Chimera Do Homem.doc

  • December 2019
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Quimera do Homem Escrito por Cauê Luan de Moraes

Paramos. As pessoas ao meu redor tinham as feições aterrorizadas de uma minoria étnica rumo aos campos de extermínio. Agarradas com seus poucos familiares remanescentes vestiam trapos sujos e balbuciavam um silêncio tenebroso. Despidas de qualquer humanidade casual, lançavam umas as outras apenas o olhar vazio e primitivo do puro medo. Um estrondo. A estrutura abalou leve, mas já foi o bastante para alguns fecharem os olhos e se inclinarem pro divino. Mesmo com o aparente ar de indiferença dos soldados as armas tremiam em suas mãos. - O quê que há? – inquiriu o 3º Sargento. - Fim da linha – o comunicador pendeu anexo à mão do jovem cabo. A comunicação “high-tech” inutilizada e resumida a meros walk-talkies – temos que seguir a pé. A traseira do veículo desdobrou elevando-se em altivas asas metálicas. Os combatentes apearam da lacuna exposta e em seguida usaram uma escadinha improvisada de madeira pra facilitar a saída dos civis. Segurei firme a minha filha nos braços, ajeitei a mochila nas costas e desci. Pude reconhecer logo a Avenida Paulista, mas a paisagem já não era a mesma. Os contornos dos esplendorosos edifícios da cidade desapareceram completamente do céu cinzento, como se a terra tivesse tragado até o último andar e cuspido uma trilha de chamas e fumaça negra até o horizonte. A titânica decadência de um gigantesco avião de transporte militar, despedaçado por quilômetros da via urbana, era o bloqueio. O conflito rugia distante. Graças aos noticiários, tivemos muito mais informação sobre a guerra do quê gostaríamos. As M-29´s substituíram o velho fuzil de assalto como arma de infantaria. Com seu design de espaçonave trekkie, é ligada ao elmo do soldado possibilitando uma visão mais “interativa” do combate. Pra falar a verdade, tudo: a arma, o capacete, a roupa e até as botas tinham elos eletrônicos duma única bateria. O recruta conectado a um complexo sistema-rede de comando militar, como num joguinho de estratégia pra pc. Marechais trocando a burocracia pelo videogame. Nada de mais, apenas lixo ultrapassado do 1° Mundo que achou reciclagem barata no hemisfério sul. Um sósia patético da concepção Land Warrior, numa era onde os campos de batalha terrestres e a infantaria perderam o sentido. Mas de qualquer maneira, a essa altura nossos dispositivos e engenhos já não passavam de sucata inútil. As guerras agora são travadas assim: sabote a tecnologia inimiga até regredir a idade da pedra. Quem mantém o fogo leva as batatas. - Vamos morrer? – perguntou com uma candura triste. Os olhos verdes da mãe. Pousei-a no solo para abraçá-la – você disse que lá dentro era seguro – não queria que ela me visse chorar. - Vamos – o segundo no comando abanou o ar, nos pondo na direção. Formou-se uma caravana tática. Cruzamos o terreno inóspito com cautela; os dois cabos e o 3° Sargento na frente, duas dúplices de soldados nos flanqueando e os outros dois seguiam na retaguarda. Uma selva de fragmentos retorcidos e carbonizados atracava a passagem, mas ao mesmo tempo proporcionava uma ligeira sensação de segurança. Cruzamos até onde a abertura de um túnel abocava na avenida, o arame deformado do portão nos permitiu acesso fácil, aquela rota não era usada há anos. A passagem subterrânea embrenhava por um morro acanhado e enegrecido, sem vegetação. Lama e lascas de concreto se estendiam pelo desgaste do asfalto até as trevas do interior.

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Quimera do Homem Escrito por Cauê Luan de Moraes

Um som fino e musical ressoou. O 3° Sargento ergueu a mão para que parássemos. Pausa, ouviu-se de novo. Nosso caudilho assobiou três vezes. A área estava limpa. Uma luz amarela surgiu no escuro. O cabo sacou alguma coisa, espécie de acrílico em forma de prisma tomado pela barra inferior. Clique! O artifício também se pôs a brilhar amarelo. Definitivamente chegamos ao fundo do posso tecnológico. O fenômeno adiante, na penumbra, começou a serpentear uma coreografia. Foi pra cima, pra baixo, esquerda, direita, girou, repetiu. Tosco e inconstante, o movimento só podia ser obra humana. Pendurou por vários instantes até se apagar. Nosso sinalizador respondeu com um comportamento desigual, porém ainda diversificado. Três homens surgiram, eram soldados. Desconfiança em seus olhos. Avançaram sem pressa com as armas em punho. Uma unidade que vigia todas as direções. Acuam. Tensão diminuindo. O armamento decai vagaroso até apontar pro chão. O do meio troca um sinal de cabeça com o nosso comandante. O trio se vira e sai andando sem dizer uma palavra. Chegamos ao pé de uma extensa lona preta, cheia de furos e rasgos por onde a iluminação cinza do céu penetrava. Aquele trecho tinha menos detritos, parecia que alguém o varreu. Mais adentro no túnel avistei vastas pilhas de terra e concreto. Um dos nossos guias puxou a envergadura da lona e a luz se espalhou. - Por aqui – os outros dois entraram. A cratera atravessada escavou o outeiro e foi arrombar a espessura do concreto, contorcendo e arreganhando os fios metalinos do esqueleto estrutural. Cordas eram a maneira mais segura de alcançar lá em cima. Escalamos o solo transverso e errático com auxílio militar. Ficamos marrons de tanto barro. Avistei ruínas de edificações, fantasmas da antiga metrópole chorando fuligem e fogo. Uma mulher gritou histérica e caiu de joelhos, em lamúrias louvou os escombros do que um dia foi a capital do estado. Descemos a encosta da colina. Entrincheirados, os cadetes nos receberam com uma atmosfera sombria, seus olhos exauridos pela desesperança, cansados e imundos se empoleiravam feito mendigos num beco. Semblantes ocos e sem vida. Sonhos juvenis estraçalhados pela fria lâmina da guerra. Um homem achegou-se em nós, vestia-se igual aos outros só que ao invés do elmo, ostentava uma máscara de gás do século passado e um bonezinho de camuflagem do exército. Averiguou algo com o 3° Sargento após nos analisar, talvez querendo saber onde está o resto do pelotão com os outros sobreviventes. Não usava insígnia, assim evitava ser morto, qualquer meio de identificar escalões foi apagado, seja visual ou digital – a apontaria hostil é certeira. Os soldados o distinguiam pelo boné e a máscara substituía as proteções extras do capacete. - Perdemos contato – respondeu o 3° Sargento. Corredores sinuosos e labirínticos. Equipamentos sem função jogados esporadicamente pelos cantos do canal. De vez em quando eu erguia o pescoço pra espiar. À distância, no front, uma bruma densa se intensificava, não um nevoeiro qualquer, esse era azulado, azulescuro. Estava com minha filha no colo, caminhando na dianteira do bando civil, mais ou menos 12 pessoas conduzidas como ovelhas por soldados. Atirador, o rifle longo e negro destacava pra fora da “proteção” (um amontoado de entulhos na borda da trincheira), ao lado um sujeito observando a névoa com um binóculo infravermelho. - Detectei um deles, adiante a uns 50 metros – disse o observador com os óculos duplos. Freamos a marcha. Os civis ficaram impacientes. 2

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- Já achei. É dos grandes – o atirador parecia animado olhando pela mira telescópica. Clima se carregando. Situação tensa. - Use munição antiblindagem e atire! – ordenou o mascarado de boné. O sniper sorriu. Não dispondo de telêmetros laser, computadores balísticos e todos esses aparatos de tocaieiros modernos, só podia contar com a coragem gélida e instintiva de um franco atirador. Atirou. O tranco delicado quase não produziu som. Um flash vermelho reluziu na neblina. Boom! A luz da explosão fez a bruma cintilar, como se corpúsculos lantejoulados pairassem aéreos sobre ela e a formassem. - Alvo destruído? - Difícil dizer. - O calor desapareceu. Isso seria uma boa notícia se eles não soubessem camuflar a temperatura. A névoa começou a engrossar rapidamente. - Subtenente! – alguém correu para nós. Carregava uma boa estilha de ferro-velho no ombro, uma haste fina com algo similar a uma antena na extremidade – senhor! – falou lembrando-se dos tratamentos que a muito perderam o motivo. Máscaras de gás não demonstram expressão, só o efeito obscuro de que aqueles vidros nebulosos, quase opacos, nos observam. Por um momento achei que ele cortaria a respiração artificial para proferir suas palavras mecânicas, mas apenas fez um movimento seco com o pescoço. Não esperando tal resposta, deu uma engasgada e atrapalhado encravou a estaca de ferro no chão, antena pra cima. Negro, a pele suavemente mais escura que a minha; cabelo de caracóis curtos; óculos quadrados, uma trinca na lente esquerda, a armação era sustentada por fita crepe. Ausência de elmo, só a velha vestimenta de verde camuflado e botas pretas. “ANDERSON”, costuraram no uniforme. - Problemas; senhor! Puxou um objeto retangular, apoiou-o no chão e abriu. A “pastinha” revelou-se num notebook ou coisa do gênero, a tela exibia uma triangulação 3D da área. O programa, afetado pela interferência, dava umas ciscadas. - Alguns geradores entraram em curto – abaixou para teclar – campo EM perdendo potência. - Danos na fiação? - Uma e-bomb talvez. - Impossível! Teríamos ouvido com certeza. O cara do binóculo infravermelho soltou um grunhido. Virou de barriga pro ar, os olhos brancos, um fio de espuma escorrendo pelo canto da boca. Começou a tremer freneticamente. Estava tendo convulsões. - Márcio... – o sniper segurou o antebraço do convulsivo – Márcio! – levantou para segurá-lo com ambos os braços – ajuda aqui! – assim que virou o rosto um cano de arma roçou sua bochecha. Um disparo. Gritos. A multidão civil debandou pra todo lado. Soldados posicionando suas armas. O susto foi tanto que tropecei e cai com minha filha sobre mim. Empurrou o corpo baleado levantando-se, ainda com um pouco de espuma nos lábios. Não pude ver bem o rosto. Deu alguns passos cambaleantes, a postura encurvada, braços largados, cabeça baixa. Ameaçou subir a mão com a arma e os cadetes abriram fogo. 3

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- Precisa consertar o campo! – o subtenente estava alterado. - E o Grupo de MPE? – o 3° Sargento percebeu a ameaça. Anderson olhou-o sem tirar as mãos do laptop: - Eu sou o Grupo de MPE! Todos olharam para o céu. Um som agudo nos sondou penetrando lentamente em nossos tímpanos. O computador apagou para então explodir em uma torrente de faíscas fazendo Anderson dar um salto para trás. Plástico e chips torrados e esfumaçando. - Mas hoje está nublado... Esqueceram que o céu é apenas outra arma. Vindo do front, um clarão sobrevoou nossas cabeças. A margem da trincheira foi despedaçada a poucos metros de mim, combatentes e nacos de terra voando pelos ares. Não houve estrondo algum, apenas o lampejo e tudo veio abaixo. A poeira dos escombros obscureceu a vista, mas pude notar uma sombra enorme se infiltrando pela fenda aberta. Alguns se agruparam para atirar. O fogo amigo soltou uma rajada cega de projéteis contra o pó que subia. Silêncio. Elevei-me, abandonando a bolsa para focar o meu maior tesouro. - Tudo bem, Melissa? Ela só me encarou com seus grandes globos oculares; envolta por meus braços tremia feito um filhote no frio. Senti umas vibrações sonoras peculiares, baixas, quase inaudíveis, semelhantes ao bater de asas insetóides após passar por uma distorção eletrônica. Algo espirrou no rosto de Melissa. Comprimi as pálpebras para ver melhor. Era sangue. Os soldados ao meu redor desabaram. Rifles quicando no solo. Nem raciocinei, corri feito um louco. Alguns civis seguiam pela mesma direção, recrutas empunhando suas armas passavam rápido por nós comboiando para o lado oposto. - Por aqui! – um combatente nos dava sinal e corria junto a nós. Distingui uma concha de liga sólida ao final do percurso, parecia uma tartaruga de metal emergindo da terra negra e cortando o fluxo da trincheira. Bunker. Adentramos pelo escancaro de uma porta metálica e espessa na base da casamata. Descemos um lance de escadas, contornamos 180° e voltamos a descer outro lance de escadas. Corredores com pouca iluminação. Fomos parar diante de uma tela de fios de aço, contornada por barras com listras mescladas de amarelo e preto. O cadete fuçou no painel e a “gaiola” ascendeu, a tela divisou-se e abriu. Entramos. Com o pressionar de um grande botão vermelho aquilo tudo mexeu, fez barulho e moveu-se. Para baixo. ☺☺☺ O recruta enxugou a cara suada com a manga do uniforme, percebi que estava mais calmo. Mesmo naquele aperto me senti seguro para levar Melissa ao chão, sua face era uma imundice só. Usei um lenço para limpá-la. As pessoas emudecidas, às vezes alguém tossia ou fungava. Peguei um senhor de olhos azuis me encarando, abatido tentou parecer simpático: - Sua? - É – falei sorrindo. - Que sorte você tem! Uma menininha tão linda. Agradeci gentilmente e abaixei a visão para retocar a limpeza. - Papai... – ela sussurrou. 4

Quimera do Homem Escrito por Cauê Luan de Moraes

- Sim, Melissa, o que foi? - Pra onde estamos indo? – a pele clarinha, feito café com leite, igualzinho à mãe, um rostinho suave e delicado capaz de contagiar qualquer um. - Você sabe, pra um lugar seguro, onde nada poderá nos machucar. Ela abaixou os olhos: - mamãe ficaria contente. - Sim... – levantei o olhar, minha vista embaçou – ficaria... Declinamos por múltiplos instantes sob o permeio de um desagradável odor de transpiração. Solavanco, o elevador chacoalhou e travou. A tela abre mais uma vez. Embrenhamos por um complexo de canais estreitos e úmidos, canos decorando as paredes e o teto. Ratos e baratas por toda parte. Luminárias fraquíssimas nos guiavam acima das poças de água. Luz branca. Meus olhos foram ofuscados com tanta intensidade que fiquei com dor de cabeça. Gotículas de algum líquido nos atingiram vaporosas expelidas a jato sobre nós de todas as direções. Homens de branco. O traje folgado (um material entre cortina de banheiro e guarda-chuva) tapava toda a extensão de seus corpos, desde a cabeça, com um grande visor translúcido sobre o olhar e, logo abaixo, um dispositivo que me remeteu a máscara de gás do subtenente, talvez para filtrar o ar; até transformar-se em botas nos pés. Portavam pistolas, a munição era um cilindro com uma substância transparente no final do cano, as encostavam próximas ao ombro dos civis e pressionavam o gatilho soltando um barulhinho de esguicho de fumaça, o cartucho se esvaia na hora. Foi uma dor penetrante e ligeira. Minha insistência foi em vão, aplicaram em Melissa também, seus olhinhos se encheram de lágrimas e ela saiu soluçando após o disparo. Logo após a cortina plástica saímos por um pórtico vítreo para uma saleta de carpete com alguns assentos, cheia de quadros e esculturas, no melhor e mais chique estilo vitoriano. Aquilo foi construído para receber pessoas importantes. Um soldado arreganhou um pouco mais o portal duplo ornamentado para nos dar passagem. Som de multidão. Um salão descomunal nos engoliu. Com ares mais modernos, sustentava-se por um gigantesco abaulado acima de nossas cabeças, num verdadeiro milagre da engenharia, sob a pintura tridimensional e realismo do céu azul-escuro fronteando as estrelas da bandeira brasileira. O piso aveludado e plano se ajustava confortavelmente aos nossos pés. Holofotes elevavam-se iluminando tudo como num estádio de futebol. Refugiados de todas as castas infestavam o salão. Falantes e inquietos, suas vozes produziam um ecoar caótico e sem sentido em meio aos estantes de exposição abandonados. Propagandas brilhantes faziam as paredes. As pessoas se aglutinavam próximas a um enorme telão, extenso, porém fino na espessura; as imagens 3D saltavam pra fora do visor sem necessidade de óculos especiais. Europa e Estados Unidos estão em ruínas – comentou a repórter com um dispositivo estranho sobre seu olho direito – o inimigo cessou os ataques de destruição em massa e agora tropas terrestres lideram o assalto. Acredita-se que querem pessoas vivas por algum motivo desconhecido. Essa é velha. Vi semana passada. Os militares queriam nos manter calmos, queriam que nos sentíssemos seguros, que ainda mantínhamos o controle sobre nossos sistemas de comunicação, por isso passavam informações pré-gravadas e até modificadas. A realidade era assustadora demais. Melissa apontou para o telão. Pra lá fomos. Sentados assistindo o grande painel colorido ela me vem reclamar de fome, uma fome que logo vira cede, dor de cabeça e choro.

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Comecei a me arrepender de ter deixado a mochila para trás. Avistei uns recrutas com emblemas médicos distribuindo água e comida. - Espere aqui que eu vou achar o quê comer – falei pra Melissa. Assim que me distanciei ouvi um disparo, outro, fuzil. Joguei-me no chão e tentei rastejar de volta, gritos e tiros. As pessoas correndo pra todo lado. Teve até granada. O fuzuê cessou. Um soldado passou gritando que estava tudo bem. Levantei e vi alguns homens se rendendo e entregando suas armas. - Come isso – entreguei a Melissa uma lata aberta de salsicha enlatada. - O que foi aquilo? – ela perguntou. - Não sei, coma antes que desmaie. Sentei-me ao lado dela e abri uma garrafinha de água. Melissa pescou um gomo com os dedos, analisou-o e por fim deu uma mordida. - Tem ketchup? – falou com a boca cheia. Sorri e dei um gole: - Toma, bebe água. Os combatentes que não vagavam com suas armas em meio aos civis concentravam-se num posto de comando, demarcado por barracas verde-camufladas e vários veículos militares: jipes, helicópteros, tanques, blindados, aeronaves de pequeno porte, caveirões, lança mísseis, obuses, etc. – antigos, mas ainda eficientes. Alguém se sentou perto de nós, era um homem, um soldado, despido da cintura pra cima, quase todo o corpo com ataduras, gesso na perna, o braço suspenso roçando o tórax, uma faixa cobrindo o olho direito. Deitou a muleta e começou a comer uma barra de cereal. Nos espantamos com a presença inesperada daquela figura. Ele, pressentindo nossos olhares, pronunciou: - Muito bonitinha a sua filha – mastigou mais uma mordedura. Gratifiquei no gaguejo. Passamos um tempo calados, pensei em puxar conversa: - Sabe o que foi aquela confusão? - Problemas de comando – chupou a comida na boca – alguns soldados de outras companhias não aceitam serem regidos por nosso tenente-coronel. - Por quê? – inquiriu Melissa. - Oficiais são mortos que nem cachorro. Muitas unidades ficaram desnorteadas e fragmentaram-se. Centenas já desertaram – encerrou a barra de cereal. Ofereci-lhe água e ele aproximou-se. - Aqueles caras eram de um grupo paramilitar mercenário que perdeu o líder – deu um gole. - Pensei que paramilitares fossem proibidos no Brasil – Melissa questionando de novo. - Que menina sabida! – disse humorizando a voz e cutucando com o indicador o nariz dela – sabe... – continuou, agora sério – em tempos de crise não podemos nos dar a luxos institucionais. O noticiário fazia propaganda das armas de guerra e da soberania nacional. “Bons tempos” – pensei sorrindo, a notícia devia ter uns dois meses. Melissa dormia encostada em mim, o soldado – que se apresentou como Wagner - debruçou-se e também tirava um cochilo. Entediado saquei um livro de bolso: “Fundamentos da Mechantropologia Teórica”, escrito

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por um tal de David Leminski, um californiano de East Bay, EUA. Anos antes achei esse título cômico, não podia imaginar como estava enganado. Agitação. Soldados correndo e gritando. Os holofotes tremeluziram. O telão se apagou de repente. Da imagem escura surge o desenho de um relógio em forma de caveira, o som de gargalhada maléfica em meio aos tique-taques. - O que está acontecendo? – pergunta o combatente ainda na sonolência. - Invadiram o sistema. - Não há como, estamos off-line. - Então como você explica isso? O crânio tremia feliz. Tiros, a tela racha e implode. - Papai... – Melissa me abraçou aos prantos. As propagandas nas extremidades do abaúlo escureceram. A caveira retornou, multiplicada por dezenas de outdoors digitais, o terror ria em todas direções em que se olhasse. Tique-taque, tique-taque, tique-taque. Melissa pos as mãos na cabeça e se encolheu sobre mim. A risada se silenciou. As caveiras sumiram. Foquei numa das imagens, um fundo branco, uma carinha feliz e amarela surgiu. Ficaram lá, sorrindo e nos rodeando. - Mas que mer** é essa? – vociferou o soldado. Lembrei do livro de Leminski: - Talvez estejam tentando se comunicar. - Que jeito estranho de se comunicar! - Devem estar testando qual é a melhor maneira de lidar com agente. - Terror ou carinhas felizes? – a pergunta teve um tom irônico. - Escuta. Eles são seres racionais, não são? Podem se manifestar simbolicamente. - São como animais movidos à lógica. Não tem sentimentos. A movimentação aumentou. O inimigo infiltrou-se de alguma forma. O que estaria tramando?

- É o fim da espécie humana! – berrou de cima dum banquinho, um velho de barba longa e cinzenta, vestido de paletó, gravata e uma bíblia na mão – nossa tola ambição de ascender aos níveis do Criador nos levou ao declínio. A grande obra humana foi o estopim da própria extinção. Mentes doentias e inconseqüentes incubaram seus frankensteins e suas quimeras na vontade de Lúcifer e agora as crias vem clamar o sangue do bem e da justiça! – brandiu o livro sagrado – seja louvada a estupidez dos homens! Pessoas logo se ajuntaram ao seu redor. - Nossos demônios são nossos pecados! – continuou – e agora eles espreitam lá fora, sentados no trono da civilização, rindo dos antecessores como donos dessa terra. Beijem o apocalipse de seus próprios erros... Soldados o arrancaram violentamente de seu altar arrastando-o para longe. - Beijem o inferno na terra que brotou de sua ciência! – gritou antes que tampassem sua boca. Meu novo amigo combatente notou o meu assombro: - A situação já está ruim o bastante. Não temos comunicação, só Deus sabe o que se passa lá em cima, o inimigo deve estar procurando uma maneira de abrir essa lata de atum subterrânea. Crises paranóicas aqui dentro só vão piorar nosso estado. 7

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Não se sabia como o inimigo atuava. Já haviam desativado todas as propagandas, mas eles conseguiram transmitir uma mensagem para nós: perdemos o controle. Um ruído nos autofalantes. Vinha do palco, no canto da grande sala, um estúdio para transmissão presidencial com câmeras, equipamentos de som e luz, etc. As bandeiras do Brasil e da ONU atrás do local de discurso. Humanidade – todos ergueram a cabeça para ouvir – um enxame de parasitas sugando a Mãe Terra – parecia uma voz feminina de comercial – sua ambição inescrupulosa devorou o frágil equilíbrio natural e, insaciável, não parará até destruir a última dádiva de nosso querido planeta. - Propaganda anti-humana. Seres fadados ao aniquilamento, jamais poderão alcançar a utopia idealizada em suas mentes patéticas, porque o caos é a alma desses condenados. E não encontraram a felicidade e a paz até estarem todos mortos. E assim serviremos nossos amados criadores... Engenheiros militares conseguiram parar o pronunciamento, palavras contra a civilização já não chocavam mais tanto naquela época. - Eu fiz alguma coisa errada, papai? – Melissa chorou. Wagner e eu nos entreolhamos. Tentei consolar minha filha. - Isso é muito estranho – Wagner coçou o bigode. - O quê? - Estarmos vivos... E o que o inimigo podia estar tramando? Semear a paranóia e o medo irracional em nós era uma manobra inteligente, a fraqueza humana é um utensílio tão letal quanto a mais temerosa arma já criada pelo homem, porque a pior das fraquezas é a mãe de todas as guerras. Mas nem se passava por nossos pensamentos mortais a dimensão arquitetônica do plano hostil. Nas trevas, bem debaixo de nossos narizes, operários microscópicos construíam, molécula a molécula, fissionando sua matéria-prima atomicamente, transformando substâncias inofensivas em substâncias combustíveis, o útero de nossa destruição. - Estou com frio! - Com frio? Como Melissa? - Estou morrendo de frio! Cedi às reclamações da pequena e tirei meu casaco para cobri-la. - É um deles! – berrou um homem obeso e careca sem camisa. Olhei pro lado, pra trás, para todas as direções. Fiz cara de bobo. Ele apontava pra mim. Wagner falou baixo: - Por que você não disse que tinha prótese? - É só no braço, foi num acidente... Pessoas começaram a cercar-me, algumas armadas com algo de golpear, estavam nervosas, mas em seus olhos havia mais medo do que ódio. - Vamos matá-lo antes que vire um escravo zumbi! – gritou um velho com chapéu de cowboy. A multidão cresceu em cima. - Vocês enlouqueceram? – Wagner tentou impedi-los. Foi empurrado ao chão. Melissa gritou.

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Alguém veio por trás e fechou o braço na minha goela. Fiquei com dificuldade pra respirar. Uma joelhada bem no estômago. Meu ar foi pro espaço. O turbilhão de murros me atingiu na face e no tórax. Fui ao chão encolhido e cuspindo sangue. Daí veio os pontapés. Um chute me virou de barriga pro ar. Fiquei ali estendido olhando o teto enquanto tudo passava em câmera lenta. Meu olhar curvou. Um homem embaçado alongou a mão para mim. Minha visão foi melhorando. Era uma arma de fogo, o golpe de misericórdia. Soldados tentavam conter o alvoroço, mas não ia dar tempo. Estrondo. Uma luz branca desceu até mim, achei-a brilhante e linda, vi a face de minha esposa sorrindo, um sorriso cândido e único que me encantou desde o primeiro dia que a conheci. “Mário”, quase pude ouvi-la sussurrar. Era um holofote desabando. Tudo começou a tremer. As pessoas perderam a atenção em mim e se viraram. Wagner, mesmo de muleta, ajudou-me a levantar com o braço bom. Colocou-me sentado junto a Melissa, ela me abraçou. Wagner continuou de pé, olhando distante, para onde todos olhavam – eles conseguiram enfiar uma bomba aqui. - Ah é... – falei banguelo sentindo-me tonto – então por que estamos vivos? - Eles só queriam... – hesitou, percebi um tique nos seus dedos – abrir caminho. Tudo escureceu. Gritos. Ouvi barulho de desmoronamento. O holofote dum jipe militar iluminou a poeira emergindo de um amplo arrombo na parede. Silêncio. Passos mecanizados, servomotores se deslocando lentamente. A máquina olhou ao redor, a luz vermelha em sua fronte escaneou a alma de cada um de nós. Era uma arma, uma ferramenta, um objeto, mera marionete de um super processador a milhares quilômetros dali, ou melhor, era parte dele, seu membro, sua extensão e como tal tinha o instinto da lógica programada em sua essência. “Freedom and Extinction”- liberdade e extinção, até imagino como os operadores se sentiram quando essa mensagem ocupou as telas da bolsa de Nova York há seis meses. A revolta virou conquista e aniquilação. Mais uma máquina, outra, vários pontos vermelhos faiscando para nós, as engrenagens se movimentam dando locomoção ao metal pesado, a marcha faz o solo tremer sob nossos corpos. Agora nossa raça sucumbiu aos pés da própria criação. O prometeu do futuro tomou seus pais como fracos, imperfeitos e ineficientes e resolveu ditar novos rumos para a evolução. E agora nosso pecado nos assombra na forma do que tínhamos como mais certo e controlado, a tecnologia, a nova face da história, a quimera do homem. - Atirem!

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