4) Jesus e o Deus Pai. Jesus revela Deus como seu Pai (Trindade econômica revela a Trindade imanente) (Antes de entrar na reflexão de Jesus como revelador de Deus Pai, alguns elementos da relação Pai-Filho na Trindade imanente). O Pai é o não gerado, por isso falamos que o Pai é a fonte, a origem da vida divina. “É essa manancialidade pura, é esse gratuito extravasar do amor amante, é essa originária difusividade do eterno amor que faz do pai o Generante, o Pai do Filho eterno: não é o seu amor um amor egoísta por si mesmo, cativeiro e prissão do eu; o seu amor é amor gerado, originante, fecundo (...). A paternidade é a outra propriedade do amor do Pai, juntamente com o ser ‘princípio sem principio’ (...). E, no entanto, não gerou outro que o que ele próprio é: Deus (gerou) Deus, a luz (gerou) a luz. Dele é, portanto, ‘toda paternidade no céu e na terra’ (Ef 3, 15). Bruno Forte, A Trindade como história, pp. 95-96). Nessa relação pericorética, “cada uma das pessoas entrega tudo às outras (todas as perfeições) menos aquilo que é próprio e exclusivo dela e que por isso é incomunicável: no Pai a paternidade, no Filho a filiação, no Espírito Santo a expiração passiva” (Boff, Trindade, sociedade e libertação, p. 120). Votaremos em outros capítulos na questão das processões (geração e espiração). Faremos aqui apenas uma aceno para ver a correspondência entre a Filiação imanente do Verbo e a experiência econômica de Jesus que se sente filho do Pai, e revela a Deus como seu Pai e nosso Pai. De onde ‘vem’ o Filho? É eterno, mas não a fonte de si mesmo (geração não criação). Deus Pai é o Pai do Filho. É o gerador eterno do Filho. O Pai não procede de nenhuma outra fonte divina. É o não originado. O Pai é determinado por si e por sua relação com o Filho e o Espírito. Quem é o Filho? É o único – unigênito. Tudo tem em comum desde sempre com o Pai, menos a paternidade. Só o Filho tem a filiação. O Pai transmite tudo ao Filho menos a capacidade de ser fonte da divindade. O Filho é da necessidade essencial do Pai (geração), não da vontade. No tocante à ação trinitária, as três pessoas agem unitariamente (ação unitária ad extra). Porém não se pode deduzir que sejam indistintos em si mesmo. Na ação de Deus Uno e Trino apropriam-se às Pessoas divinas modo de atuar que na vida interna de Deus seriam mais dessa ou daquela pessoa. O que é próprio de cada Pessoa na vida interna de Deus? Urge olhar para ação ad extra. Aqui as pessoas atuam diversamente. Por exemplo, encarnação. Somente o Filho assumiu a união hispostática. Também as outras pessoas participam desse processo (o Pai envia; o Espírito visita Maria, no entanto, é próprio do Filho a encarnação). O Pai envia, o Filho se encarna, o Espírito é dado pelo Pai e pelo Filho. Assim, esse modo de operar no mistério da salvação
corresponde ao modo de ser de Deus mesmo. “Ainda que os dois estejam sempre juntos, um é enviado e o outro envia, pois a missão é a encarnação, e esta encarnação é somente a encarnação do Filho, não a do Pai. Por isso o Pai enviou o Filho, mas não se separou do Filho. Portanto, não enviou o Filho para um lugar, onde o Pai não estava presente” (Santo Agostinho). Na mesma dinâmica, a criação é um evento trinitário. É o Deus Pai que criou tudo, criou tudo em Cristo, por meio de Cristo e para Cristo (Cl 1, 12-20), na força o no poder do Espírito Santo. “Na criação, toda a atividade parte do Pai. Dado, porém, que o Filho, como o Logos, e o Espírito, como a Força, participam dela a seu modo, mas em igual medida, a criação deve ser atribuída à unidade do Deus uno e trino” (Moltmann, Trindade e Reino de Deus, p, 130). 4.1) O envio do Filho e a revelação de Deus Pai feito por Jesus As fórmulas de envio (Gl 4, 4-5; Rm 8, 3; Jo 8, 14-16; Jo 8, 28-29). No envio, o Filho é entendido inteiramente a partir do Pai, e nesse mesmo envio o Pai, através do Filho, é revelado como Pai. Para Jesus, suas ações se originam em Deus. “As palavras que vos falo não as falo por mim mesmo; é o Pai, que permanece em mim (Jo, 14,10). Jesus, o Filho-Verbo encarnado, sente-se o Filho muito amado de Deus. Os evangelhos nos mostram a originalidade da experiência de Jesus com Deus. “Trata-se de algo extremamente íntimo e único, pois Jesus o expressou por uma palavra tirada da simbólica da comunhão familiar. Abba, que na linguagem infantil significava papaizinho. Era na oração, quase sempre feita a sós (cf Mc, 1,35; 6, 46; 14, 32-42; Lc 3, 21; 5, 16; 6,12; 9, 28; 11, 1), que Jesus invocava o seu Pai” (Boff, Trindade, sociedade, libertação, p, 45). Abba aparece 170 vezes nos Evangelhos. Deus é o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo (Rm 15, 6; 1 Cor 1, 3). “Fora da revelação única que o Filho e o Espírito nos entregam, Deus Pai não passa de sinônimo de Deus criador. Por Jesus descobrimos o Pai, o Filho e o Espírito como sendo a realidade do único e verdadeiro Deus, a Trindade santa” (Boff, p. 205). “Jesus invoca Deus como Abbá (Pai) e o faz de maneira característica (quatro vezes em Mc; oito em Lc e Mt; sete em Lc; 22 em Mt) É interessante observar que, ao fazê-lo, introduz sutilmente para os discípulos uma diferença relacional que distingue meu Pai (Mc 14, 36; Mt 11, 25) e vosso Pai (Lc 6, 36; 12, 30.32; Mc 11, 25; Mt 28, 9). Sua relação com o Pai não é igual àquela que os discípulos vão poder ter com o mesmo Pai. Os discípulos só poderão chamar Deus de Pai porque ele- Jesus, o Filho- lhes abre o caminho” (Bingemer; Feller, Deus Trindade, p. 76). “Somos por graça o que Ele é por natureza” (Idem). “Esta experiência de intimidade do Paizinho não se transforma numa doutrina, mas numa prática para Jesus. Ele mesmo, à imitação do Pai nos céus, se torna solidário para com todos os desprezados; estes são os primeiros destinatários de sua mensagem
(Lc 6, 20) e no comportamento para com eles faz decidir a salvação ou a perdição (Mt 25, 31-46)” (Boff, Trindade, sociedade, libertação, p. 45). Revelação da paternidade de Deus é central na mensagem de Jesus (invoca- O como Pai. Mc 15, 34; Mt 27, 46; 11, 25-27; Lc 10, 21-22). A história de Jesus não é a história de um homem com seu Deus, mas a história do Filho com seu Pai. Ele vive uma relação de comunhão plena com seu Deus, a quem descobre como Pai. ‘Eu e Pai somos um’. Resulta daí motivos para sua condenação: ‘porque chamava a Deus seu próprio Pai, se fazendo igual a Deus’ (Jo, 5, 16). “Essa consciência de Jesus não passou despercebida aos adversários que decidiram condená-lo à morte, ‘porque chamava a Deus seu próprio Pai, se fazendo igual a Deus (Jo 5, 16)” Boff, Trindade, sociedade e libertação, p. 205). Vive a experiência do Pai no cuidado aos mais caídos. Ao justificar um milagre no dia de sábado, afirma: “Meu Pai trabalha até o presente e eu também trabalho” (Jo 5, 17). Descobre o Pai dentro da criação (Mt 6, 26), no cuidado para com as aves do céu. Não se trata da percepção de um Deus criador, mas de um Pai, cuja paternidade se irradia na criação. Vive uma relação de confiança e obediência. “A vida de Jesus foi uma entrega total de pura confiança a Deus, pondo-se numa atitude de disponibilidade incondicional. Tudo que fazia, fazia-o animado por essa genuína, pura, espontânea e de confiança no seu Pai. Procurava a vontade sem receio,calculismo, nem estratégias. Não se apoiava na religião do templo nem na doutrina dos escribas nem nas tradições de Israel” (Pagola, Jesus: uma abordagem histórica, p. 323-324). No seu agir messiânico Jesus revela o rosto misericordioso do Pai. “O que interessa, na obra feita, não é o que é feito, senão o fato de que é a obra do Pai, realizada – levada à perfeição, diz o verbo grego – pelo Filho” (Catão, Falar de Deus. Considerações sobre os fundamentos da reflexão cristã, p. 105). Em algumas perícopes do Evangelho de João é possível identificar esta realidade, de profunda relação entre o Pai e o Filho: a originalidade do agir de Jesus, como revelação plena daquele que o enviou: “O sinal é uma indicação que deixa transparecer a realidade de Jesus, sua glória escondida na carne. Do cap. 5 em diante, nota-se inclusive uma mudança na terminologia: aparece o termo obra (p. ex. 5,36), mas sempre e exclusivamente nos lábios de Jesus. Este, por sua vez, acentua mais diretamente que no gesto de Jesus está presente a ação do Pai: o Pai age em Jesus e através de Jesus. Assim, o sinal não revela simplesmente quem é Jesus (sua origem, seu significado para nós), mas também, mais em profundidade o rosto do Pai (Fabris; Maggioni (orgs). Os Evangelhos II, p. 332)
A partir da revelação de Jesus de que Deus é Pai, o cristianismo chama Deus de Pai. Deus não é um nome próprio. Deus pode ser um nome comum para referir-se a alguém, a qualquer divindade (pode ser Zeus dos antigos gregos; Jupter dos antigos romanos ...). Na fé cristã, Deus é Pai, Pai de Jesus Cristo. Sobretudo no Antigo testamento há uma distância entre criatura e criador. Ele é o Deus Senhor, forte guerreiro, onipotente). Com cristianismo há uma salto fundamental: chamamos a Deus de Pai. (“Pai nosso que estais no céu ...). Esse passo nos é oferecido por Jesus. Tudo me foi entregue pelo Pai. De modo que ninguém conhece o Filho senão o Pai e ninguém conhece o pai senão o Filho e aquele a quem o Filho quiser revelar” (Mt 11, 27; Lc 10, 22). No corpo Joanino, encontram-se 141 referências a Deus como Pai. No Evangelho de João, Pai é o modo normal de designar Deus, e Filho é a denominação habitual que Jesus usa para designar a si mesmo (Jo 6, 27; Jo 5, 36-37; 6, 44.57; 8, 42; 13, 3; 16, 17-28). Enfim, o Deus cristão não é outro senão o Pai de nosso senhor Jesus Cristo. Trata-se da novidade do cristianismo. “O que significa honrar o Pai senão proclamar que ele tem um Filho? Porque uma coisa é quando te falam de Deus enquanto Deus, outra quando te falam de Deus como Pai. Quando te falam enquanto Deus, indicam o criador, o onipotente, o sumo espírito, eterno, invisível, imutável; quando te falam dele como Pai, recomendam a ti o Filho, porque Deus não se poderia chamar de Pai se não tivesse um Filho, nem Filho se não tivesse um Pai”. Jesus revela Deus Pai através das palavras, gestos e sinais, numa relação de intimidade e confiança. “Na sua humanidade, Jesus é tão intimamente “do Pai”, que é exatamente nisso que ele é Filho de Deus. Isso por si sugere que o centro da humanidade de Jesus não estava dentro dele mesmo, mas em Deus Pai. Os dados históricos sobre Jesus também o mostram; o centro, o apoio, a “hypóstasis” (no sentido de algo que dá estabilidade) era o seu relacionamento com o Pai, com a causa do qual se identificava. Como ser humano que ele é, Jesus é constitutivamente “alocêntrico”: voltado para o Pai e para a salvação que vem de Deus para todos; é isso que lhe dá o seu perfil e o seu rosto. É isso que identifica Jesus de Nazaré. A sua autonomia como Jesus de Nazaré é a sua relação constitutiva total com aquele que ele chama de Pai, o Deus voltado para o humano. É essa a sua experiência com o “Abba”, alma, fonte e base do que ele faz e deixa de fazer, de sua vida e de sua morte” Schillebeeckx, Jesus, a história de um vivente, p. 663) 4.2) Diferença entre geração do Filho e criação. Somos filhos no filho Pai é Pai do Filho. Somos filhos no Filho. “Não recebestes um espírito de escravos para recair no medo, mas recebestes o espírito de filhos adotivos com o qual clamamos Abba! Pai” (Rm 8, 15); Ef 1, 4-5.10.
A relação filial de Jesus e única e não se repete. Jesus é o filho por excelência (filho ho hiós. Os homens são filhos (tekná). Jesus é o Filho unigênito (Jo 1, 14.18; 3, 16. 18; 1 Jo 4, 9). Mesmo se não houvesse criação Ele seria sempre Pai (Jo 17, 24). Pai, ... me amaste antes da criação do mundo”. “Deus ninguém viu; o Filho unigênito que está no seio do Pai foi quem no-lo deu a conhecer” ( Jo 1, 18). Para refletir: Quais as dificuldades pastorais para transmitir a novidade de que somos filhos de Deus? Como conciliar a crise da paternidade com a imagem de Deus Pai? Quais os caminhos para resgatar a importância da figura do pai e de Deus como Pai? As pessoas que estão nas periferias existências conseguem sentir-se filhas de Deus Pai? Qual a relação entre acolhida eclesial e experiência de sentir-se filho amado de Deus? 4.3) Anúncio do Reino e sua experiência de Filho amado Historicamente está bem documentada a atuação de João Batista antes da atuação de Jesus. O movimento batismal era bastante difundido na época. Qual a diferença entre o batismo de João Batista e a boa nova de Jesus? João pregou a conversão na ‘ultima hora’. ‘O machado está posto à raiz das árvores’ (Mt 3, 10). “João anunciava o reino vindouro como o juízo da ira divina pelos pecados dos homens (...). Jesus anuncia o reino vindouro como o reino da graça e da misericórdia de Deus, que há de vir” (Moltmann, p. 82). Em que se funda essa diferença? “Funda-se em que Jesus reconhece e anuncia o Senhor do reino vindouro como sendo o seu Pai ...). O conteúdo da revelação feita a Jesus, por ocasião do batismo e do seu chamado, deve repousar naquele nome de Deus que ele empregou de modo único e intransferível: Abbá, meu Pai” (Motmann, p. 83). Qual a relação do Reino anunciado por Jesus e sua experiência de Deus como seu Pai? “Não é o domínio que determina a paternidade de Deus, mas, ao contrário, a paternidade divina em relação a Jesus, o Filho, é que determina o domínio e o reino anunciados por Jesus. Isso confere uma nova dimensão ao reino por ele proclamado. A realeza subsiste tão somente no âmbito da paternidade divina. Nesse reino não há servidores, mas apenas filhos de Deus, livres. Nesse reino não se pergunta pela obediência e submissão, mas sim pelo amor e livre participação” (Motmann, p 84).