Kátia Regina Franco,
[email protected], - mestranda em Estudos Lingüísticos – Ufes, pesquisadora da teoria de gêneros textuais, professora da rede municipal de Vila Velha. O RECURSO DA TRADUÇÃO DOS CLÁSSICOS LITERÁRIOS PARA O PÚBLICO INFANTIL RESUMO Este trabalho objetiva analisar obra adaptada de clássicos literários para o público infantil, fundamentado na retomada da teoria de Vico (1668-1744) e estudiosos da área das Ciências Naturais por Edward Said (1983) sobre a repetição dos feitos humanos com a intenção de preservar a espécie. Serão utilizados ainda os três modelos de tradução preconizados por Jakobson (1969) – intralingual, interlingual e intersemiótica, sendo a adaptação concebida como uma tradução intralingual de uma obra base e que envolve simultaneamente as três categorias de tradução, devido ao texto original ter sido escrito em espanhol, a fazer uso de imagens e a sofrer modificações na estrutura lingüística. Para o corpus deste trabalho, foi selecionado o exemplar Dom Quixote, da coleção Reencontro Infantil, que é composta por uma série de obras clássicas adaptadas para o público infantil. Entendendo adaptação como um jogo de tradução intralingual de uma obra base, discute-se as funções de preservar um clássico por meio da repetição, de permitir ao leitor moderno o acesso a uma obra-prima reescrita com uma linguagem vernácula e de um possível desdobramento do texto-fonte. Palavras-chave: tradução, adaptação, clássicos. Introdução No capítulo On Repetition, Edward Said (1983) cita a teoria do filósofo italiano Vico (1668-1744) para quem a repetição é vista como “padrões inteligentes que preservam a raça humana” (p.111). Said condiciona a teoria de Vico a novas combinações. Para o autor, a repetição não se dá meramente como cópia de um modelo, o que seria tedioso, mas traz um novo a partir do velho acrescido de novos elementos. Desse modo, a história da humanidade é repetida em estágios dialógicos, o que torna relevante a persistência do homem em preservar a sua espécie. Para Said, (1983)
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... never mind if epistemologically the status of repetition itself is uncertain: repetition is useful as a way of showing that history and actuality are all about human persistence, and not about divine originality.1 (SAID, 1983:113)
Dentro da perspectiva do autor, a repetição traz experiências semelhantes às acumuladas ao longo dos anos, sendo um modo de representação que o homem faz de si mesmo e que mostra para o outro. Para tanto, o homem escolhe os modelos que quer repetir. Um modelo no qual ele se reconheça e que o possa representar. A história humana é constantemente grafada na literatura universal. Possuímos um patrimônio histórico-cultural que precisa ser preservado e uma das escolhas feitas é a reescrita de textos protótipos das questões humanas. Clássicos literários datados de há muitos anos, contêm em sua essência características próprias de um tempo e um espaço, considerados uma riqueza para o estudo diacrônico. Porém, para o acesso do público da atualidade, no nível do significado, uma tradução em termos modernos faz-se necessária para a fruição (apreciação com entendimento) da obra em si mesma. Quais os cânones que deveriam ser traduzidos? Como se daria essa tradução sem um prejuízo da originalidade da obra? É a questão que move o árduo e precioso trabalho do tradutor. O que repetir e o que atualizar? Jakobson (1969) já advertira A escolha de clássicos e sua reinterpretação à luz de uma nova tendência é um dos problemas essenciais dos estudos literários sincrônicos. (...) toda época distingue entre formas mais conservadoras e mais inovadoras. Toda época contemporânea é vivida na sua dinâmica temporal, e, por outro lado, a abordagem histórica (...) não se ocupa apenas de mudanças, mas também de fatores contínuos, duradouros, estáticos. (JAKOBSON, 1969:121)
Problemáticas e caminhos da tradução Jakobson (1969), preconiza que há três espécies de tradução, que devem ser diferentemente classificadas. A primeira é a tradução intralingual ou reformulação, que interpreta os signos verbais por meio de outros signos dessa mesma língua; a segunda é a interlingual ou tradução propriamente dita, que interpreta os signos verbais por meio de signos verbais de alguma outra língua; e a terceira é a intersemiótica ou transmutação, que interpreta os signos verbais por meio de signos não-verbais. Como exemplos dos três modelos de tradução, podemos citar, no primeiro caso, livros que tenham sido reescritos de forma adaptada, como é o caso de Dom Quixote de la Mancha,
obra a ser tratada mais
detalhadamente ao longo do trabalho. Essa possibilidade é válida se a adaptação for feita de 1
Não importa se epistemologicamente o estado de repetição é incerto: repetição é útil como uma forma de mostrar que a história e realidade estão relacionadas à persistência humana, e não à originalidade divina. (tradução nossa).
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uma tradução em português da referida obra cujo original é em espanhol. No modelo interlingual, além da tradução de Dom Quixote do espanhol para o português, cita-se o trabalho de Marilise Rezende Bertin e John Milton (2005), que adaptaram e traduziram a obra de William Shakespeare, Hamlet, tentando manter a essência do original, mesmo que para isso tenha sido necessário cortar certas divagações e repetições que tivessem pouca coisa a ver com o desenvolvimento do drama. Além disso, modernizaram expressões e formas arcaicas, deram esclarecimentos em notas de rodapé e não censuraram os duplos sentidos sexuais presentes no texto original. No caso de traduções intersemióticas, podemos dizer que há várias obras literárias transformadas em filmes para o cinema, como é o caso de Romeu e Julieta, de Shakespeare, dirigida pelo cineasta Baz Luhrmann (1996). Para Alba Olmi (1994), o papel da tradução é permitir troca de informações e conhecimentos em todos os campos do saber, seja político, filosófico, cultural, social, econômico, científico, e/ou tecnológico. A tradução possibilita a leitura das mais diversas obras escritas em diferentes países e épocas. No entanto, tal leitura nos é apresentada com uma roupagem mais reconhecível, porque traduzida. Lemos tal obra de acordo com a leitura que o tradutor faz da obra no original e transmite para a língua alvo. Como intermediário, o tradutor transfere a imagem de um autor, de uma obra e de uma cultura para outra cultura conforme a leitura que faz. Nesse sentido, a tradução representa uma forma de leitura e, do mesmo modo, a leitura representa uma forma de traduzir. Para efetivar seu trabalho de tradução, o tradutor de uma obra original deve escolher entre dois caminhos a serem seguidos: ou privilegiar o texto-alvo ou ser fiel ao texto-fonte. A autora postula que, quando o tradutor opta por enveredar pelo privilégio ao texto-alvo, incorre na desconsideração tanto do texto-fonte como do contexto cultural e literário de origem. Essa abordagem acarretaria uma descontextualização da cultura e da história. Se, por outro lado, o tradutor escolhe se ater exclusivamente ao texto-fonte, também deixaria de considerar o ambiente no qual está sendo traduzido, incluindo o leitor alvo desse texto. Alguns autores, como Coultrard (apud Olmi) optam por um leitor ideal, atribuindo-lhe certos conhecimentos de fatos, memória de algumas experiências, preferências e competência lingüística, considerando que o texto que irá produzir será lido por milhares de leitores reais. Desse modo, escolherá recursos lingüísticos pensando nesse leitor ideal. Para o autor, o papel do tradutor é tornar acessível um texto inacessível a um determinado grupo de leitores virtuais. Sob essa ótica, a tradução pode ser feita não apenas de forma interlingual, mas também intralingual. Qualquer que seja o caminho adotado pelo tradutor – levar o autor até o leitor ou vice-versa – o texto-alvo terá como parâmetro fatores extra-lingüísticos de um dado 3
momento histórico. É a interpretação subjetiva do tradutor que determinará o modelo sob o qual a obra será reescrita. Olmi (1994) entende que, a partir de então, surge uma obra a serviço do poder, com aspectos positivos e negativos, dependendo das circunstâncias. Para a autora, positivo é o fato de a nova obra permitir a migração de novos gêneros, estilos e temáticas para a literatura de chegada. Por outro lado, o aspecto negativo se faz na manipulação da obra original de modo a construir imagens falsas e ideologicamente marcadas. É um risco necessário, haja vista que as obras não reescritas podem ser perdidas no esquecimento. Fronteiras entre tradução e adaptação Amorim (1996) discute a fronteira entre tradução e adaptação alegando ser ingênua a redução de um termo pelo outro. É o complexo redimensionamento em termos de discurso que demarcam o limite entre uma e outra. Para o autor, obras como Alice no País das Maravilhas são intraduzíveis devido ao jogo de palavras, ao aspecto cultural e intertextual das referências relatadas no texto-fonte. A noção de adaptação poderia apresentar, no mínimo, dois sentidos neste contexto. Se de um lado Alice pode ser considerada intraduzível, a adaptação significa um resumo da obra que enxerga superficialmente os problemas de linguagem, deixando de lado certas questões para atender a um público específico, como o infantil, de outro lado o texto-fonte poderia ser traduzível por meio de uma técnica que recriaria um novo jogo de palavras e situações capazes de reconstruir paralelos e efeitos de sentido recíprocos. Contudo alguns autores contestam essa “recriação”, por considerarem que o leitor do texto-alvo não recuperaria as referências intertextuais adequadas devido à contemporaneidade do público. Para Farias (apud Amorim), o fato de não recobrar referências do texto-fonte, e sim, criar referências temporais no texto-alvo, significa dizer que o texto-fonte seria alterado de tal forma que o texto-alvo seria uma imitação. O diálogo entre público, tradução e adaptação é um elemento fundamental no trabalho do tradutor e do adaptador, sendo direcionado também pela editora que é o espaço discursivo que legitima as escolhas feitas para as adaptações e as traduções voltadas para o seu mercado. Essas escolhas, especificamente nas adaptações, podem ser encaradas, muitas vezes, como empobrecedoras ou enriquecedoras do texto devido ao processo de simplificação. Voltadas para o público infantil e/ou juvenil, as adaptações aparecem como resumos de obras clássicas, utilizando uma linguagem mais acessível ao fazer uso de léxico mais prosaico e estrutura sintática menos elaborada. Vista de outro modo, as adaptações podem enriquecer o 4
repertório em formação do jovem leitor ao lhe ser permitido o encontro com obras cuja linguagem é muito complexa e, por vezes, arcaica. Nesse contexto o adaptador exerce um papel diferente do tradutor. Conforme Amorim (1996), o adaptador acumula as funções de habilidoso profissional ao atualizar trabalhos para um público específico e ao aceitar o discurso do autor do texto-fonte. In this context, adaptors play a very different role to that of translator. Institutionally, the former is supposed to be not only a professional skilled in “updating” works for specific audiences but partially taking on the author’s discursive role as well.2 (AMORIM, 1996:198)
Isso faz do adaptador um autor/escritor. Por outro lado, o leitor de adaptações pode supor que o adaptador foi fiel à história, e talvez perceba que foi compartilhada por adaptador/autor, caso identifique um toque pessoal na reescrita. Essa característica confia tal responsabilidade ao adaptador que torna seu trabalho de simplificação um tanto complexo. Ainda discutindo a questão da adaptação e da tradução, trazemos a noção de Bastin (apud TORRES, 1996) para quem a adaptação pode ser qualificada como imitação, reescritura e mais: adaptation may be understand as a set of translative operations which result in a text that is not accepted as a translation but is nevertheless recognized as representing a source text of about the same length. (BASTIN, apud TORRES, 1996:239)3.
Para Marie-Hélène Catherine Torres (1996) a tradução é uma não-adaptação, mas a adaptação comporta operações de tradução ligadas a um texto-fonte. Adaptação sugere arranjo e modificação, mais freqüentemente quando é uma questão de alterar um gênero para outro(de romance para teatro ou filme; romance em literatura para criança). Como disse Berman (apud Torres): l'adaptation revêt en général des formes plus discrètes, des formes syncrétiques, dans la mesure où le traducteur tantôt traduit "littéralement", tantôt traduit "librement", tantôt pastiche, tantôt adapte. (BERMAN, apud Torres, 1996:239)4.
Um outro fator imperativo na tradução e na adaptação é o mercado para o qual está sendo feito o trabalho. É o mercado que determinará se a obra original será cortada ou não, e se 2
Neste contexto, adaptador exerce um papel muito diferente que o de tradutor. Institucionalmente, o adaptador supostamente não é só um profissional habilidoso em "atualizar" trabalhos para audiências específicas, mas parcialmente autor aceitando o papel de discursivo do autor. 3 A adaptação pode ser entendida como um jogo de operações tradutivas que resulta num texto que não é aceito como uma tradução, mas não obstante é reconhecido como representante de um texto-fonte no mesmo nível. (tradução nossa). 4
A adaptação veste formas normalmente mais discretas, formas sincréticas, na medida em que o tradutor às vezes traduz "literalmente", às vezes traduz "livremente", às vezes imita, às vezes adapta. (tradução nossa)
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haverá acréscimos para explicitar melhor uma referência. John Milton (2002) apresenta três tipos diferentes de mercado para a tradução. O primeiro é o mercado literário, cujas obras são completamente traduzidas. O custo do livro é mais alto devido aos cuidados com a tradução, aos poucos erros tipográficos e ao fato de os tradutores geralmente serem nomes famosos da literatura brasileira. O segundo tipo é o da condensação disfarçada, ou seja, não é explicitado que as versões são condensadas ou trazem uma tarja escrita edição especial, técnica adotada pelo Clube do Livro. Os preços dos livros são reduzidos e as páginas são limitadas. O terceiro tipo é a condensação explícita, que traz a informação de que a obra foi adaptada ou condensada; possui um público alvo específico. As condensações, explícitas ou não, obedecem a um padrão de produção: tema adaptado ao gosto do leitor, linguagens de baixo padrão e dialetos são cortados, a obra deve manter um estilo narrativo, o número de página e peso do livro são de acordo com o baixo custo da publicação. Entre as técnicas de condensar um romance destacam-se os seguintes critérios: ser altamente seletivo, concentrar-se apenas na narrativa, acompanhar o original omitindo pormenores, e, ainda, misturar as técnicas – acompanhar o original, resumir partes e omitir outras. Angelo Alexandref Stefanovits (apud Matos), editor dos clássicos adaptados da Série Reencontro Infantil, da Editora Scipione, confirma que adota alguns desses critérios para suas publicações. Cada livro adaptado contém um caderno de atividades, atestando o caráter didático das edições. A publicação das obras clássicas tem o objetivo de estimular a leitura. São publicados clássicos universais como Dom Quixote, Hamlet, Romeu e Julieta, Os Miseráveis, dentre outros, que seguem um padrão determinado pela editora, a saber: o tradutor deverá reduzir a obra original entre 80 e 96 páginas, em caracteres grandes, selecionando os episódios mais conhecidos e omitindo outros. Em relação à linguagem, deverá ser simples, contemporânea e de acordo com a norma gramatical, evitando-se os períodos complexos, bem como nota de rodapé e referências sexuais. Ainda de acordo com Matos (2002), em muitas edições condensadas muito da voz do autor desaparece. Diante dessas considerações referentes à tradução e à adaptação cabe-nos perguntar por que ler uma obra clássica? Depois de respondida essa questão, formulamos outra: Ao lermos uma tradução ou uma adaptação de um canônico estamos realmente conhecendo a obra fonte? São elas, as traduções e as adaptações, desdobramentos da obra? É o que tentaremos discutir no corpus do trabalho. Expandindo horizontes sobre os clássicos literários 6
Em seu livro Por que ler os clássicos, Ítalo Calvino (1923-1985) apresenta algumas definições de o que pode ser considerado um livro clássico para, a partir de então, explanar sobre a utilidade de ler uma obra literária clássica. Para o autor, os clássicos são livros lidos e relidos, tanto pela juventude quanto por adultos. Quando lidos na fase juvenil, podem não ser tão bem aproveitados devido à distração, impaciência, inexperiência, mas sempre deixam sua semente graças à força particular da obra. Os clássicos trazem leituras de obras precedentes, cujas marcas foram deixadas na cultura de sua época e nas culturas que atravessaram. Para o autor, são clássicos os livros que nos surpreendem, quando pensamos saber tudo sobre ele; que desperta a vontade de concordar com ele ou discordar dele. Conforme Calvino (1993) para poder ler os clássicos, temos de definir ‘de onde’eles estão sendo lidos, caso contrário tanto o livro quanto o leitor se perdem numa nuvem atemporal. (p.14). Essas considerações podem nortear o entendimento da retomada de publicação de obras clássicas universais voltadas para o público infanto-juvenil. Traduzidas do original ou adaptadas para um público específico, com ou sem ilustração, os clássicos universais revelam uma aproximação entre presente e passado retomado, entre o tempo e espaço de origem e os de agora. Para Ana Maria Machado (2002), cujo público mais relevante é o infantil, não é necessário que a primeira leitura feita dos clássicos pelas crianças seja da obra original. Acredita que um primeiro contato deve ser propiciado para que a posterior leitura do original seja feita por conta própria. A autora atribui a falta de interesse na leitura dos clássicos à falta de oportunidade de conhecer o imenso patrimônio cultural que vem se acumulando ao longo dos séculos. Tradicionalmente na história da humanidade, a leitura ocupa um lugar de poder. Permitir o acesso a obras de qualidade é estar municiando os leitores de instrumentos de resistência e de meios para fazerem valer seus direitos. Por meio da leitura também pode o leitor se descobrir em um personagem, utilizando o afastamento permitido pelo plano fictício e o outro contexto de atuação como auxiliares no entendimento do sentido da própria vida. Esses são mais elementos que devem guiar o adaptador e o tradutor no seu árduo trabalho. Desmontar a obra original para conhecer cada peça que lhe dá a forma. Resgatar as marcas culturais impressas, situar de onde eles vêm e de onde estão sendo lidos, traduzir a linguagem do leitor do texto original para a linguagem do leitor atual. Considerações sobre a adaptação de Dom Quixote A presente análise está longe de esgotar ou mesmo contemplar todos os aspectos da obra, bem como a obra num todo, devido à sua grandiosidade e complexidade. Há, aqui, uma 7
tentativa de levantar questões pertinentes à tradução, num conceito extensivo à adaptação, buscando instigar uma leitura mais cuidadosa de tais publicações. A obra em foco é Dom Quixote, do espanhol Miguel de Cervantes (1547-1616), escrita no período medieval, que já foi contemplada com inúmeras traduções, adaptações, críticas e diálogos com outras obras, literárias ou não. Mais recentemente, a revista Entre Livros lançou uma série fundamental5 de apenas seis edições de autores de clássicos literários, dentre eles o autor de Dom Quixote ao lado de Dante Alighieri, William Shakespeare, Luís de Camões, Johann Goethe e Honoré de Balzac. A obra conhecida como Dom Quixote de la Mancha foi originalmente publicada em duas partes, sendo a primeira com o título El ingenioso hidalgo don Quijote de la Mancha, publicada em 1605; e a segunda parte denominada Segunda Parte Del Ingenioso Cavallero Don Quixote de La Mancha, publicada em 1615. Na edição traduzida por Visconde de Castilho e Azevedo e notas traduzidas por Fernando Nuno Rodrigues, publicada pela Editora Nova Cultural Ltda, as duas partes constam de volume único, com 686 páginas, cujo título se resume a Dom Quixote. Acompanha a edição, um encarte explicativo da vida e obra do autor, cujo teor contém a informação sobre as publicações das partes, primeira e segunda, do original terem sido feitas em datas distintas. Ler Dom Quixote no original é considerado um desafio devido tanto ao que já se disse sobre o livro, criando uma dificuldade de aproximação, quanto à linguagem que oscila entre o rebuscado e o popular, entre o poético e o prosaico, entre o trocadilho e a referência erudita, entre o provérbio e a parábola. Essas características interferem diretamente na tradução, como afirma Reynaldo Damazio (2006): Com o passar do tempo e as mudanças no idioma, na cultura e no pensamento, traduzir é quase como reconstruir arqueologicamente certas estruturas lingüísticas. Por um lado, optar pela tradução dita ‘literal’ é quase uma falácia, pois há expressões que são típicas da época ou daquela língua e não fazem sentido se transpostas ao pé da letra. Pó outro lado, enveredar pela transcriação radical traz o risco de destruir a beleza e as peculiaridades do original, que dizem respeito ao momento em que foram criadas. (p. 92-93).
O apelo publicitário da obra em análise explora três bordões básicos: um grande retrato dos dramas da condição humana; o texto fundador da novelística moderna; diversão garantida. (MOLINA, 2006:34). Além desses elementos, há a alegoria do ideal e do real, o protagonista ser o protótipo do herói romântico e o humor auto-reflexivo. Para o tradutor Sérgio Molina, resgatar esses elementos numa adaptação moderna torna-se problemático, considerando que o herói romântico que Dom Quixote encarnou, morreu; o gênero novela está em crise involutiva e o entretenimento está nas mídias não-impressas ou em livros com esta finalidade. 5
As edições retratam vida e obra do autor por meio de ensaios que versam sobra análise do contexto político, social e cultural das obras, críticas de releituras, de representações e traduções.
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Considerando
os
três
vértices
responsáveis
pela
tradução
a
saber:
autor,
tradutor/adaptador, leitor, uma primeira distinção de peso na análise se deve fazer ao leitor da obra no seu tempo e espaço original e atual. O texto original circulou num período de grandes transformações sociais, culturais, literárias. Seus leitores eram adultos envolvidos no processo de reforma e contra-reforma da Igreja, e viram o florescer do Renascimento. Em contrapartida, o leitor da adaptação está muito distante desse tempo-espaço da obra que, em tese, o adaptador pretende lhe apresentar. As grandes atrações da modernidade são oferecidas pelas inovações tecnológicas; o interesse, principalmente dessa geração, está voltado para o mundo digital. Situar esse leitor é incluir ainda uma outra diferença entre ele e o público da obra original. O leitor da adaptação possui uma complexa faixa etária. Voltada para o público infantil, a adaptação da obra pede uma linguagem mais simples, objetiva, direta e plástica, além de exigir do adaptador habilidade para prender a atenção do leitor mirim, envolvê-lo na história. Para tanto, a seleção das aventuras que irá compor o livro deve ser cuidadosa, assim como a estrutura gramatical empregada na narrativa dos fatos. Focando a adaptação feita por José de Angeli, ilustrações de Clarissa Ballario, publicada pela Editora Scipioni, podemos destacar alguns aspectos mais visíveis como o título, que permanece o empregado nas edições que constam das duas partes em um único volume, Dom Quixote, e o número de páginas – 46 – constantes da narrativa e mais uma, totalizando 47, que contém um texto explicativo sobre Quem foi Miguel de Cervantes? e Quem é José de Angeli? Na capa consta além do título, o nome do autor do texto original e, logo abaixo, o nome do adaptador precedido pela informação adaptação de; abaixo, no canto esquerda, aparece o nome da série Reencontro Infantil, e da editora; no canto inferior direito, destaca-se o desenho menor de um castelo. Contém, ainda, Dom Quixote e Sancho Pança caricaturados, montados em seu Rocinante e seu jumento, respectivamente, tendo como pano de fundo uma cidade com seus castelos medievais. Na margem esquerda, em uma faixa ondulante azul, figuram uma donzela, possivelmente Dulcinéia, e gigantes assustadores em frente a moinhos de ventos. Na contra-capa, ou quarta capa, na parte superior, centralizado, está impresso o nome da série; mais abaixo, o texto Para recuperar a boa literatura, Para direcionar o prazer do texto, em letras maiores e na cor verde, precede a síntese da obra adaptada: Acreditando ser um cavaleiro andante, Dom Quixote saiu pelo mundo montado em seu cavalo Rocinante, sonhando com sua amada Dulcinéia, em busca de aventuras. Acabou encontrando Sancho Pança, seu fiel escudeiro, e muita confusão.
No canto esquerdo inferior, consta a classificação etária do público alvo: a partir de 9 anos, seguido mais abaixo pelo nome e endereço eletrônico da editora. E do outro lado, o 9
inferior direito, a imagem de roupas de cavalaria. No corpo do livro, observa-se que o prólogo, bem como cartas, sonetos, dedicatória e poemas, são eliminados na obra adaptada, compreensivelmente. O primeiro capítulo da adaptação traz em seu título a característica mais marcante do protagonista: Dom Quixote sonhador. Com a escolha deste título, o adaptador dispensa a explanação sobre a verdadeira identidade da personagem, Alonso Quijana, e o minucioso processo que o “tornou” um cavaleiro: mudança de roupas, mudança do próprio nome do cavalo. Tudo para compor o personagem que sai em busca de aventuras. Se, no original, o ato de procurar e escolher armas e roupas, remendar armadura, vestir-se, foi meticulosamente detalhado em frases longas, construindo a medida do tempo de guardada (jaziam para um canto esquecidas havia séculos), a visualização das partes danificadas e em falta, como e com que material foram consertadas, o teste que foi feito para verificar se os acertos ficaram bons, os novos estragos, o tempo gasto para os reparos (para experimentar se lhe saíra forte e poderia com uma cutilada, sacou da espada e lhe atirou duas, e com a primeira para logo desfez o que lhe tinha levado uma semana a arranjar), na adaptação todo esse trabalho desaparece, ficando a imagem de uma tarefa rápida e fácil. A escolha do nome do cavalo quatro dias levou a cismar que nome lhe poria; e só depois da alteração do nome de seu cavalo, de rocim para Rocinante, é que o protagonista quis também arranjar um outro nome para si, gastando mais oito dias. Após pensar em como os cavaleiros dos romances de cavalaria escolhiam seus nomes, decide-se por Dom Quixote, acrescido do nome de sua terra la Mancha, que declarava muito ao vivo sua linhagem e pátria. Já no primeiro capítulo da obra original, a amada do cavaleiro viajante é apresentada, Dulcinéia Del Toboso, na verdade ficcionalmente chamada Aldonça Lourenço, cujo novo nome também foi “escolhido” por ele. Na adaptação, a enamorada do cavaleiro errante só vai aparecer no quarto capítulo, sem menção do nível fantasioso que dele faz parte. Desse modo, três das personagens principais estão postas e apresentadas, restando a introdução do escudeiro Sancho Pança. Este irá aparecer após o retorno de Dom Quixote à sua aldeia, depois de ser espancado em sua primeira saída. Entre a primeira e a segunda saída do cavaleiro, ocorre a queima da biblioteca de Dom Quixote pelo padre-cura e pelo barbeiro, salvando Amadis de Gaula6, fato não selecionado para constar na adaptação. O intervalo de quinze dias que Dom Quixote ficou em casa se restabelecendo é narrado na adaptação, em um parágrafo, já introduzindo a presença do amigo e vizinho Sancho Pança, que passará a acompanhar o cavaleiro andante, sob os xingamentos da mulher daquele. Com todos os personagens 6
Livro de cavalaria, de autoria incerta atribuída a Vasco de Lobeira, datado do século XIV, surge na Península Ibérica, cuja primeira versão é em castelhano.
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apresentados, o adaptador constrói seu texto selecionando os episódios mais conhecidos tanto da primeira parte quanto da segunda, eliminando as narrativas paralelas. Com essa eliminação, o estilo é simplificado, na medida em que o foco fica centrado na narrativa principal, ou seja, “algumas” aventuras do personagem principal, Dom Quixote. O adaptador opta, ainda, por construir o texto em diálogos mais numerosos que em partes narradas. Um aspecto relevante é que os diálogos entre Dom Quixote e Sancho Pança são elaborados em construções simples, de fácil compreensão, sendo abandonados os provérbios característicos da fala de Sancho Pança no texto original. No capítulo final da adaptação, os personagens secundários (o padre, o barbeiro, a velha ama e a sobrinha do protagonista, além de Teresa Pança) aparecem recepcionando os dois viajantes que retornam à casa. O adaptador optou por não narrar a morte de Alonso Quijano, ou Dom Quixote de la Mancha, ao final da narrativa. Ao contrário, como se quisesse imortalizá-lo, encerra seu trabalho atestando que Dom Quixote de la Mancha, o Cavaleiro da Triste Figura, foi tão bom, tão puro e tão honesto em suas loucas façanhas, que sua história é contada até hoje no mundo inteiro, elogiando suas virtudes e seu espírito de aventura.
Em suma, pode-se afirmar que o texto adaptado privilegiou o leitor moderno. A escolha de levar o leitor ao autor se deu na seleção do léxico simples, na estrutura frasal curta, no privilégio aos diálogos, no corte de passagens reflexivas, na supressão de detalhamento de ambientes e personagens secundários, com a imissão de narrativas externas à narrativa principal. Concentrando-se na ação, o adaptador selecionou episódios com os quais o leitor pudesse se identificar, na medida que se deixasse levar pela história e sonhar com o Dom Quixote sonhador que se propôs apresentar. O cenário dos fatos, foram situados com descrições mínimas e reconhecíveis do público alvo e as personagens secundárias incluídas na história foram minimamente referidos (o conde e a condessa, por exemplo), sendo a maioria eliminada. Considerações finais Retomando a perspectiva de Said (1983) no tocante a repetição de um modelo representativo de experiências e feitos humanos, combinados a novos elementos com a finalidade de reviver, de preservar, podemos afirmar que é uma boa escolha reeditar Dom Quixote, ainda que adaptado. Aparentemente buscando resgatar os aspectos mais aventureiros da obra original, houve um respeito ao leitor iniciante não só de clássicos literários como do próprio ato de ler. A identificação que o leitor parece ter com a adaptação se dá na linguagem 11
peculiar, na seleção dos episódios, nas ilustrações complementares da interpretação ou visualização das personagens, das armaduras, dos moinhos de vento (tão distante da realidade dos meninos dos tempos atuais) e da edição: colorida, letras grandes dispostas em espaço duplo, parágrafos curtos, diálogos. Enfim, tudo minimamente dito, resumido e simplificado como deve ser a vida e a leitura infantil. REFERÊNCIAS AMORIM, Lauro Maia; Translation and adaptation: differences, intercrossings and conflicts in Ana Maria Machado’s translation of Alice in wonderland by Lewis Carroll. In Cadernos de tradução. Universidade Federal de Santa Catarina. Centro de Comunicação e Expressão. Pósgraduação em Estudos da Tradução. – nº 1 (1996), v.; 21 cm- Florianópolis: Pós-graduação em Estudos da Tradução. ARROJO, Rosemary. A tradução como paradigma dos intercâmbios intralingüísticos. In: Alfa: Revista de lingüística. O texto: leitura e tradução. São Paulo. vol. 36, 1992. Universidade Estadual Paulista/ UNESP. CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos; tradução Nilson Moulin – São Paulo: Companhia das Letras, 1993. CERVANTES SAAVEDRA, Miguel de. Dom Quixote; adaptação de José de Angeli; ilustrações de Clarissa Ballario. – São Paulo: Scipione, 1999. – (Série Reencontro Infantil) _ Dom Quixote de la Mancha. Tradução de Visconde de Castilho, notas traduzidas por Fernando Nuno Rodrigues. São Paulo: Nova Cultural. 2002. DAMAZIO, Reynaldo. Andamento em português. In: Edição Especial da Revista Entre Livros – EntreLivrosClássicos3 – Miguel de Cervantes. São Paulo, Ediouro, Segmento- Duetto Editorial Ltda, 2006. JAKOBSON, Roman. Aspectos lingüísticos da tradução. In: Lingüística e Comunicação. São Paulo: Cultrix, 1969. _ Lingüística e poética. In: Lingüística e Comunicação. São Paulo: Cultrix, 1969. JOHN, Milton. O Clube do Livro e a tradução - Bauru, SP: EDUSC, 2002. MACHADO, Ana Maria. Como e por que ler os clássicos universais desde cedo/ Ana Maria Machado. _ Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. MOLINA, Sérgio. A realidade da ficção. In: Edição Especial da Revista Entre Livros – EntreLivrosClássicos3 – Miguel de Cervantes. São Paulo, Ediouro, Segmento- Duetto Editorial Ltda, 2006.
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