Coisa Julgada Penal

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Coisa julgada penal Ada Pellegrini Grinover 1. Fundamento da coisa julgada. A coisa julgada é instituto de direito processual, que tem raízes na Constituição. A garantia constitucional da coisa julgada, inserida no art. 5o, inciso XXXVI, da Lei Maior, é manifestação do princípio da segurança jurídica, enunciado no caput do dispositivo. Na tensão entre os princípios de justiça e de segurança, o legislador constituinte escolheu, num determinado momento processual, a segurança jurídica, aplicando o princípio da proporcionalidade. Os recursos colocados à disposição das partes buscam o valor justiça. Mas, uma vez esgotadas ou preclusas as vias recursais, a sentença se estabiliza, dando-se preferência ao valor segurança. 2. Conceito de coisa julgada. Deve-se a Enrico Tullio Liebman, estudioso italiano que lecionou em São Paulo durante a Segunda Guerra Mundial, a distinção, vitoriosa no Brasil, entre eficácia da sentença e autoridade da coisa julgada. A sentença, enquanto comando do juiz, emana seus efeitos mesmo antes da coisa julgada e, com o trânsito em julgado (momento em que a sentença se estabiliza), impõe-se a todos. Trata-se aquí da eficácia natural da sentença, distinta da coisa julgada. A coisa julgada, ainda segundo Liebman, é uma qualidade da sentença e de seus efeitos, qualidade esta que consiste em sua imutabilidade. E a autoridade da coisa julgada só é oponível às partes do processo, sendo que o terceiro juridicamente prejudicado pela sentença pode opor-se a ela, pelos meios postos à sua disposição pelo direito processual. 3. Coisa julgada formal e coisa julgada material. Quando a sentença passa em julgado, forma-se a coisa julgada formal, que corresponde à imutabilidade da sentença dentro do processo. As partes, assim, não mais podem discutir a sentença e seus efeitos. A doutrina costuma equiparar a coisa julgada formal à preclusão máxima, como conseqüência dos recursos definitivamente preclusos. No entanto, há diferenças entre preclusão e coisa julgada formal. A preclusão, como perda de faculdades processuais (aqui, pela utilização das vias recursais – preclusão consumativa – ou pela falta de sua utilização – preclusão temporal), constitui antecedente da formação da coisa julgada formal, mas esta é mais do que preclusão:é a imutabilidade da sentença dentro do processo.

A coisa julgada material, ao contrário, projeta seus efeitos para fora do processo, impedindo que o juiz volte a julgar novamente a questão, sempre que a nova ação tenha as mesmas partes, o mesmo pedido e a mesma causa de pedir: ou seja, sempre que as ações sejam idênticas, coincidindo em seus elementos. Embora a garantia constitucional da coisa julgada pareça dirigida somente ao legislador, os Códigos processuais se incumbem de estender a garantia em relação ao juiz, que não poderá voltar a julgar a mesma

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ação. Trata-se da função negativa da coisa julgada, consubstanciada também no princípio do ne bis in idem. Para tanto, o Código de Processo Penal contempla a exceção de coisa julgada (art. 110, par. 2o do CPP), que na verdade é uma objeção, pois pode ser conhecida de ofício.

Mas, como visto, no processo penal o que identifica efetivamente a ação é a imputação, ou seja a causa de pedir, pois o pedido é sempre genérico. Quanto às partes, bastará que o sujeito passivo da ação – o acusado – seja o mesmo. O sujeito ativo será sempre o MP, ou o querelante, na qualidade de substituto processual. Lembre-se, por oportuno, que a coisa julgada abrange o substituto e o substituído.

4. Imutabilidade e estabilidade da sentença Como visto, Liebman qualificou como imutabilidade a qualidade da sentença coberta pela coisa julgada. No processo penal, a partir das lições de José Frederico Marques, a doutrina tende a chamar de coisa julgada soberana a que se forma sobre a sentença absolutória, porque nesse caso esta não poderá ser rescindida em hipótese e tempo algum; e de coisa julgada “ tout court” a que se forma sobre a sentença condenatória, que poderá ser rescindida a qualquer tempo, pela via da revisão criminal. No processo civil, a sentença, de qualquer espécie, pode ser rescindida no prazo de dois anos, a contar do trânsito em julgado, nas hipóteses previstas pelo art. 485. Mas existe uma tendência, conhecida sob a denominação de “relativização da coisa julgada”, que propugna, em casos excepcionais, que, mesmo vencido o prazo da rescisória, a coisa julgada possa ceder quando a sentença for inconstitucional, vulnerando princípios constitucionais. Tratar-se-ia, no fundo, de desconsiderar o valor “segurança”, ínsito na coisa julgada, em face de valores constitucionais mais elevados, utilizando o princípio da proporcionalidade.

Desse modo, observa-se que a qualificação de coisa julgada soberana ou de coisa julgada “tout court” deriva dos casos em que a imutabilidade da sentença possa ser afetada, ou não, com vistas à sua rescindibilidade. Só por esse critério é que se poderia distinguir, no processo penal, entre a coisa julgada que reveste a sentença absolutória e aquela que reveste a condenatória; ou, no processo civil, entre a coisa julgada relativa à sentença ainda impugnável pela via da rescisória e aquela que não mais o é. Mas, se quisermos adotar esse critério, sugeriríamos outra nomenclatura, inovando ligeiramente na teoria de Liebman. Parece-nos que a qualidade da sentença não (mais) sujeita a desconstituição é efetivamente a imutabilidade; enquanto a qualidade da sentença sujeita a desconstituição seria simplesmente a estabilidade. Para o processo penal, diríamos assim que a qualidade da sentença absolutória passada em julgado é realmente a imutabilidade; enquanto, na sentença condenatória, tratar-se-ia de mera estabilidade. Nessa linha de pensamento, para quem adota a teoria da chamada “relativização da coisa julgada” – que conta, aliás, com ferrenhos opositores - , a coisa julgada representaria sempre a estabilidade e não a imutabilidade da sentença.

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5. Limites objetivos da coisa julgada. A questão dos limites objetivos da coisa julgada consiste em saber quais as partes da sentença que fazem coisa julgada material. Como vimos, só o dispositivo da sentença, ou seja o comando do juiz é apto a revestir-se da autoridade da coisa julgada, tornando-se imutável (ou estável). No entanto, é preciso salientar a observação de Liebman: o dispositivo não deve entender-se em sentido meramente formal, mas material, podendo o comando do juiz ser encontrado em outras partes da sentença. Ademais, os motivos, embora não façam coisa julgada, podem ser úteis para compreender melhor e interpretar o dispositivo.

O parágrafo 2o do art. 110 do CPP, ao tratar da denominada exceção de coisa julgada, determina os limites objetivos da coisa julgada, dispondo que a exceção somente poderá ser oposta em relação ao fato principal, que tiver sido objeto da sentença. Isso exclui as questões prejudiciais, apreciadas pelo juiz incidenter tantum, que a lei considera como acessórias, e que portanto não são idôneas a revestir-se da imutabilidade da coisa julgada material. O mesmo ocorre com os motivos e os fundamentos da sentença que tampouco têm projeção vinculativa fora do processo. O art. 469 do CPC tem a seguinte redação: “Não fazem coisa julgada: I – os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença; II – a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença; III – a apreciação da questão prejudicial,decidida incidentemente no processo”. Cumpre lembrar que, no processo civil, a questão incidental pode ser decidida de forma autônoma, por meio de ação declaratória incidental, fazendo assim coisa julgada. Mas no processo penal inexistem questões prejudiciais internas, que possam revestir-se da autoridade de coisa julgada, havendo exclusivamente questões prejudiciais externas, que formam objeto de processo civil autônomo. Toda questão prejudicial, no processo penal, é apreciada incidenter tantum.

O “fato principal” a que se refere o par. 2o do art. 110 do CPP nada mais é do que o fato material imputado ao acusado, independentemente de sua qualificação jurídicopenal. As circunstâncias do crime, os elementos acessórios e complementares, não influem no fato principal descrito na imputação, pois esta é que constitui a causa de pedir que identifica o pedido acusatório e a ação penal. Outra visão sobre os limites objetivos da coisa julgada liga-a ao objeto do processo, tal como definido pelo pedido e pela causa de pedir. O objeto da sentença modela-se sobre o pedido. O juiz deve responder ao pedido do autor, numa correlação necessária entre o pedido e a sentença. O que é objeto do processo torna-se também objeto da sentença, pelo que se pode falar em objeto da demanda, objeto do processo e objeto da sentença como de três aspectos do mesmo fenômeno. Mas é preciso salientar que a coisa julgada alcança a parte dispositiva da sentença e mais o fato constitutivo do pedido (a causa petendi). As questões que se situam no âmbito da causa petendi se tornam igualmente imutáveis, no tocante à solução que lhes deu o julgamento, quando essas questões se integram no fato constitutivo do pedido (José Frederico Marques). Isso é particularmente importante em relação à ação penal condenatória, onde o pedido é sempre genérico (à condenação) e o fato imputado ao acusado é a causa de pedir.

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Assim, quando se fala em objeto do processo, como determinante dos limites e do alcance da autoridade da coisa julgada – pensa-se na pretensão de direito material contida no pedido apresentado ao juiz, isto é no mérito. Só a sentença de mérito é idônea a revestir-se da autoridade da coisa julgada.

Em suma, os limites objetivos da coisa julgada são estabelecidos a partir do objeto do processo, isto é, da pretensão deduzida pelo autor, abrangente do pedido à luz da causa de pedir, e apreciada pela sentença. 6. Limites objetivos e limites cronológicos da coisa julgada. Mas, como se comporta a imutabilidade da sentença no tempo? Sua duração tem ou não tem limites? A esse propósito, é preciso determinar quais seriam os eventos sucessivos à coisa julgada capazes de produzir efeitos sobre a relação jurídica material objeto do julgamento. A doutrina enumera e analisa, nesse plano, os fatos novos, a nova lei e a declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade, sucessiva à coisa julgada e emanada do controle concentrado. Examine-se, primeiro, a lei nova. Esta, segundo a doutrina processual civil, não tem o condão de incidir sobre a situação jurídica definida pela sentença de mérito entre as partes, sendo que estas se submetem à coisa julgada, como lex specialis. Mesmo as leis civis supostamente retroativas não são aptas a infirmar a imutabilidade da coisa julgada, no campo não penal. Mas no processo penal as coisas se passam diversamente: a lei penal mais benéfica, que tem eficácia retroativa, incide sobre a coisa julgada, favorecendo o réu. Quanto à constitucionalidade ou inconstitucionalidade da lei, assim declarada pelo controle concentrado, a doutrina civilista italiana afirma não incidir a decisão sucessiva sobre a coisa julgada que cobre sentença em cujo processo se discutiu e se decidiu, incidenter tantum (pelo controle difuso), a questão prejudicial atinente à constitucionalidade ou inconstitucionalidade da lei, de maneira oposta à sucessiva declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade pelo Tribunal Constitucional (correspondendo ao nosso Supremo Tribunal Federal, no controle concentrado). No processo civil brasileiro a questão coloca-se de maneira diferente, pois dispositivos introduzidos no Código de Processo Civil atribuem à declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade sucessiva, pelo controle concentrado, efeitos sobre a sentença transitada em julgado: ver, por exemplo, o art. 475-L, par. 1º, introduzido pela Lei n. 11.232/05, sobre “Cumprimento da sentença”.

Pensamos que no processo penal há que distinguir: se a sentença condenatória baseou-se numa lei que o juiz aplicou por considerá-la constitucional, e posteriormente o Supremo, em controle concentrado, declara a inconstitucionalidade da lei, a decisão da Corte incide imediatamente sobre a sentença transitada em julgado, tornando inválida a coisa julgada. Mas, na hipótese contrária – de sentença que absolveu o réu por considerar a lei inconstitucional -, a coisa julgada prevalece em face do princípio do favor rei e do favor libertatis, tornando-se a sentença de absolvição imutável.

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Finalmente, cabe examinar o fato novo. No processo civil, podem surgir – e surgem – dúvidas e controvérsias, distinguindo-se as sentenças que tenham decidido sobre elementos permanentes e imutáveis da relação jurídica e as que tenham decidido sobre elementos temporários e mutáveis da relação jurídica. As primeiras são infensas aos fatos novos, mas as segundas, quando houver variações nos elementos quantitativos e qualitativos, curva-se e não resiste ao fato novo (assim ocorre, por exemplo, nas relações jurídicas continuativas, como na condenação em alimentos). No processo penal, a questão é mais simples. A sentença condenatória julga sempre a respeito de um determinado fato principal, e só este é acobertado pela coisa julgada. Outro fato, posteriormente ocorrido, pode ser perfeitamente constituir objeto de novo pedido, fundado em outra causa de pedir, e, consequentemente, de nova sentença. É o que se vê no número seguinte. 7. Limites objetivos da coisa julgada e concurso de infrações. O crime permanente, o crime habitual, o crime complexo. A persecução penal pode ter por objeto infrações múltiplas, ligadas entre si de modo a constituírem infrações em concurso, ou então ligadas pela conexão. Estas últimas não formam uma unidade delituosa, sendo que os vínculos que as unem são exclusivamente de direito processual, em face da reunião de processos pela conexão. Cada fato principal ficará, assim, coberto pela autoridade da coisa julgada, tratando-se, no caso, de diversos capítulos da sentença, cada um com sua parte dispositiva. Mas em relação ao concurso de infrações penais podem surgir dúvidas quanto aos limites objetivos da coisa julgada. No concurso aparente de normas, o fato imputado enquadra-se em mais de uma norma penal, de modo que a sentença passa em julgado, impedindo nova ação, ainda que a imputação tenha sido examinada apenas sob o ângulo de uma dessas normas. Mas no crime progressivo – que também se inclui no concurso aparente de normas – parece acertada a posição segundo a qual, quer se tenha julgado em primeiro lugar o delito mais grave da linha progressiva, quer o menos grave, é impossível o reexame do fato em nova ação penal. Porém, ocorrendo concurso formal de crimes, o julgamento de um dos delitos em concurso não impede nova ação penal em relação ao outro. Quanto ao crime permanente, a coisa julgada incide sobre um só crime constituído por um estado delituoso cujo momento consumativo se protrai no tempo. A clara unidade jurídica e material constitui uma única infração, não podendo o acusado ser perseguido mais de uma vez. O crime habitual indica a reiteração da mesma conduta, de modo que a coisa julgada cobre todo o fato delituoso, em relação às ações anteriores do acusado. Mas, depois da sentença, podem ser praticadas novas condutas que possam formar outro crime habitual e, nesse caso, será possível nova acusação, quando e se as novas condutas sejam totalmente desligadas do conjunto de fatos anteriormente praticados. Tratar-se-á, nesse caso, de novo crime habitual.

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Em relação ao crime continuado, a melhor opinião é a que considera esse crime uno somente em virtude de uma ficção, tendo por objetivo atenuar a medida da sanção penal. Desse modo, a coisa julgada não impede a acusação relativa a outros fatos componentes da continuação, desde que descobertos após a sentença. É que, neste caso, os fatos novos não constituíram objeto do processo e, por isso, não foram julgados. A regra geral, que se pode extrair dos casos expostos, é a de que a coisa julgada não cobre os fatos naturalísticos posteriores à sentença, atuando tão somente para o passado e para o presente e incidindo apenas sobre a realidade existente à época da sentença. Em outras palavras, a coisa julgada opera sempre rebus sic stantibus. 8. Eficácia preclusiva da coisa julgada. Entende-se por eficácia preclusiva da coisa julgada a impossibilidade de discutir questões atinentes a aspectos da controvérsia, que poderiam ter sido suscitadas e não o foram ou que, suscitadas, não foram objeto do julgamento. O Código de Processo Civil é expresso nesse sentido, traçando a regra no art. 474: “Passada em julgado a sentença de mérito, reputar-se-ão deduzidas e e repelidas todas as alegações e defesas, que a parte poderia opor assim ao acolhimento como à rejeição do pedido”. A regra aplica-se inquestionavelmente ao processo penal. 9. Limites subjetivos da coisa julgada. A questão dos limites subjetivos da coisa julgada consiste em saber quais são os sujeitos alcançados por sua autoridade, que a ela não podem opor-se. O Código de Processo Civil dá resposta expressa à problemática, estabelecendo, no art.472, que “a sentença faz coisa julgada entre as partes entre as quais é dada, não beneficiando nem prejudicando terceiros”. A regra tem fundamento constitucional, pois quem não foi parte do contraditório estabelecido perante o juiz – não podendo produzir suas alegações e provas e não lhe sendo dado influir sobre o convencimento do julgador – não pode ser atingido pela autoridade da coisa julgada. Em via de conseqüência, o dispositivo encontra plena aplicação no processo penal. Partes, no processo penal, são, de um lado o Ministério Público (ou o querelante, como substituto processual deste) e, do outro lado, o acusado. Desse modo, no processo penal há sempre identidade de partes no pólo ativo da demanda. Recorde-se que, na substituição processual, a coisa julgada atinge o substituto e o substituído.

Em relação ao pólo passivo da demanda, parte é o acusado. E a identidade de partes só ocorre quando é a mesma pessoa, julgada como autor ou participante de uma infração penal, que volta a ser acusada pelo mesmo fato delituoso. Nada impede, no entanto, que se mova nova ação penal, pelo mesmo fato, contra pessoa diversa da que foi condenada ou absolvida anteriormente. A absolvição ou

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condenação do primeiro acusado não constitui obstáculo para a condenação do segundo. Mas, quando há co-autoria, a absolvição do autor principal pode, em alguns casos, importar em absolvição do co-autor. O art. 580 do CPC prescreve que “no caso de concurso de agentes (Código Penal, atual art. 29), a decisão do recurso interposto por um dos réus, se fundado em motivos que não sejam de caráter exclusivamente pessoal, aproveita aos outros.” Mutatis mutandis, isso significa que se co-autor não foi processado juntamente com o primeiro, a absolvição deste aproveitará ao outro, desde que os fundamentos da absolvição não sejam de caráter exclusivamente pessoal. O art.580 do CPP, na verdade, retrata a situação do litisconsórcio unitário, em que a controvérsia deve ser necessariamente decidida uniformemente em relação a todos os litisconsortes. Mas, quando o litisconsórcio unitário é facultativo, podendo haver processos distintos, a solução da absolvição que se estende ao co-autor processado posteriormente é a única possível. No caso de haver motivos exclusivamente pessoais que ditaram a primeira absolvição, esta não se estende ao co-autor, pois não mais se trata de litisconsórcio unitário.

Quanto aos terceiros, excluídos da coisa julgada, é preciso dizer que se distinguem eles em terceiros indiferentes à coisa julgada e em terceiros interessados. Estes últimos, por sua vez, repartem-se em terceiros prejudicados de fato e em terceiros juridicamente prejudicados. O mero prejuízo de fato não autoriza o terceiro a opor-se à coisa julgada. Assim, por exemplo, o credor do réu, condenado acessoriamente à perda dos bens, tem mero interesse de fato, e não pode opor-se à coisa julgada.

Os terceiros juridicamente prejudicados, por sua vez, são titulares de uma relação jurídica conexa, ou incompatível, com a declarada pela sentença. É o que ocorre com o responsável civil, em relação à execução civil da sentença penal condenatória passada em julgado (infra, n. 9).

Estes terceiros juridicamente prejudicados são colhidos pela eficácia natural da sentença, que atua sempre erga omnes, mas podem opor-se à coisa julgada proferida inter alios. 9 – Efeitos civis da coisa julgada penal. A coisa julgada penal surte efeitos no juízo cível. Liebman sustentou que a eficácia da coisa julgada penal no juízo cível seria “anormal”, no que respeita aos limites objetivos do julgado, visto como a lei atribuiria uma eficácia vinculante aos motivos. É certo que, quer na sentença penal condenatória, quer na absolutória, os motivos são importantes para indicar seus efeitos no juízo cível (infra, ns. 10 e 11). Mas, há explicações para o fenômeno que o justificam, deixando indene o princípio clássico dos limites objetivos da coisa julgada, restrita ao dispositivo da sentença.

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Machado Guimarães procedeu a interessante construção, que não afasta o princípio tradicional da inaptidão das questões de fato para se revestirem da autoridade da coisa julgada: o art. 1.525 do CC de 1916 (atual art. 935) consagraria um tipo de eficácia preclusiva não identificável com a coisa julgada. Barbosa Moreira, apoiado em José Frederico Marques, arrolou a exeqüibilidade civil da sentença penal entre os chamados efeitos secundários desta sentença. Nossa visão é outra: a lei opera a ampliação do objeto do processo (penal), para nele incluir o julgamento implícito sobre o dever de indenizar ou a declaração da inexistência do direito à reparação do dano ex delicto. Essa posição indica que a questão da reparação civil passa dos motivos ao próprio dispositivo (implícito) da sentença penal, como resposta à ampliação do objeto do processo, que abrange a condenação - ou a imunidade - à indenização. 10 – Efeitos civis da sentença penal condenatória. Embora o ilícito civil e o penal sejam independentes, o ilícito penal pressupõe sempre um ilícito civil. E este ilícito civil pode causar danos, que devem ser reparados. A matéria é disciplinada, entre nós, pelo art. 91, I, do CP, segundo o qual a condenação penal torna certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime, passando-se desde logo à liquidação e execução da sentença no juízo civil (art. 63 do CPP e art.475-N do CPC, na redação da lei n.11.232, de 22 de dezembro de 2005). Esta lei suprime o processo autônomo de execução em relação às sentenças condenatórias civis. A execução agora é apenas uma fase do processo de conhecimento, não havendo mais citação, mas mera intimação, para o início da liquidação ou execução. Todavia, com relação à sentença arbitral, à sentença estrangeira homologada e à sentença penal condenatória, arroladas entre os títulos executivos judiciais, a lei exige citação para a liquidação ou execução (parágrafo único do art. 475-N do CPC). Deriva daí que, em relação à sentença penal condenatória, o devedor será citado para a liquidação, sempre necessária para quantificar os danos provocados pelo réu (e que se efetivará mediante liquidação por artigos, pois haverá induvidosamente fatos novos a serem alegados e provados (art. 475-E do CPC). Entendemos que, uma vez liquidada a sentença condenatória penal, sua execução se fará nos termos do disposto na lei n. 11.232, não se exigindo nova citação. Mas a esse respeito a doutrina ainda é incipiente e inexistem decisões judiciais sobre o assunto.

11. Limites subjetivos da coisa julgada e o responsável civil. Mas se é certo que a sentença penal condenatória pode ser imediatamente liquidada e executada no juízo civel, é igualmente certo que isso só pode ser feito em relação a quem foi sujeito do contraditório no processo penal: ou seja, em relação à parte passiva, que é o réu. Como visto, os terceiros juridicamente prejudicados são colhidos pela eficácia natural da sentença, mas jamais pela autoridade da coisa julgada, res inter alios. Segue daí a inarredável conclusão de que a sentença penal condenatória não pode ser diretamente executada em face do responsável civil. O fundamento dessa assertiva encontra-se, em primeiro lugar, na garantia constitucional do contraditório, que exige que os terceiros, que não tiveram a oportunidade de influir sobre a formação do convencimento do juiz, não sejam alcançados pela autoridade da coisa julgada. Em segundo lugar, pela disposição do

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Código de Processo Civil, segundo a qual a legitimidade passiva, na execução, é atribuída ao devedor, reconhecido como tal no título executivo (art. 568, I, do CPC), de modo que o terceiro, civilmente responsável pelo dano, é parte ilegítima na execução civil da sentença penal. Deriva daí a interpretação a ser dada ao art. 91, I, do CP (art. 74, I, do estatuto anterior): efeito secundário da condenação penal é tornar certa a obrigação de indenizar o dano resultante do crime. Mas, evidentemente, em relação ao réu do processo penal e não ao responsável civil, terceiro juridicamente interessado que não é alcançado pela autoridade da coisa julgada. Assim também deve ser interpretado o atual art. 935 do CC (correspondendo ao art. 1.525 do Código de 1916): “A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal.” Quem não pode mais questionar essas questões é, igualmente, aquele que foi parte no processo penal –o réu – e não o responsável civil. Assim, quando a vítima pretender ser ressarcida pelo responsável civil, deverá mover ação de conhecimento, e não processo de execução, em face do terceiro. E, nessa ação de conhecimento, o terceiro poderá questionar livremente a existência do fato e a autoria, não lhe se podendo opor a coisa julgada penal, que não o alcança. Se, todavia, o processo de execução for intentado contra o responsável civil, este poderá – quando citado para a liquidação – opor a chamada “exceção de préexecutividade”, fundada nos argumentos supra elencados, e que serve exatamente para bloquear a execução, antes da penhora. A lei n. n.11.232, de 22 de dezembro de 2005, a que aludimos no n. 10, não aboliu a exceção de pré-executividade, instrumento utilizado antes da penhora, que surgiu e é utilizado na práxis judiciária, com o reconhecimento da doutrina e da jurisprudência.

Em suma, em observância aos princípios constitucionais e legais, harmônicamente interpretados, a conclusão só pode ser uma, em sintonia com a teoria de Liebman, perfeitamente aplicável às relações interjurisdicionais: a autoridade da coisa julgada, em sua imutabilidade (ou estabilidade), só atinge as partes. O terceiro, civilmente responsável e prejudicado pela eficácia da sentença condenatória penal, poderá em novo processo discuti-la livremente, quando proferida em processo de que não participou, para afastar os efeitos nocivos da coisa julgada: não só no que tange à responsabilidade civil – que na ação penal não foi assentada -, mas também no que se refere ao reconhecimento do fato e da autoria. Observe-se, finalmente, que no regime anterior italiano, que previa um sistema de efeitos civis da sentença penal condenatória igual ao brasileiro, permitindo expressamente que a sentença condenatória fosse executada contra terceiros (art. 27 do cpp), a Corte Constitucional considerou inconstitucional a parte do referido dispositivo que assim dispunha (sent. n. 55, de 22.03.1971 e sent. n. 99, de 27.06.1973)

12. Efeitos civis da sentença penal absolutória. A vinculação da responsabilidade civil à sentença absolutória penal vem estabelecida em diversos dispositivos legais. Em primeiro lugar, o art. 66 do CPP exclui a responsabilidade civil quando a sentença penal reconhecer, categoricamente, a inexistência material do fato. A aplicação 9

do art. 66 restringe-se aos casos em que o juiz declarar não ter o autor cometido o fato delituoso de que é acusado, por não haver praticado a conduta comissiva ou omissiva imputada. A absolvição por atipicidade não exclui, evidentemente, a responsabilidade civil, pois o fato imputado pode não constituir crime, mas sim ilícito civil. É que o ilícito penal pressupõe sempre o ilícito civil, mas o contrário não é verdadeiro. O mesmo ocorre com a extinção da punibilidade (art. 67 do CPP). Nos casos de exclusão da antijuridicidade, a vinculação da responsabilidade civil à sentença absolutória penal é regulada pelo art. 65 do CPP, que estabelece fazer coisa julgada no juízo cível a sentença penal que reconheça ter sido o ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de um direito. A respeito da pretensa extensão da coisa julgada aos motivos, nos casos indicados pelos dispositivos em comento, ver supra, n. 9.

Mas o art. 65 do CPP não afirma que o réu fica isento de responsabilidade civil nas hipóteses nele previstas. Indica apenas que não se poderá mais discutir, no juízo cível, a respeito das justificativas penais que elidem a antijuridicidade. No entanto, será o direito civil que regulará a responsabilidade nessas hipóteses. Por sua vez, o Código Civil excluiu da esfera da ilicitude os atos praticados em legítima defesa, no exercício regular de um direito reconhecido ou em estado de necessidade (art. 188 do CC). Desse modo, em princípio, a responsabilidade civil também será excluída nos casos do art. 188 do CC, não se caracterizando neles nem ilícito penal, nem ilícito civil. Em princípio, afirmamos, porque a responsabilidade civil não é excluída, nos termos do Código Civil, em relação à pessoa lesada que não for culpada pela situação de estado de necessidade ou legítima defesa, dispondo nesse caso o autor do dano de ação regressiva em relação ao responsável (arts. 929 e 930 do CC). Observe-se, finalmente, que o art. 188 do CC não exclui expressamente o ilícito civil no caso de estrito cumprimento do dever legal. No entanto, a hipótese pode ser perfeitamente subsumida ao exercício regular de um direito reconhecido. 13. Limites subjetivos da coisa julgada e a vítima. As considerações feitas no n. 11, a respeito dos limites subjetivos da coisa julgada e o responsável civil, aplicam-se integralmente à vítima. A aplicação dos arts. 65 e 66 do CPP subordina-se à circunstância de o ofendido ter sido parte do processo penal, na qualidade de assistente de acusação. Em observância aos mesmos princípios, o impedimento a que o prejudicado pelo crime ajuize ação cível reparatória do dano em face do réu absolvido só pode operar quando aquele tiver integrado o contraditório, sendo, conseqüentemente, atingido pela coisa julgada. Mas os aludidos preceitos não podem alcançar o terceiro juridicamente prejudicado, estranho ao processo penal. Os dispositivos devem ser harmonizados com as garantias constitucionais do processo e com o art. 472 do CPC.

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