Fernando Pessoa dizia que "pensar e estar doente dos olhos". No que eu concordo. E ate amplio urn pouco: "pensar e estar doente do corpo". 0 pensamenlo marca 0 lugar da enfermidade. Ah! Voce duvida. 0 meu pal pile que, neste preciso momenta, voce nao deva eslar tendo pensamentos sobre os seus dentes, a menos que urn deles esteja doendo. Quando os dentes eslao bons nao pensamas oeles. Como se eles fossem inexistentes. 0 mesmo com os olhos. Voce s6 lomara consciencia deles se estiver com problemas oculares, miopia ou outras atrapalha~6es. Quando os olhos estao bem a gente naa pensa neles: eles se tornam transparentes, invisfveis, desconhecidos, e atraves de sua absoluta transparencia e invisibilidade 0 mundo aparece. 0 corpo inteiro e assim. Quando est a bom, sem pedras no sapato, scm calculos renais ou hemorr6idas, sem taquicardias ou enxaquecas, elc fica tambem transparente, ea gente se coloca inteiramente, nao nele, mas na coisa de fora: 0 caqui, a arvore, 0 poema, 0 corpo do outro, a musica. Quando 0 corpo esla bem ele nao coohece. Claro que lem pensamentos; mas sao pensamentos de oulro lipo, de puro gozo, expressivos de uma harmonia que nao deve ser perturbada par nenhuma atividade epistemol6gica.
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Mas basta aparecer a dor para que tudo se altere. A dor indica que um problema apareceu. A vida nao vai bem. f: aquela perturba<;ao estomacal, mal-estar terrfvel, vontade de vomitar, e vem logo a pergunta: "Que foi que comi? Sera que bebi demais? Ou teria sido a lingiii<;a frita? Pode ser, tambem, que ludo tenha sido provocado par aquela conlrariedade que live ...•. Estas perguntas que fazemos, dianlc
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de um problema, san aquilo que na linguagem cienlifica recebe 0 nome de hipoleses. Hipolese e 0 conjunlo de pe~as imaginarias de um quebra-cabe~as, que acrescenlamos aquela que ja lemos em maos com o proposilO de compreende-Ia. Compreender, cvidenlemenle, para cvilar que 0 incomodo se repila. Pensar para nao sofrer. Deve haver, no uni\'crso, milhoes e mil hoes de silua<;oes que nunca passaram pela nossa cabe~a: nunca tomamos consciencia delas, nunca as conhecemos. f: que eJas nunca nos incomodaram, nao perturbaram 0 corpo, nao Ihe produziram dor: S6 C'onhccemos aquilo que incomoda. Nao, nao eslou rlizendo loda a verdade. Nao s6 da dor. Do prazer tambcm. Voce \'ai a.moc;ar numa casa e la Ihe oferccem um prato divino, que da ao seu corpo sens,H;oes novas de [;OSIO e olfalo. Yem logo a idt:ia: "Que bom seria se, de vez em quando, eu pudesse renovar este· prazer. E, infelizmente, nao posso pedir para conlinuar a ser convidado." US:lIT:2:> entao a formula c1assica: "Que delicia: quero a receita ... " Traduzindo, para os nossos prop6sitos: "Quero possuir urn conhecimento que me possibilile repetir um prazer ja tido." a conhecimento tern sempre 0 carater de receita culinaria. Uma receita lem a funC;ao de permilir a repetic;ao de uma experiencia de prazer. Mas quem pede a repetic;ao nao e () intelecto. f: 0 corpo. Na verdade, a inteleclo puro odcia a repeti<;ao. Esta sempre atras de novidauts. Uma vez de posse de um determinado conhecimento ele nao 0 fica repassando e repassando. "H sei", e1e diz, e prosscguc para coisas diferentes. Com 0 corpo acontece 0 contrario. Ele nao recusa urn copo de vinho, dizendo que daquele ja bebeu, e nem se recusa a ouvir uma musica, dizendo que ja a ouviu anles, e nem rejeita fazer amor, sob a alegac;iio de ja ter feito uma vez. Uma vez s6 nao chega. a corpo trabalha em cima da 16gica do prazer. E, do ponlo de vista do prazer, o que e born tern de ser repetido, il1definidamente.
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o L1escjo Lie conhecer t: Ulll servo L10dcscjo Lie prazcr. Conhecer por conhecer e urn contra-senso. iaJvez que 0 caso mais gritante e mais palol6gico disto que estamos dizendo (todas as coisas normais tem a sua patologia) se encontre ncsta coisa que se chama exames vestibulares: a mo<;ada, pela alegria esperada de entrar na universiclncle, se submete as maiores violencias, armazena conhecimento inutil e niio L1igcrivcl, tartura 0 corpo, Jhe ncg:l os prazcrcs mais clemcntares. Par que? Tudo tern a ver com a J6gica da dor e do prazer. Ha a dor incrivel de nao passar, de ser deixado para tras, de ver-se ao espelho como incapaz (no espelho dos olhos dos oulros); e h3 a fantasiada alegria cia conclic;iio Lie universitario, gentc adulln, num mundo cle adul:os. Claro, coisa de imagina<;ao ... E 0 corpo se disci-
plina para fugir da dor e para ganhar 0 prazer. E logo depois de pass ado 0 evento 0 corpo, triunfante, Irala de se desvencilhar de toclo o conhecimento inutiJ que armazenara, esquece quase tudo, sobrnlll uns fragmentos: porque agora a dor ja foi ultrapassada e 0 prazer j.\ foi alcan<;ado. A gente pensa para que
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corpo tenha prazer.
Alguns diriio: "Absurdo. f: verdacle que, em certas situac;oes, 0 conhecimento tern esta fun<;ao pralica. Mas, em outras, naa existe nada disto. Na dencia a gente conhece por conhecer, SCIll que a experiencia de conhecimento ofere<;a qualquer tipa de prazer." Duvido. 0 cientista que fica horas, dias, meses, anos em seu Jaborat6rio nao fica Iii por dever. Pode ate ser que haja pessoas assilll: trabnlhar pm dever. S6 que elas nunca produzirao nnda novo. 0 senso de dcvcr pode ensinar as pessoas a rcpctir coisas: cxcclcntcs tccnicos de laboratorio, bons funcionarios, discipulos de Kant (urn homem que dcsprezava 0 prazer e achava que, certo mesmo, s6 as coisas feilas por dtvc~). Co~ 0 que .con~ordaria 0 vcneravcl Santo Agoslinho que propos a cunosa teona, alllda defendida por certas lideranc;as religiosas, de que 0 jeito certo de fazer 0 sexo e "sem prazer, par dever" burocratas fieis aos relogios de ponto. Cozinheiro por dever so fa~ comida sem gosto. Cienlista tambelll. Naa canseguc ver nadn novo c bicho sem asas, tartaruga fiel, rastejante. Ideias criativas requerem 'os voos da imagina<;ao, aquilo que, em linguagem psicanalitica tern 0 nome de "investimento libidinal", coisa que a lingungem irreverente ~iz ~e maneira mais .direla e metaf6rica: "tesao" - quando 0 corpo ~Ica III/tens~ d~ des~Jo, t:nso por ~entro, querendo muilo. E c s6 par Isto que 0 clentlsta fica la, anos a flO - como verdadciro npnixonado. Tudo por u.~ .unico ~omento de extase: aquele em que, apos urn enarme sacnflclo, ele dlz: "Conscgui! Eurek<J'" E cle sai como doido possuido pel os deuses, pcla alegria de uma lkscoberta. E cllliio 1l1~ diriio: "- Mas este nao e urn prazer do corpo. Nao e como cOlller caqui ou fazer amor ... " Como nao? Sera que nao percebern que 0 pensament? e urn dos orgaos de prazer do corpo, justamente como tudo 0 mals? Jogar xadrez: coisa do pensamento, que d
curioso (e eticamente condenaveJ) costume que tern os cientistas de esconder os resultados das suas pesquisas. tranca-Jos a sete chaves. Ora, se 0 objetivo dos cienlistas fosse 0 progresso da ciencia eJes tratariam de tamar publicas as conclusOes preliminares de suas invesIiga~6es, para qu~ os resultados fossem atingidos mais depressa. Ao contrario. Mais importante para eles e a possibilidade de serem os prilllt:iros, seus 11l)m~S aparecendo nas bibliografias e nas cita~oes: evidcncias de adlJ)ira~ao e potcncia intelcctual. E assim e: mesmo quando estamos envoJvidos nas tarefas mais absurdamente inteJectuais, o qu~ e,la ('m jllgO e este carpo que deseja ser admirado. respeitado, mencionado, inwjado. Narcisismo: sem ele nao sairiamos do Jugal. Claro que a ciencia pode trazer muitas coisas boas para 0 mundo (e tambem mas), mas 0 que esta em jogo, no dia a dia da ciencia, nao e esle calculo de beneficios sociais, mas simples prazer que 3S pessoas derivam desle jogo/brincadeira intelectual.
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LJlJ) dos mais /indos documentos da historia da ciencia foi produzith) pm Kepkr, depois de eonscguir formular as suas trcs leis sabre a movimento dos planet as : "Ai/uilo que l'illCt! e dois al/Os acras profecilei, cdo logo descobri as cil/cO s61idos encre as orbicas celestes; A quilo em que firmemente cri, muito allles de haver visto a Harmonia de Ptolomeu, Aquilo que, I/O citulo deSle quil/to livro, prollleli aos meus amigos, mesmo ances de escar certo de minhas descobercas; A quilo que, hd deusseis aI/os acrds, pedL' que fosse procurado: A qllilo. por cllja causa devocei as cOllCemplaroes asCf()nomicas (/ lIIe/lwr parte de minha ,'ida, juncando-me a [rho /lrahe. Finalmente eu crouxe a IUl, e conheci a sua verdade alem de todas as mil/has expecralil'as ... Assim, desde hd dewito meses, a madrugada, desde hei tres meses, a Ilil do dia e, nil I'erdade, hd bem poucos dias 0 proprio Sol da mais lIIarm'ilhosa concempla(oo brilhou. Nllt/" IIIC t/"(';/II. LIII/c!;o-/Ilt: a WI/II ,·erdadeirll orgia sog/odll.
Os dados foram lanrados.
o livro foi eserito. Nao me imporca que seja lido agora au apenas pela posteridade. Ele pode nperar cern aI/os pe/o seu leitor, se () prcjpriu Deus esperou seis mil anos para que WlI !lo/llem contemplasse a Sua obm." Seria preciso parar e analisar
cada frase.
Tudo esta saturado de cmo~ao: csperan~a, cren~a, arnor, promessas, disciplina, sacrificio, uma vida inteira em jogo. Para que" Kepler nao podia imaginar nada de pralico, como decorrencia de suas investiga\oes. 0 que estava em jogo era apenas 0 prazer da visiio, vel' aquilo que ninguem jamais havia visto. E toda a espera se realizava numa experiencia indescritivel de prazer. Coisa estranha,
esta fascina~ao
pelo desconhecido.
Curiosidade. f: tao forte que estamos dispostos ate a perder 0 paraiso, pelo gozo efemero de vcr aquilo que ainda nao foi visto. f: 2ssim que a nossa estoria come\a, num dos mais antigos mitos rcligiosos. Preferimos morder 0 fruto do conhecimento, corn 0 risco de perder 0 Paraiso, pela aJegria de urn Ol·tra gozo: saber .. Ali esta, diante de nos, a coisa fascinante. Mas nao nos baSi" ver 0 que esta de fora. f: preciso entrar dentro, conhecer os sells segredos, tamar posse de suas entranhas. Nao e isla que acontece com a propria experiencia sexual? as judeus, no Antigo Testamento, empregavam uma unica palavra para designar 0 ata de conheeer e 0 alo de fazer amor. "E Adao conheceu a sua mulher, e ela ficou gravida ... ,. f: assim mesmo que acontece no conhecimento. Primeira, 0 enamoramenta. Quem nao est a de amores com urn objeto nao pode canhece-Io. Depois vem as movimentos exploratorios, a penetra~ao, 0 conhecimento do born que estava ocullo, expericncia de prazcr maior ainda. a fascfnio do giro das estrelas, dos descaminhos dos cornet as, a beleza dos cristais, j6ias simetricas - ah! quem fez a nalUreza dl:vl: ser urn joalheiro para fazer coisas tao lindas assim, e tarnbern UIIl grande geometra para tra~ar nos ceus os caminhos matematicos dos astros; quem sa be urn musico, que toea musicas in;ludiveis aos ouvidos comuns, e somente percepliveis aos que conhecem as harmonias dos numeros! - os imfis, seres parapsicol6gicos, que puxal1l 0 ferro SCI11IOcar. todos os corpos do espa<;o, grandl:S irnas, se puxan
aas ritmus da lua e do sol, as plantas, misterios, tambem ao ritmo da luz, suas harmonias com as abelhas, a loucura, os sonhos, esta fantastica loteria que se chama genelica, os animais arranjados em ordem de complcxidade Cfescellte, tudo sugerindo que UIlSforam surgindo dos ou(ro~ ['::n\ in, a infla,ao, que bicho e este, que ninguem conseguc dOIll:lr'!, Ilo~~a permanente intranqiiilidade, seres neuroticos, psicatil"lIS. a/larcs. I1ShOlllCIlSC IIlIl/hercs dial1(c de sercs illl'isiveis, os de uses, a agrcssividade. 0 sadisnw. por que sera que ha pessoas que sentem prazer no sofrimento dos outros?, as massas. boiadas estouradas, sem limiles e sem moral, "Heil Hitler!", e as pessoas lutam para deixar de fumar e nao consegucm e, de repenle, sem nenhum esfon:;o, alga acontece pm denlro. e param de urn estalo ..
pdo fascinio, enlao parariamos nunca haviamos suspeilado.
para
vcr e veriamos
coisas de que
Mas, em ludo iSla, e preciso nao esquecer de llllla coisa: ClcnCla e coisa humilde, pois se sabe que a venbde c inalingivcl. Nunca lidamos com a coisa mesma, que sempre nos escapa. Aquilo que lClllos s;io apenas modelns prOViSIJrios, coisas que conslruilllOS por Illeio '.Ie Silllb%s, para clIlmr urn poucu no dcsconhecido.
o professor entrou em sa/a, primcirn aula de quimica, e escrevcu no quadro: H~O. E pcrgunlou "0 que e iSlo?" A mcninad
Nao h
Nao, cil~ncia nao e vida. Da mesilla forllla que H~O n,io c agua. Na ciencia a gente so Iida com coisas fa/udas e escrilas, hipoleses, tcorias, mode/os, que a nossa razao inventou. A vida, cIa mesma, fica um pouco mais alem das coisas que fal;:.1105 sobre cIa. A vida e muito mais que a ciencia. Cicncia e uma coisa enlre oulras, que elllpregarnos de viver, que e a unica coisa que imparL!.
na aventura
E por islo que, alem da ciencia, e preciso a "sapiencia", clcllcia saborosa, sabedoria, que lem a ver com a arle de vivcr. Porque tolla a cicllcia seria inulil se, por delras de ludo aquilo que faz os horncns conhecer, ell'S nao se lornassem mLlis sabios, rnais tolernntes, mais mansos, mais felizes, mais bonilos ... Ciencia:
brincadeira que pode dar pralcr, que po de dar sabeL que pode dar podeL
Ha coisas bonitas. E turnbem coisas feias: orlodoxias, inquisi<;oes, fogueiras, pula<;oes de pessoas, ameal;
mani-
M
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