada, e de Fontearqueira, e de todos os lugares, se me apuras até de Penalapa levaremos gente… já só ficais vós para as listas estarem completas, e mais estarmos todos representados… Um homem de uns sessenta e tantos anos falou então, e parecia representar bem o sentir de todos, porque todos acenaram coa cabeça ao que ele dizia, …e disse que não se devia estranhar se a gente semelhava um bocado remissa, mas que já escarmentaram muito… e não precisamente na cabeça dos outros… que eles tinham os seus reparos para fiarse da política… – Eu compreendo o que me dizes, Severo, e não te falta razão nenhuma, contudo tens que admitir que todos nos equivocamos, e que de não ser assim não se precisariam as segundas oportunidades… E o orador seguiu a falar das segundas oportunidades e do muito que aprende a gente quando não sabe o que tem e o perde… e asseguralhes que se o apoiam não se vão arrepender… A Camilo e a Rafael parecialhes que aquele homem falava com sinceridade, e perguntaramlhe ao de detrás do balcão quem era – “É o velho alcaide, que se quer apresentar outra vez”… E o orador seguiu a falar, mesmo semelhava que tinha pressa por sair eleito outra vez,… e que certo era, ele tinha assuntos pendentes que resolver, assuntos que estavam à sua espera e ele já não via a hora de poder começar… à Fonte serlheia devolto o seu caudal, ainda que ele mesmo tivesse que abrir o buraco coas mãos e fazer um muro de contenção… e ademais tinha ele outras contas que saldar e havia de ir pouco a pouco até pagar por todas; e com essa esperança
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seguia a falar, e a gente a interpelar. Rafael e Camilo foramse embora e não ouviram como rematava aquele meeting, no que o orador, que estava a deixar medrar a barba ou talvez se esquecera hoje de se barbear, se empregou a fundo para colocar a sua mensagem dentro das cada vez mais atentas cabeças da gente. Camilo e Rafael chegaram a Penacova, e em vez de meterse para a aldeia decidiram dar uma volta co automóvel polas pistas, primeiro foram caminho de Penalapa e ao passarem A Tapada colheram o caminho que polas Lamas do Baio leva à Travessa; ali pararam e saíram do auto, estavam no pé do Castelo da Rainha Loba. Sentiram um bouchear intermitente que vinha de lá do fundo das carvalheiras. Atraídos pola sua natural curiosidade, caminharam por um carroucho estreito entre os carvalhos e foram ter a um lugar onde havia cachotes de pedra escangalhados. Ali nascia o boureio e não tardaram em dar co responsável, um homem de mediana idade que semelhava estar a fazer uma escultura, ou algo parecido. A eles surpreendeulhes que aquele homem, em vez de começar por uma grande rocha e ir tirando o que lhe sobrasse, parecia fazer ao revés, e andava a juntar cachotes e fazendoos casar uns cos outros e mais com um plano que parecia consultar lá dentro da sua cabeça. O homem nem reparou neles, e continuou a colher e a provar pedaços de pedra nos ocos que faltavam. Eles olharam um pouco para aquele pedreiro que parecia cego para tudo menos para aquelas pedras e os seus martelos, e só descansava para botar uma olhada lá para os montes da Rousia, ou cara aos vales da Límia, com um olhar que mostrava que ele também tinha outras contas por pagar. Camilo e Rafael admiraram a habilidade que parecia ter nas suas mãos, depois marcharam. Debateramse entre dar a volta e ir buscar o automóvel ou baixar polo monte abaixo até chegar ao meio de Penacova. Decidiram deixar o seu veículo para mais tarde, e foramse caminhando até às casas. Primeiro foram dar uma volta polo lugar. Eram muitas as lembranças guardadas e agora também, por ambos os dous, prezadas, ainda que algumas não fossem tal quando as viveram. A Camilo amoloulhe não dar visto as três moças do maçadoiro e até quis ficar sentado ao pé da casa da escola, enquanto Rafael ia visitar o Manuel, mas aquilo não estava bem, e resignandose a ser lembrado polo seu silêncio, marchou co seu amigo a caminho do fundo da aldeia.
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Recebeuos a Aurora, o Manuel andava no monte… “chega este tempo e não há quem pegue nele em casa… tem tanto labor do que botar mão… hoje foi amorear tantinha erva, ao passo que levou o gado para o monte… como lhe vai amolar não os ter visto… se não fosse tão longe davamme ganas de ir na sua procura…!” A eles também lhes amargou não ver o Manuel, mas conformaramse com ver a Aurora, e perguntaramlhe que tal iam as vacas, e se levaram para o matadoiro a bezerra da Marquesa ou a criaram… “Já, homem, já; onde ela vai! E mais, muito lhe amargou ao meu homem terse que desfazer dela…” disselhes Aurora com uma fala carregada de saudade. Marcharam. Passaram por diante da casa do Serafim e botaram uma olhada para o corredor… Não viram a ninguém, o ferreiro não estava sentado no seu escano ao lado dos jornais que lhe juntara o seu neto Daniel este último ano. Deramlhes ganas de subir e bater, mas decidiram seguir, e ao reparar na porta da forja, viram que estava aberta; lá dentro um homem soprava as brasas ardentes nas que já se estava a temperar o ferro. Aquele homem não era o Serafim; era um homem muito mais novo que ele, um homem que agora deixava descansar os foles e com as tenazes sacava o reluzente ferro e com força começava a bouchear nele. Com cada golpe, sua estrela de faíscas que se funde e esvaece no espaço que o rodeia. Aquele homem era o Narciso, ainda que eles nunca o saibam, e enquanto seguem o seu caminho Rego arriba, vão escutando como os bateres do martelo deste novo ferreiro se misturam cos ecoares duma canção… aquela melodia fazlhes lembrar o velho ferreiro, e como então tampouco agora entendem o que diz a letra… e marcham. Mas não é de estranhar que a não entendam, o próprio Narciso, que a canta, tampouco acaba de saber o que quer dizer. A melodia seguelhe a lembrar as cantigas que de pequeno lhe ensinava sua avó, ora na poesia intuise uma força nova, uma força que em lugar de amolecer o seu espírito vai fazendoo resistente, tão rijo como o próprio ferro no que boura. E enquanto golpeia decatase de que o ferro reluzente mais que relha parece espada, e nesse instante entende o sentido da sua canção… e com mais força, se couber, golpeia agora enquanto vai calculando se haverá relhas de avondo para desterrar o selvagismo que assola a Terra.
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GLOSSÁRIO Definições e/ou sinónimos segundo os usos na Galiza. Este glossário foi elaborado/adaptado a partir do Dicionário Estraviz (disponível na Internet em www.agalgz.org/estraviz/).
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A Abofé adv. Certamente, em verdade. Abofé que o fez: em verdade que o fez [de a + boa + fé].
Argalhar v. tr. (1) Inventar mentiras. Mentir. Tramar. (2) Armar ou promover embrulhos. (3) Discorrer, inventar contos ou histórias. (4) Conceber um plano com uma finalidade prática.
Aboujar v. tr. Aturdir a berros e com forte ruído.
Arramplar v. t. Arrepanhar, arrebatar .
Acadar v. tr. (1) Recolher, colher. (2) Alcançar,
Arrelar v. i. e r. (1) Fadigarse com o muito peso
conseguir. (3) Dar no alvo. [lat. accaptare]. Acaer v. i. (1) Ser próprio, ajeitado, ajustado:
que se leva às costas. (2) Dobrarse com a carga. (3) Derrear.
acaelhe bem a alcunha. (2) Assentar bem,
Artelhar v. tr. Articular, organizar.
favorecer: acaelhe bem o vestido. [lat. accadere].
Assolagar v. t. Anegar, submergir, alagar.
Acochar v. tr. (1) Cobrir. Abrigar. (2) Ocultar. Esconder. (3) Proteger. Amparar. v. r. (1)
Assumiçar v. t. e r. Fazer parecer mais pequeno, menos importante.
Abrigarse bem na cama. (2) Meterse na cama a
Atarricado adj. Atestado, abarrotado, atarracado.
causa de uma doença [de cochar].
Avantar v. tr. Ir para adiante. Adiantar. Avançar.
Acotegar v. t. Arrumar. Acougo s. m. (1) Acto ou efeito de acougar ou
Avondo adv. (1) Avonde, abundantemente; (2) adj. Suficiente [lat. Abunde].
acougarse, acoito (2) Sossego, tranquilidade,
B
calma, repouso. Agarimar v. tr. (1) Proteger, amparar. (2) Arrimar a outrem algo que o abrigue e lhe dê calor. (3) Por
Bágoa s. f. Lágrima.
ext. Tratar com carinho. v. r. (1) Pôrse ao
Balorecer v. i. ou v. t. Bolorecer.
agarimo de alguém. (2) Pôrse ao abrigo. (3)
Barquela s. f. Recipiente de madeira em que se põe
Abrigarse bem com roupa. Alancada s. f. Passo muito largo. Alcaide s. m. Autoridade administrativa espanhola que corresponde a presidente da câmara em
a comida aos porcos. Bica do testo s. f. Pão de trigo comprimido e chato que se coze numa tigela. Bimbarreira s. f. Pendente, encosta.
Portugal. Alpavarda s. m. Papamoscas. Pessoa sem resolução. adj. Atontado. Aparvado. Simples. Alprecha s. f. Alcunha.
Bourar v. i. Golpear, bater, malhar. Boureio s. m. (1) Algazarra, tumulto. (2) Faina, trafego.
Amalhoar v. tr. Atar com amalhó.
Bouchear v. i. Martelar.
Amalhó s. m. Cordão de coiro para atar os sapatos.
Broma s. f. Brincadeira, piada.
Amedouchado adj. Disposto em forma de
Bruar v. i. Rugir, zoar.
medoucho, ou meda pequena.
Buligar v. i. Moverse, bulir, oscilar.
A modo loc. adv. Com jeito, muito de vagar.
C
Amoreado adj. Posto em moreia ou montão. Amontoado. Apanho s. m. (1) Acomodo, arranjo: tenho este apanho para ir vivendo. (2) Trato ilícito e oculto com pessoa de distinto sexo. Apoleirar v. tr. e r. Empoleirar. Arestora adv. t. A esta hora. Neste momento. Agora. [lat. hac + ista + hora].
Cachote s. m. Pedaço de pedra de cantaria sem lavrar. Pedra grande desprendida de um penedo. Cadanseu/Cadansua adj. Cada um seu/sua: iam com cadanseu carro. Canchês adj. e s. Aquele que tem as pernas tortas ou arqueadas, cambaio.
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Cão s. m. Denominação popular duma antiga moeda de dez cêntimos de peseta. Cara a prep. (1) Indica direcção: marchouse cara à vila. (2) Aproximação temporal: recolhe as vacas cara a tarde. (3) Aproximação local: cara a serra vêse o nevoeiro. Caráfio Interjeição que denota surpresa ou enojo (eufemismo de caralho).
Clouca s. f. Sapela ou rã pequena. Cocho s. m. Buraco. Toca. Fojo. Esconderijo, lugar secreto, pequeno refúgio de um animal. [lat. copulu]. Combarro s. m. Lugar onde se guarda a lenha do inverno, lenheira. Comesto p. p. irreg. de comer. adj. (1) Consumido, acabado, extenuado. (2) Que foi comido:
Carpaço s. m. Carrapiço.
comesto dos cães, dos vermes. (3) Carcomido,
Carrela s. f. Talhada, fatia.
roído, gasto: comesto polos anos.
Carroucho s. m. Carreiro difícil de transitar.
Conhecias s. f. persoas conhecidas; conhecidos.
Casalandreiro adj. Dizse da pessoa amiga de
Cornozelo s. m. Cornição, cornecho, crava
andar polas casas alheias. Castrapo s. m. pop. despect. Variante dialectal do idioma castelhano, muito influída polo galegoportuguês, falada na Galiza.
gemdocenteio, doença do centeio causada por um fungo que contém alcalóides de propriedades medicinais e psicotrópicas. Coucheira s. f. Conjunto de plantas ou ervas da
Cativo s. m. Menino.
mesma espécie que se distingue no terreno do
Ceiacú adv. Com retrocesso, movendose para
resto pela sua espessura e altura.
trás. Ceivar v. t. (1) Soltar o gado que estava atado. (2) Soltar os animais do jugo. Desjungir. (3) Dar liberdade a uma pessoa: o juiz mandou ceiválo
Couchopé (Ao) loc. adv. A pécochinho, andar apoiando um só pé no chão. Covaterra s. f. Esconderijo debaixo da terra onde vivem as toupeiras.
por ser inocente. Deixar livre. (4) Destapar as
Crego s. m. Clérigo [lat. Clericu].
águas.
Crencho adj. Crespo, riço, enguedelhado: tem o
Ceive adj. Livre, sem nenhum tipo de atadura, falando de animais, terras. Chantar v. t. Plantar de estaca, espetar. Che Gram. Forma do pronome pessoal de segunda pessoa quando funciona como objecto indirecto,
cabelo crencho (var: crecho). Creto s. m. Crédito, credibilidade, fama, confiança. Cuinchar v. i. cuincar, grunhir, particularmente o porco. v. t. por extensão, cravarlhe o cutelo ao porco para o matar, provocando que cuinche.
comum na Galiza em substituição da forma te: vouche dar o que che prometi; não cho posso contar. Forma de dativo de «solidariedade» (no diálogo designa um interlocutor a quem, sem recair nele nem direita nem indirectamente a acção verbal, de algum modo interessamos ou implicamos no que enunciamos, como concedendolhe simpaticamente participação): dóicheme muito a cabeça; quando vem? – Não cho sei. Chinguilinada s. f. Cousa miúda e de pouca importância. Chouchar v. i. Rolar: a pedra foi chouchando monte abaixo.
D Daquela adv. t. e m. (1) Naquela ocasião, naquele tempo: já daquela falavam de vir. (2) Então, nesse caso: daquela, não o pago; daquela não temos mais que falar [de de + aquela]. Dar + particípio verbal Construção que expressa capacidade ou possibilidade de o sujeito atingir a acção do verbo (exemplo: dar chegado a tempo: ser capaz de chegar a tempo). Decatarse v. r. Darse conta, aperceberse. Decolgar v. i. Colgar; pendurar. Decotar v. tr. Cortar por cima ou em volta, especialmente pôlas de árvores.
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Decrua v. t. Acto de decruar; primeiro amanho ou lavra da terra para a sementeira. Deica pouco loc. adv. Quase, perto de. Deluvar v. tr. (1) Esfregar suavemente: deluvar os
Esnaquiçar v. tr. Fazer pedaços alguma cousa, destroçar, esnacar. v. r. Fazerse pedaços, romperse. Estinhar v. i. e t. Estiar, deixar sem líquido.
olhos pola manhã. (2) Esfregar com força a
Estrelinha do Luzeiro Estrela da Manhã.
roupa.
Estrume s. m. (1) Mato, palha e despojos vegetais
Deputação s. f. Câmara territorial de província, na Galiza.
que se empregam como cama do gado para obter esterco. (2) Resíduos vegetais misturados
Desacougo s. m. Desassossego, inquietude, intranquilidade. Desacoito
com os excrementos dos animais, com os que se adubam as terras para as fertilizar.
Devandito adj. Que já fica dito. Mencionado
F
anteriormente. Devezer v. i. Sentir um intenso desejo por algo (devezo). Devezido adj. Com devezo ou apetência insaciável. Devezo s. m. Ânsia ou desejo muito intenso de algo.
E Emborcalharse v. tr. e i. Rebolarse polo chão como os animais. Encadilhar v. tr. Entrançar, enrestiar. Por ext. Organizar as acções na direcção ajeitada.
Fachonco s. m. Buraco pequeno que se enche de água. Fárria s. f. (1) Classe de rocha de estrutura piçarrosa, da mesma composição que o granito, mas submetida a distinta pressão geológica. (2) Abertura estreita entre rochas. Fento s. m. Feto. Fotingo s. m. pop. Automóvel de pouca potência. Frôncega s. f. Fronça. Fame s. f. Fome. [lat. Fame].
Escrebadela s. f. Sonadela, sono curto e ligeiro.
G
Ençoufado adj. Sujo, manchado, lixado. Enferrar v. i. Enganar. Engabachado v. i. Gabacho, muito bem vestido, como para uma festa. Ensinar v. t. (1) Transmitir conhecimentos e competências a; (2) Mostrar, deixar ver; (3) Indicar, sinalar. Entear v. i. Avivar o lume. v. t. Avivarse o lume. Entroido s. m. Entrudo. Enviar v. tr. (1) Mandar alguém ou alguma cousa:
Gesta s.f. giesta, nome de algumas plantas subarbustivas da família das Leguminosas, de talo lenhoso, com polas delgadas e flexíveis e flores amarelas ou brancas, algumas das quais são espontâneas na Galiza e Portugal. [lat. Genista]. Guichar v. t. Espreitar, vigiar, observar desde um lugar oculto para não ser visto.
enviar um criado às compras. (2) Tragar: enviei
H
um osso do frango. v. i. Tragar, comer sem mastigar: este, em vez de tragar, envia [lat.
Ho Interjeição que exprime certeza.
inviare].
Homem da moca s. m. Personagem fantástica que
Enxoito adj. Enxuto.
representa o sono, e dános mocadas para
Escacaranharse v. ref. Perderse de riso.
induzilo.
Escarrapatar v. i. Remexer a terra com as unhas, esgaravatar.
I Intriquidência s. f. Complicação, embaraço.
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J Jamão s. m. Variedade de presunto preparado à moda da Galiza.
Meixela s. f. Maçã do rosto. Cada uma das duas proeminências do rosto debaixo dos olhos. [lat. maxilla]. Mentres adv. t. Mentes, enquanto, entretanto. [lat.
Janeira s. f. Cio dos gatos e outros animais.
L Lacazanear v. i. Andar à preguiça. Larejar v. i. Arder mui rápido o lume. Larpar v. tr. Engolir rapidamente. Latricar v. i. Falar à toa, sem sentido e berrando. Lea s. f. (1) Luta, briga, peleja. (2) Complicação, enredo, confusão. Ligar de Acontecer por um acaso. Calhar de. Liorta s. f. (1) Confusão, enredo, barafunda. (2) Disputa, peleja. Liscar v. i. (1) Marchar, irse. (2) Fugir: liscou quando viu a polícia. Lispar v. t. fig. Larapiar, roubar.
de um interim]. Mera s. f. (1) Parte da herança que toca a cada herdeiro. (2) Parte comunal que lhe corresponde a cada vizinho [gr. meros]. Porção. Moinheiro adj. e s. Pertencente ou relativo ao moinho ou à moagem. s. m. O que tem ao seu cargo um moinho. Mole e mole Pouco a pouco. Molida s. f. Protecção que levam as vacas e os bois para que não moleste o peso ou a carrega ao jungilos; molídia. Mornura s. f. Mornidão, tepidez. Moruja s. f. Morugens, planta herbácea frequente nos terrenos areosos, e nas fontes. Mouminhar v. tr. Falar polo baixo. Murmurar.
Lumieira s. f. Peça longa de pedra ou madeira que
N
se põe sobre os marcos das portas e janelas. Lintel.
Neno/nena s. m./f. (1) Ser humano de pouca idade.
M
(2) Moço/Moça novo/a.
O
Maçoucado adj. Que tem maçaduras. Mada s. f. Quantidade de cousas que cabem numa só mão, mãocheia. Mália interj. Mal haja: mália quem te criou. conj. Apesar de: mália que não ando bem, irei. Malhões s. m. Correias de coiro com que se atam os socos ou chancas, amalhões. Cordões. Malpocado adj. e s. Infeliz, coitado, desgraçado. adv. Malpecado.
Ola s. f. (1) Vasilha arredondada para preparar comidas. (2) Recipiente de barro para carrejar agua. (3) Caçoula de barro na que se guardam os chouriços. (4) Recipiente de madeira para guardar ou maçar o leite. (5) Medida de capacidade equivalente a 16 litros. Ombreiro s. m. Ombro. Ouleo s. m. Uivo.
Mancar v. tr. Magoar, lastimar, ferir.
P
Maniota s. f. (1) Freio para prender a mão dos animais. Peia. (2) pl. Dor que se sente nalguma parte do corpo depois de realizar um exercício muito violento ou muito seguido. Marelo adj. Amarelo. Matinar v. t. e i. Pensar com empenho e
Passeninho adv. Devagarinho. Pedâneo adj. (1) Antigamente, juiz que numa vila ou aldeia julgava de pé. (2) Alcaide duma aldeia [lat. pedaneu].
detidamente alguma cousa. Cavilar, discorrer.
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Peso s. m. Denominação popular na Galiza da
Queixil adj. Queixal. Do queixo. s. m. (1) Dente
antiga moeda espanhola de cinco pesetas.
molar. (2) Mandíbula inferior do porco. (3)
Moeda espanhola que valia cinco pesetas.
Queixada, mandíbula.
Petar v. i. (1) Chamar dando golpes numa porta. (2)
Quadra (se) adv. Talvez, quiçá. Se é do caso, pode
Fazer ruído andando, trabalhando com um
acontecer que: se quadra, vem hoje. Dar quadra:
martelo, etc. (3) Pegar, golpear.
dar razão, lembrarse.
Pinho s. m. Parte do carro de bois por onde se
R
puxa, e que habitualmente se amarra co temoeiro ao jugo. Pipela, ou pipel s. f. Cano lavrado na pedra, polo que sai a água duma fonte. Porca s. f. (1) Jogo que consiste em fazer um buraco grande (porca) e vários pequenos (quichos) e com cajados intentar uns jogadores meter a bola de urze ou de outro material dentro, no entanto lho impedem os outros. Os jogadores
Rabunhar v. tr. Ferir com as unhas. Esgaravatar, ranhar, arranhar. Ranhar v. tr. e i. Arranhar. Esfregar a pele com as unhas. Não ter que ~ não ter que fazer. Rauto s. m. (1) Rapto. (2) Arrebato [lat. raptu]. Rechouchio s. m. Trinado, gorjeio. Recuncho s. m. Recanto, canto.
chamamse porqueiros e têm que defender a
Refaixo s. m. Espécie de saia curta e rodada, que se
porca e o quicho para impedir que os outros
leva de baixo da saia de fora. Saia de baixo.
metam a bola no buraco. No caso de que a
Saiote.
alguém lhe colham o quicho tem que seguir com
Refistolar v. i. Remexer tudo buscando algo.
a porca. Quando a bola entra no grande têm que
Refistoleiro s. m. Dizse da pessoa que remexe
se mudar os que guardam os buracos pequenos
tudo buscando algo.
com rapidez e o que meteu a porca sempre tem
Refucir v. t. Arregaçar.
que ficar depois num pequeno; o buraco grande:
Reganho s. m. Raiva.
cocha e os pequenos guichos; o buraco grande:
Renguelear v. i. Andar de jeito rengo ou derreado.
cocha; os pequeninhos: cochinhos. (2) A bola
Ringleira s. f. Linha de cousas ou pessoas em
redonda para jogar. (3) Buraco grande no jogo da porca. Dar tronos, significa meter a cabeça (bola) na buraca e apertála com os paus. A «trela» consiste em pôr os cajados na porca e meterlhe a cabeça no buraco ao que não quer seguir
ordem. Fileira. Rolda s. f. (1) Turno no reparto da água de rega. (2) Turno, vez. [lat. rotula]. Roscão s. m. Doce elaborado com farinha, ovo, leite e açúcar, cozido no forno. Rouchar v. i. Andar da roda, rodar.
jogando [lat. porca]. Poula s. f. Terreno de pousio, inculto, mas
Rustrir v. tr. (1) Frigir algo em azeite, manteiga ou gordura, alho, etc., para condimentar um
cultivável. Póutega: s. f. Pútega; planta herbácea, comestível,
manjar. [fránc. hraustjan,prov. raustir].
da família das Raflesiáceas, parasita das raízes de
S
várias plantas, que se encontra na Galiza e no Norte e Centro de Portugal, também conhecida por coalhadas.
Sarriço s. m. Espinhaço muito visível num animal fraco.
Presel s. m. Pesebre. Pruício s. m. Pruído, comichão, prurido.
Q
Saculeão s. m. Sacudidela, empurrão, particu larmente o que se dá co ombro debaixo do corno da vaca, mentes se puxa pola soga com a que se junge, para que fique melhor apertada.
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Santa Companha s. f. Procissão de almas penadas
Trousar v. tr. (1) Vomitar; (2) Trouçar, trasfegar.
que, segundo as crenças tradicionais da Galiza e
Tega s. f. Teiga. (1) Medida de capacidade para
do Norte de Portugal, percorre de noite as fragas
cereais com valores diversos segundo as zonas.
e caminhos para ir recolher as almas das pessoas
(2) Recipiente de madeira usado para a medida
que morrem ou para anunciarlhes a sua morte.
de áridos. (3) Quantidade de grão que colhe na
Sedenho s. m. Corda grossa para atar a carga do
tega. Trugir v. i. Moverse (vai sempre acompanhado da
carro, adival. Seica adv. de dúvida. Acaso, talvez, quiçá, parece;
negação não: não te trujas).
dá origem a numerosas locuções ou modismos
U
com certo matiz interrogativo. Seica estás tolo?: que dizes, fazes ou te propões? Seica, seica: quiçá, quiçá. Seica sim: parece ser certo, pode ser. Seica sim?: de modo que é certo. Seitura s. f. (1) Acto ou efeito de segar. (2) Época de segar os cereais. Ceifa, sega [lat. sectura].
U adv.
ant. Onde. Forma um pronome
interrogativo referido tanto a pessoas como cousas: ulo, ula [lat. ubi]. Uzeira s. f. Urzeira.
Senha s. f. Na mitologia popular galega, imagem
V
fantasmal duma pessoa que não está presente, cuja visão anuncia a próxima morte desta. [lat.
Vaso s. m. Copo.
signa, pl. de signu].
Velaí interj. Eis aí: velaí o que fez.
Solaina s. f. (1) Sítio ou paragem onde dá o sol. (2) Lugar aberto com balaustrada de pedra, com uma grande escada de aceso que acostuma ser a entrada principal nos paços galegos. Sona s. f. Fama, creto, renome.
T Tarabelo s. m. Taramela, pessoa tagarela. Tendal s. m. Tendedeira, lugar da casa do forno em que se tende a massa e se faz o pão. Topenejar v. i. Dar cabeçadas com o sono, dormitar. Trebelho s. m. Aparelho empregado numa determinada actividade.
Vêlas vir (estar a ~) Ficar pasmado. Vencelha s. f. Vencilho, corda feita de palha e de um só lado, empregado para atar os molhos. Vieiro s. m. Caminho. [lat. viariu]. Vindeiro adj. O que está por vir, que está próximo. s. m. pl. Sucessores, os que hão de nascer ou vir depois. Viosbardos s. m. Gambozinos; Andar aos ~ andar desnorteado.
Z Zagões s. m. Espécie de avental de coiro que se usa na faina de atar os molhos ou gabelas da messe. Zarapulho s. m. Migalho.
Troula s. f. Diversão buliçosa, pândega.
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Índice
Ficha técnica
2
Sobre a autora
3
Dedicatória
4
Prólogo
5
Limiar
11
Capítulo I – A Fontecova
13
Capítulo II – A Fonte da Auguela
36
Capítulo III – A Fonte da Cunca
65
Capítulo IV – A Fonte de Requeijo
89
Capítulo V – A Fonte do Galo
100
Capítulo VI – A Fonte do Jardim
128
Capítulo VII – A Fonte
150
Descobrimento
169
Um ano depois
184
Glossário
189
Índice
196
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Edições ArcosOnline.com www.arcosonline.com
Literatura ode a um poeta naturalista (narrativa) A Busca Entre o Vazio (narrativa) O Livro Verde das Verdades (poesia) é preciso calar o monólogo (poesia) Antes do Fim (narrativa) Histórias Que Acabam Aqui (contos para a infância) As Sete Fontes (romance)
Actualidade e cultura A Língua Portuguesa no Alto Minho (ensaio) European Writings on Psychology (textos científicos)
Humor O Bando dos 6 ou 7 (crónicas) O Malogrado Capitão Osório (folhetim)
Em preparação: A Vida Extrema (poesia) O Salústio Nogueira (romance) Lince Ibérico – Revista Literária de Expressão Ibérica
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