Reflexão sobre o tema: “Chamados a Fazermo-nos ao Largo” INTRODUÇÃO Vamos viver mais um convite imperativo chamados a fazer-se ao largo (Lc 5,4). Um tempo de oração e não só. Tempo de reflexão prévia que assegure a legitimidade do que vamos pedir. Estamos conscientes que o pedido para que o Senhor dê à sua Igreja mais servidores é um apelo à conversão e rentabilização dos recursos humanos que já possuímos? I - FAZERMO-NOS AO LARGO? COMO? Os atentados de 11 de Setembro e 11 de Março vieram pôr a descoberto a ineficácia de uma tentativa de globalização massificadora. Aspectos culturais, civilizacionais, políticos e religiosos confundem-se e confluem para uma única foz revolta e insegura, para quem queira navegar com certeza por esse mar, para quem queira fazer-se ao largo. Ésquilo, autor grego, escreveu há muito séculos um drama profundamente humano e por isso profundamente religioso, sagrado, cristão (cf. Thomas Merton, lncursiones en lo Indecible. Sal Terrae): Prometeu agrilhoado. Um homem que desce do Olímpio com o fogo que colheu de Zeus para o partilhar com os seus irmãos. Este o é drama actual. Ajuda a entender que não precisamos tomar dos ídolos o que Jesus Cristo, que se aniquilou a si mesmo, assumindo a condição de homem (FI 2,6-1 1), nos pode oferecer. O homem que proclamou a morte de Deus, substituindo-o por uma técnica poderosa, vê-se agora condenado pela sua própria ousadia, pela sua autosubsistência. Engendrou uma idolatria poderosa e má que o condena e à sua liberdade. Este drama produzido na Grécia clássica vem lembrar-nos como é permanente na vida humana o apelo para o transcendente, e que se baseado no poder senhor-escravo qualquer tentativa de convivência é imperfeita. Destrutiva. O Deus de Jesus Cristo é o Deus dos pobres, daqueles a quem a técnica tira a possibilidade da dignidade humana (cf. José M. Mardones, Postmodernidad y Cristianismo. Sal Terrae). É o nosso Deus. Estamos situados na orla oriental do atlântico. Precisamente no centro entre as duas cidades atingidas pelo terrorismo: Nova lorque e Madrid. O que nos quererá dizer a nossa posição geográfica face a acontecimentos tão
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profundos, capazes de abalar a concepção do mundo e desequilibrar forças até então em suspenso? Os que vivemos em Portugal temos o condão de estar sempre no meio dos acontecimentos e passar por eles e eles passarem por nós como se não nos entrassem pelos sentidos: não vemos, não ouvimos, nada nos toca, nada nos faz reflectir. O primeiro passo para qualquer mudança de atitude e de comportamento é o olhar crítico sobre a realidade que nos cerca e da qual somos filhos. A sociedade em Portugal viveu os últimos trinta anos sob o signo da liberdade que nunca conquistou. Falar de comum participação na missão evangelizadora do povo de Deus resulta exclusivo para alguns teólogos e leigos formados em cultura católica. A Igreja em Portugal viveu os últimos trinta anos sob o signo do Concílio Vaticano II que nunca chegou a entrar e transformar as nossas comunidades paroquiais. Para falar de vocações e falar aos vocacionados é preciso falar disto. De outro modo caímos na grave enfermidade de tratar as consequências e a maior é o desajuste entre a tarefa evangelizadora e os evangelizadores, a seara é grande e poucos os trabalhadores e não as causas dignidade e transcendentalidade da vida, respeito pelo núcleo familiar, acesso a uma educação livre e libertadora, critérios humanos para a escolha da realização pessoal. É a este largo que nos dirigimos, revolto, incaracterístico, desafeiçoado à nossa linguagem e à nossa ética moralizante. Como vamos propor a requalificação do ministério ordenado e a alta estatura moral da vida religiosa consagrada nos conselhos evangélicos? Como vamos sair desse largo para nos salvar de afundar? II - UMA NOVA IMAGEM DE JESUS Depois de apresentar o seu programa ministerial na Sinagoga de Nazaré (Lc 4,14- 30), depois da cura do endemoninhado (Lc 4,33-37) e da cura da sogra de Pedro (Lc 4,38-39) Jesus chama os primeiros discípulos (Lc 5, 1 11). Os chamados respondem prontamente, depois dos primeiros sinais vistos. Há o facto humano do assentimento que confirma a presença de Deus na história do seu povo. A pesca abundante é símbolo da missão da Igreja. Em Jesus cumpre-se hoje a Palavra de Deus. Ele é o verbo feito carne (Jo 1,14). A missão a que vamos deitar mão exige uma concepção renovada da identidade de Jesus. Pedro, o que responde pelos discípulos, é figura dessa humanidade renovada, os que seguiram e seguem Jesus, que muda a sua forma de dirigir-se ao Senhor: de Mestre (tratando-se do pedido a lançar as redes) a Senhor (título da Igreja primitiva para Cristo Ressuscitado). Pedro confessa os pecados bem como a sua dúvida em
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relação a Jesus, em quem actua o poder de Deus. É preciso desprendimento (cf. Lc 5,28). A generosidade no desprendimento deve ser uma das notas distintivas das comunidades que crêem em Jesus. Gostaria de indicar dois títulos sugestivos que têm circulado entre jovens e menos jovens, evangelizadores e descrentes e que provocou alguma euforia livresca. Trata-se da obra de Dan Brown, O Código Da Vinci. Bertrand. Um romance histórico com muitas imprecisões e leituras unidireccionais com pouca honestidade intelectual. Precisamente um dos pontos da nossa cultura é a exploração deste filão. Muita informação que não informa, que confunde, que leva a admitir a ficção por realidade. Surgiu também entre nós uma obra de referência para a cristologia liberal de E. R Sanders, A verdadeira história de Jesus (Editorial Notícias). Voltamos à inquietação do que se pode saber verdadeiramente sobre o Filho de Deus, como compaginar aliança sinaítica com futuro escatológico. A aceitação do convite para lançar as redes de novo e no meio do cansaço provocado pelo trabalho nocturno, pela fadiga, pela pouca produtividade, tem de ser compreendido desde a pessoa que o dirige. A nossa dificuldade em chamar resulta da dificuldade em transmitir a fé, em provocar adesão a Jesus Cristo. Em confessando a filantropia do Jesus histórico juntar a transcendência do Cristo de fé. Jesus é sempre o mesmo, ontem, hoje e por toda a eternidade cantávamos com júbilo no ano 2000. Nós não somos os mesmos, ontem, hoje e por toda a eternidade. Cristo continua o mesmo, mas mudamos nós e temos de nos adaptar a Ele, já que não O podemos adaptar a nós. Jesus convida a lançar as redes, mas não as lança Ele. Jesus assiste à pesca abundante, mas não se aproxima para ajudar. Jesus chamou discípulos que facilmente entram no trabalho pela noite dentro. É um trabalho sem resultado porque lhes faz falta luz, não são capazes de discernir, não são capazes de ver o que pretende pescar. Estão cansados. II - FAZER FUNCIONAR OS LUGARES DO CHAMAMENTO Nós temos uma sociedade em transformação galopante. Conceitos como a família tradicional, a escola, a catequese, a vida académica, o serviço militar, são hoje uma sombra do passado. Não dizem nada aos teenagers de cultura perfurada dos piercing e da liberalização da sexualidade. Já são mundos que não encontram lugar na Igreja e que há que cuidar e salvar. O telemóvel, a moda e a música são três universos que se complementam e que arrastam até à idade adulta o centro das decisões mais importantes:
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domínio profissional, compromisso com uma pessoa concreta, participação numa causa. “E urgente e necessário estruturar uma pastoral vocacional, ampla e detalhada, que envolva as paróquias, os centros de educação, as famílias, suscitando uma reflexão mais atenta aos valores essenciais da vida, cuja síntese decisiva reside na resposta que cada um é convidado a dar ao chamamento de Deus, especialmente quando este pede a total doação de si mesmo e das suas próprias forças à causa do Reino” (Novo milienio ineunte, n.°46). Um pouco antes este mesmo texto de João Paulo II apresenta sete aspectos pastorais da comunidade (Novo milienio ineunte, n.° 29). Para nós serviriam de indicador de como servimos as vocações. 3.1. A vocação à Santidade é universal (Lumen gentium, cap. V) Pela participação baptismal todos os filhos de Deus devem revalorizar o seu contributo para a edificação de um mundo mais justo. Esta consciência baptismal é que há-de permitir a requalificação e reidentificação do ministério ordenado bem como a vivência radical dos conselhos evangélicos na pessoas dos consagrados. O bispo, figura paterna da Igreja local, é quem garante a solicitude desta missão em ordem à perfeição humana e cristã, O padre está chamado a ser santo e pela sua acção de pastor convocar para a santidade. Os religiosos e consagrados espelham a escatologia cristã desde agora na experiência da pobreza, obediência e castidade vivida num mundo rico, voluntarista e narcisista. 3.2. A Oração é dos aspectos nucleares da vida de Jesus (Lc 642) Ela surge sempre antes da presença às multidões e antes dos milagres. A oração é o assentimento da presença de Deus no nosso quotidiano. A oração tem de ser pessoal, feita desde a minha história. A oração da comunidade deve ser incessante, isto é, ininterrupta. Deve atravessar todo o tempo humano e todo o tempo litúrgico. A oração é oferta à Trindade das nossas necessidades em ordem à comunhão. A oração constrói a comunhão Go 1 7,21). 3.3. Eucaristia dominical Este ano, estamos convocados para o grande período de reflexão e participação eucarística. A Igreja vive da Eucaristia, para a Eucaristia. A comunidade crente vive neste movimento centrípeto/centrífugo da vida
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comunitária. Uma comunidade que não sinta amor à eucaristia não sente apreço pelas vocações. Devoção à Eucaristia, ao dom que Cristo faz de si mesmo. Quando estamos sós o sacrário é um bom refúgio e o nosso melhor descanso, o nosso melhor ombro. Visitar o Santíssimo Sacramento é verdadeira imitação de Cristo. 3.4. Sacramento da reconciliação O sacerdote é o administrador do perdão de Deus ao 20,23) e simultaneamente seu primeiro receptor. É permanente a necessidade de conversão do coração para a realização plena da vontade de Deus sobre a sua vida. Receber o perdão de Deus favorece o auto-conhecimento, faz crescer a humildade, ajuda a mondar maus costumes, aumenta a delicadeza da consciência, evita cair na tibieza e na indolência, fortalece a vontade e conduz a alma a uma identificação mais íntima com Jesus Cristo. Fazer da sexta-feira um dia penitencial: rezar a via-sacra, fazer o exame de consciência, meditar na Paixão de Jesus e nas nossas próprias paixões! A frequência deste sacramento conduz necessariamente a uma relação de acompanhamento e de discernimento. Ajuda a acompanhar a vida. Cria uma relação de acompanhamento entre quem acompanha e quem se deixa acompanhar. O acompanhamento não tem aver com aconselhamento. Supera- o. Personaliza os sentimentos de quem se deixa acompanhar. 3.5. Primado da graça A paróquia não pode ser só uma figura canónica. É uma comunidade vocacional, é o lugar físico e humano que chama, os de longe e os de perto e que acolhe os que chama. A paróquia não é um círculo fechado, guehto ou sectária. Não é espaço protegido ou atmosfera espiritual apartada dos problemas e inquietações das pessoas, despreocupada ou não-solidária com o seu existir. Nascida desde o plano histórico de Deus ajuda a descobrir e a alimentar o chamamento que o próprio Deus faz a todos: homens, mulheres, crianças, jovens e idosos. Na paróquia a figura do presbítero é o sinal da presença de Cristo. Presença, não intermitência. O presbítero, o mais velho da comunidade, é factor de comunhão. Comunhão que ele mesmo alimenta da sua relação vital com Jesus Cristo sacerdote (Jo 15,4). 3.6. A Escuta da Palavra É uma exigência para o nosso tempo que vive sob o postulado pósmoderno: sinto, logo existo. Aprenda-se a ler a bíblia. Restaure-se a arte de
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narrar a história da salvação, nas palavras e nas obras de arte. Promover o sentido estético e literal da nossa evangelização. 3.7. O Anúncio da Palavra é um imperativo Mas como pedir que se seja escutada a palavra que senão há quem pregue, e como pregar se não há a quem enviar, e como enviar se não há quem chame? Nas paróquias atender à criação de escolas onde a bíblia seja lida, estudada, partilhada, por todos e em todas as idades. CONCLUSÕES E DESAFIOS A conversão e Jesus Cristo e a sua confissão como Filho de Deus implica a adopção de um estilo de vida sóbrio e próximo do que Ele assumiu. Um estilo de viver cuja centralidade está na sua consciência filial, ou seja, para nós é necessário um retorno à vida familiar, aos seus valores de nascimento e educação para a responsabilidade. Um estilo de viver apostado na relação de coração a coração, que estimula e ensina, que acolhe e envia. Um estilo de viver pobre: conhecer as necessidades e respeitar o que se pede e agradecer o que se obtém. Só no reflexo da vida de Cristo na nossa própria vida poderemos falar dele aos que O não conhecem ou conhecem deficientemente. Não estamos no início nem tão pouco no final. Estamos no hoje da salvação e é este tempo que precisamos assumir e evangelizar. Importa sair do cansaço em que nos encontramos para retomar forças e ir lançar redes ao largo. É essencial que uma comunidade que chama reze. Sem desfalecer, sem cessar, sem adormecer. Reze não só durante uma semana mas em cada semana, não só por uma pessoa concreta mas por todos os baptizados, por todos os que têm condições para o chamamento: ouvido e voz, para que escutando, respondam afirmativamente. Porque não incluir no plano pastoral uma hora semanal de adoração/oração eucarística com carácter vocacional. Que congregue todos: pais e filhos, educadores e educandos na fé. Criar ritmos de oração, abrir caminhos para que o Mestre e Senhor possa passar. Ele está na Eucaristia e fala na Palavra. Reaprender a juntar às palavras os sinais teologais e sacramentais. A reintrodução da oração feita em família: oferecimento do dia, terço, bênção da mesa e do trabalho, exame de consciência; devoção ao Anjo da Guarda e aos santos patronos. Ensinar a rezar e ensinar a fazê-lo em chave vocacional.
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Um projecto de pastoral realista e sério passa hoje pela criação de uma equipa de coordenação e animação vocacional de todas as realidades humanas da paróquia, da família à escola, do grupo à comunidade cristã, do social à cultura, do desporto ao lazer. Este é o largo. Um coordenador/ animador unirá vários membros com especial carisma pelos sectores profético, litúrgico e apostólico. Uma verdadeira equipa, chamada, unida pela comunhão. Uma equipa que acredite no seu trabalho apostólico e na urgência dele. Uma visão de conjunto de toda a pastoral, transversabilidade no saber e no fazer chamados. Não se trata de criar mais actividades pastorais, mas sim o de dar conteúdo vocacional ao muito que já se faz nas paróquias. Fazer com que esta animação e coordenação não dependa só do pastor. Ele é o seu primeiro responsável, não pode ser o único elemento activo, O seu contributo será o seu testemunho sacerdotal alegre e fazedor de comunhão. Um Pároco
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