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CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE FRANCISCANA

37 Editorial Franciscana BRAGA - 2009

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Ficha Técnica

Coordenador: Fr. José António Correia Pereira, ofm Editorial Franciscana Apt. 1217 4711-856 BRAGA Tel. 253 253 490 / Fax 253 619 735 E-mail: [email protected] Edição on-line no site: www.editorialfranciscana.org Capa: Desenho de Fr. José Morais, ofm Edição: Editorial Franciscana Propriedade: Província Portuguesa da Ordem Franciscana Depósito Legal: 14549/94 I. S. B. N.: 972-9190-46-1 Caderno 37- 2009 Cada número dos Cadernos é vendido avulso

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Índice

I — Estudos 1. Fr. Salimbene de Adam de Parma — Crónica de Salimbene de Adam .................................................... 5 2. Fr. Martín Carbajo Núñez, ofm — Actualidade de Duns Escoto na sociedade de informação .......... 53 II — Documentos 1. Discurso do Papa Bento XVI à Família Franciscana no Capítulo Internacional das Esteiras ............................................................... 81

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I — Estudos

CRÓNICA DE SALIMBENE DE ADAM

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CRÓNICA DE SALIMBENE DE ADAM

INTRODUÇÃO Fr. Salimbene de Adam escreveu a Crónica entre 1284-1288, já próximo dos setenta anos. Os dados mais importantes da sua biografia, ele mesmo os dá na sua obra: nasceu em 9 de Outubro de 1221; aos quinze anos foi admitido por Fr. Elias à Ordem dos Frades Menores (1-2), no dia 4 de Fevereiro de 1238. Era conhecido por Omne Bonum (tudo bem). Entrou para a ordem muito contra a vontade do pai, Guido de Adam. O nome Salimbene (sobe bem) foi-lhe dado por um dos companheiros de Francisco1. A sua obra é muito extensa: uma colecção de notícias, anedotas, reflexões morais e teológicas, muitas referências históricas e autobiográficas2. No parágrafo 5 da sua Crónica ele mesmo refere a grande quantidade de crónicas que escreveu. ————— 1 Sobre os dados biográficos cf. FELD, H., Franziskus von Assisi und seine Bewegung, Primus Verlag, Darmstadt, 1996, p. 47. 2 A tradução é feita a partir do texto publicado nas Fonti Francescane, nuova edizione, Editrici Francescane, Pádua, 2004. O texto das Fonti segue o da Cronica Nuova, edizione critica, a cura di Giuseppe Scalli, Bari, 1966. A edição de SCALIA serve como ponto de referência para a divisão do texto em parágrafos e capítulos. Cf. outras edições: Cronica Fratris Salimbene de Adam Ordinis Minorum, ed. O. HOLDER-EGGER (MGH SS 32), Hannover e Leipzig, 1905-1913; The Chronicle of Salimbene de Adam, Joseph L. BAIRD, Giuseppe BAGLIRI e John Robert KANE (Medieval and Renaissance Texts and Studies, 40),Binghamton, New York, 1986. Sobre a Crónica cf. MARIANO D’ALATRI, La Cronaca di Salimbene. Personaggi e tematiche (Biblotheca Seraphico-Capuccina, 35), Roma, 1988. A Crónica autografada de Salimbene conserva-

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O texto que agora é apresentado, é uma antologia dos textos mais relacionados com história da Ordem dos Frades Menores e alguns movimentos que marcaram a Igreja da segunda metade do século XIII3. Embora afirme que conheceu alguns dos primeiros companheiros de Francisco, sendo até ―íntimo amigo‖ de Fr. Bernardo de Quintavalle, com quem viveu no convento de Siena e de quem terá ―aprendido muitas coisas boas‖ (16), a visão que tem da fraternidade franciscana está longe da primeira fraternidade de Francisco. Enquanto em Giano e Eccleston, a personalidade de Francisco é ponto de referência e presença do inconsciente colectivo, para Salimbene a figura de Francisco é uma referência histórica que ele aborda com alguma frieza. Mais importante que o fundador é a Ordem. A sua Crónica fala duma Ordem bem estruturada e uma instituição poderosa. Dá a ideia que os ―humildes começos‖ devem permanecer ocultos, para que se tornem bem visíveis as ―pedras formosas e bem lavradas‖ (23) do edifício da Ordem. São muito escassas as referências a Francisco e aos primeiros irmãos. Esta visão faz com que manifeste muito pouca consideração pelos irmãos não-clérigos e os tenha como inúteis para a Ordem4. É neste contexto que apresenta Fr. Elias como culpado de todos os males, sobretudo o de ter admitido tantos irmãos leigos na Ordem, unicamente para se servir deles como alavanca para dominar. Grande parte da sua Crónica é um libelo acusatório contra Fr. Elias, a quem dedicou uma obra que ————— -se na Biblioteca do Vaticano, Cod. 7260. O texto que agora publicamos não é mais que um extracto da grande Crónica de Salimbene. 3 A indicação de páginas que encontramos ao longo do texto, no fim dos parágrafos ou nas notas, refere-se à edição de SCALIA, Bari, 1966. 4 A desvalorização dos irmãos leigos deu-se sobretudo a partir de 1247, com a eleição de Fr. Haymon de Faversham para Ministro Geral. Formado nos Estudos de Paris, tudo fez para dar mais visibilidade aos irmãos com formação científica. Ficou célebre a frase do poeta franciscano Jacopone de Todi: ―Mal vedemo Parisi/che àne destrutt’ Assisi (Laude XXXI (91), ed. F. Mancini, Bari, 1974, p. 293). Sobre o tema da pregação e dos estudos na Ordem dos Frades Menores cf. MERLO, G. G., Francisco de Asís – historia de los Hermanos Menores y del franciscanismo hasta los comienzos del siglo XVI, Arantzazu, 2005, p. 169-190; VAUCHEZ, A., François d’ Assise, Fayard, 2009, p. 41.

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intitulou Liber de Prelato, onde o apresenta como exemplo de mau prelado5. A Crónica de Salimbene é um dos documentos mais importantes do seu tempo, não só pelas informações que dá sobre a Ordem dos Frades Menores, como pelos testemunhos que apresenta sobre alguns movimentos populares e religiosos do seu tempo, nomeadamente o movimento ―Aleluia‖. Muitas vezes, nas abordagens anedóticas que faz dos personagens e dos acontecimentos, ultrapassa a margem do tolerável. Apesar disso, segundo Feld, ―ele é o historiador franciscano mais importante do século XIII… Devemos-lhe o conhecimento de numerosas personalidades do seu tempo. Se não tivéssemos a sua Crónica, a imagem que temos da Idade Média seria muita mais redutora‖6.

————— 5 Partes deste livro da Crónica (Incipit Liber de prelate quem feci occasione fratris Helye ) estão inseridas neste texto a partir do nº 21. As obras mais recentes de investigação são mais objectivas em relação à figura e obra de Fr. Elias. Cf. FELD, op. cit p. 353-384; MERLO op.cit., p. 153-169; VAUCHEZ, op.cit., p. 217-269 6 FELD H., op. cit, p. 476.

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TEXTO A origem7 1. No ano do Senhor de 1221, a 6 de Agosto, morreu o bem-aventurado Domingos. E eu, frei Salimbene de Adam, da cidade de Parma, nasci nesse mesmo ano, no mês de Outubro, no dia 9, festa de São Dionísio e de São Donino8. O senhor Baliano de Sidónia, grande barão de França, que viera do ultramar para se encontrar com o imperador Frederico II, foi meu padrinho de baptismo, no baptistério de Parma, que ficava perto da minha casa, como diziam os meus pais. Disso se lembrava e mo confirmava também frei André, do ultramar, da cidade de Acre, irmão menor, que estava com o dito senhor e vivia na sua casa e era seu companheiro de viagem. (p. 47)9. O ano do grande terramoto de Bréscia 2. Nesse mesmo ano (1222), no dia de Natal do Senhor, houve um enormíssimo terramoto na cidade de Reggio, enquanto pregava na catedral de Santa Maria o bispo Nicolau de Reggio. Este terramoto abrangeu toda a Lombardia e Toscana, mas ficou a ser chamado de Bréscia por ter sido aí o seu epicentro e os habitantes viverem em tendas fora da cidade para evitar que os edifícios lhes caíssem em cima… Minha mãe costumava lembrar-me que durante esse terramoto eu era ainda uma criança de berço, e que tinha tomado nos braços as minhas duas irmãs (ainda pequenas) e, abandonando-me no berço, se refugiou na casa dos pais. Na realidade, temia que o baptistério lhe caísse em cima, uma vez que ficava mesmo ao lado. Essa a razão porque eu não a amava bastantemente, pois entendia que se devia ter preocupado mais comigo, que era homem. A ————— 7 Encontramos muitos dados autobiográficos no texto de Salimbene. Por ele sabemos, por exemplo, que era parente de Inocêncio IV. 8 Por esta razão, como diz mais à frente, desejou chamar-se Fr. Dionisio (16). 9 A presença do Frades Menores na Terra Santa remonta ao tempo de S. Francisco. Durante alguns séculos eles foram os únicos cristãos a viver na Terra Santa. Fr. André era um dos frades que tinha pertencido à comunidade de Acre.

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isso respondia ela que era mais fácil transportar as minhas irmãs, que eram maiorzinhas (pp. 47-48)10. A sua entrada na Ordem11 3. O terceiro filho (de Guido de Adam) fui eu, frei Salimbene. Quando cheguei à encruzilhada da virtude e do vício (psycthagoricae litterae), ou seja, aos quinze anos, entrei na Ordem dos irmãos menores, na qual vivi muitos anos como sacerdote e pregador, residi em muitas províncias, vi muitas coisas e aprendi muitas outras. (p.53). … Quem me recebeu à Ordem foi frei Elias, quando ia de viagem para Cremona ao encontro do imperador, como enviado do papa Gregório IX, no ano de 1238. … Então o meu pai dirigiu-se a Assis, onde estava frei Elias, e entregou ao ministro geral a carta do imperador, que começava assim: ―Para mitigar as penas do senhor Guido de Adam…‖. Frei Iluminado12, que era então secretário de frei Elias e transcrevia as cartas mais belas que eram enviadas ao ministro geral pelos príncipes do mundo e as voltava a colocar numa pasta sua, mostrou-ma mais tarde, quando passei a viver com ele no convento de Sena. Frei Iluminado chegou a ser depois ministro da província de São Francisco, e posteriormente bispo de Assis, onde acabou os seus dias. (p. 54). ————— 10 Sobre o terramoto, cf. Eccleston (39). Segundo as Crónicas locais, o terramoto foi em 25 de Novembro de 1222 e durou quarenta dias. A tradição recorda uma carta de S. Francisco aos habitantes de Bolonha, anunciando este terramoto. A carta, se existiu, perdeu-se. Cf. Escritos – Francisco e Clara, Ed. Franciscana, Braga, 2001, p.113. 11 É no tratado sobre o prelado (Liber Prelato) que descreve a sua entrada na Ordem, desde o noviciado até se retirar para a província emiliana, onde escreveu a sua Crónica. Ao longo da vida contactou com alguns dos primeiros companheiros de S. Francisco, como Fr. Bernardo de Quintavalle e irmãos célebres, como Fr. João de Parma, Fr. Hugo de Digne, Fr. Gerardo de Módena e muitos outros que são referidos no texto completo. 12 Tudo indica que seja Fr. Iluminado de Rieti, que acompanhou S. Francisco à Terra Santa e que Boaventura descreve como ―… um irmão de facto iluminado no sentido de inteligente, e também corajoso… (LM 9. 8,1); Cf. TC 1; LM 13. 4,3). As abreviaturas dos textos das Fontes Franciscanas, referem-se a Fontes Franciscanas I, S. Francisco de Assis, Escritos, Biografias, Documentos, 3ª ed. Ed. Franciscana, Braga, 2005.

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O ofício da pregação 4. Um dia, quando o ministro geral, frei João de Parma13, se encontrava completamente só, abeirei-me dele. Mas, subitamente, chegou também o meu companheiro, que era de Parma e se chamava frei Giovannino de Ollis e disse ao ministro: ―Pai, faz com que eu e frei Salimbene tenhamos a auréola‖. Frei João de Parma, com um rosto alegre, perguntou ao meu companheiro: ―E como posso fazer com que tenham a auréola?‖. Frei Giovannino respondeu: ―Dando-nos o ofício de pregar‖. Então disse frei João, ministro geral: ―Na verdade, mesmo que ambos fossem meus irmãos carnais, de nenhum modo a conseguiríeis senão por meio de um exame‖. Mas eu repliquei ao meu companheiro: ―Procura-a tu, por tua conta, que eu já recebi o ano passado o ofício de pregar das mãos do papa Inocêncio IV, em Lião. Porque havia de a ter agora da parte de frei Giovannino de São Lázaro? Basta que me tenha sido concedido uma vez por quem tinha poder‖ (pp.432-433). … Então o meu companheiro, frei Giovannino de Ollis, respondeu-me: ―Preferia tê-la do ministro geral que da parte de qualquer Papa; e se for necessário que passemos pela espada do exame, que nos examine frei Hugo‖. Falava do grande frei Hugo14, provincial, que se encontrava então em Arles por motivo da chegada do ministro geral, de quem era muitíssimo amigo. Respondeu frei João: ―Não quero que os examine frei Hugo, porque é amigo vosso e tratar-vos-ia com benevolência. Chamem o leitor e o repetidor deste convento‖. Uma vez presentes, o ministro geral disse: ―Levem-nos separadamente aos dois e examinem-nos no respeitante apenas ao ofício de pregadores, e se forem dignos de o exercer, digam-mo‖. E assim se fez. A mim foi-me conferido, mas não a ele, pois foi achado incompetente. Então o geral disse-lhe: ―Quem é reprovado não é aceite. Sê sábio, meu filho, e alegrarás o meu coração, e, assim, poderei

————— 13 Fr. João de Parma foi eleito Ministro Geral em 1247. 14 A figura de Fr. Hugo de Digne é apresentada mais á frente (45-47). Cf. 2C 120, nota 192.

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responder a quem me ultrajar” (Pr 27,11). Com efeito, diz o Eclesiástico, 18,19 : Antes de falar, procura instruir-te”15. O escritor16 5. Como escrevi nesta Crónica, e numa segunda, e numa terceira, e numa quarta, e no tratado que redigi sobre Eliseu (p.427) … Como disse na outra Crónica, em que exarei os doze delitos do imperador Frederico (p. 294). Ao escrever as várias crónicas usei um estilo simples e inteligível, de maneira que a minha sobrinha, para quem escrevia, pudesse entender o que lia. Não me preocupei sequer com o ornamento das palavras, mas tão somente em escrever a história segundo a verdade (p.270). Lê a outra Crónica que começa assim: ―Octavianus Caesar Augustus, etc.‖, que escrevi no convento de Ferrara, no ano em que Luís, rei de França, foi feito prisioneiro em terras do ultramar, isto é, em 1250 (p. 311). Estamos agora no ano de 1284 e ainda não deixei de trabalhar em volta de muitas outras crónicas que, segundo julgo, são óptimas, e nas quais suprimi coisas supérfluas ou falsas, ou contraditórias e certos abusos (pp. 311-312). …No ano de 1259, vivendo eu em Borgo San Donnino, compus e escrevi um outro Livro dos tédios, à imitação de Patecchio (p. 674).

————— 15 Estas páginas sobre o seu exame para pregador dão-nos conta de um momento importante na história da Ordem dos Frades Menores relacionada com os estudos e com o compromisso cada vez mais relevante na evangelização. Cf. nota 4. 16 Temos aqui o índice bibliográfico das obras de Salimbene. De todas elas, só conhecemos esta Crónica.

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II SÃO FRANCISCO DE ASSIS17 Síntese litúrgica da vida de São Francisco 6. No ano de 1226, 4 de Outubro, sábado, ao entardecer18, o bem-aventurado Francisco, fundador e guia da Ordem dos irmãos menores, passou deste mundo tenebroso para o reino celeste, e foi sepultado num domingo, na cidade de Assis, adornado com as chagas de Jesus Cristo. Tinham-se completado já 20 anos sobre a sua conversão. De facto, dera início à sua nova vida em 1207, quando era papa Inocêncio III. Dele se canta: ―Coepit sub Innocentio – cursumque sub Honorio Perfecit gloriosum. – Succedens his Gregorius Magnificavit amplius – miraculis famosum‖; (Começou sob Inocêncio e chegou ao fim do seu glorioso caminho sob Honório III. Sucedeu-lhe o papa Gregório IX, que o exaltou no registo dos santos, agora famoso por tantos milagres) (p.49). São Francisco e os animais 7. Vi na minha Ordem19 alguns irmãos doutos, letrados e de grande santidade perderem-se atrás de coisas fúteis, a ponto de serem julgados como homens levianos pelos demais; ou seja, entretinham-se com ligeireza a palrar com ratinhos, cachorrinhos e passarinhos; mas não da maneira como o bem-aventurado Francisco falava e se entretinha com o faisão e a cigarra, rejubilando no Senhor (p.213). ————— 17 Salimbene limita-se a alguns dados cronológicos sobre S. Francisco. A figura carismática de Francisco fica na penumbra. Parece que mais importante que o fundador é a Ordem por ele fundada. 18 Salimbene conta os dias de vésperas a vésperas. S. Francisco morreu no dia 3 de Outubro ao fim da tarde, depois de vésperas. Cf. 1C 109-110; 2C 217;TC 68, AP 46. 19 Partindo de um discurso moralizante, recorda um aspecto característico da vida de S. Francisco. Cf. 1C 58-60.

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A função dos demónios 8. A este propósito lê-se que Francisco disse a seu companheiro, na noite em que foi açoitado pelos demónios no palácio de um cardeal: ―Os demónios são os verdugos de nosso Senhor, encarregados de castigar os homens. Penso, na verdade, que Deus permitiu aos seus verdugos lançarem-se sobre nós, porque só o facto de permanecermos no palácio dos grandes não constitui bom exemplo para ninguém‖20 (p. 381). O Natal em Greccio 9. No convento de Greccio, onde o bem-aventurado Francisco, na festa da Natividade do Senhor, cantou o Evangelho e fez a representação ao vivo do menino em Belém, com o presépio, o feno e o menino21 (p. 442); o episódio é amplamente narrado na sua legenda (p. 451). Um homem crucificado descido da cruz 10. Creio com plena certeza que, assim como o filho de Deus quis ter um amigo muito especial para o poder fazer igual a si (e é o bem-aventurado Francisco), da mesma forma fez o diabo com Ezelino. A propósito do bem-aventurado Francisco, diz-se que Deus deu a um cinco talentos (Mt 25,15). De facto, não houve ninguém no mundo comparável a Francisco, em quem Cristo imprimiu as cinco chagas para que fosse em tudo semelhante a ele. Contou-me frei Leão, que era seu companheiro e estava presente, que quando estavam a lavar o seu corpo para a sepultura, parecia na verdade um crucificado baixado da cruz22. Por isso se podem aplicar ao bem-aventurado Francisco as palavras do Apocalipse,1: Vi alguém semelhante a um filho de homem (Ap 1,13). Omito dizer aqui em que é ————— 20 O texto refere-se a 2C 119-120, embora com palavras um pouco diferentes. 21 Mais um episódio da vida de S. Francisco que Salimbene recorda sem qualquer comentário. Cf. 1C 84-87; LM 10. 7. 22 Também a figura de Fr. Leão, um dos irmãos mais chegados a S. Francisco, não lhe merece qualquer comentário. Cf. 1C 112, 9 sobre os sinais da Cruz impressos no corpo de Francisco.

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que foi semelhante a Cristo, pois já o descrevi noutra parte (pp. 281-282)23. Visita ao Alverne24 11. O ermitério do Alverne encontra-se na Toscana, na parte montanhosa da diocese de Arezzo. Foi aí que o bem-aventurado Francisco teve a visão do Serafim que lhe imprimiu as chagas, à semelhança de nosso Senhor Jesus Cristo. Passava eu outra vez por esse lugar, regressando de Assis, onde tinha ido em peregrinação… Reparei que lá em cima, quando os irmãos fazem a comemoração de São Francisco, rezam sempre, em Matinas, a antífona ―O martyr desiderio‖ e, em Vésperas, essa outra, ―Coelorum candor‖, porque nestas duas antífonas se menciona a aparição do Serafim. Quer no começo, quer no fim destas duas antífonas, os irmãos ajoelham-se sempre (pp. 808-809). A canonização25 12. No ano de 1228, no dia 16 de Julho, o papa Gregório inscreveu no catálogo dos Santos e canonizou o bem-aventurado Francisco. O mesmo papa canonizou a bem-aventurada Isabel, filha do rei da Hungria e esposa do conde da Turíngia, a qual, entre outros inúmeros milagres, ressuscitou 16 mortos e deu vista a um cego de nascença. Ainda hoje se vê brotar do seu corpo uma espécie de óleo. Esta santa, depois da morte do marido, viveu sob a obediência dos irmãos menores e sempre lhes foi muito dedicada (pp. 50-51)26.

————— 23 No nº 23 volta a fazer algumas referências a S. Francisco 24 Sobre os Estigmas cf. 1C 94-95; 2C 135-138; 3C 2; LM 13, 3-4. 25 Sobre a canonização de S. Francisco por Gregório IX Cf. 1C 125-126; 2C 220ª; LM 15. 1-6; Legenda da Úmbria (LU 9-10) em Cadernos de Espiritualidade Franciscana nº 23; Vida de S. Francisco, Julião de Espira, 75 em Cadernos de Espiritualidade Franciscana, nº 35. 26 Sobre Santa Isabel da Hungria, cf. Crónica de Jordão de Giano (JG 25) em Cadernos de Espiritualidade Franciscana nº 34.

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Trasladação27 13. No ano do Senhor de 1230, os irmãos menores celebraram o Capítulo geral em Assis. No dia 25 de Maio fez-se a trasladação do corpo do bem-aventurado Francisco. Nesse dia, frei Jacob de Iseo obteve a cura completa das chagas da virilha e dos genitais. E Deus, através do seu servo e amigo Francisco, operou muitos milagres dignos de serem recordados, mas que poderão ser lidos na sua legenda (p. 96). O ofício litúrgico 14. Este papa, Gregório, compôs em honra do bem-aventurado Francisco o hino ―proles de coelo prodiit‖, o responsório ―De paupertatis horreo‖, a prosa ―Caput draconis ultimum”, uma outra prosa sobre a paixão de Cristo, ―Flete fideles animae” e, a pedido dos irmãos, designou como cardeal protector o futuro Alexandre IV. Este papa Alexandre canonizou santa Clara e compôs os hinos e orações para o seu ofício28. Depois, o cardeal Tomás de Cápua compôs em honra do bem-aventurado Francisco o hino ―In coelesti collegio‖, o outro ―Decus morum‖ e o responsório ―Carnis spicam‖; compôs também a sequência em honra da bem-aventurada Virgem, que começa ―Virgo parens gaudeat‖, mas apenas o texto, ao passo que o canto é obra de frei Henrique Pisano, a seu pedido, e o contraponto fê-lo frei Vita de Lucca, frade menor, meu primeiro custódio e mestre de canto, o segundo o meu mestre de música (p.554)29. Os hagiógrafos de São Francisco 15. No ano de 1244 morreu frei Haymon, inglês, ministro geral da Ordem dos irmãos menores e foi eleito para lhe suceder frei Crescêncio, ————— 27 Sobre a Trasladação cf. LM 15. 8; LU 11; Louvores de S. Francisco de Bernardo Besse (BB 8, 21.) em Cadernos de Espiritualidade Franciscana nº 32; Julião de Espira, op. cit. Nº76. 28 Sobre a Canonização de Santa Clara cf. FF II, Bula de Canonização (BLC); Legenda de Santa Clara (LC) 62. 29 Ao longo da Crónica, Salimbene faz muitas referências aos irmãos Henrique Pisano e Vita de Lucca, cantores e compositores (p 262-267).

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da Marca de Ancona, que era já um velho. Este ordenou a frei Tomás de Celano, autor da primeira Legenda de São Francisco, que escrevesse uma segunda, porque estava de posse de muitas notícias que não tinham sido recolhidas na primeira. E frei Tomás escreveu um belíssimo livro sobre os milagres e a vida do bem-aventurado Francisco que titulou de ―Memoriale beati Francisci in desiderio animae”30. Depois, frei Boaventura, ministro geral da Ordem, redigiu uma só obra, esplendidamente ordenada31. Mas faltam ainda muitas coisas que ficaram por escrever. Na verdade, o Senhor continua a operar milagres por meio do seu servo Francisco em várias partes do mundo. Frei Crescêncio foi convocado pelo papa Inocêncio IV para o Concílio que havia de depor Frederico, mediante letras especiais que eu próprio vi; mas desculpou-se com a avançada idade e enviou em seu lugar frei João de Parma, homem santo e culto, que lhe sucedeu depois no governo da Ordem (p.254). Os companheiros de São Francisco e os demais irmãos da primeira geração 16. Enquanto eu atravessava Marca de Ancona para me dirigir à Toscana, aonde fora destinado, ao passar por Città di Castello encontrei num ermitério um irmão nobre, já frade há muito tempo, cheio de dias e de méritos, que tivera no mundo quatro filhos cavaleiros. Este foi o último irmão recebido na Ordem por São Francisco e por ele vestido, como o próprio me confessou32. Ao saber que me chamava Ognibene, surpreendeu-se e disse-me: ―Filho, ninguém é bom senão Deus. De hoje em diante o teu nome será frei Salimbene, porque fizeste uma boa subida ————— 30 Foi uma decisão tomada no Capítulo geral de Génova de 1244. Assim apareceu a Vita Secunda de Celano, composta com os dados recolhidos por vários irmãos. 31 Trata-se da Legenda Maior de S. Boaventura, aprovada no Capítulo Geral de Pisa em Maio de 1263. 32 Infelizmente, não se conhece o nome deste irmão.

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ao entrar numa religião santa33. E eu enchi-me de alegria, por saber das boas razões que me tinha dado e por me ver assinalado com o nome de um homem tão santo. No entanto, não me foi dado o nome que desejava: na verdade, teria preferido chamar-me Dionísio, quer por reverência ao grande doutor que foi discípulo do apóstolo Paulo, quer sobretudo por ter nascido no dia da sua festa. Desta maneira conheci o último irmão que Francisco recebera na Ordem, depois do qual não recebeu nem deu o hábito a nenhum outro mais. Vi também o primeiro, a saber frei Bernardo de Quintaval34, com quem vivi no convento de Sena durante todo um Inverno; e foi para mim um amigo íntimo, além de me ter contado, a mim e aos demais jovens, muitas e grandes obras de Francisco. E muitas outras coisas boas ouvi e aprendi dele. (pp. 53-54). No ano de 1231, dia 14 de Junho, sexta-feira, o beatíssimo padre frei António, oriundo das Espanhas, morreu e passou felizmente às moradas celestes. Aconteceu na cidade de Pádua, onde, por seu intermédio, o Altíssimo tinha exaltado o seu nome, numa pequena cela do convento dos irmãos. Era da Ordem dos irmãos menores e companheiro de São Francisco. Escreverei sobre ele mais extensa e completamente, se me sobrar tempo de vida35 (p.97)… Bem disse frei Gil36 perusino (assim chamado não porque fosse de Perusa, mas porque aí viveu muito tempo e aí morreu: homem de grandes êxtases e verdadeiramente santo, quarto irmão da Ordem, contando também com frei Francisco). Dizia: ―Magna gratia est non habere gratiam‖: é uma grande graça do céu não ter graça nenhuma. Referia-se intencionalmente não às graças infusas, mas às ————— 33 Assim se explica etimologicamente o nome de Salimbene: salio (subir) in bonum. 34 Fr. Bernardo foi o primeiro discípulo de Francisco, Cf. 1C 24; 2C 15; TC 27. Salimbene recorda o primeiro discípulo de Francisco sem fazer nenhuma alusão aos primeiros tempos da Ordem. Parece um assunto que não lhe interessa. Trata-se de recordar momentos da sua própria vida. 35 Na realidade, não volta a escrever sobre Santo António, a não ser uma curta anotação sobre a trasladação do seu corpo para a Basílica de Pádua (p.649). 36 Fr. Gil foi recebido na Ordem em 23 de Abril de 2008. Faleceu em 1262. Cf. 1C 25; TC 1, 4-5; 32; 33; AP 14. 15; LP 55. Cf. MERLO, op. cit., p. 278; VAUCHEZ, op. cit., p.30-31.

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adquiridas, pois por causa delas não são poucos os que levam má vida (p.266). Deus não manifestou qualquer milagre na morte de frei Nicolau de Montefeltro, porque este assim o havia pedido; o mesmo aconteceu com o mui santo Gil de Perusa, que tinha pedido precisamente a Deus que não realizasse nenhum milagre por seu intermédio… Este frei Gil, quarto irmão… foi sepultado numa arca de pedra na igreja dos irmãos em Perusa. Frei Leão, que foi um dos três companheiros particulares de São Francisco, escreveu uma bela vida sobre ele (p. 810)37.

————— 37 Fr. Leão pertenceu ao grupo dos primeiros discípulos de Francisco. Foi ele que Francisco escolheu para seu confidente e secretário. Com Fr. Ângelo, Fr. Rufino e Fr. Bernardo, formavam os quatro pilares do edifício de S. Francisco. Cf. 1C 102, 3.

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III A ORDEM DOS IRMÃOS MENORES A - Prefigurações segundo o abade Joaquim 17. Nestes anos (do pontificado de Inocêncio III), apareceram duas Ordens, uma dos irmãos menores, outra dos irmãos pregadores38. Delas tinha já profetizado o abade Joaquim de Fiore39 interpretando muitas figuras de grande relevo contidas tanto no Antigo como no Novo Testamento: a do corvo e da pomba, porque um era completamente negro e a outra de várias cores; a dos dois anjos enviados pela tardinha para destruir Sodoma; a de Esaú e Jacob, Manassés e Efraim, Moisés e Aarão, Caleb e Josué, os dois exploradores enviados por Josué a Jericó, Elias e Eliseu, João Baptista e Jesus enquanto homem, os dois discípulos de Emaús, Pedro e João, que correm juntos para o sepulcro e, juntos também, sobem ao templo para a hora de Noa… (pp. 28-29). 18. O abade Joaquim, ao falar de Esaú e de Jacob, salientou que a Ordem prefigurada em Esaú meteu-se com as filhas de Heth, ou seja, ————— 38 Salimbene vê a as duas Ordens mendicantes como a realização das profecias de Joaquim de Fiore (+1202). Joaquim de Fiore professou na Ordem dos Cistercienses. Mais tarde fundou a sua própria Ordem que foi aprovada por Clemente III em 1196. Gregório IX, em 1234, chegou a classificar esta Ordem como um dos quatro pilares sobre a qual descansa a Igreja. 39 A teologia da história de Joaquim de Fiore estava construída sobre a ideia da divisão da história em três eras: a era do Pai (o Antigo testamento); a era do Filho (o Novo Testamento); a era do Espírito que, segundo alguns adeptos, se inaugurava com Francisco e seu movimento. A aplicação das profecias de Joaquim de Fiore à vida de S. Francisco teve em Fr. João de Parma, Ministro geral de 1247 a 1257, um dos adeptos mais fervorosos, como é aliás assinalado por Salimbene. Nos fins do século XIII a visão de Jaquim de Fiore teve grande aceitação no ramo dos espirituais. As obras mais representativas desta época são: Arbor vitae crucifixae Jesu de Ubertino de Casale (1259-1325; Chronicon seu historia septem tribulationum Ordinis Minorum de Ângelo Clareno (1260-1337. Também se nota a influência de Joaquim de Fiore na obra do grande pensador e teólogo franciscano Pedro de Olivi (1248-1298). Cf. FELD, op. cit p.48-49; 490-493; MERLO op. cit. p. 182-185. 261-308;VAUCHEZ, op. cit. p. 297.

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com as ciências mundanas, como as de Aristóteles e de outros filósofos. E isto é, nem mais nem menos, a Ordem dos frades pregadores, também prefigurada no corvo, pois são negros não tanto pelo pecado como pelo hábito que vestem. Mas Jacob, homem simples, morava na tenda (Gn 25,27). Esta foi a Ordem dos irmãos menores que, no princípio, apenas apareceu no mundo, logo se consagrou à oração e ao amor da contemplação40. Não é também sem um significado misterioso tudo quanto se diz em João (dos dois apóstolos que correm para o sepulcro): “Corriam juntos…‖ (Jo 20,4). Isto é, as duas Ordens começaram ao mesmo tempo e sob o mesmo papa Inocêncio III. De facto, no ano X do pontificado de Inocêncio III, que corresponde ao ano de 1207, o bem-aventurado Francisco deu início à Ordem dos irmãos menores. E a frase que se segue: ―Corriam os dois juntamente, mas o outro discípulo antecipou-se e chegou primeiro ao sepulcro, mas não entrou” (Jo 20, 4,5), quer dizer que a Ordem dos frades menores apareceu antes no mundo, no ano anteriormente indicado. O bem-aventurado Domingos fundou a Ordem dos irmãos pregadores no ano 1216, no primeiro ano do pontificado de Honório III, e viveu nela cinco anos e meio, mas a sua canonização fez-se esperar 12 anos; o seu corpo é tido em grande veneração em Bolonha, onde repousa. Por sua vez, o bem-aventurado Francisco viveu na sua Ordem 20 anos completos, e o seu corpo é tido em grande veneração em Assis, onde está sepultado. Morreu no ano de 1226, a 4 de Outubro, num sábado, ao entardecer, e foi sepultado num domingo. A canonização do bem-aventurado Francisco foi levada a cabo pelo papa Gregório IX, no dia 16 de Julho do ano de 1228, e a trasladação do seu corpo foi realizada em 25 de Maio de 1230. O bem-aventurado Domingos morreu antes, em 1221, a 6 de Agosto, sendo papa Honório III. Diz ainda o abade Joaquim, a propósito destas duas Ordens, que tinham sido prefiguradas em Bernabé e Paulo, como também nos dois testemunhos do capítulo XI do Apocalipse. E muitas outras coisas parecidas (pp. 29-30). ————— 40 Seguindo o mesmo esquema de Joaquim de Fiore, compara a Ordem dos Frades Menores com Jacob, por isso mais dada à oração e contemplação, ao contrário da Ordem dos Pregadores.

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19. Ambas as Ordens, a saber, a dos irmãos menores e a dos pregadores, que levam uma vida santa e estão na posse da doutrina, estão destinadas a transportar consigo a iniquidade que pesa sobre o santuário, como diz o Senhor no livro dos Números, 18: Tu, os teus flihos e a casa de teu pai, sereis responsáveis pelos delitos cometidos contra o santuário…(Nm 18, 1-3). Como já aqui dissemos, é claro que ambas as Ordens devem ter serventes que não se equiparem aos clérigos41. Se lermos atentamente os versículos que se seguem (Nm 18, 4-7) depreenderemos que Gerardino Segalello, com os seus Apóstolos, não se deve intrometer no ofício de ambas as Ordens, porque são propriamente estas duas Ordens as prefiguradas por Jeremias com os nomes de pescadores e caçadores, como luminosamente explicou o abade Joaquim42. Com efeito, diz o Senhor pela boca de Jeremias, 16: Vou mandar pescadores em grande número e eles os pescarão. Mandarei depois numerosos caçadores, que os caçarão por montanhas e colinas… (Jr 16,16) Deixando de lado a interpretação do abade Joaquim, que já não leio há muitos anos43, parece-me que esta última frase, em que se fala dos caçadores, é mais apropriada à Ordem de São Domingos que à de São Francisco; não só porque essa Ordem foi prefigurada em Esaú, que foi caçador e tomou por mulher a uma das filhas de Heth, ou seja, as ciências seculares – como diz Joaquim – mas também porque saiu mais para o exterior (das cidades) à caça das almas, embora também a outra Ordem ————— 41 Esta frase mostra bem o conceito que Salimbene tinha da fraternidade. A sua maneira de pensar estava longe do espírito de fraternidade dos tempos de S. Francisco e do espírito da Regra. Para Salimbene os irmãos não-clérigos são serventes dos outros irmãos, o que contraria o espírito genuíno de S. Francisco. 42 Gerardo de Segallelo foi o fundador da Ordem dos Apostólicos que Salimbene critica asperamente, considerando que não têm alguma utilidade (non laborant ut rustici, non pugnant ut milites, non evangelizant ut clerici), ao contrário dos Frades Menores e dos Dominicanos (Salimbene p. 369-428). Cf. MERLO, op. cit., p. 206-208. 43 Alguém um dia apelidou Salimbene de joaquimita, como mais à frente se refere, e ele respondeu: ―Dizes a verdade. Mas depois da morte de Frederico, que foi imperador, já depois do ano de 1260 (o ano de 1260 seria na perspectiva escatológica de joaquimita o início da terceira época histórica que começava depois de passar o anti-Cristo, que era o próprio imperador) abandonei totalmente aquela doutrina, e só acredito no que vejo‖ (p. 441).

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tenha feito a mesma coisa, especialmente nas regiões ultramontanas. De facto, em Itália, (os irmãos menores) desculparam-se de não saírem das cidades dizendo que os cavaleiros, os poderosos e os nobres estão nas cidades, ao passo que é nas regiões e nas aldeias que estão os ermitérios, onde habitam os irmãos, e bastam para as necessidades dos seculares (pp. 419-420). 20. Na sua exposição sobre o livro de Jeremias, o abade Joaquim diz dos irmãos menores e dos pregadores: ―Ambas as Ordens nasceram na Igreja com simplicidade e humildade, mas com o correr do tempo censuraram com dureza e acusaram a prostituta de Babilónia‖… E diz ainda, a seu respeito: ―Parece-me que uma delas apanha indistintamente os cachos da terra, incorporando na Igreja clérigos e leigos, enquanto a outra escolhe apenas as primícias dos clérigos‖ (p.933). B - Origem e transformação institucional da Ordem Abusos e desmandos imputados a Frei Elias. 21. Começa o Livro do prelado, que compus a propósito de frei Elias, e contém muitas coisas boas e úteis44. No ano de 1238, indicção XI, eu, frei Salimbene de Adam, da cidade de Parma, entrei na Ordem dos irmãos menores. Era o dia 4 de Fevereiro, festa de São Gilberto. Fui aceite na vigília da festa de santa Ágata, na mesma cidade e pelo mesmo ministro geral, frei Elias. Estava este de viagem para Cremona, como emissário do papa Gregório IX junto do imperador, por ser amigo particular de ambos. Era um embaixador deveras oportuno, muito embora, como diz São Gregório, ― o ânimo de quem já está irado se torne pior quando lhe é enviada uma pessoa que, ao discursar, desagrada aos demais‖. Estava ————— 44 Refere-se a um tratado inserido na Crónica, assim definido por Salimbene: ―Todo este tratado, que diz respeito a Fr. Elias, se pode intitular Liber Prelato. Nele são enumeradas as culpas de Fr. Elias e dos maus prelados e do que ocorreu com os bons prelados, uma vez que, postas umas ao lado das outras, as atitudes contrárias se eliminam mutuamente‖ (p. 230). Na edição de Scalia, vai da página 136 a 239. Recolhemos uma grande quantidade de extractos, uma vez que se trata de acontecimentos marcantes da história da Ordem dos Frades Menores.

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também presente frei Gerardo de Módena45, que fez de intermediário para que eu fosse recebido, e foi escutado. O podestà de Parma, Gerardo de Correggio, chamado de Denti por ter dentes grossos, veio em pessoa com alguns cavaleiros ao convento dos irmãos para visitar frei Elias. Estava este na sala onde comem os hóspedes, sentado num leito com almofadas, uma grande lareira à sua frente e, na cabeça, um gorro arménio. Nem sequer se levantou ou se mexeu quando o podestà entrou e o saudou, como vi com os meus próprios olhos. Isto foi considerado por todos uma grande ofensa… (p.136). 22. O pai de frei Elias era de Castel de’ Britti, diocese de Bolonha; a mãe, de Assis. Antes de ser frade, chamava-se Bombarone; confeccionava colchões e ensinava os meninos de Assis a ler o saltério. Ao entrar na Ordem dos irmãos menores tomou o nome de Elias, e foi duas vezes ministro geral. Gozava dos favores do imperador e do Papa. Mas depois o Senhor humilhou-o, segundo a palavra da Escritura: A este ele abaixa, a outro eleva (Sl 74,8). E isto aconteceu no ano seguinte, como diremos adiante, quando foi dispensado do cargo no Capítulo geral celebrado na presença do papa Gregório IX46. Bem o merecia, aliás, devido às muitas faltas que cometeu. Mas comecemos pela vilania de que já falámos (pp. 136-139). É esta a primeira imputação. … Frei Elias tinha o costume de falar por circunlóquios. Quando o podestà lhe perguntou para onde se dirigia e que assuntos lá o levavam, respondeu que se sentia atraído e impelido ao mesmo tempo: atraído pelo imperador e impelido pelo Papa que o enviava47. O que equivalia a ————— 45 Fr. Gerardo de Módena foi guardião de Rieti. Cf. Lp 29; EP 111. Era um dos animadores do movimento dos Aleluia e fez parte do grupo de irmãos que o Capítulo Geral de 1230 de Assis mandou a Gregório IX, pedindo que se pronunciasse sobre a validade jurídica do Testamento. A solução foi dada pelo Papa com a Bula Quo elongati. Cf. MERLO, op. cit. P. 119. 132. 157; VAUCHEZ, op. cit., 272-273. 46 Foi no capítulo de Roma de 1239 que se elegeu Fr. Alberto de Pisa para Ministro Geral. 47 Tratava-se do imperador Frederico II de Hohenstaufen, eleito imperador dos alemães em 1211. Por herança da família, reinava também na Itália do norte e na Sicília. Em 1228 invadiu os territórios pontifícios, obrigando Gregório IX a sair de Roma e refugiar-se em Rieti. Só regressou a Roma em 1230. Cf. 1C 122. Ao fazer-se

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dizer que ia de um amigo a outro. A resposta foi considerada muito sábia pelos ouvintes (p.140). Aceitação de pessoas inúteis 23. A segunda imputação feita a frei Elias foi ter admitido à Ordem muitas pessoas inúteis. Eu vivi dois anos no convento de Sena e havia ali 25 irmãos leigos; estive em Pisa 4 anos e havia lá uns 30. Mas talvez o Senhor tenha querido isto por muitas razões48. Antes de mais, porque quando se edificam palácios, igrejas ou outras construções, colocam-se nos fundamentos pedras por polir; depois, quando os fundamentos começam a aflorar da terra, dispõem-se pedras talhadas e belas para dar esplendor ao edifício. Bem se aplica à Ordem de São Francisco tudo o que o Senhor promete à sua Igreja militante e triunfante, segundo diz Isaías no capítulo 54: Infeliz, sacudida pela tempestade, desconsolada: eis que te vou edificar sobre uma pedra de jaspe, sobre alicerces de safira. Farei as tuas ameias de rubis, as tuas portas de cristal e toda uma muralha de pedras preciosas. Todos os teus filhos serão instruídos pelo Senhor e gozarão de uma grande paz. Serás fundada sobre a justiça (Is 54,11-14). A segunda razão é que o bem-aventurado Francisco quis imitar e seguir até ao fim o Filho de Deus… E o Senhor quis escolher e chamar os pobres para que não se pudesse atribuir aos nobres e poderosos, aos sábios e aos ricos, aquilo que ele estava para cumprir. A terceira razão é porque assim mesmo foi revelado numa visão ao bem-aventurado Francisco. Diz-se, com efeito, no capítulo III da sua Legenda49: ―Certo dia, na solidão, pôs-se a repassar pela mente e a deplo————— coroar rei de Jerusalém e do Santo Sepulcro, o que foi visto como profanação, foi excomungado por Gregório IX. Para os joaquimitas era a figuração da Besta do Apocalipse, ao contrário de Francisco que era visto como ―o novo Enoc‖. Cf. VAUCHEZ op. cit., p. 249-251. 48 Quando Salimbene escreve a sua Crónica, já a Ordem dos Frades Menores tinha um rosto clerical. O autor aproveita este facto para acusar Fr. Elias de ter admitido demasiados irmãos leigos, contrariando esta evolução e atribuindo-lhe intenções de domínio. Esta visão de Salimbene contraria a realidade da primeira comunidade de Francisco, que não era clerical. 49 Cf. LM 3. 6

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rar com amargura os anos passados. Mas logo se sentiu cheio da alegria do Espírito Santo, com a certeza de que os seus pecados tinham sido completamente perdoados…‖ (pp. 141-143). A quarta razão é que isto mesmo tinha sido revelado ao abade Joaquim, o qual, falando das duas Ordens futuras, diz: ―Parece-me que a Ordem mais humilde (minor) recolhe os cachos da terra, porque introduzirá e incorporará na Igreja a clérigos e leigos; a outra Ordem arrolará sobretudo os clérigos‖. Se alguém perguntasse: que falta cometeu frei Elias ao aceitar irmãos leigos, se, afinal, cumpria o que tinha sido estabelecido pelo Senhor eu responderia: O que os homens fazem deve ser julgado pela intenção que os anima. Na realidade, a paixão de Cristo foi uma obra boa, óptima mesmo, porque por ela fomos salvos e libertos; mas foi algo de ímpio para os judeus que a executaram e depois não quiseram crer em Cristo morto. Da mesma maneira, se frei Elias acolhia os leigos em grande número com a intenção de poder dominar mais facilmente por seu intermédio, e para que, uma vez aceites, lhe enchessem as mãos levando-lhe dinheiro, devemos dizer claramente que era justo que, por estes motivos, fosse deposto de ministro geral… (pp.143-144). Má governação 24. A terceira imputação assacada a frei Elias foi ter promovido aos cargos da Ordem pessoas que não eram dignas. Estabeleceu como guardiães, custódios e ministros a irmãos leigos, coisa verdadeiramente absurda, tanto mais que havia na Ordem abundância de bons clérigos… (p.144). A quarta imputação foi nunca se terem feito constituições gerais na Ordem durante todo o seu governo, quando, afinal, é por meio delas que se incentiva a observância da Regra, se vive uniformemente e se realizam tantas coisas boas. Por isso se aplica bem a este facto aquela observação que se repete três vezes no livro dos Juízes, no seu último capítulo: Nesse tempo não havia rei (quer dizer, não havia lei) em Israel e cada qual fazia o que lhe apetecia (Jz 21,25); porque no tempo de três ministros gerais não houve constituições gerais, ou seja, sob o bem-aventurado Francisco, João Parente e Elias, que governou duas vezes e duas vezes prejudicou a Ordem.

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De facto, governando eles, muitos irmãos leigos usavam a tonsura quando nem sequer sabiam escrever; alguns moravam nas cidades completamente encerrados num ermitério próximo da igreja dos irmãos e tinham uma janelinha na parede por onde conversavam com mulheres, embora fossem leigos inaptos para ouvir confissões e dar conselhos; … outros estavam sozinhos nos hospitais, ou seja, sem o irmão acompanhante. Vi inclusivamente quem usava sempre uma longa barba como os arménios e os gregos. Outros tinham como cíngulo não o cordão comum, mas uma corda berrante, feita de fios de esparto retorcidos de maneira caprichosa, dando-se por ditoso quem conseguisse ser mais inventivo… Seria demasiado longo recordar todas as extravagâncias e abusos que vi cometer; talvez me faltasse tempo ou não me chegasse o papel, ou acabaria por dar aos leitores ocasião de dissipação e não de edificação. (pp. 144-145). Os irmãos leigos 25. Se algum irmão leigo via um jovem a falar latim, censurava-o, dizendo consigo mesmo: ―Miserável que sou! Queres abandonar a santa simplicidade trocando-a pela sabedoria que este tem das sagradas Escrituras?‖ E respondia eu próprio a mim mesmo, desta maneira: ―A santa rusticidade apenas aproveita a si mesma, pois tanto edifica a Igreja de Cristo pela sua vida, quanto a prejudica se não souber resistir aos que a destroem!‖. Na verdade, um asno desejaria que todas as coisas que vê fossem asnos! … Naquele tempo, os leigos tinham a precedência sobre os sacerdotes, e nalguns ermitérios, onde todos eram leigos, excepto um sacerdote ou um estudante, queriam que o sacerdote também marcasse presença na cozinha. Ora aconteceu que o turno do sacerdote calhou a um domingo. Entrando na cozinha, fechou a porta cuidadosamente e começou a cozinhar as berças da maneira que sabia. Entretanto, porém, chegaram uns seculares franceses que pediram insistentemente a Missa e não havia quem lha celebrasse. Correram os irmãos a toda a pressa a bater à porta da cozinha, insistindo para que o sacerdote a fosse celebrar. Ele, porém, respondeu: ―Ide vós e cantai a Missa, que eu faço a cozinha que vós não quereis fazer!‖ Deste modo, foram cobertos de vergonha, por se verem desacreditados… Assim, merecidamente, com o correr do tempo

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foram sendo reduzidos a bem pouca coisa, chegando quase a ser proibido aceitá-los, pelo facto de não terem sabido compreender a honra que se lhes tributava, e porque a Ordem dos irmãos menores não tinha necessidade de tão grande número de irmãos leigos…Na realidade, andavam sempre a maquinar insídias contra nós (clérigos). Recordo que, no convento de Pisa, queriam apresentar ao Capítulo esta proposta: sempre que se aceitasse um clérigo, se aceitasse também um leigo. Mas não foram escutados e muito menos atendidos, por sumamente inconvenientes. Devo dizer, no entanto, que no tempo em que fui aceite, encontrei na Ordem muitos homens de grande santidade, oração, devoção, contemplação e vasta cultura. Porque esta única coisa fez frei Elias bem feita: promoveu o estudo da teologia na Ordem50. Quando nela entrei, tinha eu trinta e um anos de vida; e vi o primeiro irmão depois do bem-aventurado Francisco, assim como outros da primeira geração…. (pp. 145-147). Despotismo 26. A quinta imputação foi nunca ter querido visitar pessoalmente a Ordem, residindo sempre em Assis ou em certo convento que mandara construir na diocese de Arezzo, um convento belíssimo, ameno e agradável, que ainda hoje se chama Celle di Cortona… A sexta foi ter amargurado e desprezado os ministros provinciais sempre que não satisfaziam os seus compromissos, deixando de lhe enviar tributos e donativos… Mantinha-os tão duramente sob a sua vara, que lhes inspirava um terror semelhante à do junco quando açoitado pela água, ou da calhandra, que toda treme quando perseguida pelo gavião. Nem é para estranhar, de resto, porque, como se diz no livro I dos Reis, 25, ele era filho de Belial, com quem ninguém consegue falar. Efectivamente, ninguém ousava dizer-lhe a verdade ou censurar-lhe a vida e as obras perversas, excepto frei Agostinho de Recanati e frei Boaventura de Iseo. Essa a razão porque cobria levianamente de desprezo os ministros que eram acusados de falsidade pelos cúmplices que tinha espalhados ————— 50 O autor como que se contradiz. Por um lado condena Fr. Elias por promover os irmãos leigos, por outro, reconhece que foi ele, também irmão leigo, a promover os estudos.

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por todas as províncias da Ordem. Refiro-me a certos irmãos leigos, cheios de malícia, ronhosos e obstinados… Destituía-os do cargo sem culpa alguma e privava-os dos livros e do direito de pregar e confessar. A alguns chegou a enviar-lhes o capuz comprido (caparão) e a mandá-los girar de um lado para outro… Resumindo, no tempo de frei Elias os ministros eram submetidos a estas três desgraças: eram caluniados, submetidos a julgamentos violentos e injustos, e viam perturbada a justiça nas suas províncias… Quanto à terceira desgraça, é coisa notória, e eu próprio o vi com os meus olhos, que Elias colocava em cada província um visitador que aí permanecia todo um ano e percorria a província como se fosse o ministro, chegando mesmo a meter-se, a seu bel-prazer, em certos conventos com o companheiro durante 25 dias ou mesmo um mês, ou pouco menos. E não esqueçamos, de resto, que as províncias eram então mais pequenas do que hoje. Quem apresentasse queixa contra o seu ministro podia fazê-lo e era ouvido por estes visitadores. E aquilo que o ministro ordenasse para a sua província, podia o visitador anulá-lo, pô-lo de lado ou acrescentar o que entendesse… E o que é mais grave ainda: Elias enviava visitadores que acabavam por ser mais cobradores do que correctores, pois pressionavam as províncias e seus ministros a desembolsarem tributos e dons51… Foi recorrendo a este processo que os ministros provinciais mandaram fundir nessa altura, a expensas suas, perto de Assis, um sino para a igreja de São Francisco, grande, belo e sonoro, que eu próprio vi; o qual, juntamente com os outros cinco sinos enchiam todo o vale de admiráveis harmonias…‖52 (pp. 147-151). Destituição de frei Elias 27. Até que, por fim, a Ordem dos irmãos menores fez chegar a sua voz ao papa Gregório IX, porque frei Elias, na sua perversidade, submetia a todos a múltiplos vexames. Escutando este clamor da Ordem, ————— 51 Fr. Elias procurava por todas as formas recolher em todas as províncias da Ordem o dinheiro suficiente para acabar as obras da Basílica de S. Francisco. Sobre os visitadores cf. Crónica de Giano (61-63); Eccleston (47-52). 52 Nas pp. 151-1519), recorda o ―peixe precioso‖ trazido da Hungria e a ―taça de ouro‖ oferecida pelo rei da Hungria para colocar junto da cabeça de S. Francisco.

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destituiu-o e quis que se procedesse prontamente a uma nova eleição… O papa Gregório destituiu-o para que não fosse ministro geral, pois era um grande demolidor da Ordem contra a vontade dos ministros e custódios, a quem, segundo a Regra, compete fazer a eleição (pp. 157-159)53. Uma vida de bispo e de príncipe 28. A sétima imputação que lhe fizeram foi a de querer viver magnificamente, entre comodidades e luxos. Tinha palafréns anafados e robustos e andava sempre a cavalo54, que mais não fosse para ir de uma igreja a outra, situada apenas a meia milha, indo contra o preceito da Regra… Tinha também jovens seculares como pajens, à maneira dos bispos. Vestidos com roupas de cores berrantes, assistiam-no e serviam-no em tudo. Raras vezes comia no convento com os demais irmãos, mas no quarto, sozinho. Tinha também cozinheiro particular… e uma família especial de 12 ou 14 irmãos que tinha consigo no convento de Celle… Do grupo de frei Elias era um tal João, chamado de Lodi55, irmão leigo, duro e violento, torcionário e verdugo da pior espécie, o qual, por ordem de Elias, dava disciplina aos irmãos sem a mínima piedade… (pp. 231-232). Tentativa extrema para evitar a destituição 29. A oitava imputação feita a frei Elias foi ter querido submeter a Ordem pela violência. Para lograr este intento, recorreu a muitos ardis, o primeiro das quais foi o de mudar frequentemente os ministros, não sucedesse que, criando eles demasiadas raízes, se levantassem com ————— 53 Fr. Elias foi destituído no capítulo realizado em Roma em 1239, onde foi eleito para Ministro geral Fr. Alberto de Pisa. Cf. Giano nº 65-66; Eccleston, nº 79-82. 54 Eccleston (79-80) refere que Elias se defendeu da acusação de andar a cavalo, alegando que estava dispensado por razões de saúde, o que foi aliás reconhecido por Fr. Haymon, que, no entanto, o acusava de ter um palafrém para se deslocar 55 Conhecido como João de Florença. Foi ministro em Florença (1C 48, 6). Também era conhecido como pugilista de Florença, a quem se pedia para castigar alguns frades (1C 182). Na descrição do frade perfeito, aparece como ―Fr. João dos Louvores‖. Foi o maior atleta entre os homens do seu tempo (EP 85).

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maior força contra ele; o segundo foi escolher como ministros os irmãos que tinha por seus amigos; a terceira a de não celebrar Capítulos gerais senão em forma parcial, ou seja, só com irmãos de aquém dos Alpes e não convocando nunca os ultramontanos, com medo de ser destituído. Quando aprouve a Deus, de quem provém todo o bem, estes e aqueles reuniram-se e depuseram-no, de modo que se podia aplicar neste caso aquilo de Jeremias: Clamei pelos meus amantes e eles iludiram-me ( Lm 1,19). Para que se efectuasse esta reunião de todos os ministros no Capítulo geral para depor frei Elias, muito se esmerou frei Arnolfo56, inglês, zelador e promotor da Ordem, que nesse tempo era penitenciário na cúria do papa Gregório IX. A nona imputação foi esta: tendo frei Elias sabido que se projectava esta reunião dos ministros para o deporem, expediu ―obedienciais‖ a todos os irmãos leigos mais robustos e que considerava seus amigos, nas quais lhes pedia que tudo fizessem para não faltar ao Capítulo. Esperava, na realidade, ter uma boa defesa nos seus cacetes. Mas frei Arnolfo veio a saber e ordenou, com a autoridade do papa Gregório, que só se apresentassem ao Capítulo geral os irmãos que tivessem o direito e o dever com base na Regra, com companheiros idóneos e prudentes, e mandou anular todas as obediências dirigidas aos leigos por frei Elias. O mesmo Papa interveio no Capítulo e ouviu o parecer dos irmãos a respeito da destituição de Elias e a eleição de frei Alberto de Pisa como seu sucessor no generalato. Nesse Capítulo foi redigida também uma grande quantidade de constituições, mas bastante desordenadamente. Mais tarde, foram ordenadas por frei Boaventura, ministro geral, pouco acrescentando ele da sua parte, mas explicitou em alguns pontos as penitências a aplicar. Nesse mesmo ano houve um enormíssimo eclipse de sol, como observei com os meus próprios olhos. (pp. 232-233). Obstinação de frei Elias 30. A décima imputação foi não ter aceitado com humildade e paciência a sua situação de invalidez declarada, preferindo bandear-se em tudo com o imperador Frederico, que fora excomungado por Gregó————— 56 Sobre Fr. Arnolfo cf. Eccleston nº 79.

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rio IX, e cavalgando e permanecendo a seu lado juntamente com alguns irmãos do seu grupo, com o hábito da Ordem. Isto redundou em escândalo para o Papa, para a Igreja e para a Ordem, sobretudo porque o imperador já estava excomungado nessa altura e assediava as cidades de Faença e Ravena57. O miserável estava sempre no meio do exército e apoiava o imperador com o seu favor e os seus conselhos. Foi ocasião de escândalo até para os incultos e demais seculares; e com efeito, a plebe, os jovens e as jovens, quando encontravam os irmãos menores nos caminhos da Toscana – como eu mesmo ouvi centenas de vezes –, caçoavam deste modo: Hora atorno fratt´Helya, che pres´ha la mala via. (De volta está frei Elias, mas, ai, que tristes voltas que mal andadas vias!...) Os bons irmãos andavam cheios de mortal tristeza e revolta quando ouviam tais coisas. Parecia, na verdade, que se tinha realizado aquele dito do Senhor: Sois o sal da terra! Ora se o sal se corromper, com que se há-de salgar? Não serve para nada, senão para ser lançado fora e ser pisado pelos homens (Mt 5,13). Reagindo à provocação, o papa Gregório lançou a excomunhão contra Elias (pp. 234-235)58. ————— 57 Não parece correcta a informação de Salimbene. O assédio a Ravena foi de 15 a 22 de Agosto de 1249 e o de Faenza de 26 de Agosto de 1240 a 14 de Abril de 1241. O que parece é que, por esta altura, já Elias se devia ter juntado ao imperador Frederico II que, entretanto, tinha sido excomungado pelo Papa em 29 de Março de 1239. Elias tornou-se um homem de confiança do imperador. Em 1243 foi enviado em missão diplomática ao Oriente, à corte de Balduino II, e de João Vatácio. Sobre Fr. Elias, cf. FELD, op, cit., 353-400; MERLO, op. cit., 168-169. 58 A excomunhão aconteceu por duas razões. Primeiro por visitar conventos de religiosas, mormente S. Damião, sem pedir licença ao Ministro geral. Cf. Eccleston (83). Esta acusação revela que Fr. Elias, mesmo depois de ser deposto de Ministro geral, continuou a ter a confiança de Santa Clara. Na segunda carta de Clara a Inês de

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A undécima imputação foi a prática da alquimia… (235). A duodécima foi que, uma vez destituído e enquanto vagabundeava com o Imperador, se aproximou um dia de um convento de irmãos menores e, reunindo-os em Capítulo, começou a querer provar a sua inocência e a injustiça de quantos o tinham destituído… Mas alguém lhe respondeu com muita firmeza… Então frei Elias perguntou-lhe: ―Quem te recebeu à Ordem?‖. E o irmão respondeu: ―Não foste tu, que abandonaste a tua religião e vagueias pelo mundo, e por isso o povo escarnece de ti… Segue o teu caminho, irmã mosca!‖ Ao ouvir tais coisas, Elias calou-se e retirou-se confuso. Quem respondeu a frei Elias com esta firmeza foi frei Boaventura de Forli, como eu próprio ouvi de seus lábios (pp. 235-237)59. Recusada a reconciliação 31. A décima terceira imputação foi nunca ter querido reconciliar-se com a sua Ordem, antes permaneceu na sua obstinação até ao fim. Um dia, o ministro geral, frei João de Parma, enviou até junto dele frei Gerardo de Módena, que era um irmão dos primeiros tempos e seu amigo íntimo, para que lhe pedisse por amor de Deus e de São Francisco, pelo bem de sua alma e para bom exemplo de todos, que voltasse à sua religião; e ele o trataria com toda a delicadeza e misericórdia. Mas Elias respondeu a frei Gerardo: ―Ouvi dizer tanto bem deste venerado padre João de Parma, que não recusarei lançar-me a seus pés confessando a minha culpa e confiando na sua bondade. Mas quem me preocupa são os ministros provinciais, a quem ofendi, pois bem podem enganar-me atirando-me preso para um cárcere e alimentando-me com pão duro e ————— Praga, escrita entre 1235-1238, Elias era apresentado a Santa Inês de Praga como o único conselheiro a quem devia seguir. A segunda razão que levou à excomunhão tinha a ver com as suas relações com o Imperador. Esteve com o imperador durante 5 anos. Seguia-o, como contam as crónicas, em seu cavalo, vestindo o hábito de frade menor. Cf. MERLO, op. cit., p. 169. 59 A partir de 1245 encontramos Fr. Elias em Celle de Cortona empenhado na construção de uma igreja em honra de S. Francisco, apesar de ter sido excomungado duas vezes, em 1240 por Gregório IX e em 1244 por Inocência IV. Só este facto demonstra como Fr. Elias era popular entre os seus e gozou até ao fim da vida de muito boa reputação em vários sectores da sociedade, mormente na sua cidade natal.

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pouca água (cfr. Is. 30,20). Além disso, sabendo que ofendi a Cúria romana, estou certo de que o cardeal protector da Ordem se meteria logo no assunto para me dar a penitência. Tão-pouco quero perder as boas graças do Imperador, de que desfruto neste momento. Frei Gerardo demorou-se nas Celle um dia inteiro… e uma noite… mas tudo foi em vão. Apenas amanheceu, despediu-se, partiu com o companheiro, e contou ao geral tudo quanto tinha visto e ouvido (pp. 237-238)60. Só a Deus o juízo 32. Frei Elias não tardou a morrer61. Tinha sido excomungado pelo papa Gregório IX. Se foi absolvido e se porventura preparou bem a alma, ele agora o saberá… (pp. 238). O que deixo escrito sobre frei Elias talvez tenha bastado. Era nossa intenção tratar dos ministros gerais da Ordem de São Francisco no seu devido lugar, mas frei Elias, que foi um deles e por quem fui recebido na Ordem, oferecia matéria histórica demasiado abundante. Por tal motivo quis desembaraçar-me dela já, e assim, desonerado deste encargo, prosseguirei mais facilmente o resto da história… (p 239).

————— 60 Ao contrário do que Salimbene pretende insinuar, Fr. Elias morreu totalmente reconciliado com a Igreja e com a Ordem, comungando pouco antes de morrer. Cf. Eccleston 33, onde se diz que Elias, embora tarde, se arrependeu. Em Maio de 1253 foi feito um inquérito por Fr. Valascus, a mandado de Inocêncio IV, sobre os últimos acontecimentos referentes a Fr. Elias. Esse inquérito conservou-se até hoje e confirma estes dados. Cf. LEMPP, E. Frère Élie de Cortone, Étude biographique, Paris, 1901 citado em FELD, op. cit., p. 398, nota 174; MERLO, op. cit. p. 169. 61 Fr. Elias faleceu em Abril de 1253 e foi sepultado por detrás do altar-mor da Igreja de S. Francisco de Cortona. O túmulo foi aberto várias vezes ao longo dos séculos. A última foi em Agosto de 1966. Sujeito a análises médicas e químicas, concluiu-se que o esqueleto é de um homem de 70-80 anos, com 1,65 metros de altura. Isto contraria as informações tendenciosas de Salimbene, que na sua crónica chega a insinuar que o corpo de Fr. Elias foi exumado e lançado a uma lixeira. Cf. FELD, op. cit., p. 398.

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C) Atitudes da Cúria romana e do Clero A proibição de novas Ordens 33. Em 1215, décimo oitavo do seu pontificado, Inocêncio III celebrou um solene Concílio, a que acorreram prelados de todo o mundo. Eu mesmo vi o texto do discurso que o Papa pronunciou naquela ocasião sobre este tema: Desiderio desideravi hoc Pascha, etc (Lc 22,15). Desejei ansiosamente comer esta Páscoa convosco; e li atentamente todos os decretos que foram promulgados. Um deles estabelecia que, de futuro, não voltaria a nascer nenhuma outra Ordem mendicante62. Mas, por negligência dos prelados, esta constituição não foi observada. Pelo contrário, quem quer que se lembre de enfiar um capuz e se ponha a mendigar, logo se gloria de ter fundado uma nova Ordem. Sobreveio então uma grande confusão no mundo, porque os seculares vêem-se sobrecarregados e não há esmolas que cheguem não só para os que se afadigam pela palavra e pelo estudo, como para aqueles a quem o Senhor estabeleceu que vivam do Evangelho (1Co 9,14)… (p.31)63. A aprovação pontifícia 34. Estes são, pois, os pequenos de que fala o Evangelho no capítulo 19 de Mateus: Foram apresentadas a Jesus umas criancinhas para que lhes impusesse as mãos; mas os discípulos repreenderam-nas (Mt 19,13-15) (porque nos primeiros tempos alguns cardeais não viam com ————— 62 Quando se reporta ao Concílio de Lião de 1274, onde foram proibidas algumas ordens religiosas, como os ―Saccati‖ e os Apóstolos, Salimbene recorda o decreto de Inocêncio III: ―Para que não haja muita confusão na Igreja com a demasiada diversidade de Ordens, proibimos firmemente a fundação de novas ordens. Por isso, quem desejar abraçar a vida religiosa, escolha uma das Ordens já aprovadas… ― (p. 713). 63 Numa outra passagem da Crónica, defendendo Salimbene a Ordem dos Frades Menores e a Ordem dos Pregadores, afirma que só têm direito a viver do Evangelho aqueles que não se limitam a pedir esmola, mas se dedicam à pregação e ao estudo, tal como acontece com os Frades Menores. Com estas palavras, Salimbene volta a mostrar pouco apreço pelos irmãos leigos. Constatando a evolução da Ordem, não entende o sentido da menoridade e da pobreza evangélica dos primeiros tempos da Ordem (cf. p. 414).

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bons olhos que nascesse esta Ordem). Mas Jesus disse-lhes (pois foi assim que o Sumo Pontífice, ou seja, Inocêncio III, falou aos cardeais:) ―Deixai as criancinhas e não as impeçais de vir a Mim, pois delas é o reino dos céus”. Estas coisas disse o papa Inocêncio, depois de ter tido uma visão do céu. Por graça divina, tinha visto a basílica de Latrão prestes a cair pela sua excessiva antiguidade, e um homem pobrezinho e desprezível tinha-a sustentado prodigiosamente para que não se desmoronasse64. O evangelista prossegue: Depois de lhes impor as mãos, foi-se dali; porque naquela ocasião o papa Inocêncio III quis que o bem-aventurado Francisco e os doze companheiros que tinha levado consigo para pedir a aprovação da sua Ordem, recebessem a tonsura, confirmou a Regra e a Ordem e conferiu o ofício da pregação. Era o ano de 120765. A partir de então, tanto os cardeais como os papas amaram com todas as veras a Ordem do bem-aventurado Francisco, reconhecendo e verificando com os próprios olhos que os irmãos menores são de grande utilidade para a Igreja e enviados para a salvação (pp. 421-422). Autorizados a confessar 35. Tenha-se em conta que os irmãos menores receberam do papa Gregório IX o privilégio de poderem ouvir de confissão. Frei Boaventura, quando ministro provincial, perguntou ao papa Alexandre IV se era do parecer que os irmãos confessassem, e ele respondeu-lhe: ―Quero mesmo que confessem. Vou contar-te o caso duma fraude horrível… (p.591). Por isso quero firmemente que os irmãos menores, sob minha responsabilidade e licença, ouçam as confissões dos seculares‖ (p.593) … E muito louvavelmente agiu o papa Martinho IV quando concedeu aos irmãos menores o óptimo privilégio de poderem pregar livremente e ouvir as confissões, apesar de se dizer na sua Regra que ―os irmãos não ————— 64 Como Inocêncio III tinha dado aprovação oral à ―forma de vida segundo o santo Evangelho‖ em 1209, a proibição de novas regras não se aplicava à Ordem dos Frades Menores (1C 32-33; TC 48-49). O mesmo não aconteceu com Santa Clara que só nas vésperas de sua morte, em 9 de Agosto de 1253, viu a sua Regra aprovada. A visão que teve Inocêncio III (2C 16-17) conta-se a propósito da vida de S. Francisco e de S. Domingos. Cf. Julião de Espira 21-22. 65 Não foi no ano de 1207, mas no ano de 1209. Cf. Jordão de Giano 2.

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preguem na diocese de um bispo quando este lho tiver proibido‖… (pp.595-596)66. Sobre Inocêncio IV, no começo do seu pontificado 36. O papa Inocêncio IV era um homem muito aberto, como ficou bem patente na declaração que fez da Regra dos irmãos menores e em tantas outras coisas67. Tinha sempre consigo um grande número de irmãos menores e construiu para eles um convento e uma igreja de grande beleza, em Lavagna, numa terra de sua propriedade. Queria que ali vivessem 25 irmãos, deles cuidando no respeitante aos livros e a todas as demais coisas necessárias. Mas os irmãos não quiseram aceitar a oferta e o Papa entregou-a a outros religiosos (p.86). O ofício da pregação. Disputas 37. Mas o clero continua a objectar que usurpámos o ofício da pregação, cabendo-lhes a eles pregar, porque tinham obrigações para com os súbditos e porque eram prelados. Respondendo, diremos que estavam obrigados a fazê-lo quando não havia outros que pregassem melhor do que eles. Mas como se tornassem indignos pela sua péssima vida e por não possuírem a ciência necessária, o Senhor pôs nos seus lugares outros melhores do que eles… (p.596)68. …Mas não crêem nestas coisas aqueles cuja ambição lhes engrossou o coração… São os sacerdotes e os clérigos destes tempos, e não querem que os irmãos menores e os pregadores vivam. E isto é uma grande crueldade, sobretudo porque estes são mais úteis à Igreja do que esses tais, que recebem as benesses e não fazem aquilo por que as recebem… E nem sequer querem que vivamos das esmolas que recolhemos com tanto esforço e rubor. ————— 66 Cf. Eccleston 72-76 67 Inocêncio IV foi papa de 1243 a 1254. Refere-se à declaração Ordinem vestrum publicada em 14 de Novembro de 1245 para clarificar ―dúbia et obscura quae in Regula continentur‖. 68 De maneira geral os Frades Menores eram bem aceites pelos bispos e clero. Cf. Eccleston 30 ss.

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No entanto, há muitos na Ordem, entre os irmãos menores e os pregadores, que, se fossem do clero secular, poderiam ter muito bem as prebendas que eles têm, e bem maiores até, porque nobres, ricos, poderosos, letrados e sábios, poderiam perfeitamente ser presbíteros, arciprestes, cónegos, arcediagos, bispos, arcebispos, porventura patriarcas, cardeais e papas, como eles. Por isso deviam reconhecer que lhes deixámos a eles todas estas coisas no mundo e andamos a mendigar todos os dias, nem possuímos sequer as adegas e celeiros que eles têm em abundância; e, todavia, aguentamos todas as suas fadigas: pregamos, ouvimos as confissões, repartimos bons conselhos, úteis para a salvação… (pp. 605-606). As cartas de Inocêncio IV 38. Depois de os irmãos e dos pregadores terem chegado e realizado tantas coisas boas, a todos manifestas, os sacerdotes e clérigos seculares, movidos pela inveja e malevolência contra estes irmãos, apresentaram queixa ao papa Inocêncio IV, pois já não podiam recolher ofertas durante as suas missas, ―porque estas duas Ordens celebram tão perfeitamente as suas missas, que toda a gente se volta para eles. Pelo que pedimos que se faça justiça‖. O Papa respondeu: ―Visto que alguns celebram de manhã cedo, outros à hora de Tércia, outros imediatamente depois, não vejo a que hora poderiam estes celebrar as suas missas, caso tivesse de vos atender, porque não podem celebrar depois de comer, à hora nona ou quando têm de rezar vésperas; por isso me nego a ouvir-vos‖. Mas o Papa, querendo dar uma certa satisfação aos clérigos que continuavam a molestá-lo com estas coisas e também porque, como já ouvi, tinha concebido uma certa aversão aos frades pregadores e esperava isentar depois os irmãos menores, escreveu cartas contra as duas Ordens, ordenando que, pelo menos nos dias festivos, não abrissem as suas igrejas senão depois da hora de Tércia, para não privar os sacerdotes das paróquias das ofertas dos fiéis. Imediatamente Deus o castigou e começou a sentir-se mal da doença de que veio a morrer… (pp. 607-608).

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Junto de Inocêncio IV moribundo 39. Frei João de Parma, ministro geral, enviou para junto dele a Hugo Capoldo de Placência, que era médico e leitor de teologia na Ordem e vivia com o sobrinho do Papa, o senhor Ottobono, que veio a ser o papa Adriano V, para que suplicasse ao Papa, por amor de Deus e do bem-aventurado Francisco, por sua honra e salvação de todo o povo cristão, que destruísse aquelas cartas. Mas não o escutou, porque Deus o queria deixar morrer, como aconteceu. Inocêncio IV piorou a tal ponto que não sabia dizer outra coisa senão o versículo do Salmo: O ímpeto da tua mão destroça-me. Por causa das suas culpas, castigais o homem (Sl 11-12). E estas últimas palavras continuou a repetir até que morreu; e ficou sobre a palha, nu e abandonado de todos, como é costume dos Pontífices romanos quando lhes chega o último dia. Estavam ali presentes dois irmãos alemães, que disseram ao Papa: ―Na verdade estávamos aqui nesta terra há uns quantos meses para falar contigo sobre as nossas coisas, mas os teus porteiros tinham-nos impedido de entrar para que te pudéssemos ver. Agora já não se preocupam contigo, porque nada têm a esperar. No entanto, lavar-te-emos o corpo, já que, como diz o Eclesiástico, no capítulo 7: ―Nem aos mortos recuses a tua graça (Sir 7,33) Poucos dias depois foi nomeado papa Alexandre IV69, que tinha sido cardeal protector, governador e corrector dos irmãos menores; e logo destruiu aquelas cartas. (pp. 608-609). D) Algumas grandes personagens O grande missionário 40. Quando cheguei ao primeiro convento dos irmãos depois do de Lião, no mesmo dia (ano de 1247) chegou também frei João de Pian Carpino, regressado dos Tártaros, para junto dos quais o tinha enviado o papa Inocêncio IV. Frei João era um homem muito amável, espiritual,

————— 69 Foi Papa de 1254 a 1271.

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letrado e grande orador, perito em muitas coisas, e tinha sido ministro provincial da Ordem70. Mostrou-nos a taça de madeira que levava para o Papa, em cujo fundo estava impressa, não por mão de pintores, mas por virtude dos astros, a imagem de uma belíssima rainha. E mesmo que alguém a partisse em cem bocados, em todos eles continuaria intacta a mesma imagem (p. 297). Contava ele que havia chegado até ao supremo senhor dos Tártaros, após as fadigas de uma viagem interminável, entre perigos sem número, sofrendo fome, frio, calor; e que os Tártaros se chamam verdadeiramente ―Tattari‖, e comem carne de cavalo e bebem leite de burra. Dizia também ter visto entre eles gentes de todas as nações, excepto duas, e só pôde apresentar-se diante do imperador vestido de púrpura, e que tinha sido recebido e tratado com grande cortesia e gentileza. O imperador tinha querido saber quantos dominavam no Ocidente; e ao saber que eram dois, o Papa e o imperador, e que todos recebiam poder destes dois, quis saber quem era o maior. Respondeu que era o Papa, e então apresentou-lhe as cartas do Papa. Imediatamente depois de as mandar ler, disse que lhe entregaria cartas de resposta ao Papa. O mesmo frei João escreveu um volumoso livro sobre os Tártaros e sobre as maravilhas do mundo que ele mesmo tinha visto e dava a ler. Muitas vezes o vi e escutei sempre que instavam com ele para que contasse a história dos Tártaros; e quando os leitores não compreendiam alguma coisa, ele a explicava e espraiava-se sobre ela (p. 298).

————— 70 Referindo-se a João de Pian Carpino, Giano (55-58) diz que ―era de grande estatura e pesado‖ (55). Em 1228 foi eleito Ministro provincial da Província da Saxónia e em 1230 foi Provincial em Espanha. Inocêncio IV enviou-o à corte de Gengis Kan. Saiu de Lião a 16 de Abril de 1245 e no Verão de 1246 chega à corte do imperador mongol. Esta viagem marca uma viragem na Ordem dos Frades Menores: a abertura às missões da Ásia. Foi ele que criou as condições para o estabelecimento da primeira diocese da Ásia, Pequim (Kambalik), em 1308, tendo como primeiro bispo Fr. João de Montecorvino. Baseado nas observações desta viagem, escreveu a Historia Mongolorum que constitui um documento excepcional sobre os povos da Ásia. Depois da viagem foi nomeado arcebispo de Antivari, no Montenegro. Faleceu em 1 de Agosto de 1252.

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Frei João de Parma71 41. Era de estatura mediana, a tender para o baixo, belo e bem formado em todos os membros, são e resistente à fadiga, tanto das viagens como do estudo. Tinha feições angelicais, sempre gracioso e alegre. Era generoso, cortês, caritativo, humilde, bondoso e paciente. Homem de muita devoção e oração, clemente e compassivo, celebrava todos os dias com tal devoção que os assistentes se sentiam cheios de graça. Pregava com tal fervor ao clero e aos irmãos que arrancava lágrimas aos ouvintes, como vi tantas vezes. Eloquentíssimo, jamais tropeçava nas palavras. Era dotado de óptima ciência, pois fora antes um bom gramático e mestre de lógica, e, na Ordem, um grande teólogo e investigador. Leu as Sentenças em Paris e foi leitor durante muitos anos nos conventos de Bolonha e Nápoles. Quando passava por Roma os irmãos insistiam para que pregasse, mesmo na presença dos cardeais, que o apreciavam como um grande filósofo. Era um espelho e um exemplo para todos, porquanto a sua vida era toda honestidade, santidade e pureza de costumes. Era querido por Deus e pelos homens. Também sabia música e cantava muito bem. Velocíssimo e muito claro ao escrever, ditava as suas cartas num estilo elegante e sentencioso. Foi o primeiro geral que se dedicou a visitar as províncias… (pp. 433-434). 42. Por isso, Vatácio, imperador dos gregos, tendo sabido da fama de santidade de frei João de Parma, pediu ao papa Inocêncio IV que lhe enviasse frei João, ministro geral, pois esperava que, por seu intermédio, se pudesse levar os gregos à unidade com Roma. Quando o conheceu, ————— 71 Fr. João de Parma era homem de grande cultura. Antes de entrar para a Ordem tinha leccionado lógica em Parma e mais tarde foi mestre em Paris e Bolonha. Foi eleito Ministro geral em 13 de Junho de 1246, em Lião. Era grande adepto das ideias de Joaquim de Fiore. Salimbene diz na sua Crónica, referindo-se a Fr. João de Parma, que ―maximus erat Joachita‖ (Cf. FELD, op. cit. p. 487, nota 117). Depois de dez anos como Ministro geral, em 2 de Fevereiro de 1257 deu lugar a S. Boaventura, no capítulo de Roma. A exaltação que dele faz Salimbene, mostra quão próximo o próprio estava do joaquinismo. Em 1262 é condenado a um retiro num eremitério. Cf. MERLO, op. cit., p. 169-210.

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Vatácio dedicou-lhe tanto amor que desejou oferecer-lhe uma infinidade de presentes. Mas frei João recusou-os, e isto serviu de grande exemplo para Vatácio. Só conseguiu convencê-lo a aceitar uma espécie de látego que levaria na mão quando atravessasse a Grécia com os companheiros. Frei João tinha-o aceitado convencido de que se tratava dum chicote para fustigar o cavalo… Mas os gregos, quando viam aquele sinal, que era um símbolo imperial, ajoelhavam-se todos diante dele, como fazem os latinos quando é elevado o corpo de Cristo durante a missa, e pagavam-lhe todos os seus gastos e dos companheiros. Assim, frei João voltou para junto do Papa, que o tinha enviado (pp.443-444)72. 43. Quando frei João de Parma era leitor em Nápoles, antes de ser ministro geral, passando uma vez por Bolonha e encontrando-se na hospedaria para comer com o companheiro e outros irmãos que estavam de passagem, entraram alguns irmãos e levantaram-no à força da mesa para o levar a comer na secção dos doentes. Mas ele, vendo que o companheiro se ficava ali e ninguém o convidava, voltou para junto dele e disse: ―Não comerei em mais nenhum outro lado se não com o meu companheiro‖. Este gesto foi tido pelos convidados como pouco delicado, mas para João, pelo contrário, de extraordinária cortesia e total fidelidade. Noutra ocasião, sendo ele geral e querendo repousar um pouco, foi ao convento de Ferrara, onde tinha vivido durante sete anos. Ao observar que eram sempre os mesmos irmãos que se sentavam à mesa com ele, tanto para o almoço como para a ceia, e isto todos os dias, reconheceu que o guardião, frei Guilherme de Bocea, de Parma, fazia acepção de pessoas. Isto incomodou-o muito, segundo aquele dito: ―O homem imprudente desagrada naquilo em que quer agradar‖. Certa tarde, enquanto frei João lavava as mãos para a ceia, o irmão servente perguntou ao guardião: ―A quem devo convidar? O guardião respondeu: ―Chama frei Tiago de Pavia, frei Avanzio, frei Fulano e frei Sicrano‖. Já estes tinham lavado as mãos e encontravam-se agora atrás do geral, que já os tinha visto antes. Divinamente inspirado, cheio de ardor, ————— 72 Sente-se que Salimbene quer apresentar Fr. João de Parma como a antítese de Fr. Elias.

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assim creio, começou ele a dizer em forma de parábola: ―Sim, sim… Chama frei Tiago de Pavia, chama frei Avanzio, chama Fulano, chama Sicrano. Toma para ti dez pedaçosI (1R 11,31). Sempre a mesma cantiga…‖. Ficaram por isso confundidos e cheios de rubor ao ouvirem estas coisas os que tinham sido convidados por Adonias (cfr. 1R 1,41), não sendo menor a confusão do guardião, que disse ao ministro: ―Pai, convidei a estes a acompanhar-te para te honrarem, pois me pareceram os mais dignos‖. Mas o ministro respondeu: ―Porventura não diz a Escritura, em louvor de Deus, que Ele criou o pequeno e o grande, e de todos cuida por igual? (Sb 6,7). E o Senhor: “Deixai vir a mim as criancinhas? (Mt 19,14). São Tiago diz em seguida: Não escolheu Deus os pobres deste mundo? (Tg 2,5); e finalmente o mesmo Senhor diz no capítulo XIV de São Lucas: Quando deres um almoço ou um jantar, não convides os teus amigos, nem os teus irmãos, nem os teus parentes, nem os teus vizinhos ricos; não vão eles também convidar-te por sua vez, retribuindo-te assim. Quando deres um banquete, convida os pobres, etc.” (Lc 14,12-13). Escutei estas palavras porque estava a seu lado. Então o servente perguntou ao superior: ―A quem devo chamar então?‖. Ele respondeu: ―Faz como o ministro te disser‖. E o ministro disse: ―Vai e chama os irmãos pobres do convento, porque este é um ofício pelo qual todos se podem juntar ao ministro‖. O irmão que estava de serviço foi, pois, ao refeitório e disse aos irmãos mais debilitados e mais pobres, que raramente comiam fora do refeitório: ―O ministro geral convida-vos a cear com ele; por isso, da sua parte vos mando que vades imediatamente acompanhá-lo‖. E assim foi feito. Frei João de Parma, ministro geral, queria efectivamente que quando, em ocasiões imprevistas, tivesse de ir a algum convento de irmãos menores, fossem os irmãos mais pobres, todos juntamente, ou ora uns, ora outros, a comer com ele no tempo que demorasse na hospedaria (isto é, enquanto não se dirigisse ao refeitório comum para comer, o que, aliás, sempre fazia após um breve descanso da viagem, no caso de se deter algum tempo em algum lugar), a fim de que a sua vinda fosse para eles motivo de consolação e de alegria…

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Frei João de Parma era uma pessoa acessível a todos, sem particular afeição por ninguém, e era cortês e generoso à mesa, a ponto, no caso de ter vários vinhos bons à sua frente, os mandar servir por igual a todos, ou os vertia num jarro para que todos bebessem dele. E isto era tido por todos como uma cortesia e caridade muito grandes. (pp. 445-447). 44. Mais, frei João de Parma, enquanto ministro geral, mal ouvia a sineta chamar os irmãos a mondar as hortaliças, apressava-se também a trabalhar com os demais irmãos, como eu vi com os meus próprios olhos… Da mesma forma participava no ofício diurno e nocturno, especialmente em vésperas, matinas e na missa; e alguma coisa que lhe pedia o cantor, logo a fazia, quer começando as antífonas, os responsórios e as leituras, quer dizendo a missa conventual. Frei Hugo de Digne,“maximus Ioachita”73 45. Seguidamente, cheguei por mar a Marselha, e de Marselha dirigi-me a Hyeres para ver frei Hugo de Bariola (também chamado de Digne) e, em Itália, frei Hugo de Montpellier. Era um dos eclesiásticos mais cultos do mundo e exímio pregador, querido pelo clero e pelo povo, grandíssimo nas disputas e preparado em todos os campos. Superava a todos, tinha a última palavra em todas as questões, era um brilhante orador e possuía uma voz poderosa, como o ressoar duma trombeta ou dos grandes trovões ou de águas abundantes, como o estrondo duma cascata. Jamais teve uma palavra descontrolada ou insegura. Tinha sempre pronta uma resposta para tudo. Dizia coisas maravilhosas da cúria celestial, ou seja, da glória do paraíso, e coisas terríveis das penas do Inferno. ————— 73 Inocêncio IV depois de ouvir Fr. Hugo de Digne, teria dito: ―Disseram-nos que eras um grande clérigo e um bom homem. Mas também que eras seguidor do abade Joaquim no profetizar e que eras um grande joaquimita‖ (cf. MERLO, op. cit., p. 184). A condenação do joaquinismo só aconteceu depois da publicação da obra Liber introductorius ad aevangelium aeternum, de Fr. Gerardo de Borgo San Donino, em 1254. Em 1255 Alexandre IV, com a Bula Libellum Quendam, tentou pôr freio à expansão das ideias de Joaquim de Fiore (cf. ibidem p. 185). O Comentário à Regra de Hugo de Digne fez com que se tornasse o pai do ramo dos espirituais. Cf. FLOOD, D., Hugh of Digne’s Rule Commentary, Grottaferrata, Roma, 1979.

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Era natural da província da Provença, de estatura média e pele um tanto escura. Era um homem espiritual em sumo grau, tanto que imaginaríamos ver nele um outro Paulo ou um outro Eliseu. O que o Eclesiástico diz de Eliseu no capítulo 48, podemos repetir a seu respeito: Nunca em seus dias temeu príncipe algum, nem ninguém foi mais poderoso do que ele. Nada houve que o pudesse dominar. (Sir 48,12-13). Com efeito, falava com a mesma desenvoltura tanto no consistório diante do Papa e dos cardeais, como com as crianças entretidas em seus jogos, e isto tanto em Lião, como antes, quando a cúria estava em Roma. Todos tremiam quando o escutavam, como o junco na água… (pp. 324-335) Recordo que, quando era jovem e vivia no convento de Sena, na Toscana, frei Hugo, de volta da cúria romana, dizia coisas maravilhosas da glória do paraíso e do desprezo do mundo diante dos irmãos menores e dos pregadores que tinham vindo ao seu encontro para o ver. A qualquer pergunta que lhe fizessem, respondia prontamente. Todos os que o ouviam ficavam pasmados com a sua prudência e as suas respostas (p.336). 47. Frei Hugo preferia viver, e vivia frequentemente, nesta cidade de Hyères. Havia aqui muitos notários e juízes, médicos e outros letrados; nos dias de festa reuniam-se no quarto de frei Hugo para o ouvirem enquanto falava da doutrina do abade Joaquim e ensinava e expunha os mistérios da Escritura e predizia as coisas futuras. Era, na realidade, um notável joaquimita e possuía todas as obras do abade Joaquim escritas em grandes caracteres. Eu mesmo me interessei por esta doutrina, ao ouvir frei Hugo. Na realidade, já a conhecia antes, pois já a tinha ouvido expor, quando vivia em Pisa, a um certo abade da Ordem de Fiore, um velho e santo homem que tinha posto a bom recato todos os seus livros editados por Joaquim no convento de Pisa, com medo de que o imperador Frederico mandasse destruir o seu mosteiro, situado entre Lucca e Pisa, no caminho para a cidade de Luni. Considerava, em verdade, que tinha sido precisamente em Frederico que naquele tempo se tinham cumprido todos os mistérios, pois estava então em aberta rotura com a Igreja. (p.339).

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São Luís de França74 48. Era o rei de França mui senhoril, alto e esbelto, de rosto angelical e gracioso. Acudia à igreja dos irmãos (para o Capítulo) sem fausto real, com hábito de peregrino, de saco ao ombro e bastão em vez dos atavios reais. Não a cavalo, mas a pé; e seguiam-no os seus três irmãos, com porte igualmente humilde… Dir-se-ia um monge, pela devoção, ou um guerreiro valoroso, pelas armas de guerra. Ao entrar na igreja dos irmãos, ajoelhou-se diante do altar, demorando em oração… Depois, em voz alta e clara, disse que ninguém devia entrar na sala capitular senão os cavaleiros com os irmãos, pois lhes queria falar. E quando estávamos reunidos em capítulo, começou o rei a informar-nos sobre as suas necessidades e as do reino, encomendou-se a si mesmo, a sua mãe e a todo o reino, e, ajoelhando-se, implorou as orações e súplicas dos irmãos… Escutadas as palavras de frei João de Parma, o rei agradeceu ao ministro geral e alegrou-se tanto com a sua resposta que quis possuí-la por escrito, em cartas autenticadas com o selo da Ordem. E assim se fez. Nesse dia o rei encarregou-se de todos os gastos, e comeu com os irmãos no seu refeitório… (pp. 319-321). Os irmãos menores, gente desesperada 49. Não queremos passar por alto o seguinte: que os Florentinos não se escandalizam pelo facto de um irmão deixar a Ordem, antes o desculpam, dizendo: ―Espanta-nos que tenha aguentado tanto tempo, porque os irmãos menores levam uma vida desesperada e atormentam-se de muitas maneiras‖ (p. 117)75.

————— 74 São Luís IX, rei de França, nasceu em 25 de Abril de 1215. Começou a reinar em 1226, com onze anos. Sonhou em libertar a Terra Santa. Mas saiu derrotado em todas as tentativas. Professou na Ordem Terceira de S. Francisco e foi modelo de caridade cristã. Faleceu em 25 de Agosto de 1270. Foi canonizado em 1297. É padroeiro da Ordem Terceira Franciscana. 75 Depois das personagens célebres, Salimbene apresenta um retrato simplificado do frade franciscano ―normal‖.

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IV MOVIMENTOS RELIGIOSOS DA ÉPOCA A - O “Aleluia‖76 O tempo do “Aleluia” 50. ―Aleluia‖ – assim se veio a chamar depois a um tempo de tranquilidade e de paz, durante o qual se depuseram todas as armas de guerra: um tempo, em suma, de jovialidade e de alegria, de louvores e de júbilo. Cânticos e divinos louvores eram cantados por nobres e plebeus, cidadãos e aldeões, jovens e donzelas, velhos e crianças (Sl 148,12). Esta devoção espalhou-se por toda a Itália. Vi com os meus próprios olhos que, na minha cidade de Parma, cada comarca queria ter um estandarte próprio para as procissões que se faziam, com a representação do martírio do seu santo. Assim, por exemplo, no estandarte da comarca onde estava a igreja de São Bartolomeu, estava representado o suplício do esfolamento, e o mesmo para as restantes. E assim vinham também das aldeias para as cidades, com seus estandartes, grupos de homens e mulheres, rapazes e raparigas para ouvirem as prédicas e louvar o Senhor. Cantavam palavras divinas e não de homens (Cfr. Act 12,22), e a gente caminhava para a salvação. Parecia, na verdade, estar-se a cumprir aquele dito profético: Lembrar-se-ão e converter-se-ão ao Senhor todas as extremidades da terra. Prostrar-se————— 76 Este movimento surgiu sete anos depois da morte de S. Francisco, 1233. O seu aparecimento foi favorecido por Gregório IX. Na carta Fons sapientiae publicada para anunciar a canonização de S. Domingos, Gregório IX, partindo de Zacarias (6,1-2), que fala dos quatro cavalos que aparecem nos montes, apresenta o quarto cavalo como símbolo das ―tropas dos Irmãos Pregadores e Menores como comandantes eleitos‖. Pretendia-se criar uma milícia cristã que levasse a cabo uma campanha de pacificação e moralização, mesmo que para isso se tivesse de recorrer à fogueira para apaziguar as heresias. Assim nasceu o movimento Aleluia, que teve no franciscano Gerardo de Módena um dos mais activos mentores. Com o objectivo de moralizar a sociedade, estavam dispostos a assumir cargos políticos, como aconteceu com Gerardo de Módena que foi podestà de Parma, o que contrariava o genuíno espírito evangélico-franciscano. Cf. MERLO, op. cit., p. 117-121. Sobre Gerardo de Módena cf. nota 45.

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-ão diante dele todas as raças das nações. (Sl 21,28). Levavam nas mãos ramos de árvores e círios acesos. Havia pregações de tarde, de manhã e ao meio-dia, segundo o dito profético: Pela tarde, de manhã e ao meio-dia lamento-me e suspiro; ele ouvirá a minha voz. Resgata em paz a minha alma de quantos me movem guerra, embora sejam muitos contra mim (Sl 54,18-19). 51. Faziam-se paragens nas igrejas e nas praças e todos erguiam as mãos para Deus, a fim de o louvar e bendizer por todos os séculos. Não se cansavam de louvar o Senhor, tão ébrios estavam do amor divino e era grande a emulação na prática do bem e no louvor a Deus. Não havia qualquer animosidade entre eles, nenhuma discórdia, nenhuma contenda, nenhum rancor. Tinham a alma tão pacificada e disposta a tudo que bem podiam repetir o dito de Isaías: Serão esquecidas as angústias de outrora, e até da minha vista desaparecerão (Is 65,16). Nada de espantar. Tinham bebido o vinho da doçura do Espírito de Deus, e quando é provado perde sabor toda a carne. Por isso está prescrito aos pregadores: Dai bebida forte àqueles que desfalecem, e vinho aos que têm o coração amargurado, para que eles bebam e se esqueçam da sua miséria e não se lembrem mais das suas mágoas (Pr 31,6-7). Voltam aqui com toda a propriedade as palavras de Jeremias nas Lamentações: Examinemos os nossos caminhos, perscrutemo-los e convertamo-nos ao Senhor. Elevemos o nosso coração e as nossas mãos para Deus que está no céu (Lm 3,40-41). E assim o faziam, como eu vi com os meus próprios olhos. Cumpriam os mandamentos dos apóstolos: Quero, pois, que os homens orem em todo o lugar, levantando as mãos puras sem ressentimento e sem contenda (1Tm 2,8). Mas para que não julgues que toda aquela gente estava sem guia, no momento em que o sábio declara: Por falta de governo se arruína um povo (Pr 11,14), falaremos agora dos condutores destes grupos (pp. 99-100). Os pregadores do “Aleluia” 52. Em primeiro lugar veio a Parma frei Benedito, chamado o irmão da Corneta, homem simples e sem cultura, mas verdadeiramente inocente e de grande honestidade de vida. Eu o vi e com ele tratei fami-

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liarmente em Parma, e depois em Pisa. Era oriundo de vale de Espoleto, ou da região de Roma. Não pertencia a nenhuma Religião, se entendermos por religião qualquer congregação religiosa, antes vivia por sua conta, empenhando-se em agradar somente a Deus; era muito amigo dos irmãos menores… Do alto do muro do palácio episcopal, que então se estava a construir, vi-o eu muitas vezes a pregar e a louvar a Deus. Começava desta maneira os seus louvores, exprimindo-se em língua vulgar: ―Bendito, louvado e glorificado seja o Pai‖. E os jovens repetiam em alta voz essa invocação. Depois, repetia as mesmas palavras acrescentando: ―seja o Filho‖. Eles recomeçavam e cantavam as mesmas palavras. Repetia pela terceira vez, acrescentando: ―seja o Espírito Santo‖. E depois, ‖Aleluia, Aleluia, Aleluia‖. Por fim, tocava a trombeta e pregava dizendo algumas boas palavras em louvor de Deus. Terminada a prédica, saudava a Virgem com estes versos: ―Ave Maria, clemens et pia, etc.‖ (pp. 100-101). Frei Gerardo de Módena 53. Pertenceu também aos pregadores dessa grande devoção frei Gerardo de Módena, da Ordem dos irmãos menores; realizou grandes prodígios e fez muitas coisas excelentes, como eu vi com os meus próprios olhos. Quando ainda era secular, chamava-se Gerardo Maletta, da família nobre e rica dos Boccabadati. Tinha sido um dos primeiros irmãos menores, mas não dos doze companheiros; amigo íntimo do bem-aventurado Francisco, e seu companheiro durante certo tempo. Homem de grande cortesia, liberal e generoso, religioso, honesto e muito condescendente, moderado nas palavras e em todas as suas obras. Embora de pouca literatura, tinha uma óptima dicção e foi um excelente pregador. Foi ele quem pediu a frei Elias, ministro geral, para que me aceitasse na Ordem, e frei Elias aceitou-me em Parma, no ano de 1238. Fui seu companheiro de viagem por algum tempo. (p.106). Durante esta devoção, os habitantes de Parma ofereceram a frei Gerardo o governo total da cidade, para que fosse seu podestà e reduzisse à paz quantos andavam em guerra entre si. E assim o fez, porque a muitos que eram inimigos os levou à concórdia (p.106). Quando penso em frei Gerardo de Módena, lembro-me sempre daquela passagem do Eclesiástico: Vale mais o homem que tem pouca

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sabedoria, porém, timorato, do que o homem que possui grande inteligência, mas que transgride a Lei (Sir 19,24). Estava também eu doente em Ferrara com frei Gerardo, quando ele se lastimava da enfermidade de que veio a morrer; e voltando a Módena no ano seguinte, aí fechou os olhos pp. 107-108). B - Os flagelantes77 O movimento dos”flagelantes” 54. No ano de 1260, indição III, espalharam-se pelo mundo os “flagelantes. Todos os homens, pequenos e grandes, nobres cavaleiros e plebeus, andavam processionalmente pela cidade desnudando-se e flagelando-se, precedidos por bispos e religiosos. Restabelecia-se a paz, e os homens restituíam os bens mal adquiridos e confessavam os seus pecados, com tal afluência que os sacerdotes mal encontravam tempo para tomar alguma comida. Em suas bocas ressoavam palavras divinas e não de homens (cfr. Act 12,22), e a sua voz era como a voz de multidões. O mundo caminhava para a salvação. Compunham louvores divinos em honra de Deus e da bem-aventurada Virgem e cantavam-nos enquanto caminhavam e se flagelavam. Na segunda-feira, festa de Todos os Santos, todo o povo de Módena se dirigiu para Reggio, pequenos e grandes, todo o condado de Módena, com o podestà, o bispo e todos os seus estandartes, e atravessaram a cidade flagelando-se; o grosso da multidão passou depois a Parma. Foi isso na terça-feira a seguir à festa de Todos os Santos. No dia seguinte, todos os cidadãos de Reggio tomaram os estandartes de todas as suas comarcas e fizeram uma procissão em redor da cidade. Também o podestà, Hubertino Bobaconti de Mandello, cidadão milanês, participou nessa procissão flagelando-se. Quando esta devoção estava ainda nos seus começos, os cidadãos de Sassuolo, que me eram particularmente queridos, vieram retirar-me de Módena, com licença dos superiores e levaram-me a Sassuolo, e depois a Reggio e a Parma. Quando chegámos a Parma, já lá se fazia esta devo————— 77 Este movimento iniciou-se em Perusa pelo eremita Rainerio Fasani e difundiu-se a toda a Europa. Foi muito apoiado pelas ideias joaquimitas.

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ção. Com efeito, voava como águia que corre para a presa, e durava alguns dias em cada uma das cidades. Não havia ninguém, por mais circunspecto ou velho que fosse, que não se flagelasse de boa vontade. Se alguém o não fazia, era considerado pior que o diabo, e era apontado a dedo como desprezível e diabólico. Mas o que mais importa é que, em poucos dias, esse tal acabava por cair nalguma desgraça, ou morria ou adoecia gravemente. Só Pellavicino, que governava em Cremona, não quis, juntamente com os seus concidadãos, aceitar aquela grande bênção e devoção… (pp. 675-676). Nesse mesmo ano devia começar a cumprir-se a doutrina do abade Joaquim, que divide o mundo em três idades. Na primeira, tinha actuado o Pai entre os patriarcas e os filhos dos profetas, conquanto a acção da Trindade seja indivisível. Na segunda idade, obrou o Filho entre os apóstolos e os homens apostólicos. Na terceira idade, actuará o Espírito Santo nos religiosos. Esta é a doutrina do abade Joaquim de Fiore. Dizem que esta terceira idade começou com este movimento dos flagelantes, no ano 1260, quando se flagelavam proferindo palavras divinas e não de homens (cf. Act 12,22) (p. 677). C - Novas Ordens religiosas A Ordem dos “Saccati”78 55. Terminado esse discurso, um homem da mesma região (ou seja, de Area, Hyères), que eu vi e conheci sendo ainda secular, pediu a frei Hugo que, por amor de Deus, o aceitasse na Ordem. Com efeito, Hugo tinha licença do ministro para aceitar os postulantes na Ordem, porque era uma pessoa venerável, clérigo distinto, muito espiritual e havia sido também ministro provincial. Ora esse homem, que pedia para ser admitido na Ordem dos irmãos menores, foi o iniciador da Ordem dos Saccati; tinha consigo um ————— 78 Os Saccati, ou Irmãos da penitência de Jesus Cristo, apareceram em meados do século XIII, por iniciativa de dois leigos, ex-noviços dos Frades Menores, que mantiveram sempre boas relações com a Ordem. Viviam uma vida de rigoroso ascetismo. Espalharam-se pela Itália e identificavam-se como mendicantes. Cf. MERLO, op. cit., p. 205-206.

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companheiro, que também pedia para ser admitido entre os irmãos menores. Tinham-se sentido inspirados pelo Senhor durante o sermão de frei Hugo. Mas frei Hugo respondeu-lhes: ―Vão até aos bosques e aprendam a comer raízes, porque se aproxima a tribulação‖. Eles partiram, cobriram-se de mantas variegadas, parecidas com as que usavam antigamente as irmãs rodeiras da Ordem de Santa Clara, e começaram a mendigar o pão naquela mesma terra onde viviam os irmãos menores. Eram socorridos abundantemente, porque nós e os irmãos pregadores ensinamos todos os homens a mendigar; e qualquer um enfia um capuz e faz uma nova Regra, como religioso mendicante. Prontamente se multiplicaram, e eram chamados com ironia e malícia: ―boscaioli‖ (lenhadores…). Passado tempo, fizeram hábitos não já de lã crua, mas de linho, tendo por baixo túnicas esplêndidas e sobre os ombros um manto de saco ou estamenha, e por isso ficaram a chamar-se Saccati. Fizeram sandálias como as dos irmãos menores, já que todos aqueles que queriam inventar uma nova Ordem e uma nova Regra, sempre mendigam alguma coisa da Ordem do bem-aventurado Francisco, quer sandálias, quer a corda ou também o hábito. Agora, porém, a Ordem dos irmãos menores obteve um privilégio papal que proíbe a quem quer que seja trazer um hábito pelo qual possa ser considerado um irmão menor… (pp. 366-367)79.

————— 79 Salimbene recorda também a ordem dos Apostólicos fundada por Gerardo Segarelli. Cf. nota 42.

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ACTUALIDADE DE DUNS ESCOTO NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO* Martín Carbajo Núñez, OFM

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ACTUALIDADE DE DUNS ESCOTO NA SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO* Sete séculos depois da morte, o beato João Duns Escoto é um modelo atraente na sociedade da informação1, tanto pelo seu pensamento como pela sua atitude vital. De facto, apesar das limitações que impõem a distância e a diversidade da época em que viveu2, Duns Escoto oferece bases seguras para estabelecer relações pacíficas num mundo cada vez mais interdependente. Para aprofundar esta ideia, indicaremos a necessidade de diálogo no nosso mundo mediático, para mostrar depois como a doutrina de Escoto pode impulsionar a abertura dialogal com o Outro e com os outros na sociedade actual.

————— * O presente artigo, aqui reproduzido e revisto pelo autor, foi publicado em Giovanni Duns Scoto. Studi e ricerche nel VII Centenario della sua morte. In onore di P. César-Saco Alarcón. A cura di Martín Carbajo Nuñez (Medioevo, 15). Roma, Edizioni Antonianum, 2008, vol. II, 471-506. 1 A expressão ―sociedade de informação‖ designa o tipo de colectividade que está emergindo nas últimas décadas com o patrocínio das tecnologias de informação como elemento fundamental nas actividades sócio-económicas. Sobre o advento da sociedade de informação e sobre as causas que a provocam veja-se: R. WHITAKER, The end of pricavy. How total surveillance is becoming a reality, New York 1999, 48. 2 Cf. C. KOSER, ―El carácter práctico de la teología según Juan Duns Escoto‖, Carta del Vicario general OFM en el VII centenario del nacimiento de Juan Duns Escoto, 15-08-1966, in Verdad y vida 24 (1966) 15-25.

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I. Duns Escoto e a necessidade de diálogo hoje A nossa sociedade oferece inumeráveis possibilidades de comunicação à distância (Internet, MCS3) e de encontro interpessoal (migrações, turismo, viagens), mas cria também particularismos e discriminações. A) DUNS ESCOTO, MODELO DE DIÁLOGO Neste contexto ambivalente, Duns Escoto pode servir de modelo e de base teórica para potenciar o diálogo e a abertura gozosa a Deus, aos demais e à criação. Não é em vão que o doutor Subtil foi posto, pelo Magistério recente, como exemplo de diálogo interreligioso e intercultural. ―Na nossa época, rica em imensos recursos humanos, técnicos e científicos […], o beato Duns Escoto apresenta-se […] mestre de pensamento e de vida para a Igreja e para toda a humanidade.‖4 Paulo VI propôs Duns Escoto como modelo do espírito dialogante que o Concílio Vaticano II tinha impulsionado e que ele mesmo havia adoptado como objectivo do seu pontificado5. O Papa recorda as palavras de João de Gerson, que afirma que Escoto sempre se guiou ―não pelo afã singular de vencer, mas pela humildade de encontrar um acordo‖6. Escoto, de facto, demonstra um ânimo sincero na busca da verdade, analisa com atenção e espírito construtivo as posições contrárias ao seu pensamento e evita desclassificações gratuitas ou pouco fundamentadas. ————— 3 Meios de Comunicação Social. 4 JOÃO PAULO II, ―Homilia na cerimónia de reconhecimento do culto litúrgico a Duns Escoto (20.03.1993) ‖, in Selecciones de Franciscanismo 65 (1993) 164, n. 4. 5 PAULO VI, Carta encíclica Ecclesia suam, 6.08.164, in AAS 56 (1964) 609-659, n. 38-39: ―A Igreja deve entrar em diálogo com o mundo em que vive. A Igreja faz-se palavra, faz-se mensagem, faz-se colóquio (…) o diálogo deve caracterizar o nosso cargo apostólico.‖ 6 JOÃO DE GERSON, Lectiones duae «Poenitemini» lect. alt., consid. 5, citado em PAULO VI, Carta Apostólica Alma parens, in AAS (1966) 164.

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A doutrina e a personalidade do Doutor Subtil condizem com essa atitude que Paulo VI propõe para o diálogo ecuménico7 e interreligioso, assim como para o encontro com o mundo contemporâneo e com o ateísmo8. Mais concretamente, o Papa espera que a figura de Escoto ajude a impulsionar o desejado diálogo com os anglicanos, sobre as bases das antigas tradições comuns. Neste sentido, Escoto surge como uma figura muito significativa. Por um lado, foi sempre fiel ao Magistério eclesiástico9, por outro lado, ele é também um personagem ilustre da Grã-bretanha. Além disso, a sua doutrina foi matéria comum, durante três séculos, nas escolas daquele país.10 Também João Paulo II evidencia a exemplaridade de Escoto para ―um diálogo na procura de unidade‖11 e confirma que ―continua a ser ainda hoje um pilar da teologia católica, um mestre original e rico em impulsos e estímulos‖12. B) O DIÁLOGO, NECESSIDADE URGENTE Se no período pós conciliar se propunha o diálogo como atitude fundamental no encontro da Igreja Católica com os demais crentes e com o mundo secularizado, actualmente continua a ser considerado como uma condição indispensável para a convivência pacífica numa sociedade ————— 7 Alma parens 14: ―O tesouro teológico das suas obras pode oferecer reflexões valiosas para «serenos colóquios» entre a Igreja Católica e as demais confissões cristãs‖ 8 Alma parens 11: Da sua doutrina ―podem-se extrair armas poderosas para combater e afastar a nuvem negra do ateísmo que obscurece os nossos tempos‖. 9 Alma parens 16. De facto, o rei Henrique VIII de Inglaterra, quando rompe a comunhão com a Igreja de Roma, ordena que se queimem os escritos de Escoto, pois considerava-o um dos mais notáveis papistas. 10 Alma parens 13-14. 11 JOÃO PAULO II, ―Confirmação do Beato João Duns Escoto e proclamação da beata Dina Bélanger‖, n. 4. 12 JOÃO PAULO II, ―Discurso à Comissão Escotista‖, 16.02.2002. De Escoto o Papa sublinha ―a sua esplêndida doutrina sobre o primado de Cristo, sobre a Imaculada Conceição, sobre o valor primário da Revelação e do Magistério da Igreja, sobre a autoridade do Papa, sobre a possibilidade de a razão humana tornar acessíveis, pelo menos em parte, as grandes verdades da fé, de demonstrar a não contraditoriedade, permanece ainda hoje um pilar da teologia católica, um Mestre original e rico de ideias e solicitações para um conhecimento cada vez mais completo das verdades da Fé‖ (n.2).

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cada vez mais relacionada. Bauman afirma que o dilema actual da humanidade consiste em ―falar juntos ou morrer juntos‖13. Hoje o próximo não é só quem vive ao lado, no espaço e no tempo. Qualquer acção do indivíduo, por pequena ou localizada que seja, pode ter consequências imprevisíveis para o resto da humanidade e para a própria criação. Sucessos que, noutras épocas, ficavam circunscritas a uma região, fazem hoje sentir a sua influência imediata até nos lugares mais distantes do planeta. ―O bater de asas de uma mariposa no Brasil pode desencadear um tornado no Texas‖ (E. Lorenz, 1979). A queda das barreiras espaço-temporais abre enormes possibilidades, mas cria também inquietantes questões14. Jonas afirma que a ética tem que ser profundamente reformulada, para responder aos novos desafios15. Tratar-se-ia de traduzir, em termos éticos, o consenso que já existe sobre a defesa dos direitos humanos. Desta forma, se evitaria que muitos procurem refúgio em novos tipos de fundamentalismo religioso, nacionalista ou étnico16. O risco do pensamento único e do colonialismo cultural provoca reacções defensivas, com frequência incontroláveis. Huntington prevenia face ao perigo de um crescente conflito entre civilizações17. Para evitá-lo, a Assembleia Geral da ONU proclamou o ano de 2001 como ―Ano das Nações Unidas do diálogo entre Civilizações‖18. As propostas de diálogo intercultural foram-se sucedendo até aos nossos dias.19 ————— 13 BAUMAN, Z., ―Parlare insieme o morire insieme: dilemma di tutto il planeta‖, in Vita nostra 11(2003)2. 14 JOÃO PAULO II, Mensagem para a jornada mundial da migração 2001, 2.02.2001, n. 2. 15 JONAS, H., Das Prinzip Verantwortung. Versuch einer Ethik für die technologische Zivilisation, Frankfurt am Main 1984, 15. 16 Sobre as propostas éticas para dar um rosto humano ao processo de globalização: MANCINI, R., Etiche della mondialità, Assis 1996, 15-198; Cf. BOFF, L., Ethos mondiale. Alla ricerca di un’etica comune nell’era della globalizzazione, Torino 2000, 31-59. 17 HUNTINGTON, S. P., The clash of civilizations and the remarking of the world order, New York 1997. 18 Nações Unidas, 16.11.1998. 19 A 21.09.2004, na 59ª Assembleia Geral da ONU, o presidente espanhol, José Luis Rodríguez Zapatero, retomava essa ideia para propor uma «Aliança de

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C) MUITA INFORMAÇÃO MAS POUCA COMUNICAÇÃO Se o diálogo é imprescindível a nível político e cultural, não o é menos a nível pessoal. A ―Sociedade de Rede‖20 permite-nos navegar num imenso oceano de informações, facilita uma comunicação global e instantânea, dá-nos a possibilidade de nos encontrarmos num mundo virtual que não conhece distâncias nem barreiras temporais. Podemos ter a sensação que o mundo inteiro põe-se ao alcance das nossas mãos, na nossa própria casa, sem ter de correr riscos nem de ter de responder diante de ninguém. Sem quase nos darmos conta, podemos ficar ―enredados‖ nesse espaço virtual agradável, domesticado, e acabar fugindo instintivamente da dura realidade de cada dia e do exigente encontro cara a cara com o outro. A comunicação virtual empobrece-se ao deixar de lado a linguagem corporal, os gestos, o olhar, a proximidade, o tacto. Diz-nos Platão que já Sócrates havia percebido alguns destes problemas na escrita. Recusava-se a usá-la porque a considerava algo material (ou seja, de inferior categoria), algo morto, sem um interlocutor definido que possa responder às possíveis objecções, um meio que não pode levar-nos à verdadeira compreensão das ideias. Mas tampouco a comunicação oral, em si mesma, será suficiente. A procura da verdade – segundo Sócrates – exige diálogo e certa simpatia entre um reduzido número de interlocutores capacitados. Por isso rejeita também as ―charlatanices‖ que os sofistas dirigiam a grupos numerosos de pessoas.21 Podemos informar-nos sem comunicar, receber muitos dados sem chegar a estruturar o nosso pensamento. Um dilúvio de informações pode criar-nos confusões em vez de aumentar o nosso conhecimento; e não é por falar muito que nos comunicamos mais. Dizia Platão que um ser humano necessita de sete anos de busca silenciosa para conhecer a verdade, e ao menos catorze para aprender a comunicá-la aos seus ————— civilizações» centrando-a especificamente nas relações entre o Ocidente e o mundo islâmico. 20 CASTELLS, M., ―Materials for an exploratory theory of the Network society‖, in British Journal of Sociology 51/1(2000)9-10. Ainda que a informação e o conhecimento tenham sido fundamentais na organização social, é agora que o salto tecnológico permite obter, processar, generalizar e difundir a informação de maneira rápida e eficaz, aplicando-a inclusive à engenharia genética. 21 PLATÃO, Fedro, 275.

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semelhantes… Por outro lado, Séneca perguntava ironicamente a Lucilio, que lhe proporcionava inúmeras sentenças: Haec sciam? Et quid ignorem?22 O diálogo respeitoso ajuda-nos a ser reflexivos e a superar tanto a homogenização, que anula a riqueza das diversidades, como o relativismo, que nega os valores.23 É necessário desenvolver a capacidade de acolhimento gratuito, gozoso, responsável para podermos caminhar juntos até uma humanidade reconciliada. II. Bases escotistas para um dialogo de autenticidade A escola franciscana tem em Duns Escoto o representante mais qualificado, tal como afirmou Paulo VI24. Esta linha de pensamento elabora o voluntarismo, que se contrapõe ao frio intelectualismo da filosofia moderna.25 Acentuando a liberdade divina e o seu amor incondicionado ao homem concreto, o voluntarismo rebate o dualismo cartesiano, que contrapõe corporeidade a pensamento, matéria a espírito.26 Opõe-se tam————— 22 Cf. P. PISARRA, ―Laberinti dell'informazione‖, in P. CARETTI - A. PIERETTI P. PISARRA, Informazione, manipolazione e potere, Cinisello Balsamo 1998, 31. 23 JOÃO PAULO II, Discurso aos membros da Pontifícia academia das ciências sociais, 27.04.2002. O diálogo intercultural será mais eficiente se os indivíduos partilharem a sua própria experiência vital. A. TOURAINE, ―Faux et vrais problèmes‖, in M. Wieviorka, Ed., Une société fragmentée? Le multiculturalisme en débat, Paris 1997, 206. 24 Alma parens 6. Ele é ―mestre e guia da escola franciscana‖. BENTO XVI, ―Carta apostólica por ocasião do VII centenário da morte do beato João Duns Escoto‖. 25 Cf. J. DUNS SCOTO, Reportatio Parisienses, (Rep.), IV d. 49 n. 11, in L. Vivès, ed., Opera omnia, vol. 1-26, Paris 1891-1895 (Vivès), XXIV 625: ―Capacitas voluntatis perfectior est in via quam capacitas intellectus; igitur similiter et in patria, quia non est alia capacitas hic et ibi.‖ Cf. J. DUNS SCOTO, Ordinatio (Ord.), III d. 33 q. un. n. 58, Commissione Scotista, ed., Opera omnia, Città del Vaticano 1950ss, X 168-169: ―Simpliciter nobilior erit electio recta quam dictamen rectum.‖ 26 Descartes (1596-1650) considera que a essência do ser humano consiste na sua capacidade de pensar (res cogitans), enquanto que o seu corpo pertence a outra categoria de substâncias (res extensa). A ênfase num ou noutro desses dois elementos dará origem a duas tendências contrapostas na compreensão do humano (idealismo e materialismo), mas ambas caracterizadas por um forte dualismo. O idealismo centra-se na racionalidade, no pensamento subjectivo, passando ao lado da dimensão corpórea. Por outro lado, o materialismo reduzirá o homem à materialidade do seu corpo, como

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bém a qualquer tipo de gnosticismo que reduza o mais específico humano à sua dimensão espiritual ou racional, como se tudo tivesse que ser subjugado e orientado a favor de um desenvolvimento primitivo do pensamento27. Frente às filosofias que interpretam a realidade como algo necessário e inevitável, porque lógico, Escoto defende a liberdade como paradigma interpretativo do tudo o que existe. A verdade sobre a realidade humana e cósmica não é reduzível à pura racionalidade. No princípio não era a lógica nem a necessidade, mas a vontade amorosa, livre e gratuita de Deus; portanto, a verdade é inseparável da bondade.28 Se o mundo existe não é porque seja racionalmente necessário, mas por amor. Tudo é radicalmente contingente29, mas ao mesmo tempo valioso, porque querido. A) ―DEUS CARITAS EST‖ Escoto proclama que Deus é amor30 e, portanto, um ser totalmente livre, criativo e desinteressado.31 Actuando de um modo ordenado,32 Deus ama-se a si mesmo, já que Ele é o Sumo Bem33; em segundo lugar, ————— se fosse mais uma peça da engrenagem cósmica. Para compreender o homem, bastará o método experimental e a análise do físico (comportamentalismo). O corpo é interpretado biologicamente em vez de biograficamente. 27 Escoto afirma a prioridade da vontade para poder alcançar a beatitude a que estamos destinados. Rep. IV d. 49 q. 2 n. 20 (Vivès XXIV 630). 28 A verdade não pode reduzir-se à pura racionalidade. JOÃO PAULO II, Carta encíclica Fides el ratio (FR), 14.09.1998, n. 38: ―As vias para chegar à verdade continuam a ser muitas; mas, dado que a verdade cristã tem valor salvífico, cada uma delas só pode ser percorrida se conduzir à meta final, ou seja, à revelação de Jesus Cristo.‖ 29 J. DUNS SCOTO, Quaestiones super libros Metaphysicorum Aristotelis (QQMetaph.), IX q. 15 n. 12, in Ed., Opera philosophica, The Franciscan Institute, St. Bonaventure, N.Y., 1997ss. (Oph), IV 678. 30 1Jo 4,8; Ord. I d. 17 q. 2 n. 173 (V 222): ―Deus sit formaliter caritas et dilectio‖. 31 Deus não cria por interesse senão por bondade: Ord. III d. 27 q. un. n. 18-20 (X 53-55). 32 Amar ordenadamente significa que primeiramente se deseja o fim e depois, gradualmente, tudo o mais segundo a sua aproximação a esse fim. Cf. Rep. III d. 7 q. 4 n. 4 (Vivès XXIII 303); Ord. III d. 32 q. un. n. 21 (X 136). 33 Rep. III d. 27 q. un. n. 7 (Vivès XXIII 481).

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ama-se a si mesmo como a nós. Ele não é um ―motor imóvel‖, distante e inacessível, mas um ser apaixonado, abrasado de sentimentos, que cria porque ama.34 Face à impassibilidade da potência divina na filosofia grega e no deísmo, Escoto mostra um Deus que é amor, e portanto, não pode permanecer indiferente frente à humanidade35. O Sumo Bem é também uma suma comunicabilidade, de uma maneira totalmente livre.36 Assim, Deus torna possível e garante o diálogo que leva à fruição comunicativa. 1. Amor em absoluta liberdade O ser e o actuar de Deus não está determinado pela lógica nem pela necessidade, não está sujeito a nenhum condicionalismo ou interesse.37 A liberdade faz parte do seu modo de ser.38 Deus ama-se a si mesmo de modo ordenado e, amando ordenadamente, cria a diversidade de quanto existe. A sua actividade ad extra não é emanação necessitarista do seu ser, mas fruto absolutamente livre e gratuito da sua vontade amorosa. O seu actuar não é caprichoso, porque nada do que faz contradiz o seu próprio ser.39 Antes de mais, Deus é.40 Afirmando a total liberdade divina, Escoto nega que Deus deva escolher necessariamente o que, segundo os nossos parâmetros racionais, seria a opção mais adequada. Deus actua ordenadamente, realizando o que é digno da sua própria bondade, mas sem estar condicionada por outros factores externos a si mesmo. Deus é subsistente, independente-

————— 34 Cf. Rep. II d. 27 q. un n. 3 (Vivès XXIII 135). 35 Cf. Ex 3,7; 6,5: Deus escuta o grito dos oprimidos. 36 J. DUNS SCOTO, Tractatus De primo principio, c. 3 conclusio 22. 37 Cf. Ord. III d. 1 p. 1 q. 1 n. 49 (IX 21-22). Em Duns Escoto, «o primado da vontade põe claro que Deus é, antes de mais, caridade». BENTO XVI, ―Carta apostólica por ocasião do VII centenário da morte do beato João Duns Escoto‖. 38 De primo principio, c. 3 conclusio 22. 39 Deus pode fazer tudo o que não seja contraditório com a sua própria essência, Ord. I d. 7 q. 1 n. 52 (IV 129); Rep. IV d. 46, q. 4 n. 8 (Vivès XXIV 584). 40 O decisivo em Deus não é o querer ou o entender, mas a sua essência, manifesta na coerência consigo mesmo. Só nela se dão todas as perfeições. Ord. IV d. 13 q. 1 n. 32 (Vivès XVII 689); Rep. I d. 8 q. 1 n.l (Vivès XXII 153).

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mente de qualquer outro ente41 e totalmente livre para comunicar-se. Não é a coerência lógica o que determina o actuar de Deus, mas o amor. Ao pôr a liberdade divina acima da racionalidade do ser, Escoto afirma que o que existe poderia ter sido criado de um modo diverso e nem por isso perderia a sua coerência interna.42 No princípio de tudo está a vontade livre de Deus, o qual não impede a racionalidade subsequente de tudo o que Ele chama à existência. O único ser necessário é Deus, tudo o mais é contingente, porque tudo é fruto da sua bondade e liberdade. A absoluta liberdade de Deus, Sumo Bem, implica que nada se lhe impõe como necessário e universal. O bem não é bem pela sua perfeita lógica interna, mas porque Deus o quis assim, quando poderia tê-lo configurado de outro modo.43 Deus não só é livre de criar, mas também de eleger a constituição lógica interna de cada uma das criaturas. A liberdade divina reflecte-se nos seres humanos, criados à imagem de Cristo e, portanto, livres e criativos44, capazes de responder positivamente ao amor divino (―condiligentes‖), dentro dos limites da própria criaturidade.45 O pecado obscureceu a nossa semelhança com o Deus trinitário, mas não anulou a natureza humana, criada para a glorificação de Deus, ou seja, para o diálogo e a doação de si mesmo por amor. Supera-se assim o pessimismo antropológico daqueles que consideram o homem incapaz de altruísmo. 2. Amor gratuito, que cria diálogo e comunicação Escoto sublinha a absoluta liberdade de Deus e o seu amor gratuito, sem limites. Tudo o que existe é fruto do seu amor desinteressado ————— 41 Ord. I d. 19 q. 2n. 54 (V 290): ―Subsistere autem, id est «incommunicabiliter per se esse», convenit personae primo.‖ 42 O. TODISCO, Il dono dell'essere. Sentieri inesplorati del medioevo francescano, Padova 2006, 47: ―Le creature [sono] state volute non perché in sé le migliori – più vere di altre, più razionali, più armoniche di altre... ma migliori perché volute‖. Na obra de Todisco o leitor encontrará uma exposição ampla e articulada da linha de pensamento que aqui expressamos sobre Escoto. 43 Ord. II d. 1 q. 2 n. 91 (VII 48). 44 Rep. IV d. 15 q. 4 n. 38 (Vivès XXIV 246): ―Libertas est pretiossima res, et nobilissima quae est in anima, et per consequens in homine.‖ 45 Rep. I d. 17 q. 2 n. 7 (Vivès XXII 211).

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e tem como finalidade o amor, independentemente de qualquer mérito ou qualidade46. Nem sequer a alma de Cristo mereceu a sua glória. Tudo é dom. O homem existe porque Deus (Sumo Bem) amou-o gratuitamente. Não fomos criados porque essa tenha sido uma opção razoável e lógica, mas porque Deus, na sua imensa bondade, assim o quis, quando poderia ter optado por outras inumeráveis possibilidades. No início de tudo está a vontade livre e gratuita de Deus, o qual não impede que, uma vez criado, cada ser criado tenha uma própria coerência lógica. Se existimos não é porque tenhamos direito a isso (argumento racionalista), mas por puro dom, porque Alguém quis que assim fosse (voluntarismo).47 Antes de recebermos o dom da vida não éramos nada; portanto, todo o nosso ser é fruto da vontade divina, que quis chamar à existência, quando poderia ter elegido outras infinitas possibilidades. Assim pois, tudo quanto existe é ontologicamente contingente, fruto da vontade amorosa, livre e gratuita de Deus, nascemos como dom e à doação estamos chamados. A actividade divina ad extra é sempre fruto do amor e orientada ao amor. Criando, Deus manifesta a sua bondade infinita, dá espaço ao diverso de si, renuncia a ser o único existente. Cria porque ama, e além disso, predispõe para que todos possam amá-lo livremente. A Kenosis de Deus manifestará posteriormente esta dinâmica de amor infinito, que respeita o fim de cada ser. Deste modo, Deus torna possível o diálogo pessoal, algo muito distinto dos monólogos dos tipos de religiosidade consumista. Todos os seres são fruto do amor trinitário que, gratuitamente, cria e gera relações de comunhão e diálogo. O ser humano foi criado à imagem e semelhança do Criador, mas é ontologicamente dependente e, portanto, nunca poderia dialogar com o Deus transcendente se não fosse gratuitamente elevado à dignidade de interlocutor. Encontramo-nos aqui na complexa questão filosófica do encontro entre absoluto e contingente, entre infinito e finito. A união hipostática em Cristo realiza este enlace de forma eminente. N’Ele e por Ele, também nós recebemos a capacidade de amar livremente o nosso Criador com um amor puro e ordenado. O conhecimento e a especulação ————— 46 A criação é fruto da vontade divina. Ord. II d. 1 q. 2 n. 91 (VII 48). 47 Ord. I d. 8 p. 2 q. un. n. 300 (IV 325).

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intelectual só podem servir de preparação a essa comunhão beatífica48 que o amor de amizade pode proporcionar.49 3. Jesus Cristo, o perfeito interlocutor de Deus A actividade ad extra de Deus-Amor é expressão coerente e ordenada do seu ser. O Deus trinitário, comunidade de pessoas, decide criar, livre e gratuitamente, algo que é distinto de si mesmo, com a finalidade de compartilhar com Ele o seu amor.50 Entre todos os possíveis co-amadores, Deus gera Cristo como interlocutor perfeito, Aquele que pode responder com um amor infinito como é próprio de si.51 A união hipostática das naturezas, humana e divina, na pessoa de Cristo significa que Ele é o mais próximo do amor com que Deus se ama, o que melhor pode responder, o mais próximo à sua finalidade essencial.52 Assim, pois, a alma de Cristo é a primeira a ser predestinada à mais alta comunhão amorosa com a Trindade, independentemente dos homens serem criados ou não.53 A predestinação de Deus e, n’Ele, a de todos os seres racionais, tem como fim primário a glória de Deus.54 Isso não impede, mas exige a liberdade para amar,55 pois o que é fruto do amor tende ao ————— 48 Ord. prol. p. 5 q. 2 n. 353 (I 229). 49 Cf. Ord. IV d. 49 q. 2 n. 27-32 (Vivès XXI 52-55). Escoto distingue entre o amor de desejo (concupiscência) e o amor de amizade (caridade). O segundo é o mais perfeito, pois move-nos a amar a Deus por Ele mesmo e ao próximo por Deus. Ord. I d 1 p. 3 q. 5 n 183 (II 121). Rep. III d. 7 q. 4 n. 5 (Vivès XXIII 303): ―[Deus] diligit se aliis, et iste est amor castus‖. 50 Deus quer criar uma familia de co-amadores. Rep. III d. 7 q. 4 n. 5 (Vivès XXIII 303). 51 Ord. III d. 7 q. 3 n. 61 (IX 287). 52 Rep. III d. 7 q. 4 (Vivès XXIII 303). 53 Rep. III d. 7 q. 4 (Vivès XXIII 303). 54 Ord. I d. 40 q. un n. 4 (VI 310). Ord. III d. 32 q. un n. 21 (X 136-137): ―[Deus] vult alios habere condiligentes, et hoc est velle alios habere amorem suum in se, - et hoc est praedestinare eos.‖ 55 Deus deseja a salvação de todos e concede os dons necessários para que possam acolhê-la em liberdade. Ord. I d. 46 q. un. n. 7 (VI 379). De facto, a morte de Jesus Cristo será meritória porque Ele a acolhe voluntariamente. Ord. III d. 16 q. 2 n. 56 (IX 559): ―ut volita et acceptata a voluntate, fuit meritoria et non violenta‖.

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amor.56 Deus não tem necessidade de nós, ama-nos e deseja o nosso amor.57 Enquanto obra prima de Deus, Cristo é também o sumo bem de todos os demais seres,58 o mediador universal, o centro de toda a actividade amorosa de Deus ad extra, o ponto de encontro entre o divino e o humano. N’Ele, por Ele e para Ele são pensados e criados os anjos, os homens e todas as coisas.59 Tanto na ordem natural como na sobrenatural encontram o seu sentido. Maria Imaculada será a primeira beneficiada da sua mediação e, com ela, todos fomos feitos filhos no Filho. Este plano eterno, amoroso, de Deus não poderia estar condicionado pela actuação posterior da criatura humana, pois entre outras razões, esta nem sequer estava prevista na mente de Deus.60 Cristo é predestinado a ser glorificador de Deus antes que o mundo existisse e antes que fosse previsível a queda de Adão.61 Deus, que ama de um modo ordenado, quer a glória de Cristo antes de qualquer outra actividade que possa conduzir a essa meta.62 Por isso, a redenção não é contemplada nesse primeiro momento e tampouco é o motivo primário da encarnação.63 Tudo é eleição livre do amor de Deus, em conformidade com o seu eterno plano amoroso. Deus poderia ter escolhido outros modos de nos redimir,64 mas escolheu o que melhor expressa o seu amor incondicional para connosco.65 Se Cristo aceita livremente a morte de cruz não é para aplacar a ira divina e reparar a justiça burlada, mas antes como expressão suprema do amor infinito de um Deus que nos quer para Si. ————— 56 Ord. III d. 32 q. un. n. 21 (X 136-137). 57 Rep. III d. 32 q. un n. 10 (Vivès XXIII508). 58 Ord. III d. 7 q. 3 n. 63-66 (IX 288). 59 Rep. III d. 32 q. un n. 11 (Vivès XXIII 508). 60 Ao falar do plano de Deus não se assinalam momentos de sucessão temporal, mas somente lógica, pois em Deus não há antes nem depois. 61 Ord. III d. 19 n. 6 (Vivès XIV 714); J. DUNS SCOTO, Lectura (Lect.), III d. 19 q. un. n. 20 (XXI 32). 62 Ord. I d. 41 q. un. n. 41 (VI 332-333). 63 Rep. I d. 41 q. un. n. 8 (XXII 482). 64 A Encarnação é uma eleição livre e gratuita de Deus. Ord. IV d. 2 q. 1 n. 11 (Vivès XVI248). Cf. Ord. III d. 20 q. un. n. 10 (Vivès XIV 737). 65 O Amor de Deus fica evidenciado no modo de nos redimir. Ord. III d. 20 q. un. n. 10 (Vivès XIV 738).

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A comunicação amorosa é o primeiro objectivo da actuação de Deus ad extra. Esse objectivo é, pois, prioritário e ascendente à ruptura do diálogo que a queda de Adão provocara. A queda do homem não pode ter destruído o plano primogénito de Deus, reduzindo a história a um retorno fastidioso ao paraíso perdido e, alem disso, exigindo o pagamento da morte na cruz. Essa concepção subordinaria Cristo ao homem, o que seria absurdo.66 Cristo tem o primado absoluto sobre tudo o criado e, no final dos tempos, o apresentará ao Pai como oferenda de amor. Assim, pois, o melhor está ainda para chegar. Frente ao relativismo religioso e à religiosidade desencarnada e impessoal, Escoto proclama que todo o humano encontra em Cristo o seu sentido, incluindo a dor e a fragilidade. O Crucificado, que sofre connosco, é o único rosto que Deus nos deu. Em Cristo, Deus experimentou a tragédia do homem e fez-se seu companheiro de caminho. Ele restabelece o diálogo amoroso que o pecado tinha rompido e fá-lo aceitando livremente a doação de si mesmo na cruz. B) DIGNOS PORQUE AMADOS O único ser necessário é o próprio Deus; todos os demais são contingentes, ou seja, existem porque Ele o quis, sem que existam razões suficientes para isso67. A criação é um acto de amor gratuito, imerecido, completamente livre de Deus. 1. O valor incondicional da pessoa humana O homem não é um ser pensante (res cogitans), dominador, mas um ser pensado (res cogitata), infinitamente amado. Se existo é porque Deus me amou e pensou em mim, sem que existisse nenhuma razão para ter-me escolhido. É uma questão de gratuidade, de amor desinteressado, de vontade.68 O dito cartesiano ―penso, logo existo‖ muda-se em ―sou amado, logo existo‖. ————— 66 Ord. III d. 7 q. 3 n. 64-66 (IX 288). 67 Rep. II d. 1 q. 3 n. 3 (Vivès XXII 531). 68 Deus amou-nos porque quis, pois pode fazer livremente tudo o que não seja contraditório. Ord. I d. 44 q. un. n. 3 (VI 363-364): Ord. I d. 8 p. 2 q. un. n. 283 (IV 314).

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O valor humano não reside na sua substância (―eu pensante‖, ―racional‖, dominador), mas na bondade de Deus. O homem existe porque Deus (Sumo Bem) o amou gratuitamente e, em consequência, é um ser bom, chamado à doação de si mesmo por amor. O importante não é a sua capacidade mental, mas o facto de ter sido amado gratuitamente, eleito entre outros muitos possíveis, hospedado sem merecê-lo. A dignidade do homem não depende do êxito das suas acções, mas da relação gratuita que Deus estabeleceu com ele mesmo antes da criação. A sua identidade não resulta do que tem, mas da sua capacidade de doar-se e de construir relações significativas. Com a ajuda da graça divina, podemos dialogar, fiar-nos do outro, pois o homem não é um lobo para o homem. A capacidade de amar é mais forte que o egoísmo e que as tendências pecaminosas, ainda que a prudência seja necessária. A natureza humana não foi mudada radicalmente pelo pecado original.69 2. Reconhecer-se criatura Frente à pretensão ingénua do homem actual, que quer obter tudo rapidamente e sem esforço, Escoto convida a reconhecer-se criatura dependente e limitada, mas infinitamente amada por Deus. O ser humano é contingente, ontologicamente dependente, e deve reconhecer-se como tal, obedecendo humildemente ao seu criador.70 Isto não significa renunciar à própria dignidade e às próprias potencialidades, mas reconhecer que a verdade sobre si mesmo reside na liberdade bondosa e gratuita de Deus. Enquanto que os filósofos tendem a afirmar a perfeição autossuficiente da natureza, Escoto insiste na necessidade da graça.71 Tudo o que somos e temos é puro dom. Não somos amados porque sejamos dignos, mas somos dignos porque somos amados.72 Ainda que seja pequeno (minoridade), sou querido. ————— 69 Cf. Lect. II d. 20 q. 2 n. 21-29 (XIX 195 197). 70 QQMelapli. IX q. 12 u. 3 (IV 611-612). 71 Os filósofos pagãos tentaram explicar tudo racionalmente, desde a autossuficiência da natureza. Ord. prol. p. 1 q. un. n. 5 (I 4). 72 Todos os seres criados são bons porque queridos, não pela sua utilidade: Ord. III d. 19 q. un. n. 7 (Vivès XIV 718); Rep. I d. 48 q. un. (Vivès XXII 512).

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O ideal humano não é o do super-homem impassível, sempre vencedor. Tudo o que o homem é, e tudo o que o rodeia, é querido e amado por Deus, sem que existam razões suficientes para que assim seja. Nada do que acontece ao homem é indiferente a Deus,73 que quis manifestar-se na debilidade. Portanto, é possível uma relação harmónica, hospitaleira, respeitosa com os outros, com a natureza e com o próprio corpo, pois a sua dignidade deriva da livre vontade de Deus. Não se trata de dominar ou subordinar o que sou e o que me rodeia, mas de coordenar tudo, respeitando a riqueza da diversidade. 3. Livres para amar Nesta perspectiva, a matéria e o próprio corpo deixam de ser algo alheio ou perigoso. Todo o nosso ser, corpore et anima unus,74 é fruto do amor divino e, portanto, digno. Sendo fruto do amor livre e gratuito de Deus, estamos chamados a amar a todos na liberdade e gratuidade. Maria é também o nosso exemplo, com o seu modo de colaborar livremente na obra de Deus.75 Assim também de nada serviria a mortificação do corpo se não fosse expressão da minoridade e da pobreza interior. Não se trata de subordinar o corpo à alma, mas de coordenar tudo o que somos, para que nada nos desvie da resposta agradecida a quem nos amou. Estar ordenado é muito distinto de estar subordinado. No mundo clássico propunha-se subordinar o corpo, subjugá-lo mediante a mortificação, para poder assim libertar a dimensão espiritual e racional que nele está amarrada, ou seja, para poder pensar sem que as paixões o impeçam. No pensamento de Escoto, todavia, o corpo não é inimigo da alma, mas o seu necessário e harmonioso complemento, a corporeidade de cada homem tem uma entidade e um valor ontológico em si mesmo.76 Por isso, a mortificação tem como objectivo preparar-se para responder ————— 73 Os 11, 8-9: ―Como poderia abandonar-te, ó Efraim? (…) comovem-se as minhas entranhas.‖ 74 CONCILIO VATICANO II, Constituição Pastoral Gaudium et Spes (GS), 7.12.1965, n. 4. Escoto defende que a substância do ser humano só se dá na unidade de alma e corpo. Ord. IV d. 45 q. 2 n. 14 (Vivès XX 306). 75 Na sociedade que acentuava a passividade da mulher, Escoto sublinha o papel activo de Maria na sua maternidade virginal: Ord. III d. 4 q. un. n. 47 (IX 216). 76 Ord. IV d. 11 q. 3 n. 55 (Vivès XVII 436)

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livremente, com todo o nosso ser, a Deus que livremente nos criou. A mortificação permite-nos ―conservar a paz da alma e do corpo‖,77 ou seja, faz-nos livres para amar. Tudo o que o homem é e realiza deve ser expressão da sua resposta amorosa a Deus. Ama-l’O é o único acto bom em si mesmo, e portanto, irrenunciável.78 4. O pecado, ruptura do diálogo amistoso Deus criou o ser humano sem que existisse nenhum motivo para isso e destinou-o, em Cristo, a participar da vida trinitária. O pecado original não destruiu a natureza que Deus lhe deu à imagem do Filho.79 Se somos fruto do amor e a Ele estamos destinados, o pecado é ir contra a nossa própria natureza, renunciando conscientemente à amizade que Deus nos oferece. Escoto rejeita o gnosticismo daqueles que identificam o pecado com o erro, de modo que só o iluminado seria capaz de resistir às sugestões do mal. Antes da verdade e da lógica, Escoto acentua a liberdade e o amor. Mais que a ruptura de uma ordem justa, Escoto entende o pecado como uma infidelidade, Assim também, Escoto nega que o pecado original seja um contágio transmitido através da carne contaminada; pertence à ordem moral, não ao físico.80 Rejeita assim qualquer semelhança do pecado original e pessoal com um mecanismo mágico ou automático, enquanto que afirma o seu carácter moral e relacional.81 O pecado pessoal é ruptura do diálogo, renúncia consciente a amar o Amor.82 Desta maneira a criatura contradiz o juízo da recta razão83 e dirige-se para a morte do isolamento egoísta. A Encarnação não está determinada pelo pecado, pois isso significaria que o actuar divino estaria condicionado necessariamente pelo erro ————— 77 S. Francisco de Assis, Admonições, 15, 1-2, in FF 1, 78 Rep. IV d. 28 q. un. n. 6 (Vivès XXIV 377). 79 Lect. II d. 29 q. un. n. 22 (XIX 289). 80 Ord. II d. 30 q. 2 n. 14 (VIII 322). 81 Ord. III d. 33 q. un. n. 76 (X 175). 82 Desse modo a criatura renuncia ao primeiro princípio prático que é ―Deus est diligendus‖. Ord. IV d. 46 q. 1 n. 10 (Vivès XX 426). 83 Um acto é moralmente bom quando há harmonia entre a vontade e a recta razão. Rep. II d. 35 q. un. n. 10 (Vivès XXIII 182); Ord. III d. 23 n. 74 (X 249).

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do homem. Deus não se sente obrigado a reparar a ruína que o pecado provoca na ordem da justiça. Ele actua sempre livremente e na lógica do amor, porque quer que alcancemos o nosso verdadeiro fim. O amor prevalece sobre a justiça.84 Não obstante, o amor de Deus não poderia permanecer indiferente ante a cegueira humana que, na sua infidelidade, se encaminha para a morte. Daí a redenção, a doação de Deus até à morte na cruz. C) RELAÇÕES BASEADAS NA LIBERDADE E NA GRATUIDADE ―O homem é o lobo do homem‖85 repetem aqueles que olham com suspeita para o ser humano e que defendem a via do armamento como único modo de manter a paz (Si vis pacem, para bellum). O cristianismo contradiz esta lógica. Frente à guerra de interesses e às relações competitivas do eu dominador, a concepção antropológica de Escoto assenta as bases para as relações na liberdade e gratuidade. 1. Todo o ser humano é um interlocutor válido Em Cristo, todos os seres racionais, começando por Maria, foram predestinados a um eterno diálogo amoroso com Deus.86 Essa predestinação à visão beatífica não é condicionamento escravizante, mas liberdade para amar.87 Na sua infinita bondade, Deus quer que as criaturas racionais alcancem em Cristo a sua meta final, ou seja, a comunhão com Deus.88 Alcançando essa beatitude a pessoa realiza plenamente a sua própria natureza,89 que foi criada para o amor. A reprovação, pelo contrário, é fruto do mau uso da liberdade.90 ————— 84 Ord. III d. 20 q. un. n. 10 (Vivès 738). 85 ―Homo hornini lupus‖. Esta afirmação de Plauto (Asinaria, acto II), largamente repetida, reflecte uma concepção antropológica pessimista. Tomás de Aquino preferia afirmar: ―Homo homini naturaliter amicus‖. S.Th II-II q. 114 a. 1 ad. 2. 86 Lect. III d. 19 q. un. n. 31 (XXI 36-37). 87 O homem pode rejeitar o destino beatífico que Deus lhe preparou. Ord. I d. 41 q. un. n. 40 (VI 332). Cf. Ord. I d. 41 q. un. n. 42 (VI 333): ―Reprobado ergo habet ex parte obiecti rationem, scilicet peccatum finale praevisum‖. 88 Só Deus pode satisfazer plenamente o desejo profundo das criaturas. Rep. II d. 23 q. un. n. 6 (Vivès XXIII109). Cf. Ord. prol. p. 1 q. un. n. 32 (I 19). 89 Deus quer a realização plena do ser humano, ainda que este possa opor-se e fazer malograr o plano de Deus. Ord. II d. 33 q. un. n. 18 (VIII 368). 90 Ord. Id. 41 q. un. n. 46 (VI 334).

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O facto do ser humano ser imago Dei não deve ser entendido no sentido estático – por ter uma comum natureza racional (res cogitans) –, mas antes de mais no sentido relacional: pela capacidade de amar e doar-se em liberdade. Também as pessoas divinas são dinâmicas, em contínua relação.91 Criado à imagem do Verbo encarnado, o homem está feito para o diálogo livre e afectuoso, com tudo o que o rodeia e com o próprio Deus.92 A bondade do ser – de todos os seres – leva à gratuidade do dom. Em contraste com a bondade e gratuidade que está na base da teologia escotista, hoje predomina uma concepção antropológica negativa, que leva a relações ferozmente competitivas, ao eficientismo (do ut des) e ao ―usa e deita fora‖ do consumismo mais desenfreado. O eu autossuficiente e individualista procura conhecer e dominar; usa a informação em termos de poder, em vez de buscar com ela a comunhão;93 procura conhecer tudo sobre os outros para os dominar; é incapaz de re-conhecer que o valor dos outros seres não depende dele mesmo. Deste modo, a pessoa é arrastada à ―guerra de interesses‖ (capitalismo) ou é reduzida a uma peça anónima na engrenagem colectiva (colectivismo). Em ambos os casos o sujeito não é respeitado nem respeita o outro, não se sente movido ao altruísmo nem a comunicar-se para criar comunhão.94 O ideal liberal de um indivíduo completamente autónomo e autosuficiente, que entra em sociedade por pura conveniência utilitarista, corresponderia ao deus único, monólitico e soberano de algumas filosofias. Esse deus não interviria necessariamente no mundo, pois tê-lo-ia feito como um mecanismo autárquico. ————— 91 J. DUNS SCOTO, Quodlibet (Quodl), q. 12 n. 6 (Vivès XXV 476). 92 Ord. IV d. 49 q. 10 n. 2 (Vivès XXI 318-319). 93 Face ao positivismo lógico, que define a informação como uma descrição e predicação objectiva do mundo, alguns autores procuram recuperar o aspecto subjectivo, através da distinção entre informação e comunicação. A comunicação plenamente humana não pode reduzir-se a uma simples transmissão de informação (como acontece entre duas máquinas), mas implica fenómenos de interpretação e de compreensão. Comunicar é relacionar-se, partilhar com alguém um significado em vistas a uma maior comunhão. Cf. F. MARTÍNEZ DÍEZ, Teología de la comunicación, Madrid 1994, 28. 94 Comunicação e comunidade são termos afines, que se implicam e exigem mutuamente. W. SCHRAMM - W. E. PORTER, Men, women, messages, and media; understanding human communication, Harper & Kow, New York 19822, 2-3.

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Para o cristianismo, por outro lado, a pessoa é intrinsecamente social, pois foi criada à imagem e semelhança do Deus trinitário, que é comunicação na pluralidade, fonte de toda a unidade e de toda a diferença. O homem nasce já como ser livre e social.95 A sua dignidade e sociabilidade são anteriores à evolução e à história. O seu valor não depende do meu pensamento, mas só de Deus, sumo bem, que o pensou e amou desde toda a eternidade. Mais que conhecer, o sujeito tem de re-conhecer o outro. Ele é um tu muito antes de relacionar-se com os semelhantes, porque, desde sempre, Deus o tratou e amou como tal.96 Conhecer é amar, contemplar o mistério do outro e sentir-se movido a admirá-lo e amá-lo. Portanto, a verdade é inseparável da bondade. A dignidade e a razão da existência de todos os seres não depende da mente do sujeito pensante, mas da absoluta liberdade e gratuidade de Deus que é Amor. O pecado dividiu o homem por dentro, mas não anulou a sua capacidade de amar, de transcender o próprio egoísmo com a ajuda da graça.97 Em consequência, o domínio déspota do eu pensante, que configura toda a realidade a partir de si mesmo, transforma-se em acolhimento afectuoso de cada ser que, em si mesmo, é um dom divino. 2. Relações gratuitas, desinteressadas Desde o paradigma escotista da liberdade, conclui-se a urgência da resposta de gratidão, gratuita, ao Deus que nos ama, e o encontro respeitador, desinteressado, com o outro e com toda a criação. A hospitalidade absoluta face a todos os seres não é pelo benefício que proporcionam, mas porque todos são fruto do amor divino, e, portanto, bons em si mesmos. Quanto mais débil e frágil se mostre a vida (embrião, enfermo, idoso), mais apela à nossa responsabilidade, pois Deus quis mostrar a sua grandeza na debilidade. O ser humano é sempre um mistério para mim, porque a sua existência não depende de leis intrínsecas à sua pessoa, mas da vontade de Alguém que me transcende. Portanto, sinto-me movido a sair ao seu encontro e a respeitar a sua alteridade, sem prepotência, sem a ânsia de o ————— 95 Cf. GS, 24. 96 J. L. RUIZ DE LA PEÑA, Imagen de Dios. Antropología teológica fundamental, Santander 1988, 181-182. O amor ao outro faz parte da resposta amorosa a Deus. 97 Cf. Lect. II d. 34-37 q. 4 n. 5 (XIX 337).

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dominar, porque a sua existência não se deve a mim. Ele é um tu desde muito antes de me relacionar com ele, porque, desde sempre, Deus o tratou e amou como tal. Por isso, o ser humano tem uma dignidade pessoal que é prévia a qualquer contacto com o seu semelhante. Deus outorgou-lhe esse estatuto de pessoa que tornará possível esse autêntico encontro igualitário com os demais.98 A resposta ética não será superficial, voluntarista, típica de um sujeito dominador que ―quer‖ amar o outro, que ―quer‖ imitar a kenosis de Cristo, mas antes uma ética de alteridade e de compaixão. Descobrindo que todos somos fruto do amor gratuito, imerecido, de Deus, o sujeito sente-se radicalmente movido ao amor gratuito e à hospitalidade incondicional.99 D) DIALOGANDO COM TODOS OS SERES NO JARDIM DO COSMOS Na perspectiva de Escoto, as coisas são irmãs, dignas de serem amadas por si mesmas, porque são fruto do amor divino que cria e sustenta. O louvor, a admiração e o agradecimento substituem qualquer intento de apropriação ou domínio. Isto não significa que não se possa tocar ou melhorar. A criação não é algo estático, imutável, mas projecto, abertura, reino da liberdade. O homem está chamado a desenvolver as potencialidades de tudo o que existe, mas sempre em conformidade com o plano divino. 1. O mundo, expressão de bondade Deus cria gratuitamente e alegra-se com a criação. O acto criador não é fruto da necessidade, pois Deus sempre age livremente. O mundo não é expressão de potência, mas expressão de bondade, é um dom. Cada criatura é uma manifestação do amor divino que supera a nossa capacidade de raciocínio, sem deixar por isso de ser compreensível e lógica em si mesma. Deus poderia ter criado coisas melhores em si mesmas, mas desde o momento em que, livremente, decide criar algo, ————— 98 Portanto o amor ao outro faz parte da resposta amorosa a Deus. Ord. III d. 28 q. un. n. 25 (X 91). 99 Imitando o amor gratuito e desinteressado de Deus, o homem está chamado a amar os seus semelhantes sem procurar possuí-los, pois neles encontra o próprio Deus. Ord. III d. 28 q. un. n. 15 (X 28).

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isso converte-se objectivamente no melhor possível, pelo facto de ter sido escolhido e querido gratuitamente por Deus. De facto, Deus não deixará de querer o que criou.100 Esta explicação do acto criador não vai contra a razão, não apela a um comportamento caprichoso, não impede a formulação racional, mas aponta a uma liberdade divina que supera a nossa capacidade de compreensão.101 Todos os seres são expressão do amor gratuito, livre, incomensurável do Criador. A natureza não é inóspita ou hostil, algo que o homem tenha de submeter, mas um lar, uma habitação acolhedora. A dignidade e beleza global do universo só a captam o contemplativo.102 Duns Escoto defende a univocidade do ser,103 estabelecendo assim uma conexão fundamental (não só análoga) entre os seres deste mundo e o próprio Deus.104 Ao mesmo tempo, Escoto afirma a singularidade única e irrepetível de cada ser, porque o Criador deu-lhe esse estatuto ao elegê-lo e individualizá-lo entre todos os possíveis. A diferença não é nem deficiência nem imperfeição, o individual prevalece sobre o universal e, portanto, é mais perfeito o conhecimento do concreto. O entendimento humano está predisposto para receber intuitivamente essa singularidade, ainda que na situação actual o faça normalmente a partir do conhecimento universal. Escoto contradiz assim a filosofia grega, que sustenta a superioridade do conhecimento abstracto e a sua necessidade para chegar a compreender o individual. Esta concepção filosófica de Escoto reforça a autonomia das criaturas. Nada é superficial ou acessório, pois Deus tudo conhece e tudo ————— 100 Ord. I d. 41 q. un. n. 54 (VI 338): ―Nullum enim aliud bonum, quia bonum, ideo amatum ab illa voluntate‖. 101 Escoto insiste que Deus actua de modo ordenado e racional. Cf. Ord. III d. 32 q. un. n. 21 (X 136). Não têm, pois, nenhum fundamento aqueles que o acusaram injustamente de defender um voluntarismo caprichoso, mais próximo ao fideísmo que à formulação racional. 102 Ord. prol. p. 5 q. 2 n. 355 (I 231). 103 Ord. I d. 3 p. 1 q. 2 n. 26 (III18). Cf. Ord. I d. 3 p. 1 q. 3 n. 137 (III85); Escoto define a univocidade como ―unitate rationis eius quod predicatur‖. (Ord. I d. 8 p. 1 q. 3 n. 89 (IV 195)) e distingue três tipos: física, metafísica e lógica. Cf. De anima, q. 1 n. 6 (Vivès III 477). 104 Lect. I d. 3 p. 1 q. 2 n. 113 (XVI 266).

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ama na sua singularidade.105 Isto pode aplicar-se ao diálogo como atitude fundamental do ser humano. Dialogar é reconhecer a riqueza da diversidade, respeitá-la e, ao mesmo tempo, buscar pontos de encontro e de entendimento. Desde a perspectiva escotista pode-se afirmar que a perfeição não se consegue alheando-nos da matéria e do próprio corpo, para conseguir o pensamento puro e o espírito imperturbável, mas assumindo e coordenando tudo o que somos. A profissão do voto de pobreza não deve ser entendida como afastamento maniqueísta da realidade, mas como liberdade interior para amar as pessoas e as coisas, sem a ganância de dominá-las ou possuí-las. O único absoluto é Deus, por isso o homem não pode deixar-se atrapalhar pelas coisas, nem tão pouco pode deprecia-las, nem utiliza-las arbitrariamente. O tempo messiânico, já presente, mas ainda não em plenitude, obriga a ser peregrino (homo viator), que não pára para escutar o cântico das sereias, mas continua a caminhar, com os olhos fixos no seu fim último que é Deus. 2. Dignidade e valor de cada uma das criaturas Na visão de Escoto, a contemplação e a escuta substituem o domínio déspota. A criação tem um valor em si mesma, que é prévio e independente da utilidade que se lhe possa dar. Se o ser humano é digno porque é amado, também os demais seres encontram em Deus o valor que por si mesmos não merecem. A contingência de todos os seres criados não impede a sua dignidade, pois ela fundamenta-se na bondade de Deus. Também eles são fruto do amor divino e, portanto, merecem respeito, independentemente da utilidade que possam ter para o homem. Cada uma das criaturas foi chamada por Deus à existência, ordenada num ―cosmos‖ e orientada para a nova criação. O homem é convidado a colaborar nesse plano divino, pois a natureza precisa dele para desenvolver as suas potencialidades,106 mas deve fazê-lo com ————— 105 Escoto defende a dignidade e a liberdade metafísica do indivíduo, que é único, irrepetível. Ord. II d. 3 p. 1 q. 6 n. 183 (VII 481): ―Omnis entitas individualis est primo diversa a quocumque alio‖. 106 Em Cristo o homem é o fim particular da criação: De rerum princ. q. 9 a. 2 sec. 4 (Vivès IV 435-436).

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responsabilidade.107 Amar é querer que o outro seja ele mesmo, segundo a lógica do seu próprio ser,108 portanto, o ser humano deve respeitar a entidade de tudo o que existe, independentemente do benefício que lhe advenha.109 Põe-se, assim, de lado o eu autossuficiente da filosofia ocidental, que reduz a criação à pura matéria neutra, que o homem tenha de converter em algo útil e positivo. A Bíblia, pelo contrário, afirma que a natureza é rica em si mesma, uma bênção cheia de potencialidades e de vida: ―Deus vendo toda a sua obra, considerou-a muito boa.‖110 Escoto defende a dignidade e a liberdade metafísica do indivíduo, que é único e irrepetível. A diferença individual ou haecceidade (haecceitas)111 é uma característica ontológica positiva, que imita a infinita individualidade divina. Graças a ela, cada um dos seres é único, irrepetível, independentemente da natureza que compartilhe com o seu género ou espécie. Realça-se assim a bondade e singularidade de todos os seres, pois todos são fruto da vontade livre e amorosa de Deus. Todos estamos intimamente relacionados na caridade, pois formamos parte de um único projecto de amor, cada um com a sua própria dignidade e com os seus objectivos específicos. A alteridade é parte intrínseca do ser humano. Estamos chamados a contemplar, maravilhados, o mistério do mundo e a administrar responsavelmente o que Deus nos confiou. A mentalidade utilitarista deixa para trás o diálogo e a escuta. As coisas não são meros objectos que podemos usar a nosso bel-prazer, segundo as necessidades do momento. Nem sequer são degraus para nos aproximarmos de Deus, deixando-as debaixo dos nossos pés. O cristão não utiliza a natureza como um senhor déspota, nem tão pouco se deixa ————— 107 J. DUNS SCOTO, De rerum princ. q. 13 a. 1 sec. 6 (Vivès IV 497-498): ―Homo ordinatur ad finem suum per bonum usum creaturarum, et deordinatur per abusum earum‖. 108 O. TODISCO, «Dall'io pensó tomista all'io voglio scotista», in Miscellanea francescana 3-4 (2004) 521. 109 Ord. III d. 27 q. un. n. 16 (X 53). 110 Gn 1, 31. ―Todas as criaturas têm em si a salvação, não há nelas veneno de morte.‖ Sb 1, 14. 111 Ord. III d. 1 p. 1 q. 3 n. 132 (IX 59): ―Singularitas praecedit rationem suppositi‖.

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agarrar por ela. Situando-se no meio dos seres, o franciscano descobre-se irmão, afectuosamente, pois em tudo descobre a presença de Deus encarnado. Mais do que projectar sobre a natureza os seus sentimentos, escuta, acolhe e une-se à sinfonia de todo o cosmos. 3. Até que, em Cristo, todos sejamos um no Amor O diálogo amoroso de Deus com a criação encontra em Cristo a base adequada e definitiva. A criação inteira gravita em volta d’Ele e n’Ele encontra a unidade e o sentido. Todos os seres tendem a Deus em Cristo, o Verbo feito carne. Como se se tratasse de uma pirâmide perfeita, Cristo é vértice, o ponto focal de tudo o criado e o encarregado de recapitular em si todas as coisas para as apresentar a Deus como oferenda de amor. Esse ponto ómega da criação não será o fim da história amorosa que, desde antes dos séculos, Deus iniciou com a humanidade em Cristo. O valor que Escoto dá ao singular deveria ajudar-nos a apreciar a diversidade das raças, culturas e religiões como uma riqueza com que Deus no prendou para que juntos, em absoluta hospitalidade, façamos o mais belo mosaico em sua honra. Deveria também mover-nos a um maior apreço pela natureza. Todos os seres, até ao mais pequeno, reflectem a Trindade e, por isso, têm uma dignidade que deve ser respeitada. Eles necessitam do homem para expressar o seu louvor ao Criador e poderem desenvolver as suas potencialidades. Unidos a eles, fazemos o itinerário até Deus. Por isso, enquanto caminhamos unidos a eles, esperando a salvação definitiva, empenhamo-nos em antecipar a chegada dos novos céus e nova terra. A felicidade dos bem-aventurados não se reduzirá a ―ver a Deus‖, ou seja, a um acto do entendimento sujeito-objecto, mas será uma ―fruição do Sumo Bem‖, será unir-se a Ele com um acto de vontade.112 O amor jamais passará. Quando Cristo apresentar todas as coisas ao Pai, descobriremos a plenitude do sentido desse diálogo amoroso já iniciado no tempo e que jamais terá fim.

————— 112 Ord. IV d. 49 q. ex latere, n. 2 (Vivès XXI 163).

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CONCLUSÃO Ao início deste artigo recordávamos que Paulo VI tinha proposto Duns Escoto como modelo do diálogo para o período pós conciliar, tanto pela sua atitude como pela sua doutrina. O Papa assinalava o influxo positivo que Escoto poderia ter para o diálogo ecuménico e para o encontro com a cultura contemporânea, marcada pelo ateísmo prático. Ao longo destas páginas, procurou-se mostrar que essas afirmações do Papa, mais tarde ratificadas por João Paulo II, continuam a ser válidas na sociedade da informação. A superabundância de meios técnicos e as crescentes oportunidades de encontro pessoal não bastam por si só para garantir um mundo sereno, pacífico e solidário. É certo que aumentaram as possibilidades de comunicação entre os povos e culturas, mas também continua presente o fechar-se ao Outro e aos outros, a luta de interesses, a recolhimento intimista. A isto devem acrescentar-se os perigos da destruição massiva, o terrorismo e a contaminação do meio ambiente. Reeditando o dito ―vícios privados, públicas virtudes‖, o liberalismo afirma que a mão invisível do mercado converte automaticamente em utilidade social o que, na verdade, é uma procura descarada do próprio interesse. Em vez da colaboração, o eu autossuficiente procura utilizar tudo a seu capricho, procura a submissão dos demais, exclui a transcendência e trata o próprio corpo como se fosse um objecto apropriado. A mesma natureza converte-se em objecto passivo do domínio déspota do homo faber, que procura submetê-la segundo o capricho do momento, sem sentir-se implicado nela. Esta mentalidade competitiva bloqueia o diálogo e impede o altruísmo. Reflecte também uma concepção negativa da natureza humana, que é vista como algo que facilmente leva ao egoísmo e à insolidariedade. Para evitar males maiores, procura-se justificar a ―inevitável‖ guerra de interesses, o individualismo feroz e a lei do mais forte. Neste contexto de desconfiança mútua, propõem-se o homo aeconomicus e a idolatria do mercado como único horizonte ―viável‖ da actividade humana. Face a esta visão negativa da natureza humana, Escoto propõe uma antropologia baseada na gratuidade e aberta à transcendência. Somos

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dignos porque amados. O nosso valor não depende da nossa eficácia ou utilidade. Também a criação tem um valor que é independente do homem. O ser humano é imagem perene do Deus que é amor e, portanto, está chamado ao altruísmo e à solidariedade. Se o egoísmo não é inevitável, então não há necessidade de construir um sistema social excessivamente centrado no confronto de interesses individualistas. Em vez de levantar barreiras, podemos potenciar as nossas capacidades inatas para o diálogo e auto-doação. Com esta premissa, o sujeito pode reconhecer-se criatura amada por Deus, aceitar serenamente os próprios limites e iniciar com os outros um diálogo sincero e enriquecedor, entre iguais. Se o ser é um dom, as realidades meramente comerciais e utilitaristas do homo aeconomicus têm de ser subordinadas à gratuidade, à contemplação, à hospitalidade, à festa, ao sentido lúdico, à arte, ao estar juntos, à partilha gozosa e desinteressada. Trad. GONÇALO FIGUEIREDO OFM

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II — Documentos

DISCURSO DO PAPA BENTO XVI À FAMÍLIA FRANCISCANA NO CAPÍTULO INTERNACIONAL DAS ESTEIRAS Amados irmãos e irmãs da Família Franciscana! Com grande alegria dou a todos vós as boas-vindas, nesta feliz e histórica circunstância que vos reuniu a todos: o oitavo centenário da aprovação da "protoregra" de São Francisco por parte do Papa Inocêncio III. Transcorreram oitocentos anos, e aquela dúzia de Frades tornou-se uma multidão, espalhada em todas as partes do mundo e hoje aqui, por vós, dignamente representada. Nos últimos dias marcastes encontro em Assis para aquele que quisestes chamar "Capítulo das Esteiras", para reevocar as vossas origens. E no final desta extraordinária experiência viestes juntos encontrar o "Senhor Papa", como diria o vosso seráfico Fundador. Saúdo-vos a todos com afecto: os Frades Menores das três obediências, guiados pelos respectivos Ministros-Gerais, entre os quais agradeço ao Padre José Rodríguez Carballo as suas gentis palavras; os membros da Terceira Ordem, com o seu Ministro-Geral; as religiosas Franciscanas e os membros dos Institutos seculares franciscanos; e, sabendo que estão espiritualmente presentes, as Irmãs Clarissas, que constituem a "segunda Ordem". Sinto-me feliz por receber alguns Bispos franciscanos; e em

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particular saúdo o Bispo de Assis, D. Domenico Sorrentino, que representa a Igreja de Assis, pátria de Francisco e de Clara e, espiritualmente, de todos os franciscanos. Sabemos quanto foi importante para Francisco o vínculo com o Bispo de Assis da sua época, Guido, o qual reconheceu o seu carisma e o apoiou. Foi Guido quem apresentou Francisco ao Cardeal Giovanni di San Paolo, o qual o introduziu depois à presença do Papa favorecendo a aprovação da Regra. Carisma e Instituição são sempre complementares para a edificação da Igreja. O que dizer, queridos amigos? Antes de tudo desejo unir-me a vós na acção de graças a Deus por todo o caminho que vos permitiu percorrer, enchendo-vos dos seus benefícios. E como Pastor de toda a Igreja, desejo agradecer-Lhe o dom precioso que sois para todo o povo cristão. Do pequeno regato que brotou aos pés do Monte Subásio, formou-se um grande rio, que deu uma contribuição notável à difusão universal do Evangelho. Tudo teve início com a conversão de Francisco, o qual, a exemplo de Jesus, "se despojou a si mesmo" (cf. Fl 2, 7) e, desposando a Dama Pobreza, tornou-se testemunha e arauto do Pai que está nos céus. Ao Pobrezinho podem ser literalmente aplicadas algumas expressões que o apóstolo Paulo refere a si mesmo e que me apraz recordar neste Ano Paulino: "Estou crucificado com Cristo! Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim; e a vida que agora vivo na carne. vivo-a na fé do Filho de Deus, que me amou e Se entregou a Si mesmo por mim" (Gl 2, 19-20). E ainda: "Daqui em diante, ninguém me moleste, pois trago no meu corpo as marcas do Senhor Jesus" (Gl 6, 17). Francisco recalca perfeitamente estas pegadas de Paulo e na realidade pode dizer com Ele: "Para mim o viver é Cristo" (Fl 1, 21). Experimentou o poder da graça divina e está como que morto e ressuscitado. Todas as suas riquezas anteriores, qualquer motivo de orgulho e de segurança, tudo se torna uma "perda" a partir do momento do encontro com Jesus crucificado (cf. Fl 3, 7-11). O deixar tudo torna-se aquele ponto quase necessário, para expressar a superabundância do dom recebido. Isto é tão grande, que exige um despojamento total, que contudo não é suficiente; merece uma vida inteira vivida "segundo a forma do santo Evangelho" (T 14; Fontes Franciscanas, 116). Aqui chegamos ao ponto que certamente está no centro deste nosso encontro. Resumi-lo-ia assim: o Evangelho como regra de vida. "A Regra e a vida dos frades menores é esta, ou seja, observar o santo Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo": assim escreve Francisco no início da Regra bulada. Ele compreendeu-se a si mesmo totalmente à luz do Evangelho. É este o seu fascínio. É esta a sua perene actualidade. Tomás de Celano refere que o Pobrezinho "levava sempre Jesus no coração. Jesus nos lábios, Jesus nos ouvidos, Jesus

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nos olhos, Jesus nas mãos, Jesus em todos os outros membros... Aliás, encontrando-se muitas vezes em viagem e meditando ou cantando Jesus, esquecia-se de estar em viagem e detinha-se a convidar todas as criaturas a louvar Jesus" (1C I 9, 115). Assim o Pobrezinho tornou-se um evangelho vivo, capaz de atrair para Cristo homens e mulheres de todos os tempos, sobretudo os jovens, que preferem a radicalidade e não as meias-medidas. O Bispo de Assis, Guido, e depois o Papa Inocêncio III reconheceram no propósito de Francisco e dos seus companheiros a autenticidade evangélica, e souberam encorajar o seu compromisso em vista também do bem da Igreja. Vem aqui espontânea uma reflexão: Francisco teria podido não se encontrar com o Papa. Muitos grupos e movimentos religiosos se iam formando naquela época, e alguns deles contrapunham-se à Igreja como instituição, ou pelo menos não procuravam a sua aprovação. Certamente uma atitude polémica em relação à Hierarquia teria conquistado para Francisco não poucos seguidores. Ao contrário, ele pensou imediatamente em entregar o seu caminho e o dos seus companheiros nas mãos do Bispo de Roma, o Sucessor de Pedro. Este facto revela o seu autêntico espírito eclesial. O pequeno "nós" da Igreja una e universal. E o Papa reconheceu isto e apreciou-o. Também o Papa, de facto, por seu lado, teria podido não aprovar o projecto de vida de Francisco. Aliás, podemos imaginar que, entre os colaboradores de Inocêncio III, tenha havido quem o aconselhasse neste sentido, talvez precisamente temendo que aquele pequeno grupo de frades se assemelhasse com outras agregações heréticas e pauperistas do tempo. Ao contrário o Romano Pontífice, bem informado pelo Bispo de Assis e pelo Cardeal Giovanni di San Paolo, soube discernir a iniciativa do Espírito Santo e acolheu, abençoou e encorajou a comunidade nascente dos "frades menores". Queridos irmãos e irmãs, transcorreram oito séculos, e hoje quisestes renovar o gesto do vosso Fundador. Todos vós sois filhos e herdeiros daquelas origens. Daquela "boa semente" que foi Francisco, conformado por sua vez com o "grão de mostarda" que é o Senhor Jesus, morto e ressuscitado para dar muito fruto (cf. Jo 12, 24). Os Santos repropõem a fecundidade de Cristo. Como Francisco e Clara de Assis, também vós comprometei-vos a seguir sempre esta mesma lógica: perder a própria vida por causa de Jesus e do Evangelho, para a salvar e tornar fecunda de frutos abundantes. Enquanto louvais e agradeceis ao Senhor, que vos chamou para fazerdes parte de uma "família" tão grande e tão bela, permanecei à escuta do que o Espírito hoje lhe diz, em cada uma das suas componentes, para continuar a anunciar com paixão o Reino de Deus, nas pegadas do seráfico Padre. Cada irmão e cada irmã conserve sempre um ânimo contemplativo, simples e alegre: voltai sempre a partir de

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Cristo, como Francisco partiu do olhar do Crucifixo de São Damião e do encontro com o leproso, para ver o rosto de Cristo nos irmãos que sofrem e levar a todos a sua paz. Sede testemunhas da "beleza" de Deus, que Francisco soube cantar contemplando as maravilhas da criação, e que lhe fizeram exclamar dirigido para o Altíssimo: "Tu és beleza!" (Louvores a Deus 4.6). Caríssimos, a última palavra que vos desejo dizer é a mesma que Jesus ressuscitado entregou aos seus discípulos: "Ide!" (cf. Mt 28, 19; Mc 16, 15). Ide e continuai a "consertar a casa" do Senhor Jesus Cristo, a sua Igreja. Nos últimos dias, o terramoto que atingiu os Abruzos danificou gravemente muitas igrejas, e vós de Assis sabeis bem o que isto significa. Mas há outras "ruínas" muito mais graves: as das pessoas e das comunidades! Como Francisco, começai sempre por vós mesmos. Nós somos as primeiras casas que Deus quer restaurar. Se fordes sempre capazes de vos renovar no Espírito do Evangelho, continuareis a ajudar os Pastores no espírito do Evangelho, continuareis a ajudar os Pastores da Igreja a tornar cada vez mais belo o seu rosto de esposa de Cristo. É isto que o Papa, hoje como na origem, espera de vós. Obrigado por terdes vindo! Agora ide e levai a todos a paz e o amor de Cristo Salvador. Maria Imaculada, "Virgem feita Igreja" (cf. Saudação à Bem-Aventurada Virgem Maria, 1), vos acompanhe sempre. E ampare-vos também a Bênção Apostólica, que concedo de coração a todos vós, aqui presentes, e a toda a Família Franciscana. Sinto-me feliz por receber de modo especial o Ministro-Geral juntamente com os Frades, irmãs e irmãos de toda a comunidade franciscana espalhados em todo o mundo, presentes nesta audiência. Na celebração do octingentésimo aniversário da aprovação da Regra de São Francisco, rezo para que através da intercessão do Pobrezinho, os franciscanos continuem em toda a parte a doar-se totalmente a si mesmos ao serviço dos outros, especialmente dos pobres. O Senhor vos abençoe nos vossos apostolados e encha as vossas comunidades de abundantes vocações. No octingentésimo aniversário da aprovação da "proto-regra", juntamente convosco agradeço a Deus por todo o bem que a Ordem deu à vida e ao desenvolvimento da Igreja. Agradeço-vos de modo particular o empenho missionário nos diversos continentes. A exemplo do vosso Fundador perseverai no amor de Cristo pobre e levai a alegria evangélica a todos os homens. Ampare-vos a bênção de Deus. Sábado, 18 de Abril de 2009

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