Cantar (não Exclusivamente) Em Português

  • Uploaded by: nuno miranda ribeiro
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penso que a cerimónia era a dos globos de ouro. o david fonseca subiu ao palco para receber um prémio. colocou-se em frente ao microfone, para os agradecimentos da praxe. e a primeira coisa que disse, com um sorriso, foi "não se preocupem, não vou falar em inglês". talvez a minha enorme simpatia pelo david fonseca tenha começado aí. se tiver de dar exemplos de artistas portugueses que cantam em inglês e de que gosto bastante ou pelo menos respeito muito, não é no david fonseca que penso imediatamente, é em primitive reason, blasted mechanism, moonspell. de qualquer forma, respeito-o bastante e à sua opção pela língua inglesa. quando eu era miúdo e queria ter uma banda, queria cantar em inglês. já na altura, e antes, havia a discussão sobre a opção de bandas portuguesas cantarem em inglês. e digo assim, porque a questão não é cantar-se em língua estrangeira, é cantar-se em inglês. um portugês que tenha uma musica em chinês, francês, italiano, grego, persa, está a ser original. se todas as suas músicas são em inglês, está a ser um vendido. eu compreendo isto. sinto-me colonizado pela cultura anglo-saxónica em geral e pela cultura americana em particular. e aceito e repito que devemos lutar contra esta colonização. escrevo esta crónica para tentar demonstrar porque não considero que defender-se que só se deve cantar em português seja necessário, nesta luta contra a colonização cultural da fastcultura americana. no que toca à música portuguesa, acho que (e refiro-me só aos últimos 50 anos) nunca esteve de tão boa saúde. conseguimos, a seguir ao 25 de Abril, ultrapassar o preconceito da geração dos meus pais contra o fado e a música tradicional. surgiram, quando eu era miúdo, os essa entente, os diva, a sétima legião. mais tarde, vieram os sitiados e o projecto da resistência. aliás, sobre a resistência quero deter-me. não nos esqueçamos que se chamava precisamente "resistência". na altura o imaginário daquele conjunto de músicos portugueses tinha mesmo a ver com resistência. cantar em português era um acto de não conformidade, ou pelo menos de alguma coragem, contra a hegemonia da música estrangeira (que ainda subsiste, nas nossas rádios, um pouco menos na antena 3 que nas outras). e teve os seus frutos. a minha geração acolheu a dulce pontes e madredeus e comoveu-se com o sucesso, mais recente, da mariza. joão aguardela fez um trabalho notável de reinterpretação e reinvenção da nossa herança cultural musical. o projecto megafone e a naifa são mais do que a celebração do que já existe, são a criação de algo novo, asumindo as raízes mas estendendo os ramos para outras lonjuras. amélia muge também fez esse favor ao nosso folclore: expandir-lhe horizontes. o álbum dos humanos, ao recuperar não só as gravações perdidas de antónio variações, mas também o interesse do público pelo artista, veio mostrar, com o sucesso de vendas, que os portugueses estão abertos a artistas que sejam, simultaneamente, muito portugueses e muito modernos - lembremo-nos que variações dizia que a sua música estava algures entre braga e nova iorque. e é precisamente aqui que reside parte da explicação da minha atitude. cantar em português em portugal, neste ano de 2009, não é um acto de resistência nem um risco enorme da editora. os portugueses gostam de ouvir e ouvem música portuguesa cantada em português. não somos como os espanhóis, é certo. mas ainda assim, somo o país em que uma banda como a deolinda teve um enorme sucesso e se tornou quase consensual. tanto gosto deles eu como a minha mãe, tanto ouvem deolinda os meus amigos como o público das telenovelas (há uma, pelo menos, em que passam duas ou três músicas da deolinda). falar dos músicos das bandas portuguesas que cantam em inglês como de pessoas alienadas, que não percebem que temos de proteger e promover o nosso património linguístico e a nossa cultura, parece-me deslocado. qual é o imaginário do som de bandas como peixe : avião e linda martini? (eu diria radiohead e sonic youth, entre outras bandas nativas de inglês). e quanto às nossas bandas clássicas de punk em português, censurados, peste e sida, tara perdida? não foi a ouvir punk em inglês que eles receberam a maior influência para o som que praticam? em que é que eles são

diferentes de bandas portugesas de qualidade que cantam em inglês, como as que referi no início (primitive reason, blasted mechanism, etc)?. (a despropósito, a Börk é menos islandesa quando canta em inglês?). e quanto ao hip-hop, que tem sido a voz e a identidade da geração a seguir à minha? há coisa mais americana que o hip-hop? há ainda o caso do funk, do dub, do soul, do blues. o que seria de cool hipnoise, coll train crew (curioso terem nomes em inglês, não?), sara tavares, melo d, family, dos mais recentes dead combo (de novo, nome em inglês), sem a influência da música anglo-saxónica? a mim parece-me que cantar em inglês ou português é apenas um pormenor, entre outras pormenores igualmente importantes. se uma banda portuguesa resolver editar um álbum de country cantado em poruguês, aquilo não deixa de ser country. e, para mim, só vale se for bom - independentemente da língua cantada. o jp simões a solo (e no quinteto tati) deve ser mais respeitado que nos belle chase hotel, porque canta em português? e a bossa-nova de jp simões, vale menos que o fado da mariza? eu faço uma separação (baseada apenas no meu gosto e na minha maior ou menor ignorância) entre música boa e música dispensável (a muito má nem costumo referir). não é decisivo, para o respeito que eu tenho pelos músicos, se linda martini canta em português e primitive reason em inglês. neste momento os portugueses não têm vergonha da sua língua, voltaram a gostar de fado, surgiu o guitolão, a deolinda é um sucesso (espero que venha a ser pelo menos tão grande como foi madredeus). não é preciso cantar em português, ou exigir que se cante em português como uma forma de militância cultural, como no tempo da resistência. o que é preciso é continuar-se a fazer boa música. não só voltar-se a gostar de fado contribuiu para esta mudança em relação à geração antes da minha, a cultura hip-hop portuguesa deu um contributo fundamental - quase não há hiphop português que não seja cantado em português. se em portugal o panorama fosse o contrário (quase nenhuma banda cantar em português e desprezar-se a nossa própria música) o tema da minha crónica seria o oposto. mas felizmente e, parece-me, com tendência a melhorar, a música em português está de boa saúde.

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